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Diário de uma Viagem a Flores, Bali, Java e Timor Lorosae Na rota das especiarias

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  • Diário de uma Viagem a Flores, Bali, Java e Timor Lorosae

    Na rotadas especiarias

  • [Uma chancela do Grupo Leya]

    Rua Cidade de Córdova, n.° 2

    2610-038 Alfragide – Portugal

    Reservados todos os direitos

    de acordo com a legislação em vigor

    © 2008, José Eduardo Agualusa e Publicações Dom Quixote

    Desenhos: © João Queiroz

    Revisão: João Vidigal

    Design: Rodrigo Saias | Atelier 004

    ISBN: 9789722044707

    www.dquixote.pt

  • José Eduardo AgualusaDesenhos João Queiroz

    Introdução Guilherme d’Oliveira Martins

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    Guilherme d’Oliveira Martins

  • depressa superaram os traumas de mais de vinte anos deseparação. E hoje, com mais tempo passado, podemos dizerque essas amizades apenas se reforçaram, apesar de todas asdificuldades e vicissitudes.

    Só quem não conhecesse as raízes muito profundas destarelação de Portugal e da Indonésia é que poderiasurpreender-se com o sarar das feridas tão rapidamente.Vinte anos não poderiam macular vários séculos de umaempatia quase natural. E sobretudo quando nos lembramosdo fantástico encontro com as gentes da ilha das Flores ecom as suas tradições, fica-nos a memória viva de umacomunhão de língua e de espírito, que pode explicar oenigma da facilidade do reencontro e da redescoberta. Noexercício de funções públicas, não me foi possível acompa-nhar esta primeira embaixada civil de portugueses para

    Como afirmou Helena Vaz da Silva (e deveria ser seu otexto a iniciar este livro), a Indonésia é, “para todo o portu-guês, um caso singular. Pelas relações antigas e longas quemantivemos (1512 a 1769, sem contar com o prolongamentode Dili até ao século XX), pela natureza cordial do povoindonésio que permitiu um enraizamento profundo damensagem levada pelos nossos missionários mas também,num outro registo mais negro, pelo conflito aberto nosúltimos anos derivado da ocupação de Timor pelos indoné-sios em que Portugal assumiu o papel de defensor dosdireitos dos timorenses na cena internacional, com grandemobilização da população civil portuguesa e crescente apoioda opinião pública mundial”. Ora, esta obra é um acto derecuperação dos elos afectivos. Trata-se de uma redesco-berta da Indonésia, pelo reencontro de amizades que

    Um caso singular

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  • “refazer a ponte de cultura e afecto”, mas lembro-me, comose fosse hoje, do entusiasmo de Helena na preparação destaexpedição (que durou de 8 a 29 de Abril de 2001) e, depois,do brilho nos olhos que acompanhou as descrições que fezsobre o que se tinha passado. Vários registadores partici-param desta aventura – e o escritor, José Eduardo Agualusa,e o artista plástico, João Queirós, entregam-nos agora oproduto da sua obra, que se soma ao que foi feito pelosjornalistas, pelo fotógrafo e pela pequena equipa de cinema.

    A Indonésia é um país com indiscutíveis potencialidadesde desenvolvimento. Daí que as preocupações da “embai-xada civil” tenham sido fundamentalmente prospectivos.Interessou, no fundo, abrir caminho a uma cooperação defuturo. Por isso, em especial na ALIAC – Associação Luso--Indonésia de Amizade e Cooperação, temos procuradoprosseguir, com estabilidade e continuidade, o aprofunda-mento das relações culturais, sociais e económicas entre osdois Estados. No entanto, como testemunhou o EmbaixadorAntónio Pinto da França: “não demorará muito tempo atéque qualquer português acabado de desembarcar na Indo-nésia e minimamente atento, não comece a esbarrar, comsurpresa, em vestígios portugueses, ou que não se espantecom as calorosas manifestações de locais ao descobriremterem perante si um lusitano. Dar-lhe-ão logo mostras demuito bem o conhecerem e aos seus antecedentes, melhorque muitos europeus, para não falarmos de americanos.Sentirá de imediato uma atmosfera de intimidade e cumpli-

    cidade.” Não há exagero nesta consideração. É assimmesmo, e quando ocorreu em Dezembro de 2004 o terrívelterramoto e o arrasador tsunami que atingiu a Indonésia eem especial Sumatra, lembramo-nos bem de que os gestosde solidariedade foram espontâneos e traduziram-se emapoios e cooperação, que só poderiam existir, na dimensãoque alcançaram, mercê de raízes comuns fundas e antigas.

    Persiste, no entanto, um mistério, a que esta embaixadacivil não teve condições de responder (nem era essa a suamissão): – por que razão persiste no imaginário da antigaInsulíndia a memória dos portugueses? A presença lusitanana região, a partir de Malaca, não durou mais de 150 anos,falando-se de contactos substanciais, permanentes e regu-lares, e cessaram há mais de três séculos. O “papiar cristan”é uma reminiscência relativamente ténue. Além disso, desdeo século XVII, os holandeses tudo fizeram para apagar amemória da passagem portuguesa, por razões políticas eestratégicas. E não conheço outra hipótese de explicaçãosenão a que é esboçada ainda pelo meu amigo EmbaixadorAntónio Pinto da França: “é possível que a intrigante sobre-vivência dos nossos vestígios, a curiosidade e a simpatia queainda hoje manifestam por Portugal, se devam a um fenó-meno de assimilação da imagem dos portugueses aos mitosdas populações locais.” É possível que sim. Pelo menosquem conhece a realidade indonésia e se dispõe acompreender as populações autóctones e as suas tradições,sente que os elos entre civilizações, quando se fala da

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  • Por isso, a memória histórica só nos importa como húmuspara a sementeira do presente – se fizemos ontem, devemoshoje fazer ainda melhor, se errámos, devemos rectificar erefazer. Daí que um “fenómeno de assimilação da imagemdos portugueses aos mitos das populações locais” deva serobjecto de observação e de crítica atentas – e é isso que sepretende ao fazer renascer a chama de uma amizade e deuma cooperação com potencialidades indiscutíveis. E a artee a cultura, o espírito romanesco e a criatividade narrativapodem servir-nos plenamente neste esforço de redescobertae de reencontro.

    cultura aberta dos portugueses, tem muito mais a ver comuma empatia ancestral do que com qualquer fenómeno deaculturação passiva.

    Como se lerá neste texto de José Eduardo Agualusa, maisimportante do que as invocações históricas, e do que asrememorações do passado, o que deve é entender-se o paíse as gentes dos dias de hoje. De nada valeria a recordaçãoda História sem uma interrogação efectiva (e uma análise)sobre o presente. Recusaríamos as razões do diálogo espiri-tual e de culturas se nos satisfizéssemos com o passado –esquecendo que os mortos devem enterrar os seus mortos.

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    Olha cá pelos mares do Oriente As infinitas ilhas espalhadas: Vê Tidore e Ternate, co fervente Cume que lança as flamas ondeadas. As árvores verás do cravo ardente, Co sangue português inda compradas. Aqui há as áureas aves, que não descem Nunca a terra e só mortas aparecem.

    Camões, Os Lusíadas, Canto X

  • S E G U N D A - F E I R A , 9 D E A B R I L

    (Voando sobre o Golfo de Bengala)

    Vejo um breve mapa do mundo desenrolar-se no visorelectrónico. A sombra de um avião avança aos soluçossobre o Golfo de Bengala. Faltam menos de três horas paraaterrarmos no aeroporto de Sukarno-Hatta, em Jakarta. O nosso planeta encolheu miseravelmente desde o tempoem que os navegadores europeus o percorriam nas suascaravelas.

    Antes da invenção do comboio e do automóvel, da aber-tura de estradas e da construção dos caminhos-de-ferro,era muito difícil vencer florestas, montanhas e desertos. A água foi, depois da terra, o segundo elemento a servir decaminho para as longas jornadas. Isso tornou o mundo umpouco menor. Nessa época apenas alguns visionários,muito poucos e muito loucos, sonhavam com travessiasaéreas. Amanhã, certamente, caminharemos sobre oúltimo dos elementos – o fogo –, e então, sim, alcança-remos as estrelas. A Terra será nessa altura do tamanho doquintal da minha casa. Eu, confesso, sofro um pouco coma nostalgia do tempo em que o mundo era ainda um lugarilimitado, vário, misterioso, e os cartógrafos anotavam amedo nas margens dos seus mapas – daqui em diante só hádragões.

    Veremos os dragões nesta viagem?

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  • e o seu preço caiu. Que simples ervas, sementes, folhas eraízes tenham impulsionado e sustentado esse cometimentoassombroso – as navegações ibéricas –, custeando porexemplo a opulência arquitectónica de Goa, suscita inevitávelestranheza. Mas, afinal, não acontece hoje algo de semelhantecom o comércio proibido de folhas de coca ou de cânhamo--da-índia – um dos mais lucrativos negócios dos nossos dias?

    Ervas raras, ervas caras.

    (Os navegadores obscuros)

    Irei ouvir falar muito, durante esta viagem, da gesta dosnavegadores portugueses. Os portugueses, como todos ospovos, têm excelentes motivos para se orgulharem da suaHistória, e excelentes motivos para se envergonharem dela. A aventura dos descobrimentos parece-me um bom motivode orgulho. Muito do que aconteceu na sequência destasviagens – a escravatura, a humilhação e genocídio das popu-lações indígenas, a extinção de línguas e culturas, a explo-ração de recursos, etc. –, deve no entanto ser lembradosempre, e em particular durante manifestações de fácil exal-tação nacionalista, ao menos como medida profiláctica contrao ressurgimento de uma tristíssima nostalgia colonial.

    Trago comigo, entre a minha magra bagagem, a Peregri-nação, de Fernão Mendes Pinto. É um dos poucos livros quegosto de reler. Releio a passagem sobre o menino prodigioso,uma pobre criança que censura os portugueses após mais um

    (Ervas raras)

    Espreito através da pequena janela redonda, afundo osolhos na luz macia das nuvens, e imagino o antigo pavor dosnavegantes. O que fez com que os portugueses chegassem atéestes tectos altos do fim do mundo, enfrentando míticosmostrengos, tempestades, as noites longas sobre o mar, oescorbuto, a saudade, os piratas ferozes?

    El Rei Dom João II? A fé em Cristo? Não creio. Portu-gueses e espanhóis chegaram até aqui movidos sobretudopelo honesto propósito de enriquecerem. Foram àsmargens do mundo atrás de ervas e raízes – espécies vege-tais, ou antes, dizendo o mesmo de forma mais nobre, espe-ciarias; ervas e raízes exóticas utilizadas para conservar emelhorar a qualidade das carnes, bolos e bebidas e renovaro seu sabor.

    O cravo-da-índia cultivava-se nas ilhas Molucas, a noz--moscada vinha do arquipélago de Banda, e a pimenta prin-cipalmente de Sumatra. A canela prosperava nas florestas deCeilão e de Timor. O gengibre era traficado secretamente apartir da China. O cravinho, usado pelos nobres chinesespara refrescar o hálito antes de se dirigirem ao imperador,alcançava elevados preços nos mercados europeus devido àssuas aclamadas virtudes mágicas. Salvo o açafrão e abaunilha, que ainda hoje são bens preciosos devido à dificul-dade da sua confecção, a generalidade das especiariaspassaram a ser cultivadas nos mais diversos cantos do mundo

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  • brutal saque do grupo onde seguia o cronista: “Bendita seja,Senhor, a tua paciência, que sofre haver na terra gente que fale tãobem de ti e usa tão pouco da tua lei, como estes miseráveis e cegos,que cuidam que furtar e pregar te pode satisfazer, como aos prín-cipes tiranos que reinam na terra.”

    Voando sobre o Golfo de Bengala, a caminho da Indo-nésia, ocorre-me a lembrança dessa outra saga marítima,mais obscura, infinitamente mais arriscada, que levou ospovos destes mares, em simples canoas com flutuadores –

    guiando-se pelas estrelas, interrogando as correntes e osventos, conversando com as aves marinhas, os tubarões, os pei-xes miúdos –, até África, à grande ilha vermelha de Mada-gáscar, onde os seus descendentes ainda hoje habitam.

    Pensando melhor, o que festejo aqui, a quatro mil metrosde altitude, a uns oitocentos quilómetros por hora, admi-rando o sol que tece fantásticos desenhos de luz no algodãopuríssimo das nuvens, é a grande aventura do Homem embusca da restante humanidade.

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