na praia - hemeroteca...

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esta apregoada individualidade do theatro parisiense que tantos milhões tem feito rolar pelas - gavetas dos camaroteiros europeus, esta actriz por quem Londres e Sáo Peters- burgo · suspiram todos os annos, que tem visto príncipes respeitosamente inclinados diante d'ella, proferindo todas as banali- dades da admiração e da galanteria - come- çou a sua carreira sendo, como milhares d'o utras que todas as noutes cruzam os bou- levards, uma simples actrizita de café con- certo. Conhecem o genero ? ••• Louritas e franzinas. Grandes olhos intel- ligentes, atrevidos e febris. Beiços côr de sangue recortados a vermelho de camarim , para fazerem sobresahir - quando se en- treabrem -duas filas de dentinhos cerrados, miudos, brancos, um quasi nada famintos de ceias em gabinete particular. Um seio tratado a capricho. Um decote preparado para pro- vocar binoculos. Uma saia de setim, zangada por ter descido um centimetro abaixo do joelho. Pernas finas. Meias de côres vivas; primeiro d'algodáo, depois de fio d 'Escoss ia, depois de sêda - conforme o numero d'apaixonados ! Uma voz educada, preparada, forçada a dar todas as not as do grotesco, do equivoco e do petul an te. Vinte carêta s diffe- rentes por minuto . Gestos desmanchad os de fantoche... E trez francos por noute para viver! A isto só resistem as que têem ver - dadeiramente talento -as que deixam esca- par por entre aquelle inferno de disparates uma nota de cantora e um gesto d'actriz. E muito poucas teem sido as que se teem reve- lado verdadeiramente cantoras e ver dadei- ramente a ctrizes, como aq uella de quem a Illustração hoje o retrato. Na interpretação do vaudeville é ainda J udic quem possue todo o segredo- º segredo de bem representar estas peças que o sr. Epiphanio (um grammatico aus- tero) vae agora classificar de peças epicenas, attendendo a que tanto pertencem ao genero opereta como ao genero comedia . .. E no vaudeville J udic é verdadeiramente eminente. Cantora--: sabe di:z.er como ne- nhuma outra de Paris os seus couplets. Actriz - sabe ca!ltar o seu dial ogo, coloril- o, aq ue- cel-o, dar-lhe relevo e dar-lhe vida, como qualquer actriz de comedia da Comédie- Francaise. ' se conhece n'este mundo parisiense - não fallando da grande Theresa que hoje declina, mas que ainda sabe fazer chorar e fazer rir o se u publico - voz mais ma le avel, garganta mais educada para poder inter- prefar esta cousa são simples e tão difficil - a canconeta. ' J udic chegou mesmo a criar o seu genero, a fazer surgir um bando d'imitadoras da s ua maneira. Mas nenhuma subio ainda - nem mesmo a Duparc - a esta delicadeza artistica que tãnto caracterisa o seu canto, feito de meias tintas suavíssimas que, se fosse p oss ivel reproduzir sobre uma folha de papel de China, havia de ter em eq uiva-: lencias de tons a doçura das aguas-fortes e das miniaturas do seculo xn 11. A ILLUSTRAÇÃO Na fama d'urna actriz a formosura e o talento entram sempre em partes eguaes. Chega-se mesmo a hesitar entre a primeira condicção para se ser actriz - se talent o, se belleza. As opiniões dividem-se em dois campos terri veis. Os crític os pedem talento. Mas os direct ores de theatro s pedem b onitos olhos, e as concierges de Paris mandam as filhas para o Conservatorio-q uando em que effectirnmente todo s os locatarios da casa lhes fazem a côrte !. .. Quando a mulher é feia precisa pelo espí- rito e pelo estudo valer duas vezes mais que ou tra actriz do seu genero. Não se perdoaria a Celine Chaumont que fizesse mal uma scena do Divorçons. Mas se a Magnier represen- tas se mal uma peça em cinco actos, a pla- teia havia de 1 he perdoar - por que teria passado a noute a namorar-lhe os olhos e o colo! Na reputação da J udic a formosura entrou com So o/ o - como na reputação da Théo ha 75 o/o de belleza a descontar. vae um pouco longe a sua primavera - mas um qu asi nada de exforço no espar- tilho e um quasi nada de pintura de cama- rim transformam a actriz n' uma mocidade tão fresca e tão ape tecivel, que chega a causar ciumes a muitos vinte annos femi- ninos que a olham dos camarotes. E mesmo que não fosse o que ainda é - a Judie tinha como recur so infallivel os seus bellos olhos de parisiense, que prendem toda a a ttenção dos espectadores ... como estes bordados diabolicos, feitos a escarlate e a ouro, so bre o velludo preto, o velludo fatal, da s mezas d os prestimanos. Os olhos de que a Europa ainda mais se orgulha de p ossuir - são os olhos das andaluzas e os olhos das parisienses. A fama dos olhos das andaluzas é devid a em grande parte aos poet as romanticos que os iam cant a nd o e sus pir ando, muitas vezes sem nunca terem visto a nd a lu zas - nem mesmo das de exportação l Mas que de poe- mas que se não escreveram para ca nt ar os o lh os de Conch a, de Lola e de Consuelo ! ? A furia passou, no dia em que a humani- dade se aborreceu de tanta mirada fatal, assassina, vibrada por detraz d'um lequ e ou d' uma mantilha. Os poetas t anto insistiram sobre os olhares que a tr avessavam corações com a facilidade d' um fiorête, e dos milhões de mancebos que caíam fulminados pelo golpe terrível - que Sevilha ca íu ta mbem pela sua vez ... mas no de scredi to da Eur opa! Hoje gosam d' uma justa reputação os olhos das parisienses. E a razão é simples. Uma andaluza bonita com olhos boni tos - p ode ser uma divind ade . Uma andaluz.a feia com olhos b oni tos - é sempre uma mulher fei a . Emquanto que a parisiense, ou seja feia, ou seja bonita - é sempre admirada e apetecida. Ha no seu olhar alguma cousa de myste- noso, de superior, de sympathico que atrahe e prende. Uma vida onde falla mais alto o espírito que o corpo. Um reflexo d'es ta sublime claridade com que Paris illumina todo o mundo. Um náo sei q uê, que trasborda amor ou odio. Um azul táo puro, tfo claro, que á primeira vista define todo s os caprichos da mulher - que é capaz de perder como tambem é capaz de sa l- var! ... MARL\:-10 Pr:->A. P. S. - Acabo de ser informado de que o artigo. do Diario da Man!iá que de u occas iáo ú minha chronica do 9 da Il/11 st1 ·açáo, tinha um sentido diver so d'a quel !e que se lh e podia faci lment e at tribuir - e que eu lh e attribui. Effeitos d' um estylo profundamente metaphorico,de que o mesmo Diario h o je abusa., e que não estava nas tradicçóes do jornal. Ant ecipo -me portanto a toda e qualque r que a nova redacçáo do Diario da Manhã me possa pedir, dando por o cabidas as phrases que a possam molestar. Is'to entende-se apenas com as p hrases que me suscit ou o artigo mal interpretado. Quanto ao mais, ao assumpto principal da chronica, é historia e é critica donde não ha a retirar uma unica pa la vra . M. P. A ILL USTRAÇÁO publicará no proximo numero um ar - tigo do seu brilhante collaborador Jayme de Seguier . Titulo : UM · U1 \N110 NO NA PRAIA O rude coração do amargo oceano Tem virtudes inergicas, austeras: um heroico lamp ejo ao corpo humano, Um sadi o .florir de primaveras . Essas almas dolentes, requebradas, Tristes como o cantar de um rouxinol, Fal-as fortes, viris, illuminadas: Brilhantes como o sol, E rijas como espadas. Um corpo frouxo e morbido efra11:;Jno, Cheio de pallide:z etherea e dóce, Fàrma-o como se fosse De bron:;_c C rf stalli110. Depois o aroma acre dos pinheiros, A borrascosa vo:z do s marinheiros, E a vastidão da esplendida paizagem, Tudo fa:;_ rebentai· em nossos peitos O bron:ze inabalavel da coragem. Deixae os plumeos leitos Onde o espirito lall guido desmaia! Vinde viver na praia Entre as coisas sadias, triu111pha11tes Do bello mundo antigo! E despi esses vicios irritantes Como quem despe uns trapos de mendigo! Viver n' uma casita á beira mar Feita no gosto ingle:;_, Casa de um andar E sem balcão chinc:;_; Ler paginas vibrantes, luminosas, Ricas de coisas sãs e duradoiras; Beijar crianças puras, vigorosas, Ainda mesmo que não sejam loiras; Junto a isto um amigo verdadeiro, Saude e algum dinheiro, E is a vida melhor, ma is pittoresca Que existe á lzq do dia ... A vida assim é uma 1·oseira fresca Inundada de or valhos de alegh'a ! G UERRA A ILLUSTRAÇÃO publica no seu proximo numero um magnifico desenho de F. Villaça representando uma praia do Amazonas, e que o sympathico artista fez expressamente para o nosso jornal. A ILLUSTRAÇÃO nos numeros a seguir con tinuará a publicar curiosos i esenhos sobre a China contempo- ranea .

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esta apregoada individualidade do theatro parisiense que tantos milhões tem feito rolar pelas -gavetas dos camaroteiros europeus, esta actriz por quem Londres e Sáo Peters­burgo · suspiram todos os annos, que tem visto príncipes respeitosamente inclinados diante d 'ella, proferindo todas as banali­dades da admiração e da galanteria - come­çou a sua carreira sendo, como milhares d 'outras que todas as noutes cruzam os bou­levards, uma simples actrizita de café con­certo.

Conhecem o genero ? ••• Louritas e franzinas. Grandes olhos intel­

ligentes, atrevidos e febris. Beiços côr de sangue recortados a vermelho de camarim , para fazerem sobresahir - quando se en­treabrem -duas filas de dentinhos cerrados, miudos, brancos, um quasi nada famintos de ceias em gabinete particular. Um seio tratado a capricho. Um decote preparado para pro­vocar binoculos. Uma saia de setim, zangada por ter descido um centimetro abaixo do joelho. Pernas fina s. Meias de côres vivas; primeiro d 'algodáo, depois de fio d 'Escossia, depois de sêda - conforme o numero d'apaixonados ! Uma voz educada, preparada, forçada a dar todas as notas do grotesco, do equivoco e do petulan te. Vinte carêtas diffe­rentes por minuto . Gestos desmanchados de fantoche... E trez francos por noute para viver!

A isto só resistem as que têem ver­dadeiramente talento -as que deixam esca­par por entre aquelle inferno de disparates uma nota de cantora e um gesto d 'actriz. E muito poucas teem sido as que se teem reve­lado verdadeiramente cantoras e verdadei­ramente actrizes, como aq uella de quem a Illustração dá hoje o retrato.

~ Na interpretação do vaudeville é ainda J udic quem possue todo o segredo­º segredo de bem representar estas peças que o sr. Epiphanio (um grammatico aus­tero) vae agora classificar de peças epicenas, attendendo a que tanto pertencem ao genero opereta como ao genero comedia ...

E no vaudeville J udic é verdadeiramente eminente. Cantora--: sabe di:z.er como ne­nhuma outra de Paris os seus couplets. Actriz - sabe ca!ltar o seu dialogo, coloril-o, aq ue­cel-o, dar-lhe relevo e dar-lhe vida, como qualquer actriz de comedia da Comédie­Francaise.

' N~o se conhece n'este mundo parisiense

- não fallando da grande Theresa que hoje declina, mas que ainda sabe fazer chorar e fazer rir o se u publico - voz mais maleavel, garganta mais educada para poder inter­prefar esta cousa são simples e tão difficil -a canconeta.

' J udic chegou mesmo a criar o seu genero,

a fazer surgir um bando d'imitadoras da sua maneira. Mas nenhuma subio ainda -nem mesmo a Duparc - a esta delicadeza artistica que tãnto caracterisa o seu canto, feito de meias tintas suavíssimas que, se fosse possivel reproduzir sobre uma folha de papel de China, havia de ter em eq uiva-: lencias de tons a doçura das aguas-fortes e das miniaturas do seculo xn11.

A ILLUSTRAÇÃO

Na fama d 'urna actriz a formosura e o talento entram sempre em partes eguaes.

Chega-se mesmo a hesitar entre a primeira condicção para se ser actriz - se talento, se belleza. As opiniões dividem-se em dois campos terri veis . Os críticos pedem talento. Mas os directores de theatros pedem bonitos olhos, e as concierges de Paris só mandam as filhas para o Conservatorio-q uando vê em que effectirnmente todos os locatarios da casa lhes fazem a côrte !. ..

Quando a mulher é feia precisa pelo espí­rito e pelo estudo valer duas vezes mais que ou tra actriz do seu genero. Não se perdoaria a Celine Chaumont que fizesse mal uma scena do Divorçons. Mas se a Magnier represen­tasse mal uma peça em cinco actos, a pla­teia havia de 1 he perdoar - por que teria passado a noute a namorar-lhe os olhos e o colo!

Na reputação da J udic a formosura entrou com So o/ o - como na reputação da Théo ha 75 o/o de belleza a descontar.

Já vae um pouco longe a sua primavera - mas um qu asi nada de exforço no espar­tilh o e um quasi nada de pintura de cama­rim transformam a actriz n 'uma mocidade tão fresca e tão ape tecivel, que chega a causar ciumes a muitos vinte annos femi­ninos que a olham dos camarotes.

E mesmo que não fosse o que ainda é -a Judie tinha como recurso infallivel os seus bellos olhos de parisiense, que prendem toda a attenção dos espectadores ... como estes bordados diabolicos, feitos a escarlate e a ouro, so bre o velludo preto, o velludo fatal, das mezas dos prestimanos.

~ O s olhos de que a Europa ainda mais se orgulha de possuir - são os olhos das andaluzas e os olhos das parisienses.

A fama dos olhos das andaluzas é devida em grande parte aos poetas romanticos que os iam cantando e suspirando, muitas vezes sem nunca terem visto andaluzas - nem mesmo das de exportação l Mas que de poe­mas que se não escreveram para cantar os olhos de Concha, de L ola e de Consuelo ! ?

A furia passou, no dia em que a humani­dade se aborreceu de tanta mirada fatal, assassina, vibrada por detraz d'um leque ou d 'uma mantilha. Os poetas tanto insistiram sobre os olhares que atravessavam corações com a facilidade d ' um fiorête, e dos milhões de mancebos que caíam fulminados pelo golpe terrível - que Sevilha caíu tambem pela sua vez ... mas no descredi to da Europa!

Hoje só gosam d 'uma justa reputação os olhos das parisienses. E a razão é simples. Uma andaluza bonita com olhos boni tos -pode ser uma divindade . Uma andaluz.a feia com olhos boni to s - é sempre uma mulher fei a . Emquanto que a parisiense, ou seja feia, ou se ja bonita - é sempre admirada e apetecida.

Ha no seu olhar alguma cousa de myste­noso, de superior, de sympathico que atrahe e prende. Uma vida onde falla mais alto o espírito que o corpo. Um reflexo d 'esta sublime claridade com que Paris illumina todo o mundo. Um náo sei q uê, que trasborda amor ou odi o. Um azu l táo

puro, tfo claro, que á primeira vista define todos os caprichos da mulher - que é capaz de perder como tambem é capaz de sal­var! ...

MARL\:-10 Pr:->A.

P. S. - Acabo de ser informado de que o artigo. do Diario da Man!iá que de u occas iáo ú minha chronica do n° 9 da Il/11st1·açáo, tinha um sentido diverso d'a quel !e que se lhe podia faci lmente at tribuir - e que eu lhe attribui. Effeitos d 'um estylo profundamente metaphorico,de que o mesmo Diario h o je abusa., e que não estava nas tradicçóes do jornal.

Antecipo-me portanto a toda e qualque r rectifica~áo que a nova redacçáo do Diario da Manhã me possa pedir, dando por não cabidas as phrases que a possam molestar. Is'to entende-se apenas com as phrases que me suscitou o artigo mal interpretado. Quanto ao mais, ao assumpto principal da chronica, é historia e é critica donde não ha a retirar uma unica pa lavra.

M. P.

A ILL USTRAÇÁO publicará no proximo numero um ar­tigo do seu brilhante collaborador Jayme de Seguier .

Titulo : UM · U1\N110 NO HA~L\IAM.

NA PRAIA

O rude coração do amargo oceano Tem virtudes inergicas, austeras: Dá um heroico lampejo ao corpo humano, Um sadio .florir de primaveras. Essas almas dolentes, requebradas, Tristes como o cantar de um rouxinol, Fal-as fortes, viris, illuminadas:

Brilhantes como o sol, E rijas como espadas.

Um corpo frouxo e morbido efra11:;Jno, Cheio de pallide:z etherea e dóce,

Fàrma-o como se fosse De bron:;_c Crf stalli110.

Depois o aroma acre dos pinheiros, A borrascosa vo:z dos marinheiros, E a vastidão da esplendida paizagem, Tudo fa:;_ rebentai· em nossos peitos O bron:ze inabalavel da coragem.

D eixae os plumeos leitos Onde o espirito lallguido desmaia!

Vinde viver na praia Entre as coisas sadias, triu111pha11tes

Do bello mundo antigo! E despi esses vicios irritantes Como quem despe uns trapos de mendigo!

Viver n'uma casita á beira mar Feita no gosto ingle:;_, Casa de um só andar E sem balcão chinc:;_;

Ler paginas vibrantes, luminosas, Ricas de coisas sãs e duradoiras; Beijar crianças puras, vigorosas, Ainda mesmo que não sejam loiras; Junto a isto um amigo verdadeiro,

Saude e algum dinheiro, E is a vida melhor, ma is pittoresca

Que existe á lzq do dia ... A vida assim é uma 1·oseira fresca Inundada de orvalhos de alegh'a !

G UERRA JL~:\QUEIRO .

A ILLUSTRAÇÃO publica no seu proximo numero um magnifico desenho de F. Villaça representando uma praia do Amazonas , e que o sympathico artista fez expressamente para o nosso jornal.

A ILLUSTRAÇÃO nos numeros a seguir continuará a publicar curiosos i esenhos sobre a China contempo­ranea .