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    Desenvolvimento econmico e reenvolvimento cosmopoltico:da necessidade extensiva sufcincia intensiva

    Eduardo Viveiros de Castro

    Quem vier depois que se arranje

    (velho provrbio brasileiro em epgrafe a Warren Dean,A ferro e a fogo: histria da destruio da mata atlntica)

    Nota do autor: Este texto canibaliza diferentes escritos, publicados em lugares e momentos muito distintos. A primeira parte vem de um prefcio ao livro pioneiro de R. Arnt & S. Schwartzmann, Umartifcio orgnico: transio na Amaznia e ambientalismo (19851990) (Rio de Janeiro: Rocco, 1992). A terceira e a quarta partes, de um texto introdutrio aoAlmanaque Socioambiental 2008(SoPaulo: Instituto Socioambiental, 2007), obra que pode ser baixada da rede em http://ppbr.in/TMKcW5. A segunda parte consiste em uma resposta (tambm divulgada originalmente no site do ISA) auma srie de pronunciamentos que o Ministro Extraordinrio para Assuntos Estratgicos, Roberto Mangabeira Unger, achou por bem fazer midia impressa a respeito da Amaznia, em meados de2008. Naquele momento, o Presidente Lula e sua Chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, manobravam agressivamente pela aprovao da Medida Provisria 422, tambm conhecida como Medida daGrilagem, que legalizava com total desfaatez a apropriao fradulenta, e quase sempre violenta, das terras pblicas na Amaznia por latifundirios e grandes interesses agronegociais. A ruidosaaterrissagem de Mangabeira Unger no governo, trazido de Harvard para vir dar legitimidade cientca a essa poltica anti-ambientalista, foi o insulto nal que forou a Ministra do Meio Ambiente,Marina Silva, a deixar o cargo e, mais tarde, seu partido. A aprovao da MP pelo Senado deu-se em julho de 2008. (Veja p.ex. http://ppbr.in/KDz5n4 para um resumo dos fatos, nomes e outros linkspertinentes.)

    As questes levantadas nessa colagem de textos mantm, parece-me, sua atualidade e sua urgncia. Basta pensar no que est-se passando na Cmara Federal, no momento em que escrevo(22 de maio de 2011), a propsito do Cdigo Florestal. E no que continua a acontecer no (ou melhor, ao) planeta em ritmo cada vez mais acelerado.

    Acrescentei um pargrafo nal que me leva para um outro lugar, ainda mal-adentrado.

    I

    Ao tornar-se umas das mscaras que aphysis escolheu para ocultar-se a partir do quartel nal do sculo passado, a Amaznia passou tambm a ser a ar ena onde se desenrola umdrama decisivo: os atores nele envolvidos, conjugando de modo indito a micro- e a macro-poltica, disputam o sentido do futuro. Deixando para trs a dialtica do Estado e a daNatureza, estas duas totalidades imaginrias entreconstitudas por um confronto de onde sempre estiveram excluda a gente humana e suas mirades de associaes com outrasgentes, outras foras pois ela se via ora convenientemente representada no primeiro, ora compulsoriamente assimilada segunda , abre-se agora o espao para uma novageolosoa poltica. Trocando a naturalizao da poltica pela politizao da natureza, ligando diretamente a terra Terra por cima das fronteiras, cdigos e outros estriamentosdas velhas territorializaes estatais, a nova geopoltica, ou melhor, cosmopoltica do ambientalismo recusa ao Estado a guarda do innito e o privilgio da totalizao. E juntocom o Estado, a Natureza uma certa idia de Natureza que deve mudar: deve deixar de exercer sua funo tradicional de Supremo Tribunal Ontolgico e abrir-se a umacosmopraxis polvoca, mltipla, e simtrica.

    Podem-se ver as coisas, claro, pela outra ponta, enxergando o antigo no novo. Cosmologia do capitalismo tardio, ressacralizao da histria e da geograa que fecha o cicloaberto com a expanso quinhentista do Ocidente, reterritorializao sobre toda a superfcie do globo de um movimento secular de desterritorializao local, nacional e continental,o discurso ambientalista seria, nesse caso, a vingana nal da Totalidade. Ele anunciaria o advento de um medievo ps-iluminista: o discurso da nitude e da transcendncia, dei-

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    xando o espaotempo das relaes entre o humano e o divino, seria agora articulado no confrontoentre a sociedade e a natureza. A selva amaznica ocuparia, hoje no mais apenas alegoricamente,o lugar da catedral gtica: a copa das rvores se torna o dossel sagrado, a Hilia passa a ocuparo trono do Logos. E a Sociedade, que at no muito tempo atrs era a matriz e o modelo de todaordem e de qualquer todo, v-se agora como desordem e causa de desordem, como hbris suicidaque s poder se redimir se aceitar sua subordinao a uma totalidade e a uma ordem que a en-globem e determinem.

    Decerto, pode-se tomar o movimento ambientalista como uma espcie de repetio do cristia-nismo, a minar e ao mesmo tempo reinvestir, em nome de totalidades mais totais e de universaismais concretos, as abstraes imperiais das Romas modernas com os brasileiros, alis, noequvoco papel de brbaros a sermos convertidos pelos missionrios desta neo-religio da classemdia (um replay naturista da velha tica protestante); brbaros, ainda por cima, depositrios do

    Graal amaznico e adores da salvao planetria. Decerto; sempre possvel desativaralgo,tom-lo pelo lado morto que tudo que vivo no pode deixar de ter. Mas o ambientalismo podetambm ser visto como um discurso radicalmente novo, que recusa algumas partilhas fundadorasda Razo ocidental (com licena do pleonasmo). Em particular, isso que chamamos, quase semprepejorativamente, de ambientalismo ou ecologismo um discurso que rejeita a idia de que oHomo sapiens seja a espcie eleita do universo por outorga divina ou conquista histrica , titu-lar exclusiva da condio de Sujeito e agente frente a uma natureza vista como Objeto e paciente,como alvo inerte de uma praxis prometeica. Ele problematiza a categoria da Produo enquantoltimo avatar da transcendncia a idia de que o humano produz e se produz contra o no-humano, em um movimento innito de espiritualizao que , primeiro que tudo, a negao de umamatria primeira. Em lugar disto, ele prope uma internalizao da natureza, uma nova imanncia eum novo materialismo a convico de que a natureza no pode ser o nome do que est l fora,pois no h fora, nem dentro: o fora o nosso centro, e o cosmos um denso tecido de dentros.Somos natureza, ou no seremos.

    Se a entendemos assim, como idia do real, ento natureza designa o limite absoluto dahistria. Esta a paisagem de nossa poca: o planeta, da estratosfera ao mais profundo subsolo,est saturado do humano, de seus signos-sintomas como de seus produtos-dejetos; a cultura se

    tornou coextensiva natureza, ecologia e antropologia convergiram para um foco nico. Discursodo fechamento da fronteira mundial, o ambientalismo impe uma reviso drstica dos paradigmasdo progresso e do desenvolvimento indenidos, que continuam guiando nossas formas econmicase projetos ideolgicos. Nossa concepo linear e cumulativa de histria congenitamente cega estrutura, s regulaes sistmicas, s causalidades circulares demorou demais a acordar para aconstatao de que a misria, a fome e a injustia no so o fruto do carter ainda parcial, incomple-to, da marcha do progresso, mas seus sub-produtos necessrios, que aumentam medida que talmarcha prossegue na mesma direo. (Quanto mais se aumenta a produo de alimentos, maisgente passa fome na Terra.) O terceiro mundo j , porque sempre foi, parte do primeiro mundo,e est em toda parte. Atravessamos o sculo XX com a cabea do sculo XIX; o choque do futuropromete ser duro para todos.

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    esenvolvimento econmico e reenvolvimento cosmopoltico:necessidade extensiva sufcincia intensiva

    uardo Viveiros de Castro

    II

    Ao contrrio do que armou, em entrevista recente, o ministro extraordinrio de Assuntos Estrat-gicos, Roberto Mangabeira Unger, a Amaznia no uma coleo de rvores. 1Dois pontos paraseu esclarecimento, senhor ministro.

    Primeiro, colees de rvores s existem nos hortos botnicos, parques pblicos ou jardins demilionrios. A Amaznia um ecossistema, uma oresta composta de rvores e de uma innidadede outras espcies vivas inclusive seres humanos, que l esto h pelo menos quinze mil anos.Essa oresta, mesmo tomada em seu estrito aspecto arbreo, um gigantesco agenciamento rizo-mtico, ou seja, o exato oposto de uma coleo descontnua de indivduos independentes. (Todoecossistema um rizoma, no sentido lgico-metafsico que o termo recebeu no Mil plats.) Recor-demos que as rvores da regio possuem, em geral, razes pouco profundas, sustentando-se pormeio de um sistema radicular supercial extensivamente interconectado e por sapopemas (razes

    tabulares externas), e alimentando-se, em boa medida, de sua prpria matria decomposta pelaao simbitica de bactrias, fungos e animais e da chuva, que gerada pela evapotranspiraoda mesma oresta. Antes que apenas crescendo ou criando-se no solo, essa multiplicidade vivasustenta ou cria seu prprio solo: uma oresta tautegrica ou autopositiva.

    Segundo, a Amaznia jamais foi um vazio humano antes da invaso europia; ao contrrio,seu nadir demogrco foi alcanado aps a invaso, em resultado das epidemias, dos massacresmetdicos, dos descimentos forados das populaes nativas para xao em misses e feitorias,e outras externalidades do Destino Manifesto do Ocidente. Antes disso, as populaes indgenashaviam encontrado, ao longo de milnios de co-adaptao com o ecossistema amaznico (ou eco-sistemas, pois a Amaznia no uma s, mas muitas), solues de sustentabilidade incompara -velmente superiores aos mtodos modernos e estpidos de desmatamento com correntes, trato -res, motosserras e desfolhantes, cujo objetivo sempre o de criar um espao estrivel, um enteagronmico abstrato, prprio para a criao de gado ou a produo de vegetais agroindustriais,ambos, gado e monoculturas, absolutamente dependentes de insumos sintticos (hormnios e an -tibiticos, fertilizantes e agrotxicos).

    Uma enorme parte da oresta amaznica sempre foi povoada, e no h muitos sculos, mil-nios talvez, oresta primria. A maioria das espcies teis da Amaznia proliferou diferencialmente

    em funo das tcnicas indgenas de aproveitamento do territrio e de seus recursos: aquilo quetiramos da oresta antes de tirar a oresta a castanha, o aa, a pupunha, o cacau, o babau foi posto l pelos ndios, foi naturalizado por eles. A oresta, enm, no virgem. Mas note bem,Ministro, do fato da oresta no ser mais virgem no se segue que seja legtimo estupr-la. (Osparalelos so simples de se imaginar, suponho.) Pois exatamente isso que se est fazendo.1 Ver a nota introdutria. R. Mangabeira Unger deixou-se levar por um arroubo de contrafactualizao retrica,

    dizendo que a Amaznia era mais que uma coleo de rvores; h gente l. Gente que precisa de Desenvolvi-

    mento trazido pelo Estado, claro. Digamos ento que a Amaznia, para Mangabeira, sim uma coleo de

    rvores, mais uma coleo de gente, ambas as colees essas compostas de sditos do Soberano. Em lugar deum coletivo reunindo humanos e no-humanos, duas colees separadas de indivduos (rvores, pessoas) eles

    mesmos separados, coletados todos pelo Coletor Universal.

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    A Amaznia est sofrendo um violento processo de agresso a Amaznia inteira, no a talcoleo de rvores; toda a Amaznia, suas populaes humanas tradicionais e suas incontveispopulaes no-humanas. Um novo modelo de desenvolvimento, como tem sido reiteradamentepregado para o Brasil, um que no seja a imitao simplria das receitas norte-europias, precisaser um modelo que ponha a oresta no centro da equao pois chegou-se a um momento dahistria do planeta onde a vida o valor em crise a vida humana e no-humana. No maispossvel fazer poltica sem levar em considerao o quadro ltimo em que toda poltica real feita,o quadro da imanncia terrestre.

    Usei a palavra imanncia deliberadamente aqui. O ministro Mangabeira Unger falou, em outraentrevista recente, que o destino do homem ser grande, divino; no ser uma criana aprisiona -da em um paraso verde; e que todas as pessoas so espritos que desejam transcender. Umafala verdadeiramente pontical, em suma. Bem, ministro, os ndios concordariam com o senhor

    que todas as pessoas so espritos; talvez no concordassem com a idia algo extraordinria deque s os seres humanos so pessoas, mas esse um outro problema, fora de sua alada. Comcerteza, porm, eles no concordariam com a idia de que todos os espritos ou pessoas desejamtranscender. Essa uma armao que soaria aos ouvidos deles inquietantemente parecida comaquela que vm ouvindo com tanta insistncia durante os cinco sculos desde a chegada doseuropeus a armao de que eles so crianas que precisam curvar-se mensagem divina datranscendncia para se tornarem seres humanos plenos, a saber, bons cristos e bons cidados(entenda-se, com muita f e nenhuma terra). Estou falando, Ministro, da converso e da catequeseforadas, s quais se juntaram a sujeio econmica e poltica dos povos indgenas; enm, a hist-ria do genocdio americano.

    Os ndios no esto aprisionados em um paraso verde, ministro. A Amaznia no um para-so dado por Deus; ao contrrio, uma laboriosa construo co-adaptativa, um sistema em equilbriodinmico onde entraram a engenhosidade tcnica humana (indg ena) e as innitas engenhosidadesnaturais das espcies que ocupam a regio. E os ndios no esto aprisionados l. A idia de queo paraso , no fundo, uma priso para o homem tem uma longa histria no pensamento ocidental.Mas so as duas idias que pertencem ao Velho Mundo, a de paraso e a de priso. Os ndios notm nada com isso. Tire-os da priso conceitual em que o senhor os colocou, ministro. E deixemos

    o paraso para quem precisa de paraso.Em ainda outro texto, Mangabeira Unger defendeu a tese de que as populaes indgenas pre-cisam ser liberadas de sua abjeo antropolgica. A tese, com o devido respeito ministerial, beiraa insolncia metafsica. Os ndios que sofrem de depresso, suicdio, alcoolismo, como lamenta oministro, so justamente os ndios que no dispem de te rras os Guarani do MS, por exemplo ,no os ndios da Amaznia como os Yanomami, povo forte e feliz, justamente por gozar de um ter-ritrio medida de suas necessidades vitais e espirituais. As reas indgenas da Amaznia so asreas menos desmatadas do pas, so elas que detm a devastao nas fronteiras; e elas so peaessencial no processo de regularizao ou estabilizao jurdica da situao fundiria catica que a Amaznia, o paraso da grilagem, da pistolagem, do narcotrco, do contrabando e do subsdio.E o que nos prope o Ministro? Um plano nacional de regularizao fundiria que uma repetio

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    esenvolvimento econmico e reenvolvimento cosmopoltico:necessidade extensiva sufcincia intensiva

    uardo Viveiros de Castro 7do velho e famigerado princpio do Uti possidetis: a legalizao da grilagem j estabelecida. Osespertos e os bandidos, mais uma vez, levam a melhor. Nunca como antes na histria deste pas foito como sempre na histria deste pas.

    Naturalmente, os ndios sofrem com vrios problemas, muitos deles causados pela incria dosrgaos e agncias de estado que deveriam fazer respeitar seus direitos constitucionais, e precisoliber-los da incompetncia ou da ganncia do Soberano. Mas tambm no se pode negar queos ndios conhecem outras diculdades de adaptao s formas socioeconmicas (e espirituais) dasociedade nacional. No porque lhes faltem oportunidades ainda que estas lhes faltem, em mui -tssimos casos, mas porque suas culturas e sociedades escolheram desde muito cedo na histriaum caminho civilizacional radicalmente distinto do nosso. Esse caminho o que se poderia chamarde uma via da imanncia em lugar de uma via da transcendncia.

    As culturas indgenas no esto fundadas no princpio de que a essncia do ser humano o

    desejo e a necessidade, a falta e a nsia. Seu modo de vida, seu sistema de vida, no sentido maisradical possvel, outro. Os ndios so os senhores da imanncia: o que ns no podemos senopensar, eles vivem. E o que eles pensam, ns no somos mais capazes sequer de imaginar. Quetranscendncia exatamente temos ns, os orgulhosos neo-brasileiros, supostos representantes daRazo e da Modernidade, a oferecer a eles? mais fcil os ndios virem nos libertarem que nsirmos libertar a eles. Pelo menos em esprito. Transcenda sua nsia de transcendncia, Ministro.

    III

    O Brasil hoje se embala em grandiosos sonhos de crescimento. Na contramo do milenarismodisseminado no pas chegou a nossa vez! (a vez de qu, exatamente? de exploramos algumpas mais pobre que o nosso?) , estou convicto de que urgente, no parar para pensar, maspensar para no parar; urgente comear a pensar bem para no parar de vez. preciso aprendera decrescer para no morrer. O Brasil grande, mas o mundo pequeno. A Terra no vai nada bem,neste comeo de sculo. H hoje uma insustentabilidade aguda dos padres globais de gerao,distribuio e consumo da energia necessria vida humana. Nosso pas um dos poucos queainda tm viabilidade do ponto de vista de sua base de recursos. O Brasil ostenta uma das popula-

    es histrica e culturalmente mais diversicadas do mundo: 220 povos indgenas, uma imensidode descendentes de africanos, de imigrantes europeus e asiticos, de rabes, de judeus; gentesrurais e urbanas das mais diferentes origens tnicas e culturais, habitando uma variedade de for-maes naturais que, por sua vez, abrigam a mais rica biodiversidade do planeta. Sociodiversidadee biodiversidade deveriam ser nossos principais trunfos em um mundo em acelerado processo deglobalizao. Mas eis-nos aqui, ainda e sempre, teimando em serrar o galho em que estamos sen-tados, com uma poltica de comrcio exterior que vem aplicando um modelo de desenvolvimentoambientalmente suicida, economicamente retrgrado, socialmente empobrecedor e culturalmentealienante. devastamos mais da metade de nosso pas acreditando que era preciso deixar a naturezapara entrar na histria; pois eis agora que esta ltima, com sua costumeira predileo pela ironia,exige-nos como passaporte justamente a natureza.

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    A diversidade das formas de vida na Terra consubstancial vida enquanto forma da ma tria. Essadiversidade o movimento mesmo da vida enquanto informao, tomada de forma que interioriza adiferena as variaes de potencial existentes em um universo constitudo pela distribuio hete-rognea de matria/energia para produzir mais diferena, isto , mais informao. A vida, nessesentido, uma exponenciao: um redobramento ou multiplicao da diferena por si mesma. Issose aplica igualmente vida humana. A diversidade de modos de vida humanos uma diversidadedos modos de nos relacionarmos com a vida em geral, e com as inumerveis formas singulares devida que ocupam (informam) todos os nichos possveis desse mundo que conhecemos. A diversi -dade humana, social ou cultural, uma manifestao da diversidade ambiental, ou natural a elaque nos constitui como uma forma singular da vida, nosso modo prprio de interiorizar a diversidadeexterna (ambiental) e assim reproduzi-la. Por isso a presente crise ambiental , para os humanos,

    imediatamente tambm crise cultural, crise de diversidade, ameaa vida humana.A crise se instala quando se perde de vista o carter relativo, reversvel e recursivo da distino

    entre ambiente e sociedade. Paul Valry constatava sombrio, pouco depois da Primeira GuerraMundial, que ns, civilizaes [europias], sabemos agora que somos mortais. Neste comeocrepuscular do presente sculo, passamos a saber que, alm de mortais, ns, civilizaes, somosmortferas, e mortferas no apenas para ns, mas para um nmero incalculvel de espcies vivas.Ns, humanos modernos, lhos das civilizaes mortais de Valry, parece que ainda no deses-quecemos que vivemos da vida, que pertencemos ao mundo e no o contrrio. J soubemos disso;algumas civilizaes ainda sabem disso; muitas outras, vrias das quais matamos, sabiam disso.Mas hoje, comea a car urgentemente claro at para ns mesmos que do supremo e urgenteinteresse da espcie humana abandonar uma perspectiva antropocntrica. Se a exigncia pareceparadoxal, porque ela o ; tal nossa presente condio. Mas nem todo paradoxo implica umaimpossibilidade; os rumos que nossa civilizao tomou nada tm de necessrio, do ponto de vistada espcie. possvel mudar de rumo, ainda que isso signique mudar muito daquilo que muitosconsiderariam como a essncia mesma da nossa civilizao. Nosso curioso modo de dizer ns,por exemplo, excluindo-nos dos outros, isto , do ambiente.

    O que chamamos ambiente uma sociedade de sociedades, como o que chamamos sociedade

    um ambiente de ambientes. O que ambiente para uma dada sociedade ser sociedadepara um outro ambiente, e assim por diante. Ecologia sociologia, e reciprocamente. Como diziao grande socilogo Gabriel Tarde, toda coisa uma sociedade, todo fenmeno um fato social.Toda diversidade ao mesmo tempo um fato social e um fato ambiental; impossvel separ-los semque no nos despenhemos no abismo assim aberto, ao destruirmos nossas prprias condies deexistncia.

    A diversidade , portanto, um valor superior para a vida. A vida vive da diferena; toda vez queuma diferena se anula, h morte. Existir diferir, continuava Tarde; a diversidade, no a unida-de, que est no corao das coisas. Dessa forma, a prpria idia de valor, o valor de todo valor,por assim dizer o corao da realidade , que supe e arma a diversidade.

    verdade que a morte de uns a vida de outros e que, n este sentido, as diferenas que formam

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    esenvolvimento econmico e reenvolvimento cosmopoltico:necessidade extensiva sufcincia intensiva

    uardo Viveiros de Castro 9a condio irredutvel do mundo jamais se anulam realmente, apenas mudam de lugar (o princpiode conservao da energia). Mas nem todo lugar igualmente bom para ns, humanos. Nemtodo lugar tem o mesmo valor. (Ecologia isso: avaliao do lugar). Diversidade socioambiental a condio de uma vida rica, uma vida capaz de articular o maior nmero possvel de diferenassignicativas. Vida, valor e sentido, nalmente, so os trs nomes, ou efeitos, da diferena.

    Falar em diversidade socioambiental no fazer uma constatao, mas um chamado luta.No se trata de celebrar ou lamentar uma diversidade passada, residualmente mantida ou irrecupe-ravelmente perdida uma diferena diferenciada, esttica, sedimentada em identidades separadase prontas para consumo. Sabemos como a diversidade socioambiental, tomada como mera varie -dade no mundo, pode ser usada para substituir as verdadeiras diferenas por diferenas factcias,por distines narcisistas que repetem ao innito a morna identidade dos consumidores, tanto maisparecidos entre si quanto mais diferentes se imaginam.

    Mas a bandeira da diversidade real aponta para o futuro, para uma diferena diferenciante, umdevir onde no apenas o plural (a variedade sob o comando de uma unidade superior), mas omltiplo (a variao complexa que no se deixa totalizar por um a transcendncia) que est em jogo.A diversidade socioambiental o que se quer produzir, promover, favorecer. No uma questo depreservao, mas de perseverana. No um problema de controle ou de progresso tecnolgico,mas de auto-determinao poltica. um problema, em suma, de mudar de vida, porque em outroe muito mais grave sentido, vida, s h uma. Mudar de vida mudar de modo de vida; mudar desistema. O capitalismo um sistema poltico-religioso cujo princpio consiste em tirar das pessoaso que elas tm e faz-las desejar o que no tm, sempre. Outro nome desse princpio desenvol-vimento econmico.

    Os economistas so os telogos da contemporaneidade. No por acaso Marx falava nas sutile -zas metasicas e nas argcias teolgicas envolvidas no conceito de mercadoria. Mas justamente,no podemos mais suportar mais essa teologia do desenvolvimento, a equao entre desenvol -vimento e crescimento. O mundo dos economistas recomeca a prestar ateno s teses de N.Georgescu-Roegen sobre o decrescimento, os custos termodinmicos da economia, e idia deque existe um crescimento deseconmico, que ocorre quando os aumentos na produo custammais em recursos e bem-estar que os bens produzidos.

    A noo to louvada de desenvolvimento sustentvel no se pode negar as boas inten -es de quase todos que a formularam e defendem , no fundo, apenas um modo de tornarsustentvel a noo de desenvolvimento, a qual j deveria ter ido para a usina de reciclagem dasidias.2Ela uma contradio em termos. No existe desenvolvimento capitalista sustentvel; e,salvo engano, a imensa maioria dos defensores do desenvolvimento sustentvel no imagina umaalternativa ao capitalismo. Por que no o fazem, esta uma outra e muito mais vasta questo. Masde qualquer forma, em lugar de enredar-se nas aporias do desenvolvimento sustentvel, pensoque seria mais interessante comearmos a desenvolver (se posso usar a palavra) um conceito de2 Seria preciso um dia ensaiar um dilogo entre as idias de Georgescu-Roegen e as de Georges Bataillesobre a economia generalizada. O princpio do dispndio anti-produtivo de Bataille pode ser criativamente

    interpretado no quadro de um projeto que rejeita um crescimento econmico tecnicamente possvel mas antro-

    pologicamente absurdo.

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    sufcincia antropolgica. No se trata aqui de auto-sucincia, visto que a vida diferena, relaocom a alteridade, abertura para o exterior em vista da interiorizao perptua, sempre inacabada,desse exterior (o fora nos mantm, somos o fora, diferimos de ns mesmos a cada instante). Mas setrata sim de auto-determinao, de capacidade de determinar para si mesmo, como projeto poltico,uma vida que seja boa o bastante.3

    O desenvolvimento sempre suposto ser uma necessidade antropolgica, exatamente porqueele supe uma antropologia da necessidade. Estamos aqui em plena teologia da falta e da queda,da insaciabilidade innita do desejo humano perante os meios materiais nitos de satisfaz-lo. Este o corao da racionalidade ocidental, como to bem mostrou Marshall Sahlins; esta, na verdade, a origem de nossa religio do desenvolvimento (a economia do Gnesis a gnese da Eco-nomia, trocadilha Sahlins). Mas essa concepo econmico-teolgica da necessidade , em todos

    os sentidos, desnecessria. Baste-nos o objetivo da sucincia. Contra a teologia da necessidade,uma pragmtica da sucincia. Contra a acelerao do crescimento, a acelerao das transfern-cias de riqueza, ou circulao livre das diferenas; contra a teoria economicista do desenvolvimentonecessrio, a cosmo-pragmtica da ao suciente: a improduocomo meta, a involuo intensivacomo projeto coletivo de vida. Contra o mundo do tudo necessrio, nada suciente, e a favor deum mundo onde muito pouco necessrio, quase tudo suciente. Quem sabe assim tenhamosum mundo a deixar para nossos lhos.

    Concluo com uma nota fantasista, e pessimista. Imaginem um daqueles lmes B de co cien-tca em que a Terra invadida por uma raa de aliengenas, que se fazem passar por humanospara dominar o planeta e utilizar seus recursos, porque seu mundo de origem j se esgotou. Emgeral, nesses lmes os aliengenas se alimentam dos prprios humanos: de seu sangue, sua ener-gia mental, algo assim. Agora, imaginem que essa histria j aconteceu. Imaginem que a raaaliengena seja, na verdade, ns mesmos. Fomos invadidos por uma raa disfarada de humanos,e descobrimos que eles ganharam: ns somos eles. Ou haveria talvez duas espcies de humanos?Uma aliengena e outra indgena? Talvez seja toda a espcie, por inteiro, que estaria dividida emdois, o aliengena coabitando com o indgena dentro do mesmo corpo: um ligeiro desajuste desensibilidade nos fez perceber essa auto-colonizao. (Ou quem sabe o invasor a alma, o nativo

    o corpo. Origem extraterrestre da alma: j sabemos que a linguagem, pelo menos, um vrus doespao exterior.) Seramos, assim, todos indgenas, ndios invadidos pelos europeus; todos ns,inclusive, claro, os europeus (eles foram um dos primeiros povos indgenas a serem invadidos).Uma perfeita duplicao em intenso, m das parties em extenso: os invasores so os invadi-dos, os colonizados so os colonizadores. Acordamos para um pesadelo incompreensvel.

    Hora de reler Oswald de Andrade. O homem nu compreender.

    3 Estou aludindo aqui ao clebre e genial conceito de Donald Winnicott, o da good enough mother, a mulherque seja boa me o bastante para criar um lho sucientemente normal, que tudo o que preciso que

    mesmo o melhorque qualquer um pode ser.

    Desenvolvimento econmico e reenvolvimento cosmopoltico:da necessidade extensiva sufcincia intensiva

    Eduardo Viveiros de Castro

    IV - OS GATOS DE ROMAOs Cesares do Imprio Vermelho

    Os escrpulos morais do europeu so conservados vivos pela presena telrica, isto , pela per-manncia do habitante no seu solo ancestral e pelas foras do erotismo artesanal enquanto que osul-americano, sendo um integrante seccionado do seu centro telrico, no conserva a fora ancestraltampouco os laos que o amarraram e o escravizaram sua tica ancestral e ao seu comportamen -to artesanal e folclrico. Exceo feita ao importante substratum mongolide sul-americano que seencontra localizado nas alturas dos Andes, aquele elemento estatuesco que no conhece o sorriso

    em virtude da altitude e cuja tristeza uma submisso fatalista s foras telricas. O substratummongolide continua sendo a primeira fora tnica do continente apesar dos esforos do imigrantede aniquil-los, s os portugueses queimaram cerca de trs milhes de ndios no Maranho, quepreferiam esse destino ao de ser escravo.

    A ausncia de escrpulo moral do sul-americano traz uma forma de baixeza espiritual que peloseu imediatismo quase existencialista em estrutura.

    Toda tica e todo conseqente escrpulo moral do europeu tem como encubadeira a pennsulaItlica e como veculo de transporte o cristianismo.

    ArquivoNotas para a reconstruo de um mundo perdido

    Flvio de Carvalho

    Notas para a reconstruo de um mundo perdido um conjunto de 65 textos de Flvio de Carvalho publicadosno Dirio de S. Paulo entre janeiro de 1957 e setembro de 1958. Os primeiros vinte e quatro textos da srieaparecem sob o ttulo Os gatos de Roma. A partir da nota 25, a srie passa a ser intitulada como Notas para areconstruo de um mundo perdido. A republicao dessas Notas no Sopro (que comeou no nmero 49, com atranscrio das trs primeiras) no pretende trazer um material de arquivo morto, ao contrrio: a aposta lanaresse pensamento intempestivo e fascinante para que ele produza efeitos no presente. O que podemos adiantar que se trata de um trabalho ambicioso realizado por um arquelogo mal-comportado, como Flvio mesmose deniu. As Notas foram reproduzidas e transcritas por Flvia Cera, a partir de pesquisa realizada no ArquivoPblico do Estado de So Paulo.

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    A tica do atual europeu baseada nos processos masoquistas de sofrimento e auto-expiaormados na pennsula itlica pela ocializao do cristianismo no sc. IV efetuada por Constantino,o Grande (muitos duvidam dessa grandeza de Constantino) e que se propa gou por toda a pennsulaacelerando poderosamente a decadncia do Imprio Romano entre os sculos V e XII.

    A decadncia do Imprio proveniente da expanso do cristianismo trouxe consigo o abandonodo culto do heri. Na antiguidade, toda vez que o culto do heri era abandonado ou negligenciado,surgia, diziam, como conseqncia, a peste, as ms colheitas e a desgraa geral, isto um castigo nao apoiado pelo orculo Dlco.

    Portanto, o abandono voluntrio do culto do heri era um acatamento desgraa e ao sofrimen-to. Era mais que uma coincidncia o aparecimento juntos da entrada do cristianismo e o abandonodo culto do heri. Tanto o abandono do culto do heri como o cristianismo se apresentam comoestruturas anmicas masoquistas, isto , solicitando voluptuosamente o sofrimento e a dor comomtodo de expiao e quando ambos os fenmenos surgem e se desenvolvem simultaneamente,temos tudo para acreditar que ambos se encontram pod erosamente ligados na sua existncia. Essanegligncia do culto ao heri, mesmo quando acontecendo antes de Cristo, deve ser tomada comouma manifestao primitiva do cristianismo.

    O abandono do culto do heri trazia desgraas para o povo e a nao e as trouxe na forma dedecadncia do Imprio concomitantemente com o advento do cristianismo. Foi o Imprio RomanoCristo que provocou a desintegrao do Imprio Romano em si. As perdas das provncias doImprio comearam no sc. V com a implantao ocial do Cristianismo.

    Tanto o cristianismo como o abandono do culto do heri se encontravam em incubao muitoantes dos seus adventos efetivos. H mesmo um perodo de transio bem observvel, Nero, omstico Anticristo e o ltimo dos Cezares se fazia adorar como um deus, Octaviano se fazia adorarna sia e no Egito e proibia oferendas e o culto divino de sua pessoa na Itlia. Contudo, at o mo -mento da ocializao do cristianismo por Constantino, o Grande, per dura a adorao ao imperadorproveniente do mundo Grego e Romano.

    No incio da era crist, mais da metade da populao de Roma era constituda de escravos, porconseguinte j possua o elemento humano adequado a receber uma religio baseada na dor e nosofrimento, um elemento humano estereotipado na direo do masoquismo. O abandono do cultodo heri com conseqentes desgraas nao j era coisa desejada como volpia por uma popula-o (d)e escravos afeita ao sofrimento e que recebia como viso esttica o espetculo de um Cristoem feridas e a expiao pela dor. O perodo que marca o desenvolvimento do Ocidente se processaentre os sculos V e VII, isto , precisamente o perodo que marca o incio do desmembramento edecadncia do Imprio Romano.

    Hoje assistimos ainda aos ltimos movimentos de for as emanadas do Imprio Romano Cristoe que por sua natureza de m de ciclo, de degenerao endogentica, provocam o aparecimento

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    de um Imprio Anticristo. So precisamente as foras masoquistas do cristianismo que precipitamo advento do Imprio Vermelho como um herdeiro natural do Imprio Romano Cristo.

    O momento que passa presencia na realidade a fase nal de desintegrao do Imprio Romano.O cristianismo nada mais seno as ltimas mgoas do Imprio Romano, o Imprio em estado deluto e dentro da Histria a fora motriz que provoca o aparecimento do Imprio Vermelho. Nascidodentro do Imprio, o cristianismo uma cria do Imprio e a sua existncia est ligada existnciado Imprio Romano e por esse motivo que quando surge um Imprio Anticristo, surge com todasas caractersticas do culto do heri do mundo Grego e Romano e este aparecimento deve ser ligadoao cristianismo que o repudiou e o substituiu e deve ser considerado como uma conseqncia docristianismo, talvez o m deste. O novo Imprio Vermelho se choca contra o cristianismo por sereste o seu parente mais prximo e o seu antepassado natural.

    Imprios como o britnico e o francs pertencem ao cristianismo: so constelaes que aban-donaram a rbita elptica do Imprio Romano e representam ltimas fagulhas do Imprio Romano;no tem a importncia histrica do advento do Imprio Vermelho.

    Coisa curiosa e importante: todos esses imprios procuram suas foras vitais na sia e nafrica.

    O convite permanente ao sofrimento e dor, cantado na paz sepulcral do mundo, tinha queculminar no reaparecimento do culto do heri e num processo de ao que produziria o espetculoda misria e de dor, to desejado pelo beato milenar a m de ocupar a sua vontade de expiao ea sua santidade, sob pena do beato se tornar um chomeur.

    O Imprio Romano sempre exerceu uma enorme inuncia sobre os povos eslavos e a Histriaapresenta hoje a concretizao de uma doutrina antiga pela qual os Tzares da Rssia seriam osherdeiros naturais dos Czares Romanos.

    A instituio poltica tzarista de recente atualidade era uma losoa poltica teocrtica que deri-vava a sua autoridade da Divindade e do culto do heri, o mesmo acontecia com o estado autoritrioHegeliano-Prussiano dos sculos XIX e XX que deu origem aos Duce, Fuhrer e Caudilho, todas

    sobrevivncias do antigo culto do heri.Os cezares vermelhos Marx, Lenin, Stalin e talvez Khrushchev no derivam a sua prtica de

    autoridade do marxismo, mas sim do culto do heri.As incantaes sepulcrais de cristianismo despertam as danas, os cnticos, as mmicas que

    deram origem a Tragdia executadas frente ao tmulo do Heri Grego.

    Publicado originalmente no Dirio de S. Paulo em 27 de janeiro de 1957.

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    V - OS GATOS DE ROMAAs foras fundamentais do Destino Histrico

    O tenaz e taciturno Bergson, o homem sem sorriso, que poderia perfeitamente ser colocadoem cima dos Andes, via na sugestibilidade iconogrca representaes religiosas destinadas adefender-nos contra os empreendimentos dissolventes da inteligncia. (Bergson, em muitos as-pectos, era um ser mono- dissolventes da inteligncia. Bergson, em muitos aspectos, era um sermono-1 rior os escrpulos morais e uma genialidade pertencentes mais raa nrdica do que a sua

    prpria raa.O Barroco, contudo, aparece na Histria, no como meio de defesa, mas sim para, sugestiva e

    magicamente, precipitar certos acontecimentos que felizmente so manifestaes dissolventes dainteligncia e que culminam com a Revoluo Francesa. O Barroco, uma representao religiosa,colabora com as foras dissolventes da inteligncia, contrariando o pensamento de Bergson. O Bar-roco, nascido em Roma, no sc. XVI, surge no m da decadncia do Imprio Romano Cristo, quese deu nos scs. XII e XIII. Deve, pois, o Barroco ser considerado como um dos primeiros sintomasdo incio da decadncia do cristianismo e como uma conseqncia do Imprio Romano Cristo,mesmo como Imprio Vermelho o .

    So vrios os sintomas que marcam a decadncia do cristianismo e que apontam para a Revo -luo Francesa que se aproxima e que em si uma manifestao anti-crist. Destacam-se entre ossintomas: as revolues camponesas comunistas da Alemanha nos scs. XII e XIII, concomitante -mente com a decadncia total do Imprio Romano Cristo; o aparecimento do Barroco no sec. XVI;o aparecimento da moda espanhola do colarinho em forma de prat o, em ns do sc. XVI, separandoa cabea do corpo e apontando magicamente para o trgico futuro funcionamento da guilhotina. OBarroco que contm nas suas formas voluptuosas a satisfao de todos os prazeres e que em si um limite de volpia, aparece na iconograa crist num momento mximo de asceticismo religioso,

    asceticismo esse que sem dvida se manifesta como uma forma de expiao pelas perdas sofridascom a decadncia do Imprio Romano.Bernini e Boromini aparecem como dois nomes apontados pelas foras do Destino da Histria e

    que viriam alterar completamente o panorama cultural do mundo.O Barroco aparece no momento de maior luxria, que era tambm o momento de maior misria,

    ele um cume do desenvolvimento das foras de misria e luxria que conduziram a seguir aoconito social e Revoluo Francesa. O fato do Barroco, um transbordamento luxuriante de vol-pia, surgir simultaneamente com o perodo de manifestao mxima de asceticismo religioso damaior importncia. As foras masoquistas alcanavam o seu apogeu no ambiente de maior luxuria

    1Nota dos editores: Como se percebe, o trecho em marrom uma repetio. Provavelmente, houve um erro de

    tipograa no jornal, com a duplicao de uma linha, e a conseqente omisso de outra.

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    e volpia; a anttese luxria era, portanto, o meio de cultura apropriado vida e ao desenvolvimentodo masoquismo e do asceticismo, o espetculo da luxria se apresenta como aquele capaz deprovocar o asceticismo e os tempos adornavam com formas luxuriantes para abrigar os sentimentosmais castos da religio.

    Essa manifestao de asceticismo tinha que ser o m de um ciclo, porque surge como um pontode expiao mxima, um momento dramtico de abandono e submisso que precede a morte tinhaque ser um perodo de agonia que se abrigava submisso e taciturno num tmulo encantado cheio devida de visgo e de sexo e para todo o sempre. O aparecimento do Barroco na extravagante GrandeFinale Rococ funcionava como um De Profundis plstico magnicamente aparelhado para abrigaros restos mortais de uma religio. O espetculo dourado de sofrimento, expiao e morte, umaecloso das foras masoquistas, so os sintomas teatrais do m prximo.

    Kretschmer, sugestivamente, aponta a preferncia para a localizao do Barroco nas regieshabitadas pelas raas alpinas e mediterrneas e v nesse fenmeno um carter de tendncia bio-lgica onde o temperamento dominante ciclotmico pcnico dessas raas seria, de um modo geraltomando-se em conta as excees, o temperamento apropriado localizao do Barroco.

    estranho notar que o Barroco, evoluindo do centro do Imprio Romano Cristo e caminhandorumo ao norte da pennsula, no tinha outra alternativa seno a de esbarrar com as raas alpinase mediterrneas que fechavam o norte da pennsula, e por esse e outros motivos podemos sugerir,em contradio a Kretschmer, que o Barroco no procurou um temperamento adequado para sealojar, mas sim, temos o fenmeno seguinte: o Barroco, produzindo um temperamento tpico deacordo com a sua estrutura histrica, da mesma maneira que o Gtico, gerado na Normandia e naBorgonha, teria provocado o aparecimento de um temperamento esquizotmico nas raas nrdicas,em cujo territrio se instalou.

    Isto equivale a classicar o Barroco e o Gtico como foras fundamentais da Histria guiadaspelo Destino Histrico e capazes de produzir temperamentos de acordo com a sua morfologia est -tica e com o seu poder de sugestibilidade.

    O encontro de temperamentos esquizotmicos e ciclotmicos em locais onde no h e nemhouve Gtico ou Barroco, teria que ser explicado pelas formas da vegetao e da paisagem que seidenticam com o Gtico e com o Barroco.

    A paisagem e a vegetao se encontram antes da morfologia racial do homem antes da forma -o do seu temperamento.

    Publicado originalmente no Dirio de S. Paulo em 3 de fevereiro de 1957.

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