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MANIFESTO CONTRA O TRABALHO, INTRODUÇÃO A UMA CRíTICA ONTOLÓGICO-POLíTICA ~MAN\r=ESIAGA\NSII\-1E WORK, \N1RODUCION THE A ONTOLOGICAL-POLlTIC CRITIQUE) RESUMO Este trabalho tem por objetivo apresentar uma reflexão sobre as questões levantadas pelo Grupo Krisis a respeito da categoria ontológica de trabalho. Palavras-chave: trabalho, capitalismo, ser soci- al, política ABSTRACT This work aims to show a rejlexion about the questions rising for the Krisis Group about the ontological category of work. Keywords: work, capitalism, social being, politic. INTRODUÇÃO o objetivo deste trabalho centra-se numa leitu- ra crítica, com base no materialismo dialético-históri- co, das teses fundamentais do Manifesto contra o trabalho, publicado na Alemanha em 1999 pelo Gru- po Krisis, que possui como principal destaque o pen- sador Robert Kurz/ . FREDERlCO COSTA I Nas últimas décadas, o mundo vem passando por profundas transformações. As políticas de privatização econômica e destruição de conquistas sociais implementadas a partir da década de 70, de maneira desigual, na Europa, Estados Unidos e Amé- rica Latina; o processo de restauração capitalista nos Estados operários burocratizados"; as modificações no processo produtivo com vistas à recuperação do crescimento das taxas de lucro e o avanço das ideolo- gias de eternidade da sociabilidade baseada no capi- tal, colocaram em destaque o debate em torno da central idade do trabalho na organização social. N esse contexto, Habermans, Gorz e Offe" , por exemplo, entendem que as tendências estruturais da sociedade atual põem em xeque o trabalho como ele- mento fundante da sociabilidade humana, enquanto intercâmbio perene dos homens com a natureza como substrato do homem. A essa problemática, vincula- se de certo modo o Grupo Krisis e seu manifesto. Assim, concordamos com Antunes ao referir-se ao principal expoente do grupo, Kurz se insere no uni- verso dos críticos da centralidade do trabalho no mundo contemporâneo (1995:111). Da negação ontológica do trabalho enquanto protoforma a a )- vidade humana, criador de valores de uso e no de partida para o reino da liberdade. pane. ui - vezes, a crítica à luta de classes e ao po e ial I Colaborador científico do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário (IMO-UEC CliT r- al Graduação em Educação Mestrado-Doutorado da Universidade Federal do Ceará e membro do .úcleo T 1 Robert Kurz tomou-se conhecido no Brasil com seu livro O colapso da modernização. Da derrota do soe' da economia mundial. Em uma conjuntura de ofensiva da ideologia burguesa de "fim da história" e da mercado, o seu livro reacendeu nos meios acadêmicos o debate sobre os limites do capital 3O conceito de Estado operário para caracterizar os países onde as burguesias nacionais e o im eriali oo 0.. o .ados - ex- URSS, China, Cuba, Coréia do Norte, "\l0! e"l\.em"\l\o, baseia-se no fato de que a propriedade estaca os meios de p o ução e circulação, combinada com a supressão legal do direito de sua apropriação pri ada o planejamen o econômico centralizado e monopólio estatal do comércio exterior, implicam na ausência de produção generalizada de mercadorias e do omínio da lei do valor. Isto é, a economiajá não é capitalista, pois não há mercado para grandes meios de produção nem para mão-de-obra. deixando a força de trabalho de ser mercadoria. A burocratização refere-se à expropriação política do proletariado pela burocracia camada social materialmente privilegiada. • Sobre este assunto conferir: HABERMANS, J. Ciência e técnica como ideologia (1987); GORZ A. Adeus ao proletariado. Para além do socialismo (1987); OFFE, C. Trabalho: a categoria chave da sociologia? (1989) EDUCAÇÃO EM DEBATE· FORTALEZA· ANO 2 J V 2 • NQ38 • p. 161-169 • 1999· 161

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MANIFESTO CONTRA O TRABALHO, INTRODUÇÃO A UMA CRíTICAONTOLÓGICO-POLíTICA~MAN\r=ESIAGA\NSII\-1E WORK, \N1RODUCION THE A ONTOLOGICAL-POLlTICCRITIQUE)

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo apresentar umareflexão sobre as questões levantadas pelo Grupo Krisisa respeito da categoria ontológica de trabalho.

Palavras-chave: trabalho, capitalismo, ser soci-al, política

ABSTRACT

This work aims to show a rejlexion about thequestions rising for the Krisis Group about theontological category of work.

Keywords: work, capitalism, social being, politic.

INTRODUÇÃO

o objetivo deste trabalho centra-se numa leitu-ra crítica, com base no materialismo dialético-históri-co, das teses fundamentais do Manifesto contra otrabalho, publicado na Alemanha em 1999 pelo Gru-po Krisis, que possui como principal destaque o pen-sador Robert Kurz/ .

FREDERlCO COSTA I

Nas últimas décadas, o mundo vem passandopor profundas transformações. As políticas deprivatização econômica e destruição de conquistassociais implementadas a partir da década de 70, demaneira desigual, na Europa, Estados Unidos e Amé-rica Latina; o processo de restauração capitalista nosEstados operários burocratizados"; as modificaçõesno processo produtivo com vistas à recuperação docrescimento das taxas de lucro e o avanço das ideolo-gias de eternidade da sociabilidade baseada no capi-tal, colocaram em destaque o debate em torno dacentral idade do trabalho na organização social.

N esse contexto, Habermans, Gorz e Offe" , porexemplo, entendem que as tendências estruturais dasociedade atual põem em xeque o trabalho como ele-mento fundante da sociabilidade humana, enquantointercâmbio perene dos homens com a natureza comosubstrato do homem. A essa problemática, vincula-se de certo modo o Grupo Krisis e seu manifesto.Assim, concordamos com Antunes ao referir-se aoprincipal expoente do grupo, Kurz se insere no uni-verso dos críticos da centralidade do trabalhono mundo contemporâneo (1995:111). Da negaçãoontológica do trabalho enquanto protoforma a a )-vidade humana, criador de valores de uso e n ode partida para o reino da liberdade. pane. ui -vezes, a crítica à luta de classes e ao po e ial

I Colaborador científico do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário (IMO-UEC CliT r- alGraduação em Educação Mestrado-Doutorado da Universidade Federal do Ceará e membro do .úcleo T1 Robert Kurz tomou-se conhecido no Brasil com seu livro O colapso da modernização. Da derrota do soe'da economia mundial. Em uma conjuntura de ofensiva da ideologia burguesa de "fim da história" e damercado, o seu livro reacendeu nos meios acadêmicos o debate sobre os limites do capital3O conceito de Estado operário para caracterizar os países onde as burguesias nacionais e o im eriali o o 0.. o .ados - ex-URSS, China, Cuba, Coréia do Norte, "\l0! e"l\.em"\l\o, baseia-se no fato de que a propriedade estaca os meios de p o ução ecirculação, combinada com a supressão legal do direito de sua apropriação pri ada o planejamen o econômico centralizado emonopólio estatal do comércio exterior, implicam na ausência de produção generalizada de mercadorias e do omínio da lei do valor.Isto é, a economiajá não é capitalista, pois não há mercado para grandes meios de produção nem para mão-de-obra. deixando a forçade trabalho de ser mercadoria. A burocratização refere-se à expropriação política do proletariado pela burocracia camada socialmaterialmente privilegiada.• Sobre este assunto conferir: HABERMANS, J. Ciência e técnica como ideologia (1987); GORZ A. Adeus ao proletariado. Paraalém do socialismo (1987); OFFE, C. Trabalho: a categoria chave da sociologia? (1989)

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anticapitalista e revolucionário do proletariado mo-derno, classe que cria valores e que exatamente porisso tem a possibilidade de antagonizar-se frente aocapital, de rebelar-se (idem: 112).

Em oposição a essa linha teórico-política, pre-tendemos afirmar neste artigo a validade do pensa-mento de Marx e da sua leitura por Lukács' naperspectiva de uma ontologia do ser social, segundo aqual, embora não seja possível reduzir todos os atoshumanos a atos de trabalho, este é o pressuposto detoda e qualquer atividade humana, é, como já disse-mos, sua protoforma.

AS TESES DO MANIFESTO CONTRA OTRABALHO

o Grupo Krisis parte da tese de que a socieda-de dominada pelo trabalho não passa por uma sim-ples crise passageira, mas alcançou seu limiteabsoluto (1999: 11), porque a produção de riquezadesvincula-se cada vez mais, na seqüência da revolu-ção microeletrânica, do uso da força de trabalho(1999:11). Daí parte uma crítica radical à sociedadecentralizada na abstrata irracionalidade do trabalho(1999: 15) até ao trabalho como elemento definidordo homem: a afirmação de que o trabalho seria umanecessidade eterna, imposta ao homem pela nature-za, tornou-se, na crise da sociedade do trabalho,ridícula (1999:24-25). O que se torna base para ques-tionar a esquerda política" , a luta de classes e o papelhistórico do movimento operário:

A esquerdapolítica sempre adorou entusiastica-mente o trabalho. Ela não só elevou o trabalho àessência do homem, mas também mistificou o tra-balho comopretenso anü-principio do capital. Otrabalho não era o escândalo, mas apenas suaexploração pelo capital. Por isso, oprograma detodos de todos os "partidos dos trabalhadores"foi sempre "libertar o trabalho" e não "libertar

do trabalho " A oposição social entre capital etrabalho é apenas uma oposição de interesses di-ferenciados (é verdade que depoderes muito dife-renciados) internamente ao fim em si mesmocapitalista. A luta de classesfoi aforma de execu-ção desses interesses antagônicos no seio dofun-damento social comum do sistema produtor demercadorias (1999:31).

E, também, o papel histórico do movimentooperário:

Omovimento clássico dos trabalhadores, queviveu a sua ascensão, somente muito tempodepois do declínio das antigas revoltas soci-ais, não lutou mais contra a impertinência dotrabalho, mas desenvolveu uma verdadeirahiperidentificação com o aparentemente ine-vitável. Ele só visava a "direitos" e melhora-mentos internos à sociedade do trabalho,cujas coerções já tinha amplamenteinteriorizado(1999: 47)

Pois há uma identidade lógica de capital etrabalho enquanto categorias sociais funcionaisde uma forma fetichista social comum (1999:71).De fato, o texto procura convencer que o trabalho e ocapital são duas faces da mesma moeda, que o traba-lho é domínio patriarcal e atividade de menores, que omovimento dos trabalhadores sempre foi um movimen-to a favor do trabalho e que, portanto, necessita sersuperado. O manifesto revela, também, um certo sau-dosismo romântico em relação às formações sociaispré-capitalistas:

Nas antigas sociedades agrárias existiam asmais diversas formas de domínio e de rela-ções de dependência pessoal, mas nenhumaditadura do abstractum trabalho. As ativida-des na transformação da natureza e na rela-ção social não eram subordinadas a um

5 Aqui se faz necessário um parêntesis sobre Lukács. É inegável sua orientação stalinista, inclusive em seu período teórico mais fecundo.por exemplo, em sua obra da maturidade, ao considerar que, nos inícios, sobretudo na luta contra Trotsky, Stalin se apresenta comodefensor da teoria lenineana (1979: 33). Isso reflete sua trajetória política de defesa da tese do "socialismo em um só país"; do anúncio nasTeses de Blum, sete anos antes de Dimitrov da estratégia de frentes populares que comprometia a independência de classe do proletariado,e, de no processo de revolução política na Hungria, em 1956, optar pela "reforma democrática" do domínio da burocracia magiar. Lukácssempre foi membro do PC por opção, e apesar das perseguições, não teve o mesmo destino dos milhares de bolcheviques-leninistas,torturados, assassinados ou condenados a trabalhos forçados, corno os militantes e simpatizantes das teses da Oposição de Esquerda, daOposição Unificada e posteriormente do movimento trotskista, na URSS, após 1928, e nos demais Estados operários burocratizados. Noentanto, Lukács, enquanto filósofo, trouxe contribuições ao materialismo dialético e histórico, principalmente no que relaciona-se ao resgatedo marxismo enquanto ontologia, enquanto doutrina do ser em geral e do ser social em particular, elemento definidor do caráter materialistado marxismo, em oposição às leituras centradas apenas na teoria do conhecimento'Tenno genérico e ambíguo que congrega desde movimentos social-democratas até partidos revolucionáros marxistas

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"gasto de força de trabalho" abstrato: aocontrário, integradas num conjunto de com-plexo mecanismo de normas prescritivas reli-giosas, tradições sociais e culturais comcompromissos mútuos. Cada atividade tinhaseu tempo particular e seu lugar particular,não existia uma forma de atividade abstrata egeral (1999: 27)

E, concluindo, em uma formação social nãomais assente na luta de classes a superação do traba-lho toma-se antipolítica, pois ajinalidade da políticasó pode ser a conquista do aparelho de Estadopara dar continuidade à sociedade do trabalho(1999: 89). Ao invés da ação política,

os inimigos do trabalho almejam aformação deuniões mundiais de indivíduos livremente associ-ados, para que arranquem da máquina de traba-lho e valorização que gira-em-falso os meios deprodução e existência tomando-os em suas pró-prias mãos (1999:78)

Então,

Em lugar da produção de mercadorias en-tra a discussão direta, o acordo e a decisãoconjunta dos membros da sociedade sobre autilização sensata dos recursos. A identida-de institucional social entre produtores econsumidores, impensável sobre o ditado dofim em si mesmo capitalista, será construida.As instituições alienadas pelo mercado e oestado serão substituídas pelo sistema emrede de conselhos, nos quais as livres asso-ciações, da escala dos bairros até a mundi-al, determinam ofluxo de recursos conformepontos de vista da razão sensível social eecológica (1999:79-80)

UMA CRíTICA À CRITICA AO TRABALHO

As teses desenvolvidas pelo citado manifestoencontram-se embrionariamente, com todos seus li-mites e contradições, na obra de Kurz O colapso damodernização. Nela defende-se que a desestruturaçãoeconômica, social e política dos países do Leste Eu-ropeu não significou uma vitória do capitalismo, mas aexpressão de uma crise específica que ataca os fun-damentos do modo de produção capitalista. Pois, se-gundoKurz,

o "mercado planejado" do Leste, comojá revelaessa designação, não eliminou as categorias domercado. Conseqüentemente aparecem no socia-lismo real todas as categorias fundamentais docapitalismo: salário, preço e lucro (ganho deempresa). E quanto aoprincípio básico do traba-lho abstrato, este não se limitou a adotá-lo, comotambém levou-o ao extremo (1993:29)

Retomando o conceito de fetichismo da merca-doria de Marx, Kurz faz uma revisão crítica dos con-tornos da crise do capital, do movimento operário, daluta de classe, das revoluções proletárias e, em parti-cular, de uma

ontologia errônea do trabalho, que não foicompreendido como elemento e parte inte-grante do sistema fetichista da mercadoria,mas sim deforma quase bíblica (isto é, "protes-tante "), como essência eterna da humanidade queapenas externamente foi violentamente modifica-dapelos sujeitos "exploradores ", os capitalistas(1999:48)

Revela-se aí, o fundamento da discórdia en-tre Kurz e seu agrupamento de "inimigos do traba-lho" com qualquer tentativa alicerçada na Razãodialé ica, no humanismo e no historicismo concreto,com vistas à superação do capitalismo, por meio darevolução proletária, rumo a construção de umasociedade sem classes. É o que procuraremos de-monstrar.

Oual O fundamento da sociabilidade humana?

Tanto no referido texto de Kurz como no ma-nifesto do Grupo Krisis, está ausente qualquer defini-ção coerente de trabalho. Em um momento parecemidentificar sua crítica ao trabalho abstrato, noutro aotrabalho concreto, produtor de valores de uso e fun-damento da sociabilidade humana. De fato, partindodo trabalho sob o capitalismo, necessariamente estra-nhado, os "inimigos do trabalho" generalizam suascontradições para o núcleo ontológico do trabalho,enquanto pressuposto de qualquer atividade humana.

Mas, o que é realmente o trabalho? Qual suarelação com a sociabilidade humana? O trabalho é sim-plesmente esforço físico, como nos faz crer o sensocomum? Um castigo como nos sugere a mitologiaju-daico-cristã? Ou será apenas sinônimo de tortura queaponta para um destino social infeliz como querem os"inimigos do trabalho"?

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Para chegarmos a essencial idade do trabalho énecessária uma pequena reflexão ontológica,já que

o conhecimento da realidade, o modo e apos-sibilidade de conhecer a realidade dependem,afinal, de uma concepção da realidade, ex-plícita ou implícita. A questão: como se podeconhecer a realidade? é sempre precedida poruma questão mais fundamental: que é a rea-lidade? (KOSIK,1989:35)

Até o aparecimento do ser social o cosmos de-senvolveu-se por bilhões de anos, passando pelaestruturação das estrelas e dos planetas, pela origemda vida e chegando aos primeiros seres consideradoscomo hominídeos há aproximadamente sete milhõesde anos? . Nesse processo revelam-se as diversas esfe-ras do ser:

a inorgânica, cuja essência é o incessante tor-nar-se outro mineral; a esfera biológica, cuja

essência é o repor o mesmo da reprodução davida; e o ser social, que se particulariza pelaincessante produção do novo, através datransformação do mundo que o cerca de ma-neira conscientemente orientada, teleologi-camente posta (LESSA, 1997b: 16)

Apesar de serem distintos, estes três momentosdo ser são necessariamente articulados, um dependen-do do outro para a própria constituição. Sem a esferainorgânica seria impossível o desenvolvimento da bio-lógica, e, sem esta, o ser social sequer existiria.

No entanto, é o estatuto ontológico de cada umao que as distingue. Isso ocorrendo no momento de rup-tura entre elas. Porém, nos interessa apenas a questãodo trabalho, que separa o ser social das outras esferasdo ser. O salto ontológico da esfera orgânica para a doser social não pressupõe o desaparecimento da pri-meira, pois, para que os atos singulares teleolo-gicamente postos possam ocorrer, é necessária a trocacontínua e ineliminável do homem com a natureza,via trabalho.

Antes de tudo, o trabalho é um processo de queparticipam o homem e a natureza, processo emque o ser humano com sua própria ação, impu/si-ona, regula e controla seu intercâmbio materialcom a natureza. Defronta-se com a natureza comouma de suas forças. Põe em movimento asforçasnaturais de seu corpo, braços epernas, cabeças emãos, afim de apropriar-se dos recursos da na-tureza, imprimindo-lhes forma útil à vida huma-na. (MARX, 1987: 202)

Assim, a transformação do mundo com a cons-tante produção do novo, através de atos teleolo-gicamente postos pelo ser social, diferencia-se tantodo repor o mesmo da reprodução da vida na esferabiológica, como do tornar-se outro do ser inorgânico.Em resumo, pode-se dizer que a espécie Homosapiens, não se diferencia na e da natureza, apenaspor suas propriedades biológicas (morfologia, fisiolo-gia, carga genética, etc.), porém por propriedadessociohistóricas, que têm seu fundamento no traba-lho. É aí, na práxis humana, entendida como trans-formação da realidade objetiva pelo homem social, oqual nesse processo transforma a si mesmo, que paraMarx que reside a resposta para a indagação do queé o homem, seu surgimento e desenvolvimento. Istoé, o processo da criação, do ponto de vista dohomem, é, pois, um processo de autocriação(SCHAFF, 1967:76)

A ruptura entre o ser meramente biológico e oser social, entre, por exemplo, os primatas superiorese o homem, ocorre pela capacidade peculiar deste úl-timo de transformar o mundo que o cerca, através deatos conscientemente orientados, ou seja, o que distin-gue a ação da natureza e dos seres biológicos, de umamaneira geral, da natureza do homem é o trabalho.

O que diferencia, em última instância, o traba-lho do homem da atividade dos outros animais é queaquele projeta na mente o resultado final do seu tra-balho, imprimindo-lhe determinada finalidade. Pode-mos dizer, assim, que a categoria ontológica central,mas não a única, do trabalho é a teleologia que, à son

- Há. contudo, uma boa dose de concordância entre os pesquisadores sobre a forma geral da pré-histôria humana. Nela. quatroetapas-chave podem ser identificadas com toda confiança. A primeirafoi a origem dafamília humana propriamente dita. há cerca de7 milhões de anos. quando espécies semelhantes aos macacos com um modo de locomoção bipede, ou ereta. evoluíram. A segundaetapafoi a proliferação das espécies bípedes. um processo que os biólogos chamam irradiação adaptativa. Entre 7 e 2 milhões de anosatrás. muitas espécies diferentes de macacos bípedes evoluíram. cada uma adaptada a circunstâncias ecológicas ligeiramente diferen-tes. Em meio a esta proliferação de espécies humanas houve uma. entre 3 e 2 milhões de anos atrás. que desenvolveu um cérebrosignificativamente maior. A expansão em tamanho do cérebro marca a terceira etapa e sinaliza a origem do gênero Homo, o ramo daárvore humana que levou ao Homo erectus efinalmente ao Homo sapiens. A quarta etapa foi a origem dos humanos modernos-evolução de gente como nós. completamente equipada com liguagem, consciência. imaginação artística, e inovações tecnológicasjamais vistas antes em qualquer parte da natureza (LEAKEY, 1997:14)

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tour, é um atributo próprio do ser social, limitada àpráxis humana, pois, como afirma Marx,

o que distingue opior arquiteto da melhor abelha équeele figuranamente suaconstruçãoantesdetransformá-Iaem realidade.Nofimdoprocessodotrabalhoapareceumresultadoquejá existiaantesideaImentenaimaginaçãodotrabalhador(MARX,1987:202)

Assim, o trabalho é a protoforma da atividade hu-mana. Tem acompanhado o homem desde os primórdiosde sua existência, como atividade necessariamente útil,associada à produção dos seus meios de vida, à satisfa-ção imediata de suas necessidades, como meio de ga-rantir sua sobrevivência. O trabalho surge com a própriavida. O primeiro pressuposto de toda história humana énaturalmente a existência de indivíduos humanos vivos.Assim, o trabalho é o momento fundante da sociabilidadehumana, embora nem todos os atos humanos possam serredutíveis a atos de trabalho.

Nesse contexto, é preciso lembrar que a produ-ção material e a finalidade que é impressa no ato dotrabalho dependem, antes de qualquer coisa, da nature-za dos meios de vida que o homem encontra e que temde reproduzir. O homem, ao transformar a-natureza,

desenvolveaspotênciasnelaocultase subordinaasforçasdanaturezaaoseuprópriopoder.[...] Ohomemquetrabalhautilizaaspropriedadesmecâ-nicas,fisicasequímicasdascoisas,a fimdefazê-Iasatuarcomomeiosparapoderexercerseupodersobreoutrascoisas,deacordocomasuafinalida-de(LUKÁcsapudANTUNES, 1995:123).

Estamos nos referindo à causalidade dada pelanatureza, que o homem transforma em causalidadeposta, por meio do trabalho, pois o trabalhador neces-sita da natureza para o exercício da criação.

A essência do trabalho é dada por essa articu-lação indissociável entre teleologia e causalidade.

Somente o trabalho tem, com a sua essênciaontológica,umclarocaráterintermediário:eleé,es-sencialmente,umainter-relaçãoentrehomem(socie-dade)enatureza[...] assinalaapassagem,nohomemquetrabalha,dosermerarnentebiológicoaosersocial(LUKÁCS, 02)8

Os "inimigos do trabalho" estão distantes dessavisão ontológica do trabalho como a terra do céu. _--trazem uma resposta coerente à reflexão sobre a su -tância da sociabilidade humana, mesmo quando pro-curam definir algo para caracterizar a relação dohomem com a natureza e com os outros homens.

Trabalho não é, de modo algum, idêntico ao fatode que os homens transformam a natureza e se relaci-onam através de suas atividades. Enquanto houver ho-mens, eles construirão casas, produzirão vestimentas,alimentos, tanto quanto outras coisas, criarão filhos,escreverão livros, discutirão, farão hortas, música etc.Isto é banal e se entende por si mesmo.

O viés positivista contido na expressão "se en-tende por si mesmo", revela a fixação dos "inimigosdo trabalho" no aspecto fenomênico da realidade. Oconhecimento do real, pelo contrário, exige a supera-ção das coisas evidentes por si mesmas, que se mos-tram aparentemente sem história e sem fundamentono mundo caótico dos contatos imediatos.

O homem, através do trabalho, humaniza a na-tureza e, também, a si próprio. A objetivação de suasforças genéricas, que se realiza em primeira instânciapor meio da atividade produtiva, só se torna efetiva-mente possível entrando o homem em relação com osdemais. Portanto, a atividade produtiva, o eterno me-tabolismo entre o homem e a natureza, cria não sóbbjetos, mas, também relações humanas, isto é, rela-ções sociais historicamente determinadas.

É o caráter histórico das relações humanas querevela, sobre a substância positiva e essencial do traba-lho que produz o homem como tal, a negati idade doestranhamento que nega o próprio homem, oriundadivisão social do trabalho e da exploração de classe.Esse duplo aspecto do trabalho, como veremos a se-guir, é totalmente ignorado pelos seus "inimigos".

Capitalismo, trabalho alienado" e ema cihumana

O processo de autocriação do homementado no trabalho, é contraditório. Histo .envolve desenvolvimento e perda de si mesmo. res-cimento e divisão. No capitalismo, tal dinâmi he-ga ao paroxismo, revelando cruamente o an gonismoentre a realidade do trabalho alienado e as infinitaspossibilidades do eterno intercâmbio entre homem enatureza.

8 Ontologia do ser social. O Trabalho - versão preliminar da tradução de Ivo Tonet, não publicada9 O conceito de alienação aqui trabalhado identifica-se com a categoria de estranhamento (Enifremdung) de Lukács, que são osobstáculos socialmente postos à plena explicitação da generalidade humana, isto é, uma ação que reproduz a desumanidade socialmenteposta - ver LESSA, S. 1997a: 114

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De um lado, o capitalismo ao superar a divi-são feudal do trabalho, desagregando a divisão en-tre homens livres e servos da gleba, exigindo atransformação destes em trabalhadores assalariados,representou uma ampliação da liberdade humana,dissolvendo os laços que prendiam os indivíduosaos limites previamente definidos pela ordem feu-dal. O desenvolvimento da indústria conduziu a umaintensa socialização do trabalho. Em contraposiçãoao trabalho individual, artesanal e autárquico, a di-visão capitalista do trabalho requereu uma coope-ração tanto no interior da unidade produtiva comouma integração orgânica dos diversos ramos da pro-dução. Esse processo crescente de socialização im-pulsionado pelo advento do capitalismo criou omercado mundial e, conseqüentemente uma culturauniversal, que possibilitou a compreensão da histó-ria e da realidade social sob o enfoque de uma hu-manidade unificada. Podemos dizer que o capitalismorevelou a humanidade enquanto totalidade concretade complexos, alicerçados no trabalho e em suasobjetivações, obedecendo a uma racional idade le-galmente determinada.

Por outro lado, a divisão capitalista do traba-lho, centralizada na produção de mais-valia, favo-rece o desenvolvimento de habilidades parciaisenquanto suprime possíveis capacidades. O conhe-cimento, a vontade e a inteligência do trabalhadorsão constantemente reprimidos, limitados e expro-priados pelo capital e concentrados na tecnologia ena organização do trabalho. O processo de produ-ção, que tem sua força motriz no trabalho, volta-secontra o trabalhador como algo estranho que o do-mina. O trabalhador aliena-se: 1) do produto de seutrabalho; 2) do ato de produção no processo de tra-balho, onde aquele é visto como uma atividadealheia, que não lhe satisfaz por si mesma; 3) do seuser genérico, já que o objeto do trabalho é aobjetivação da vida da espécie humana; 4) dos ou-tros homens.

A mercantilização da atividade produtiva pro-voca a ocultação da ação humana à sua própria cons-ciência, o caráter criador do trabalho transforma-sena essência escondida e dissimulada de uma apa-rência inteiramente reificada. Assim, o conjunto dasrelações sociais mostra-se como relações entre coi-sas, aparentemente como realidades "naturais", es-tranhas, e independentes da ação humana. Oproduto da práxis humana, da esfera produtiva àcultural, surge diante dos indivíduos, dilacerados peladivisão capitalista do trabalho, como algo inteira-mente alheio. Rompe-se a unidade dialética entre

atividade criadora e vida social dos homens. A vidasocial e o cotidiano dos indivíduos convertem-se nuobjeto "coisificado", estranho e inumano, incapazde possuir uma subjetividade. A história não é maisproduto da ação humana, passa a ser governada pordeuses ou estruturas regidas por uma lógicaindecifrável.

No entanto, se o trabalho, principalmente sobcapitalismo, afeta negativamente o homem ao mesmtempo que o produz vitalmente, é porque ele possuiuma dimensão mais profunda do que a simples pro-dução de valores orientados pela lógica do capital. Emoutras palavras, o trabalho não pode ser reduzido.como faz o Grupo Krisis, a uma visão distorcida detrabalho abstrato:

Na esfera do trabalho não conta o que sefaz, masque sefaça algo enquanto tal, pois o trabalho éjustamente umfim em si mesmo, na medida emque é suporte da valorização do capital-dinheiro-aumento infinito de dinheiro por sisó. Trabalhoé aforma de atividade deste fim em si mesmoabsurdo. Só por isso, e não por razões objetivas,todos osprodutos são produzidos como merca-dorias. Pois somente nestaforma eles represen-tam o abstractum dinheiro cujo conteúdo é oabstractum trabalho (199: 28)

Nessa perspectiva, a dimensão concreta do tra-balho como fonte criadora de valores de uso social-mente necessários, isto é, enquanto atividade vital,desaparece totalmente. De fato, esta unilateralidaderadical, em última instância, nega qualquer superaçãoda lógica do capital, pois como diz Antunes:

Aqui transparece uma vez mais a fragilidademaior dos críticos da sociedade do trabalho:a desconsideração da dimensão do trabalhoconcreto como fundamento (na medida em quese insere na esfera das necessidades) capa=de possibilitar a base material sobre a qualas demais esferas da atividade humana po-dem se desenvolver. Em verdade, essa concep-ção fundamenta-se no reconhecimento e naaceitação de que o trabalho, regido pela ló-gica do capital e das mercadorias, é inevitá-vel, do que resulta que o trabalho humano nãopode converter-se numa verdadeira auto-ati-vidade (ANTUNES, 1995,84)

Daí a crítica, que beira o desprezo, dos "inimi-gos do trabalho" ao movimento operário até então.

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Negando-se a reconhecer a dimensão concreta do tra-balho, o fundamento ontológico da sociabilidade hu-mana, que produz o homem dentro de determinadascondições históricas - mesmo alienado ou coisificadoo homem continua um ser ativo que se autocria - ,nega-se a possibilidade de emancipação como produ-to da ação coletiva dos homens e de uma classe emespecial, o proletariado.

Para o Grupo Krisis o movimento operário nãopode superar o capital porque foi constituído pelo pró-prio capital, sua afirmação conduz não à emancipa-ção do capital senão para o capital, pois trabalho ecapital são os dois lados da mesma moeda. Assim,anula-se o papel da luta de classes, das forças sociaisna história, aliás acaba-se com própria história, en-quanto produto da ação humana.

Como tampouco era a classe trabalhadora,enquanto tal, a contradição antagônica aocapital e o sujeito da emancipação humana,tampouco também, por outro lado, os capita-listas e executivos dirigem a sociedade seguin-do a maldade de uma vontade subjetiva deexplorador (1999: 33)

Utilizando-se de uma lógica pré-dialética, os"inimigos do trabalho" não percebem o movimentodo real como transformação, como unidade dos con-trários, como realidade que supera a si mesma, nadinâmica das tendências contraditórias que provo-cam o desenvolvimento do ser. Não aceitam - o quenão é evidente por si mesmo - que por ser a classeoperária a produtora de valores é, portanto, a únicapotencialmente capaz de antagonizar-se frente ao ca-pital expropriando-o, destruindo o Estado burguês,instaurando a ditadura do proletariado e sendo, ne-cessariamente, o sujeito de emancipação de toda for-ma de exploração do homem pelo homem. Por issonegam a esfera da política, da luta pelo poder comomediação necessária na ruptura do capitalismo rumoa uma sociedade sem classes.

Há, na verdade, uma tendência anti-huma-nista inerente ao conjunto do texto, conseqüênciada eliminação forçada da subjetividade da histó-ria. Pois, se a possibilidade de superar o modo deprodução capitalista não pode vir da ação do pro-letariado e demais explorados, de onde virá? Se o"deus-trabalho" e o "sistema produtor de merca-dorias" tudo controlam e consomem, à exceção doGrupo Krisis e de seus simpatizantes, qual a fun-ção da ação dos trabalhadores e dos capitalistasna sociedade atual, senão meros epifenômenos de

CONCLUSÕES INCONCLUSAS

Até aqui, procuramos discutir. sob uma ei-tura marxista, alguns pressupostos contidos na ci-tada publicação. Há outros, no entanto, que opresente trabalho não comporta, envolvendo a his-tória do movimento operário, o caráter dos paísespós-revolucionários, o próprio marxismo enquantoexpressão dos interesses históricos do proletaria-do, as características do capitalismo na atualidade.o programa político antiimperialista e antica-pitalista, por exemplo, o que deixaremos para ou-tra ocasião mais propícia.

No entanto, nos atrevemos a levantarmos, enpassant, algumas considerações sobre a base socialdas teses dos "inimigos do trabalho", que surge comoproduto de intelectuais distanciados dos embates con-cretos da luta de classes. Fruto da divisão entre traba-lho manual e intelectual:

Os intelectuais não são uma classe, mas umacategoria social; não se definem por seu lu-gar no processo de produção, mas por suarelação com as instâncias extra-econômicasda estrutura social; do mesmo modo que osburocratas e os militares se definem por suarelação com opolítico, os intelectuais situam-sepor sua relação com a superestrutura ide-ológica (LOWY, 1998: 25)

Como produtores diretos da dimensão ideo-lógica, afastada da produção, os intelectuais pos u-em certa autonomia em relação às classes so iais.caracterizada por certa instabilidade oriunda da es-

são de diversos movimentos. Por seu distanciamen oda produção material as ideologias e os alores. ornoo justo e injusto, bem e mal, belo e feio, et .. têm amaior importância e o mais decidido peso ide :30). Esse universo de valores qualitati os entra. es-pontaneamente, em conflito com o mundo regi o Ialógica capitalista do valor de troca, ou seja. 0- ·a-lores quantitativos. Um quadro, uma es ul a. o rareligiosa, um mandamento religioso, uma s ramoral, tudo tende a ser quantificado, rnonetarizadopelo capitalismo.

O intelectual tende a resistir a esta ameaça quevisa constantemente transformar codobem ma-terial ou cultural, todo sentimento, codoprincí-pio moral, toda emoção estética em umamercadoria, em uma "coisa" trazida ao merca-do e vendida por seu justo preço (idem:30)

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À medida em que resistem ao redemoinho devalorização do capital, os intelectuais podem se apro-ximar de um sentimento anticapitalista. No entanto, senão evoluem para a compreensão do processo históri-co, de suas leis e de seus sujeitos, são conduzidos aum protesto romântico e inócuo contra o capitalismo.

Ao nosso ver, um exemplo ilustrativo dissosão as teses fundamentais do Grupo Krisis. Apesarde expressarem uma certa "angústia" com a estru-tura do capitalismo moderno, não conseguem rom-per com as categorias de uma racional idadeantidialética, com uma certa nostalgia de um passa-do pré-capitalista e com um tipo de aversão aristo-crática à ação das massas anônimas. Ao eliminaremas forças sociais do processo histórico em funçãode um fetichismo e de um sistema produtor de mer-cadorias onipotentes, terminam por expressar a ra-dical dicotomia entre trabalho manual e intelectualperpetrada pelo capitalismo. Assim, como a divisãosocial classista entre os que pensam e os que fa-zem, por uma série de mediações, conduziu adilaceração do homem enquanto totalidade, entreum espírito (puro pensamento), que sobrevive aopróprio corpo (simples ação), a lógica sustentadapelos "inimigos do trabalho", ao mesmo tempo queelimina a atividade humana da história, concentraem um pequeno número de eleitos não corrompi-dos pelo sistema produtor de mercadorias, a com-preensão e as possíveis soluções dos problemas dasociedade moderna.

No entanto, pensamos que existe outra alter-nativa mais sensata e produtiva. Retomar, em umnível superior, os momentos progressistas do pen-samento burguês revolucionário, como fez o mar-xismo. Primeiro, o humanismo, a teoria segundo aqual o homem é um produto de sua própria ativida-de, de sua história coletiva, e não de deuses ou deestruturas eternas e fechadas. Segundo, o histo-ricismo concreto, ou seja, a afirmação do caráterontologicamente histórico da realidade, com aconseqüente defesa do progresso e do melhoramen-to da humanidade. Terceiro, a razão dialética, emseus dois momentos, o de uma racional idade obje-tiva imanente ao desenvolvimento do ser, e aqueladas categorias capazes de apreender subjetivamenteessa racionalidade objetiva, categorias essas que su-peram tanto o saber imediato restrito ao mundo daaparência quanto à razão analítica e instrumental.Sob esta perspectiva, abandonada pela filosofiaburguesa da decadência e retomada pelo proletari-ado em sua luta contra o capital, é possível com-preender as contradições da atualidade:

Uma análise humanista de nossa época colo-ca a nu a mutilação da práxis pela manipula-ção, a necessária irracionalidade de uma vidavoltada para o consumo Supérfluo e humana-mente insensato. Uma visão concretamentehistoricista revela as possibilidades de mu-dança e transformação latentes, embora dis-simuladas pelas aparências fetichizadas quese pretendem imutáveis. A dialética.finalmen-te, denuncia a contradição entre um mundoaparentemente organizado (com os meios deuma razão burocrática) e a irracionalidadeobjetiva do conjunto da sociedade, superan-do assim os limites de uma "razão" que seconcentra nas regras, nos meios, enquantoabandona como incognoscível o conteúdo e afinalidade da vida (COUTINHO, 1972:60)

Desse modo, concluímos que destacam-se naatualidade, por um lado uma crise de grandes pro-porções da sociedade existente, baseada no traba-lho abstrato e alienado, envolvendo seu Estado eregime político, por outro a existência de uma clas-se produtora de valor e potencialmente revolucio-nária, que se choca contra os limites impostos pelareprodução do capital, em busca do trabalho enquan-to atividade vital e de uma vida plena de sentido.Assim, ao redor do trabalho gravita a problemáticada sociabilidade moderna, e o destino da humani-dade ainda repousa nos ombros daqueles que, mes-mo condenados a um trabalho alienado, constroempotencialmente um futuro melhor com o suor desuas próprias mãos.

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