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1163 Recensões Alice Semendo e J. Teixeira Lopes (coords.), Museus, Discursos e Representações, Porto, Afrontamen- to, 2006, 199 páginas. Há uma certa desproporção entre o crescimento súbito dos museus em Portugal e a ainda escassa produção científica sobre eles. Dada a saliência deste fenómeno e mesmo a multiplica- ção de pós-graduações e mestrados em Museologia, seria de esperar que esta temática tivesse maior destaque no panorama editorial português. Como tal, é de saudar a iniciativa de publicar em livro as comunicações ao colóquio «Museus, discursos e repre- sentações», realizado em Novembro de 2004 e organizado pelos Departamen- tos de Ciências e Técnicas do Patri- mónio e de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Esta colectânea é exemplar das múltiplas diversidades que caracteri- zam a temática dos estudos sobre museus. Em primeiro lugar, dá conta da diversidade de tipos de museus existentes: há textos sobre museus de arte, contemporânea (da autoria de Raquel Henriques da Silva e de Ulrich Loock) e decorativa (de Fernando Paulo Oliveira Magalhães), sobre museus etnográficos (de Joa- quim Pais de Brito), sobre museus de anatomia (de Elizabeth Hallan). De fora terão ficado, contudo, outros tipos de museus assaz numerosos em Portugal, como os museus ar- queológicos, os museus de ciência e de história natural, os museus in- complexos como a «secularização» e amplia o nosso conhecimento prático sobre as especificidades religiosas da sociedade portuguesa e as mudanças ocorridas nos últimos anos. Isso sig- nifica que esta obra representa um estudo indispensável sobre as mu- danças religiosas que ocorreram nos últimos tempos na sociedade portu- guesa. E, finalmente, para além das pesquisas teóricas e práticas de grande qualidade, este livro represen- ta mais um valor bastante importan- te: o livro de Helena Vilaça obriga ao reconhecimento de que o estudo ou a sociologia das religiões precisam de uma continuação permanente. Trata-se de uma área científica que, curiosamente, continua ainda a ser bastante subestimada na paisagem académica de Portugal. NOTAS 1 James A. Beckford, «The management of religious diversity in England and Wales with special reference to prison Chaplaincy», in International Journal on Multicultural So- cieties, V. 1 (2), 1999, pp. 55-66. 2 O. Riis, «Modes of religious pluralism under conditions of globalisation», in International Journal on Multicultural Societies, 1 (1), 1999, pp. 20-34. 3 Thomas Luckmann, «Säkularisierung — ein moderner Mythos», in Luckmann, Lebenswelt und Gesellschaft: Grundstruktu- ren und geschichtliche Wandlungen, Pader- born, 1980, pp. 161-172. 4 Peter L. Berger (org.), The Desecula- rization of the World: Resurgent Religion and World Politics, Washington, D. C., 1999. 5 N. Luhmann, Funktion der Religion, Frankfurt am Main, 1996 p. 225. STEFFEN DIX

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Recensões

Alice Semendo e J. Teixeira Lopes(coords.), Museus, Discursos eRepresentações, Porto, Afrontamen-to, 2006, 199 páginas.

Há uma certa desproporção entreo crescimento súbito dos museus emPortugal e a ainda escassa produçãocientífica sobre eles. Dada a saliênciadeste fenómeno e mesmo a multiplica-ção de pós-graduações e mestradosem Museologia, seria de esperar queesta temática tivesse maior destaqueno panorama editorial português.Como tal, é de saudar a iniciativa depublicar em livro as comunicações aocolóquio «Museus, discursos e repre-sentações», realizado em Novembro de2004 e organizado pelos Departamen-tos de Ciências e Técnicas do Patri-mónio e de Sociologia da Faculdade deLetras da Universidade do Porto.

Esta colectânea é exemplar dasmúltiplas diversidades que caracteri-zam a temática dos estudos sobremuseus. Em primeiro lugar, dá contada diversidade de tipos de museusexistentes: há textos sobre museusde arte, contemporânea (da autoriade Raquel Henriques da Silva e deUlrich Loock) e decorativa (deFernando Paulo Oliveira Magalhães),sobre museus etnográficos (de Joa-quim Pais de Brito), sobre museusde anatomia (de Elizabeth Hallan). Defora terão ficado, contudo, outrostipos de museus assaz numerososem Portugal, como os museus ar-queológicos, os museus de ciência ede história natural, os museus in-

complexos como a «secularização» eamplia o nosso conhecimento práticosobre as especificidades religiosas dasociedade portuguesa e as mudançasocorridas nos últimos anos. Isso sig-nifica que esta obra representa umestudo indispensável sobre as mu-danças religiosas que ocorreram nosúltimos tempos na sociedade portu-guesa. E, finalmente, para além daspesquisas teóricas e práticas degrande qualidade, este livro represen-ta mais um valor bastante importan-te: o livro de Helena Vilaça obriga aoreconhecimento de que o estudo oua sociologia das religiões precisamde uma continuação permanente.Trata-se de uma área científica que,curiosamente, continua ainda a serbastante subestimada na paisagemacadémica de Portugal.

NOTAS

1 James A. Beckford, «The managementof religious diversity in England and Waleswith special reference to prison Chaplaincy»,in International Journal on Multicultural So-cieties, V. 1 (2), 1999, pp. 55-66.

2 O. Riis, «Modes of religious pluralismunder conditions of globalisation», inInternational Journal on MulticulturalSocieties, 1 (1), 1999, pp. 20-34.

3 Thomas Luckmann, «Säkularisierung —ein moderner Mythos», in Luckmann,Lebenswelt und Gesellschaft: Grundstruktu-ren und geschichtliche Wandlungen, Pader-born, 1980, pp. 161-172.

4 Peter L. Berger (org.), The Desecula-rization of the World: Resurgent Religionand World Politics, Washington, D. C.,1999.

5 N. Luhmann, Funktion der Religion,Frankfurt am Main, 1996 p. 225.

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Análise Social

dustriais, que, no entanto, têm sidoobjecto de outras publicações1.

Em segundo lugar, este livro per-mite apreciar a diversidade de assuntospassíveis de serem analisados a partirdo tema central dos museus: a educa-ção nos museus (artigo assinado porCarla Padró), a «profissão museológi-ca» (artigo de Alice Semedo), a re-presentação nos museus dos movi-mentos artísticos (artigos de ScottLash, de Raquel Henriques da Silva ede Ulrich Loock), a arquitectura dosmuseus e o seu lugar nas cidades(artigos de Nuno Grande e de HelenaBarranha), a relação entre os museuse as disciplinas científicas que lhesservem de base (artigos de JoaquimPais de Brito e de Elizabeth Hallan).Porém, outras questões centrais es-tão praticamente omissas, como ospúblicos dos museus (referidos ape-nas indirectamente no texto de JoãoTeixeira Lopes) e o lugar por exce-lência dos discursos dos museus,que são as exposições.

Em terceiro lugar, há a registar adiversidade dos autores e respectivasdisciplinas científicas de origem.Encontramos nesta obra textos desociólogos, de antropólogos, de his-toriadores de arte, de arquitectos.Diversas são também as suas nacio-nalidades (peritos nacionais e estran-geiro) e filiações institucionais. Sequase todos são académicos, quetomam os museus como seu objectode estudo, alguns terão uma expe-riência mais directa do mundomuseal, como o director do MuseuNacional de Etnologia (Joaquim Paisde Brito), a ex-directora do Instituto

Português de Museus (Raquel Henri-ques da Silva), o director-adjunto doMuseu de Serralves (Ulrich Loock).Talvez, no entanto, o âmbito cir-cunscrito do colóquio, limitado aonze intervenientes, tenha deixado defora outras experiências e perspecti-vas do fértil campo dos estudos demuseologia em Portugal.

Esta pluralidade de olhares redun-dará também numa quarta diversidade,a de públicos-alvo para esta obra. Sealguns artigos se dirigirão preferencial-mente a um público mais académico, oque se depreende pela adesão às «nor-mas do campo» (sustentação teóricamais densa, profusão de referênciasbibliográficas), outros artigos terãocomo destinatários os profissionaisque trabalham em museus ou um pú-blico essencialmente «leigo», assumin-do os textos um carácter de divulga-ção. A tal corresponde igualmente umadiversidade de estilos de escrita. Sealguns textos resultam de trabalhos deinvestigação específicos, outros assu-mem primordialmente o carácter de re-flexão global, sendo procedentes deautores com uma vasta experiência naárea.

Destacaria como exemplar do pri-meiro tipo o artigo de ElizabethHallam, «Anatomy museum: anthro-pological and historical perspectives».Com base em vários anos de trabalhode investigação sobre um museu emparticular, o Museu de Anatomia daUniversidade de Aberdeen, a autoracombina exemplarmente os múltiplosvectores que se cruzam no pontofocal do museu: as perspectivasdiacrónica (história do museu) e

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Recensões

sincrónica (o presente uso do mu-seu); as dimensões visual (representa-ções do corpo humano na ciênciabiomédica) e material (a conversão departes do corpo em espécimesmuseais, os processos de produçãode modelos), prática (a manipulaçãodos espécimes pelos alunos) e discur-siva (as diferentes representações so-bre o papel do museu no ensino damedicina); os círculos concêntricosdo objecto, da colecção, do museu,da instituição a que pertence e docontexto cultural mais vasto onde seinsere. A inclusão de fotografias,essencial quando se discute um meioessencialmente visual como o domuseu, é outra das mais-valias desteartigo.

Representativo do segundo tipo éo artigo de Joaquim Pais de Brito,«O museu, entre o que guarda e oque mostra». Em pouco mais de dezpáginas, o autor apresenta uma pa-norâmica simultaneamente concisa eabrangente das principais questõesrespeitantes aos museus etnográficos.Das tipologias de colecções etnográfi-cas à evolução das formas de expo-sição, da tensão passado/presente narepresentação de grupos sociais aopatrimónio intangível, da mutável re-lação entre os museus e a disciplinaa que estão ligados às transforma-ções do mundo social que os museustêm necessariamente de acompa-nhar, este artigo funciona como umainteressante síntese de múltiplos de-bates em curso na antropologia con-temporânea2.

Uma palavra final para aquele queé o primeiro texto do livro, «Art asconcept/art as media/art as life», deScott Lash. Ter-se-á certamente tra-

tado de um lapso a inclusão nestaobra de um texto que, apesar de re-digido por um académico estrangeirode renome, é claramente um draftinacabado: não tem bibliografia final,as referências bibliográficas no textoestão incompletas (em muitos casossão apenas apresentados os primei-ros dois dígitos do ano de publica-ção), o artigo carece de coerência ede estrutura, sendo as últimas dez pá-ginas uma colecção de citações demúltiplos intervenientes que, para alémdos problemas formais (sem data,sem fonte), não são objecto de qual-quer análise. A própria organizadorada obra parece ter sido induzida emerro pelo uso recorrente da expressãoyBas, que não é a designação de umcolectivo de artistas, mas sim oacrónimo de «young British artists».

Em síntese, esta obra padece deum dos problemas mais comuns daedição de colectâneas, a desigual qua-lidade dos artigos que a compõem,mas que, contudo, é também produtodo seu principal ponto forte: a plura-lidade de perspectivas, discursos erepresentações.

NOTAS

1 A título de exemplo, podem ser referidoso número temático da revista O ArqueólogoPortuguês, série IV, vol. 17, 1999, a revistaMuseologia, editada pelo Museu de Ciência daUniversidade de Lisboa, as edições da Associa-ção Portuguesa de Arqueologia Industrial.

2 A ausência de referências bibliográficasneste artigo é sinal da impossibilidade de se-leccionar entre os milhares de artigos, livrose comunicações a congressos onde se travamestes debates.

ANA DELICADO