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ECONOMIA INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEA N ILSON A RAÚJO DE S OUZA D A D EPRESSÃO DE 1929 AO C OLAPSO F INANCEIRO DE 2008

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Page 1: N ARAÚJO DE SOUZA · O objeto de estudo da Economia Internacional é a interação econômica entre estados soberanos, bem como a formação e desenvolvimento da economia mundial

ECONOMIA INTERNACIONALCONTEMPORÂNEA

N I L S O N A R A Ú J O D E S O U Z A

DA DEPRESSÃO DE 1929AO COLAPSO FINANCEIRO DE 2008

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NILSON ARAÚJO DE SOUZA

ECONOMIA INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEA

Da Depressão de 1929 ao Colapso Financeiro de 2008

Material do Portal Atlas

SÃO PAULO EDITORA ATLAS S.A. – 2009

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Economia Internacional Contemporânea - Nilson Araújo de Souza

Editora Atlas

Sum

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1. Elementos de Economia Internacional

2. Liberalismo e protecionismo na formação da economia mundial

3. A onda larga e a crise estrutural

4. As primeiras tentativas de explicar a Grande Depressão

5. Monopolização da economia aumentou gravidade e duração da crise

6. Capital financeiro continua

7. Não existem capitais globais

8. O embate teórico sobre a dependência da America Latina

9. Crise começa a alterar destino setorial do capital estrangeiro em alguns países da periferia

10. Gravidade da crise imobiliza FMI

11. Os níveis da integração econômica regional

12. Integração econômica regional: os casos da União Europeia e da América Latina

13. Protecionismo dos EUA contra o Brasil

14. Ou Alca ou Unasul

15. Crescimento dos “anos dourados” foi muito baixo

16. Exuberância irracional não tem base na produtividade

17. Ameaça de nova recessão mundial em 2001 veio dos EUA, e não da OPEP

18. O impacto da crise sobre os países emergentes

Sumário

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Neste capítulo, aborda-se um conjunto de questões teóricas, cuja compreensão ajuda no acompanhamento do livro Economia internacional contemporânea: da depressão de 1929 ao colapso financeiro de 2008. Trata-se de conceitos básicos e teorias, com exemplos históricos, que foram elaborados no contexto da Economia Internacional.

Termos de intercâmbio e intercâmbio desigual, taxa de câmbio e regimes cambiais, balanço de pagamentos são algumas das questões tratadas aqui.

O objeto de estudo da Economia Internacional é a interação econômica entre estados soberanos, bem como a formação e desenvolvimento da economia mundial.

Neste capítulo, estudaremos alguns elementos teóricos que contribuem para a com-preensão dessa interação econômica. No próximo, examina-se o processo de formação e desenvolvimento da economia mundial.

Termos de intercâmbio e sua deterioração

A noção de termos de intercâmbio é importante para a compreensão das relações econômicas internacionais. Tem a ver com os ganhos e perdas das economias nacionais em suas relações comerciais com outras economias.

Para facilitar a compreensão desse conceito, precisamos recorrer, inicialmente, a dois outros conceitos: o de preço relativo e o de relações de troca.

Preço relativo é a relação de preços entre as mercadorias, o que se traduz no poder de compra de umas mercadorias em relação às outras.

Se considerarmos a relação entre duas mercadorias, a “A” e a “B”, o preço relativo de “A” pode se expressar matematicamente da seguinte forma:

PRA = PA/PB, em quePRA é o preço relativo de “A”PA é o preço de “A”PB é o preço de “B”.

1 Elementos de Economia Internacional

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Assim, se o preço de “A” for R$ 10,00 e o de “B” for R$ 5,00, temos:

PRA = R$ 10 / R$ 5 = 2.

Ou seja, o poder de compra de “A” em relação a “B” é de 2 unidades, quer dizer, uma unidade de “A” compra 2 de “B”.

Esse conceito serve para o estudo do processo inflacionário. Se, em algum momento, a estrutura de preços relativos estiver, por qualquer razão, favorecendo um produto que tenha um peso importante na estrutura produtiva – por exemplo, o aço –, a tendência é que, num momento futuro, essa situação possa impactar o resto da estrutura de preços, desenca-deando um processo inflacionário.

A noção de relações de troca corresponde à utilização do conceito de preços rela-tivos nas relações entre os setores da produção. Significa a relação de preços entre os setores produtivos, ou seja, o poder de compra dos produtos de um setor em relação aos demais.

Se considerarmos a relação entre dois setores, agricultura (“A”) e indústria (“I”), a relação de troca de “A” em relação a “I” pode se expressar matematicamente da seguinte forma:

RTA = PA/PI, em queRTA é a relação de troca de “A” em relação a “I”PA é o índice de preços médio de todos os produtos de “A”PI é o índice de preços médio de todos os produtos de “I”

Assim, se o índice de preços de “A” for 80 e o de “I” for 100, temos:

RTA = 80/100 = 0,80.

Isso significa que uma unidade de um produto agrícola poderia comprar apenas 0,80, isto é, 80% de uma unidade de um produto industrial.

Este conceito foi bastante utilizado pela Cepal1 para estudar os problemas estrutu-rais dos países da América Latina. A queda dessa relação de troca entre agricultura e indús-tria significaria que a indústria estaria se beneficiando na sua relação com a agricultura e, no futuro, isso poderia implicar o estancamento desta última, acarretando problemas para o desenvolvimento econômico e para a estabilidade dos preços.

Os termos de intercâmbio correspondem à extensão do conceito de relações de tro-ca para as relações comerciais internacionais. Trata-se da relação de preços entre os produtos exportados por um país e os produtos importados, isto é, o poder de compra das exportações.

Podem se expressar matematicamente da seguinte forma:1  CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e Caribe, órgão criado pela ONU em 1948 para estudar os problemas econômicos da América Latina e propor soluções.

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TI = PX/PM, em queTI são os termos de intercâmbioPX é o índice médio de preços das exportaçõesPM é o índice médio de preços das importações

Assim, se o índice médio de preços das exportações de um determinado país for igual a 480 e o das importações corresponder a 800, temos:

TI = 480/800 = 0,60

Isso significa que, em média, uma unidade de um produto exportado compra 0,60, isto é, 60% de uma unidade de um produto importado.

Se essa relação, por exemplo, estiver caindo, isso significa que o país tem que ex-portar cada vez mais para conseguir importar a mesma quantidade que importava antes. A queda dos termos de intercâmbio de um país reflete suas perdas no comércio internacional.

A Cepal utilizou esse conceito para estudar a inserção da América Latina no con-texto internacional. Segundo seu fundador, coordenador por muitos anos e um dos principais teóricos, o economista argentino Raúl Prebisch, haveria uma tendência estrutural à deterioração dos termos de intercâmbio da América Latina em relação ao mundo desenvolvido. Segundo ele, essa questão foi levantada pela instituição desde seus primeiros relatórios.

A ideia básica do autor é a de que “a origem deste fenômeno está nessa relativa len-tidão com que cresce a procura mundial de produtos primários, comparada com a de pro-dutos industriais” (PREBISCH, 1964: 97). Verifica-se, então, que na base do problema estava a divisão internacional do trabalho, que reservava aos países ricos a produção e exportação de produtos industriais e aos periféricos a produção e exportação de produtos primários.

Se havia uma lentidão da demanda internacional de produtos primários, por que então a oferta não se ajustava? Segundo Prebisch, o problema era que o baixo nível de de-senvolvimento industrial dos países latino-americanos não permitia a absorção de força de trabalho eventualmente expulsa das atividades primárias, dificultando seu deslocamento do campo para a cidade.

Como resultado, os salários nas atividades primárias não cresciam com o incremen-to da produtividade do trabalho nessas atividades. Assim, este incremento “se transformará em aumento dos lucros e estimulará o crescimento da produção para lá do ritmo imposto pelo da procura, com a consequente descida dos preços dos produtos primários, em relação aos industriais” (Ibidem: 98).

A conclusão do autor é a de que a deterioração dos termos de intercâmbio implicaria perdas de renda por parte dos países exportadores de produtos primários. Assim, os ganhos de produtividade que obtinham em suas atividades seriam transferidos, via comércio, para os países industrializados importadores de matérias-primas.

O raciocínio de Prebisch é parcialmente verdadeiro, ou seja, o subdesenvolvimento industrial dos países latino-americanos impedia o deslocamento de força de trabalho do

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campo, pressionando os salários para baixo e os lucros para cima na atividade primária, fomentando a oferta de produtos primários.

No entanto, é um raciocínio incompleto. A questão central é que as corporações dos países centrais, usando seu poder de monopólio no comércio internacional, cobram um sobrepreço pelos produtos industriais que vendem para os países da periferia e pressionam para baixo os preços das matérias-primas que deles adquirem.

Taxa de câmbio e regimes cambiais

Taxa de câmbio é outro conceito importante para a compreensão das relações eco-nômicas internacionais. E, apesar de relativamente simples, existe muita confusão acerca de seu significado.

Taxa de câmbio não é meramente a relação entre duas moedas, como muita gente pensa – até mesmo gente especializada. Essa noção leva a equívocos, como o de referir-se à desvalorização da taxa de câmbio como se fosse a mesma coisa que desvalorização da pró-pria moeda.

Ora, ao desvalorizar-se a taxa de câmbio, significa que ela está abaixando, depre-ciando. E isso quer dizer que está pagando-se menos moeda nacional por moeda estrangei-ra, ou seja, a moeda nacional está se valorizando, e não se desvalorizando.

Isto porque o conceito correto é: taxa de câmbio é o preço da moeda estrangeira em moeda nacional, ou seja, é quanto se paga, em moeda nacional, por cada unidade de moeda estrangeira.

Portanto, se a taxa de câmbio se desvaloriza, isso significa que a moeda nacional está se valorizando – e vice-versa.

A taxa de câmbio tem um efeito importante sobre as relações comerciais de um país com o resto do mundo. Vejamos duas circunstâncias:

• se a taxa de câmbio estiver baixa, isto é, se a moeda do país estiver valorizada, o impacto na balança comercial será o seguinte:

− os produtos estrangeiros tornam-se mais baratos dentro do país, porque se teria que pagar menos em moeda nacional, estimulando o aumento das im-portações;

− os exportadores do país receberiam menos, em moeda nacional, por suas exportações, desanimando-os a exportar.

• se a taxa de câmbio estiver alta, isto é, se a moeda do país estiver depreciada, o impacto na balança comercial será o seguinte:

− os produtos estrangeiros tornam-se mais caros dentro do país, porque se teria que pagar mais em moeda nacional, desestimulando as importações;

− os exportadores do país receberiam mais, em moeda nacional, por suas ex-portações, animando-os a aumentá-las.

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No caso 1, a tendência seria a geração de déficit na balança comercial; no caso 2, po-deria ocorrer superávit comercial.

Para se saber se uma moeda está se valorizando ou depreciando, não basta verificar a evolução da taxa de câmbio nominal, isto é, se ela, por exemplo, variou de R$ 1,50 por US$ 1,00 para R$ 2,30. É preciso calcular sua variação real. Para isso, desconta-se da variação nominal a diferença de inflação entre os países emissores das moedas.

Existem várias formas de se estabelecer a taxa de câmbio do país – e todas elas já foram adotadas em todos os países em momentos distintos de sua história. Essas formas são conhecidas como regimes cambiais, que são os seguintes:

• regime de câmbio fixo – quando o governo do país estabelece uma paridade fixa entre sua moeda e a moeda estrangeira;

• regime de câmbio flutuante – quando o preço da moeda estrangeira é estabe-lecido pelo jogo entre a oferta e a procura da mesma no mercado doméstico;

• regime de câmbio administrado – quando cabe ao governo o estabelecimen-to do preço da moeda estrangeira, mas, em lugar da paridade fixa, ele admi-nistra seu comportamento de acordo com seus objetivos de política econô-mica e de comércio exterior.

Há uma variante do regime de câmbio fixo, que passou a ser conhecida como regime de câmbio semifixo. Neste caso, em lugar de uma paridade fixa, pode-se estabelecer um teto ou um intervalo de variação, em torno de um determinado valor.

O regime de câmbio fixo e sua variante de câmbio semifixo foram largamente ado-tados ao longo da década de 1990, sobretudo na América Latina, mas também em outras regiões, como em parte da Ásia.

Foram utilizados como instrumentos de combate à inflação, à medida que, ao per-mitir a valorização da própria moeda, barateavam os produtos estrangeiros dentro do país importador, o que pressionava a estrutura de preços para baixo e bloqueava o processo in-flacionário.

No entanto, ao mesmo tempo, ao baratear e estimular o crescimento das importa-ções e criar dificuldade para as exportações, o resultado foi a geração de déficits crescentes nas balanças comerciais. Para cobrir esses déficits, os países recorreram a capitais de fora, nas várias modalidades de empréstimos, investimento direto estrangeiro2 ou capitais espe-culativos, aumentando significativamente o passivo externo desses países.3

Esse regime de câmbio, além de retirar qualquer autonomia na definição de política econômica por parte do país, tende a engendrar vulnerabilidade externa, ao aumentar o passivo externo. Na América Latina, um dos países que mais se esmeraram na adoção do

2  Na maioria dos casos, não se tratou de investimento em nova capacidade produtiva, mas da mera aquisição de patrimônio, público ou privado. Segundo levantamento da consultoria KPMG, entre 1992 e meados de 1997, mais de 60% dos negócios de fusão e aquisição no Brasil foram comandados por empresas estrangeiras (SOUZA, 2008: 54).3  Passivo externo é o estoque de capitais externos, em suas várias modalidades, dentro de um país.

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câmbio fixo foi a Argentina: chegou a incluir na Constituição a paridade de um peso para um dólar. O Brasil adotou o mecanismo do câmbio semifixo.4

O regime de câmbio flutuante passou a ser adotado largamente entre o final da década de 1990 e o começo da de 2000 na maioria dos países, depois do colapso do câmbio fixo que se verificou nas várias crises financeiras ocorridas desde a crise mexicana de 1994-1995. Seriam as forças de mercado - isto é, a oferta e a procura da moeda estrangeira – que definiriam a taxa de câmbio.

Segundo os defensores desse regime de câmbio, a flutuação do câmbio permitiria o ajuste da balança comercial:

• quando houvesse déficit comercial, isto significaria que estaria saindo do país mais moeda estrangeira do que entrando, ou seja, estaria diminuindo sua oferta, o que provocaria o aumento da taxa de câmbio; em outras pala-vras, estaria havendo a desvalorização da moeda nacional, o que resultaria no aumento das exportações e na diminuição das importações, reequilibran-do a balança comercial;

• quando houvesse superávit comercial, isto significaria que estaria entran-do mais moeda estrangeira do que saindo, ou seja, estaria aumentando sua oferta, o que provocaria a redução da taxa de câmbio; em outras palavras, a moeda nacional estaria se valorizando e, por conseguinte, aumentariam as importações e diminuiriam as exportações, reequilibrando a balança comer-cial.

Esse raciocínio seria correto se fossem cumpridas as seguintes condições:

• se o movimento da taxa de câmbio fosse definido apenas pela entrada e saí-da de recursos externos pela via comercial;

• se houvesse livre concorrência no mercado internacional de produtos;

• se houvesse livre concorrência no mercado internacional de câmbio.

Ocorre que nenhuma dessas três condições se cumpre atualmente:

• dados o montante e a volatilidade dos recursos especulativos que circulam em nível internacional, o nível da taxa de câmbio decorre, sobretudo, da mo-vimentação desses recursos;

• considerando as poderosas estruturas internacionais que controlam os ne-gócios de mercadorias, sobretudo de commodities, o volume negociado e os preços não dependem da concorrência, mas da ação monopolista dessas es-truturas, o que impacta seriamente a balança comercial dos países exporta-dores de produtos primários;

• considerando que alguns poucos grupos financeiros dos países centrais con-trolam o mercado de câmbio em nível internacional,5 são eles que decidem sobre o movimento de capitais nesse nível e, portanto, as taxas de câmbio pelo mundo afora.

4  Sobre o impacto da adoção desse regime na economia brasileira, ver SOUZA (2008).5  Um único fundo financeiro, o Soros Fund, quase quebrou o Banco da Inglaterra num ataque especulativo sobre sua moeda, a libra esterlina, no começo da década de 1990. É importante registrar que a crise iniciada em 2007 che-gou a ser tão profunda que até esse fundo, pertencente ao mega-especulador George Soros, quebrou.

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O problema central desse regime cambial é que os governos nacionais são seriamen-te limitados na definição de uma variável chave para o funcionamento da economia, pois do comportamento dela depende, não apenas a balança comercial, mas a atividade econômica interna, à medida que as exportações e importações incidem fortemente nessa atividade.

Em lugar de a taxa de câmbio ser utilizada como instrumento de política econômica, os donos e gestores das instituições e fundos financeiros que operam no mercado de câmbio são que a utilizam para favorecer seus ganhos em nível internacional. E, dependendo de como a utilizam, pode haver um choque direto com os interesses dos países. Vejamos duas hipóteses:

• se, em algum momento, as instituições que operam no mercado de câm-bio decidissem concentrar seus capitais em determinado país, o aumento da oferta de moeda estrangeira provocaria a diminuição da taxa de câmbio, valorizando a moeda desse país, o que ensejaria a queda das exportações e o aumento das importações, com o consequente déficit na balança comercial;6

• se, em outro momento, em face de uma crise internacional, essas mesmas instituições optassem por retirar, em grande escala, seus recursos desse país, o resultado seria o forte crescimento da demanda por moeda estrangeira e a consequente elevação da taxa de câmbio, desvalorizando a moeda do-méstica; poderia melhorar a balançar comercial, ao aumentar as exportações e diminuir as importações, mas, a depender do grau de desvalorização da moeda local e do consequente encarecimento das importações, poderia de-sencadear um processo inflacionário.

O câmbio administrado implica o risco de os gestores da política cambial se adian-tarem ou se atrasarem na correção da taxa de câmbio, impactando desfavoravelmente a balança comercial e a atividade econômica.

No entanto, sua adoção possibilita aos governos nacionais a utilização de um impor-tante instrumento de política econômica com vistas a atingir seus objetivos de política de comércio exterior e, por conseguinte, de desenvolvimento da economia interna.

Se, por exemplo, um governo traçar como objetivo estimular as exportações e coibir as importações, estabelece uma taxa de câmbio mais alta, isto é, desvaloriza a moeda nacio-nal. A China tem utilizado esse mecanismo.

Transações correntes e variáveis macroeconômicas

Examinaremos nesta seção a relação entre as contas externas de um país e o compor-tamento interno de sua economia. Para isso, cabe, inicialmente, definir o balanço de paga-mentos e suas respectivas contas.

O balanço de pagamentos de um país, também designado de contas externas, é o re-gistro contábil, por um determinado período de tempo, geralmente de um ano, do conjunto das transações econômicas entre um país e o resto do mundo – ou, dito de outro modo, entre os residentes e não residentes de um país. É composto de várias contas, também designadas de balanças:

6  Sobre o impacto do câmbio flutuante na economia brasileira, ver SOUZA (2008).

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• Balança de transações correntes:

− balança comercial: composta por exportações e importações, registra as tran-sações comerciais;

− balança de serviços: registra a remuneração de “fatores estrangeiros”, tais como capitais, navios, tecnologia etc.; essa remuneração recebe as formas de juros, lucros, dividendos, fretes, royalties, turismo etc;7

− balança de transferências unilaterais: registra as transferências internacio-nais sem contrapartida, tais como doações, remessas de migrantes.

• Balança de capitais (ou movimento de capitais);8

− movimento de capitais autônomos: é integrado pelo movimento de capitais sob as formas de investimento direto estrangeiro, empréstimos e financia-mentos e aplicações em carteira;9

− movimento de capitais compensatórios: trata-se dos recursos aportados por instituições multilaterais,10 quando as contas externas do país não fecham.

O balanço de pagamento é um conceito de fluxo, isto é, de movimento, mas re-lacionado a ele existe um conceito de estoque: as reservas cambiais. Trata-se do estoque que um país dispõe de moeda estrangeira, ouro ou obrigações de outros países. Um país que dispõe de elevado volume de reservas cambiais está mais protegido diante de turbulências financeiras internacionais que possam impactar suas contas externas.11

Os países que se inserem de forma dependente na economia mundial tendem a ser deficitários na balança de serviços. Isso porque, contando com grande passivo externo, têm que fazer remessas de juros, lucros e dividendos para o exterior.12 Se um determinado país, além disso, viesse a apresentar déficit comercial, passaria a sofrer déficit na balança de tran-sações correntes. Nestas condições, teria três alternativas:

• recorrer a recursos externos, em suas várias modalidades,13 para cobrir o déficit na conta corrente; esses capitais seriam registrados na balança de ca-pitais;

7 A nova nomenclatura adotada pelo Banco Central, por recomendação do FMI, divide a balança de serviços em balança de serviços (que inclui juros de empréstimos e financiamentos internacionais, fretes e viagens internacio-nais, royalties, aluguel de equipamentos, licenças, seguros internacionais e serviços governamentais) e rendas (que contempla lucros e dividendos de investimento direto estrangeiro, lucros e dividendos de aplicações em carteira, juros de empréstimos inter companhias, juros de títulos de dívida com renda fixa e juros de créditos de fornecedo-res). 8 A balança de capitais passou a chamar-se de conta de capital e financeira. Dentro dela, a conta de empréstimos e financiamentos passou a integrar-se em outros investimentos estrangeiros ao lado de créditos comerciais, moeda e depósitos, outros ativos e passivos e operações de regularização.9 As aplicações em carteira também são conhecidas como capitais voláteis ou especulativos.10 Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento ou Banco Mun-dial (Bird) e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).11 O Brasil, quando iniciou a crise de 1998, possuía US$ 75 bilhões de reservas e foi seriamente afetado por ela, tendo que iniciar um processo de desvalorização da moeda; quando, em 2008, começou a se agravar a crise inter-nacional iniciada em 2007, o volume de reservas era de US$ 206 bilhões e, portanto, estava em melhores condições de defender-se.12 Isso costuma ocorrer com países dependentes situados na periferia do mundo capitalista. Mas, como veremos no capítulo 10, os EUA se converteram na primeira grande potência a se tornar deficitária na sua conta de serviços. 13 Investimento direto estrangeiro, empréstimos e financiamentos e capital especulativo.

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• implementar um programa de contenção da economia, cortando gastos pú-blicos, créditos e salários, a fim de reduzir a demanda por importações e li-berar excedentes exportáveis; o objetivo seria gerar superávit comercial para cobrir o déficit da balança de serviços, isto é, para remeter juros, lucros e dividendos para servir ao passivo externo;

• adotar um programa de mudança estrutural que implique realizar a subs-tituição de importações, isto é, passar a produzir internamente o que vinha sendo importado.14

A primeira alternativa permite um fôlego imediato ao equilibrar momentaneamente as contas externas. Mas, a médio e longo prazos, implica aumentar o passivo externo e, por conseguinte, o déficit na balança de serviços, ao exigir mais remessa de juros, lucros e divi-dendos para fora. Ademais, além de transferir parte da poupança interna para o exterior, torna o país mais vulnerável diante de crises financeiras internacionais.

Esse caminho foi adotado em toda a América Latina na década de 1990 e conduziu às várias crises que a região sofreu no período.15

A segunda alternativa também foi implementada em toda a América Latina depois da crise da dívida externa inaugurada em 1982, após a moratória mexicana. Os programas adotados foram monitorados pelo FMI. A contenção econômica adotada permitiu gerar os superávits comerciais destinados a cobrir o déficit da conta de serviços.

No entanto, o resultado, do ponto de vista da atividade econômica, foi uma longa estagnação econômica, a ponto de a década de 1980 ter passado a ser conhecida como a “dé-cada perdida”.

A terceira alternativa foi adotada no Brasil duas vezes: depois de 1930, como reação à Grande Depressão, e no período 1974-1979, como reação à crise internacional inaugurada entre o final da década de 1960 e o começo da de 1970.

Na primeira vez, realizou um amplo programa de substituição de importações na área industrial, o qual possibilitou consolidar a industrialização no país. Na segunda, avan-çou significativamente a industrialização pesada, ao internalizar parcela expressiva da pro-dução de máquinas, equipamentos, bens intermediários, insumos básicos (SOUZA, 2008).

Uma outra forma de perceber o significado das contas externas é relacionando-as com as principais contas nacionais. Para isso, vamos examinar a relação da balança de tran-sações correntes com as principais variáveis macroeconômicas, tais como a Absorção Inter-na (AI), o Produto Interno Bruto (PIB), o Produto Nacional Bruto (PNB) e a Renda Nacional (RN), integrantes das contas nacionais.

A Absorção Interna é a expressão monetária da parcela da produção interna que é consumida e investida no país por residentes domésticos.

A Absorção Interna é assim composta:

AI = C + I + G, em que

C é o consumo total de todas as famílias do país

14 Houve países que, diante de uma forte crise das contas externas, além do programa de substituição de impor-tações, adotou medidas para conter a drenagem de recursos para o exterior. 15 A mais forte se verificou na Argentina no começo da década de 2000, quando o país amargou um verdadeiro caos financeiro.

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I é o investimento total de todas as empresas do paísG é o gasto total do governo em custeio e investimento

O PIB é a expressão monetária do somatório de todos os bens e serviços finais pro-duzidos internamente num país em determinado período de tempo, seja por nacio-nais ou estrangeiros.

Sua composição básica é:

PIB = AI + (X – M), em queX é o valor total das exportaçõesM é o valor total das importações

Assim, o PIB de um país é igual à Absorção Interna mais o saldo da balança comer-cial. Ou seja, acrescenta-se à AI parcela da produção interna que é exportada e subtrai-se a parte do consumo interno que é importada. Isso significa que, se o saldo comercial for posi-tivo, o PIB será maior do que a Absorção Interna; se for negativo, o PIB será menor.

O PNB expressa monetariamente o somatório, em determinado período, da pro-dução de todos os bens e serviços pertencentes a residentes no país, sejam ou não produzidos internamente.

O PNB é igual ao PIB mais as Rendas Líquidas Recebidas do Exterior (RLRE), ou seja:

PNB = PIB + RLRE

As RLRE são o resultado líquido das remessas e recebimentos da remuneração de fatores estrangeiros (contabilizados na balança de serviços) e das transferências unilaterais.

Isso significa que:

• se as RLRE forem negativas, o PNB será menor do que o PIB;

• se as RLRE forem positivas, o PNB será maior do que o PIB.

Assim, um país que esteja na primeira situação – ou seja, em que o PNB é menor do que PIB ou, dito de outra forma, em que o valor dos bens e serviços pertencentes a nacionais é menor do que foi produzido internamente – está transferindo para o exterior parte da ren-da produzida por ele.

Encontram-se nessa situação os países que contam com um passivo externo líquido, situação que costuma caracterizar os países da periferia que se inserem de forma dependen-te na economia mundial.16

16  Como veremos no capítulo 10, os EUA se converterem na primeira potência a ter um passivo externo líquido e, portanto, a ter um PNB menor do que o PIB.

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1Se se descontam do PNB todos os investimentos feitos para repor a depreciação do capital fixo investido, chega-se ao Produto Nacional Líquido (PNL), que é igual à Renda Nacional (RN). Dividindo a Renda Nacional pelo número de habitantes do país (H), atinge-se a renda per capita (RPC).

Assim:

RPC = RN/H

A renda per capita é um indicador do nível de desenvolvimento de um país. Países com RPC elevada são considerados desenvolvidos; ao contrário, países com RPC baixa são classificados como pobres.

No entanto, para medir o grau de desenvolvimento de um país, não basta saber sua renda per capita. Celso Furtado inclui entre as medidas do desenvolvimento o nível de distribuição de renda. Para ele, se a renda per capita de um país for elevada, mas o conjunto da renda nacional for altamente concentrado, não se pode afirmar que esse país seja desen-volvido (FURTADO, 1965).

Questionário

1. Defina termos de intercâmbio e mostre por que, na análise de Raúl Prebisch, eles tendem a se deteriorar na relação entre países de base agrícola e países industriais.

2. Defina taxa de câmbio e apresente os vários regimes cambiais, indicando as van-tagens e desvantagens de cada um deles.

3. O que é balanço de pagamentos? Indique e descreva cada uma das suas contas.

4. Quais as alternativas que podem ser adotadas por um país que conte com um balanço de pagamentos deficitário?

5. Mostre a diferença entre PIB e PNB, indicando as consequências de um PNB maior que o PIB.

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Referências bibliográficas

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FURTADO, C. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. 3 ed. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1965.

____________. Formação econômica do Brasil. 11 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.

HAMILTON, A. Relatório sobre as manufaturas. Apresentação de Barbosa Lima Sobrinho. Rio de Janeiro: Sol. Iberamerica, 1995.

LIST, G. F. Sistema nacional de economia política. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Economistas.)

LIST, G. F. Sistema nacional de economia política. 2 ed. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1986. (Os Economistas.)

PREBISCH, R. Dinâmica do desenvolvimento latino-americano. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1964.

RICARDO, D. Princípios de economia política e de tributação. Trad. Maria Adelaide Ferreira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1975.

SMITH, A. Riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (O Economistas.)

SOUZA, N. A. de. Economia brasileira contemporânea: de Getúlio a Lula. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2008.

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2 Liberalismo e protecionismo na formação da economia mundial

Para entender a economia mundial a partir da Grande Depressão de 1929, é impres-cindível a compreensão do processo de formação dessa economia, tema que é objeto do segundo capítulo deste livro.

Neste capítulo, abordam-se teorias que, ao serem implementadas no século XIX, tiveram grande importância na conformação inicial da economia mundial.

Examinam-se aqui as teorias do comércio internacional elaboradas entre o final do século XVIII e o começo do século XIX: as teorias do livre comércio e as protecionistas.1

Liberalismo econômico e livre comércio

O pensamento econômico liberal ou, dito de outra forma, o liberalismo econômico surgiu em meados do século XVIII a partir da crítica a dois aspectos que limitavam a liber-dade de comércio:

• as sobrevivências feudais, tais como a existência de monopólios, que impli-cavam a criação de obstáculos ao livre comércio e, por conseguinte, à livre concorrência dentro das fronteiras de cada país;

• a prática do protecionismo nas relações internacionais de comércio, que cria-va obstáculos ao livre comércio entre os países.

O primeiro aspecto do liberalismo econômico clássico, que criticava as reminiscên-cias feudais internas, cumpriu um papel importante no desenvolvimento do novo sistema econômico – o capitalismo – que estava nascendo, à medida que justificava a derrubada de barreiras internas ao livre desenvolvimento das relações mercantis, condição indispensável à expansão da nova economia.

Seria impossível a expansão capitalista sem que houvesse liberdade de produção e comercialização, que os franceses sintetizaram nas expressões laissez-faire, laissez-passez, isto é, deixa fazer, deixa passar – deixa produzir, deixa circular. No feudalismo, o feudo rural monopolizava a produção primária, as corporações de ofício monopolizavam a produção de manufaturas e as companhias de comércio monopolizavam o comércio exterior.2 Teria que acabar com os monopólios feudais para o capitalismo vicejar. 1  No sítio www.EditoraAtlas.com.br, consta um texto teórico, intitulado Elementos de economia internacional, que contribui para uma melhor compreensão da análise da economia mundial realizada neste livro. 2  As mais conhecidas eram a Companhia das Índias Orientais e a Companhia das Índias Ocidentais.

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2Mas o que nos interessa aqui, do ponto da vista de Economia Internacional, é o se-gundo aspecto da crítica feita pelo pensamento econômico liberal – o protecionismo que criava obstáculo ao livre comércio internacional. A prática do protecionismo na época tinha como fundamento a doutrina econômica que predominou do século XV ao XVIII e que foi a responsável pela primeira formulação de uma teoria do co-mércio exterior. Trata-se do mercantilismo.

Essa doutrina surgiu numa época em que o feudalismo estava transitando para o capitalismo e em que estavam se formando os estados nacionais europeus.3 Atingiu o apo-geu na época das grandes navegações, após o descobrimento do caminho marítimo para as Índias e da América. Colocava como centro da sua concepção a defesa do interesse nacional, pois o objetivo era formar e desenvolver a nação.

Assim, “a doutrina mercantilista era altamente nacionalista ao priorizar o bem-estar do próprio país, ao mesmo tempo em que favorecia a regulação e o planejamento da ativi-dade econômica como meios eficientes de atingir os objetivos estabelecidos” (BAUMANN et al., 2004: 10).

Um dos principais formuladores do ideário mercantilista foi Jean-Baptiste Colbert, que era o responsável pelas finanças francesas durante o reinado de Luiz XIV. Para os au-tores mercantilistas, a riqueza de uma nação seria constituída por sua população e pelo estoque de metais preciosos (ouro e prata) de que dispusesse – sobretudo este último. Isso porque o acúmulo de metais preciosos aumentaria o poder de compra de um país.

Por isso, quanto mais uma nação acumulasse metais preciosos, mais próspera ela seria. E o caminho para acumular essa riqueza seria o comércio exterior. Como os pagamen-tos internacionais eram feitos em ouro ou prata, uma nação que obtivesse superávit na sua balança comercial com o exterior recebia a diferença nesses metais preciosos. O objetivo bá-sico, então, para poder acumular riqueza, seria obter superávit comercial. Daí a necessidade de planejamento estatal como forma de promover as exportações.

Mas não bastava isso. Os mercantilistas davam mais ênfase à limitação das impor-tações, pois o Estado nacional teria mais condição de regular as importações do que garantir as exportações. E assim nasceu a primeira formulação da doutrina protecionista. Segundo os mercantilistas, ao Estado nacional cabia criar uma série de mecanismos – indo até a proibição – para coibir as importações.

Observa-se, assim, que o objetivo central dos mercantilistas, ao elaborar sua doutri-na protecionista, não era proteger a atividade econômica interna de produtos estrangeiros – ainda que também o fosse –, mas criar as condições para a obtenção dos superávits comer-ciais necessários ao acúmulo de metais preciosos, isto é, de poder de compra, de riqueza.

Um dos primeiros críticos do pensamento mercantilista foi o inglês David Hume. Em 1752, em seu Political Discurses, postulou a ideia de que o acúmulo indefinido de ouro poderia afetar a competitividade do país em nível internacional. Isso porque, segundo ele, esse acúmulo de ouro – que era o dinheiro da época – implicava o aumento da oferta de di-nheiro e, por conseguinte, dos preços, comprometendo “a competitividade das exportações do país superavitário, reduzindo sua possibilidade de continuar gerando excedente comer-cial” (BAUMANN et al., 2004: 11).

3  Antes, os povos europeus estavam isolados em feudos, pequenos reinos ou até pequenas repúblicas (cidades-estado), como ocorria em algumas regiões da península itálica.

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Foi a partir daí que o fundador da Economia Política, Adam Smith, elaborou sua teoria do livre comércio, em seu livro clássico Riqueza das nações, publicado em 1776, na Inglaterra. O objetivo do livro foi explicitado em seu subtítulo: “investigação sobre sua natureza e suas causas [da riqueza das nações]”.

Quando Smith escreveu seu livro, as relações capitalistas já predominavam na In-glaterra. Então, ele queria desvendar como se produz riqueza numa economia capitalista.

Para Smith, a riqueza seria constituída, não pelo estoque de metais preciosos, como pensavam os mercantilistas, mas pelo valor de troca de todo o manancial de mercadorias produzidas e colocadas à disposição da sociedade: “Por vantagem ou ganho entendo não o aumento da quantidade de ouro e prata, mas o aumento do valor de troca da produção anual da terra e da mão de obra do país, ou seja, o aumento da renda anual de seus habitantes” (SMITH, 1983: 405).

A riqueza, portanto, não seria medida pela quantidade de dinheiro ou metais pre-ciosos, mas pelo que o dinheiro seria capaz de comprar.

A questão passou a ser então: como produzir e como aumentar essa riqueza?

Segundo o pensador, uma nação teria tanto mais condição de aumentar sua riqueza quanto maior fosse a quantidade de trabalho disponível e quanto maior fosse a divisão do trabalho. Isso porque a divisão do trabalho, ao possibilitar maior especialização, aumenta-ria sua produtividade (SMITH, 1983: cap. 1).

Ao mesmo tempo em que definia a riqueza de forma diferente da definição dos mercantilistas, o fundador da Economia Política, ao dedicar-se à questão do comércio exte-rior, concentrou-se, inicialmente, na crítica do protecionismo mercantilista que vinha sendo praticado na Inglaterra.

Constatou que “a variedade de mercadorias cuja importação está proibida na Grã-Bretanha, de maneira absoluta ou em certas circunstâncias, supera de muito o que facilmen-te supõem os que não estão bem familiarizados com as leis alfandegárias” (SMITH, 1983: 377).

Essa proteção assumia três formas: proibições de importação, tarifas alfandegárias e subsídios à produção interna. Além disso, prejudicava, principalmente, os produtos france-ses – precisamente por que a França era, na época, o país com maior capacidade de competir com a Inglaterra (SMITH, 1983: 383-384).

Criticando o protecionismo, propugnou que “talvez não seja igualmente evidente que tal monopólio tende a aumentar a atividade geral da sociedade ou a dar-lhe a direção mais vantajosa” (SMITH, 1983: 377).

A partir daí, formulou sua teoria do comércio exterior. Para isso, estendeu para a economia internacional o princípio que defendia nas relações econômicas internas: o de que a divisão do trabalho, ao aumentar a produtividade do trabalho, ensejaria o aumento da riqueza.

Sinteticamente, sua formulação é a seguinte:

Se cada país se especializar naquelas atividades econômicas em que for mais efi-ciente e se, além disso, houver livre comércio entre os vários países, todos sairão ganhando, isto é, todos ficarão mais ricos.

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Nas palavras do próprio Smith: “o comércio que, sem violência ou coação, é efetu-ado com naturalidade e regularidade entre dois lugares, sempre traz vantagem para os dois lados, ainda que essa vantagem não seja sempre igual para ambos” (SMITH, 1983: 405).

É possível, partindo da teoria do valor-trabalho postulada pelo autor, apresentar uma formulação matemática da sua teoria do livre comércio. Para facilitar o raciocínio, con-sideremos que existem apenas dois produtos (tecido e vinho) e dois países (Inglaterra e Portugal). Se apresentarmos o “custo” de cada produto em termos de horas de trabalho4 utilizadas para produzi-lo, a situação desses dois países em relação aos dois produtos pode aparecer conforme exibido na tabela seguinte:

Tabela 2.1 Inglaterra e Portugal: valor da produção por unidade de produto

Países Vinho (horas de trabalho) Tecido (horas de trabalho)Portugal 100 110Inglaterra 110 100

Os dados apresentados indicam que Portugal gasta menos na produção de uma unidade de vinho do que a Inglaterra (100 contra 110 horas de trabalho). Por outro lado, a Inglaterra gasta menos do que Portugal na produção de tecidos (também 100 contra 110 horas de trabalho).

Digamos que não haja comércio entre os dois países e que cada um deles produza e consuma uma unidade de cada produto. Neste caso, cada país gastaria 210 horas de traba-lho.

Agora, suponhamos que haja livre comércio entre eles e que cada um se especialize naquilo que produz com mais eficiência, isto é, com menor custo; além disso, cada um se-guiria consumindo uma unidade de cada produto. Neste caso:

• Portugal produziria duas unidades de vinho: uma para consumo próprio e outra para trocar com uma unidade de tecido que adquiriria da Inglaterra;

• por outro lado, a Inglaterra produziria duas unidades de tecido: uma para consumo próprio e outra para trocar por uma unidade de vinho a ser com-prada de Portugal.

Resultado: Portugal gastaria 200 horas de trabalho (2 unidades de vinho vezes 100 horas de trabalho) e a Inglaterra também gastaria 200 horas (2 unidades de tecido vezes 100 horas de trabalho). Assim, consumindo a mesma coisa que antes, os dois países, ao inter-cambiarem entre si, economizariam cada um 10 horas de trabalho – que poderiam ser utili-zadas para incrementar a produção de cada bem, tornando cada país “mais rico”.

Essa teoria smithiana foi designada de teoria das vantagens absolutas porque com-para a diferença absoluta de custo dos produtos entre os países.

O principal discípulo de Smith, David Ricardo, sofisticou um pouco mais essa teo-ria, em sua principal obra, Princípios de economia política e de tributação, que lançou em 1817. Segundo ele, ainda que uma economia fosse mais eficiente em todos os produtos, o comér-cio internacional seria possível e vantajoso para todos.

4  A soma das horas de trabalho utilizadas para produzir o produto mais o que se gastou de trabalho nas maté-rias-primas e na parte das máquinas e equipamentos desgastada nessa produção.

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Na sua opinião, “num sistema de comércio perfeitamente livre, cada país consagra o seu capital e trabalho às atividades que lhe são mais rendosas. Esta procura de vantagem individual coaduna-se admiravelmente com o bem-estar universal” (RICARDO, 1975: 149).

Da mesma forma que Smith, sua defesa intransigente do livre comércio parte de uma crítica ao protecionismo: “Os prêmios à exportação ou à importação e os novos impostos sobre os produtos, atuando muitas vezes direta e outras vezes indireta-mente, perturbam o desenvolvimento natural das trocas” (RICARDO, 1975: 158).

O exemplo que Ricardo utiliza para demonstrar sua tese encontra-se na tabela a seguir:

Tabela 2.2 Inglaterra e Portugal: valor absoluto e relativo dos produtos

Países Vinho(trabalhadores por ano)

Tecido(trabalhadores por ano)

Preçosrelativos

Portugal 80 90 80/90 = 0,89Inglaterra 120 100 120/100 = 1,2

Em lugar de adotar como medida do valor e, portanto, dos custos as horas de tra-balho, Ricardo usa a quantidade de trabalhadores por produção anual de cada produto. No caso de Portugal, seriam necessários 80 trabalhadores para produzir o vinho e 90 para o tecido; na Inglaterra, 120 trabalhadores para vinho e 100 para tecido.

Se esse exemplo fosse aplicado à versão mais simples de Smith, Portugal, com menor custo nos dois produtos (vinho: 80 homens contra 120; tecido: 90 contra 100), teria vantagem absoluta em ambos e, assim, não haveria possibilidade de intercâmbio entre os dois países.

No entanto, segundo Ricardo, o que determinaria as relações comerciais interna-cionais seria a vantagem relativa ou comparativa, e não a vantagem absoluta. Neste caso:

• se a Inglaterra concordasse em trocar com Portugal o tecido em que usou 100 trabalhadores na produção pelo vinho em que este último usou 80 trabalhadores, seria vantajoso para Portugal, porque evitaria de ter que usar 90 trabalhadores para produzir o próprio tecido; assim, ele poderia produzir uma tonelada para o próprio consumo e outra para trocar com o tecido inglês;

• por outro lado, a Inglaterra, mesmo tendo usado 100 trabalhadores para produzir o tecido, poderia ter interesse em trocar pelo vinho português que usou apenas 80 trabalhadores, porque, se fosse produzir o próprio vi-nho, teria que usar 120 trabalhadores; assim, produziria uma tonelada de tecido para o próprio consumo e outra para trocar com o vinho português.

Havendo a troca, Portugal economizaria 10 trabalhadores e a Inglaterra 20, poden-do utilizá-los para aumentar a produção. Isso porque o primeiro, em lugar de usar 170 trabalhadores para produzir vinho e tecido, utilizaria apenas 160 para produzir o dobro do vinho; enquanto isso, a segunda, em lugar de usar 220 homens para produzir os dois produ-tos, usaria apenas 200 para produzir o dobro do tecido que necessitaria.

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Isso pode ser explicado de outro modo. Observando-se a Tabela 1.2, percebe-se que, em Portugal, o preço relativo do vinho em termos de tecido é de 0,89, enquanto na Inglaterra é de 1,2. Assim:

Se a Inglaterra pode importar uma unidade de vinho a um custo inferior a 1,2 unidade de tecidos, terá ganho com o comércio. Se Portugal pode importar mais do que 0,89 unidade de tecidos em troca de uma unidade de vinho, também será beneficiado. Desse modo, se uma unidade de vinho pode ser exportada de Portu-gal para a Inglaterra em troca de algo entre 0,89 e 1,2 unidade de tecidos, ambos os países serão beneficiados pelo comércio internacional (BAUMANN et al., 2004: 14).

Essa teoria é conhecida como a das vantagens comparativas porque, em lugar de considerar como critério para a possibilidade de troca entre países o valor ou custo absolu-to de cada produto, comparando um país com outro, considera, inicialmente, a relação de troca, isto é, o preço relativo entre os produtos dentro de um mesmo país para, só então, comparar com o outro país.

Segundo Ricardo, essa possibilidade de trocar mais trabalho por menos trabalho existiria no comércio internacional, e não no comércio interno, porque o capital teria mais dificuldade de “circular de um país para outro à procura duma atividade mais rendosa”, enquanto haveria facilidade de transitar “de uma província para outra dentro do mesmo país” (RICARDO, 1975: 151).

Protecionismo e Estado na economia

Na mesma época em que Smith formulava sua teoria do livre comércio, o Primeiro-ministro de Dom José I, Rei de Portugal, Sebastião José de Carvalho e Melo, o conhecido Marquês de Pombal,5 examinando o tratado de preferência tarifária entre Portugal e Ingla-terra, o Tratado de Methuen, firmado em 1703, chegava a conclusão contrária quanto aos benefícios universais dessa teoria.

O funcionamento de uma espécie de zona de livre comércio entre os dois países teria beneficiado a Inglaterra e prejudicado Portugal. Isso porque:

• a indústria nascente neste último teria sido destruída pela concorrência inglesa, que possuía uma indústria mais madura e mais eficiente;

• por isso, Portugal teria se transformado numa espécie de entreposto co-mercial dos produtos industriais ingleses;

• a balança comercial portuguesa se teria tornado deficitária;

• Portugal, em consequência desse déficit, teria transferido para a Inglaterra o ouro que recebia do Brasil e, além disso, se teria endividado com aquele país.

A causa dessa deterioração econômica de Portugal teria sido a prática do livre co-mércio com uma nação mais desenvolvida economicamente e, portanto, com maior capaci-dade competitiva. 5  O Marquês de Pombal foi Primeiro-ministro durante todo o reinado de Dom José I, de 1750 a 1777.

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Pouco depois, esse debate seria retomado na jovem nação estadunidense – que coin-cidentemente proclamou sua independência no ano em que Smith lançou seu livro: 1776.

Foi nomeado como o Secretário do Tesouro6 do primeiro governo dos EUA, presidi-do por George Washington, o jovem Alexander Hamilton, que lutara na Guerra de Indepen-dência como ajudante-de-ordens de Washington. Na sua nova função, apresentou à Câmara dos Deputados do país, em 5 de dezembro de 1791, um documento intitulado Relatório sobre as manufaturas, cujo objetivo era traçar os rumos econômicos do país que acabava de nascer.

Hamilton partiu da ideia básica de Smith de que a riqueza de uma nação seria cons-tituída das mercadorias que pudesse produzir, e que essa produção – e, portanto, a riqueza – seria tanto maior quanto maior fosse a disponibilidade de força de trabalho e a divisão do trabalho. Avançando a divisão do trabalho, cresceriam a produtividade e a riqueza. No entanto, ele contestava a ideia de que, nas nações agrícolas, esse crescimento da riqueza po-deria ocorrer por meio do livre comércio.

Dedicou seu relatório “ao assunto das manufaturas, particularmente, aos meios para fomentar as que tendam a tornar os Estados Unidos independentes de outras nações em seu abastecimento militar e de bens essenciais” (HAMILTON, 1995: 31). Assim, o objetivo cen-tral de seu programa econômico seria promover a industrialização do país.

Em sua análise, ele descreve as desvantagens de ser uma nação meramente agrícola e as vantagens da industrialização.

Entre as desvantagens de ser uma nação agrícola, cita as seguintes:

• “as regras restritivas [protecionismo] que, nos mercados estrangeiros, limi-tam a venda dos crescentes excedentes de nossos produtos agrícolas”(Ibidem: 32);

• o empenho das nações industrializadas “em não permitir que as nações agrícolas gozem das suas [vantagens naturais], sacrificando os interesses de um intercâmbio mutuamente benéfico à vã pretensão de vender tudo e não comprar nada” (Ibidem: 54);

• “a demanda externa para os produtos dos países agrícolas [seria], em grande medida, mais casual e ocasional do que segura ou constante” (Ibidem: 54);

• “a constante e crescente necessidade estadunidense de bens europeus e a parcial e ocasional demanda dos seus, em troca, os expõe a uma situação de empobrecimento” (Ibidem: 58-9);

• a existência de produção agrícola nos países industrializados e a inexistência de produção industrial nos países agrícolas fariam com que estes últimos sofressem “perdas por dois lados, o que, seguramente, conduzirá a uma ba-lança comercial desfavorável” (Ibidem: 90);

• a inexistência da indústria num país comprometeria sua segurança externa, à medida que implicaria a falta do material indispensável à defesa, isto é, a “incapacidade de abastecer-se a si próprios” (Ibidem: 89).

Por outro lado, Hamilton indicou quais seriam as vantagens da industrialização:

• a divisão do trabalho – a indústria ensejaria maior divisão do trabalho, ao permitir o nascimento de novos setores da economia, o que possibilitaria maior destreza do trabalhador e economia de tempo, aumentando a produ-tividade;

6  Cargo equivalente ao do ministro da Fazenda.

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• a ampliação do uso de maquinaria – as atividades manufatureiras seriam mais suscetíveis ao uso de maquinaria que as atividades agrícolas, e essa aplicação de máquinas também aumentaria a produtividade;

• a geração de mais emprego – ao ensejar a criação de novos setores, a indus-trialização geraria empregos para “classes da sociedade que, comumente, não se dedicam a essas atividades”;

• o fomento à imigração – no caso de países pouco habitados, como o eram na época os Estados Unidos, a industrialização poderia fomentar a imigração e, por conseguinte, o povoamento;

• o desenvolvimento dos talentos – ao diversificar, em face das inúmeras ati-vidades que cria, o uso dos talentos, a indústria possibilitaria o desenvolvi-mento da criatividade dos indivíduos e seu uso em benefício da sociedade;

• a abertura de campo mais amplo e variado para as empresas – a industriali-zação, ao diversificar mais a economia, expandiria o campo para o desenvol-vimento do “espírito de empresa”;

• a garantia e criação de maior demanda para os produtos agrícolas – em lugar de prejudicar a agricultura, como professavam os que contraditavam a in-dustrialização, esta, ao contrário, poderia beneficiá-la, ao servir de demanda para seus produtos (Ibidem: 46-54).

Hamilton sintetizou essas vantagens na seguinte observação:

Não somente a riqueza, mas a independência e a segurança de um país parecem es-tar intimamente ligadas à prosperidade das manufaturas. Toda nação que pretenda atingir estes grandes objetivos deve procurar possuir o essencial para o abastecimento nacional. Aí se incluem os meios de sustentação, habitação, vestimenta e defesa (Ibidem: 88).

Propugnava o pensador estadunidense que, “para produzir-se o quanto antes as mudanças desejáveis [para garantir a industrialização], são necessários, pois, o es-tímulo e o patrocínio do governo” (Ibidem: 61). Isto porque, sem o Estado, “estas mudanças tendem a ocorrer mais tarde do que o que conviria ao interesse tanto da sociedade como do indivíduo” (Ibidem: 61).

O maior obstáculo à industrialização numa nação agrícola consistiria “das subven-ções, recompensas e demais auxílios que, em muitos casos, são dados às indústrias das nações onde já estão estabelecidas” (Ibidem: 62). Ou seja, era o protecionismo das nações industriais.

Portanto, a ação do Estado com vistas à industrialização significaria, de um lado, a adoção de medidas de proteção à indústria nascente e, de outro, a intervenção interna visan-do à criação de condições que favorecessem a industrialização. O programa proposto por Hamilton constava das seguintes medidas:

1. tarifas alfandegárias protecionistas, quer dizer, tarifas sobre os artigos estran-geiros rivais dos produtos nacionais que se pretendem fomentar;

2. proibição de artigos rivais ou tarifas equivalentes a uma proibição;

3. veto à exportação de matérias-primas necessárias às manufaturas;

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4. subsídios pecuniários à produção local;

5. prêmios para recompensar “alguma superioridade ou excelência especial, al-guma aptidão ou esforço extraordinários”;

6. isenção tarifária para a importação de matérias-primas necessárias às manu-faturas locais;

7. reintegração das tarifas cobradas sobre as matérias-primas para as manufa-turas;

8. fomento a novos inventos e descobertas no próprio país e introdução dos que sejam feitos em outros países, particularmente os referentes à maquinaria;

9. normas prudentes para a inspeção de bens manufaturados a fim de garantir a qualidade;

10. agilização das remessas monetárias de um lugar a outro do país por meio de um sistema bancário e creditício ágil e generalizado em nível nacional;

11. agilização do transporte de mercadorias (Ibidem: 96-109).

Duas conclusões importantes se impõem a partir do pensamento de Hamilton:

• o livre comércio com as nações industriais inviabilizaria a industrialização das nações agrícolas, sendo necessária a adoção de medidas protecionistas para que essas nações pudessem seguir a senda industrial;

• enquanto o protecionismo mercantilista, ainda que pudesse favorecer a industrialização, tinha como objetivo básico a obtenção dos superávits co-merciais necessários à acumulação de metais preciosos – que condensaria a riqueza, para eles –, o protecionismo de Hamilton tinha como seu princi-pal objetivo favorecer a industrialização e, dessa forma, aumentar a produ-tividade e a produção de mercadorias – que condensaria a riqueza, na sua acepção.

Os opositores do protecionismo costumavam alegar, entre outros argumentos, que essa prática provocaria o aumento dos preços internos. Contra essa alegação, Hamilton ar-gumentou que, “do ponto de vista nacional, o aumento temporário do preço será sempre compensado pela sua redução permanente” (Ibidem: 84), já que o desenvolvimento indus-trial interno, ao possibilitar o aumento da produtividade, ensejaria uma futura queda dos preços.

O alemão Georg Friedrich List foi o principal continuador da obra de Hamilton.7 Vi-veu inicialmente numa Alemanha ainda dividida em principados, ducados, cidades-livres e pequenas nações, como a Prússia e a Áustria. Foi não apenas um dos principais teóricos do protecionismo, como também um dos principais ativistas dessa causa.

Chegou a ser eleito deputado para a Assembleia de Wurttenberg, mas, em face de sua firme campanha em favor de medidas protecionistas e de um estado alemão unificado, teve o seu mandato cassado e foi condenado à prisão.

7  Dentro dos EUA, o imigrante irlandês Mathew Carey e seu filho Henry Carey também escreveram várias obras sobre o chamado Sistema Nacional de Economia Política, que tinha como eixo a questão do protecionismo.

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Decidiu então exilar-se na Inglaterra, França e Suíça, mas terminou partindo em 1925 para os EUA. Antes disso, já havia tido as primeiras ideias de uma “economia políti-ca nacional” – que contrapunha ao livre comércio da “economia política cosmopolita” de Adam Smith – e do zollverein, que seria uma união aduaneira de uma Alemanha unificada.

Nos EUA, teve um contato mais estreito com a teoria protecionista de Hamilton e de seus seguidores, Mathew e Henry Carey. Foi com base nessa experiência que escreveu sua principal obra, intitulada Sistema nacional de economia política, publicada em maio de 1841.

Ele definiu a essência de sua teoria da seguinte forma: “diria que a característica básica deste meu sistema reside na NACIONALIDADE. Toda a minha estrutura está basea-da na natureza da nacionalidade, a qual é o interesse intermediário entre o individualismo e a humanidade inteira” (LIST, 1983: 5).

De maneira mais contundente que Hamilton, List elaborou seu sistema teórico a partir da crítica ao livre comércio:

As tentativas que têm sido feitas por nações individuais no sentido de intro-duzir a liberdade de comércio di’ante de uma nação que é predominante na indústria, riqueza e poder, e que se caracteriza por sistemas alfandegários ex-clusivos – como fez Portugal em 1703, a França em 1786, a América do Norte em 1786 e 1816, a Rússia de 1815 até 1821, e como a Alemanha fez durante séculos – mostram-nos que dessa maneira se sacrifica a prosperidade nas na-ções individuais, sem que haja benefícios para a humanidade em geral, ser-vindo exclusivamente para o enriquecimento da nação dominante do ponto de vista industrial e comercial (Ibidem: 85).

O sistema teórico de List, no que se refere ao protecionismo, implicava a existência de três estágios no processo de desenvolvimento de uma nação:

no primeiro estágio, adotando comércio livre com nações mais adiantadas como meio de saírem elas mesmas de um estado de barbárie e para fazerem progresso na agricultura; no segundo estágio, promovendo o crescimento das manufaturas, da pesca, da navegação e do comércio exterior, adotando restrições ao comércio; e no último estágio, após atingirem o mais alto grau de riqueza e poder, retornan-do gradualmente ao princípio do comércio livre e da concorrência sem restrições, tanto no mercado interno como no mercado internacional, de maneira que seus agricultores, comerciantes e manufatores possam ser preservados da indolência e estimulados a conservar a supremacia que adquiriram (Ibidem: 86).

Assim, para List, no estágio da industrialização, a nação deverá adotar o programa protecionista, abdicando do mesmo depois que conquistar uma produtividade compatível com o padrão de seus concorrentes internacionais. Assim, para ele, “as medidas protecio-nistas só se justificam com o intuito de fomentar e proteger a força manufatureira interna” (Ibidem: 207).

Como veremos ao longo deste livro, a realidade posterior revelou que, mesmo de-pois de haver atingido “o mais alto grau de riqueza e poder”, as nações contemporâneas não abdicaram do protecionismo. Ao contrário, o reforçaram.

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2Como garantir a proteção da indústria infante? Diz List: “O protecionismo pode ser alcançado proibindo sistematicamente a importação de certos arti-gos manufaturados, impondo taxas tão altas que praticamente equivalem à proibição, ou impondo taxas mais moderadas” (Ibidem: 207).

List, mais do que Hamilton, postulava que a transformação de uma nação agrícola em uma nação industrial exigia a ação do Estado. Para ele, “a mesma história demonstra, porém, que só se pode atingir uma atividade manufatureira perfeitamente desenvolvida, uma importante marinha mercante e um comércio exterior em larga escala, mediante a in-tervenção do poder do Estado” (LIST, 1986: 125).

Questionário

1. O que era a riqueza para os mercantilistas? Quais os mecanismos por eles propostos para uma nação obter e acumular riqueza?

2. Exponha a teoria do livre comércio baseada nas vantagens absolutas, apre-sentando exemplos numéricos.

3. Exponha a teoria do livre comércio baseada nas vantagens comparativas, apresentando exemplos numéricos.

4. Sintetize a crítica feita pelo Marquês de Pombal ao acordo de preferência ta-rifária (Acordo de Methuen) entre Portugal e Inglaterra.

5. Quais as desvantagens de uma nação agrícola, na visão de Alexander Hamil-ton?

6. Quais as vantagens de uma nação industrial, na visão de Alexander Hamil-ton?

7. Exponha e comente o programa proposto por Hamilton para viabilizar a in-dustrialização.

8. Apresente os estágios econômicos conforme indicados por Friedrich List, bem como as medidas por eles propostas para garantir a industrialização.

9. Mostre a principal diferença quanto aos objetivos entre o protecionismo mer-cantilista e o protecionismo de Hamilton e List.

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Referências bibliográficas

BAUMANN, R.; CANUTO, O.; GONÇALVES, R. Economia internacional; teoria e experiên-cia brasileira. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

FURTADO, C. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. 3 ed. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1965.

____________. Formação econômica do Brasil. 11 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.

HAMILTON, A. Relatório sobre as manufaturas. Apresentação de Barbosa Lima Sobrinho. Rio de Janeiro: Sol. Iberamerica, 1995.

LIST, G. F. Sistema nacional de economia política. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Economistas.)

____________. Sistema nacional de economia política. 2 ed. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1986 (Os Economistas).

PREBISCH, R. Dinâmica do desenvolvimento latino-americano. Rio de Janeiro: Fundo de Cultu-ra, 1964.

RICARDO, D. Princípios de economia política e de tributação. Trad. Maria Adelaide Ferreira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1975.

SMITH, A. Riqueza das nações – investigação sobre sua natureza e suas causas. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Economistas.)

SOUZA, N. A. de. Economia brasileira contemporânea: de Getúlio a Lula. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2008.

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3 A onda larga e a crise estrutural

Para entender a dinâmica da economia capitalista mundial, é importante recorrer às noções de onda larga e crise estrutural.

Essa economia, desde a década de 1820, vem se desenvolvendo de forma cíclica, passando por períodos de reanimação, prosperidade e crise.

Autores como Robert Malthus, Karl Marx, Joseph Schumpeter e John M. Keynes, dentre outros, constataram que essa dinâmica cíclica seria consequência inevitável das contradições inerentes a esse tipo de economia. Segundo eles, as leis gerais de funcionamento desse sistema, ao mesmo tempo em que garantem sua expansão, também provocam crises periódicas.

A forma de desenvolvimento que o capitalismo assume em cada momento histórico condiciona o caráter e a profundidade das suas crises, bem como o papel que estas podem cumprir, quer destruindo capacidade produtiva, quer criando condições para mudanças.

Os conceitos de padrão de reprodução de capital, ciclo longo ou onda larga e crise estrutural são de grande valia para captar o que de característico existe em cada fase do de-senvolvimento capitalista, bem como a natureza de suas crises.

Entendemos por padrão de reprodução do capital a forma como a economia capita-lista se reproduz em um período e em um espaço determinados.1 Isso implica considerar os seguintes fatores:

• a forma de inserção de cada país no sistema capitalista mundial: país central, dependente ou independente;

• a ênfase no progresso das forças produtivas: processo de trabalho, meios de trabalho ou objeto de trabalho;

• as formas principais de extração de excedente econômico: aumento da jorna-da ou da produtividade do trabalho, redução do salário real;

• as relações entre os setores produtivos: se a expansão se assenta na indústria de meios de produção, na de bens de consumo popular ou na de bens sun-tuários;

1  Os economistas costumam designar de modelo econômico uma forma específica de desenvolvimento do ca-pitalismo.

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• o padrão de distribuição de renda e realização das mercadorias: se a renda é melhor distribuída ou mais concentrada, se predomina o mercado externo ou o interno, como se conforma o mercado interno;

• a forma de ação do Estado na economia: se predomina a participação ativa do Estado ou o liberalismo econômico.

A duração do padrão de reprodução não se confunde com o ciclo econômico clássi-co. Durante a vigência de um mesmo padrão de reprodução, podem ocorrer vários ciclos. O ciclo é a forma clássica como se manifesta a expansão e a crise no capi-talismo. Começa por um período de expansão, primeiro calma, depois intensa, e termina com a crise.

Porém, a forma específica que assume o ciclo depende do padrão de reprodução vigente. Isto é, os elementos gerais que estão presentes em toda a expansão econômica ca-pitalista e em toda a crise econômica têm sua forma modificada em função do padrão de reprodução. Além disso, o ciclo assume forma e caráter distintos conforme ocorra na emer-gência e expansão ou no período de declínio do padrão de reprodução.

O período de declínio do padrão de reprodução corresponde às crises estruturais do sistema. Trata-se da crise do próprio padrão de reprodução vigente e só se su-pera à custa de modificações substanciais na natureza do padrão de reprodução. Segundo Manuel Castells,

o específico de uma crise estrutural é que o processo de acumulação não pode recomeçar até que se eliminem ou contrabalancem os obstáculos. Geralmente esta solução significa que se produzirá uma transformação básica nas rela-ções entre as classes, entre as frações do capital e entre o capital e as forças produtivas (CASTELLS, 1978: 85).

Como essas modificações não ocorrem facilmente, tal crise tende a ser prolongada e a destruir mais profundamente as forças produtivas já acumuladas. No decorrer de crises como essa, o ciclo econômico normal não deixa de operar, só que com predomínio da crise sobre a reanimação econômica. É por isso que é nesses momentos que tendem a ocorrer as mudanças.

O conceito de ciclo longo ou onda larga e sua relação com o de padrão de reprodu-ção contribuem para precisar a relação entre as crises e os períodos de expansão ou declínio do padrão de reprodução.

Segundo Karl Kautsky (1978), foi o russo Alexander Parvus quem primeiro formu-lou a ideia de existência no capitalismo de um “ciclo maior”, mais longo do que ciclo indus-trial periódico. Vale a pena transcrever o trecho em que Parvus desenvolve essa ideia:

Existem momentos, nos quais o desenvolvimento da economia capitalista amadu-receu tanto em todos os terrenos – na técnica, no mercado monetário, no comércio, nas colônias – que deve verificar-se uma iminente expansão do mercado mundial, a totalidade da produção mundial é levada a uma nova base, muito mais ampla. Então se inicia um período de embate e luta (Sturm und Drung) para o capital. A mudança periódica de auge e crise não é suprimida por isso, porém o auge se de-senvolve em uma progressão maior, a crise é mais aguda, porém de menor duração. Assim se segue até que as tendências do desenvolvimento acumuladas alcançam

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seu completo desenvolvimento. Então se produz o estalido mais agudo da crise comercial, que finalmente se transforma na depressão econômica. A depressão eco-nômica está caracterizada por um retardamento no desenvolvimento da produção. Esta encurta a magnitude do auge e seu espaço, porém estende, pelo contrário, a crise comercial, que perde seu vigor. Quase se tem a impressão de que a produção já não se poderia levantar até que as potências do desenvolvimento hajam evoluído até um período de embate e luta (PARVUS, apud KAUTSKY, 1978: 227).

Kautsky assumiu essa posição e procurou demonstrar que, historicamente, a econo-mia capitalista se desenvolveu de acordo com esses “grandes períodos”. Descobriu, além disso, que, na base de cada período de expansão da onda larga (“embate e luta”), era possí-vel encontrar eventos como conquistas coloniais e intensas inovações tecnológicas. Ao con-trário, nos períodos de depressão econômica, haviam progredido as lutas por mudanças.

Em verdade, o período de “embate e luta” de uma onda larga corresponde ao pe-ríodo de emergência e expansão de um padrão de reprodução, enquanto o de depressão econômica corresponde ao de seu declínio.

Nesse sentido, a utilização do conceito de ciclo longo ou onda larga nada mais é do que a forma temporal de examinar o processo de vida e morte de um padrão de reprodução. Cada onda larga corresponderia a um distinto padrão de reprodução.

A ideia de ciclo longo foi mais tarde retomada pelo economista russo Nicolai Kon-dratiev, equivocadamente considerado o pai dessa teoria. Kondratiev assimilava os ciclos longos aos ciclos industriais periódicos, estabelecendo para aqueles a mesma regularidade econômica que caracteriza estes; isto é, ele concebia aqueles também como resultante da dinâmica interna da economia capitalista.

Na realidade, não é possível demonstrar essa regularidade interna do ciclo longo. Sua duração depende das forças impulsoras e do grau de contradição que encerra o padrão de reprodução correspondente. As forças impulsoras iniciais, conforme percebeu Kautsky, são externas à dinâmica própria da acumulação de capital, ainda que façam parte de sua lógica de expansão, como guerras, conquistas coloniais etc.

Estas são forças impulsoras iniciais à medida que, ao destruírem profundamente forças produtivas acumuladas ou estenderem o mercado mundial, propiciam uma tal ele-vação da taxa de lucro que permite a incorporação ao processo produtivo de descobertas tecnológicas realizadas no período anterior e que pode até se converter em verdadeiras re-voluções tecnológicas.

O processo de generalização da nova “onda tecnológica” corresponde ao período de expansão do novo padrão de reprodução, ao período de “embate e luta” do novo ciclo longo. A tônica desse período é o progresso geral da economia, mas não deixa de ser entre-cortado por crises, ainda que curtas. Curtas porque é muito forte, nesse período, o peso das forças compensatórias da tendência à queda da taxa de lucro e que se fazem presentes nas forças impulsoras iniciais.2

O esgotamento dessas forças impulsoras e dos efeitos “revolucionários” da “onda tecnológica” que provocaram retira o peso das forças compensatórias da tendência da taxa de lucro a cair. Assume então preponderância a tendência à substituição do homem pela máquina e do consequente crescimento mais rápido da massa de capital investido em rela-ção à massa de lucro, embutido nos avanços tecnológicos.

2  Ver no capítulo 2 a indicação da teoria da tendência a cair da taxa de lucro.

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3Inicia-se, assim, o período de declínio do padrão de reprodução, o período de de-pressão econômica do ciclo longo. A tônica geral desse período é a ocorrência de crises periódicas, é a destruição de forças produtivas, ainda que haja ligeiros perío-dos de reanimação econômica.

Estes decorrem de efêmeras melhoras na taxa de lucro, geradas pela própria crise, mas esta, enquanto não puder alterar o padrão de reprodução, não será capaz de promover a elevação da taxa de lucro a ponto de garantir um período sustentado e duradouro de expansão econômica.

O padrão de reprodução pode ser específico de um determinado país, mas, na fase da internacionalização da economia3, as características das economias hegemônicas tendem a demarcar o caráter do padrão de reprodução em nível mundial, condicionando a dinâmica de cada economia nacional.4

Assim, a onda larga que se desenvolve nas economias dependentes tem também sua dinâmica condicionada, em última instância, ainda que não mecanicamente, pela onda larga da economia mundial. Cada país dependente se condiciona a esse ciclo longo segundo sua forma de inserção no sistema capitalista mundial. Isto é assim porque as condições gerais do ciclo longo só ocorrem em nível mundial, ainda que possam iniciar-se em um determinado e importante centro do sistema capitalista.

Por tudo isso, resulta de fundamental importância, quando se investiga a crise mun-dial ou a de um país em particular, examinar em que fase se encontra e quais as caracte-rísticas da onda larga. Ainda que não haja uma determinação mecânica, essa análise pode ajudar, em grande medida, a entender melhor o período que se inaugura com a crise.

Questionário

1. Defina padrão de reprodução do capital e onda larga e mostre a relação entre es-ses dois conceitos.

2. Defina crise estrutural.

3  Ver seção capítulo 1 do livro.4  Isso não significa que não se mantenham determinadas especificidades nacionais.

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Referências Bibliográficas

CASTELLS, M. La crisis económica mundial y el capitalismo americano. Trad. José Cano Temble-que. Barcelona: Laia, 1978.

KAUTSKY, K. Teorías de las crisis. México: Siglo XXI, 1978.

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4 As primeiras tentativas de explicar a Grande Depressão

Foi a quebra da bolsa de Nova Iorque a espoleta que deflagrou o processo de crise. Essa quebra, por sua vez, foi precipitada pela elevação da taxa básica de juros a partir de agosto de 1929. Esta é uma sequência comum nos processos de deflagração de crises econô-micas:

• no auge do crescimento econômico, tende a exacerbar as pressões inflacio-nárias;

• seguindo a visão convencional,1 os bancos centrais elevam a taxa de juros com o objetivo de conter essas pressões;

• como consequência, os capitais fogem das bolsas para se beneficiar da maior rentabilidade dos títulos do Tesouro;

• e, assim, desaba o valor das ações nas bolsas.

E precisamente em 1929, a economia dos EUA havia atingido o auge de um longo período de expansão de oito anos que vinha desde 1922. Segundo Dobb,

depois de uma depressão curta de 1920 a 1921 a América iniciou aquele boom de oito anos que iria levar o volume físico de produção em 1929 a 34% acima do nível de 1922 e cerca de 65% acima do nível de 1913. Tão grande foi a taxa de construção nova que, entre 1925 e 1929, apenas a procura de máquinas-ferramentas nos Esta-dos Unidos cresceu quase 90% e aquela do equipamento de fundição quase 50% (DOBB, 1976: 404-5).

Pode-se deduzir, então, que as crises resultam diretamente do processo de expan-são. Mais precisamente, suas causas nascem e se desenvolvem precisamente no período de expansão. Isso significa dizer que, por mais que os fenômenos monetário-financeiros nos ajudem a assinalar o momento da virada do ciclo, de expansão para crise, são insuficientes para entender as causas mais profundas que engendram as crises.

1  Essa visão, que mais tarde foi conhecida como monetarista, professa que a causa da inflação seria o excesso de demanda provocado pelo excesso de moeda em circulação; daí recomenda como terapia, entre outras coisas, a elevação da taxa de juros, como instrumento para diminuir o meio circulante e, por conseguinte, conter a demanda. Contrapondo-se a essa visão, os estruturalistas cepalinos formularam para os países da América Latina a teoria de que a causa da inflação seria a insuficiência de oferta, decorrente de fatores estruturais, como a drenagem de recur-sos para o exterior, a monopolização da economia e a estrutura agrária concentrada.

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Ainda na década de 1930, houve duas tentativas, por parte de economistas dos EUA, de buscar essas “causas mais profundas”. Com base em Paul A. Baran e Paul M. Sweezy, podemos assim resumir essas tentativas:

• Hansen atribuiu a crise ao “desvanecimento das oportunidades de investi-mento”, que teria como origem, dentre outros fatores, a queda da taxa de crescimento populacional e o atingimento da fronteira econômica;

• Schumpeter, por sua vez, atribuiu a severidade da crise à coincidência dos “três tipos de ciclo econômico” que, segundo ele, haveria na economia capi-talista, além da ocorrência de vários acontecimentos históricos únicos, cujas origens estariam na I Guerra (superexpansão da agricultura, debilidade do sistema bancário e creditício, a crise financeira internacional de 1931 etc.) (BARAN; SWEEZY, 1979: 189-190).

O primeiro autor busca fatores físicos fora da dinâmica econômica para assinalar os supostos limites desta. Sua linha de raciocínio não tem fundamento, pois é evidente que o baixo crescimento populacional pode ser compensado pelo aumento da produtividade e, portanto, da renda nacional, enquanto a fronteira econômica poderia ser expandida pela exportação de mercadorias e capitais.

E foi justamente o que ocorreu no período. Segundo o Departamento de Comércio dos EUA,

embora a passagem do país, de devedor para credor, não fosse tão abrupta quanto se supõe às vezes, a rapidez com que realizou investimentos no exterior não tem paralelo na experiência de qualquer país credor maior nos tempos modernos (apud DOBB, 1976: 405).

Quanto a Schumpeter (1882: CP. VI), sua teoria básica do ciclo econômico postula que o processo de inovação tecnológica, que ele chamava de “combinações novas”, não ocorreria uniformemente no tempo, mas tenderia a aparecer “descontinuamente, em grupos ou bandos” (Ibidem: 148); essa concentração das combinações novas promoveria o boom, isto é, o auge econômico, caracterizando a primeira fase do ciclo.

Mas ao mesmo tempo prepararia o momento seguinte, o momento da “depressão”. Isso porque, ao concentrar os investimentos no tempo, pressionaria para cima a demanda e, portanto, os preços dos meios de produção e para baixo o preço dos produtos finais. O resul-tado seria a eliminação do “lucro empresarial”, o que faria com que se esgotasse “o impulso para um avanço a mais nessa direção [do boom]” (Ibidem: 153-55).

Ora, a economia capitalista é movida a lucro. Adam Smith já havia dito que não é por benevolência alguma em relação ao consumidor que o açougueiro lhe fornece a carne, mas para satisfazer seu proveito próprio. O empresário capitalista toma suas decisões de investimento ou de incorporar uma nova tecnologia em função da rentabilidade esperada. Se a taxa geral de lucro da economia estiver caindo e se o empresário espera que vá seguir caindo, ele contém seus investimentos. O contrário ocorre quando a taxa de lucro estiver subindo.

A teoria de Schumpeter, mesmo que por um caminho diferente dos de Smith, Ricar-do, Marx e Keynes, concluiu que há uma tendência à queda da taxa de lucro e, como os dois últimos, que essa tendência detona o processo de crise nas economias capitalistas.

No entanto, no caso dos “acontecimentos históricos” a que ele se refere:

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• pode-se, em princípio, excluir a crise financeira internacional de 1931; ela não poderia estar na origem da Grande Depressão, pois esta teve início no final de 1929;

• a suposta superexpansão da agricultura também não poderia ser um fator explicativo porque, como veremos adiante, o que ocorreu no período pré-crise foi justamente o contrário: um crescimento da produção agrícola infe-rior ao da produção industrial;

• quanto à debilidade do sistema bancário e creditício, é um fenômeno da es-fera monetário-financeira que, como a queda da bolsa, faz parte do processo de crise, mas requer uma explicação mais profunda em nível da economia real para se averiguar o seu significado no processo de crise.

O economista inglês John Maynard Keynes, como se verá no próximo capítulo, con-centrou seus esforços não na explicação da crise concreta que estava ocorrendo, mas na ela-boração de uma teoria mais geral dos ciclos econômicos e, portanto, das crises econômicas, tendo como elemento central a queda da expectativa de lucro futuro, que ele chamava de colapso da eficiência marginal do capital.

Questionário

1. Sintetize as duas primeiras tentativas de explicar as causas da Grande Depressão.

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Referências bibliográficas

BARAN, P. A.; SWEEZY, P. M. El capital monopolista. 14. ed. México: Siglo XXI, 1979.

DOBB, M. A evolução do capitalismo. 5. ed. Trad. Affonso Blacheyre. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

SCHUMPETER, J. A. Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, ca-pital, crédito, juro e o ciclo econômico. Trad. Maria Sílvia Possas. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Os Economistas.)

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5 Monopolização da economia aumentou gravidade e duração da crise

E foi justamente a quebra da bolsa de Nova Iorque a espoleta que deflagrou o pro-cesso de crise. Essa quebra, por sua vez, foi precipitada pela elevação da taxa básica de juros a partir de agosto de 1929. Esta é uma sequência comum nos processos de deflagração de crises econômicas:

• no auge do crescimento econômico, tende a exacerbar as pressões inflacio-nárias;

• seguindo a visão convencional,1 os bancos centrais elevam a taxa de juros com o objetivo de conter essas pressões;

• como consequência, os capitais fogem das bolsas para se beneficiar da maior rentabilidade dos títulos do Tesouro;

• e, assim, desaba o valor das ações nas bolsas.

E precisamente em 1929, a economia dos EUA havia atingido o auge de um longo período de expansão de oito anos que vinha desde 1922. Segundo Dobb,

depois de uma depressão curta de 1920 a 1921 a América iniciou aquele boom de oito anos que iria levar o volume físico de produção em 1929 a 34% acima do nível de 1922 e cerca de 65% acima do nível de 1913. Tão grande foi a taxa de construção nova que, entre 1925 e 1929, apenas a procura de máquinas-ferramentas nos Esta-dos Unidos cresceu quase 90% e aquela do equipamento de fundição quase 50% (DOBB, 1976: 404-5).

Pode-se deduzir, então, que as crises resultam diretamente do processo de expan-são. Mais precisamente, suas causas nascem e se desenvolvem precisamente no período de expansão. Isso significa dizer que, por mais que os fenômenos monetário-financeiros nos ajudem a assinalar o momento da virada do ciclo, de expansão para crise, são insuficientes para entender as causas mais profundas que engendram as crises.

1  Essa visão, que mais tarde foi conhecida como monetarista, professa que a causa da inflação seria o excesso de demanda provocado pelo excesso de moeda em circulação; daí recomenda como terapia, entre outras coisas, a elevação da taxa de juros, como instrumento para diminuir o meio circulante e, por conseguinte, conter a demanda. Contrapondo-se a essa visão, os estruturalistas cepalinos formularam para os países da América Latina a teoria de que a causa da inflação seria a insuficiência de oferta, decorrente de fatores estruturais, como a drenagem de recur-sos para o exterior, a monopolização da economia e a estrutura agrária concentrada.

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5Os economistas estadunidenses Leo Huberman, Paul Sweezy e Paul Baran e o eco-nomista inglês Maurice Dobb procuraram explicar a crise a partir de uma raiz co-mum, que considera como elemento essencial o processo de monopolização da eco-nomia.

Examinamos no capítulo anterior como, a partir da concorrência, do sistema de cré-dito e das crises periódicas, ocorreu, desde fins do século XIX, a concentração e a centra-lização do capital, formando o que Baran e Sweezy designaram de corporação gigante. A corporação gigante, individualmente ou associada em cartel, passou a operar em regime de monopólio, realizando a transição do capitalismo de livre concorrência do século XIX para o capitalismo monopolista.2

Segundo Baran e Sweezy (1979: cap. III), nessa fase monopolista, haveria uma “ten-dência crescente dos excedentes”.3 De um lado, porque os monopólios, em lugar de “captar os preços”, “fazem os preços”, e por isso podem cobrar um preço de monopólio,4 obtendo, tanto perante o consumidor quanto junto às empresas não monopolistas, um lucro extraor-dinário (Ibidem: 56); de outro, porque, com seu poder monopolista, as grandes corporações pressionam os salários reais para baixo.

O grande desafio passaria a ser, então, como utilizar esse crescente excedente eco-nômico. Uma parte dele – menor, certamente – seria utilizada no consumo dos empresários; a outra parte se destinaria aos investimentos, isto é, ao aumento da capacidade produtiva da economia (Ibidem: cap. IV). Ora, ao aumentar a capacidade produtiva, o resultado dos novos investimentos é o aumento da produção de mercadorias, defrontando-se, por con-seguinte, com a limitação do mercado imposta pela redução do salário real e do poder de compra do consumidor em geral.5

Esse crescimento do excedente econômico, ao lado da limitação imposta ao merca-do, tenderia a exacerbar a contradição produção-consumo, que havia sido postulada por Robert Malthus (1983) no começo do século XIX e que passaria a ser considerada como um dos fatores das crises econômicas periódicas da economia capitalista. Segundo Baran e Sweezy, essa contradição tenderia a acirrar mais ainda no momento do auge econômico, deflagrando o processo de crise. Segundo eles,

No capítulo 4 indicamos que um auge econômico iniciado de qualquer modo cria um rápido crescimento de excedentes, tanto absolutos como em relação à produção total. Tão logo a parte destes excedentes crescentes que vai em busca de investi-mento seja superior às saídas disponíveis ao investimento, a expansão termina e o mesmo se passa com a alta dos excedentes. E este ponto crítico do ciclo ‘pode alcan-çar-se muito antes de chegar à completa capacidade de utilização ou de ocupação plena’. Estamos agora em posição de ver que o ciclo econômico dos trinta propor-ciona uma ilustração perfeita desta afirmação (BARAN; SWEEZY, 1979: 193).

2  Isso não significa que haja desaparecido a concorrência na economia capitalista; apenas quer dizer que, como demonstram Sweezy e Baran, o regime de monopólio, que inicialmente era um caso especial, passou a ser o caso geral. 3  Excedente econômico seria a parte do valor produzido que excede os custos de produção. 4  Preço de monopólio é o preço estabelecido acima do que garantiria o lucro médio e do que seria estabelecido entre as forças de oferta e procura. Evidentemente, as empresas monopolistas não têm liberdade total para fixar os preços, mas, dentro de determinada margem, elas cobram o maior preço possível. 5  A redução do poder de compra do consumidor em geral decorreria da cobrança do preço de monopólio por parte das grandes corporações.

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Segundo esses autores, a dinâmica da economia capitalista, em sua fase monopolis-ta, não garante, por si só, a absorção plena do excedente, em face dessa limitação do merca-do. Para eles, essa absorção dependeria de um “fator externo” à economia, que seria a ação do Estado – mas um tipo especial de absorção: a que realiza investimentos que produzem mercadorias que não são consumidas pela população. Por isso, esses economistas sustentam a tese de que a economia estadunidense só saiu efetivamente da crise econômica com os in-vestimentos na indústria bélica decorrentes da Segunda Guerra:

O que foi inevitável sob as condições da época foi que a economia se afundava, lenta e rapidamente, em um estado de profundo estancamento do qual pôde fazer esforços pela metade para sair, até que foi de novo impulsada para adiante por um estímulo externo, desta vez suficientemente poderoso: a segunda guerra mundial (BARAN & SWEEZY, 1979: 191).

A conclusão a que eles chegaram foi a de que o militarismo passou a ser, sobretu-do a partir da Segunda Guerra Mundial, um componente estrutural imprescindí-vel para o funcionamento da economia capitalista em sua fase monopolista. Isto porque o investimento na indústria bélica e nos demais gastos militares passou a absorver, de forma improdutiva, isto é, sem a produção de mercadorias destinadas à população, o excedente econômico que não encontrava aplicação produtiva, em face da limitação do mercado.

Afirmam então:

aqui finalmente o capitalismo monopolista parece haver encontrado a resposta à questão ‘em que’?: em que pode o governo gastar bastante para evitar que o siste-ma se afunde no buraco do estancamento? Em armas, mais armas e sempre mais armas (Ibidem: 17).

O economista Maurice Dobb, que também partia da monopolização da economia para explicar as crises econômicas, montou um modelo explicativo integrado por seis itens, a saber:

1. a existência de um hiato anormalmente elevado entre preço e custo, decorren-te da combinação entre preço de monopólio e depressão dos salários, o que provocaria margens de lucro6 anormalmente altas;

2. as reduções da procura de mercadorias seriam acompanhadas por redução da produção, e não dos preços, como ocorria na época da livre concorrência;7

3. em consequência, o aparato produtivo da economia tenderia a operar com capacidade ociosa, gerando um grande desemprego da força de trabalho;

6  Margem de lucro: lucro expresso como razão da despesa corrente da empresa.7  Isto ocorreria em face do desejo e capacidade dos monopólios de elevar ao máximo os lucros ao manter os pre-ços diante de uma queda da procura.

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4. existiria um declínio da taxa de novos investimentos, devido à relutância dos monopólios já estabelecidos em expandir sua capacidade produtiva e à obs-trução que fariam a que novas firmas entrassem em “seu” território;

5. essa taxa decrescente de investimentos provocaria o estreitamento do merca-do para meios de produção, enquanto o desemprego e a contenção do salário deprimiriam o mercado de bens de consumo;

6. haveria a tendência no sentido da “ossificação da estrutura industrial”, isto é, no sentido de manter as estruturas monopolistas (DOBB, 1976: 394-7).

Aqui também se percebe, como nos dois autores analisados anteriormente, que, na visão de Dobb, a existência do monopólio acirraria a contradição entre produção e consumo – não apenas o consumo final, mas também o “consumo intermediário”, isto é, o consumo de meios de produção.

Com base nesse modelo, o autor analisou, a partir de dados estatísticos, as principais economias industriais no período entre as duas guerras. Sua conclusão foi a de que

A semelhança com esse modelo abstrato não é difícil de achar em acontecimentos recentes em nosso próprio país [Inglaterra], e certos pontos de parecença mostram-se ainda mais flagrantes quando os comparamos à forma das coisas em alguns países continentais [Europa continental], ou na América na década seguinte a 1930 (Ibidem: 398).

Segundo Dobb, estudo de um outro autor, William Beveridge, a propósito da eco-nomia inglesa, havia demonstrado que “a violência da flutuação da produção entre surto e declínio (...) mostrou um aumento bem acentuado no período entre as guerras” (Ibidem: 403), o que comprovaria sua tese de que a monopolização da economia, ao exacerbar a con-tradição produção-consumo, teria também aprofundado a gravidade das crises econômi-cas. Teria sido por isso que, segundo ele, citando o World Economic Survey de 1932-1933, a produção “na maioria dos países industriais se reduziu [na Grande Depressão] a níveis que dificilmente se poderiam considerar possíveis nos anos anteriores a 1929” (cit. in DOBB, 1976: 404).

Na mesma linha de raciocínio de Sweezy e Baran, o economista inglês também con-siderava que a saída da Grande Depressão ocorreu graças à ação do Estado – de início, com políticas monetárias (redução dos juros) e tarifárias (depreciação da própria moeda) e de-pois com gastos e investimentos públicos nas áreas de infraestrutura e social, mas, no caso da Alemanha, a prioridade concentrou-se nas despesas com armamentos. Assim,

Em outras palavras, a expansão da procura, fosse do investimento em bens de ca-pital ou do consumo, que provocou a recuperação hesitante dos anos após 1930, não veio mais em qualquer medida considerável de dentro do sistema e de seus poderes nativos de resistência, mesmo no caso da América. Dependia de estímulos que, por assim dizer, vinham de fora do sistema e apresentava uma fonte política, tomando a forma de despesa governamental e medidas públicas para estimular o investimento e demarcar os mercados como territórios pertencentes a determina-das empresas (Ibidem: 407-8).

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Leo Huberman também tinha como referência para interpretar a crise o processo de monopolização da economia. Podemos sintetizar em cinco pontos os elementos que utilizou para analisar a Grande Depressão:

1. os monopólios buscariam obter e manter o lucro máximo por intermédio do abaixamento dos salários, da eliminação de competidores, da fixação de pre-ços e da busca de mercados estrangeiros;

2. na situação monopolista, a indústria tenderia a se desenvolver mais rapida-mente do que a agricultura, e às expensas dela;

3. determinados setores industriais, sobretudo a indústria pesada, sob controle monopolista, tenderiam a se desenvolver mais rapidamente do que os de-mais setores;

4. as indústrias monopolistas seriam dirigidas por homens mais preocupados com fazer dinheiro do que produzir, provocando o impulso a desviar os re-cursos para especulação, que cada vez mais teriam menos relação com a eco-nomia real;

5. o impulso a melhorar os métodos de produção e a aumentar a produtividade provocaria, de um lado, o forte aumento da produção e, de outro, o desem-prego da força de trabalho (HUBERMAN, 1983: 242-243).

Com base nesses cinco pontos, Huberman analisou as causas da crise. Sua análise pode assim ser sintetizada:

Significa que uma proporção maior da renda nacional vai para as economias das corporações e para um número cada vez menor de indivíduos de receita alta. Sig-nifica que cada vez se torna mais difícil investir os enormes excessos de produção e economias das corporações e seus dirigentes. Significa que, já que Duzentas contro-lam a produção, controlam também a distribuição. A base de produção da econo-mia é maior que a base de consumo, isto é, produz-se mais não do que o necessário, mas do que aquilo que pode ser vendido com lucro. O jeito de continuar obtendo lucros é manter baixos os custos. E o meio de manter baixos os custos é fazer uso de cada vez menos operários e pagar-lhes o menor possível. Mas quanto menos o ope-rário ganha em ordenados, menos artigos pode comprar. Em outras palavras, obter lucros é um processo que derrota a si mesmo. É um jogo em que os capitalistas não podem ganhar sempre – mas têm que ganhar (Ibidem: 243).

Portanto, na análise de Huberman, a monopolização da economia, além de exacer-bar a contradição entre produção e consumo, também acirraria a disparidade entre os setores da produção: os setores sob domínio dos monopólios tenderiam a crescer mais rapidamente do que os demais.

No caso dos EUA, o estreitamento do mercado, provocado pela depressão do poder de compra dos salários e a concentração de renda, havia sido levado ao extremo antes da Grande Depressão. Baseado no estudo Capacidade de consumo do americano, do Brookings Institute, ele concluiu que “12 milhões de famílias, 42% do total, recebiam 13% da renda

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nacional. 36 mil famílias, 0,1% do total, recebiam 13% da renda nacional” (Ibidem: 245). Além disso:

Os peritos de Brookings nos contam que com os preços que vigoravam em 1929 a renda de 2.000 dólares por família era ‘suficiente para suprir apenas as necessida-des básicas’. Uma olhada na tabela nos mostra que quase 60% do povo americano não ganhava 2.000 [dólares] por ano, o que quer dizer que 60% do povo americano em 1929, que foi o ano mais próspero da sua história, não ganhava o suficiente para comprar nem mesmo as coisas mais necessárias, nem falar em luxos (Ibidem: 245).

Questionário

1. Quais as causas da Grande Depressão segundo Paul Baran e Paul Sweezy?

2. Exponha o modelo que Maurice Dobb utilizou para explicar a crise.

3. Descreva os cinco pontos que Leo Huberman utilizou para explicar a Grande De-pressão nos EUA.

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Referências bibliográficas

BARAN, P. A.; SWEEZY, P. M. El capital monopolista. 14. ed. México: Siglo XXI, 1979.

DOBB, M. A evolução do capitalismo. 5. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

FURTADO, C. Formação econômica da América Latina. 2. ed. Rio de Janeiro: Lia Editor, 1970.

HUBERMAN, L. História da riqueza dos E.U.A. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.

KRAVIS, I. B. Relative income shares in fact and theory. American Economic Review, dez. 1959.

MALTHUS, T. R. Princípios de economia política: e considerações sobre sua aplicação prática. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

STREVEER, D. Capacity, utilizazion and business investment. Boletin de la Universidad de Illi-nios, vol. 57, no 55, mar. 1960.

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6 Capital financeiro continua

Esse papel dos bancos das economias desenvolvidas desmentia teorias que procura-vam provar o desengajamento entre os monopólios bancários e industriais e o consequente desaparecimento do capital financeiro, ao lado da perda de importância do sistema bancá-rio.1

Processo semelhante, de fato, ocorrera no imediato pós-guerra, quando, por efeito das enormes massas de lucro obtidas durante e logo depois da guerra, as grandes corpo-rações puderam parcialmente prescindir de empréstimo bancário. Preponderou, então, o autofinanciamento e a exportação de capital sob a forma de investimento direto.

No entanto, a crise se encarregou de revelar a debilidade e consequente transitorie-dade dessa forma de o capital movimentar-se. Com a crise, não apenas, como vi-mos, o movimento internacional do capital assumiu preponderantemente a forma de empréstimo, como, inclusive, reduziu a capacidade de autofinanciamento das corporações.

É sintomático, a respeito, o aumento do nível de endividamento das empresas não-financeiras dos países ricos: “Nos Estados Unidos a taxa de liquidez das companhias não-financeiras se reduziu de 73,4% em 1946 a 19,3% em 1969 (...) [Na Grã-Bretanha] o crédito bancário total aumentou mais de cinco vezes entre 1967 e 1973” (GANBLE; WALTON, 1977: 238).

Questionário

1. Por que falta fundamento à tese de que teria ocorrido desengajamento entre o capital bancário e o industrial?

1  Entre os defensores dessa ideia encontravam-se os economistas estadunidenses Paul Sweezy e Paul Baran: “o poder do banqueiro inversionista esteve baseado na urgente necessidade de financiamento externo das primeiras corporações gigantes no período de sua fundação e nas primeiras etapas de desenvolvimento. Mais tarde esta necessidade declinou em importância ou desapareceu por completo, quando os gigantes, ao recolherem uma rica colheita de lucros derivados do monopólio, se encontraram cada vez mais capazes de autofinanciar-se” (BARAN; SWEEZY, 1979: 19-20).

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Referências bibliográficas

BARAN, P. A.; SWEEZY, P. M. El capital monopolista. 14 ed. México: Siglo XXI, 1979.

GANBLE, A.; WALTON, P. El capitalismo en crisis: la inflación y el estado. México: Siglo XXI, 1977.

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7 Não existem capitais globais

Diz-se que os capitais especulativos que circulam pelo mundo são “capitais glo-bais”, “sem pátria”. O mesmo é dito acerca de movimentos de fusões que têm ocorrido entre capitais monopolistas de distintos países. É também nesse sentido que certos autores usam o termo transnacionalização do capital.

A crise das bolsas e das moedas da Ásia, em 1997, revelou, na superfície, a falta de fundamento dessas afirmações. A crise começou porque os bancos e corporações japoneses, mergulhados em profundas dificuldades financeiras, começaram a se desfazer de seus tí-tulos naqueles países, a fim de recuperar dinheiro líquido e procurar sanar seus prejuízos, pouco se importando com as dificuldades que esse ato poderia acarretar nas economias de seus “parceiros”.

Por sua vez, os especuladores estadunidenses, que tiveram perdas com a queda das bolsas e, portanto, de suas aplicações na Ásia, tentaram compensá-las vendendo suas po-sições no mercado financeiro de outros países, levando de volta parte dos recursos neles aplicados, pouco se importando com os problemas que isso poderia provocar em suas eco-nomias.

O processo de discussão que ocorreu nos anos de 1990, no âmbito da OCDE,1 do Acordo Multilateral sobre Investimentos (AMI), também indicou claramente que as grandes corporações, ainda que internacionalizadas, têm claramente um vínculo com sua origem. O AMI teria como objetivo não apenas abrir espaço em todo o mundo, sem qualquer restrição, para os investimentos estrangeiros (leia-se: dos países centrais), mas também garantir puni-ção para as nações que viessem a tomar qualquer medida contra esses investimentos.

Na reunião da OCDE realizada no começo de 1998, houve forte reação de represen-tantes de vários governos contra o estabelecimento do AMI. O delegado francês declarou explicitamente que “não havia mais apoio social” para um acordo desse tipo. Na mesma época, o Parlamento Europeu condenou, por 480 votos a 8, os termos contidos no esboço de acordo.

Esses fatos indicam, claramente, que, apesar da circulação internacional do capital especulativo ou das fusões internacionais de alguns grandes grupos econômicos, o que segue predominando é a base nacional dos capitais. Até porque eles necessitam dessa base, particularmente de seus Estados Nacionais, para garantir, inclusive com o uso da força, sua projeção em nível mundial.

1  Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que, na década de 1990, reunia os 29 países mais industrializados.

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Foi o que demonstraram, respaldados em farta documentação e fonte de dados, li-vros escritos por autores estadunidenses. Os autores Paul Hirst e Grahame Thompson (1998) mostraram que:

• o mercado interno seguia absorvendo uma parcela largamente preponde-rante da produção;

• a poupança interna seguia financiando a parcela mais expressiva da forma-ção bruta de capital fixo;

• o mercado de trabalho local é que aportava o principal da força de trabalho explorada pelas grandes empresas.

Por isso, as empresas, inclusive as que operam intensamente no mercado interna-cional, não se desvinculariam de seus países de origem e teriam um centro de gravidade nacional claramente definido.

Um outro grupo de oito economistas, liderados por Paul N. Doremus (1988), de-monstrou que:

• não havia convergência entre os comportamentos das transnacionais dos distintos países;

• as semelhanças eram apenas superficiais;

• na raiz, suas estratégias continuavam altamente dependentes da situação nacional, que variava muito de um país para outro.

Para esses economistas, são os Estados nacionais que moldam o ambiente em que essas empresas atuam. Um fato que provava isso dizia respeito à fonte dos recursos que financiavam os investimentos em Pesquisa & Desenvolvimento. No caso dos EUA, apenas 10% vinham do estrangeiro, Reino Unido 15%, França 12%, Alemanha 3% e Japão 0,1%, se-gundo dados do National Science Board, reproduzidos no livro.

Outro economista, R. Gilpin (1987), também demonstrou que, ainda que as trans-nacionais espalhassem sua produção por vários países do mundo, a montagem do produto final (que coincide com as tarefas mais importantes técnica e economicamente) se dava na sua economia nacional, mesmo que exportassem uma parcela depois.

Na mesma linha de raciocínio, seguiram os autores alemães Hans Peter Martin e Harald Schumann (1998). Em livro repleto de dados e informações, demonstraram que, sob o disfarce da “globalização”, as corporações dos países centrais absorveram patrimônios, ocuparam mercados e obtiveram volumosos ganhos em várias regiões do mundo, sobretu-do nos países da periferia.

Em síntese, as fontes de recursos para a formação de capital, o investimento tecnoló-gico e as tarefas produtivas mais relevantes das transnacionais são essencialmente nacionais e elas vendem seus produtos basicamente para o mercado interno de seus países, ainda que também inundem o mercado mundial. Que há de “global” nisso?

Questionário

1. Quais os principais argumentos dos que afirmam que não existem capitais globais?

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Referências bibliográficas

BEINSTEIN, J. Capitalismo senil: a grande crise da economia mundial. Rio de Janeiro: Record, 2001.

BERGSTEN, F. O dólar e o euro. Foreign Affairs, 2000.

DOREMUS, P. N. (Org.). The myth of the global corporation. New Jersey: Princeton University Press, 1988.

GILPIN, R. The political economy of international relations. New Jersey: Princeton University Press, 1987.

HIRST, P.; THOMPSON, G. A globalização em questão. Petrópolis: Vozes, 1998.

MARTIN, H.-P. & SCHUMANN, H. Armadilha da Globalização. São Paulo: Globo, 1998.

TOUSSAINT, E. A bolsa ou a vida: a dívida externa do Terceiro Mundo, as finanças contra os po-vos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.

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8 O embate teórico sobre a dependência da America Latina

O sociólogo Fernando Henrique Cardoso, em livro de parceria com o chileno Enzo Faletto (CARDOSO; FALETTO, 1975), tentou demonstrar que a dependência externa não apenas não limitava o desenvolvimento – contrapondo-se aos teóricos da CEPAL, como Celso Furtado, e aos “teóricos da dependência”, como Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Andre Gunther Frank e outros –, como, ao contrário, o favorecia, já que as transna-cionais, com suas novas tecnologias, recursos financeiros e capacidade gerencial, estariam vindo modernizar nossas economias, até então dominadas por um empresariado nacional atrasado.

É verdade que as principais economias da América Latina, que já haviam se indus-trializado, não mergulharam na estagnação após esse novo processo de dependência inicia-do nos anos de 1950, como ocorreu com as nações mais débeis da região. Mesmo em regime de dependência, ainda tiveram fôlego para algum grau de crescimento econômico.

Conseguiram esse resultado com base, sobretudo, na pujança adquirida no período anterior de desenvolvimento independente, que forjara as condições favoráveis ao progres-so econômico, como as empresas estatais, o protecionismo, o mercado interno.

Por terem tido que conviver com forças nacionais que haviam adquirido um impor-tante peso na vida desses países (sobretudo militares e empresários), as corporações esta-dunidenses tiveram, também, que buscar compatibilizar seus interesses com a manutenção daquelas estruturas econômicas, particularmente das estatais e da política protecionista.1

No entanto, graças aos bloqueios e deformações impostos pela situação de depen-dência crescente, as potencialidades desenvolvimentistas da região tenderiam a se esgotar, mais cedo ou mais tarde, entrando na vala comum das nações mais atrasadas e, portanto, mais frágeis do continente, que desde antes já viviam um profundo processo de deteriora-ção econômica.

A subordinação externa, além de bloquear o acesso dos países da América Latina às tecnologias mais avançadas e à produção interna de meios de produção – aqui chegavam apenas sucatas tecnológicas ou fábricas usadas e obsoletas –, sujeitava essas nações a uma profunda drenagem de recursos para o exterior, através do pagamento de juros, lucros, di-videndos e royalties, além do intercâmbio desigual.

1  Alem disso, desde que certas transnacionais decidiram internalizar-se nesses países, a política protecionista neles adotada as favorecia diante de concorrentes externos.

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8As economias latino-americanas tinham, portanto, de gerar um excedente econô-mico capaz, não apenas de garantir o investimento interno, mas, também, de ali-mentar o lucro extra das corporações estrangeiras. Foi aí que surgiu a política de arrocho salarial, que Marini chamou de superexploração do trabalho, por se pagar salários abaixo do valor da força de trabalho, e que, segundo ele, teria passado a ser parte constitutiva, indissociável, da economia dependente (MARINI, 2000).

O resultado direto dessa política foi o estrangulamento do mercado interno para os setores de bens de consumo popular, sob controle nacional, ao mesmo tempo em que, com a concentração de renda daí derivada, se ampliava o mercado interno para bens de consumo suntuário, coincidentemente os que passaram a ser produzidos por sucursais das transna-cionais estrangeiras.

Deformava-se, assim, o mercado interno e deixava-se como única saída para os em-presários ligados aos setores de consumo popular lançar-se à corrida do mercado inter-nacional, tendo, para isso, que receber incentivos e subsídios governamentais, com suas naturais repercussões sobre as finanças públicas e o bolso do contribuinte latino-americano.

Enquanto os cartéis estrangeiros se apoderavam do mercado interno, o empresaria-do nacional tinha que aventurar-se no mercado externo.

Mas esse esforço exportador não era suficiente para bancar as necessidades de divi-sas internacionais requeridas pela lógica da dependência externa, que exigia a compra no exterior de meios de produção, a preços superfaturados, ao lado da remessa de juros, lucros, dividendos e royalties.

Esses déficits na conta corrente dos balanços de pagamento eram cobertos por em-préstimos internacionais, aliás de grande interesse para a banca estrangeira, que estava em-poçada de excedentes financeiros. A partir de então, deu-se um crescimento vertiginoso da dívida externa dos países latino-americanos.

A dependência externa gerava, pois, uma economia com enorme grau de vulnera-bilidade externa e grandes deformações internas, além de bloquear o desenvolvimento e concentrar violentamente a renda nos países dependentes.

Mesmo que industrializados, esses países voltavam a uma situação semelhante à que viviam antes de 1930, quando uma economia agroexportadora atrasada dependia intei-ramente da dinâmica da economia internacional. Qualquer perturbação séria nessa econo-mia poderia levá-los de roldão, como ocorreu a partir dos anos de 1970.

Questionário

1. Quais as consequências da situação de dependência para os países latino-ameri-canos? Indique o debate que houve a respeito.

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Referências bibliográficas

CARDOSO, F. H.; FALETTO, E. Dependência e desenvolvimento da América Latina: ensaio de interpretação sociológica. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: SADER, E. (Org.). Dialética da dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes, 2000.

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9 Crise começa a alterar destino setorial do capital estrangeiro em alguns países da periferia

No período que se inaugura com a crise deflagrada no final dos anos de 1960, o período da retomada dos conflitos entre as potências pela redivisão do mercado mundial, além de intensificar-se a exportação de capital para os países da periferia, começou a haver algumas mudanças quanto ao destino setorial dos investimentos nos países da periferia.

Em primeiro lugar, as transnacionais que passaram a se instalar na indústria de alguns países dependentes já não destinavam sua produção somente ao mercado interno, senão que buscavam crescentemente abastecer o mercado mundial (VUSKOVIC, 1979).

Essa produção de manufaturas em países atrasados para abastecer o mercado mun-dial se fazia, até os anos de 1960, a título de exceção nas chamadas “zonas livres de produ-ção”, como Hong-Kong, Taiwan etc. Porém, essa tendência se ampliou a partir dos anos de 1970.

Mas apareceu aí um outro fator novo. As “zonas livres de produção” possuem ca-racterísticas de “enclave”, ou seja, a produção industrial para exportação (sob controle es-trangeiro) não é integrada à economia em que se desenvolve, mas ao complexo produtivo da empresa transnacional que a controla. A dinâmica das “zonas livres de produção” é somente a da acumulação em nível mundial.

O fato novo é que a nova produção industrial para exportação se dava em econo-mias, como o Brasil, de médio desenvolvimento industrial e que contavam com um eleva-do grau de complementaridade interna de sua estrutura produtiva; a nova produção para exportação se inseria, pois, nessa estrutura. Mas, ao mesmo tempo em que integrava essa estrutura interna, fazia parte da cadeia mundial capitalista. A dinâmica dessa produção in-dustrial para exportação era simultaneamente a da acumulação capitalista mundial e a da acumulação nos países em que se desenvolvia.

As mercadorias assim produzidas, na medida em que eram mercadorias do mercado mundial, ou seja, mercadorias já internacionalizadas, podiam ser produzidas em qualquer parte com a mesma tecnologia e, por fim, com o mesmo grau de produtividade. As trans-nacionais buscavam produzi-las nos países dependentes porque, dados os baixos salários vigentes nesses países,1 era possível conseguir uma taxa de lucro superior à que obteriam em suas metrópoles. 1  Isaac Minian cita dados que comparam, para vários ramos produtivos em atividades de “ensamblaje”, a re-muneração por hora que as transnacionais estadunidenses pagavam a trabalhadores de países atrasados com a remuneração estimada para trabalhos similares nos Estados Unidos, usando dados de 1969. Para todos os ramos e todos os países atrasados, os indicadores revelavam que os salários eram significativamente inferiores aos dos EUA (MINIAN, mar. 1979: 89, quadro 3).

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Essa taxa de lucro se elevava ainda mais porque os governos de certos países de-pendentes proporcionavam então uma série de incentivos, sobretudo fiscais e creditícios, às empresas que quisessem produzir produtos industriais para exportação.

O objetivo desses governos era incrementar suas exportações e assim resolver pro-blemas de balanço de pagamentos que então enfrentavam ou dificuldade de escoamento da produção no mercado interno provocada pela concentração de renda. O caso brasileiro, no começo dos anos de 1970, é exemplar a respeito (SOUZA, 2008).

A produção para exportação, ademais, às vezes era necessária porque determinadas plantas industriais que as transnacionais quisessem instalar em países dependentes deviam, para ser rentáveis, ter uma dimensão muito grande, que podia superar as dimensões do mercado interno dos países onde se instalavam, o que requeria exportar parte da produção.

O resultado dessa forma de industrialização dos países da periferia era, como bem assinalou Pedro Vuskovic, aprofundar ainda mais a sua dependência externa:

Explica-se que assim seja porque a dependência passa a ser mais que depen-dência de insumos e abastecimentos, ou de capital, de mercado e de tecnologia, pela via do intercâmbio e sua desigual distribuição de benefícios; o que ocorre agora é a inserção na cadeia produtiva, no processo mesmo da produção das economias capitalistas mais adiantadas, e de participação portanto no funcio-namento próprio desses sistemas econômicos (VUSKOVIC, mar. 1979: 22).

Ou seja, em busca de superar sua crise de valorização – isto é, de lucratividade – nas metrópoles, o capital transnacional passou a integrar ainda mais as economias dependentes em seu circuito internacional.

Em segundo lugar, os capitais das potências emergentes que passaram a disputar o mercado mundial com os capitais dos EUA – isto é, do Japão e da Alemanha – começaram, depois de deflagrada a crise, a contribuir, ainda que de forma secundária, para o desenvol-vimento de um setor de máquinas, equipamentos e insumos básicos em alguns países de-pendentes de desenvolvimento intermediário. Esse fato rompia um pouco com a lógica das corporações das economias centrais, que procuravam manter a produção de bens de capital (máquinas e equipamentos) em suas matrizes e produziam na periferia basicamente bens de consumo, particularmente os bens de consumo duráveis.

O desenvolvimento industrial nos países dependentes de maior desenvolvimento relativo acarretava como resultado um crescente requerimento de meios de produção, isto é, máquinas, equipamentos, bens intermediários, matérias-primas. Tal fato produzia uma dupla consequência:

a) começavam a desenvolver-se internamente nesses países alguns ramos do se-tor produtor de meios de produção, em particular aqueles que exigem técnicas menos sofisticadas; certos ramos da indústria pesada (como siderurgia) eram desde o início assumidos pelo Estado;

b) aumentavam as importações de meios de produção, sobretudo de máquinas e equipamentos em cuja produção se utilizava tecnologia de ponta, mas também os menos sofisticados.

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9As corporações dos países centrais preferiam produzir diretamente em suas ma-trizes esses meios de produção mais sofisticados (bens de capital), à medida que, dada a elevada produtividade conseguida em sua produção e a elevada demanda internacional dos mesmos, as matrizes dessas corporações monopolistas podiam apropriar-se de uma elevada massa de lucro extra no mercado mundial.

No entanto, essa situação mudou um pouco com a emergência dos conflitos econô-micos entre as grandes potências. Quando os EUA dominavam o mercado mundial, seus monopólios podiam contar com “mercados cativos” para vender sua produção de máqui-nas e equipamentos e aí lograr um lucro extra. Mas, na era dos conflitos no seio da “tríade”, o Japão e a Alemanha começaram a entrar de forma segura no mercado mundial desses bens, com um nível de produtividade igual ou superior ao dos EUA. Senão vejamos:

Dados para 1974 indicam que a Alemanha Ocidental e o Japão são, respectivamente, o primeiro e o terceiro produtores capitalistas mundiais de máquinas-ferramentas, sendo o segundo os EUA (...). Por outro lado, em 1973, estes três países controlavam nada menos que 46,7% das exportações mundiais de instrumentos de trabalho, dos quais 22,0% correspondiam à Alemanha Ocidental, 18,2% aos EUA e 6,5% ao Japão (BUSATTO, 1979:80, nota 97).

Desapareciam então os “mercados cativos” para as corporações dos EUA. Nessa nova realidade, uma forma de garantir os mercados passou a ser, de maneira crescente, a produção no interior das próprias economias antes importadoras. Diz a respeito Bob Ro-wthorn:

A inversão em ultramar está se convertendo no meio mais efetivo de introduzir-se nos mercados mundiais de maior consideração. Está-se tornando cada vez mais im-portante como meio, tanto para procurar-se novos mercados, como para defender os já existentes (ROWTHORN, s.d.: 29).

Em princípio, também o Japão e os países europeus preferiam manter internamen-te a produção de máquinas e equipamentos, já que, além do lucro extra de que podiam se apropriar seus rivais estadunidenses, apropriavam-se também de um diferencial correspon-dente ao seu menor custo salarial em relação aos EUA.

Porém, os custos salariais desses países começaram a aumentar e a se aproximar do nível dos EUA: os salários por hora nos EUA aumentaram de US$ 4,20 em 1970 para US$ 6,22 em 1975, no Japão aumentaram de US$ 0,99 para US$ 3,10 e na Alemanha Ocidental, de US$ 2,32 para US$ 6,19 (SOUZA, 1987: 88).

Nesse caso, passou a ser uma boa alternativa para as corporações do Japão e da Ale-manha produzir certas máquinas e equipamentos – se conseguissem igual ou semelhante nível de produtividade – em alguns países antes importadores.

Além disso, os Estados nacionais e os capitais privados dos países de desenvolvi-mento intermediário também passaram a produzir meios de produção. Isto se tornou pos-sível, não apenas em face do anterior avanço autônomo da industrialização, mas também graças à competição que se inaugurou entre as corporações das grandes potências. Tal com-petição produziu um duplo efeito sobre o mercado de tecnologia:

a) a competição entre as corporações dos países centrais pela venda de tecnologia provocou o aumento da “oferta” de cada competidor no mercado mundial,

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cada um querendo aumentar sua parcela no mercado; essa competição aumen-tou durante a crise de valorização, já que a venda de tecnologia proporcionava uma “renda” extra e assim contribuía para contrabalançar a tendência da taxa de lucro a cair;

b) a competição aumentou o grau de autonomia das economias ou governos dos países dependentes em relação aos países centrais, o que incrementou sua pos-sibilidade de selecionar tecnologia entre distintos ofertantes e assim desenvol-ver seu setor de bens de capital.

Entretanto, na medida em que a venda de tecnologia pudesse implicar o desenvol-vimento nos países dependentes de um setor de máquinas e equipamentos controlado por nacionais, criava-se uma contradição para as corporações monopolistas dos países centrais, já que reduzia seu mercado de exportação. Essas corporações buscavam superar tal contra-dição passando a produzir bens de capital diretamente em alguns dos países dependentes, principalmente em associação com capitais nacionais desses países.

Ou seja, a competição entre as corporações dos países centrais e destas com os ca-pitais estatal e privado dos países dependentes de desenvolvimento intermediário pressionou os monopólios dos países centrais a intensificar sua exportação de capi-tal para a periferia.

É evidente que, como assinalamos antes, as corporações dos países centrais não ti-nham a priori interesse em “exportar” os ramos que ainda lhe permitiam granjear um eleva-do lucro extra no mercado mundial. Isto ocorria com os ramos de tecnologia de ponta, ou seja, aqueles que determinavam o sentido do progresso das forças produtivas no conjunto do sistema. Os países dependentes só podiam ter acesso a essa tecnologia à medida que aproveitassem os conflitos econômicos entre as potências, como foi o caso da obtenção da energia nuclear pelo governo brasileiro junto à Alemanha Ocidental.

Mas esse investimento, por parte das corporações transnacionais, no setor de má-quinas e equipamentos de países periféricos só tendia a ocorrer naqueles países que contas-sem com um mercado interno de meios de produção relativamente amplo e com uma base técnica (nível de desenvolvimento das forças produtivas) adequada à instalação dos novos ramos de produção.

Ademais, havia a tendência a investir naqueles ramos da indústria de bens de ca-pital com as quais os países hospedeiros contassem como grandes produtores das respec-tivas matérias-primas. Tanto pelos salários baixos como pelas matérias-primas baratas, as transnacionais podiam produzir nos países dependentes o mesmo produto que antes lhes exportava, só que agora obtendo uma taxa de lucro mais elevada. Adotavam também o cri-tério de “exportar” os ramos altamente poluentes, assim como os consumidores intensivos de energia.

Esse processo revela uma dupla face: aqueles países da periferia que conseguiam montar, sob controle nacional, sua própria indústria de bens de capital tendiam a aumentar sua autonomia na esfera internacional; mas os que o faziam sob controle estrangeiro ou que, mesmo que sob controle nacional, porém com base em financia-mento internacional – que levava ao endividamento externo –, tendiam a reforçar os laços de dependência. Assim, não basta montar internamente a indústria de bens de capital para garantir a independência econômica.

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Ao contrário, pode aprofundar a dependência se ocorrer sob o signo das transna-cionais, tanto na forma de investimento direto quanto na de exportação de tecnologia. Essa dependência pode se intensificar, além disso, se a instalação da indústria de máquinas e equipamentos ocorrer mediante o recurso a empréstimos e financiamentos internacionais, gerando o endividamento externo.

Em terceiro lugar, os capitais dos países centrais, ao se dirigirem aos países da peri-feria, procuravam também a produção de matérias-primas (BUSATTO, 1979: 36-37).

Já vimos que a recuperação do preço das matérias-primas a partir da segunda meta-de da década de 1960 contribuiu para acirrar a tendência da taxa de lucro a cair nos países centrais. Passou então a ser considerada da maior importância, para as corporações dos países centrais, a ação no sentido de baratear os preços das matérias-primas. Seria um dos caminhos para a recuperação das antigas taxas de lucro.

Mas esse caminho esbarrava na resistência dos países exportadores desses bens, cujos governos insistiam em formar associações, como a OPEP, a fim de sustentar seus pre-ços e assim poderem se apropriar de maior porção do valor de seus produtos.

Para tentar vencer essa resistência, o governo dos Estados Unidos usou seu poder, principalmente, no sentido de desarticular essas associações entre países exportadores de produtos primários. Isso se manifestou, sobretudo, nas pressões sobre países integrantes da OPEP, como a Arábia Saudita e a Venezuela.

Uma das formas encontradas pelas transnacionais para vencer essa resistência foi a associação com setores empresariais ou estados de países exportadores. Elas proporciona-vam o capital e os mercados, enquanto os governos ou empresários locais proporcionavam os recursos naturais e a força de trabalho barata.

Ao final, as economias centrais obteriam matérias-primas mais baratas. Esses acor-dos eram fundamentais para essas economias, pelas seguintes razões:

a) as principais economias desenvolvidas tinham que importar um percen-tual significativo das principais matérias-primas que consumiam (tabela 9.1);

b) o barateamento das matérias-primas passou a ser fundamental para a re-cuperação da taxa de lucro nos países centrais e, por conseguinte, para sua tentativa de sair da crise.

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Tabela 9.1 Participação das importações no consumo total de

algumas matérias-primas – 1975

Matérias-primas EUA (%) CEE (1) (%) Japão (%)

Alumínio 84 75 100

Cromo 91 98 98

Cobalto 98 98 98

Cobre (2) 98 90

Aço 29 55 99

Chumbo 11 85 73

Tungstênio 55 100 100

Manganês 98 99 98

Níquel 72 100 100

Fosfatos (2) 100 100

Estanho 84 93 96

Zinco 61 70 53

Petróleo 18 54 74Fonte: SANTOS, jun. 1977: 35.

1. Comunidade Econômica Europeia2. Exportador líquido

Além do caminho da associação, as corporações dos países centrais começaram a recorrer à guerra econômica – na qual tentavam aumentar os preços de seus produtos indus-triais exportados para a periferia mais rapidamente do que aumentavam os preços dos pro-dutos primários exportados pelos países dependentes, na busca de retornar ao intercâmbio desigual característico do período anterior.

Mas, à medida que as corporações não lograssem resolver inteiramente essa ques-tão pela via da associação, como não conseguiram, seus governos tenderiam a in-tensificar o recurso a seus instrumentos de pressão. E isso poderia se dar inclusive por meio da intimidação militar ou mesmo da guerra localizada.Desde 1974, começaram as ameaças, por parte do governo dos EUA, de intervenção militar nos países exportadores de petróleo. Posteriormente, ainda na década de 1970, essas ameaças se materializaram na criação de uma força móvel de interven-ção que, em 24 horas, garantiria o desembarque de unidades militares em qualquer parte do globo. A isso se agregou o aumento dos efetivos militares na região do Golfo Pérsico, sob a alegação de um suposto expansionismo soviético na região.

Observa-se assim que a queda da taxa de lucro nas economias centrais determinou uma intensificação da exportação de capitais para os países da periferia, tanto com destino à produção de bens de capital e de outros bens industriais para exportação quanto à produção

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de matérias-primas. A ênfase em um ou outro setor dependia do grau de desenvolvimento relativo do país que recebia o capital.

Era óbvio que a ênfase na manufatura de bens de produção tendia a ocorrer na-queles países que já contavam com um razoável desenvolvimento das forças produtivas, como era o caso do Brasil, México e Argentina. Por outra parte, os países exportadores de matérias-primas foram instados a aceitar distintas formas de associação com corporações estrangeiras para a produção conjunta de matérias primas; quando não aceitavam o acordo, eram submetidos pela força (econômica ou militar).

Às vezes, os dois processos ocorriam num mesmo país: mesclava-se ao mesmo tem-po a possibilidade de industrialização subordinada e a subordinação para a produção de matérias-primas.

Questionário

1. Mostre por que as transnacionais que se instalaram em países de desenvolvimen-to intermediário, além de ocuparem o mercado interno desses países, passaram também a usá-los como plataforma de exportação.

2. Por que o Japão e a Alemanha passaram a exportar tecnologia e capitais para pro-duzir bens de capital em países da periferia?

3. Quais os mecanismos adotados para a produção de matérias-primas pelas trans-nacionais nos países periféricos?

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Referências bibliográficas

BUSATTO, C. La crisis del imperialismo y sus consecuencias sobre la reproducción del capital y la inserción mundial de la economía brasileña. 1979. Tese apresentada para a obtenção do grau de mestrado em Economia. UNAM-FNE-Divisão de Estudos Superiores, México.

MINIAN, I. Rivalidad intercapitalista e industrialización em el subdesarrollo. Revista Econo-mia de América Latina; Hacia uma nueva inserción em la economia mundial?, no 2, México: CIDE, MAR. 1979.

ROWTHORN, R. La rivalidad imperialista em la década de los setenta. Revista Sintesis, s.d.

SOUZA, N. A. de. A nova ordem econômica internacional. São Paulo: Global, 1987.

__________. Economia brasileira contemporânea: de Getúlio a Lula. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

VUSKOVIC, P. América Latina ante nuevos términos de la división internacional de trabajo. Revista Economia de América Latina; Hacia uma nueva inserción em la economia mundial?, no 2, México: CIDE, mar. 1979.

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10 Gravidade da crise imobiliza FMI

Na virada da década de 1990 para a de 2000, as dificuldades da economia mundial eram tão grandes que conseguiram imobilizar o principal instrumento que, tradi-cionalmente, o governo dos EUA tem utilizado para impor seu receituário para o resto do mundo, particularmente para os países subdesenvolvidos, ou seja, o FMI.

Depois de aportar mais de US$ 100 bilhões no “socorro” das nações da Ásia que naufragaram, ao mesmo tempo em que lhes exigia condições impossíveis de cumprir, como ocorreu na Indonésia, o FMI não contava por ocasião do estouro da crise no Brasil com mais de US$ 15 bilhões em caixa para emprestar.

Não foi por acaso que, apesar da grave situação financeira da Rússia em 1998, ele resistiu até o limite a emprestar-lhe os recursos solicitados, mesmo sabendo das inevitáveis consequências internacionais de uma explosão financeira naquele país. Para fechar o pacote, além de usar os últimos recursos de que dispunha, dependeu do aporte dos bancos centrais de vários países.

No caso da crise brasileira de 1998/1999, o receio de que sua explosão financeira pu-desse impactar seriamente o conjunto da economia mundial, além do interesse em comple-tar o processo de desestatização de sua economia, levou o governo dos EUA a patrocinar um acordo, que envolveu o FMI, o Banco Mundial, o BIS e os governos de outros países centrais, que resultou num pacote que reuniu US$ 41 bilhões, cujo objetivo era dar mais segurança aos especuladores e, assim, evitar uma fuga em massa de capitais. Não fosse isso, e o FMI teria ficado inteiramente imobilizado durante a crise.

A sobrevivência do FMI passou a depender da implementação do mecanismo es-pecial conhecido como Acordos Gerais de Empréstimo, integrado por 22 países, dentre eles os Estados Unidos, que preveem o aporte de recursos da ordem de US$ 50 bilhões, em casos considerados extraordinários.

A crise mundial era tão grave que, ironicamente, esse organismo internacional, que costuma “socorrer” os países em dificuldades, estava, ele próprio, solicitando socorro. En-frentou, inicialmente, enorme resistência, sobretudo do Congresso estadunidense, em apor-tar-lhe novos recursos, devido ao fracasso de suas interpretações e consequentes terapias para as nações asiáticas.

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10Pouco antes do colapso de 1997 na Ásia, as análises do FMI indicavam que as eco-

nomias da região iam muito bem e deviam ser eleitas como modelo a ser copiado, com destaque para a Indonésia. O mesmo dissera acerca do México antes da crise de 1994. Posteriormente, nem bem o FMI terminava os elogios às políticas adotadas na América Latina, eclodia a crise brasileira e, logo depois, a da Argentina.

Depois da emergência da crise na Indonésia, impôs ao país um receituário que quase o levou à guerra civil. Situação semelhante ocorreu em relação à Rússia. Com isso, compro-meteu-se seriamente a credibilidade que o Fundo desfrutava junto ao capital financeiro dos países centrais, o qual, em grande medida, se baseava em suas análises e terapias para eleger seus campos de aplicação.

É sintomática a declaração do então presidente do Comitê Econômico Conjunto do Congresso dos EUA, deputado Jim Saxton: “O programa do FMI fracassou completamente para estabilizar os mercados financeiros russos e sua situação política.” No que foi secunda-do por David Hale, economista-chefe de um grupo financeiro dos EUA, o Zurich Insurance: “Há crescentes sinais de que está se rompendo o apoio para políticas ortodoxas orientadas pelo mercado nas perturbadas economias da Ásia.” Era essa também a opinião do jornal Financial Times, ao dizer que “o presente sistema, baseado no FMI e no G-7, falhou na pre-venção de crises e também está fazendo um trabalho muito pobre para resolvê-las”.

A verdade era que a tão decantada competência dos técnicos do FMI naufragou diante de uma devastadora crise que não se enquadrava em seus tradicionais manuais. Não que as crises menos dramáticas possam se enquadrar nesse receituário, mas, nesses casos, os credores internacionais pelo menos tinham alguma garantia de que receberiam de volta alguma coisa do que haviam aplicado.

Sem fundos e com um receituário desgastado, não é de estranhar que, em reunião no começo de setembro de 1998 com ministros da Fazenda da América Latina e dos EUA, os dirigentes do FMI tenham se limitado a elogiar o trabalho desses ministros e a recomendar que prosseguissem nesse mesmo caminho.

Elogios semelhantes haviam feito à Ásia pouco antes de eclodir a crise nos ”tigres asiáticos”. Novamente, nem bem o FMI terminava os elogios às políticas adotadas na Amé-rica Latina, deflagrava-se a crise brasileira e, logo depois, a da Argentina.

Aliás, diante da possibilidade de um colapso das finanças internacionais, anunciado pela deterioração do quadro financeiro do final da década de 1990, os dirigentes, não apenas das instituições internacionais, mas também dos países centrais tornavam-se cada vez mais impotentes para fazer qualquer coisa que pudesse evitá-la.

Reunidos no começo de outubro de 1998 nos EUA, os dirigentes do G-7 e do G-22 (que inclui os 15 principais países, além do G-7), do FMI e do Banco Mundial, apesar de constatarem a gravidade da crise, não conseguiram chegar a qualquer acordo significativo sobre como enfrentar a situação.

É bem verdade que o presidente dos EUA realizou forte pressão para aprovar um plano para a América Latina, mas encontrou séria resistência dos europeus e japoneses, que alegaram não terem sentido o mesmo empenho dos EUA por ocasião das crises da Ásia e da Rússia. A questão de fundo, na verdade, era que, devido à própria crise, os governos dos países centrais não tinham muito como aportar novos recursos para viabilizar o pagamento das dívidas do Terceiro Mundo perante os bancos.

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10Questionário

1. É possível afirmar que o FMI se imobilizou depois das crises dos anos de 1990? Por quê?

2. Explique por que o FMI decidiu “socorrer” o Brasil na crise de 1998-1999.

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11 Os níveis da integração econômica regional

Existem vários níveis de integração. Cada grupo de países escolhe o nível de integra-ção que lhe pareça adequado ou que a correlação de forças interna de cada país o determine. Esses níveis de integração podem se transformar em etapas de um processo mais amplo quando o objetivo é realizar uma integração mais completa.

O nível mais elementar de integração ocorre quando dois ou mais países negociam preferências comerciais. Segundo Baumann et al., “uma Área de Preferências Comerciais compreende a redução ou isenção de impostos de importação no comércio entre os países envolvidos, apenas para um grupo reduzido de produtos” (Baumann et al., 2004: 106). Ain-da de acordo com esses autores, neste caso, cada país mantém independência na sua política comercial em relação ao resto do mundo. Normalmente, ocorre entre países sem proximi-dade geográfica.

A Área de Livre Comércio é o nível seguinte. Abarca concessões comerciais genera-lizadas, envolvendo a maior parte da pauta comercial entre os países-membros, mas cada país mantém sua autonomia na definição da política comercial em relação ao resto do mun-do. Como definem Maria Auxiliadora e César Silva: “países sócios concordam em eliminar as barreiras sobre o comércio recíproco, mas mantêm políticas comerciais independentes em relação aos demais” (CARVALHO; SILVA, 2002: 226). Normalmente, ocorre entre países com certa proximidade geográfica. Este é o caso do Nafta.

Quando, além de praticar o livre comércio entre si, um conjunto de países decide adotar barreiras externas comuns em relação aos demais países fora do bloco, isto é, passa “a adotar uma política comercial uniforme em relação aos demais países” (Ibidem: 226), designa-se esse processo de União Aduaneira. Essa proteção externa comum normalmente é realizada por meio de uma tarifa externa comum (TEC). O Mercosul, ainda que vise formar um Mercado Comum, ainda se encontra na etapa da União Aduaneira.

Recebe o nome de Mercado Comum quando, além do livre comércio de bens e ser-viços e da proteção externa comum, permite-se a livre mobilidade de capital e força de tra-balho entre os países-membros. Ou seja, “a liberdade de deslocamento não se restringe aos produtos, mas abrange também os fatores de produção (capital e mão de obra), e a política comercial é uniforme em relação a países não-membros” (Ibidem: 226).

A União Européia, antes de atingir fases mais avançadas, passou pela etapa de Mer-cado Comum. Chegou a ser designada de Mercado Comum Europeu. Para Baumann et al.,

nesse nível torna-se necessário – além da coordenação das políticas cambial, fiscal e monetária – compatibilizar as legislações correlatas, como as normas trabalhistas,

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11previdenciárias, regulação de capital, proteção aos investidores, regulação de con-

corrência e diversas outras (BAUMANN et al., 2004: 107).

O quarto nível é representado pela União Econômica. Neste caso,

os acordos não se limitam aos movimentos de bens, serviços e fatores de produção, mas buscam harmonizar políticas econômicas para que os agentes possam operar sob condições semelhantes nos países constituintes do bloco econômico (CARVA-LHO; SILVA, 2002: 227).

Neste nível, tende a ocorrer a união monetária, isto é, os vários países integrantes do bloco passam a utilizar uma moeda única.

Por último, há autores que propugnam a existência de um quinto nível, chamado de Integração Econômica Total.

Essa fase implica livre deslocamento de bens, serviços e fatores de produção, além de completa igualdade de condições para os agentes econômicos, pois o acordo prevê idênticas políticas econômicas e sociais, administradas por autoridades su-pranacionais (Ibidem: 227).

A União Européia transita do quarto para o quinto nível, pois, apesar de as políticas econômicas e sociais ainda não serem inteiramente idênticas, encontram-se em processo avançado de harmonização, e boa parte delas já é administrada por autoridades suprana-cionais, como o Conselho Europeu, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Par-lamento Europeu.

Para encerrar esta parte, cabem alguns comentários:

• não necessariamente, o processo de formação de um bloco econômico tem que atravessar rigorosamente todos esses níveis. Pode, por exemplo, come-çar por uma união aduaneira ou por um mercado comum. O importante, para produzir uma integração efetiva, é que o processo avance num ritmo que possa ser acompanhado pelos países-membros;

• a experiência vem demonstrando, cada vez mais, que uma integração efetiva não pode basear-se apenas no comércio, pois a liberação comercial entre os países-membros pode debilitar ou mesmo destruir as economias mais frá-geis, comprometendo o processo integracionista. A formação de um bloco econômico exige, para consolidar-se, a complementaridade econômica, so-cial, política e cultural;

• para ser bem sucedido, o processo de integração exige que as nações econo-micamente mais fortes contribuam para diminuir os desníveis econômicos entre os países-membros; do contrário, as economias mais frágeis seriam de-vastadas pela invasão de capitais e produtos oriundos das mais fortes;1

• a experiência tem demonstrado que os Acordos de Preferências Comerciais ou as Áreas de Livre Comércio podem ser efetivados entre países sem proxi-midade geográfica, enquanto as Uniões Aduaneiras e níveis mais avançados

1  Um exemplo desse tipo de apoio são os financiamentos a fundo perdido que os governos dos países mais de-senvolvidos da Europa aportaram para a realização de obras de infraestrutura nos menos desenvolvidos.

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11de integração costumam ser realizados entre países vizinhos; estes últimos

níveis constituíram a forma mais adequada de um bloco econômico;

• o processo de integração avança com menos percalços quando é o coroamen-to formal de uma interação que já existia entre os agentes econômicos dos vários países, ou seja, a maior parte de seu comércio exterior já se realizava entre eles;2 o processo oposto ocorre quando a maior parcela das transações externas dos agentes econômicos dos países da região não se realizava entre esses países, mas com países de outras regiões (BAUMANN et al., 2004: 118-19).3

Os processos de integração econômica regional mais antigos e que, com avanços e recuos, prosseguem na atualidade são os da Europa e da América Latina. Um exame dessas duas experiências é imprescindível para a compreensão do fenômeno da integração.4

Questionário

1. Indique os vários níveis de integração econômica regional, definindo cada um deles.

2. Quais os problemas da integração baseada apenas no comércio e como os blocos existentes têm procurado equacionar esses problemas?

2  A Europa poderia ser um desses casos, já que realizava intenso comércio entre suas várias nações antes de iniciado o processo formal de integração; no entanto, o fato de haver atingido a etapa monopolista acarretava im-portantes conflitos internos.3  Poderia ser o caso da América Latina; porém, há vários outros elementos que podem favorecer a integração, como a origem cultural comum e o fato de suas economias não haver ainda atingido a etapa monopolista.4  Ver texto a respeito, intitulado Integração econômica regional: os casos da União Europeia e da América do Sul, no sítio www.EditoraAtlas.com.br (Material de Apoio).

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11Referências bibliográficas

BAUMANN, R. et al. Economia internacional: teoria e experiência brasileira. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

CARVALHO, M. A de; SILVA, C. R. L. da. Economia internacional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

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12 Integração econômica regional: os casos da União Europeia e da América Latina

Examinam-se neste texto as duas principais experiências de integração econômica regional: a da União Europeia e a da América Latina. Procura-se estudar todo o processo que viveram e vivem essas regiões, em seu desdobramento por etapas, a fim de que se possa tirar as lições necessárias para a teoria da integração regional.

I – O caso da União Europeia

Os primórdios da União Europeia

A experiência mais madura de formação de um bloco econômico é a da União Euro-peia. O processo de integração europeia começou em 1951 com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), cuja idéia fora lançada um ano antes pelo então mi-nistro dos Negócios Estrangeiros da França, Robert Schuman.

Em 1952, duas novas propostas integracionistas foram lançadas na Europa: a Comu-nidade Europeia de Defesa (CED) e a Comunidade Política Europeia (CPE). No entanto, os conflitos entre as nações da região impediriam que essas propostas se concretizassem.

Depois de avanços e retrocessos, o Conselho da Organização Europeia de Coope-ração Econômica (OECE) abriu um processo de negociações, no começo de 1957, para a criação de uma área de livre comércio na Europa. Terminaram resultando daquele processo dois blocos econômicos:

− de um lado, os tratados de Roma, firmados em 1957 pela França, a Alemanha Federal, a Itália, a Bélgica, os Países Baixos e o Grão-Ducado de Luxembur-go, instituíram, ainda em 1957, a Comunidade Econômica Europeia (CEE) e seu apêndice, a Comunidade Europeia da Energia Atômica (CEEA);

− e, de outro, criou-se, em 1960, a Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA, na sigla em inglês), formada pelo Reino Unido, a Suécia, a Noruega, a Dinamarca, a Áustria, a Suíça e Portugal.

Esta última, na verdade, não vingou. Seus participantes, ao longo do tempo, foram se integrando à CEE. Os objetivos explícitos da CEE eram, de um lado, a busca do cresci-mento econômico e a melhoria do nível de vida da população e, de outro, a união política entre os povos da Europa.

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12Para isso, propunham-se a criar um bloco econômico que assegurasse a livre cir-

culação de mercadorias, pessoas, capitais e serviços entre os países-membros. Ou seja, o objetivo a longo prazo traçado inicialmente era a criação de um Mercado Co-mum, mas, com o desenvolvimento do projeto, o processo de integração terminou avançando ainda mais, atingindo, em 1999, através da União Monetária, a etapa da União Econômica transitando para a Integração Econômica Total.

Da área de livre comércio à união econômica

Veremos a seguir as razões que levaram a Europa a perseguir esse caminho e quais etapas teve que atravessar para atingir o nível atual de integração.

Os tratados de criação da CEE entraram em vigor a 1º de janeiro de 1958, sendo que a 1º de janeiro de 1959 ocorreu uma primeira redução dos direitos aduaneiros. Ou seja, a Co-munidade começava pela criação de uma Área de Livre Comércio. Mas só se transformaria num bloco econômico efetivo, isto é, só passaria para a etapa de União Aduaneira, a 1º de julho de 1968. Nessa data, além de generalizar a abolição dos direitos aduaneiros entre os participantes, instituiu-se uma pauta aduaneira externa comum.

Um ano depois, os chefes de Estado e de Governo da CEE, reunidos em Haia, ado-tariam um conjunto de decisões que revelariam a intenção de conformar um nível mais avançado de integração: declararam-se favoráveis à formação de uma união econômica e monetária, à consolidação das instituições comunitárias, à ampliação da Comunidade me-diante a integração de novos membros, ao aumento dos poderes do Parlamento Europeu em matéria de orçamento.

Coincidia a aceleração do processo de integração europeia com o movimento que levara ao declínio relativo do poderio econômico dos EUA e ao fortalecimento da principal potência econômica da Europa, a Alemanha. Com a integração europeia, a Alemanha pretendia reunir mais forças para enfrentar a hegemonia dos EUA e disputar com suas corporações o mercado mundial.

No pós-guerra, a Europa ficara imprensada entre as duas grandes potências que haviam emergido da guerra: os EUA liderando o campo capitalista e a URSS, no campo so-cialista. Os EUA, na tentativa de legitimar sua hegemonia, formularam na Academia Militar de West Point a Doutrina da Contra-Insurgência, que dividia o mundo em dois, o “comunis-ta” e o “ocidental-cristão”. Nessa doutrina, caberia a eles a responsabilidade de defender o hemisfério ocidental diante de uma suposta “agressão comunista”.1

A Europa, inicialmente fragilizada pela devastação bélica, aceitou essa hegemonia estadunidense2, mas, ao se fortalecer pelo espetacular crescimento econômico,3 achou-se em

1  Veja capítulo 5 do livro-texto e também SOUZA (2001: 42). 2  Mas essa aceitação não foi pacífica. O Presidente da França, Charles De Gaulle, resistiu firmemente a essa he-gemonia, tanto no terreno militar, ao retirar a França da OTAN (organização militar liderada pelos EUA), quanto no econômico, ao propor a instituição de uma moeda mundial pelo FMI (os Direitos Especiais de Saque) para substituir o dólar (SOUZA, 2001: 43). 3  Ver capítulo 7 do livro-texto.

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12condição de disputar com os EUA o mercado mundial. A formação de um bloco econômico

regional contribuiria para ampliar essa capacidade de disputa.4

E, assim, um comitê criado pela conferência de Haia apresentou, em 1970, proposta para a unificação progressiva das políticas econômicas com vistas à criação, em 1980, da união econômica e monetária (UEM). O Conselho de Ministros da CEE estabeleceu o dia 1º de janeiro de 1971 como referência para inaugurar a nova fase.

A partir dali, os Estados-membros deveriam adotar as medidas destinadas a har-monizar as políticas orçamentárias e a reduzir as margens de flutuação entre suas moedas. Além disso, a 1º de janeiro de 1973, a CEE se alargou mediante a inclusão da Inglaterra, da Irlanda e da Dinamarca.5 Nessa mesma data, passaram a vigorar acordos de livre comércio entre a CEE e os países da EFTA que ainda não haviam aderido à Comunidade.6

Em 1974, a Cúpula de Paris instituía o Conselho Europeu, como instrumento mais permanente de direção política da Comunidade. Uma de suas primeiras decisões foi a con-vocação, um ano depois, de eleições, por sufrágio universal, para compor o Parlamento Europeu, que ocorreriam entre 7 e 10 de junho de 1979.

União monetária e hegemonia alemã

Em 1979, o Conselho Europeu daria mais um passo rumo ao aprofundamento da integração: pôs em vigor o Sistema Monetário Europeu (SME), que tinha como elemento central uma unidade monetária de conta,7 o ECU,8 mas integrava determinadas regras cam-biais e de crédito. O governo do Reino Unido optou por ficar de fora da união monetária.

A crise econômica que se alastrou pelo mundo entre 1980 e 1984 afetou gravemente a economia europeia. Em consequência, a título de defesa, recrudesce o espírito protecionista entre os países-membros da CEE. Ao mesmo tempo, a Comissão Europeia, instituída pelo Conselho para propor medidas tendentes ao desenvolvimento das políticas comunitárias, apresentou, em 1984,

um programa de consolidação do mercado interno que incide sobre a supressão das barreiras aduaneiras, o quadro jurídico para a atividade das empresas a nível da Comunidade, a livre circulação de capitais, dos serviços e das pessoas, bem como sobre aspectos de liberalização das políticas agrícolas, fiscal e de transportes (SERVIÇO DE PUBLICAÇÕES, 1987: 76).

4  Vale registrar que o fato que despertou a Europa para a necessidade de unir-se foi a intervenção dos EUA, em 1956, no conflito de Suez, quando aquele país tentou mostrar aos países europeus que não aceitaria que os mesmos seguissem adotando política de grande potência. A reação da Europa foi a assinatura, em 1957, dos tratados de Roma, que deflagraram o processo de integração (SOUZA, 2001: 54). 5  A Noruega também pedira ingresso, mas, através de referendo, o povo norueguês rejeitou a adesão por 53% dos votos. 6  Suécia, Áustria, Suíça e Portugal. Entre 1975 e 1977, Grécia, Portugal e Espanha pedem ingresso à CEE, que só se efetiva em 1981 (Grécia) e 1986 (Portugal e Espanha).7  Unidade de conta: trata-se de uma “moeda” que funciona apenas como expressão do valor das mercadorias, ou seja, como denominação monetária dos preços, mas ainda não opera como intermediário das trocas, meio de pagamento e reserva de valor. 8  Sigla de European currency unit, que, traduzido ao português, significa unidade monetária europeia. Sua ge-neralização só ocorreria a partir de 1981, quando passou a denominar o orçamento geral da Comunidade.

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12Ou seja, num momento em que a crise, ao acirrar os conflitos entre os participantes

da CEE, abalava o processo de integração, a Comissão propunha seguir adiante. O Parlamento Europeu adotou o mesmo caminho, ao aprovar por 237 votos a favor, 31 contra e 43 abstenções, também em 1984, o projeto de tratado de formação da União Europeia.

Em 1985, começou a vigorar o passaporte europeu. Nesse mesmo ano, a Comissão Europeia transmitiu ao Conselho de Ministros documento propondo um cronograma com vistas a atingir até 1992 a supressão das fronteiras físicas, técnicas e fiscais da Comunidade. A partir de então, pessoas, bens, serviços e capitais poderiam circular no conjunto da CEE nas mesmas condições em que o faziam no interior de cada Estado-membro.

Para completar o arcabouço jurídico da União Europeia, foi assinado em fevereiro de 1986 o Ato Único Europeu, que viria reformar os tratados que criaram a CEE e assentar as bases para a constituição da União Europeia, a qual teria como objetivo declarado a efe-tivação até 1992 de um espaço europeu sem fronteiras internas através da união econômica e monetária (UEM), além do desenvolvimento tecnológico e da melhoria social e do meio ambiente.

O Ato Único previa três etapas para alcançar a união econômica e monetária:

1. a primeira etapa, que se desenvolveria até o primeiro semestre de 1990, pre-via que todas as moedas dos países da CEE entrariam no Sistema Monetário Europeu;

2. a segunda fase previa a transferência progressiva para a esfera comunitária de competências em matéria monetária e fiscal que eram reservadas à esfera nacional;

3. a terceira implicava a preparação de condições para o estabelecimento de pa-ridades fixas entre as moedas da CEE com vistas à criação de uma moeda única.

Essa aceleração do processo de integração foi uma resposta direta à estratégia eco-nômica então adotada pelo governo dos EUA. De um lado, a administração de Ronald Reagan promoveu, a partir de 1985, uma violenta desvalorização do dólar, através dos “acordos” de Plaza, firmados em 1985, e os de Louvre, de 1987. De outro, também em 1985, submeteu ao Congresso dos EUA tratados comerciais extremamente protecionistas, além de utilizar em demasia o Artigo 301 do tratado comercial de 1974, que visava impedir práticas comerciais que considerasse lesivas aos interesses das corporações estadunidenses.9

Essas medidas, cujo objetivo básico era tentar recuperar a capacidade competitiva dos EUA no mercado mundial, afetaram significativamente a capacidade da Alemanha em disputar o mercado mundial com aquele país, levando-a, a título de defesa, a acelerar o pro-cesso de integração europeia.

9  Ver Capítulo 9 deste livro.

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12O Conselho Europeu decidiu, em dezembro de 1990, que, a partir de janeiro de 1994,

dar-se-ia início a uma nova etapa da união econômica e monetária com a criação de uma nova instituição monetária.

O principal instrumento utilizado na Europa para a criação da união econômica e monetária foi o Tratado de Maastricht, que entrou em vigor em 1993. O objetivo mais es-tratégico de Masstricht era a criação de uma moeda única para todos os países do bloco. O euro, que ocuparia todas as funções da moeda, deveria substituir a moeda de conta ECU.

Para ingressar na área do euro, os países europeus teriam que realizar um processo de ajuste que permitisse atingir os seguintes critérios:

• déficit público abaixo de 3% do PIB;

• dívida pública menor do que 60% do PIB;

• inflação no máximo de 1,5 ponto percentual acima da média dos três países com menor índice de inflação;

• taxa de juros de longo prazo não superior a 2 pontos percentuais à média dos três países com a menor taxa.

Para administrar a nova moeda, foi criado o Banco Central Europeu, com sede em Frankfurt, na Alemanha. O novo banco, apesar da disputa entre franceses e ale-mães, passou a ser hegemonizado pelo Bundesbank alemão. Como a Alemanha é a potência econômica mais poderosa da Europa, esse processo de unificação vem favorecendo, sobretudo, a seus interesses. Nas palavras do ex-ministro do interior da França, Jean Pierre Chevenement, em entrevista ao Wall Street Journal: ”O que a Alemanha não conseguiu em duas guer-ras mundiais, a hegemonia continental, está em vias de conseguir através de recur-sos financeiros em nome do livre mercado e de uma visão tecnocrática da Europa” (SCHUTTE, 1998).

A integração europeia tem encontrado dois tipos de obstáculos: de um lado, os EUA tentam dividir a posição dos países europeus nos principais temas de política externa, como na questão do Iraque, dificultando a adoção de uma política externa europeia comum; de outro, tem havido grandes resistências em povos de vários países da Europa ao que conside-ram uma perda de soberania em favor da Alemanha e à quebra do “Estado de Bem-Estar”.10

A quebra dos direitos sociais visa atender a dois requisitos:

1. satisfazer os critérios de redução do déficit e da dívida pública estabelecidos como condição para ingressar na zona do euro;

2. diminuir os custos trabalhistas a fim de melhorar a capacidade das corpora-ções europeias em competir no mercado internacional.

Assim, procurava-se melhorar a competitividade, não com o avanço tecnológico e, portanto, com o crescimento da produtividade, mas com a deterioração das condições so-ciais. Os trabalhadores europeus realizaram grandes mobilizações com o objetivo de garan-tir seus direitos.

10  Como foi conhecida a ampliação dos direitos sociais no período de pós-guerra na Europa.

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12O significado do euro na divisão de poder mundial

Apesar desses obstáculos, o processo de integração europeia seguiu avançando e atingiu a etapa da união monetária, quando, a 1º de janeiro de 1999, foi instituída a moeda única, o euro, inicialmente ainda como moeda de conta, que se transformaria em moeda corrente em 1º de janeiro de 2002.

Estimava-se, na época, que, depois de se tornar moeda corrente, o euro teria condi-ções de competir com o dólar na divisão do mercado financeiro internacional. O economista-chefe do Deutsche Bank, Norbert Walter, estimou que o euro dominaria 35% das transações comerciais do mundo, além de desafiar a supremacia do dólar como moeda de reserva dos bancos centrais.11

O economista Fred Bergsten, diretor do Instituto de Economia Internacional e ex-secretário-adjunto do Tesouro estadunidense, avaliava que “o dólar e o euro provavelmente acabarão, cada um deles, dominando cerca de 40% das finanças mundiais, restando cerca de 20% para o iene, o franco suíço e outras moedas mais fracas” (BERGSTEN, 2000).

Essas avaliações tinham como base a força relativa de cada economia. Na verdade, a nova economia resultante da unificação europeia ultrapassaria o peso da poderosa economia dos EUA. Na época, enquanto a União Europeia era responsável por 31% da produção mundial e 20% do comércio, os EUA respondiam, respectivamente, por 27% e 18%. O PIB europeu, em 1996, era um pouco superior ao dos EUA: US$ 8,4 trilhões contra US$ 7,2 trilhões (BERGSTEN, 2000).

Ademais, a posição da Europa unificada tenderia a melhorar. Isso porque, sob a pressão de um déficit comercial crônico, os EUA vinham então patrocinando a desvalori-zação de sua moeda como forma de melhorar a competitividade de suas empresas e assim contribuir para a redução do déficit. O resultado era o aumento da desconfiança em relação ao dólar cada vez mais fraco, diminuindo a atração para usar essa moeda como refúgio das aplicações internacionais.12

Nessas condições, a existência de uma outra moeda forte, como o euro, poderia in-duzir muitos governos, além de aplicadores privados, a aplicar seus recursos nessa moeda. Assim, depois de o Iraque haver mudado suas reservas de dólar para euro em 200013 e de o Irã ameaçar fazer o mesmo, a Rússia, a China e a Arábia Saudita começaram também a diversificar suas reservas.

Como consequência, de 1999, quando foi instituído o euro, a meados de 2005, a por-centagem das reservas mundiais em dólar caiu de 71% para 66%, enquanto a do euro subiu de 17% para 24%. Essa mudança de composição não foi mais acelerada ainda porque, diante da dificuldade de financiar o déficit externo estadunidense, o Federal Reserve passou, a par-tir de meados de 2004, a aumentar sistematicamente sua taxa básica de juros, como forma de atrair capitais externos. Mas era um tiro no pé. Os juros elevados poderiam detonar, como o fizeram, uma nova crise na economia dos EUA,14 enfraquecendo ainda mais o dólar.

11  Ver Capítulo 10 do livro-texto.12  A elevação da taxa básica de juros pelo Banco Central dos EUA (Federal Reserve) a partir de meados de 2004 teve como objetivo atrair capitais externos, ainda que o objetivo alegado tenha sido o combate à inflação.13  A decisão de invadir o Iraque, que teve como motivações principais a questão do petróleo e fatores de ordem geopolítica, foi, em grande medida, precipitada pela decisão de seu governo converter suas reservas cambiais em euro.14  A forte desaceleração de sua economia em 2006 levou o Fed a suspender temporariamente o processo de ele-vação de sua taxa básica de juros: ela já havia subido de 1% ao ano para 5,25%.

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12II – O caso da América Latina

A teoria cepalina da integração regional

A questão da integração da América Latina remonta aos primórdios da luta pela in-dependência no início do século XIX. Com altos e baixos, essa questão tem estado presente na região ao longo destes dois últimos séculos.

Torpedeada tanto pela ação das potências estrangeiras que tinham interesses na re-gião quanto pelos conflitos das elites que dominavam cada um dos países, a integração latino-americana ressurgia toda vez que as condições internas e externas se tornavam pro-pícias.

Essa questão mais uma vez ressurge com força na atualidade, depois de várias on-das integracionistas ocorridas no passado. Nesta seção, vamos examinar o processo mais recente, que tem suas raízes nas propostas feitas pela Cepal15 entre o final da década de 1940 e o início da de 1950.

Partindo do diagnóstico de que a dependência externa e as estruturas internas ar-caicas da América Latina eram responsáveis pelo subdesenvolvimento, a Cepal propunha que a saída estava na industrialização. Conforme Theotônio dos Santos,

nas décadas de 1940-50, desenvolveu-se o pensamento da CEPAL, que vai dar um fundamento de análise econômica e um embasamento empírico, assim como apoio institucional, à busca de bases autônomas de desenvolvimento. Estas se definiram por intermédio da afirmação da industrialização como elemento aglu-tinador e articulador do desenvolvimento, progresso, modernidade, civilização e democracia política (SANTOS, 2000: 74).

Entre os meios para garantir a industrialização e o desenvolvimento econômico da região, a Cepal propugnou a realização de um projeto integracionista. O alarga-mento do mercado, com a criação de um mercado regional, ensejaria a instalação de plantas industriais maiores e mais eficientes, além de poder avançar para a indús-tria básica, como as de bens de capital e de bens intermediários. A integração seria, portanto, a condição para o desenvolvimento autônomo e endógeno da região.16

Foi com essa visão que a CEPAL propôs a criação do Mercado Comum Centro-Ame-ricano que, a partir de 1951, começou a formar um bloco regional entre os pequenos países da América Central.

15  A Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) foi criada em 1948 pela ONU para estudar os problemas da América Latina e propor soluções. Liderada pelo economista argentino Raúl Prebisch e integrada por uma série de jovens economistas e cientistas sociais e políticos, dentre eles o brasileiro Celso Furtado, cumpriu um papel de-cisivo na formulação do pensamento econômico latino-americano.16  Desenvolvimento endógeno se caracteriza por um desenvolvimento que se fundamenta nas próprias forças, isto é, nos próprios recursos materiais e financeiros e no próprio mercado.

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12A criação da Associação Latino-Americana de Livre Comércio

Mas o projeto mais ambicioso consistia na retomada da antiga ideia de integração do conjunto da América Latina e que vinha amadurecendo desde a década de 1940 entre os governos do Brasil e Argentina.17 Foi assim que, a 18 de fevereiro de 1960, assinava-se, em Montevidéu, o tratado que instituiu a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc), integrada por Argentina, Brasil, Chile, México, Paraguai, Peru e Uruguai. Os signa-tários do tratado representavam “mais de 80% do produto bruto e da população da América Latina” (HERRERA, 1966: 149).

A Alalc “tinha por objetivo básico a ampliação do comércio regional, e consequen-temente dos mercados nacionais, através da eliminação gradual das barreiras ao comércio intrarregional” (FARIA, 1993: XV). O prazo estipulado para o alcance de seus objetivos foi de 12 anos. Ocorreria, portanto, em 1972.

O modelo adotado tinha como referência o GATT.18 Havia as “listas nacionais” de concessões e uma “lista comum de bens”, com cujo desgravamento os signatários se com-prometiam, e, por outro lado, havia “listas especiais”, em benefício dos países de menor desenvolvimento relativo; estas últimas listas não estavam sujeitas à cláusula de nação mais favorecida (Ibidem: XV).

Havia sido criada uma condição internacional favorável a projetos dessa nature-za. Tendo chegado à conclusão de que, em lugar do alinhamento automático com qualquer das duas superpotências (EUA e URSS), deveriam trilhar um caminho de não-alinhamento, os líderes de vários países do Terceiro Mundo19 decidiram criar o Movimento de Países Não-Alinhados, que começou a congregar os países que que-riam seguir um caminho independente. O crescimento desse movimento fortaleceu a tendência à unidade de países mais pobres.

Ação dos EUA impede consolidação da Alalc

Mas a integração da América Latina ainda teria que enfrentar grandes desafios para concretizar-se. O principal deles provinha dos EUA. Os interesses estratégicos desse país entravam em contradição com a integração latino-americana. Era o velho adágio: “Dividir para reinar”.

Depois de terminada a fase dura da reconstrução europeia – com a qual contribuí-ram os EUA –, bem como a guerra contra a Coreia (em 1953), o governo dos EUA se voltou de maneira mais intensa para a América Latina. Suas corporações transnacionais estavam sedentas de ocupar na região o espaço que antes fora ocupado pelos capitais ingleses.

17  Os presidentes Getúlio Vargas, do Brasil, e Juan Domingo Peron, da Argentina, retomaram a proposta feita no começo do século, pelo Barão do Rio Branco, para formar o Pacto ABC (Argentina, Brasil e Chile) como plataforma para a integração do conjunto da região. 18  General Agreement on Trade and Tariff; em português: Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas. 19  Destacando-se Nasser no Egito, Nehru na Índia, Sukarno na Indonésia.

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12Além disso, na disputa pelo mercado mundial com as corporações alemãs e japone-

sas, que reconstruíam seu aparato produtivo com as tecnologias mais modernas,20 as trans-nacionais estadunidenses também teriam que se modernizar. Para isso, teriam que substi-tuir suas máquinas antigas por máquinas modernas.

A estratégia que os Estados Unidos montaram implicava transferir essas fábricas usadas para os países latino-americanos que já haviam começado seu processo de indus-trialização.21 Tal intento entrava em contradição direta com essas nações, já que estavam se industrializando, no fundamental, com base no próprio esforço e no controle nacional sobre a economia nacional. Era a época do nacional-desenvolvimentismo.

A política exterior dos EUA, que sempre esteve a serviço de seus interesses econô-micos, foi imediatamente posta para operar no sentido de criar as condições para essa ex-pansão de suas empresas. No interregno do governo John F. Kennedy, o Departamento de Estado, retomando a tradição legada por Franklin D. Roosevelt, tentou praticar uma política de “boa vizinhança”, principalmente através do programa Aliança para o Progresso.22

Mas, com a morte de Kennedy, a 22 de novembro de 1963, a agressividade da políti-ca externa dos EUA retornou com toda força. Conforme nos indica Toledo Machado: “Com a ascensão presidencial de Lyndon B. Johnson, os ´falcões´[...] começaram a agir com maior desembaraço, impondo a doutrina da inevitabilidade da terceira guerra mundial e da lide-rança militar dos EUA” (MACHADO, 2003: 260).

Para essa política, passou a ser de fundamental importância a substituição de go-vernos latino-americanos que não estivessem de acordo com a abertura de suas eco-nomias para a entrada de capital estrangeiro. Sucederam-se, a partir daí, os golpes militares na região. Como consequência, os novos governos instalados passaram a alinhar-se automaticamente com a política do Departamento de Estado. E, como a essa não interessava a efetivação da integração latino-americana, os acordos firma-dos para a criação da Alalc não saíram do papel.

Governos nacionalistas insistem na integração regional

A implementação da Alalc não conseguiu avançar. Mas ainda houve resistência por parte de vários governos. A primeira delas partiu dos países andinos. Em 1966, Chile, Vene-zuela, Peru e Equador firmaram a Declaração de Bogotá com o objetivo de criar, no âmbito

20  A capacidade produtiva desses dois países havia sido praticamente dizimada durante a guerra, enquanto a capacidade dos EUA, que não sofreram guerra em seu território, havia não apenas se mantido intacta, como se expandido. 21  Ver Capítulos 5 e 6 deste livro. Também SOUZA (2005: 57). 22  A Aliança para o Progresso foi um programa lançado pelo presidente John F. Kennedy e institucionalizado, en-tre 5 e 17 de agosto de 1960, durante a reunião do Conselho Interamericano Econômico e Social da OEA, em Punta Del Este (Uruguai). Era um Plano de 10 anos, com recursos orçados de US$ 500 milhões, oriundos basicamente dos EUA, com vistas a combater as desigualdades econômicas e sociais da América Latina. Ao final, limitou-se basica-mente a um plano assistencialista com o fornecimento de alimentos através do programa “Alimentos para a Paz”. Ainda que tenha sido formalmente extinto apenas em 1969 pelo presidente Richard Nixon, na prática deixou de funcionar com a morte de Kennedy e o início do apoio, pelo seu sucessor, aos golpes militares na América Latina (1964) (VALENTE, 27 jul 2006).

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12da Alalc,23 a Comunidade Andina de Nações, mais conhecida como Pacto Andino. Ela viria

a se consumar em 1969 através do Acordo de Cartagena.24

A segunda iniciativa ocorreu nos anos de 1970 entre Brasil e México. No Brasil, o setor nacionalista das Forças Armadas assumira o governo, tendo à frente o general Ernesto Geisel. Reagindo à recessão mundial deflagrada em 1974, Geisel implementou no país o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), que procurava combater o subdesenvolvi-mento e a crise através de medidas que reduzissem a dependência externa (SOUZA, 2008). No México, Luis Echeverría Alvarez, que governou de 1970 a 1976, tinha posicionamento idêntico. Dele nasceu, em 1975, a proposta de criação do Sistema Econômico Latino-Ameri-cano (SELA).

Contando com a adesão de muitos países da região, os objetivos desse sistema eram: coordenar posições governamentais nos foros internacionais; estimular a co-operação horizontal entre os países da região; apoiar os processos de integração latino-americanos e propiciar ações coordenadas entre eles. A criação do SELA foi importante para demonstrar a força do projeto ‘integracionista’ latino-americano (PINTO, 2008: 122-23).

Como se vê, o SELA não era um bloco econômico, mas contribuía para a sua forma-ção na medida em que propiciava ações coordenadas entre os vários governos da região. Ele era reflexo de uma dupla determinação:

− de um lado, a emergência da crise mundial debilitara a capacidade dos pa-íses centrais em manter sua pressão sobre os países em desenvolvimento;

− de outro, aproveitando-se dessa situação, o Movimento de Países Não-Ali-nhados, depois de aprovar na Conferência de Argel em 1973 que o princi-pal problema da época era a “contradição centro-periferia”, conseguiu, no ano seguinte, que 110 países apresentassem e lograssem aprovar na sexta Sessão Especial da Assembleia da ONU duas resoluções propondo o estabe-lecimento de uma Nova Ordem Econômica Internacional, baseada na auto-determinação, na cooperação e na igualdade entre os povos (MACHADO, 2000).

A transformação da Alalc em Associação Latino-Americana de Integração

A década de 1970 foi a década de fortalecimento dos Não-Alinhados. Nesse contex-to, foi retomado o projeto integracionista da América Latina. E assim se celebrou em 1980 um novo Tratado de Montevidéu, que transformou a Alalc na Associação Latino-Americana de Integração (Aladi). Segundo Faria,

muito do conteúdo do novo tratado já estava expresso no documento anterior, e a estrutura orgânica manteve-se essencialmente a mesma. Algumas mudanças signi-ficativas foram introduzidas, porém, relativamente aos objetivos e aos mecanismos da Associação. Primeiramente, deixou-se de lado a intenção de instituir uma zona de livre comércio, dando-se prioridade, a despeito do objetivo formal (declarado

23  Os acordos da Alalc previam a realização de blocos sub-regionais.24  Voltaremos a falar desse bloco mais adiante.

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12no Preâmbulo) de se criar um mercado comum, ao estabelecimento de uma zona de

preferências tarifárias regionais, o que representa uma abdicação aos objetivos que antecederam a nova Associação. Em segundo lugar, deixou-se maior margem aos Estados-Membros para celebrarem acordos bilaterais de complementação econô-mica, o que, em si, pode apresentar tanto vantagens quanto riscos para a integração continental (FARIA, 1993: XV-XVI).

Aquilo que foi apresentado como retrocesso na nova associação pode significar, na verdade, a adaptação às condições reais dos vários países a fim de garantir o avanço possível. Assim, ao mesmo tempo em que se estabelecia uma meta mais avançada do que a prevista na Alalc, ao propor a formação de um mercado comum, procurava-se começar pela base, isto é, pela formação de uma Zona de Preferências Comerciais. Simultaneamente, ampliavam-se as possibilidades de acordos sub-regionais, como forma de incentivar parcerias entre países de níveis de desenvolvimento semelhan-tes. Veremos adiante que foi exatamente esse mecanismo flexível que permitiu o avanço do projeto integracionista a partir da década de 1980.

Na América do Sul, a integração avança mais rapidamente

O processo de integração latino-americano avançou mais rapidamente na América do Sul: depois de muitos avanços e recuos, experimentou uma forte aceleração na década de 1980, com os acordos de cooperação entre Argentina e Brasil.

A criação do Mercosul no começo dos anos de 1990 veio se somar à outra experiên-cia integracionista da região, o Pacto Andino, para dar uma nova qualidade ao processo de integração sul-americana. Em 2004, deflagrou-se a fusão entre os dois blocos para dar lugar ao projeto designado inicialmente de Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), depois renomeado como União das Nações Sul-Americanas (Unasul).

O processo de integração da América do Sul tem seu antecedente mais remoto na formalização do Pacto A.B.C. promovido pelo Barão do Rio Branco no começo do século XX, proposta que foi reapresentada pela Argentina na década de 1950. A criação da Alalc em 1960 foi basicamente uma proposta sul-americana, pois dos países signatários apenas o México não pertencia à região.

Esse processo teve continuidade nos anos de 1960 com a criação do Pacto Andino e, na década de 1970, com a institucionalização dos contatos intergovernamentais através do Sistema Econômico Latino-Americano (SELA). A transformação da Alalc na Aladi em 1980 criou as condições para a aceleração do processo integracionista a partir da década de 1980.

Um importante momento desse processo foi a formação do Grupo de Apoio a Con-tadora, criado em 1983 por Venezuela, México, Colômbia e Panamá, recebendo a adesão, em 1985, do Peru, Brasil, Argentina e Uruguai. O objetivo era contribuir para a pacificação da América Central (que estava em guerra civil) e para o fortalecimento da América Latina.

Em 1986, o Grupo de Contadora ampliou seus objetivos, passando a envolver-se com o conjunto da problemática latino-americana. Receberia então o nome de Grupo do Rio. Mesmo sendo um grupo de natureza eminentemente política, a aproximação entre seus membros haveria de ensejar o aprofundamento do processo de integração econômica.

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12Em 1984, formava-se uma articulação baseada na esfera econômica. Reuniram-se em

Cartagena, Colômbia, os chanceleres e ministros da economia da Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, México, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela para criar uma instância permanente destinada a discutir a problemática da dívida externa. Esse grupo passou a ser conhecido como Consenso de Cartagena. Mesmo não havendo consegui-do uma ação conjunta na negociação da dívida, tornou-se mais um exemplo de cooperação entre os países latino-americanos.

Mas o eixo central da integração da América do Sul seria a aproximação entre Brasil e Argentina. O fator decisivo para essa aproximação foi o apoio dado pelo governo brasilei-ro à Argentina por ocasião da Guerra das Malvinas, quando a Argentina, ao tentar recuperar um território perdido para a Inglaterra – Ilhas Malvinas -, foi por esta agredida militarmen-te, com o apoio dos EUA.

Essa atitude contribuiu para a retomada da cooperação econômica entre os dois pa-íses, conforme se manifestou nos acordos estabelecidos em 1986 entre os governos do Brasil e da Argentina, que desembocariam na criação do Mercosul.

Em 1993, foi dado mais um passo na integração sul-americana com a proposta, apre-sentada pelo governo brasileiro, de criação de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana (Alcsa), que, em 2004, se transformaria num projeto de integração regional com o nome de Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), depois rebatizada como Unasul.

A proposta de criação da Casa-Unasul implicou a união dos dois blocos existentes na região (Comunidade Andina de Nações e Mercado Comum do Sul), além dos três países que não participavam de qualquer desses blocos (Chile, Guiana e Suriname).

Os países andinos se integram no Pacto Andino

A formação da Comunidade Andina de Nações (CAN), também conhecida como Pacto Andino, teve início em 1969. Criou-se então, através do Acordo de Cartage-na (Colômbia), o Grupo Andino, constituído por Bolívia, Chile, Colômbia e Peru. Em 1973, receberia a adesão da Venezuela e, posteriormente, haveria a defecção do Chile.

O objetivo seria constituir uma União Aduaneira num prazo de 10 anos. Nesse perío-do de transição, o bloco funcionaria como Área de Livre Comércio. No entanto, a transição foi mais prolongada. Bolívia, Colômbia e Venezuela culminaram a abertura de seus merca-dos para os parceiros em 30 de setembro de 1992. O Equador completou seu processo em 3l de janeiro de 1993 (COMUNIDADE ANDINA, 8 mar. 2005).

Na concepção andina, sua Área de Livre Comércio, diferentemente do Mercosul, não contemplaria uma lista de exceções para os produtos mais sensíveis; todos os produtos de seu universo tarifário seriam liberados. Desde o início, havia o compromisso de uma inte-gração mais profunda, que, partindo das etapas iniciais, culminasse num Mercado Comum.

A segunda etapa do processo de integração, a União Aduaneira, teve início em 1995, quando entrou em vigência a tarifa externa comum (TEC). Colômbia, Equador e Venezuela acordaram tarifas de 5, 10, 15 e 20%, a depender do produto; a Bolívia, com tratamento pre-ferencial, passou a praticar dois níveis tarifários: 5 e 10% (Ibidem). O Peru não assinou esse acordo.

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12O bloco receberia o nome de Comunidade Andina de Nações (CAN) com a assinatu-

ra do Protocolo de Trujillo (Peru) em 1996. Os principais objetivos definidos foram:

a) promover um desenvolvimento equilibrado e harmônico entre os países-mem-bros em condições de equidade, acelerar o crescimento por meio da integração e da cooperação econômica e social;

b) impulsionar a participação no processo de integração regional, com vistas à formação gradual de um mercado comum da América Latina, e procurar me-lhorar as condições de vida de seus habitantes (COMUNIDADE ANDINA, 5 fev. 2005).

O bloco também estabeleceu objetivos políticos. Em 1980, os presidentes dos Esta-dos-partes firmaram em Riobamba (Equador) a Carta de Conduta que estabeleceu o caráter democrático que deveria reger o ordenamento político sub-regional.

Ao longo do tempo, foram sendo criados os mecanismos de coordenação do bloco, mas sua institucionalização só se completou em agosto de 1997 com a criação da Secretaria Geral com caráter executivo (com sede em Lima) e do Conselho Presidencial Andino como órgão de orientação e direção política.

A CAN, à época em que se converteu em União Aduaneira, possuía um PIB de US$ 273 bilhões e uma população de mais de 117 milhões de habitantes, com PIB per capita de US$ 2.333.

O bloco, até recentemente, vinha negociando em conjunto suas relações com outros blocos econômicos, como Mercosul, União Europeia, Nafta, Apec e Assean (COMUNIDA-DE ANDINA, 10 mar. 2005).

No entanto, depois de 2004, com o fracasso do projeto da Alca, alguns países do Pacto Andino deixaram-se influenciar pela ofensiva do governo dos EUA na região. Como o projeto da Alca não prosperou, como veremos no próximo capítulo, a tática da adminis-tração estadunidense passou a ser a de promover acordos bilaterais com os países latino-americanos. O fato de o Equador, o Peru e a Colômbia terem assinado esses acordos levou a Venezuela a retirar-se da CAN e integrar-se ao Mercosul.

O cone sul se integra no Mercado Comum do Sul

O outro bloco econômico em desenvolvimento na América do Sul é o Mercado Co-mum do Sul (Mercosul). O antecedente mais imediato da formação desse bloco foi a Ata de Integração Basil-Argentina firmada em 1986 entre os presidentes José Sarney (Brasil) e Raúl Alfonsin (Argentina). Os dois foram os primeiros presidentes de seus países após o fim dos regimes ditatoriais. Essa Ata, ao criar o Programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE), tinha um largo alcance para a política de integração sul-americana. Quem descreveu muito bem seus objetivos foi Moniz Bandeira:

A determinação com que Alfonsin e Sarney trataram de promover a integração econômica entre os dois países foi tanta que em apenas um ano se encontraram três vezes (duas com a participação do presidente do Uruguai, Julio Maria Sanguinet-ti). E seus esforços para construir o ‘zollverein’, a partir de um projeto integrado

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12de produção, comércio e desenvolvimento tecnológico do setor de bens de capital,

fornecimento de trigo, complementação do abastecimento alimentar e expansão gradual, sustentada e equilibrada do comércio, com apoio à exportação do país de-ficitário, visou possibilitar que o Brasil e a Argentina alcançassem maior autonomia e independência em relação ao mercado mundial, mediante crescente unificação de seus espaços econômicos. A própria ênfase dada à integração do setor de bens de capital, coração da indústria pesada e matriz do desenvolvimento tecnológico, mostrou o propósito de aumentar, particularmente, a capacidade de auto-susten-tação e auto-transformação de suas economias, estabelecendo o ciclo completo da reprodução ampliada do capital, de forma independente, com a unificação dos dois mercados (BANDEIRA, 2003: 464-65)

O passo seguinte foi a assinatura, em 1988, do Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento entre Brasil e Argentina. O objetivo era criar

um espaço econômico comum, mediante a remoção gradual, em dez anos, de todos os obstáculos tarifários e não-tarifários à circulação de bens e serviços, bem como harmonizar e coordenar suas políticas aduaneiras, monetária, fiscal, cambial, agrí-cola e industrial (PINTO, 2008: 131).

Foram assinados nessas duas oportunidades 24 protocolos sobre os temas descritos acima. Eles foram consolidados no Acordo de Complementação Econômica nº 14, assinado em dezembro de 1990, no âmbito da Aladi. Esta foi a base para a criação do Mercosul.

Contraditoriamente, a proposta lançada em 1989 por George Bush, então presidente dos EUA, conhecida como Iniciativa para as Américas, que visava conformar uma zona de livre comércio do Alasca à Terra do Fogo, terminou acelerando o processo de integração na América do Sul. Apesar de serem a favor da proposta estadunidense, os governantes sul-america-nos da época25, orientados por seu corpo diplomático, preferiram formar um bloco regional como forma de fortalecer sua posição na negociação com os EUA. E preci-samente esse foi um dos critérios estabelecidos no Tratado de Assunção que, em 26 de março de 1991, criou o Mercosul para integrar o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai.

Os objetivos traçados foram os seguintes:

− livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países, por intermédio, entre outros, da eliminação dos direitos alfandegários, de restri-ções tarifárias à circulação de mercadorias ou de qualquer medida de efeito equivalente;

− estabelecimento de uma tarifa externa comum (TEC), adoção de uma políti-ca comercial comum em relação a terceiros Estados ou agrupamentos de Es-tados e coordenação de posições em foros econômico-comerciais regionais e internacionais;

− coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais e outras – de comér-cio exterior, agrícola, industrial, fiscal, monetária, cambial, de capitais, de serviços, alfandegárias, de transporte e comunicação etc – que se viessem

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12acordar, com a finalidade de assegurar condições adequadas de concorrên-

cia entre os Estados-partes;

− compromisso dos Estados-Partes de harmonizar suas legislações nas áreas pertinentes para lograr o fortalecimento do processo de integração (CARVA-LHO; SILVA, 2002: 235).

O objetivo estratégico era constituir um mercado comum, mas os governantes opta-ram por atingir esse objetivo através de etapas, a começar por uma Área de Livre Comércio, passando depois por uma União Aduaneira.

Assim, da assinatura do Tratado até 31 de dezembro de 1994, dever-se-ia viver a etapa de transição para uma Área de Livre Comércio. O objetivo dessa etapa era remover os obstáculos tarifários e não tarifários à livre circulação de produtos.

Nessa etapa, a liberalização do comércio contou com duas estratégias:

− um programa de desgravação progressivo, linear e automático de forma a atingir tarifa zero em 31 de dezembro de 1994; e

− eliminação progressiva das barreiras não tarifárias ou de medidas de efeito equivalente sobre o comércio recíproco (Ibidem: 235).

Mas, como há o desnível no desenvolvimento dos países-membros, foram excluídos do cronograma de desgravação os produtos indicados nas listas de exceções apresentadas por cada país. O número de itens, porém, deveria diminuir à razão de 20% por ano até 31 de dezembro de 1994. Além disso, o Paraguai e o Uruguai tiveram um ano a mais de prazo para cumprir esse cronograma.

A etapa seguinte seria a de transição para uma União Aduaneira. Em setembro de 1990, os presidentes do Brasil e da Argentina assinaram a Ata de Buenos Aires que estipula-va a data de 1º de janeiro de 1995 para a entrada em vigor da União Aduaneira.

Seu instrumento principal seria a tarifa externa comum (TEC). Assim, em agosto de 1994, foi decidida em Buenos Aires a tarifa externa comum para praticamente todo o universo tarifário, inclusive os produtos sensíveis. Seu limite máximo foi estabelecido em 20%. Foi dado o prazo até 2001 para a adaptação de cada país a esse teto, estendendo-se até 2006 no caso dos produtos de informática. O objetivo era que nesse ano, quando terminaria o período de convergência ascendente ou descendente das tarifas nacionais que ainda se encontravam em regime de exceção, a TEC estaria implementada para todo o universo tari-fário (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 25 nov. 2004).

Por se tratar de União Aduaneira, o conjunto da região teria que ser protegido de produtos originados de outros países de fora do bloco. Daí a aprovação do Regime Geral de Origem, que estabeleceu regras referentes à origem das mercadorias comercializadas entre os países-membros. A regra básica foi a de que, para receber o tratamento de produto regional, os produtos contemplados por tarifas privilegiadas deveriam possuir percentual mínimo de 60% de valor agregado regional.

A implementação dos acordos destinados a concretizar o bloco regional exigiria, ob-viamente, a criação de uma estrutura institucional de coordenação e execução, além de um conjunto de regras decisórias. São dois os órgãos decisórios:

− o Conselho do Mercado Comum, que é o órgão superior, responsável pela condução da política e a tomada de decisões destinadas à formação do bloco

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12regional; é constituído pelos ministros das Relações Exteriores e da Econo-

mia dos países-membros;

− o Grupo Mercado Comum, que é o órgão executivo, coordenado pelos Mi-nistérios de Relações Exteriores, com representantes dos Ministérios da Eco-nomia e dos Bancos Centrais (OLIVEIRA, 2005: 22).

Uma decisão importante, adotada no Protocolo de Ouro Preto, foi o reconhecimento da personalidade jurídica de direito internacional do Mercosul. Esse reconhecimento atribui ao bloco econômico competência para negociar, em nome próprio, acordos com terceiros países, grupos de países e organismos internacionais.

No momento de sua conformação enquanto União Aduaneira, em 1995, o Mercosul já representava um peso importante na economia mundial. Com uma população de 201,9 milhões de habitantes e uma área territorial de 11,86 milhões de quilômetros quadrados, o bloco produzia um PIB de US$ 994,74 bilhões, o que dava um PNB per capita de US$ 4.380,00. O peso da indústria na economia regional era de 35% e o grau de urbanização, de 79% (CARVALHO; SILVA, 2002: 239, quadro 12.4). Como agrupamento econômico, o Mercosul constituía o quarto maior mercado consumi-dor do mundo, depois do Nafta, União Europeia e Japão. Seu setor industrial é um dos mais importantes dentre os países em desenvolvimento.

Consenso de Washington e neoliberalismo dificultam consolidação do Mercosul

No entanto, o Mercosul começou a ser implementado num período (década de 1990) em que o Consenso de Washington e o neoliberalismo, com seu postulado de livre comércio, começaram a orientar as políticas econômicas da região. Isso alterou em grande medida os objetivos iniciais.

Concebido na década anterior pelos presidentes Sarney e Alfonsin como instrumen-to de desenvolvimento autônomo da região, com base em parcerias produtivas, particular-mente nas áreas de bens de capital e tecnologias avançadas, converteu-se, nas mãos de Fer-nando Collor de Mello e Carlos Menem, num bloco que passou a priorizar o livre comércio.

Neste caso, “ao lado da redução das tarifas internas, também reduzia-se a chamada tarifa externa comum (TEC) e se valorizavam as moedas locais, em verdadeiro sub-sídio aos produtos estrangeiros” (SOUZA, 2001: 107). Registre-se que, no momento em que o Mercosul se converteu em União Aduaneira, em 1995, estabeleceu-se uma TEC baixíssima para os padrões da época: 12,3% (BANDEIRA, 2004: 80)

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12Daí decorreram dois problemas:

• a redução da TEC provocou um violento aumento das importações da região, oriundas sobretudo dos EUA,25 gerando déficits nas balanças comerciais e comprometendo seriamente o setor produtivo da região, incapaz de concorrer com produção importada subsidiada, acarretando, como consequência, o au-mento do desemprego;

• a redução indiscriminada, sem planejamento estratégico, das tarifas entre os países-membros provocou o sucateamento de setores mais débeis dos países menos desenvolvidos da região; essa situação se agravou depois da desvalo-rização da moeda brasileira em 1999.

O ministro da Economia da Argentina, Domingo Caballo, que retornara ao gover-no durante a crise que afetou o país,26 tentou utilizar esse fato para adotar medidas que, na prática, comprometiam a existência do Mercosul.

O agravamento da crise argentina, porém, levou à queda do governo e à formação de um novo governo mais comprometido com o Mercosul. Posteriormente, na gestão de Néstor Kirchner, quando as mercadorias brasileiras voltaram a inundar o mercado argenti-no, o governo daquele país elevou as tarifas de importação de vários produtos brasileiros, sobretudo os da linha branca.

Esses fatos serviram para acirrar a crítica daqueles que se opunham à constituição de um bloco regional sul-americano e defendiam a formação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).

Mercosul avança, apesar dos obstáculos

No entanto, apesar desses problemas, se formos examinar o Mercosul do ponto de vista das correntes de comércio intrarregional27 e das negociações internacionais, o bloco regional tem tido grande sucesso.

As trocas entre o Brasil e os demais membros do Mercosul aumentaram de US$ 3,6 bilhões em 1990 para US$ 18,5 bilhões em 1997. Houve um revés a partir de então porque combinou-se a crise argentina com a desvalorização do real brasileiro,28 e assim o comércio intrarregional baixou para US$ 8,9 bilhões em 2002. Mas, dali em diante, com a retomada do crescimento argentino29 e a decisão do governo brasilei-ro de recolocar no centro da sua política exterior a integração regional, o comércio intrarregional voltou a crescer: em 2008, a corrente de comércio entre o Brasil e os outros países do Mercosul já havia atingido US$ 36,7 bilhões (MDIC-SECEX, 06 jan. 2009).

25  Conforme o Departamento de Comércio dos EUA, as exportações estadunidenses para o conjunto da América do Sul praticamente duplicaram de 1991 para 1995, passando de US$ 15,9 bilhões para US$ 28 bilhões (SOUZA, 2001: 107). 26  Caballo fora ministro de Menem e reassumiu a função durante o governo de Fernando De La Rua.27  Soma de exportações e importações.28  A crise argentina debilitou sua capacidade de absorver produtos brasileiros, enquanto a desvalorização do real tornou os produtos argentinos mais caros no Brasil. 29  O PIB argentino, de 2003 a 2006, cresceu a uma taxa média anual de 9% (PIB ARGENTINO, 27 jul. 2006).

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12No final dos anos de 1990, o bloco já era o principal mercado para as exportações

brasileiras de manufaturados: na faixa de 28% em 1997-1998, contra 22,5% para os EUA.

No entanto, manifestam-se nesse intercâmbio dois problemas, que podem afetar o processo de integração:

• há uma divisão do trabalho em que o Brasil é o principal beneficiário: expor-ta principalmente produtos industriais e importa preferencialmente produ-tos primários;

• o Brasil vem sendo crescentemente superavitário: seu superávit comercial em relação aos demais países do Mercosul subiu de US$ 2,5 bilhões em 2004 para US$ 6,8 bilhões em 2008 (Ibidem).

O Mercosul, por sua vez, agiu como bloco em várias negociações internacionais, a saber:

a) negociação de Acordos de Livre Comércio entre Mercosul e os demais mem-bros da Aladi;

b) implementação do Acordo-Quadro-Regional de Cooperação Econômica e Co-mercial, firmado em dezembro de 1995 entre o Mercosul e a União Europeia;

c) a coordenação de posições no âmbito das negociações com vistas à formação da área hemisférica de livre comércio (OLIVEIRA, 2005: 25).

Além disso, no período recente, o bloco regional tem buscado superar a prática ini-cial que concentrava a integração na esfera comercial. Passou a abarcar áreas como a co-ordenação de políticas externas, a cooperação em matéria de segurança internacional, de assuntos judiciários e de educação. Assim,

a integração comercial propiciada pelo Mercosul também favoreceu a implantação de realizações nos mais diferentes setores, como a educação, justiça, cultura, trans-portes, energia, meio ambiente e agricultura. Neste sentido, vários acordos foram firmados, incluindo desde o reconhecimento de títulos universitários e a revalida-ção de diplomas até, entre outros, o estabelecimento de protocolos de assistência mútua em assuntos penais e a criação de um ‘selo cultural’ para promover a coo-peração, o intercâmbio e a maior facilidade no trânsito aduaneiro de bens culturais (OLIVEIRA, 2005: 25).

Acrescente-se o Acordo sobre o “Visto Mercosul”, que confere tratamento preferen-cial e privilegiado aos cidadãos do Mercosul na legalização da prestação de serviços nos Estados-partes.

Para dar prosseguimento à implementação do bloco, o Presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, propôs aos demais membros, durante a Cúpula do Mercosul de junho de 2003, em Assunção, Paraguai, as linhas gerais do programa “Objetivo 2006”, que visava garantir a consolidação da União Aduaneira até 2006, a fim de abrir o caminho para o in-gresso na etapa do Mercado Comum.

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12Em 2006, o bloco foi fortalecido com o ingresso como membro pleno da Venezuela.30

Bolívia e Chile já haviam se integrado como membros associados.

A integração do conjunto da América do Sul: Unasul

Simultaneamente com a crise na Comunidade Andina de Nações, decorrente da rea-lização de acordos bilaterais com os EUA, e com a discussão sobre a passagem do Merco-sul para a etapa de Mercado Comum, desenvolviam-se as negociações para a formação da Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), que depois passou a se chamar União das Nações Sul-Americanas (Unasul).

A Comunidade Sul-Americana de Nações, inicialmente com a sigla provisória de CSN e depois de Casa, foi lançada por ocasião da terceira Reunião de Presidentes da América do Sul, em 2004, na cidade de Cuzco (Peru) (MRE, 08.12.2004). Fora ide-alizada durante o governo Itamar Franco (1992-1994), quando o embaixador Celso Amorim era chanceler. Mas, até chegar à concretização efetiva da proposta, percor-reu um longo caminho.

Entre o fim do governo Itamar e o começo do de Lula, o projeto praticamente não avançou. Durante os oito anos do governo Fernando Henrique, ainda que hajam ocorrido vários eventos sobre o tema, a diplomacia brasileira não deu prioridade à integração sul-americana. Aquele governo utilizava esses eventos apenas como instrumento de barganha no contexto das negociações sobre a Alca. Entre os principais fatos, podemos citar:

• em 1995, realizou-se em Montevidéu a primeira reunião de representantes dos governos dos países-membros do Mercosul e da Comunidade Andina;

• em 16 de abril de 1998, foi firmado o Acordo Marco para a criação de uma Zona de Livre Comércio entre o Mercosul e a Comunidade Andina, que es-tabeleceu, como etapa prévia, a negociação de um acordo de preferências tarifárias fixas entre os dois agrupamentos sub-regionais;

• em agosto de 1999, os dois blocos assinaram o Acordo de Alcance Parcial de Complementação Econômica, que estabelecia os passos iniciais para a criação de uma Zona de Livre Comércio entre a CAN e o Mercosul (COMU-NIDADE ANDINA, 16 mar. 2005);

• a I Reunião de Presidentes da América do Sul, realizada em Brasília nos dias 31 de agosto e 1º de setembro de 2000, tomou a decisão de retomar as nego-ciações entre os dois blocos e estabeleceu o prazo limite de janeiro de 2002 para a criação de uma Área de Livre Comércio (ALC);

• essa negociação foi retomada em abril de 2001, com a finalidade de assinar um acordo para criação da ALC entre os dois blocos (Ibidem);

• os chanceleres dos países andinos participaram da reunião ministerial de La Paz, em julho de 2001, na qual se institucionalizou o diálogo e a cooperação política entre a Comunidade Andina, o Mercosul e o Chile;

30  Só em 2008, esse ingresso foi aprovado pela Câmara de Deputados do Brasil, faltando ainda a aprovação pelo Senado.

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12• durante a II Reunião de Presidentes da América Sul, em Guayaquil, em julho

de 2002, os ministros das Relações Exteriores e de Comércio de ambos os blocos concordaram com a necessidade de acelerar o processo das negocia-ções comerciais.31

Como se vê, várias reuniões foram realizadas e nelas várias vezes foi decidida a criação de uma Área de Livre Comércio entre a CAN e o Mercosul, mas essas decisões não saíram do papel. A concretização efetiva da fusão entre os dois blocos foi colocada na prio-ridade da política externa brasileira a partir do governo Lula, quando o embaixador Celso Amorim reassumiu a frente da diplomacia brasileira.

Assim, em dezembro de 2003, os governos dos países integrantes dos dois blocos assinaram um Acordo de Complementação Econômica com o objetivo de integrá-los num único bloco, incluindo o Chile, a Guiana e o Suriname, que não integravam qualquer dos agrupamentos sub-regionais.

Mas a criação do novo bloco regional, a Comunidade Sul-Americana de Nações, só seria formalizada em dezembro de 2004 em Cuzco (Peru), com seu desenho final sendo aprovado pela I Cúpula da Comunidade Sul-Americana de Nações, realiza-da nos dias 29 e 30 de setembro de 2005 em Brasília (Brasil). Nesta última reunião, o bloco passaria a se chamar União das Nações Sul-Americanas (Unasul).

O objetivo não é apenas formar uma Área de Livre Comércio, como se esboçara nas negociações anteriores. Nas discussões, o governo da Venezuela insistiu que a integração meramente pelo comércio poderia significar desintegração, à medida que, na concorrência, os países mais frágeis sairiam perdendo. Por isso, o eixo deveria ser a realização de parcerias produtivas e na área de infraestrutura como forma de desenvolver o conjunto da região e fortalecê-la no cenário internacional.

No texto de Cuzco que formalizou a criação da Comunidade, estão estabelecidas as razões para a tomada dessa importante decisão:

A história compartilhada e solidária de nossas nações, que desde as façanhas da in-dependência têm enfrentado desafios internos e externos comuns, demonstra que nossos países possuem potencialidades ainda não aproveitadas tanto para utilizar melhor suas aptidões regionais quanto para fortalecer as capacidades de negocia-ção e projeção internacionais;

O pensamento político e filosófico nascido de sua tradição, que, reconhecendo a primazia do ser humano, de sua dignidade e direitos, a pluralidade de povos e cul-turas, consolidou uma identidade sul-americana compartilhada e valores comuns, tais como: a democracia, a solidariedade, os direitos humanos, a liberdade, a justiça social, o respeito à integridade territorial e à diversidade, a não discriminação e a afirmação da sua autonomia, a igualdade soberana dos Estados e a solução pacífica de controvérsias;

A convergência de seus interesses políticos, econômicos, sociais, culturais e de se-gurança, como um fator potencial de fortalecimento e desenvolvimento e suas ca-pacidades internas para sua melhor inserção internacional;

31  Resumo feito com base em OLIVEIRA (2005: 30-32).

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12A convicção de que o acesso a melhores níveis de vida de seus povos e à promo-

ção do desenvolvimento econômico não pode reduzir-se somente a políticas de crescimento sustentável da economia, mas compreender também estratégias que, juntamente com uma consciência ambiental responsável e o reconhecimento das assimetrias no desenvolvimento de seus países, assegurem uma distribuição de renda mais justa e equitativa, o acesso à educação, a coesão e a inclusão social, bem como a preservação do meio ambiente e a promoção do desenvolvimento susten-tável (MRE, 8 dez. 2004).

Em outra parte do documento, fica igualmente evidente que o projeto pretende ir além de uma Área de Livre Comércio:

O aprofundamento da convergência entre o Mercosul, a Comunidade Andina e o Chile, através do aprimoramento da zona de livre comércio, apoiando-se, no que for pertinente, na Resolução 59 do XIII Conselho de Ministros da ALADI, de 18 de outubro de 2004, e sua evolução a fases superiores da integração econômica, social e institucional. Os Governos do Suriname e Guiana se associarão a este processo, sem prejuízo de suas obrigações sob o Tratado revisado de Chaguaramas (Ibidem).

Quanto ao mecanismo decisório, estabeleceram-se dois níveis: as decisões estraté-gicas do grupo serão tomadas durante reuniões dos chefes de Estado dos países-membros; por outro lado, os chanceleres são responsáveis pelas deliberações administrativas e execu-tivas do bloco.

São 12 os países que passaram a integrar o novo bloco: Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai pelo Mercosul; Bolívia, Equador, Colômbia, Peru e Venezuela pela CAN; mais o Chile, Guiana e Suriname. Na época da sua constituição, reuniam 361 mi-lhões de habitantes (Ibidem).

As dificuldades da integração física foram vistas, desde o início, como uma ques-tão fundamental a ser enfrentada. Apesar de existirem importantes corredores estratégicos, como o Eixo Mercosul-Chile, o Eixo Colômbia-Venezuela, o Eixo fluvial Paraguai-Paraná e o eixo marítimo do Atlântico e Pacífico, a infraestrutura de comunicação intrarregional é de baixa qualidade. Daí que, entre as decisões adotadas, está a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) (ARAÚJO, 2004: 370).

Os governantes dos principais países da América do Sul na primeira década dos anos 2000 demonstravam, cada um a seu modo, compromisso com o projeto integracionista. É evidente que, nesse processo, ocorrem conflitos,32 pois, como em qualquer processo de in-tegração, existem contradições a serem superadas. Mas a decisão de levar adiante o projeto tem predominado.

No entanto, os limites ao avanço da integração sul-americana são, sobretudo, exter-nos à região. Diante do fracasso da proposta de formação da Alca, substituída pelos gover-nantes sul-americanos pelo projeto da Unasul, o governo dos EUA tem procurado dividir o movimento integracionista mediante a oferta de acordos comerciais bilaterais com determi-nados países da região.

32  Haja vista o conflito entre Argentina e Brasil a propósito dos produtos da linha branca.

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12Questionário

1. Por que os governos europeus decidiram implementar seu processo de integração e por que decidiram acelerá-lo na década de 1980?

2. Quais as etapas da integração estabelecidas no Ato Único Europeu?

3. Por que a quebra dos direitos sociais fazia parte da estratégia de integração euro-peia?

4. Analise as possibilidades de a Europa competir com os EUA depois de completa-do seu processo de integração.

5. Quais as dificuldades enfrentadas pela Europa em seu processo de integração?

6. Defina os objetivos da Alalc e da Aladi e indique as dificuldades enfrentadas em sua implementação.

7. Por que a Aladi, apesar de parecer um retrocesso no processo de integração da América Latina, favoreceu o avanço desse processo?

8. Mostre as circunstâncias em que foi criada a CAN e quais seus objetivos.

9. Quais os objetivos do Mercosul? Em que circunstâncias ele foi criado?

10. Indique as dificuldades enfrentadas na implementação do Mercosul.

11. Mostre como avançaram as relações de comércio intrarregional após o Mercosul.

12. Analise o processo de criação da Unasul.

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12Secretaria de Comércio Exterior. Intercâmbio comercial brasileiro; Mercado Comum do Sul – Mer-

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13 Protecionismo dos EUA contra o Brasil

As relações comerciais dos Estados Unidos com o Brasil foram profundamente afe-tadas por essa onda protecionista. No começo dos anos 2000, segundo o então embaixador brasileiro em Washington, Rubens Barbosa, 67 produtos brasileiros tinham acesso bloquea-do àquele mercado por uma série de barreiras não tarifárias.

Levantamento feito pela Secretaria de Comércio Exterior em 2001 revelou que 60% das nossas exportações sofriam algum tipo de restrição nos EUA (SOUZA, 2001: 103). Eram barreiras não tarifárias tais como o estabelecimento de cotas, medidas de controle fito-sani-tário, medidas antidumping, subsídios ao produtor interno, dentre outras.

A assimetria do protecionismo estadunidense é evidente. Estudo realizado pela Em-baixada do Brasil em Washington revelou que os 20 principais produtos brasileiros exporta-dos para os EUA sofriam uma tarifa de importação média de 39,1% naquele país, enquanto o Brasil cobrava apenas 12,9% sobre os 20 principais produtos exportados pelos EUA. Isso apesar de a tarifa média adotada nos EUA para o conjunto do mundo situar-se na época entre 4% e 5% (SOUZA, 2005: 651)

Ainda segundo o citado embaixador brasileiro, no começo dos anos 2000, 130 pro-dutos brasileiros enfrentavam tarifas acima de 35% no mercado estadunidense. Depois des-sa constatação, concluiu o documento da Embaixada: “Lamentavelmente para o Brasil, há uma grande coincidência entre as áreas nas quais incidem os subsídios e o protecionismo americano e o nosso perfil exportador externo, o que atua em detrimento dos legítimos inte-resses dos nossos produtores eficientes” (cit. in SOUZA, 2005: 651).

Questionário

1. Analise as principais medidas protecionistas adotadas pelo governo dos EUA

contra o Brasil a partir do ano 2000.

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13Referências bibliográficas

SOUZA, N. A. de. A longa agonia da dependência: economia brasileira contemporânea (JK-FH). 2. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 2005.

_____________. Ascensão e queda do império americano. São Paulo: CPC-UMES/Mandacaru, 2001.

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14 Ou Alca ou Unasul

Havendo-se examinado as contradições do processo de integração da América do Sul, mediante a avaliação de seus limites e possibilidades, proporcionam-se os elementos para tentar trazer à luz quais as suas perspectivas e, dentro destas, qual a tendência princi-pal. Os elementos revelados até agora indicam a incompatibilidade entre a criação da Alca e da Unasul.

Se a Unasul se constituir enquanto mercado comum, com proteção externa comum e livre mobilidade dos fatores, inclusive da força de trabalho, isso tenderia a inviabilizar a Alca, já que o projeto dos EUA para sua constituição, além de pretender praticar o livre co-mércio para o conjunto do hemisfério – portanto, não abrigando a possibilidade de proteção externa de uma sub-região –, não contempla a livre mobilidade de força de trabalho.

Se, por outro lado, a Alca chegasse a ser o projeto vitorioso, não haveria espaço para a criação da Unasul, porque, ao constituir-se uma área de livre comércio para o conjunto das Américas, não seria possível, dentro dela, conformar-se um bloco sub-regional que, sendo mercado comum, se protegesse da entrada de produtos dos demais países integrantes da Área de Livre Comércio mais abrangente.1

Por essas razões, a viabilidade da Unasul passou a depender, primordialmente, da não consumação do projeto da Alca. Depois que as negociações da Alca chegaram a um impasse, se fortalece a conformação da União Europeia e se constituíram na região sul-americana governos comprometidos, em maior ou menor grau, com o programa de integração, a tendência principal é que se conforme um bloco sul-americano, podendo vir a ampliar-se para outras áreas da América Latina.

Questionário

1. Mostre por que seria impossível conciliar a criação da Alca e da Unasul.

1  O bloco sul-americano até poderia manter a TEC para os países de fora do hemisfério americano, mas isso não ajudaria muito a proteção dos países-membros frente à competição desigual oriunda dos centros de poder econô-mico, já que o principal centro – os EUA – estaria dentro do bloco. Além disso, os produtos dos países de fora do hemisfério teriam mil formas de entradas desgravadas na região, pois poderiam ingressar através dos países que não estivessem protegidos pela TEC ou graças aos acordos bilateriais ou plurilaterais que realizam.

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15 Crescimento dos “anos dourados” foi muito baixo

Mostramos no Capítulo 10 do livro-texto Economia internacional contemporânea que, apesar de haver melhorado a performance nos “oito anos dourados” da gestão Clinton, a economia dos EUA não experimentou nenhum período de prosperidade: o ritmo de cresci-mento permaneceu num patamar baixo. Além disso, boa parte desse crescimento foi finan-ciada com endividamento externo.

Surgiu, no entanto, a tese de que a economia estadunidense teria dado a volta por cima e ingressado em seu mais longo período de prosperidade, alavancado por uma impor-tante revolução tecnológica, que teria incrementado significativamente a produtividade do trabalho no país.

Apresentamos no Capítulo 10 do livro-texto uma série de dados que comprovam o contrário. Estudos da OCDE e dos economistas estadunidenses Stephen Oliner e William Wascher demonstraram que não ocorria revolução tecnológica alguma nos EUA. Concluí-ram que “o foco de redução de custos concentrou-se mais no emagrecimento das estruturas administrativas do que nas mudanças de produção”, isto é, em lugar do avanço técnico, “terceirizou-se” a mão de obra para pagar uma remuneração mais baixa. O “foco da redução de custos” também se concentrou no aumento da jornada de trabalho.

A conclusão desses mesmos economistas de que não estava havendo aumento da produtividade do trabalho foi reforçada por estudo de Doug Henwood, editor do boletim “Left Bussiness Observer”, e outro do economista Dennis Small (1999), que, usando como medida de produtividade a produção por habitante e por quilômetro quadrado, concluiu que a produtividade real nos EUA, isto é, escoimada dos efeitos da especulação financeira, vinha baixando a uma média de 2% ao ano.

Se a produtividade estava estagnada, qual a origem do “crescimento americano” da era Clinton? Pode conjeturar-se que não foi a economia real, física, que cresceu, mas apenas e tão-somente a “riqueza financeira”. Ou seja, os EUA não estavam produzindo mais para-fusos, comida, casas, roupas etc. Foram as ações e os títulos em geral que se valorizaram e puxaram para cima a medida oficial do PIB. Era um “efeito riqueza” ilusório, era um mundo de fantasia, que poderia desabar a qualquer momento.

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15A tabela que exibimos adiante pode ser uma demonstração desse falso crescimen-

to. Verifica-se nela uma evolução extremamente errática do crescimento trimestral anualizado do PIB dos EUA de 1997 a 2000. A economia real, isto é, a produção de bens e serviços, na indústria, na agricultura, na construção civil, nas minas, não costuma evoluir dessa forma. A evolução da economia real depende do comporta-mento dos investimentos produtivos (e/ou da utilização da capacidade ociosa) e da demanda.

E é evidente que nenhuma empresa, ou o governo, planeja de maneira tão irregular seus investimentos, na medida em que eles dependem de variáveis tais como taxa de lucro, taxa de juros, disponibilidade de recursos, expectativa de vendas etc., que não oscilam tanto no curto prazo. Da mesma maneira, o consumidor, que dispõe de uma renda relativamente fixa no curto prazo e costuma ter um padrão de consumo relativamente estável, também não oscila muito suas despesas num período tão curto.

Tabela 15.1 EUA: evolução do PIB trimestral – 1997 – 2000 – taxa anualizada (%)

1º tri.97 2º tri. 97 3º tri. 97 4º tri. 97 1º tri. 98 2º tri. 98 3º tri. 98 4º tri. 98

4,4 5,9 4,2 2,8 6,5 2,9 3,4 5,6

1º tri. 99 2º tri. 99 3º tri. 99 4º tri. 99 1º tri. 00 2º tri. 00 3º tri. 00 4º tri. 00

3,5 2,5 5,7 8,3 4,8 5,6 2,2 1,0

Fonte: Departamento de Comércio dos EUA.

É por isso que o ciclo econômico produtivo da economia capitalista costuma evoluir dentro de uma certa regularidade: emerge da crise, começa uma recuperação inicialmente lenta, depois acelera até atingir um ponto máximo de acumulação, para, em seguida, mer-gulhar em nova crise, reiniciando todo o processo. A duração de todo esse processo, que era de 10 a 12 anos no início da era capitalista, ultimamente tem estado na faixa de 4 a 5 anos.

A tabela da evolução do PIB estadunidense, no entanto, sugere que estaria havendo um ciclo econômico a cada 9 ou 12 meses, pois indica recuperação num trimestre para, no seguinte, chegar ao pico, no terceiro começar a desacelerar e no próprio terceiro ou no quar-to atingir um crescimento mínimo. Por mais cheia de contradições que esteja a economia dos EUA, não é provável, pelas razões indicadas no parágrafo anterior, a repetição de ciclos produtivos tão curtos.

Essa avaliação foi confirmada em 2001 por uma revisão das estatísticas oficiais pro-movida pelo Federal Reserve. Comentando essa revisão, o articulista Floyd Norris, do The New York Times, declarou: “após uma revisão, as estatísticas da produção industrial foram seriamente reduzidas”. Reforçando essa avaliação, o estrategista-chefe da empresa de con-sultoria Fuji Futures, John Vail, comentou: “Os novos números mostram que a produção industrial foi superestimada de maneira dramática.”

Portanto, é possível concluir que essa enorme volatilidade do PIB reflete, não a evo-lução da economia real, mas a também enorme volatilidade dos mercados financeiros. Basta comparar a tabela em questão com o comportamento das bolsas estadunidenses no mesmo período:

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15• verifica-se um declínio e um “vale” no crescimento do PIB no segundo se-

mestre de 1997, coincidindo com a queda das bolsas na época do crash asiá-tico;

• depois, um novo “vale” em meados de 1998, coincidindo com a crise nas bolsas provocada pela moratória russa;

• um outro “vale” no começo de 1999, época do estouro das contas externas brasileiras;

• e, por último, um novo “vale” no segundo semestre de 2000, consequência do naufrágio da bolsa Nasdaq.

Em suma, toda vez que as bolsas caíam ou oscilavam fortemente, reduzia o “cres-cimento” do PIB. Provavelmente, o que declinava não era o crescimento real do PIB, mas a parte atribuída a ele a título de “riqueza puramente financeira”. Até o presidente do banco central estadunidense, Alan Greenspan, chegou a questionar o critério oficial de medição do PIB. Em conferência na National Association of Busi-ness Economics, em março de 2001, declarou que, “devido à estrutura mutante da economia [diga-se: exacerbação da especulação financeira; nota nossa], é necessário a aplicação de novos meios estatísticos”.

Se fosse possível desinflar a medida oficial do PIB, isto é, escoimá-la da “riqueza puramente financeira”, produto da especulação, permanecendo apenas a parte de produção real de bens e serviços, ficaria evidente seu estancamento.

Essa situação teria que esperar pelo colapso das bolsas para vir inteiramente à tona, como ocorreu na economia japonesa desde o começo da década de 1990. Veremos que o desabamento do índice Nasdaq1 de 2000 para 2001 foi um primeiro sintoma nessa direção.

Na época, como também veremos adiante, todos os fatores desencadeadores da re-cessão – queda da taxa de lucro e do consumo e aumento da taxa de juros, além das difi-culdades crescentes nas contas externas – já estavam em andamento. É esse o ciclo de uma economia que vive uma crise estrutural, como a estadunidense, que perdeu grande parte de suas virtualidades para o crescimento: estancamento e crise.

Questionário

1. Indique por que é possível afirmar que a economia dos EUA estava estagnada nos anos de 1990.

2. Explique por que, apesar da estagnação da economia real, o PIB dos EUA cresceu na “era Clinton”.

1  É o índice que mede o valor das ações das empresas de alta tecnologia nos EUA.

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15Referência bibliográfica

SMALL, D. A aritmética dos banqueiros versus a aritmética humana: sabe você contar? EIR, 1999.

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16 Exuberância irracional não tem base na produtividade

Na virada do ano 2000, quando a recessão já havia se instaurado e Greenspan pas-sara a apoiar o novo governo, presidido por George W. Bush, o presidente do Fed passou a justificar a supervalorização das ações cotadas nessas bolsas. A tese que passou a defender, em síntese, era a de que os avanços técnicos nos setores de alta tecnologia teriam aumentado “significativamente o índice de crescimento básico da produtividade”, o que, por sua vez, teria feito crescer a rentabilidade das empresas, valorizando o preço das ações.

E, por fim, os ganhos das aplicações em bolsa teriam contribuído “para uma subs-tancial aceleração nos gastos com habitação, em novas casas,1 bens duráveis e outros tipos de consumo em geral, até além do que era sugerido pelo aumento da renda real” (apud SOUZA, 2001: 224). Ao mesmo tempo, o crescimento da produtividade e da rentabilidade empresarial permitiria que a economia pudesse crescer sem inflação. Esse seria o segredo do “milagre americano”.

Seu objetivo, certamente, era tentar mostrar que não haveria um crash nas bolsas e, portanto, os EUA superariam com facilidade a recessão que já se iniciara.

Mas havia um fato incontestável que comprometia seriamente a veracidade desse raciocínio: entre 1994 e janeiro de 2000, o índice Dow Jones, da bolsa de Nova Iorque, tri-plicou enquanto o PIB aumentou em apenas 30%.2 Ou seja, as ações experimentaram uma valorização cerca de sete vezes o crescimento da produção e da renda. E vale dizer que boa parte desse crescimento do PIB foi inflada artificialmente, na medida em que, como mostra-mos anteriormente, contabilizava os ganhos especulativos obtidos nas bolsas e uma gama enorme de “serviços” que nada produzem. Não havia, portanto, como explicar essa super-valorização das bolsas pelo crescimento da produtividade e da lucratividade das empresas. Era mera especulação.

E mesmo essa produtividade foi questionada. Até o economista-chefe do Morgan Stanley Dean Witter, Stephen Roach, chegou a contestar os índices que vinham sendo usa-dos para medir a evolução da produtividade nos EUA. No artigo “As charadas da nova eco-nomia”, ironizou o fato de que os mesmos critérios que estavam sendo usados para mensu-rar a produtividade haviam sido largamente contestados quando os índices de crescimento anuais eram menores (1,5%), mas deixaram de sê-lo quando passaram a se divulgar índices na faixa dos 3% anuais. Para ele, “os resultados da produtividade estão seriamente distor-cidos”. 1  Veremos no próximo capítulo o equívoco dessa avaliação. A crise iniciada em 2007 revelou que a expansão dos negócios imobiliários teve, como fundamento, não os ganhos no mercado financeiro, mas o crescente endividamen-to familiar. 2  Dados coligidos pelo prof. Robert Shiller, da Universidade de Yale, que escreveu um livro intitulado Exuberân-cia Irracional.

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16Um argumento utilizado por ele era o de que, apesar do importante crescimento dos

investimentos em tecnologia da informação, a parte referente às reposições correspondia a 75% do total, donde concluiu que “a expansão líquida da capacidade produtiva foi mais limitada”.

Portanto, até no coração do chamado setor de alta tecnologia, que seria responsável pelo ”milagre econômico”, havia um crescimento líquido insignificante da capacidade pro-dutiva e, portanto, da produtividade. Já mostramos anteriormente que havia outras fortes indicações de que não teria havido o decantado avanço da tecnologia e da produtividade nos EUA. Uma dessas indicações dizia respeito ao aumento da jornada de trabalho. Stephen Roach confirma que esse expediente estava sendo largamente usado no setor de serviços, cujos “trabalhadores estão trabalhando muitas horas além dos limites do dia de trabalho medidos oficialmente”.

O crescimento da produtividade não poderia, portanto, ser usado para explicar a “exuberância irracional” das bolsas nos EUA. Essa fúria especulativa não podia se sustentar na economia real e, por isso mesmo, era insustentável. O que ajudou a mantê-la foi o clima artificial de euforia, alimentado pela mídia, criado à base de uma ficção: a de que a economia estadunidense estaria vivendo um “milagre”, que estaria ocorrendo sobretudo na chamada nova economia, a da tecnologia da informação, Internet e congêneres.

Mas foi justamente essa “nova economia” que expôs toda sua vulnerabilidade quan-do, no começo do ano 2000, um grupo de hackers atacou e tirou da rede os portais das prin-cipais provedores da Internet nos EUA, instalando o pânico em Wall Street. Foram também as ações dessa “nova economia” que primeiro desabaram, mostrando que tudo não passava de gigantesca bolha especulativa.

Questionário

1. Sintetize a análise feita por Alan Greenspan para justificar a exuberância das bol-sas, indicando a crítica que lhe é feita.

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16Referência bibliográfica

SOUZA, N. A. Ascensão e queda do império americano. São Paulo: CPC-UMES\Mandaca-ru, 2001.

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17 Ameaça de nova recessão mundial em 2001 veio dos EUA, e não da OPEP

Portanto, a ameaça de nova recessão mundial, com risco de depressão, vinha dos EUA, e não da OPEP. Vinha então sendo promovida uma campanha pela mídia anuncian-do que os aumentos de preço do petróleo a partir de 1998 seriam os responsáveis por uma provável explosão financeira.

Era uma repetição do clima que se criara em 1974, quando a economia mundial mer-gulhou em profunda recessão e procurou-se atribuir a responsabilidade exclusiva aos países da OPEP, que, depois de um esforço conjunto, haviam iniciado a recuperação de parte das perdas que sofriam com a depressão do preço do produto.

Na década de 1970, o epicentro da crise foi a economia estadunidense. Graças à sua perda de capacidade de competir com o Japão e a Alemanha, vinha sofrendo déficits em sua balança comercial desde os anos de 1960 e, com isso, vinha perdendo sistematicamente suas reservas cambiais.

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18 O impacto da crise sobre os países emergentes

Neste texto, examinaremos o impacto da crise iniciada em 2007 nos países ditos emergentes. Concentraremos nossa análise em dois dentre os principais BRICs:1 Brasil e China.

Examinaremos, inicialmente, três hipóteses para o impacto da crise estadunidense nessas economias: a do “descolamento”, a de que haverá impacto negativo e a do “recola-mento”.

O debate sobre o “descolamento”

Depois de iniciada a crise financeira nos EUA, deflagrou-se, em nível internacional, o debate sobre seu impacto nos chamados países emergentes. Um momento importante des-se debate ocorreu por ocasião do Fórum Econômico Mundial, realizado em Davos, na Suíça, em janeiro de 2008. Três posições foram postuladas a partir de então.

A primeira “tese” apresentada foi a de que haveria um “descolamento” da eco-nomia dos países emergentes em relação às turbulências originadas na economia estadunidense. Nessa visão, esses países sofreriam um impacto pequeno à medida que estariam mais preparados para enfrentar crises internacionais. Isto porque con-tariam com grandes volumes de reservas cambiais, um forte superávit na balança comercial; além disso, sua dinâmica econômica interna seria fortemente influencia-da pelo crescimento da demanda interna.

Essa posição foi defendida pelos principais membros da equipe econômica do go-verno brasileiro, sobretudo o ministro da Fazenda, Guido Mantega, e o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Ainda que tenham se concentrado na questão brasileira, é pos-sível situá-los entre aqueles que postularam o “descolamento” dos principais países emer-gentes, já que estes se encontrariam em situação semelhante à do Brasil.

Segundo Meirelles,

hoje em dia, vivemos num regime de câmbio flutuante, não mais de câmbio fixo, e temos reservas (em moeda forte) muito elevadas. Esta combinação de fatores po-sitivos na área externa é extremamente vigorosa. Hoje, o saldo das contas externas

1  Sigla utilizada para designar os principais dos países emergentes: Brasil, Rússia, Índia e China.

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18brasileiras deixa claro que, mesmo numa situação de catástrofe internacional, tere-

mos uma capacidade de resistência muito longa, suficiente para que o câmbio flu-tuante possa fazer os ajustes necessários sem pânico. Além disso, houve um ajuste interno. Hoje, temos a dívida pública líquida total que representa um percentual cadente do PIB. Temos também um Banco Central que tem dado provas sistemáti-cas de seu compromisso com o regime de metas inflacionárias. É isso que faz com que a economia esteja estabilizada. Pela primeira vez no Brasil estamos colhendo o que chamo de ‘os dividendos da estabilidade’. Durante muitos anos, só tivemos o custo da estabilização, mas a estabilidade nunca chegava (MEIRELLES, 11 fev. 2008).

A segunda “tese” postulou que, ao contrário, os países emergentes seriam afetados pela crise. Em Davos, um dos principais defensores dessa posição foi o ex-secretá-rio do Tesouro dos EUA, Lawrence Summers: “O Brasil está numa posição mui-to melhor do que quando tivemos dificuldades econômicas no passado, mas acho que qualquer um que confie totalmente na tese do descolamento está fazendo uma aposta arriscada” (cit. in DANTAS, cit.).

Essa posição também foi apresentada pelo ex-vice-presidente do Banco Mundial, Joseph E. Stiglitz: “Não pode haver desaceleração longa e profunda na maior economia do mundo sem ramificações. Argumentei por muito tempo que o conceito de descolamento era um mito; agora, surgiram novas provas” (STIGLITZ, 29 dez. 2008: B6).

No Brasil, entre os que defenderam essa posição estava o ex-diretor do Banco Cen-tral, Alkimar Moura. Disse ele: “não existe descolamento no mercado. A queda nas Bolsas reflete isso. Se o problema americano for suave, aí estamos relativamente protegidos. Se for maior, tem efeitos diretos e indiretos como queda nas exportações” (Apud SCIARRETTA, 19 jan. 2008: B5).

Posição semelhante, ainda que por razões diferentes, foi defendida pelo represen-tante brasileiro na diretoria do FMI, Paulo Nogueira Batista Jr. Segundo ele, “ninguém ima-gina, é claro, que o nosso país ficará imune à crise, especialmente se ela for longa e profun-da” (BATISTA JR., 31 jan. 2008: B2).

O impacto, segundo Moura, se refletiria, sobretudo, na queda das exportações; já Ba-tista Jr. concentra sua análise nos “pontos de vulnerabilidade”, expressos, principalmente, no significativo volume de recursos especulativos dentro do país.

A terceira “tese” defendia a posição de que, ao contrário do “descolamento”, o que poderia ocorrer seria o “recolamento”. Na sua formulação original, em lugar de serem afetados pela crise nos EUA, os países emergentes é que iriam puxar as gran-des economias. Foi apresentada em nível internacional pelo Banco Mundial, para o qual o forte crescimento econômico dos países emergentes poderia impedir uma maior desaceleração da economia mundial (BIRD, 2008).

Essa avaliação foi assumida no Brasil pelo ex-presidente do BNDES e ex-ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros. Usando, figurativamente, a “teoria dos dominós” e partindo da constatação de que os países emergentes (liderados pela Chi-na) vinham contribuindo com um percentual maior no crescimento mundial e tendiam a aumentar esse diferencial em 2008, concluiu Barros que a economia dos emergentes poderia ajudar a alavancar a economia mundial (BARROS, 08 fev. 2008: B2).

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18Se considerarmos apenas os chamados BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China), que

em 2006-2007 representavam, pelos cálculos do FMI, 27% do PIB mundial, sua contribuição para o crescimento mundial teria sido de 47% em 2005-2006, com estimativa de 51,5% em 2007-2008 (RAMON, fev. 2008: 20-22).

Os dois cenários

Para examinar essas alternativas, tem-se que levar em consideração que, dado o grau a que chegaram as relações econômicas internacionais (examinadas em capítulos an-teriores), uma crise internacional inaugurada na principal economia do planeta tenderia a afetar o conjunto das economias nacionais.

No entanto, a profundidade desse impacto e sua duração em cada economia nacio-nal dependeriam, de um lado, das suas condições econômicas internas e da sua forma de inserção internacional e, de outro, da forma de reação de seus governos diante de referido impacto.

É possível conjeturar que, durante a crise iniciada em 2007, os governos dos prin-cipais países emergentes contavam com condições mais favoráveis do que as que dispunham nos anos de 1990 para, diante da crise, adotar medidas no sentido de proteger e fortalecer suas economias. No entanto, como veremos, as condições ad-versas também eram muito fortes.

Consideremos dois cenários: um de curto prazo e outro de médio/longo prazo:

− no cenário de curto prazo, devemos examinar o impacto da turbulência fi-nanceira deflagrada nos EUA sobre a situação financeira dos países emer-gentes;

− no médio/longo prazo, examina-se o impacto tanto da turbulência financeira quanto da recessão (dela derivada) das economias estadunidense e mundial sobre a balança comercial e a atividade econômica nesses países.

Cenário de curto prazo

Comecemos pelo primeiro cenário. Consideramos corretas as alegações de que esses países estariam mais preparados para se defender do impacto de crises financeiras interna-cionais. Vários fatores possibilitavam que eles pudessem defender-se melhor de uma even-tual contaminação financeira da crise externa, a saber:

a) um elevado volume de reservas cambiais e de um saldo positivo e elevado na balança comercial;

b) a dinâmica econômica vinha sendo alavancada principalmente pelo crescimen-to do mercado interno, tanto de bens de consumo quanto de meios de produ-ção;

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18c) um elevado volume de poupança interna e um baixo nível de endividamento.2

No caso da China, além das condições indicadas, o fato de contar com um forte peso do Estado na economia permitia uma maior capacidade de utilizar os instrumentos capazes de proteger sua economia. Podemos citar dois exemplos desse tipo de instrumento:

− o fato de o Estado dispor de um maior controle sobre o sistema financeiro in-terno possibilitaria uma ação mais coordenada e planejada sobre o impacto financeiro da crise mundial;

− o fato de não adotar o regime de câmbio flutuante, e sim o de câmbio admi-nistrado, ensejaria a utilização da taxa de câmbio como mecanismo de atin-gimento dos objetivos da política nacional de comércio exterior.

Os bancos chineses, por sua vez, diferentemente dos europeus, jamais entraram nos negócios dos derivativos e das hipotecas dos EUA.

O vertiginoso crescimento econômico da China no período anterior3 a havia levado a transformar-se na segunda ou terceira economia do planeta, de acordo com o critério de medição e conversão do PIB em dólar:

− pelo critério convencional, que transforma o PIB em dólar pela taxa de câm-bio oficial, o PIB chinês em 2007 era de US$ 3,764 trilhões, abaixo dos US$ 4,4 trilhões do Japão e dos US$ 13,8 trilhões dos Estados Unidos (CHINA, 14 jan. 2009);

− pelo critério de Paridade do Poder de Compra, que considera o poder de compra interno da riqueza gerada, o PIB chinês seria de US$ 10 trilhões, abaixo apenas da economia dos EUA (LACERDA, 03 mar. 2007: A3).

Mas a contaminação externa sobre as finanças da China e do Brasil poderia provir de quatro fontes:

a) os gestores dos grandes bancos e fundos financeiros internacionais poderiam, para fazer face a prejuízos sofridos com a desvalorização de seus ativos finan-ceiros (em 2008, as bolsas do mundo já haviam revelado perdas de US$ 27 trilhões), tentar retirar recursos aplicados em países em desenvolvimento, pro-vocando uma fuga de capitais e de reservas e, em consequência, uma desvalo-rização descontrolada das suas moedas;

b) esses mesmos gestores poderiam, igualmente, realizar ataques especulativos a determinados países em desenvolvimento, retirando deles seus capitais, a fim de forçar seus bancos centrais a elevar as taxas de juros;

c) dado o elevado peso do investimento direto estrangeiro no interior de muitos desses países, as matrizes das transnacionais, com vistas a cobrir seus prejuí-zos, poderiam aumentar significativamente a transferência de lucros a partir de suas sucursais;

2  No caso do Brasil, a dívida líquida do setor público, que representava 58% do PIB no final de 2002, baixou esse percentual para 36% no final de 2008. Poderia ter caído mais ainda não fossem as elevadas taxas de juros praticadas no período pelo Banco Central. Além disso, com o crescimento das reservas cambiais e a liquidação de parcelas importantes da dívida externa, em 2008 o país passou a ser um credor líquido internacional.3  O PIB do país cresceu, em média, a 9,8% ao ano nos últimos 30 anos – isto é, de 1979 a 2008.

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18d) poderia secar a fonte de financiamentos externos para a exportação e dos crédi-

tos internos para capital de giro e o crediário ao consumidor.

A China estaria mais protegida das ações especulativas, porque, além do elevadíssi-mo volume de reservas cambiais – fechou 2008 com US$ 1,95 trilhão –, possuía maior con-trole sobre seu sistema financeiro e sobre sua taxa de câmbio. Mas nem por isso deixou de sofrer uma forte queda na bolsa.

As economias dos BRICs não sofreram imediatamente o impacto da crise iniciada em 2007, revelando que, de fato, estavam mais protegidas. No entanto, depois do agrava-mento da crise nos EUA em setembro de 2008, aquelas economias começaram a ser conta-minadas pela crise.

A principal expressão foi a forte queda nas bolsas de valores (ver Tabela 15.1). Dos 15 principais países que operam com bolsas de valores, a queda dos índices em 2008 foi mais violenta, por ordem, na Rússia (67,29%), China (65,16%) e Índia (52,11%). O Brasil ficou em 8º lugar (41,22%). A queda nas bolsas poderia significar que os recursos externos nelas apli-cados teriam começado a converter-se em moeda externa para sair do país.

No Brasil, também houve suspensão dos créditos externos para exportação e dos créditos internos para capital de giro e crediário ao consumidor. A forte suspensão dos em-préstimos implicou em grande queda das vendas e da produção de bens de consumo durá-veis, sobretudo automóveis, no último trimestre de 2008.

Mesmo dispondo de recursos, inclusive liberados pelo BC, os bancos brasileiros pre-feriam emprestar ao próprio governo do que correr o risco de repassar ao tomador final. A elevada taxa de juros praticada pelo BC certamente contribuiu para essa “preferência”.

No Brasil, também houve forte remessa de lucro para o exterior. Houve um aumento de 51% em relação ao ano anterior, atingindo a cifra recorde de US$ 33,875 bilhões.

A intensa queda nas bolsas, no entanto, não se traduziu imediatamente em fuga de capitais. Até o começo de 2009, não havia ocorrido uma fuga em massa. Muitos capitais que saíram das bolsas permaneceram dentro dos países. Expressão disso era a relativa estabili-dade e, em alguns casos, até aumento do volume de reservas cambiais.4

Isso mostra que os fatores de defesa citados anteriormente funcionaram de alguma forma.

Isso não significa, porém, que esses países estivessem imunes a um eventual ataque especulativo ou à saída em massa de capitais para cobrir prejuízos dos bancos e fundos nos países centrais. Só significa que estavam com mais “bala na agulha” para enfrentar uma si-tuação adversa como essa.5

4  No caso da China, houve aumento de 27,3% no volume das reservas entre dezembro de 2007 e dezembro de 2008; inclusive, depois do agravamento da crise em setembro de 2008, as reservas chinesas ainda cresceram 2,12%. No Brasil, houve aumento das reservas de US$ 180,3 bilhões em dezembro de 2007 para US$ 206,8 bilhões em de-zembro de 2008.5  Entre os BRICs, a exceção foi a Rússia: altamente dependente da exportação de petróleo, teve sua balança co-mercial e sua economia fortemente deterioradas pela violenta queda do preço desse produto no segundo semestre de 2008: de US$ 145,29 em 1º de julho para US$ 35,00 no final do ano.

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18Caso viesse a se manifestar essa ameaça de fuga de capitais, os governos desses

países teriam que estar preparados para bloqueá-la a fim de proteger suas reservas internacionais. Para isso, alguma forma de controle do movimento de capitais espe-culativos teria que ser implementada. Caberia, também, diversificar a aplicação das reservas no exterior, já que estava muito concentrada em títulos dos EUA, ou seja, do país cuja economia se tornara o epicentro da crise: a China passara a ser, em setembro de 2008, o principal credor daquele país; o Brasil, o quinto.

O impacto de médio/longo prazo

No cenário de médio/longo prazo, a questão que se colocou desde o início foi a se-guinte:

− dado o agravamento e possível prolongamento da crise mundial, bem como a eventual fuga em massa de capitais dos países emergentes, que efeito isso teria sobre a balança comercial e a atividade econômica nos países emergen-tes?

Com relação a uma possível fuga de capitais, o resultado dependeria da reação de cada governo. Se a decisão fosse a de deixar o câmbio flutuante promover o “ajuste”, coad-juvado por juros e superávits primários elevados, o resultado seria a forte desaceleração da economia, além de reacender a chama inflacionária.

Isso porque, uma desvalorização descontrolada da moeda poderia pressionar os preços para cima, enquanto os juros elevados e a queda dos investimentos públicos ou a elevação dos tributos (como forma de aumentar o superávit primário), ao retirar dinheiro de circulação, desanimariam a atividade produtiva, tanto privada quanto pública.

O Brasil estaria mais vulnerável do que a China porque, além de adotar o câmbio flutuante, tinha, comparativamente, um menor volume de reservas cambiais.6

No entanto, se, em lugar de deixar o câmbio flutuar livremente e de elevar os juros e o superávit primário, o governo brasileiro optasse por administrar sua taxa de câmbio, como faz a China, e proteger suas reservas cambiais mediante alguma for-ma de controle de capitais, os juros e o superávit primário poderiam ser reduzidos, estimulando, assim, a demanda interna e a atividade produtiva.

Quanto ao possível impacto de uma recessão ou até mesmo depressão nos EUA sobre a balança comercial e a atividade econômica nos países em desenvolvimento, cabe re-gistrar, em primeiro lugar, que, também neste aspecto, a maioria das economias emergentes estavam mais preparadas do que nas crises que ocorreram nos anos de 1990.

Um aspecto decisivo é o fato de que os EUA já não têm o peso na economia mun-dial de antes. Segundo cálculos do FMI, com base no PIB medido por Paridade do Poder de Compra, a participação dos EUA na economia mundial, em 2006, era de 19,7%, vindo a Chi-na em segundo lugar, com 15,1% (CANZIAN, 27 jan. 2008: B3). Ou seja, o impacto mundial da crise iniciada nos EUA, ainda que grande, já não teria a mesma força do passado. 6  US$ 206,8 bilhões contra US$ 1,95 trilhão em dezembro de 2008.

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18Além disso, houve mudanças nas economias dos BRICs que as tornaram menos de-

pendentes da dinâmica da economia dos EUA. Destacam-se duas a seguir:

− em primeiro lugar, mesmo que suas exportações ainda dependam do mer-cado estadunidense, houve uma forte diversificação de seus mercados, à medida que passaram a intercambiar mais entre si e com outros parceiros comerciais;7

− apesar da forte contribuição das exportações para o dinamismo recente des-sas economias, o mercado interno vem evoluindo positivamente no período recente.8

Isso significa duas coisas:

a) que a economia desses países emergentes, para seguir exportando e se expan-dindo, depende menos do mercado estadunidense;

b) que, graças à expansão do mercado interno, depende menos das exportações do que antes para manter o crescimento.

No entanto, aqui também há alguns elementos de vulnerabilidade:

• os importadores desses países – tais como União Européia, América Latina, “tigres asiáticos” – dependem, em certa medida, de suas exportações para o mercado estadunidense; isso significa que, com a recessão nos EUA, eles tendem a diminuir suas exportações, contraindo, em consequência, suas im-portações oriundas dos BRICs;

• as importações de vários desses países, a começar pelo Brasil, vinham cres-cendo a um ritmo muito superior ao das exportações,9 gerando um “dese-quilíbrio dinâmico”, que estava deteriorando o saldo positivo na balança comercial; isso poderia levar alguns desses países a depender novamente da entrada de capitais externos para fechar seu balanço de pagamentos, como já ocorreu no passado com o Brasil e a Rússia;10

• ainda que o dinamismo recente dessas economias viesse sendo puxado pela expansão do mercado interno, as exportações ainda têm um peso importan-te na sua dinâmica: no caso do Brasil representaram em 2007 12,2% do PIB; no caso da China, uma cifra bem maior: 36%.

7  No caso do Brasil, a participação dos EUA na sua pauta de exportação chegou a superar os 30% na segunda me-tade da década de 1990; em 2007, não passava de 17% (Fonte: MDIC, 20.02.2008a); a China, por sua vez, aumentou seu comércio com os “tigres asiáticos” e com a África.8  No Brasil, o conjunto da demanda interna (incluindo bens de consumo e meios de produção) cresceu 5,2% em 2006 e 7% em 2007, segundo estimativa da LCA Consultores (FOLHA DE S.PAULO, 25 fev. 2008: B2); na China, os novos dirigentes que assumiram o comando do governo em 2007, liderados pelo presidente Hu Jintao e o primeiro-ministro Wen Jiabao, tiveram sua posição em favor da maior dinamização do mercado interno aprovada no con-gresso partidário, contra a posição dos dirigentes anteriores, que propugnavam o crescimento a qualquer custo.9  Em 2007, no Brasil, as importações cresceram 32,04% contra 16,58% das exportações; essa dinâmica se reprodu-ziu em 2008: 43,6% contra 23,2%.10  No Brasil o déficit em transações correntes retornou fortemente em 2008 (US$ 28,3 bilhões), devido à queda do superávit comercial (de US$ 40 bilhões em 2007 para US$ 24,7 bilhões em 2008) e ao amento de 51% das remessas de lucros, que atingiram US$ 33,88 bilhões em 2008.

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18Isso significa que uma eventual queda das exportações, derivada da contração da

economia estadunidense, poderia afetar a balança comercial dos países em questão, aumen-tando as perspectivas de queda do superávit comercial, e repercutir negativamente, ainda que em grau menor (graças ao mercado interno), na atividade econômica interna, à medida que, vendendo menos no exterior, as empresas passariam a produzir menos.

Isso não se refletiria necessariamente na queda da produção interna por um período prolongado, isto é, em um processo recessivo, mas se poderia perder, a depender da di-mensão da retração das exportações, alguns pontos na taxa de crescimento do PIB, além de poder ocorre uma retração econômica por um período curto.

A economia real dos BRICs, na verdade, começou a ser impactada pela crise interna-cional no último trimestre de 2008.

A produção industrial brasileira, que, na base anualizada, cresceu a 6,4% até setem-bro, fechou o ano em 3,1%, devido à forte retração econômica ocorrida no último trimestre do ano, quando a produção industrial caiu 6,2% contra igual trimestre do ano anterior (IBGE, 10 fev. 2009). A correia de transmissão foi o desaparecimento do crédito. Primeiro, os bancos in-ternacionais deixaram de financiar as exportações brasileiras. Segundo, os bancos instalados no Brasil começaram a segurar o crédito interno para o capital de giro das empresas e para o crediário dos consumidores.O PIB chinês, que vinha crescendo a uma taxa média de 10% nos três primeiros tri-mestres de 2008 (CHINA, 14 jan. 2009),11 aumentou apenas 6,8% no último trimes-tre do ano. Ao longo de 2008, o PIB cresceu 9%, 4,5 pontos abaixo do crescimento de 2007. Um crescimento econômico ainda elevado para os padrões internacionais, mas em declínio. Conforme a Tabela 18.1, nos sete anos anteriores, a economia chinesa esta-va em processo de aceleração.

Tabela 18.1 China: crescimento do PIB – 2001 – 2007 (%)

2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

8,3 9,1 10,0 10,1 10,4 11,6 13,5

Fonte: Bloomberg

A correia de transmissão para a desaceleração chinesa foi a queda do ritmo de cresci-mento das exportações,12 a queda da rentabilidade dos recursos aplicados em títulos do Te-souro dos EUA (que passaram a render cerca de 0% ao ano)13 e a queda das bolsas internas. Como lá os aplicadores em bolsa são formados, em grande medida, por cidadãos de classe média do próprio país, a queda dos ganhos financeiros contribuiu para diminuir o ânimo para consumir.11  Crescera excepcionalmente 13,5% em 2007.12  Suas exportações cresceram a um ritmo de 20% ao ano entre 2003 e 2007, mas essa façanha não seria repetida em 2008.13  Em setembro de 2008, a China ultrapassou o Japão como maior credor externo dos EUA, quando suas aplica-ções nos treasuries estadunidenses atingiram a cifra de US$ 585 bilhões.

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18Medidas adotadas para enfrentar a crise

Para enfrentar o desaparecimento do crédito, o governo brasileiro:

• aumentou o financiamento dos bancos públicos para exportação, agricul-tura e construção civil;

• adotou medidas para fortalecer o papel desses bancos, como a autorização para que eles pudessem comprar carteiras ou bancos em dificuldades;

• injetou mais dinheiro nos bancos privados14;

• aportou, através do Tesouro, R$ 100 bilhões ao BNDES para que o banco financiasse, em 2009-2010, o investimento em projetos nos setores de pe-tróleo, gás, energia elétrica, infraestrutura e bens de capital.

Além disso, na área do investimento, decidiu:

• acrescentar ao orçamento do PAC, que era de R$ 503 bilhões para o perío-do 2007-2010, mais R$ 142 bilhões para o período 2009-2010;

• ampliar significativamente o programa de investimentos da Petrobras, que aumentou de US$ 112,4 bilhões no período 2008-2012 para US$ 174,4 bilhões no quinquênio 2009-2013.

No entanto, contraditoriamente, até o começo de 2009, o BC mantinha elevada a taxa básica de juros, dificultando a canalização dos recursos para a atividade pro-dutiva.15

Ao mesmo tempo, o setor público superou a meta de superávit primário, reservan-do mais dinheiro para pagamento de juros, ao invés de destiná-lo a investimento.16

A China, por sua vez, adotou um pacote fiscal-financeiro de 4 trilhões de yuans, equivalentes a cerca de US$ 580 bilhões, destinado a fortalecer a infraestrutura, o setor habitacional e o mercado interno, por meio, sobretudo, de investimento na ampliação e modernização de ferrovias. Além disso, o Banco do Povo, banco central chinês, baixou a taxa anual de juros, em quatro etapas, entre setembro e novembro de 2008, de 7,47% para 5,31%.

Essas medidas, no entanto, foram insuficientes para bloquear a internalização da cri-se internacional. Tanto é que diminuiu fortemente o ritmo de crescimento dessas economias. Pode ser considerado como motivo básico para essa desaceleração sua forma de inserção internacional, a qual engendra sua vulnerabilidade externa.

A diminuição dessa vulnerabilidade externa implicaria uma transformação da eco-nomia de modo a aumentar seu “grau de endogeneidade”, isto é, de forma a fazer sua dinâ-mica depender cada vez mais de fatores internos, que estão sob controle nacional.

14  O mecanismo através do qual injetou esses recursos consistiu na diminuição do compulsório bancário, isto é, do montante dos recursos que os bancos são obrigados a depositar no Banco Central.15  A partir de abril de 2008, já em plena crise, começou a aumentar a taxa Selic, que, em várias etapas, passou de 11,25% para 13,75%; só em janeiro de 2009, depois de manter por alguns meses a taxa em 13,75%, baixou-a para 12,75%; em termos reais, permaneceu a maior do mundo, em 7,6%, ficando a Hungria em segundo lugar, com 5,8%. 16  A meta estabelecida era de 3,8% do PIB, sendo que poderia ser rebaixada para 3,3%, já que se havia decidido reservar-se 0,5% para investimentos prioritários. No entanto, atingiu-se em 2008 4,07%.

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18Com esse objetivo, o governo brasileiro havia iniciado antes da crise, por meio do Pro-

grama de Desenvolvimento Produtivo, um processo com vistas a substituir importações,17 desenvolver setores de tecnologia de ponta e modernizar setores mais atrasados da indús-tria.

Poderia tê-lo acelerado com a decisão adotada, em janeiro de 2009, de estabelecer um controle seletivo das importações, mas, sob pressão da Europa, dos EUA e de parceiros da América Latina, recuou três dias depois.

A China acelerou seu processo de modernização por intermédio do investimento em ferrovia previsto no novo pacote fiscal baixado durante a crise.

Além disso, para compensar a queda das exportações e a consequente diminuição da atividade econômica interna, o grande desafio seria criar mecanismos para dinamizar mais ainda o mercado interno: “O maior desafio da China, por enquanto, é o de fortalecer o consumo interno, que poderia salvar a indústria exportadora e garantir o crescimento” (LORES, 12 out. 2008: B9).

Questionário

1. Exponha as três teses sobre o impacto da crise nas economias dos países emer-gentes.

2. Analise as razões que tornaram as economias emergentes mais protegidas na cri-se iniciada em 2007 do que nas crises da década de 1990.

3. Por que, apesar de mais protegidas, as economias emergentes haveriam de sofrer o impacto da crise mundial?

4. Que medidas foram adotadas pelo Brasil e pela China para combater o impacto da crise mundial?

17  Registre-se que a substituição de importações só incrementa o grau de endogeneidade da economia se ocorrer sob controle nacional, já que o aumento da participação externa implicaria a elevação da remessa de lucros, com suas naturais implicações nas contas externas e na capacidade de investimento interno. A respeito, o Presiden-te Lula declarou: “Não é justo que na primeira refrega que a empresa tem (...) primeiro pega o dinheiro daqui para salvar as suas matrizes que quebraram na Europa.” “Depois disso, mandaram trabalhadores embora” (apud CRUZ, 18-19 fev. 2009: 3).

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CRUZ, S. Lula: “não é justo enviar dinheiro para fora e demitir trabalhador”. Hora do Povo, 18-19 fev. 2009.

DANTAS, F. Brasil é visto com otimismo e cautela. O Estado de S.Paulo, 24 jan. 2008.

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LEITE, P. D. Com US$ 64 bi, Londres nacionaliza bancos. Folha de S. Paulo, 14 nov. 2008.

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