nº 3 c de textos da enff€¦ · café. os índios kaingang eram o maior obstáculo. eliminá-ios...

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1 Coletânea de textos da enFF nº 3 SUBSÍDIOS PARA DEBATER A QUESTÃO AGRÁRIA BRASILEIRA JACOB GORENDER PETER EISENBERG CIRO CARDODO ODACIR CORANDINI ANTOINETTE FREDERICQ JOÃO PEDRO STEDILE MARCO MITIDIERO CARLOS ALBERTO DÓRIA MARCELO CORRÊA BASTOS São Paulo, agosto 2015 Atualizada, abril 2019 USO INTERNO Coleção Curso realidade brasileira

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Coletânea de textos da enFFnº 3

SubSídioS para debater a queStão agrária braSileira

Jacob gorender

peter eiSenberg ciro cardodo

odacir corandini antoinette Fredericq

João pedro Stedile

Marco Mitidiero carloS alberto dória

Marcelo corrêa baStoS

São Paulo, agosto 2015 Atualizada, abril 2019

uSo interno

Coleção Curso realidade brasileira

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SuMário I - Período Pré-Colonial1. A cozinha guarani --------------------------------------------05 II - Período Colonial2. A forma plantagem de organização da produção escravista Jacob Gorender ----------------------------------------------- 21

3. A mentalidade dos fazendeiros no Congresso Agrícola de 1978

Peter Eisenberg -------------------------------------------------39

4. Haiti Ciro Cardoso -------------------------------------------------------- 61

5. A plantation escravista Ciro Cardoso ------------------------------------------------------- 62 6 Os jacobinos negros Cyril Lionel Robert James ---------------------------------------- 64

III. Capitalismo Industrial7. Agricultura, cooperativas e multinacionais Odacir Corandini Antoinette Fredericq --------------------------------------------111

IV- Capitalismo globalizado João Pedro Stedile ---------------------------------------------- 127 IV- Anexos ------------------------------------------145

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i - período pré-colonial 1. Carlos alberto Dória/ MarCelo C. bastos

A cozinha dos guaranis: de onde partiu a culinária caipira

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1. a Cozinha Dos guaranis: De onDe partiu a Culinária Caipira

Carlos Alberto Dória Marcelo Corrêa Bastos

A história dos grupos indígenas brasileiros é uma história de mas-sacre e aniquilação. Como bem diz modernamente o antropólogo Edu-ardo Viveiros de Castro, o resultado desse longo percurso foi transformar os índios em pobres. Centenas de povos desapareceram por completo ao longo dos séculos, e os que sobreviveram perderam boa parte de sua língua e cultura, tendo se convertido nesses pobres. Ao se associar progresso e ordem em nossa história - e em nossa bandeira -, estabelece-se também uma maneira como o progresso deve se dar. Para a República, tratava-se de uma nova ordem, de um novo deslocamento para a frente, visando afastar-se do Império, que ficara no passado. E pode-se imaginar que boa parte da desordem militar que se seguiu à proclamação da República adviesse mesmo da falta de uma compreensão unívoca sobre o sentido de progresso. Era mesmo impossível haver uma percepção única de seu signi-ficado, já que progresso era das noções mais populares no período, de tal sorte que qualquer um poderia lhe atribuir uma conotação muito particular. Mas não é desprezível a forma concreta que vai servindo para consolidar o progresso no mundo, conforme seus adeptos mais fervoro-sos nos demonstram. Vejamos, por exemplo, essa situação ilustrativa: “Os bugreiros enfeitam as suas espingardas com os dentes dos índios por eles mortos [e] vendem aos fazendeiros orelhas secas de índios por preço de dúzias1”. Essa informação não nos chega de um tempo demasiado antigo, e não parece ter relação com o progresso. Tampouco nos chega de um lugar muito distante. Vinha da região de Bauru, no estado de São Paulo, de uma época em que se construía a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que avançava pelos “sertões bravios” em processo de conquista pelo café. Os índios kaingang eram o maior obstáculo. Eliminá-Ios pura e simplesmente era a estratégia para o avanço dos trilhos. As matanças de índios eram chamadas dadas, quando se caía de assalto sobre as aldeias, eliminando a todos ou poupando mulheres e crianças para vendê-los aos brancos. A organização das dadas era de-cidida pelos fazendeiros e moradores da região, mas contava com larga compreensão e apoio do governo paulista - que, com o tempo, acabou se envolvendo diretamente no conflito, enviando batalhões da Polícia Militar para reforçar a ocupação do território.

1. Ihering, Herman von. “A questão dos índios no Brasil”, p. 130

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O diretor do Museu Paulista, o cientista Hermann von Ihering, foi muito criticado por apoiar abertamente os colonizadores e suas da-das em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo. Em 1911, pro-curou defender-se dizendo que havia, no Brasil, três programas dentre os quais escolher para enfrentar a questão indígena: o de José Bonifácio (1823), o seu próprio (1908) e o do Marechal Rondon (1910). O seu programa considerava os “paleo-brasileiros” plenamente responsáveis perante o direito, enquanto os demais programas os consideravam tute-lados pelo Estado. Mas Von Ihering não estava só, conforme ele próprio demonstrou, citando uma manifestação do Club de Engenharia do Rio de Janeiro que dizia: “Exterminem-se os refratários à marcha ascendente da nossa civilização, visto como não representam elemento de trabalho e de progresso2”. A associação entre sangue e progresso fazia-se inevitável, como orelhas e dentes de kaingangs atestavam. Mas situações semelhantes ocorriam à época por toda parte do mundo onde trilhos de estradas de ferro rasgavam continentes, incorporando imensos territórios ao siste-ma capitalista mundial e marcando com o progresso a carne dos povos conquistados. Entre 1870 e 1900, a rede ferroviária mundial saltou de 130 mil para 600 mil milhas. Em Londres, progresso era sinônimo dessa enorme revolução que o capitalismo industrial levava aos quatro can-tos da Terra, e o conceito, como um vagão, acompanhava a expansão ferroviária e tudo o mais que, pelos seus trilhos, passava a circular nos confins do globo. Os índios simplesmente estavam no meio do caminho do progresso. E o destino reservado a eles na sociedade brasileira nos obriga a fazer um esforço para restaurar o lugar que ocuparam na con-stituição da alimentação do país. O primeiro passo é, em cada situação concreta - como a da cu-linária caipira -, arrancar os índios da generalidade a que a historiografia os confinou para se ter maior clareza sobre a permanência de seus hábi-tos. Centenas de povos, como os que existiam à época dos descobrimen-tos, não podem ser reduzidos ao conceito genérico de “índio” sem que se perca o valor explicativo que buscamos. Especialmente os troncos tupi e macro-jê, ramificados em inúmeras línguas e etnias, povoavam a Amazônia, o Brasil Central e o Sul e Sudeste à época da chegada dos colonizadores. Já frisamos a importância decisiva dos grupos guarani, do tronco tupi, para a colonização da região, mas mesmo eles possuíam uma di-versidade interna notável, sendo os principais grupos étnicos guaranis desse território os kayová, os mbyá e os nandéva. Segundo a classifi-cação corrente, o tronco linguístico tupi apresenta cerca de quarenta línguas. Do ponto de vista alimentar, há inúmeras diferenças, tais como

2. Idem, ibdem, p. 137.

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tabus específicos em relação aos animais (os que eram comestíveis para uns não o eram para outros etc.). Sobre eles, a crônica colonial não dei-xou de registrar informações úteis, mas, quando os estudos sistemáticos de antropologia e arqueologia se ocuparam dos índios, no século XX, muitos grupos já estavam extintos ou irremediavelmente afetados pela interação com a sociedade envolvente. Poucos documentos antigos guardam tanto interesse para a car-acterização alimentar dos guaranis quanto os valiosos escritos de An-tonio Ruiz de Montoya (1585-1652), um jesuíta peruano que fundou várias reduções na região de Guaíra, hoje cidade de Cambé, no norte do Paraná. A obra de Montoya, especialmente a dedicada à língua gua-rani, registra palavras e processos de trabalho de valor inestimável para a reconstrução culinária. Para saber o que os guaranis comiam, são também importantes as informações obtidas em período mais recente, como a breve etnogra-fia que o padre Franz Müller3 fez desses índios na bacia do Alto Paraná em fins do século XIX. Tanto os relatos de Montoya quanto os de Müller são documentos nos quais já aparecem, com algum destaque, elemen-tos europeus adotados pelos índios, como o porco e mesmo a galinha - esta que, segundo estudos, inicialmente provocou repulsa nos índios tupis, tão logo ocorreram os primeiros contatos com os europeus4. Mais tarde, mesmo grupos que não comiam milho passaram a plantá-lo para criar galinhas, que vendiam aos europeus, conforme relatou o padre João Daniel em seu livro sobre a Amazônia5. O milho, as abóboras variadas, a araruta, a mandioca, o inhame, a batata ariá e o amendoim já estavam domesticados no continente sul-americano entre 10 mil e 7 mil anos A. P. [antes do presente]6. Do mesmo modo, 5 mil anos A. P., encontravam-se domesticadas a lhama e a alpaca, no Peru; e 2 mil anos A. P., o porquinho-da-índia e o pato barbárie7. Descobriram-se, ainda, resíduos cerâmicos com traços de con-sumo de milho, abóbora, amendoim, feijão e pacay (ingá) na costa peru-ana e no Equador, datados de 5.300 a 4.950 anos A. P8 . Também sobre

3. Müller, Franz. Etnografia de los guarani del alto Paraná.4. Ver: Valden, Felipe Ferreira Vander. “As galinhas incontáveis. Tupis, europeus e aves domésticas

na conquista no Brasil”.5. Daniel, João. Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas. Em complemento, é importante

registrar os rumos modernos das pesquisas arqueológicas e antropológicas que vêm revolucio-nando o entendimento do mundo indígena. Dentro dos estudos da “agricultura antes da agricul-tura”, isto é, antes do período Neolítico, ao qual se atribui a revolução agrícola, a arqueologia e a arqueobotânica nos dizem da antiguidade de certos alimentos americanos domesticados, conforme a síntese que apresenta número especial da revista Current Antropology, v. 50 nº 5, out. 2009

6. Iriarte, José. “Norrowing the Gap. Exploring the Diversity of Early Food-Production Economies in the Americas”, -pp. 677-80.

7. Vigne, Jean-Denis. Les débuts de l´élevage: les origines de la culture, p. 40.8. Hayden, Brian. “The Proof Is in the Pudding. Feasting and the Origines of Domestiction”.

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o Brasil há estudos modernos que frisam a presença do milho, além de outros alimentos, nos vastos sertões pré-coloniais, quebrando o monolit-ismo da interpretação baseada nas crônicas quinhentistas a setecentistas sobre a alimentação indígena centrada na mandioca. Somam-se a essas descobertas aquelas que nos dizem de uma provável origem migratória dos tupis-guaranis e dos tupinambás do Sul e Sudeste do país. Originários da Amazônia Central, eles teriam emi-grado em duas direções: uma, dos tupinambás, do centro da Amazônia, seguindo o curso do grande rio, até a ilha de Marajó, e de lá descendo pelo litoral até a altura do Rio de Janeiro; outra, guarani, para oeste da Amazônia, descendo até a região do Chaco, em paralelo à Cordilheira dos Andes e, de lá, flexionando para leste até atingir a costa, ocupando ainda o Sul do Brasil, o Uruguai e o Norte da Argentina. É o desloca-mento guarani que nos interessa aqui - representado no mapa da página seguinte. Outra vertente de estudos antropológicos mais recentes tem se dedicado a estudar a relação dos índios com a biodiversidade9 apro-fundando a ideia de que o manejo de espécies na floresta também faz parte da agricultura, ainda que não siga os padrões tradicionais de roça-dos, tomados usualmente como o princípio da agricultura. Os estu-dos mostram a enorme diversidade de plantas conservadas ou desen-volvidas entre dezenas de povos tribais - 94 variedades de mandioca entre os wajãpi (tupi-guaraní), 70 entre os cubeo, piratapuia e tukano, tikuna e sateré-mawé: 13 de milho e 56 de batata-doce entre os kayapó-rnebêngôkre: 27 de amendoim entre os kaiabi (tupi-guarani) e assim por diante -, colocando em xeque a noção corrente e estática de domestica-ção. Os vínculos afetivos dos índios com o âmbito florestal, que pode-riam também ser uma forma de domesticação, evidenciam que, para esses povos, a distinção não se aplica do mesmo modo que fazemos hoje. A floresta é parte integrante do seu domus verdadeiro. Consideramos que a agricultura, como a dos guaranis, pode nunca ter surgido como estamos acostumados a imaginar – uma pas-sagem da pesca, caça e coleta para o sedentarismo e a cultura da terra. Ao contrário, hoje exige-se que se tome a domesticação como uma via de mão dupla, pois ela

faz espécies diferentes dependentes de outras espécies específicas, como seres humanos ou formigas. Mas tam-bém limita fortemente a mobilidade do domesticador. Os agricultores determinam o local para as suas plantas; mas plantas cultivadas respondem como espécie, e forçam os agricultores a se sedentarizar em larga medida10.

9. Cunha, MAnuaela Carneiro da; Lima, Ana Gabriela Morim. “How Amazonian Indigenous Peo-ples contribute to biodiversity”.

10. Idem, p. 68

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O resultado é que os índios humanizam a floresta como exten-são do que entendemos por âmbito doméstico.

Esse conjunto de ideias que revolucionam o entendimento da história indígena mudará drasticamente também a compreensão da tra-jetória de culinárias populares brasileiras que resultaram de forte intera-ção histórica colonizadora com grupos tribais específicos. É falso, então, considerar os guaranis como praticantes de uma agricultura rudimentar, se considerarmos a complexidade do manejo florestal como parte inte-grante da agricultura.

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Entre os guaranis, o trato da terra ainda se faz, como no passado, praticamente durante o ano todo, tendo destaque as várias fases da cultura que desembocam na colheita ritual do primeiro milho. Mas muitas eram as variedades cultivadas, destacando-se o milho duro, destinado inclusive à venda depois da colonização, e o milho mole ou saboró. O primeiro era e é plantado uma única vez por ano, embora outros povos latino-ameri-canos o façam mais e uma vez. O saboró, como o chamam os caboclos,

de grão mole, que frutifica de dois a três meses e amadu-rece em quatro tem caráter sagrado, sendo considerado a principal dádiva dos seres míticos chamados Djakairá (entre os Kayová), e é também o que melhor se presta para a fabricação da chicha [bebida fermentada]. As roças de milho mole e milho duro se fazem em separado [ ... J. Um e outro se plantam uma só vez por ano, entre os meses de agosto e outubro, iniciando-se a colheita mais ou me-nos em janeiro, quando se realiza a grande festa do avati-mongaraí11.

A mongaraí, que o antropólogo Egon Schaden considerou uma verdadeira religião do milho, também chamada de batismo do milho, consiste em uma série de procedimentos mágicos de um ciclo cerimo-nial que avança por oito fases distintas: batizar a terra antes de queimar a roça; a bênção da roça; a bênção do início do plantio; o combate da praga que come o milho quando este tem meio metro de altura; quando se forma o grão; quando já se pode colher o milho-verde; quando se preparam as primeiras comidas com milho-verde; e, por fim, quando se faz a primeira chicha. Nesse conjunto de rituais, situa-se o batismo das crianças, que então recebem o nome guarani que representa a alma - o “nome alma”- do indivíduo. No ritual, os pais devem levar à casa de orações (opy) o mbojapé, alimento preparado com farinha de milho e água e assado nas cinzas de uma fogueira; pode ser feito com qualquer variedade de milho, exceto o de pipoca. Associadas ao milho fazem-se também as roças de feijão (duas vezes ao ano), das quais uma coincide com a do milho (feijão-das-águas); às vezes são plantadas entremeadas, outras, plantadas em dezembro e colhidas em abril. Do mesmo modo, em abril também se colhe o ar-roz, adotado dos brancos. O plantio da mandioca se dá em maio e a limpa, em março do ano seguinte. O amendoim planta-se em janeiro e colhe-se em julho e assim por diante. Interessante notar que, afora os ali-mentos tradicionais, obtidos pelas famílias por meio de trocas e sempre levados pelos índios em suas mudanças de residência, os alimentos que pertencem aos cultivos dos brancos são adquiridos de não indígenas da vizinhança ou no comércio local.

11. Schaden, Egon. Aspectos fundamentais da cultura guarani, p. 48

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A mandioca não tem a importância do milho, o que se percebe pelo fato de não estar cercada de rituais. Ela é indispensável, porém, nos meses em que o milho começa a escassear. Tem destaque especial a variedade doce, consumida como legume cozido, e quase só nas comu-nidades do litoral, em especial entre os kayová, se utiliza a mandioca-brava na feitura de farinha12. Seguindo o que o padre Franz Müller13 descreveu no final do século XIX, podemos ter uma ideia de como era a moradia guarani. No centro da casa estava o fogo, em torno do qual se reunia a família; sempre aceso, abanado ou soprado para que não se extinguisse, aque-cia a água para se tomar o mate a qualquer hora do dia. Sobre ele, do teto, pendia um gancho de madeira no qual se pendurava um caldeirão sem tampa, a uma distância controlada do fogo; o conteúdo era sempre revolvido com uma vara que fazia as vezes de colher. Fora da casa ha-via outro fogo, sobre o qual as índias preparavam muitas das comidas, fossem cozidas ou assadas. Os fogos sobre os quais trabalhavam eram a parrilha, o assador, a brasa do carvão, e as cinzas, sobre as quais eram colocados gomos grandes de taquara (tacuapi). Faziam cozidos no tacu-api e, em geral, carnes e peixes sobre os outros fogos, além de legumes, como milho-verde, mandioca e batata; preparados de milho envoltos em folhas eram cozidos sobre as cinzas. A caça e a pesca constituem capítulo à parte da alimentação dos guaranis. Todos os grupos do alto Paraná comiam caças muito diversas, variando entre um e outro grupo aquelas que eram consideradas tabu. Certos peixes, cobras, lagartos e alguns animais de pelo se prestavam a essas distinções. Informações arqueológicas dão conta de sítios líticos com traços de inúmeros animais, sendo mais frequentes o veado-ma-teiro e o cervo-do-pantanal, seguidos de bugio, gambá, porco-do-mato, queixada, anta, capivara, mico, paca, preá, jaguatirica, ratão do ban-hado e ouriço-cacheiro: aves como perdiz, marreco e outras; peixes, como corvina de rio e bagre; répteis como tartaruga, jacaré e lagarto; e moluscos14. E, de novo, o padre Franz Müller nos informa sobre os costumes dos grupos que conheceu no século XIX:

com exceção do jaguar, ariranha, cachorro, morcego, ca-chorro do mato e raposa se comem todos os mamíferos, até o rato doméstico e as ratazanas. Entre os pássaros, estão excluídos como alimentos os urubus, os falcões, as garças, as andorinhas, as corujas; estas últimas talvez por razões de superstições, “já que elas anunciam a morte de algum membro da família”. Víboras e lagartixas não se comem, mas se comem as iguanas. Do jacaré, só se come o rabo.

12. Idem, p. 51.13. Müller, Franz, op. Cit., pp. 69 ss.14. Schmitz, Pedro Ignácio; Gazzaneo, Marta. “O que comia o guarani pré-colonial”, p. 99.

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Tartarugas, tanto de terra como de água, são comidas por uns e rechaçadas por outros; estes últimos, talvez também por razão de superstição. Os ovos, de toda classe de aves e répteis, com exceção dos de jacaré e lagartixa, são iguar-ias, mas não preparados em água e sim endurecidos ao fogo. Também os insetos abastecem o menu indígena: o crocante abdome da rainha das formigas podadoras, as gordas larvas de coleópteros, a larva da mariposa noturna e as ovas de abelhas. Os peixes servem quase todos para a alimentação, a piranha [ ... ] sem dúvida está excluída. Alguns que consideram as enguias como cobras as recha-çam, enquanto outros as comem. O mesmo vale para as arraias, cujo ferrão e a carne são considerados por alguns, naturalmente sem razão, venenosos15 .

Os animais comestíveis eram, em geral, assados inteiros, com vísceras, pele, pelos e escamas, e, uma vez prontos, comidos em segui-da, sem qualquer tempero. Os maiores, como a anta, eram eviscerados e cortados em pedaços, mas assados com pele e pelo. Os vegetais eram aqueles de cultivo ou coletados. Abundavam as batatas de diversas espécies; os carás, também variados; o inhame; as abóboras de dois tipos, andaí e curapepé16; os feijões, também de inúmeras variedades, os que trepam, os que têm ramos, = os arbustivos, os de grãos grandes, os pequenos, os amarelos, os vermelhos, os pinta-dos17; além de amendoins de três variedades distintas, sendo uma delas três vezes o tamanho das demais. Os guaranis faziam óleo do amendoim e frequentemente moíam o grão para fazer beijus, misturados à farinha de milho, ou ainda sob a forma de mbeyú-chini, um tipo de biscoito de longa conservação ao qual se acrescentava mel, criando uma verdadeira guloseima18. Entre as várias frutas silvestres, encontravam-se as anonáceas, o aguaí (uma sapotacea), os araçás, diferentes frutos de palmeiras, o ba-curi, a guajuvira e a jurubeba, além de uma laranja amarga, cuja origem talvez tenha sido uma variedade introduzida pelos jesuítas que se tornou espontânea. As frutas eram, em geral, comidas cruas, sendo algumas co-zidas ou assadas (ao passo que o amendoim era descascado e torrado, ou fervido em água com a casca)19. Segundo Montoya, acrescia-se a essa relação a goiaba, o maracujá, o ingá, o algarrobo, a pitanga, o guabiju,

15. Müller, Franz, op. Cit., p. 71.16. Ver: Schmitz, Pedro Inácio; Gazzaneo, Marta, op. Cit., Montoya, entretanto, cita mais variedades

— vermelhas, pretas, de pescoço, de cabeça redonda etc. —, a maioria cultivada, mas algumas selvagens.

17. Schmitz, Pedro Ináio; Gazzaneo, Marta, op. Cit., p. 102.18. Bertoni, Moisés. La civilización guarani, p. 8819. Idem, p. 72.

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guaríroba, os frutos do guaimbê, das figueiras e das cactáceas, o tarumã, a amora negra e o jenipapo20 . As comidas derivadas do milho eram muitas, e algumas delas, com pequenas modificações, são identificáveis até hoje como ancestrais de muitos alimentos da tradição considerada brasileira. Os milhos podi-am ser consumidos verdes ou maduros, conservados na espiga, debulha-dos, pilados ou moídos. O grão inteiro podia ser cozido, só, com carne, ou com verdura; ou podia ser tostado, ou torrado. Pilado, podia ser co-zido, produzindo curê ou mingau. Mascado, podia ser transformado em bebida fermentada (chicha). De outros modos podia transformar-se em mingau ou bolo21. Os principais preparados guarani com milho eram os seguintes:

1. mbodjape: pão de milho feito com milho maduro, previamente to-stado;

2. mbyta: pão de milho preparado com milho não maduro, apenas macerado;

3. chipa caure: pão de milho de formato cilíndrico, cozido no assador; 4. mbedju: panquecas de milho-verde postadas sobre brasas; 5. cai repoti: farinha de milho cozida em gomos de bambu; 6. rora: sêmola de milho embebida em gordura, sal e água e fervida; 7.· mbayapi: a polenta; 8. typihu: sopa de milho; 9. huiti piru: farinha de milho tostada; 10. mbaypy hê-ê: farinha de milho adicionada a água fervente com

mel; 11. kivepe: purê de abóbora com farinha de milho; 12. cagedjy: milho cozido em cinza; 13. djopara: milho fervido junto com feijões; 14. avati pichinga: milho assado na frigideira, sem gordura, para que

arrebente; 15. cangûit: cerveja de milho ou chicha.

Nas palavras do padre Müller, “o milho tenro assado sobre as brasas lembra o gosto das castanhas; mandioca e batata assadas em cinza ardente têm decididamente melhor gosto que fervidas em água. Um certo tipo de farinha de milho envolta em folhas de pinguao é co-zida em cinza ardente, e se a ingere quente é de um sabor ótimo22”.

20. Schmitz, Pedro Ignácio; Gazzaneo, Marta, op. Cit., p. 104.21. Schmitz, Pedro Ignácio; Gazzaneo, Marta, op. Cit., p. 101. 22. Müller, Franz, op. Cit., p. 70

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Não menos importante é registrar o modo como os índios faziam suas farinhas de mandioca. A raiz era primeiramente cozida, depois seca ao sol e finalmente pilada até virar pó. Bem diferente de como seu feitio é usualmente registrado, com base em técnicas de índios da Amazônia ou de outras partes do Brasil- embora essas técnicas também fossem usa-das pelos guaranis para obter o polvilho, ralando a mandioca crua e pas-sando em água, secando ao sol e depois levando aos tachos o polvilho e a polpa ralada para fazer a farinha. Também a mandioca pubada era enterrada por quatro a oito dias em pântanos; quando apodrecia, ad-quirindo uma consistência de purê, era então deixada ao sol para secar e depois pilada. Isso revela que os índios tinham conhecimento empírico de que a fermentação é, também ela, uma forma de cocção. Com a farinha de mandioca, preparavam popi, panquecas fritas em gordura, ou mbdju (beiju). Da mandioca pubada, com a fermentação interrompida no quarto dia, “peladas e fervidas [ ... ] se obtém uma comida aromática que ao gosto europeu resulta antipática (com odor fecal)23”. Se nos concentrarmos, porém, na fonte extraordinária que é Montoya, muitas outras referências nos dão pistas sobre o comer gua-rani. Ele cita inúmeras pimentas e frutas, como o ananás, a pacová, o gravatá, o fumo, os pinhões - que, em estado natural, se conservavam por muito tempo, ou podiam ser enterrados para curtir e azedar, coloca-dos no fundo de banhados, em águas, para se conservar fora do alcance das pragas, ou, ainda, transformados em farinha, da qual se fazia pão. Menciona ainda uma planta que se desenvolvia na água, sobre as pe-dras, que lembrava o agrião; diversas variedades de palmeiras que resul-tavam em farinhas; as amêndoas dos coquinhos e a produção de óleo; e variados fungos assados na brasa. Montoya também nos dá notícia das várias maneiras de consumir alguns produtos. Os feijões, por exemplo, podiam ser moídos, comidos antes de granar ou usados verdes, em guisados24. Fala-nos também dos porcos assimilados pelos índios, que podiam ser capados e gordos, e se refere ao consumo da banha25 ; reúne, ainda, as palavras do vocabulário guarani que nos remetem à clara de ovo cozida, à clara crua, à gema, ao “bater ovos para fritar26” e às tortillas de ovos27. Registra técnicas de cocção pouco conhecidas do olhar ocidental, como o cozimento ao

23. Müller, Franz, op. Cit., p. 7224. Montoya, Antonio Ruiz de. Tesooro de la lengua guarani, pp. 105-625. Idem, p. 353.26. Idem, p.47.27. Idem, p. 176.

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vapor: pituí, ou “água do vapor da boca da panela quente28”. Não lhe escapa a originalidade da paçoca - apaçog, em sua grafia -, semelhante ao pesto, isto é, redução pilada de carnes, inclusive peito de aves29. Re-colhe os vocábulos que se referem ao leite cru, ao leite cozido, ao talha-do, bem como ao leite de amendoim e de árvores30. E fala de uma classe de sobremesas, isto é, coisas que para ele se assemelhavam aos doces servidas na sequência das refeições, como preparados da banana, da batata-doce e do mel, ou “como sobremesa aquelas raízes crua cujo sabor era como raiz de pau, embora muito macia31”. Outro aspecto importante relacionado com o cozinhar são os utensílios utilizados, desde os instrumentos cortantes (as facas feitos de tacuapi (taquara ou bambu) até as “lindas travessas de terracota”, na descrição de Franz Müller - que achou-as parecidas com nossos pratos para torta -, passando pelos recipientes para cozer ao fogo, feitos dos gomos de bambu verde cortados em um extremo. Depois do declínio da indústria cerâmica dos guaranis, esses utensílios foram substituídos por aqueles feitos de cabaça e, raras vezes de madeira, em formatos peque-nos ou grandes, ovalados e retangulares - ou pelos de origem europeia, feitos de lata. Especialmente a panelas, “outrora de terracota, foram sub-stituídas completamente por mercadorias de alumínio ou ferro, e já é [era] difícil encontra um exemplar da velha indústria32”. Por uma cu-riosa destinação registra a literatura que, com o tempo, as índias foram substituída, pelas negras livres na feitura das panelas de barro. Por fim, come colheres, usavam pedaços de cabaça ou, entre os índios chiripá, de chifre de vaca, sendo as conchas grandes sempre feitas de cabaça. Outros traços indígenas permaneceram vivos e ativos entre os colonizadores. Os analistas desse encontro de culturas têm destacado práticas agrícolas, como a coivara; objetos tecidos como a rede e o tipiti, para o trato com a mandioca; elementos de construção, como a arquite-tura das casas bandeirantes e assim por diante. Ou seja, uma série de expedientes adaptativos que, de tão importantes, ficaram para sempre. Mas certamente os domínios fundamentais foram os da culinária e da língua guarani, do tronco tupi. Além da toponímia, do nome das espécies úteis, o tupi pene-trou fundo na língua brasileira. Essa convergência foi conscientemente

28. Idem, p. 301.29. Idem, p. 45.30. Montoya, Antonio Ruiz de. Tesoro de la lengua guarani, pp. 105-6.31. “Por postre aquelllas raizes crudas cuyo sabor era como raiz de palo, aunque era muy tierna”.

Montoya, Antonio Ruiz de. Conqista espiritual hecha por los religiosos de la Compañia de Jesus, en las Provincias del Paraguay, Parana, Uruguay y Tape, p. 43

32. Müller, Franz, op. cit., p. 69

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buscada como expediente de evangelização e colonização, já que o bilinguismo era estimulado pelos jesuítas, que selecionavam os prega-dores com esse critério. Tornou-se fato também notável no ambiente doméstico dos paulistas, seja em razão de casamentos interétnicos, seja da formação das novas gerações, conduzida em parte por amas de leite:

Os pais no interior da capitania de São Paulo estabele-ciam casas na cidade para os filhos serem educados pelos jesuítas e os deixavam aos cuidados de uma índia [ ... ]. Dessa forma, a fase de aprendizado do português escrito nos colégios dos jesuítas foi também um período de exposição ao tupi no ambiente doméstico por meio da índia respon-sável pelas crianças na ausência dos pais. A presença dessas mulheres na vida dessas crianças não ocorria apenas na fase escolar, mas desde o nascimento33.

Era de esperar não só o aprendizado da língua da terra como também o desenvolvimento do gosto pelas comidas nativas. Deve ter sido de forma gradual, muito devido à convivência forçada com o índio, que o milho acabou se impondo como solução alimentar mais geral na Paulistânia. Ele aparece na crônica colonial so-bretudo ligado à pobreza e à proximidade com os indígenas. “A canjica é o sustento dos pobres, pois só a pobreza dos índios e falta de sal [ ... ] podiam ser inventores de tão saboroso manjar”, escreveu Manoel Fonse-ca, destacando o lugar privilegiado do milho na alimentação34. Por isso, conforme se sabe, o sucesso das incursões pelo sertão dependia em boa parte do milho. Como registrou Pedro Taques, “toda pessoa de qualquer qualidade que seja que for ao sertão a descobrimentos será obrigada a levar milho, feijão e mandioca, para poder fazer plantas e deixá-Ias plantadas, porque com esta diligência se poderá penetrar os sertões, que sem isso é impossível35”. Apesar dessa conquista lenta do paladar metropolitano pela comida indígena, e apesar do caráter imperativo de sua adoção para se penetrar o sertão, como frisa Pedro Taques, os colonizadores demor-aram para assimilar todo o simbolismo do milho na cultura nascente. Visto como “comida de bugre” e de animais, ele se expandiu pelo mun-do, em parte conduzido pelos portugueses, mas ocupando sempre um lugar secundário no imaginário relativo à alimentação da colônia. Em primeiro plano, o lugar de destaque coube à mandioca. Historiadores como frei Vicente do Salvador e Gandavo se dedicaram amplamente ao elogio da mandioca, desprezando o milho. A rigor, sequer se admitia,

33. Barros, Cândida. “O uso do tupi na Capitania de São Paulo no século XVII”, p. 149.34. Ver: Basso, Rafaela. A cultura alimentar paulista: um civilização do milho? p. 7035. Leme, Pedro Taques de Almeida Paes. Informação sobre as minas de São Paulo, p. 130.

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inicialmente, a origem americana do milho! Com o tempo, contudo, ele se impôs e, em meados do século XIX, já era uma das principais culturas no reino de Daomé, na África, de onde vinha boa parte dos escravos di-rigidos à Bahia36. Assim, a trajetória do milho é complexa também como questão historiográfica. Sabemos que ele chega à Europa com Colombo. Dez anos de-pois da sua chegada, há notícias de seu cultivo em Castela, na Cata-lunha, na Andaluzia. Em Portugal, aparece por volta de 1520, em torno da cidade de Lamego. Em 1532, já pode ser encontrado em Bayeux, no sudoeste da França. Também chega a Veneza na década de 1530. É levado pelos portugueses à Birmânia e à China em 1597 e, como observou David Lopes Ramos, jornalista especializado em culinária, se naturalizou de tal forma na Ásia que, quando começou a interessar aos europeus, no século XVII, atribuíram-lhe uma origem dupla, americana e extremo-asiática, “o que mostra bem a profundidade da sua implanta-ção, em apenas duzentos anos37 .” Se por um lado a colonização portuguesa tinha uma diretriz práti-ca muito clara, a ponto de os colonizadores compreenderem a utilidade do milho tomado dos indígenas, por outro sua historiografia foi mestra em misturar discussões botânicas, relativas à classificação de várias plan-tas, questões históricas, como a disseminação do Zea mays, e, ainda, aspectos mais propriamente de léxico. Mas esse não foi um privilégio ex-clusivo deles. Em artigo e 1967, M. D. W. Jeffreys faz um enorme esforço para identificar na África a origem do milho, anterior mesmo à revelação de Cristóvão Colombo38. São ecos longínquos do quiproquó criado pela confusão nominativa a respeito do milho, o que, ainda hoje, dificulta a identificação do seu trajeto nos domínios lusitanos. De fato, os primeiros cronistas coloniais já registravam a ocor-rência, nas terras brasileiras, do milho-zaburro, que é primeiramente mencionado no Relato do piloto anônimo, documento da viagem de Cabral, em 1500. Nos escritos de época, a nomenclatura se referir ao milho é ampla. No Diálogo das grandezas do Brasil, de Ambrósio Fer-nandes Brandão, do início do século XVII, lê-se uma fusão de termos: o “milho-maçaroca, que em nosso Portugal chamam zaburro e nas Índias Ocidentais maís, e entre os índios naturais da terra, abati39.” Por outro lado, sabe-se que o primeiro a grafar a palavra zaburro em português foi Valentim Fernandes, em textos relativos às viagens fre-quentes a São Tomé, entre 1492 e 1506. Nos escritos, distingue o zabur-

36.Polanui, Karl. Dahomey and the slave trade.37. Ramos, David Lopes. Sabores da lusofonia, p. 34.38. Jeffreys, M.DW., “Pre-Columbian Maize. North of the Old World Equator.39. Para a abordagem dessas sinonímias, ver: Hue, Sheila Moura. Delícias do Descobrimento, pp.

84 ss.

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ro do milho-da-guiné e do milho-dos-negros, cultivados no litoral seco saariano. O zaburro foi identificado por Gonçalo Pires, em São Tomé, onde teria sido semeado pela primeira vez em 1502, e é provável que a palavra derive de za, ou raiz, largamente utilizada na África Ocidental como sinônimo de sorgo, e burro, designativo dos árabes na Costa do Marfim; zaburro significaria, portanto, em línguas africanas, algo como sorgo dos árabes. Essa hipótese linguística é reforçada pelo uso de grano turco pelos italianos para designar milho, e por expressões equivalentes em alemão, francês e inglês, além de milho-da-índia, usada pelos por-tugueses. Valentim Fernandes refere-se novamente ao milho em 1507, ao descrever a costa da Guiné e do Senegal, dizendo que os povos da Gilofa tinham muito milho-zaburro, sendo o cuscuz o seu principal ali-mento, também comum entre os mandingas40 . No princípio do século XVI, é Fernandes Brandão quem iden-tifica o milho de maçaroca com o milho-zaburro, e diz ser maís o seu nome nas Índias Ocidentais. Em meados do século XVI, quando o piloto anônimo de Vila do Conde passa por São Tomé, nota que os escravos se alimentam de milho-zaburro, “que se chama maiz nas Ilhas Ocidentais”. Finalmente, na segunda edição do seu livro Delle navigationi et viaggi, de 1554, Battista Ramusio fala do “miglio zaburro nelle Iindie occiden-tali Mahiz” e inclui o desenho de uma espiga de milho Zea mays41. A confusão persiste, ainda no século XIX, e, no Dicionário de Morais, edições de 1831, 1857 e 1874, milho-zaburro figura como sinônimo de Zea mays, apesar da origem americana da gramínea ter sido comprovada por Alphonse de Candolle (1882), aclarando que, portanto, ela era desconhecida no velho Mundo antes do contato co-lombiano42.”

40. Ver a respeito: Lains e Silva, Hélder. São Tomé e Príncipe e a cultura do café, pp. 60-741. Idem, p.6342. Warman, Arturo. La historia de um bastardo: maiz y capitalismo, p. 41.

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ii - período colonial 2. JaCob gorenDer:

A forma plantagem de organização da produção escravista

3. peter eisenberg:

A mentalidade dos fazendeiros no Congresso Agrícola de 1978

4. Ciro FlaMarion s. CarDoso:

Haiti

5. Ciro FlaMarion s. CarDoso:

A plantation escravista

6. Cyril leonel robert JaMes:

Os jacobinos negros: Toussaint L´Ouverture e a revolução de São Domingos

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2. a ForMa plantageM De organização Da proDução esCravista43

“Em todas as formas de sociedade, existe uma determinada produção que atribui a todas as outras sua correspondente hierarquia e influência e cujas relações, portanto, atribuem a todas as outras a hierarquia e influência. É uma iluminação geral em que se banham todas as cores e que modifica as particularidades destas. É como um éter particular que determina o peso específico de todas as formas de existência que ali adquirem44”.

Estas palavras de Marx, na Introdução à crítica da Economia Política, aplicam-se à forma plantagem45. Foi ela a forma de organização dominante no escravismo colonial. Dela o trabalho escravo irradiou a outros setores da produção e se difundiu na generalidade da vida social. As unidades produtoras não plantacionistas se modelaram conforme a plantagem e todas as formas econômicas, inclusive as não-escravistas, giraram em torno da economia de plantagem. Juntamente com a escravidão, a plantagem constitui categoria fundamental do modo de produção escravista colonial.

I. Traços caracteristicos principais da plantagem escravista A análise histórica e conceitual de Leo Waibel serve de base de partida a este estudo. O que não implica minha concordância com a opinião

Jacob Gorender

43. Publicado no livro O Escravismo Colonial. Ed. Ática. 1976.

44. MARX. K. Introducción, p. 27-28.

45. As grandes explorações agrícolas com trabalho escravo. surgidas no continente americano à época do mercantilismo. têm sido designadas, na literatura de língua Portuguesa, pelo nome de plantation, vocábulo emprestado ao inglês e sempre impresso em itálico. Mas os ingleses, como informa Leo Waibel. tomaram o termo empres,rago aos franceses, Cf. WAIBEL, Leo. “A Forma Econômica da ‘Plantage Tropical”. In Capítulos de Geografia Tropical e do Brasil. Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1958, pp. 34-35. O esdrúxulo consiste em que escritores de língua porruguesa precisem desse vocábulo estrangeiro a fim de indicar uma forma de organização econômica que Portugal teve muito antes da França e da Inglaterra (nas ilhas atlânticas) e que, no Brasil, apresentou-se sob um modelo clássico e de duração mais prolongada do que em ourras regiões. Em lugar de plantation, alguns auurores empregam “plantação” ou “grande lavoura”. Ambas estas expressões lingüísticas sofrem da desvantagem de carência de univocidade, prestando-se a confusões. Proponho substituir plantation, em vernáculo, por plantagem. Não se trara aí de invenção léxica, porquanto plantagem está há muito dicionarizada. Mas, sendo vocábulo em desuso na linguagem comum e de todo ausente na literatura historiográfica e econômica, terá significação unívoca, além de dispensar o grifo e a pronúncia à inglesa. A título de informação, acrescento algumas anotações léxicas. Laudelino Freire, no Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa. (2ª ed., Rio de Janeiro, José Olympio Ed. 1954), registra Plantagem como sinônimo de Tanchagem – planta vivaz e medicinal da família das plantagináceas, derivando-se o termo do latim plantago. Caldas Aulete, no Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa (4ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Delta, 1958), registra Plantagem com significação idêntica. Francisco da Silveira Bueno, no Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa (São Paulo, Ed. Saraiva, 1966), consigna Plantagem como plantação, ato de plantar, de afincar. Por fim, apenas para dar idéia do desuso deste vocábulo, ao menos em nosso país, mencione-se que não se acha incluído no Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (11ª ed. São Paulo, Civilização Brasileira, 1969, 4ª impressão, sob a supervisão de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira). Nem tampouco no Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1975).

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do geógrafo alemão acerca do caráter capitalista da plantagem que “(...) dependia inteiramente do trabalho escravo46”. A forma plantagem teve diversos conteúdos. econômico-sociais através da história, mas aqui o objetivo único e bem delimitado é a plantagem escravista. Por isso mesmo, considero que introduziria um elemento de confusão se relacionasse a plantagem escravista à sistematização dos tipos fazenda e plantagem feita por Wolf e Mintz. É convincente sua adequação a entidades socioeconômicas da primeira metade do século 20 numa área circunscrita (a do México, América Central e Caribe). Daí não se segue, contudo, que, tomadas enquanto construções abstratas, possuam eficácia heurística diante de realidades sociais de outra época histórica. O problema não se resolve tampouco com a proposta de Marvin Harris, que coloca as plantagens açucareiras coloniais a meio caminho no continuum taxionômico polarizado entre os extremos da fazenda e da plantagem. Tendo em vista, precisamente, o objetivo da univocidade é que me atenho à plantagem escravista como forma de organização produtiva que se define pelas próprias determinações históricas47. Com este enfoque, apoiado nos elementos fatuais da história do escravismo colonial, são expostos, a seguir, os traços caracterÍssticos principais da plantagem escravista.

a) Especialização na produção de gêneros comerciais destinados ao mercado mundial

A plantagem escravista colonial é uma organização econômica voltada para o mercado. Sua função primordial não consiste em prover o consumo imediato dos produtores, mas abastecer o mercado mundial. Este é que a traz à vida e lhe dá a razão de existência. Baseado no trabalho escravo, o modo de produção, que com ela se organiza, não oferece à plantagem um mercado interno de dimensões compatíveis com sua produção especializada em grande escala. Produção agrícola especializada é sinônimo de monocultura. Mas esta característica não deve ser tomada no sentido absoluto, do que resulta uma visão unilateral. A plantagem escravista contém um setor de economia natural, cuja produção se consome dentro da própria unidade produtora e que, por mais secundário com relação a produção comercial especializada, não deixa de represenntar necessidade estrutu-ral. Necessidade que independe das peculiaridades da metrópole ou da colônia, pois encontramos sua manifestação no Brasil, na área das Antilhas e no Sul dos Estados Unidos. Regida por lei específica do modo de produção, a correlação entre economia mercantil e economia natural

46. WAIBEL, Leo. Op. cit., 268

47. Cf. WOLF, Eric R. e MINTZ, Sydney W. “Haciendas y Plantaciones en Mesa América y Ias Antillas”. In FLORESCANO, Enrique (coord.). Haciendas, Latifundios y Plantaciones enl América Latina. 2ª ed. México, Siglo XXI, 1978. pp. 493-531; HARRIS. Marvin. Patterns of Raece in Americas. Nova York. Norton Library. 1974, pp. 44-45.

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torna a monocultura uma tendência, essencial sem dúvida, porém só excepcionalmente realizada em sua plenitude. Mesmo com a extremação da monocultura, que nunca seria senão temporária, a economia natural remanesceria como possibilidade estrutural, atualizada assim que o exigisse a mudança de conjuntura. A plantagem escravista nunca chegou a constituir, por isso, uma organização mercantil em sua totalidade. Havia nela permanente dualidade interna, com a tendência à monocultura, sua motivação vital, conflitando sempre com os limites da economia natural.

b) Trabalho por equipes sob o comando unificado

A plantagem é um estabelecimento que produz em grande escala, tornando-se a unidade familial como ponto de referência. No âmbito da sua própria escala de valores, a plantagem podia ser pequena, média ou grande, não obstante sempre superior à escala da unidade agrícola familial. A mão-de-obra, por conseguinte, mais ou menos numerosa, executa as tarefas principais organizada em equipes (gangs, como se chamavam nas colônias inglesas), que obedecem ao comando único do plantador ou do seu feitor-mor. À exceção dos minúsculos cultivos dos próprios escravos, quando permitidos, não há atividades autônomas, todas obedecem à direção integrada no tempo e no espaço, desde a preparação do terreno ao escoamento final do produto para a venda. Graças às suas características de direção unificada, de disciplina rigorosa e de integração de todas as tarefas, a plantagem foi uma forma de organização econômica adequada ao empreego do trabalho escravo, em que a iniciativa autônoma do agennte direto do trabalho era nula. Plantagem e trabalho escravo podiam combinar-se e alastrar-se como uma só coisa na América colonial. A plantagem escravista distingue-se radicalmente, como se evidencia, da forma de organização típica do feudalismo. Nesta, as pequenas explorações familiais tributárias, possuidoras de meios de produção, autônomas e estáveis, constituem a base do sistema. Quando também comparece a exploração senhorial – o que tão-somente ocorre em certas fases e circunstâncias –, sua mão-de-obra é a mesma das explorações familiais, obrigada ao encargo da corvéia. De todo diversa é a organização do trabalho e da produção na plantagem escravista. De nenhuma autonomia dispõem os trabalhadores, o tempo todo a serviço do proprietário deles, trabalhadores, e dos meios de produção. Diferença tão profunda e de importantíssimas conseqüências, salientou-a Caio Prado Júnior, há quatro décadas: “(...) não se trata apenas da grande propriedade, que pode estar associada à exploração parcelária; o que se realiza então pelas várias formas de arrendamento ou aforamento, como é o caso, em maior ou menor proporção, de todos os países da Europa. Não é isto que se dá no Brasil, mas sim a grande propriedade mais a grande exploração, o que não só não é a mesma coisa, como traz conseqüências, de toda ordem,

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inteiramente diversas48”. A atribuição do caráter feudal à pIantagem escravista derivou de alguns aspectos também comuns aos domínios medievais: o latifúndio, os povoados isolados, a vontade do senhor de engenho ou fazendeiro erigida em lei, a vitalidade do mundo rural em face do débil desenvolvimento urbano. Tais aspectos, dissociados da estrutura econômica completamente distinta no escravismo e no feudalismo, criaram a ilusão de que se impregnou parte da literaatura historiográfica e sociológica no Brasil.

c) Conjugação estreita e indispensável, no mesmo estabelecimento, do cultivo agrícola e de um beneficiamento complexo do produto

A plantagem escravista – aliás, a plantagem em geral – nunca é uma unidade produtora puramente agrícola, em que a atividade beneficiadora do produto, quando existe, se reduz a operações muito simples de separação entre o grão e a palha, de secagem elementar etc. Dadas as peculiaridades intrínsecas do produto, da escala da produção e da sua destinação comercial, o beneficiamento próprio à plantagem requer instalações e instrumentos especiais e todo um ciclo complexo de operações, mais ou menos trabalhoso e prolongado, sem o qual o produto não poderá ser elaborado, conservado, acondicionado e vantajosamente transporrtado a longa distância. O açúcar constitui o caso mais típico e, outrossim, um caso-limite, pois a conversão da cana em açúcar já não se reduz apenas a beneficiamento e assume a natureza de transformação industrial, no âmbito da plantagem. Embora sem ir tão longe, o beneficiamento de outros produtos envolve diversificado conjunto de operações: no algodão – limpeza da fibra, descaroçamento, prensagem e enfardamento; no tabaco – purgação” e cura das folhas, torcedura das cordas, tempero, prensagem e formação dos rolos para enfardamento; no café – secagem, descocamento, despolpamento, fermentação, brunimento e escolha dos grãos; no anil – passagem sucessiva da infusão através de três tanques, cada qual implicando operações diversas49? Por mais complexo o seu processo e por mais avultados os equipamentos envolvidos, o beneficiamento não chega a se substantivar na plantagem escravista e a prevalecer sobre a atividade estritamente agrícola. Isto é patente nas plantagens de tabaco, algodão e café, onde o beneficiamento não ultrapassa a fase de preparação do produto como matéria-prima para

48. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. Op. cit., p. 117. 49. Informação detalhada da técnica de beneficiamemo nas plantagens típicas pode ser colhida nas seguintes fontes:

Açúcar - ANTONIL, André João (João Antônio Andreoni). Cultura e Opulência do Brasil. São Paulo. Cia. Ed. Nacional, 1967. Primeira - Parte. Livros Segundo e Terceiro; VILHENA. Luís dos Santos. A Bahia no Século XVIII (Recopilação de Notícias Soteropolitanas e Brasílicas). Salvador. Ed. Itapuã, 1969, v. I, pp. 179-196.

Fumo - ANTONIL. Op. cit., segunda parte, cap. III a VI; CASTRO, Joaquim de Amorim. “Memórias sobre as Espécies de Tabaco que se Cultivam na Vila de Cachoeira com Todas as Observações Relativas a sua Cultura. Fabrico e Comércio” ln LAPA, J. R. Amaral: Economia Colonial. São Paulo. Ed. Perspectiva. 1973. apêndice I. pp. 2011212.

Algodão - GAYOSO. José de Souza. Compêndio Histórico-Político dos Princípios da Lavoura do Maranhão. Paris., 181 R. pp. 317-321: SAINT-Hilaire, Augute de, Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte, Ed. da Universidade de São Paulo e Liv. ltariaia Ed., 1975. pp.172, 228 e 236.

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ulterior transformação, fora do estabelecimento, que o tornará adequado ao consumo individual. Não tão patente nas plantagens de açúcar. Aqui, o que sai do estabelecimento não é mais a matéria-prima agrícola (a cana), porém o resultado de sua elaboração industrial (o açúcar), inclusive, como no Brasil, já apto ao consumo individual. Semelhante elaboração industrial exigia instalações e instrumentos de elevado custo, recursos vultosos e grande soma de trabalho. Com razão, observou Koster a respeito do engenho de açúcar: “É uma fábrica e também uma fazenda e ambas tem tarefas iguais e devem agir juntas, em conexão com as estações do ano50”. Apesar disso, o setor industrial da plantagem escravista de açúcar não se desprendia dela, mas a integrava de tal maneira que continuava a prevalecer a característica agrícola do estabelecimento. À diferença da elaboração industrial, as tarefas agrícolas se sucediam o ano inteiro sem interrupção e absorviam a maior quantidade de trabalho. Além do que, a técnica primitiva do beneficiamento apenas permitia extrair cerca da metade do caldo contido na cana, ficando a outra metade da matéria-prima desperdiçada51. Basta verificar que os maiores engenhos do Brasil Colonial produziam entre 150 e 250 toneladas de açúcar por ano, ao passo que são comuns hoje as usinas que fabricam 60 mil toneladas anuais. O termo engenho assumiu, por sinal, o sentido de plantagem em sua totalidade, abrangendo o cultivo da planta e a transformação industrial da matéria-prima. Alguns autores consideraram típica a separação do engenho propria-mente dito com relação à atividade agrícola, com o que o senhor de engenho só teria a seu cargo o fabrico do açúcar. Segundo Noel Deerr, enquanto nas colônias inglesas e francesas as funções de plantador e de proprietário do engenho se reuniam no mesmo indivíduo, o proprietário do engenho no Braasil era plantador excepcionalmente52. Semelhante afirmativa se apóia em informações referentes a uma fase muito curta do século 17, na qual se inclui a ocupação holandesa do Nordeste. Todavia à exceção dessa fase, o engenho aparece sempre unido às plantações próprias e recebendo, mais ou menos comumente, variável contribuição de cana fornecida por lavradores autônomos. Embora considerável, tal contribuição era, em regra, inferior à metade do total da cana moída pelo engenho. Dado o tipo de vinculação existente, acertadamente caracterizou o vigário de uma freguesia do Recôncavo Baiano os estabelecimentos dos fornecedores de cana como “(...) fazendas distintas que fazem corpo com os mesmos engenhos53”. Em outra parte desta obra, ver-se-á que a substantivação do engenho de açúcar com relação à plantação da cana

50. KOSTER. Op. cit., p. 429

51 Cf. CANABRAVA, Alice P. “Introdução”. In ANTONIIL., Op. cit., p. 70.

52. Cf. DEERR, Noel, The History of Sugar, Londres, Chapman and Hall, 1949, v. I, p. 108.53. “Notícia sobre a Freguesia de S. Sebastião das Cabeceiras do Passé. do Arcebispado da Bahia. pelo Vigário

colado o Reverendo Licenciado Felippe Barbosa da Cunha” (data provável – 1757). ABN. 1913, v. 31, p. 207.

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não podia ser economicamente vantajosa, senão inviável, diante das leis inerentes ao modo de produção escravista colonial.

d) Divisão do trabalho quantitativa e qualitativa

A plantagem escravista era uma unidade econômica integradora de múltiplas tarefas executadas por equipes de trabalhadores. A divisão do trabalho se apresentava, no seu interior, sob o aspecto quantitativo de tarefas idênticas executadas por equipes diferentes e sucessivas ou, de modo simultâneo, em localizações espaciais contíguas. Na divisão do trabalho quantitativa se insere a cooperação simples que reúne vários trabalhadores com vistas à execução de uma mesma tarefa, cada qual intervindo por sua vez e fazendo a mesma coisa que os demais (no transporte, por exemplo, da cana cortada até a moenda ou do caldo até as tachas). Contudo, como estabelecimento de produção em grande escala, a plantagem já apresentava uma divisão do trabalho avançada, se nos ativermos à técnica européia do século 16, divisão do trabalho não só quantitativas, mas também qualitativa. em primeiro lugar, a grande divisão entre a atividade agrícola e beneficiamento. Se a atividade se situava em nível técnico rudimentar, o beneficiamento envolvia notável complexidade nos engenhos de açúcar, desde a moagem aos sucessivos cozimentos, purificações, purgas, cristalização, clarificações, secagem, prensagem e encaixotamento. Ao que se acrescentavam o armazenamento e o transporte até o porto de exportação, atividades por igual inclusas no quadro centralizado da plantagem. Esta, além disso, quase sempre requeria outros setores no âmbito de suas fronteiras: olaria, serraria, carpintaria, edificação, ferraria, marcenaria etc. A fim de movimentar a moenda e/ou efetuar transportes, necessitava de bois e cavalos, com os currais, pastagens e homens para cuidar de tudo. Tratava-se, como se vê, de integração vertical de atividades diferentes dentro da própria plantagem, ao contrário do que ocorre na aeconomia capitalista, na qual a integração vertical se estabelece fora das empresas como tais, vinculando-as entre si, sejam empresas de proprietários distintos ou pertençam a um truste ou conglomerado. Por fim, dado o tipo de mão-de-obra, a divisão qualitativa do trabalho no interior da plantagem escravista implicava escassa especialização individual. Afora uns poucos ofícios, entregues ou não a assalariados, a regra geral para os escravos consistia na intercambialidade de funções. De acordo com as exigências momentâneas do estabelecimento, o mesmo escravo estaria empenhado nas tarefas agrícolas, no beneficamento, no transporte ou em qualquer outro setor carente de trabalho de baixa qualificação.

2. Peculiaridade das plantagens A associação da forma plantagem com determinados gêneros agrícolas não é inelutável. Algodão, fumo e café podem ser cultivados

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por pequenas explorações em condições econômicas vantajosas, o que se verificou com os dois primeiros, mesmo no Brasil escravista. A própria cana-de-açúcar adaptou-se à pequena exploração quando esta tinha em vista a produção de rapadura ou de aguardente. Para tais fins, bastavam as engenhocas, que requeriam bem menores investimentos do que os engenhos. Vilhena mencionou mais de 500 engenhocas produtoras de rapadura no Ceará, com intensa comercialização deste comestível no mercado interno54. Aliás, não só no Ceará, mas em geral no serttão nordestino, aproveitando as manchas úmidas, difundiram-se desde o século 18 pequenos engenhos produtores de rapadura e aguardente, com 12 a 15 escravos normalmente por unidade produtora. Constituíam, como escreve Manuel Correia de Andrade, “(...) uma miniatura, distanciada no tempo e no espaço, da civilização canavieira da região da Mata”55. A simples destilação da cachaça era acessível até à gente pobre, que comprava aos engenhos a matéria-prima – o melaço, subproduto do fabrico do açúcar – e a elaborava em rústicos alambiques caseiros56. Enquanto a rapadura ou a cachaça viabilizava pequenos equipamentos produtores, combinando pequenos investimentos com pequeno insumo de matéria-prima, o mesmo não podia suceder com o açúcar. O engenho produtor de açúcar carecia de investimento vultoso e de grande quantidade de matéria-prima: a forma plantagem impunha-se inevitavelmente. Na Bahia, onde os engenhos tinham dimensões médias maiores que nas demais regiões, o Padre Fernão Cardim observava, nos fins do sécuIo 16, que o planteI minímo era de 60 escravos para o serviço ordinário do engenho, porém a maioria possuía de 100 a 200. Dois séculos em seguida, Vilhena diria que um senhor de engenho do Recôncavo com menos de 80 escravos se reputava Fraco. Em Pernambuco, nos começos do século 17, um engenho de bom tamanho devia contar com 50 escravos de trabalho, segundo Ambrósio Fernandes Brandão. Nos começos do século 19, seria de 40 o plantel médio necessário ao eito dos engenhos pernambucanos, na estimativa de Koster57. No que se refere a outros gêneros agrícolas, pode-se dizer que sua produção tendia à forma plantagem, sem que esta fosse exclusiva. Tal o caso, em especial, do fumo e do algodão, que permitiram a coexistência de grandes e pequenas explorações. O beneficiamento do fumo era penoso, demorado e exigente de muito trabalho, mas os equipamentos sumários se faziam acesssíveis a modestos lavradores. Na Bahia e Sergipe, principal região produtora, Vilhena estimou em 1,5 mil as “fazendas de tabaco”, entre grandes e pequenas, ao passo que os engenhos de açúcar, na mesma região, seriam algo mais de

54. Cf. VILHENA. Op. cit., v. 3, pp. 658-659.55. ANDRADE, Manuel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1963, pp. 185-186.56. Cf. KOSTER. Op.cit., pp. 435-44957. Cf. CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e da Gente do Brasil. Rio de Janeiro, Ed. J. Leite e Cia., 1925, p. 320;

BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandeezas do Brasil. São Paulo, Melhoramentos - Instituro Nacional Livro, 1977, p. 129; VILHENA. op. cit., v. I, p. 182; KOSTER. op. cit., p. 442.

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40058. E o Autor Anônimo, escrevendo pouco antes, menciona lavradores de 20 rolos de fumo e outros de 200 e mais (cada rolo pesando 14 arrobas). Uma vez que o mesmo economista calculava a produtividade média por escravo em quase sete rolos, conclui-se que os produtores de 20 rolos não possuíam menos de três escravos, enquanto os produtores ele 200 rolos deveriam contar de 30 para mais. Ao lado de verdadeiras plantagens, a lavoura de tabaco incluía, como fica evidente, numerosas explorações de pequenos escravistas, cujos familiares também participavam no trabalho agrícola, mormente na colheita, e na secagem das folhas. A parte mais pesada e suja do beneficiamento – torcedura e tempero – ficava a cargo dos escravos, três ou quatro por equipe no mínimo, segundo Antonil59. Os pequenos lavradores enfrentavam, contudo, dificuldades para realizar o beneficiamento em tempo útil, o que motivou a sugestão de Amorim Castro ao governo português no sentido da criação de “casas públicas de enrola”, isto é, de estabelecimentos esstatais beneficiadores60. As explorações fumageiras menores podem ser classificadas como forma híbrida de plantagem e de economia familial, porém a própria lucratividade da lavoura, sobretudo nas fases mais intensas do tráfico de africanos, induziria o fortalecimento da plantagem em sua forma pura. Também a lavoura do algodão fez surgir plantagens e pequenas explorações. Simples agregados e até escravos o cultivavam por conta própria. Segundo Tollenare, o possuidor de um capital modesto podia começar um algodoal vantajosamente com dez escravos. Enqúanto, todavia, o beneflciamento do fumo não se separava do estabelecimento agrícola, tal separação se tornou freqüente e usual na esfera algodão. Dado o surgimento de numerosas explorações de dimensões exíguas e com escassa mini-obra, o beneficiamento da sua produção ficou entregue a negociantes, que se deslocavam munidos de aparelhos portáteis às regiões algodoeiras e ali compravam o algodão ainda em caroço e o beneficiavam. A época em que esteve em Pernambuco o comerciante Tollenare (1816-1818), a localidade de Bom Jardim, distante do Recife cerca de 120 quilômetros, concentrava os negócios de compra e beneficiamento do algodão. Em Minas, a concentração dos negociantes maquinistas se dava, à época da colheita, em São João del-Rei. O grosso da produção não procedia, entretanto, das pequenas explorações. Koster visitou uma plantagem de algodão com 150 negros. Tollenare informou sobre algodoais com 150 escravos na Paraíba, com 300, no Ceará. No Maranhão, o maior produtor da fibra no Brasil escravista, o estabelecimento considerado típico por Gayoso, devia dispor de 50

58. Cf. VILHENA. op. cit., v. I, pp. 173-174 e 199.

59. Cf. Autor Anônimo. Op. cit., pp. 96-98; ANTONIL. Op. cit., pp. 243-244.

60. Cf. CASTRO, Joaquim de Amorim. “Manufatura do Tabaco.” ln LAPA, Amaral. Op. cit. apendice 2, pp. 222-224.

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escravos de trabalho e produzir 600 arrobas anuais de algodão em pluma extraídas de 2 mil em caroço61. Gayoso mencionou “fábricas de soque” do arroz, igualmente denomi-nadas de engenhos e empregando escravos. Havia diversas em São Luís e fora da cidade, as quais recebiam o gênero bruto dos lavradores e o beneficiavam. Outros lavradores, contudo, já o remetiam beneficiado62. Em 1820, poucos anos após o escrito de Gayoso, operavam em São Luís 22 máquinas descasdoras de arroz movidas por animais e uma já movida a vapor, o que dá idéia do avultado número de pequenas explorações desprovidas de beneficiamento próprio63. Avaliadas pelo critério do plantel de escravos, as fazendas de café do século 19 foram certamente as plantagens de maiores dimensões. No Município de Vassouras, típico do Vale do Paraíba, o plantel médio, segundo Stanley Srein, era de 80 a 100 escravos64. Mas, enquanto foram bem raros os engenhos de açúúcar com mais de 200 escravos, náo escasseiam as referências a fazendas de café com 200 a 400. Inexiste qualquer menção à separação entre lavoura e beneficiamento do café, exceto já na última década do escravismo, com relação a sitiantes europeus que pagavam o beneficiamento de sua produção, levado a efeito nas fazendas65. A plantagem escravista dispunha de vantagens consideráveis sobre as pequenas explorações e daí constituir-se na forma dominante de organização econômica. Graças ao elevado número de trabalhadores que concentrava, podia contar com a superioridade da cooperação simples sobre o trabalho individual e podia efetuar com relativa rapidez grandes colheitas. Simultaneamente com estas, era capaz de beneficiar o produto agrícola em tempo hábil e com menores perdas de matéria-prima. Podia, enfim, viabilizar no mesmo estabelecimento a divisão qualitativa do trabalho, integrando as várias fases da atividade principal e os ofícios correlatos. Compreende-se então que, embora empregasse o trabalho escravo, pouco produtivo sob o aspecto individual, conseguisse firmar-se como o eixo e a base da economia colonial.

3. Aspectos das forças produtivas da plantagem escravista Aparentemente, constitui paradoxo a implantação do escravismo no continente americano na época em que a Europa Ocidental dava os primeiros passos no sentido do regime do trabalho assalariado livre. O paradoxo, todavia, é sempre a explicação do que não se consegue explicar, pois a história, em si mesma, nunca é paradoxal.

61. Cf. KOSTER. Op. cit., pp. 103 e 452; TOLLENARE. Op. cit., p. 156 e 231; GAYOSO. Op. cit., pp. 263-264; SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagens pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1941, p. 207.

62. Cf. GAYOSO. Op. cit., pp. 182 e 293-294. 63. Cf. SPIX e MARTIUS. Viagem pelo Brasil (1817-1820). 2ª ed. São Paulo, Ed. Melhoramentos, 1%1, v. 2, p. 314. 64. Cf. STEIN. Stanley. Grandeza e Decadência do Café no Vale do Paraíba. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1961, p. 193. 65. Cf. TAUNAY, Affonso de E. História do Café no Brasil. Rio de Janeiro.

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A agricultura medieval conquistara uma produtividade bastante superior à do mundo antigo. Antes de tudo, porque o camponês, servo da gleba, ou apenas vilão submetido a encargos feudais, era dono de meios de produção e tinha interesse pessoal no desenvolvimento de sua exploração familial. Já isso o tornava mais produtivo do que o escravo dos latifúndios e villas de Roma. A pequena lavoura associada à pecuária dispunha de adubos orgânicos e os empregava com regularidade. A predominância da economia natural incentivou a policultura e, com ela, fez progredir as técnicas hortícolas. O cultivo da terra se aperfeiçoou e ganhou produtividade estável graças ao sistema dos três afolhamentos anuais. Tudo isso foi subvertido pela plantagem escravista. Ao invés do camponês ativamente interessado, o escravo mau trabalhador. O emprego regular de adubos orgânicos não se adaptava ao cultivo extensivo de grandes tracos de terra, dissociado, ademais, da criação pecuária, uma vez que o gado bovino e cavalar servia apenas de força de tração. O sistema dos três afolhamencos anuais era incompatível com a especialização, sobretudo quando se tratava de plantas perenes, capazess de safras sucessivas. Por último, a destinação comercial predominante, com tendência à monocultura, e as características do trabalho escravo impunham limites estreitos à economia natural coexistente e dificultavam seu florescimento no sentido da policultura do camponês medieval. Tais condições representaram, com efeito, um retrocesso do ponto de vista das forças produtivas, mas seria unilateral concluir dessa maneira sem examinar outros aspectos, que também contribuem a fim de definir o lugar histórico da plantagem escravista colonial. A plantagem escravista antecipou a agricultura capitalista moderna e o fez associando o cultivo em grande escala à enxada. Por sua estrutura e pelas leis do seu funcionamento, a plantagem escravista excluía ou emperrava os avanços da tecnificação, ao passso que a agricultura capitalista é obrigada incessantemente a desenvolvê-Ia em resposta à demanda do mercado, ao encarecimennto da terra, da mão-de-obra etc. Ainda assim, a plantagem escravista colonial teve na escala do cultivo, no emprego de equipes coletivas sob comando unificado e na divisão do trabalho as vantagens que lhe permitiram sobrepujar a agricultura familial. Esta acabou deslocada ou eliminada toda vez que enfrentou a plantagem, como se deu com os pequenos cultivadores de tabaco das Antilhas ou da Virgínia. Se a plantagem escravista trouxe consigo o uso destrutivo da terra, convém notar que havia enorme disponibilidade de terras no continente americano, apropriáveis gratuitamente ou compraadas a baixo preço, desembaraçadas do ônus da renda feudal. Em conseqüência, a terra constituía fator que se podia esbanjar durante muito tempo. Daí a característica itinerante da agricultura, pois ao plantado seria preferível desbravar terras virgens e férteis, valendo-se do processo brutal das queimadas, do que recuperar terras cansadas por meio de adubação intensiva. À exceção da lavoura fumageira, esta constituiu a norma quase absoluta no Brasil. Onde não havia grande disponibilidade de terras com

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a fertilidade do massapê nordestino, como sucedia nas pequenas ilhas do Caribe e na Lousiana, tiveram os plantadores de cana de recorrer ao uso alternante da área cultivável, com uma parte dela empregada em canaviais e á outra posta em alqueive por um ano ou dois66. Ao avaliar o nível das forças produtivas, quando temos em vista a agricultura e mais ainda a agricultura de séculos atrás, faz-se necessário levar em conta as condições naturais. A mesma quantidade de trabalho pode ser mais ou menos produtiva, conforme as condições naturais existentes. Com notável acuidade, percebeu-o o senhor de engenho, Gabriel Soares de Sousa, ao comparar os canaviais do Recôncavo Baiano com os das ilhas atlânticas portuguesas e das demais regiões concorrentes. Escreveu ele que, nas ilhas atlânticas, os canaviais exigiam irrigação e esterco, as canas eram muito curtas e se cortavam após dois anos, a soca em três anos, não dando a terra mais do que duas novidades (safras). Na Bahia, não se carecia de irrigação nem de esterco, o corte da cana recém-plantada se fazia com quinze meses, da soca com um ano, havendo terras que há trinta anos proporcionavam safras67. Regra geral, os canaviais baianos frutificavam satisfatoriamente quatro a sete anos, embora, ao tempo de Vilhena, alguns ainda durassem 15 ou 20 anos. Na província do Rio de Janeiro, segundo informação colhida por Saint-Hilaire, havia canaviais que duravam 12 anos68. As condições naturais favoráveis, se incrementam a produtividade, podem trazer consigo, simultaneamente, o desestímulo ao progresso das forças produtivas. A necessidade da irrigação onerava a agricultura do Egito e da Ásia tropical, mas a tornou excepcionalmente fértil nos tempos antigos. Nas Antilhas, a disponibilidade fundiária muito mais restrita e as condições climáticas fizeram os plantadores receptivos à adubação, ao afolhamento alternante e à irrigação. Com o rápido esgotamento da lenha fornecida pelas mantas, introduziram-se ali, muito antes que no Brasil, o uso do bagaço da própria cana em substituição à lenha e fornalhas aperfeiçoadas exigentes de menor gasto de combustível69. No Brasil, matas abundantíssimas forneceram lenha de baixo custo nos primeiros tempos, donde a devastação irreparável que retroagiu negativamente sobre os senhores de engenho. Citado por Manoel Ferreira da Câmara, o Regimento da Relação da cidade do Salvador, em data tão recuada como a de 1609, já ordenava ao governador do Estado do Brasil tomasse providências acerca do abastecimento de lenha, cuja falta poderia paralisar engenhos. Impedisse, portanto, a autoridade as queimadas para fazer roças e as

66. Cf. DEERR, Noel. Op. cit., v. I, p. 250; v. 2, p. 332 et pas.

67. Cf. SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. 4ª ed. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1971, pp. 165-166.

68. Cf. ANTONIL. Op. cit., pp. 176-179; VILHENA. Op. cit., v. 1, pp. 174 e 178-179; SAINT-HILAIRE. Op. cit., p. 250. 69. Cf. CANABRAVA, Alice Piffer. O Açúcar nas Antilhas (1697-1755). São Paulo, Instituto de Pesquisas Econômicas,

1981, pp. 80-85, 134-141.

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derrubadas dispensáveis70. O problema deve ter sido agravado, pois dele trataria especificamente o Regimento Real de 1677, dirigido a Roque da Costa Barreto, governador-geral do Brasil71. Uma provisão real de novembro de 1681 determinou que os engenhos se instalassem à distância de meia légua do outro, tendo em vista o abastecimento de lenha72. Tais medidas Iegislativas se demonstrariam inócuas para deter a devastação irresistível da fome natural de combustível. Nos fins do século 18, a maior parte dos engenhos já não dispunha de matas próximas e precisava pagar caro pela lenha trazida de longe, mas o bagaço, há longo tempo aproveitado nas Antilhas, continuava desperdiçado. No Rio de Janeiro, em 1801, a falta de lenha interrompeu o funcionamento de nove engenhos. Ainda na segunda década do século 19, Koster e Tollenare coincidiam na mesma observação, acerca da inutilização do bagaço da cana em Pernambuco. Por volta de 1820 é que Martius assinalaria o aproveitamento do bagaço na Bahia e Saint-Hilaire, em Campos dos Goitacases, ambos, contudo, apontando o consumo excessivo de combustível pelas fornalhas antiquadas. Outras informações sobre o tema podem ser encontradas na detalhada exposição de Wanderley Pinho73. O grau de compatibilidade da plantagem escravista com a adubação e outras práticas agrícolas será examinado adiante. Por enquanto, convém registrar que a lavoura fumageira foi a única, no escravismo brasileiro, a fazer emprego sistemático de adubos orgânicos. A respeito dela escreveu Silva Lisboa: “É esta a única cultura a que se aplicam estrume. O método é fazer currais portáteis e introduzir neles gado sucessivamente sobre todo o terreno, em que se pretende semear o tabaco, e isto por tanto tempo, quanto baste para se julgar suficientemente estruturadas as que eles chamam malhadas, isto é, as porções de terra em que se faz alojar o gado”74.

70. Cf. CÂMARA, Manoel Ferreira da. “Resposta.” ln BRITO, Rodrigues de. A Economia Brasileira no Alvorecer do Século XIX (Cartas-Econômico-Políticas sobre a Agricultura e Comércio da Bahia). Salvador, Liv. Progresso Ed., [s.d.], pp. 150-151.

71. Ver “Regimento de S. A. Real, que Trouxe Roque da Costa Barreto.” RIHGB, 3ª ed. 1895, t. v, § 27, pp. 323-324.

72. Cf. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. 3ª ed., Melhoramentos de São Paulo, [s.d.]. t. ID. p. 285. Em Cuba, ocorreu processo idêntico de destruição dos bosques pela voracidade predatória dos engenhos. Cf. FRAGINALS. El Ingenio. Op. cit., v. I. pp. 157-163.

73. Cf. VILHENA. Op. cit., v. I. pp. 180 e 193; KOSTER. Op. cit .•pp. 427, 432.e 439; TOLLENARE. Op. cit . p. 56; SAINT-HILAIRE. Op. cit., p. 400; Id. Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Op. cit . p. 26; SPIX e MARTIUS. Através da Bahia. 3ª ed. São Paulo, Cia. Ed. Nacional. 1938, nº 76, p. 158; PINHO. Wanderley. História de um Engenho do Recôncavo - 1552-1944, 2ª, ed. São Paulo, Cia. Ed. Nacional - lnstituro Nacional do Livro, 1982, pp. 217-252. Em ofício de 2H de março de 1798 dirigido a D. Rodrigo de Sousa Caminho e respondendo a uma innterpelação da Coroa, D. Fernando José de Portugal e Castro, governador da Bahia, informava sobre experiências feitas nos engenhos com o emprego do bagaço da cana. Dado o insucesso das experiências, que atribuiu à imperícia e à inadaptação das fornalhas, sugeriu o governador que se enviassem às Antilhas algumas “pessoas hábeis” a fim de observar in loco o processo de utilização do bagaço da cana como combustível e ensiná-lo detada ou o foi bem mais tarde. Ver ABN, 1916, v. 36, pp. 15-16.

74. LISBOA, José da Silva. “Carta muito interessante, para o Dr. Domingos Vandelli”, ABN, 1914, v. 32, p. 503. Os textosJ antigos serão reproduzidos com ortografia e pontuação atuais. Na medida do recomendável à clareza da leitura, também serão vertidos à linguagem moderna os arcaísmos da escritura, mas sempre com o cuidado do respeito à fidelidade do texto.

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Sendo o tabaco planta que depressa exaure o solo, tornava-se indispensável o adubo e, por causa dele, vinha a associação com a criação do gado bovino. Ademais, a lavoura fumageira se destacava pela necessidade dos cuidados do tipo jardinagem, aplicados a cada planta em separado, incluindo cobertura e regadio das mudas, transplante destas dos canteiros aos cercados ou currais previamente estrumados, capinas feitas com delicadeza, desolhaduras de oito em oito dias, combate, quase diário, à lagarta etc75. Por tudo isso, a lavoura do fumo dependia muito menos da qualidade da terra do que a da cana-de-açúcar, contentando-se, como escreveu o autor anônimo, “( ... ) com aquelas terras que sobejam e que não são próprias para a plantação do açúcar e de outros mais gêneros, ainda que poucos76”. Justamente porque dependia menos das condições naturais do que do esforço humano, a lavoura fumageira estimulou, no seu âmbito restrito, um aperfeiçoamennto das forças produtivas, superior ao dos demais cultivos plantacionistas. No que se refere especialmente ao beneficiamento da cana-de-açúcar, sua técnica de transformação da matéria-prima se situou no nível da técnica européia dos séculos 16 e 17. Exemplifica-o o emprego de uma força motriz que só a máquina a vapor veio substituir – a roda de água. Esta, entretanto, foi menos freqüente no Nordeste do Brasil, sendo característica dos engenhos maiores, chamados reais. Nisso, igualmente, influíram as condições naturais e não ou não somente a malfadada rotina portuguesa. Conquanto oferecesse rendimento superior por unidade de tempo, a roda de água podia ser afetada por bruscas irregularidades do regime fluvial, fator ao qual não estavam sujeitos os engenhos que utilizavam a força morriz de cavalos ou bois77. Tão relevante ainda é que as obras de construção da represa, indispensável à roda de água, requeriam gastos iniciais inacessíveis a muitos senhores de engenho78. Dada a enorme disponibilidade de pastagens, o que barateava a manutenção de bestas de tração, tornou-se economicamente viável e mais freqüente a moenda movida por animais. Nas Antilhas inglesas e francesas, como nos mostra Alice Canabrava, o emprego da roda de água se viu restringido pela

75. Ver ANTONIL. Op. cit. p. 238-240; CASTRO, Amorim. “Memória.” Op., cit. pp. 193-201; VILHENA. Op. cit., v. 1, pp. 197-199. Técnica semelhante à da Bahia, inclusive sob o aspecto do emprego do esterco, aplicava-se à cultura do fumo em Minas Gerais, a exemplo das zonas de Baependi e Pouso Alegre. Em Rio Vermelho, vizinho a Tejuco, usava-se o esterco de cavalo em vez de boi. Cf. SAINT-HILAIRE, Auguste de, Segunda Viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e São Paulo (1822), 2ª ed. São Paulo, Cia Ed. Nacional, 1938, p. 120-121; Idem, Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, Op. cit., p. 190.

76. Autor Anônimo, Op. cit., p. 95.77. O Padre Fernão Cardim notou que os engenhos-trapiche, tracionados a força animal, moíam menor quantidade de

cana, porém o faziam “o tempo todo do ano”, enquanto os engenhos de roda de água moíam menos tempo pois a água às vezes lhes faltava. Por ocasião da seca de 1583, os engenhos de roda de água de Pernambuco se viram gravemente afetados. Ver op. cit., p. 319 e 331. Já em São Paulo, onde o regime fluvial é muito mais regular do que no Nordeste, os plantadores davam preferência à roda de água. Mesmo em São Paulo, não obstante, ocorria esporadicamente o flagelo das secas. Em 1865, os descaroçadores de algodão movidos a roda de água ficaram imobilizados durante certo tempo em virtude de prolongada estiagem. Cf. CANABRAVA. Alice Piffer. O Algodão em São Paulo – 1861-1875. 2ª ed. São Paulo, T. A. Queiroz-Ed., 1984. pp. 192-197.

78. Cf. KOSTER. Op. cit., p. 431.

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exigüidade dos recursos fluviais. Generalizou-se o emprego de animais de tração, depois parcialmente substituídos pela força motriz do vento, o que não parece ter ocorrido no Brasil79. A moenda e demais dependências do engenho – com suas peças de madeira e engrenagens denteadas finamente trabalhadas, suas tachas e caldeiras de cobre, suas sucessivas operações de elaboração da matéria-prima – caracterizavam uma unidade fabril primitiva, porém de certa sofisticação, cujas invenções iniciais se deveram aos muçulmanos persas e árabes. Se o engenho ainda não possuía os dois elementos básicos da fábrica moderna – o trabalho assalariado e a mecanização –, antecipava já o arcabouço dela, na medida em que obedecia, embora em nível rudimentar, aos mesmos princípios organizacionais de transformação da matéria-prima em grande escala, divisão do trabalho setorial (não apenas por tarefas) e técnica não-artesanal. Na Europa do século 16, afora uns poucos ramos industriais, como a mineração e a fundição de metais, prevaleciam a oficina artesanal e a indústria a domicílio, inferiores à empresa de tipo fabril. No século 17, difundir-se-ia a manufatura, que desenvolveria enormemente a divisão interna do trabalho e prepararia o advento da fábrica, sem contudo ultrapassar as fronteiras da técnica artesanal. Há ainda a notar que o Brasil escravista produziu principalmente açúcar branco, já pronto para o consumo individual. Uma proporção menor era de açúcar mascavado, de cristalização inferior, porém não estritamente bruto. Como informa Noel Deerr, o açúcar mascavado bruto constituiu a quase totalidade da produção das Índias Ocidentais inglesas e cerca da metade da produção das Índias Ocidentais francesas80. O emprego generalizado da técnica da purga pelos engenhos brasileiros, dispensando ulterior refino, se deveu, está claro, à inexistência de refinarias em Portugal, ao contrário da Holanda, França e Inglaterra. No descaroçamento do algodão, o aparelho utilizado foi, desde o século 17 – como já noticiava Fernandes Brandão –, um antigo invento asiático, conhecido dos hindus e dos árabes, constituído de dois cilindros a manivela, que se moviam em sentido contrário e, com dois trabalhadores, produzia de oito a 15 libras-peso de algodão em pluma por dia. Adequado ao algodão arbóreo de fibra longa, tinha o inconveniente da baixa produtividade. Mas, adiantado o século 19, continuava de emprego comum, sendo vantajoso, dado seu caráter portátil, aos negociantes-maquinistas que compravam o algodão em caroço dos pequenos cultivadores. Os donos de plantagens, que realizavam o beneficiamento por conta própria, introduziram a inovação do acionamento simultâneo de vários aparelhos pela força hidráulica, com o que ganhavam tempo e realizavam considerável poupança de mão-de-obra. É de notar que no Maranhão, durante o século 18 e ainda nos começos do século 19, nem esse aparelho se empregava, efetuando-se o descaroçamento de

79. Cf. CANABRAVA. O Açúcar nas Antilhas. Op. cit., pp. 120-133. 80. Cf. DEERR, Noel. Op. cit., v. 1, p. 109; v. 2, cap. XXVIII.

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modo inteiramente manual, donde maior ocupação de mão-de-obra e prolongamento demasiado da operação. Mas uma estatística de 1820 registrou 521 máquinas para descaroçar algodão no interior do Maranhão, O que indica sua generalização dentro das plantagens. Na década dos anos 60 do século 19, a introdução do algodão herbáceo de fibra curta em São Paulo foi acompanhada de certa difusão do descaroçador de serra – oriundo da saw-gin inventada por Eli Whitney, setenta anos antes, cuja produtividade era muito superior à do descaroçador manual de cilindros. Quanto ao enfardamento do algodão em pluma, usou-se, até o século 19, o processo rudimentaríssimo de prensá-Io por meio do peso do corpo de um escravo, que o pisava dentro do saco. Tal processo – nocivo à saúde do escravo e extremamente moroso – foi substituído pela prensa de madeira constituída de uma barra vertical em rosca à qual se engatava uma prancha móvel compressora81.

4. Plantagem escravista e progresso técnico Se nos situarmos de um ponto de vista de conjunto e isento de anacronismo, devemos concluir que o escravismo colonial não partiu, na era moderna, de uma técnica retrógrada. Os aspectos negativos derivados do trabalho escravo foram compensados pelas vantagens organizativas da forma plantagem. Por sua vez, esta vingou porque se adequava ao trabalho escravo. Ademais, a plantagem absorveu inovações tecnológicas, o que afasta a idéia da incompatibilidade absoluta entre progresso técnico e trabalho escravo. Sucede, porém, que a corrente historiográfica estadunidense da New Economic History sustenta a concepção da mais lata compatibilidade entre o trabalho escravo e o progresso técnico, a ponto de eliminar distinções entre o escravo e o assalariado no regime capitalista. Daí a necessidade de exame sucinto da questão. Focalizarei, com este fim, o que pode ser considerado o caso mais expressivo, ou seja, o da produção açucareira.

Já no século 16, a técnica dos primeiros engenhos brasileiros, trazida das ilhas atlânticas portuguesas e adaptada a uma produção em muito pequena escala, foi aperfeiçoada com a introdução da moenda de dois cilindros de madeira horizontais. Ainda assim, a moagem da cana era insuficiente pelos dois cilindros e exigia prensagem suplementar por meio de “gangorras”. Demais desse processo lento, o equipamento era complicado e requeria pesado investimento. Diante da demanda crescente de açúcar no mercado europeu, configurava-se um gargalo tecnológico, rompido, afinal, por volta de 1610, pela introdução da moenda de três cilindros verticais de madeira com “entrosas”, isto é, dotado de encaixes denteados que os engatavam, de tal maneira que o movimento imprimido ao cilindro central movimentava os dois cilindros laterais. A moagem se tornou mais rápida e

81. FERNANDES BRANDÃO. Op cit., p. 127; GAMA, Ruy. Engenho e Tecnologia. São Paulo. Liv. Duas Cidades, 1983, pp. 123-125; CASTRO. Antônio Barros e. “Brasil. 1610: Mudança Técnica e Conflitos Sociais”. In Pesquisa e Planejamento Econômico. v. 10, nº 3, Rio de Janeiro, IPEA, 1980.

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se podia espremer a cana duas vezes, por ambos os lados, com pouco gasto de trabalho. Dispensou-se a prensagem pelas “gangorras” e simplificou-se a utilização de animais como força motriz. A nova moenda prevaleceu e difundiu-se por exigir menor investimento e ser mais produtiva82.

Ocorreu, portanto, autêntica “mutação tecnológica” compatível com o escravismo e que impulsionou sua expansão no Brasil. À semelhança do sucedido com a invenção da saw-gin por Ely Whirney, em 1793, que desfez o gargalo tecnológico para o descaroçamento do algodão herbáceo de fibra curta e permitiu ao escravismo do Sul dos Estados Unidos um crescimento inaudito. Mas, a partir da nova moenda de três cilindros verticais, dos começos do século 17 até começos do século 19, nenhuma inovação importante pode ser assinalada no beneficiamento da cana-de-açúcar. Basta comparar as descrições de Fernandes Brandão, Antonil e Vilhena, com intervalos seculares de um para outro.

Na primeira metade do século 19, dois fatores atuaram em sentido contrário a tão prolongada estagnação tecnológica: o forte salto na escala da demanda do mercado mundial e o surgimento da concorrência do açúcar de beterraba, produzido na Europa capitalista. O aumento da produtividade tornou-se questão vital imediata para a sobrevivência da plantagem escravista açucareira na América. O processo de inovação, que então se verifica, permite avaliar o grau em que o trabalho escravo constituiu uma barreira ao progresso técnico.

Observou Couty, nas fazendas brasileiras de café, o quanto o escravo brasileiro era recalcitrante e relaxado na aprendizagem de qualquer procedimento diferente do rotineiro, que desempenhava sem interesse. O julgamento de Couty pode ser suspeito de racissmo, o que não desqualifica seu autor como um dos críticos mais perspicazes da escravidão. Suas observações coincidem com a apreciação de Kenneth Stampp, sobre o qual seria injusta a mesma suspeita. O escravo típico do Sul dos Estados Unidos, na descrição de Stampp e também de Blassingame, era astucioso para se fingir de ignorante e doente, causador proposital ou por negligência de danos às ferramentas e animais, relaxado no trabalbo sempre que não estivesse sob vigilância imediata do capataz. Fraginals salientou a extrema rusticidade das ferramentas utilizadas pelos escravos cubanos, de peso e tamanho descomunais, resistentes mas pouco eficazes. Ferramentas para escravos, não para homens livres83. A medida do antagonismo entre o progresso técnico e o trabalho escravo pode ser ilustrada da melhor maneira pelo caso de Cuba, precisamente porque, por contar com terras fertilíssimas e vantajosa

82. Cf. BRANDÃO, Fernandes. Op. cit., pp. 143-144; SAINT-HILAIRE. Viagem pelas Províncias. Op. cit., pp. 172, 228 e 236; GAYOSO. Op. cit., pp.308 e 317-321; SPIX e MARTIUS. Viagem pelo Brasil. Op. cit., v. 2, pp. 282 e 314; “Do Algodão” In WERNWCK, E. P. Lacerda. Op. cit., pp. 195-196; CANABRAVO: O Algodão em São Paulo. Op. cit., pp. 190-192.

83. COUTY, Louis. Étude de Biologie Industrielle sur le Café. Rio de Janeiro. Imprimerie du “Messager du Brésil”, 1883, pp. 100-101; STAMPP. DF: cit., pp. 112-118; BLASSINGAME, John W. The Slave Communiry - Plantatíon Life in the Antebellum South, Nova York, Oxford University Press. 1972. pp. 208-211; FRAGINALS. Op. cit., v. 2. p. 30.

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localização geográfica, sua produção açucareira foi estimulada pela mais vigorosa solicitação do mercado dos Estados Unidos e da Europa. Conforme demonstra Fraginals, a única inovação introduzida no setor agrícola da plantagem escravista cubana, durante o século 19, foi o de uma variedade superior de cana chamada de Otahiti (no Brasil, conhecida por caiana). No demais, prosseguiram o culltivo de enxada e estaca, a ausência de adubação e o itinerantismo dos canaviais. Com o rendimento agrícola aumentado pela variedade Otahiti, o beneficiamento se tornou menos apto a processar a quantidade crescente de matéria-prima, devendo-se levar em conta que os engenhos cubanos tinham, com freqüência, de trezentos escravos para cima, alcançando alguns cerca de mil. Grossa e dura, a cana de Otahiti danificava as moendas de cilindros de madeira. Foi preciso passar aos cilindros verticais chapeados de ferro ou inteiramente de ferro. Por volta de 1820, uma parte dos engenhos substitui a moenda de três cilindros verticais por uma nova moenda de dois cilindros de ferro horizontais. Esta era mais eficiente no aproveitamento da velocidade imprimida pela máquina a vapor, que se difunde a partir de 1817. Cerca de 1840, acopla-se à moenda a esteira móvel para transporte da cana. Todo esse conjunto já semimecanizado permitiu considerável poupança de escravos e bois e incrementou o rendimento, porém não configurava uma revolução industrial. Justamente abordando a evolução tecnológica na produção açucareira, Fraginals e Ruy Gama, ambos apoiados em Marx, enfatizam que a máquina a vapor não fez a Revolução Industrial inglesa. Esta adveio da invenção da máquina-ferramenta, que substituiu a elaboração da matéria-prima por meio do trabalho manual artesanal, ainda característica da manufatura pré-fabril. Ora, foi no setor da elaboração da matéria-prima que o engenho escravista não conseguiu aplicar nenhuma mudança qualitativa. Apenas no processo de cozimento do caldo, introduziu-se “trem jamaiquino” (no Brasil, tamhém chamado “forno inglês”), que economizava combustível e se adaptava bem ao uso do bagaço de cana. No setor de purificação e cristalização, as formas de barro foram substituídas pelos de lata, de manejo mais fácil pelos escravos. Por causa da imperícia da mão-de-obra servil, foi impossível empregar um processo preciso de decantação. Já a máquina a vapor era entregue ao controle de assalariados. A modernização do transporte se iniciou em 1837, com a inauguração da primeira ferrovia (no Brasil, a primeira ferrovia é de 1854). Enquanto isso, a produção capitalista de açúcar de beterraba suscitou, na Europa, as invenções do cozimento ou concentração a vácuo e da centrifugadora. Estas invenções é que se tornaram o eixo da revolução industrial na produção açucareira. Na década dos anos 40 do século 19, elas chegam a Cuba e surgem usinas modernas inteiramente mecanizadas, em grande parte financiadas por capital estadunidense. Em 1860, tais usinas já forneciam 14% da produção cubana de açúcar. Além do rendimento quantitativo muito maior, o açúcar que produziam era totalmente branco e de qualiidade superior. Conquanto recebendo cana

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cultivada e colhida por escravos, acentua-se nessas usinas a exigência de trabalhadores livres. Assalariados são treinados para o manejo dos instrumentos de precisão e carentes de atenção e habilidade. Incapacitados para assimilar as inovações da concentração a vácuo e da centrifugadora, os engenhos escravistas se limitaram a suprimir o setor de purga. Com isso, conseguiam poupar 10% da mão-de-obra, mas sua produção passou a ser totalmente de açúcar mascavado bruto. O trabalho escravo não só já impedia o avanço, como, em face da concorrência, impunha o retrocesso técnico. O engenho escravista estava condenado a ceder o lugar às grandes usinas centrais baseadas no trabalho assalariado84. Processo semelhante de antagonismo entre trabalho escravo e progresso técnico reproduziu-se no Brasil. Mas a passo pachorrento, ao contrário do ritmo impetuoso que teve em Cuba. Vencido na concorrência, o açúcar escravista brasileiro caiu, no decorrer do século 19, para uma posição marginal no mercado mundial e assimilou lentamente algumas inovações técnicas forjadas pelo capitalismo europeu. Às usinas modernas surgem no final do século 19, já depois de abolida a escravidão85.

85. Cf. COSTA, Emília Viotti da. “O Escravo na Grande Lavoura”. In HGCB. t. II. v. 3. pp. 163-175: CANABRAVA, Alice PifTer. “A Grande Lavoura”. In HGCB. t. II, v. 4, pp. 102-110; EISENBERG. Op. cit., caps. 3-5.

84 .” Sobre a evolução econômica e tecnológica da produção açucareira cubana, na época do escravismo, ver o notável trabalho de FRAGINALS. Op. cit., v. 1. cap. V. Ver também LE RIYEREND, Julio. História Econômica de Cuba. Havana. Instituro Cubano del Libro, 1971, caps. XIX e XX. Uma historiografia da tecnologia dos engenhos encontra-se em GAMA, Ruy. Op. cit.

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3. a MentaliDaDe Dos FazenDeiros no Congresso agríCola De 1878

Peter L. Eisenberg86

Existem varias correntes de interpretação na historiografia brasileira, no sentido de avaliar a existência e a importância de diferenças de mentalidade entre os fazendeiros do Vale do Paraíba e os do Oeste Paulista na segunda metade do século XIX. O propósito deste artigo é, aproveitando uma revisão inicial dessa literatura por Jacob Gorender, primeiro analisaras interpretações disponíveis e, segundo, verificar através de uma análise dos depoimentos de fazendeiros no Congresso Agrícola do Rio de Janeiro em 1878, se alguma interpretação pode ser melhor confirmada87.

Antes de abordar a historiografia da questão, é preciso sugerir melhor o que se entende por «mentalidade». A definição do dicionário de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira merece menção, pelo menos pela sua simplicidade: «o conjunto dos hábitos intelectuais e psíquicos de um indivíduo, ou de um grupo88». Evidentemente, Karl Marx deu muito mais ênfase às origens e papeis políticos de idéias, quando introduziu o conceito mais dinâmico de «ideologia», ou seja, a «emanação direta do comportamento material dos homens», especificamente os homens da classe social dominante89. Mas este estudo das idéias dos fazendeiros pretende avaliar não tanto as raízes ou as conseqüências delas, senão o que elas sugerem ter sido a forma de pensamento ou a atitude mental do grupo que as manifestou. Assim, o ponto de coincidência com Marx seria a sua afirmação de que «a mesma base econômica – a mesma no tocante a suas condições fundamentais – (pode) mostrar em seu modo de manifestar-se infinitas variações e gradações, devidas a distintas e inumeráveis circunstâncias empíricas, condições naturais, fatores étnicos, influências históricas que atuam do exterior etc90.” O que se pretende, usando esta terminologia marxista, é descobrir se tal base econômica, ou seja, as relações entre os fazendeiros e os produtores diretos do café, produziu manifestações regionais diferentes.

Max Weber também usou conceitos que significam coisa semelhante àquilo que entendo por mentalidade. Num ensaio famoso, Weber

86. O autor agradece o apoio da Fundação Ford e da Social Science Research Council, que em grande parte possibilitou esta pesquisa, os comentários do Grupo de Estudos Agrários, cujo seminário na UNICAMP ajudou-o a esclarecer certos pontos deste trabalho, e a revisão da gramática e ortografia por Eni Orlandi.

87. Jacob Gorender, O Escravismo Colonial, São Paulo, Ática, 1978, p. 555-558.

88. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, s/d, p. 918.

89. Karl Marx, e Frederick Engels, TheGermamldeology, Edited by C. J. Arthur, Nova Iorque, International Publlshers, 1970, p. 47, 64-68.

90. Karl Marx, Capital, 3 volumes, Edited by Frederick Engels, Nova Iorque, InternationalPublishers, s/d, v. 3, p. 791-792.

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descreveu o «espírito» do capitalismo, que ele também caracterizou como o «gênio social da cultura capitalista», e que era «aquela atitude que procura lucro racional e sistematicamente, na maneira exemplificada por Benjamin Franklin». Weber especificou que a racionalidade desta atitude dependia, entre outras coisas, do desenvolvimento da contabilidade, que. permite cálculos dos fatores técnicos da produção, e possibilita que a ação de aquisição seja «ajustada com cálculos em termos de capital91». Estas idéias weberianas, como logo se verá, influíram fortemente em alguns escritores brasileiros. Aqui cabe destacar que o objeto deste estudo está próximo daquilo que Weber denominou genericamente como espírito ou gênio social, a atitude mental com a qual os fazendeiros desempenharam a sua atividade econômica, com a ressalva de que não se trata de descobrir o grau de desenvolvimento do capitalismo no Brasil do século XIX, mas simplesmente procurar diferenças regionais.

Dada a importância da escola francesa de historiadores que estudam «l'histoire des mentalités», torna-se necessário considerar mais uma definição possível de mentalidade. Esta escola não faz a história das idéias, mas a história do «sucedâneo popular da Weltanschauung alemã, a visão do mundo...um universo mental ao mesmo tempo estereotipado e caótico». Assim, a pesquisa da escola francesa assemelha-se muito à da psicologia social, sendo que os historiadores trabalham com populações de épocas do passado. O meu interesse não abrange um objeto tão vasto e variado como o universo mental dos fazendeiros, que inclui atitudes para com muitas outras esferas da vida além da econômica, e exigiria um levantamento muito mais amplo de fontes literárias, artísticas, etc92.

I. As Interpretações A interpretação que afirma, e dá grande ênfase à diferença regional

entre mentalidades, provavelmente começou com Sérgio Buarque de Holanda, no seu livro Raízes do Brasil, originalmente publicado em 1936. Este autor observou que, a partir dos meados do século passado, no Oeste Paulista «o domínio agrário deixa, aos poucos, de ser uma baronia, para se aproximar, em muitos dos seus aspectos, de um centro de exploração industrial93». Em outro ensaio posterior, Sérgio Buarque repetiu as suas próprias palavras, elaborando-as: «a fazenda de café fluminense contentara-se em copiar, nos tempos áureos, o tipo tradicional dos engenhos de cana...formava uma unidade fechada, suficiente, quase

91. Max Weber, TheProtestant Ethic and the Spirit of Capitalism, Nova Iorque.Charles Scribner's Sons, 1958, p. 54, 64, 18.

92. Jacques Le Goff, “As Mentalidades. Uma História Ambígua”, em idem, e Pierre Nora, História: Novos Objetos, tradução de Terezinha Marinha, Rio de Janeiro. Livraria Francisco Alves Editora, 1976, p. 73. . A bibliografia deste artigo interessante cita as obras mais representativas de “l'histoire des mentalités”, p. 81-83. Veja também a descrição em Ciro Flamarion Cardoso e Hector Pérez Brignoli, Os Métodos da História, tradução de João Maia, Rio de Janeiro, Graal, 1979, p. 394-406.

93. Sérgio Buarque de Holanda, “Prefácio do Tradutor”, in Thomas Davatz, Memórias de um Colono no Brasil (1850), São Paulo, Martins/USP, 1972 - 10 edição em português em 1941, p. XXIII-XXIV.

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autárquica», que tornava desnecessário um desenvolvimento maior de laços comerciais com o mercado interno. Mas no Oeste Paulista apareceu «uma nova raça de senhores rurais», gerada «em primeiro lugar pela carência nessa província de uma tradição agrícola realmente grande e próspera...também pelo aparecimento providencial de alguns homens de iniciativa e espírito prático... enfim pela própria natureza absorvente e exclusiva da cultura do café» que impediu que terras fossem dedicadas a lavouras de gêneros de primeira necessidade94.

Maria Isaura Pereira de Queiroz em 1950 aplicou algumas categorias sugeridas por Djacir Menezes, e alegou que os fazendeiros do Vale, «titulares do Império, representavam a burguesia latifundiária com fumos de nobreza... seriam os fazendeiros unicamente fazendeiros: o que não era de admirar, pois, quando do esplendor do café, seu lucro se espraiava em luxos e superfluidades». Os do Oeste Paulista «formavam uma burguesia comercial... mais frugais e modestos, cultivando terras frescas, puderam desviar capitais para sociedades anônimas e bancos, criaram novos interesses que impeliam a pugnar pela abolição... que lhes obstruía os passos para o alargamento do mercado interno». Maria Isaura rejeitou a sugestão de que os fazendeiros paulistas representavam «um prolongamento, no tempo, do bandeirante... enquanto os do Vale, seguindo na esteira dos primeiros portugueses... queriam era o lucro fácil e sem riscos95».

Embora usando uma linguagem um pouco diversa, alguns outros autores parecem pertencer a essa mesma corrente interpretativa. Emília Viotti da Costa concluiu um livro de longa pesquisa com a afirmação de que «os fazendeiros do Oeste Paulista tinham idéias mais avançadas do que os do Vale do Paraíba, Representaram duas fases da economia brasileira, dois estilos de vida, duas mentalidades»96. EugeneD. Genovese assumiu este ponto de vista, e declarou que, depois de 1850, «o Vale permaneceu o baluarte dos obstinados... São Paulo surgiu na base de homens novos97». Boris Fausto pressupôs a diferença de mentalidades, quando se dirigiu às causas: o Oeste Paulista para ele «nasceu em uma época em que as possibilidades de manutenção de sistema escravista

94. Sérgio Buarque de Holanda, “Prefácio do Tradutor”, in Thomas Davatz, Memórias de um Colono no Brasil (1850), São Paulo, Martins/USP, 1972 - 10 edição em português em 1941, p. XXIII-XXIV.

95. Maria Isaura Pereira de Queiroz, A estratificação e a mobilidade social nas comunidades agrárias do Vale do Paraíba entre 1850 e 1888”, in Revista d. História, 1:2, abril-junho, 1950, p. 217-218. A autora cita Djacir Menezes, O Outro Nordeste. Formação Social do Nordeste, Rio de Janeiro, José Olympio, 1937, p. 153, onde se encontram as idéias de “burguesia latifundiária” e burguesia comercial”.

96. Emilia Viotti da Costa, Da Senaala à Colônia, São Paulo, Difel, 1966, p. 465. Veja também um artigo mais recente onde a mesma autora reafirmou a hipótese: na segunda metade do século XIX, “os fazendeiros das regiões decadentes assumiram freqüentemente atitudes mais conservadoras. apegando-se aos antigos sistemas de produção e formas de valores da sociedade tradicional... o principal conflito é o que ocorre entre os representantes dos setores agrários retrógrados, apegados às formas tradicionais de produção; ao trabalho escravo, e aos valores da sociedade tradicional. E os novos grupos mais progressistas, ligados à agricultura e às novas empresas”. Da Monarquia à República: Momentos Decisivos. São Paulo, Grijalbo, 1977, P. 201.

97. Eugene D. Genovese, The World the Slooeholders Made: Two Essays in Lnterpretation, Nova Iorque, Random House, 1969, p. 84-85.

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se esgotavam. Esta antevisão dos novos tempos deu aos empresários da região uma enorme vantagem sobre os seus colegas do Vale98».

Certos sociólogos não somente constataram a alegada diferença entre mentalidades, mas também a associaram com um grau maior de «racionalização» que penetrava mais na fazenda do Oeste Paulista. Assim;.Fernando Henrique Cardoso publicou um artigo em 1960, no qual ele expôs a hipótese de que, nas duas décadas antes da abolição, «na fazenda de café do Oeste Paulista...intensificou-se o processo de racionalização da empresa econômica, porque era montada com mão-de-obra assalariada que permitia, «pura e simplesmente, sua dispensa nos momentos de retração do mercado internacional99. Como resultado, embora “tanto o café do Vale do Paraíba, como o açúcar do Nordeste, fossem explorados nos moldes dos latifúndios escravocratas típicos do Brasil”, no Oeste Paulista, o fazendeiro era “empreendedor capitalista... Absenteísta... habitante da cidade, possuía a mente mais aberta às inovações tecnológicas e ao espírito de racionalização da empresa do que seus antecessores e muitas vezes, antepassados, do período cafeeiro do Vale do Paraíba100.

Logo após Fernando Henrique, Octavio Ianni também afirmou que na segunda metade do século XIX «na cafeicultura, em especial o Oeste Paulista, a fazenda se transforma numa empresa. A racionalidade inerente à economia mercantil penetra progressivamente a unidade produtora». Sem caracterizar especificamente o cafeicultor no Vale do Paraíba, Ianni insistiu na «organização racional dos negócios relacionados à cafeicultura... na racionalidade inerente ao modo capitalista de organização da produção... na auto-racionalização do comportamento do empresário», idéia pela qual ele parece entender «a organização eficaz dos elementos da produção, tais como a terra, o capital, a técnica, a mão-de-obra, além do financiamento, do transporte, do crédito, etc.», como se antes, possivelmente no Vale do Paraíba, essa organização fosse menos «eficaz101».

Raimundo Faoro, revisando significativamente um trabalho originalmente publicado em 1958, juntou a terminologia de Sérgio Buarque à categoria de racionalidade, quando analisou «a mudança da estrutura interna da fazenda, mais empresa do que baronia, com a necessidade de ordenar racionalmente os cálculos econômicos». Entretanto, Faoro deixou

98. Boris Fausto, “Expansão do Café e Política Cafeeira”, em idem (org.), História Geral da Civilização Brasileira, 9 volumes, São Paulo, Difel, 1963-1977, tomo lII, vol, 1, P. 198.

99. Fernando Henrique Cardoso. “Condições Sociais da Industrialização: o Caso de São Paulo”. in Revista Brasiliense, n. 28, março-abril. 1960, republicado em Mudanças Sociais na América Latina, São Paulo, Difel, 1969. p.190. Esta hipótese de o caráter do modo de produção capitalista estar ligado à capacidade de variar o uso dos fatores de produção, conforme as necessidades do mercado, reaparece mais desenvolvida na tese de doutoramento de Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. O Negro na Sociedade Escravocrata no Rio Grande do Sul, São Paulo, Difel. 1962, especialmente p. 196-205.

100. Cardoso, “Condições Sociais da Industrialização”, p. 189, 191. 101. Octavio lanni, Raças e Classes Sociais no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 966, p. 79-80. Ênfase

no original.

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uma certa ambigüidade, pois do fato de que as fazendas mais novas após 1870 não podiam mais depender exclusivamente da mão-de-obra escrava, ele concluiu que «o Oeste Paulista será uma réplica ao Vale do Paraíba, réplica em novos moldes, sem a adoção servil do clichê do engenho de açúcar... A fazenda paulista, desta sorte, embora escravista, não se tornou essencialmente ou necessariamente escravista102”.

Florestan Fernandes, num livro lançado em 1974, desenvolveu também essa interpretação, mas sem aceitar plenamente a marcha da racionalização. Fernandes caracterizou os fazendeiros de café no Vale do Paraíba no segundo quartel do século XIX como obcecados pela defesa do status senhorial, um status que tinha as suas raízes na época colonial, e na dominação patrimonialista do estamento dos senhores de engenho. Este status significava, entre outras coisas, a perseguição não de lucros, mas do «equivalente econômico... de grandeza da aventura e da audácia», e a condenação dos modelos capitalistas de ação «em nome de um código de honra que degradava as demais atividades econômicas e que excluía para si próprio inovações audaciosas nessa esfera103”. “Ao que parece, a influência dos padrões coloniais, herdados dos portugueses, e o afã de nobilitação induziam os fazendeiros de café a adotarem adaptações econômicas selecionadas previamente pela aristocracia agrária104”.

No último quartel do século XIX, entretanto, «as pressões do mercado mundial sobre os custos sociais da produção agrária» fizeram com que «alguns fazendeiros do Oeste Paulista, mais envolvidos nas atividades e funções do capital comercial e financeiro, procurassem intensificar o trabalho escravo ou combiná-Io ao trabalho livre, tentando promover a substituição paulatina daquele; concomitantemente, eliminaram todos os custos diretos ou indiretos, visíveis ou invisíveis com que a ordem senhorial onerava a produção agrícola; substituíram ou aperfeiçoaram as técnicas agrícolas... modernizaram os transportes. ..separaram o lar senhorial da unidade de produção, removendo os fatores de redução da produtividade que provinham das técnicas de organização e dominação patrimonialista da produção105”.

Para Fernandes, os paulistas do Oeste eram diferentes porque as suas origens sociais eram mais diversas: vieram da «modesta lavoura de subsistência», ou eram «antigos tropeiros e negociantes de gêneros nas minas; alguns ex-mineradores». Por isso, na prática «concediam-se extrema liberdade para agir independentemente do código ético senhorial...eram duros aventureiros». Numa frase, o novo fazendeiro do café não era mais um senhor rural, senão “um homo economicus tosco”,

102. Raimundo Faoro, Os Donos do Poder. Formação do Patronato Político Brasileiro, 2 volumes, Porto Alegre/São Paulo: Globo/USP, 1975, vol. 2, P. 455-456.

103. Florestan Fernandes, A Revolução Burguesa no Brasil. Ensaio de Interpretação Sociológica, Rio de Janeiro, Zahar, 1974, p. 24-26.

104. Ibid., p. 106. 105. Ibid., p. 109-110.

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um “coronel” apegado ao poder político para defender a sua posição social, ou um “homem de negócios” procurando aplicar os excedentes de sua renda “na lavoura ou fora dela106”.

Vale a pena lembrar que Fernandes discordou de Fernando Henrique e de Octavio Ianni. Em vez de uma marcha e penetração da racionalidade capitalista, Fernandes viu uma mudança de valores, de um privilegiamento do status senhorial para um privilegiamento de riqueza, e, mesmo assim, apenas alguns fazendeiros incorporaram esta nova mentalidade capitalista, e com bastante demora e vacilações107.

A interpretação mais nova na historiografia minimiza a importância das diferenças entre as mentalidades dos fazendeiros das duas regiões, e até nega a existência destas diferenças. Paula Belguelman já em 1968 criticou a explicação que se serve de recurso de interpretar as transformações ocorridas no Oeste Paulista, em contraposição ao Vale do Paraíba, como conseqüência de uma “mentalidade específica dos empreendedores daquela área”, e advertiu que, “com tal esquema, não se faz mais que repetir... a ideologia do Oeste Paulista, que atribuía aos fazendeiros o epíteto de ‘emperrados'”. Para Belguelman, deve-se perceber a «‘mentalidade' peculiar... como resultante e não mais, de forma simplista, como causa108”.

Imediatamente após Belguelman, Dean Warren criticou a insistência de Maria Isaura Pereira de Queiroz em dois tipos de burguês; ele caracterizou os contrastes entre mentalidades como “muito exagerado”, e negou que o paulista era “nem mais racional nem mais humano» na sua atitude para com a mão-de-obra. Dean demonstrou que em São Paulo havia fazendeiros que não conseguiam manter as suas fortunas, e no Vale do Paraíba havia fazendeiros que eram empresários bem sucedidos, e que ambas as regiões tinham os seus barões e condes109.

Jacob Gorender, no livro O Escravismo Colonial que de certa maneira inspirou esta antologia, também se colocou ao lado dos céticos a respeito da importância da diferença entre as mentalidades. Após resumir alguns dos trabalhos que contribuíram para o debate, Gorender afirmou que, no que diz respeito à escravidão, não houve diferença: “Não se formava uma nova classe de senhores rurais, supostamente dotados de racionalidade capitalista, mas se repetia o velho fenômeno das migrações de plantadores escravistas em busca de terras virgens. Tampouco se modificava, no Oeste Novo, a orientação escravista dos fazendeiros migrantes, sob a influência de fatores situacionais. Ao contrário, os fatores situacionais reforçavam

106. Ibid., p. 113-115, 121-122..

107. Ibid., p. 120, 154, 173, 180.

108. Paula Belguelman, A Formação do Povo no Complexo Cafeeiro: Aspectos Políticos, São Paulo, Pioneira, 1968, p. 72. Ênfase no original.

109. Warren, Dean, A Industrialização de São Paulo (1880-1945), tradução de Octávio Mendes Cajado, São Paulo, Difel, 1971, p. 48-49.

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a precedente orientação escravista... Assim, não era o escravismo que diferenciava os fazendeiros das diversas zonas do café. Tampouco os diferenciava a propensão à modernização dos meios de produção, embora os fazendeiros do Oeste Paulista tivessem melhores condições para isso do que os do Vale do Paraíba. A chamada ‘racionalidade empresarial' se manifestou nuns e noutros, sempre aplicada à exploração do trabalho escravo110».

A mais recente contribuição ao debate é a de José de Souza Martins, que publicou um estudo em 1979 onde acompanhou Dean ao afirmar que as duas mentalidades apontadas eram encontráveis em cada região, nas décadas de 1870 e 1880. «Não só no oeste, mas também no Vale era possível encontrar capitalistas ativos, cuja orientação de modo algum se baseava numa vinculação emocional à terra. Por outro lado, tanto no oeste quanto no Vale era possível encontrar na mesma época escravistas empedernidos». Entretanto, Souza Martins afirmou uma diferença entre a mentalidade escravista e a que veio depois, uma diferença que tornou a transição para o trabalho livre «relativamente complicada e tensa» porque «a mentalidade do fazendeiro tinha, pois, raízes sociais definidas e expressava a forma de capital que estava na base do seu empreendimento». Ele concluiu que «mudanças objetivas nas condições de produção do café... deram um significativo suporte à transformação da mentalidade do fazendeiro, de modo a liberá-Ia da peia representada pelo escravo111».

Como se vê, existem pelo menos duas maneiras de compreender as diferenças entre as mentalidades dos fazendeiros de café: uma que vê um contraste marcado entre as mentalidades nas duas regiões, e outra que não o vê. O exame dos depoimentos dos fazendeiros no Congresso Agrícola no Rio de Janeiro em 1878, ano em que, conforme todos os autores, já estavam se diferenciando as duas regiões, deve permitir uma visão rica da variedade das idéias dos fazendeiros, e uma impressão quanto às mentalidades de pessoas de regiões diversas. Limitar-me-ei aos depoimentos sobre a questão de mão-de-obra por dois motivos: primeiro, para não me estender demais e, segundo, para salientar uma questão que todos os autores reconhecem como significativa. O meu pressuposto básico é o que, para comprovar a existência de uma mentalidade antiquada, atrasada, ou menos racional no Vale do Paraíba, será preciso constatar, naquela região, uma relutância em abandonar a mão-de-obra escrava, ou uma preferência para a sujeição de trabalhadores livres a regimes: menos livres do que o de simples assalariado, enquanto entre os fazendeiros do Oeste Paulista prevalecia outra mentalidade menos interessada em manter a escravidão e mais aberta para o trabalho livre sem grandes restrições.

110. Gorender, O Escravismo Colonial, p, 562-563.

111. José de Souza Martins, O Cativeiro da Terra, São Paulo, Ciências Humanas, 1979, P. 30, 61, 34.

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II. O Congresso Agrícola do Rio de Janeiro A questão de mão-de-obra foi uma das questões mais discutidas nas

últimas décadas do Império. No âmbito do governo imperial, de todos os seus decretos, leis e decisões durante o século XIX com referência à escravidão, 81% foram promulgados entre 1850 e 1888. O movimento abolicionista, a partir da década de 1870, levou à criação de um grande número de jornais e livros que insistentemente colocavam em pauta a questão da mão-de-obra escrava, e a natureza de transição para a mão-de-obra livre112.

Em 1878 esta questão voltou a ser discutida com uma certa insistência em dois congressos agrícolas realizados no Rio de Janeiro e em Recife. A escolha da data para estes congressos pode ser explicada por vários motivos. Em primeiro lugar, era evidente nesta altura do século que as conseqüências do fechamento do tráfego internacional em 1850, e a limitação exercida pela Lei do Ventre Livre de 1871 sobre o crescimento natural da população escrava, condenavam fatalmente a escravidão. Por outro lado, os preços nominais de escravos atingiram o seu auge nos fins da década de 1870, tanto no Vale do Paraíba como no Oeste Paulista113. Para dificultar a vida dos escravocratas ainda mais, a década de 1870 foi especialmente desfavorável para as atividades da grande lavoura. O preço da saca de café estava caindo de uma alta de 39$716 em 1873-74 para 28$740 em 1877-78; e o preço de cem libras de açúcar continuava o seu declínio secular, caindo de 25/6 xelins em 1871 para 20/0 em 1878114. Por último, embora não tenha figurado tanto nas considerações no Rio como em Recife, o ano de 1878 marcou o segundo ano da pior seca do século XIX, uma catástrofe que abalou a agricultura das regiões nordestinas atingidas, e estimulou migrações internas de dezenas de milhares de nordestinos flagelados.115

Assim foi que, no meio desta conjuntura desfavorável para a grande lavoura, em junho de 1878, o Governo Imperial, através do então Ministro de Negócios de Agricultura, Comércio e Obras Públicas João Vieira Lins Cansansão de Sinimbu, convocou os agricultores das províncias do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo, para discutirem sete questões:

112. Déa Ribeiro Fenelon arrolou 689 itens na legislação imperial entre 1813 e 1888 que diziam respeito à escravidão. Deste número. 558 itens tinham datas entre 1850 e 1888. “Levantamento e sistematização da legislação relativa aos escravos no Brasil”, Anais do VI Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História. Trabalho Livre e Trabalho Escravo, 3 volumes, São Paulo, Revista de História, 1973, vol. lI, p, 199-307. Veja as publicações Iistadas por Robert Conrad, Brazilian Slauery: An Annotated Research. Bibliography, Boston, G. K. Hall e Co., 1977.

113. Stanley J. Stein, Grandeza e Decadência do Café no Vale do Paraíba, tradução de Edgar Magalhães, São Paulo, Brasiliense, 1961, n. 274. Robert Slenes, The Demography and Economias of Brazilian Slaoeru, 1850-1880, tese de doutoramento, Stanford University, 1976. p.183.

114. Affonso de Taunay, Pequena História do Café no Brasil (171l7-1937), Rio de Janeiro, Departamento Nacional do Café, 1945, n, 548. Noel Deerr, The History of Sugar, 2 volumes, Londres, Chapman and Hall, Ld., 1949-1950, v. 2, p. 531.

115. Roger L. Cunniff, The Great: Drouçht: Northeast Brazil, 1877-1888, tese de doutoramento. University of ‘Texas, Austín, 1970.

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1. Quais as necessidades mais urgentes e imediatas da grande lavoura?

2. É muito sensível a falta de braços para manter, ou melhorar ou desenvolver os atuais estabelecimentos da grande lavoura?

3. Qual o modo mais eficaz e conveniente de suprir essa falta?

4. Poder-se-á esperar que os ingênuos, filhos de escravas, constituam um elemento de trabalho livre e permanente na grande propriedade? No caso contrário, quais os meios para reorganizar o trabalho agrícola?

5. A grande lavoura sente carência de capitais? No caso afirmativo, é devido este fato à falta absoluta deles no país, ou à depressão do crédito agrícola?

6. Qual o meio de levantar o crédito agrícola? Convém criar estabelecimentos especiais? Como fundá-los ?

7. Na lavoura têm-se introduzido melhoramentos? Quais? Há urgência de outros? Como realizá-los?116

Nas semanas anteriores ao Congresso, pelo menos 87 pessoas foram escolhidas como representantes de seus municípios Por reuniões de agricultores. Quando o Congresso abriu em julho, 279 pessoas assinaram o livro de presença. Deste total 145, ou 52%, vieram da província do Rio de Janeiro, e 71' ou 25%, vieram da província de São Paulo, incluindo 17 do Vale do Paraíba Paulista, e 48 do Oeste Paulista. De Minas Gerais vieram 53 pessoas, e umas poucas pessoas compareceram do Município Neutro (Corte), Espírito Santo e Rio Grande do Sul. A preponderância de participantes do Rio de Janeiro explica facilmente por que, entre as 82 comunicações no Congresso, eram os fluminenses que mais se manifestavam117.

Entretanto, mesmo dando mais peso para os contingentes menores que vieram de outras províncias, para compensar a preponderância do Rio de Janeiro, é preciso lembrar que muitas vezes os interesses econômicos

116. Congresso Agrícola, Colleção de Documentos, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1878, p. 2. As atas do congresso em Recife, que serão analisadas em outra oportunidade, encontram-se em Sociedade Auxiliadora da Agricultura de Pernambuco, Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife em outubro de 1878, Recife, TYP. De Manoel Figueiroa de Faria &Filhos, 1879. Neste artigo, a ortografia original nas citações foi atualizada.

117. As atas das reuniões eleitorais foram publicadas na Colleção, p. 17-30. Entre as 121 pessoas que se inscreveram masque não assinaram o livro de presença, as proporções por província eram quase as mesmas, ou seja, 48% do Rio de Janeiro. 29% de São Paulo e 16% de Minas Gerais. Das 56 pessoas que motivaram o seu não-comparecimento. 39% era do Rio de Janeiro, 20% de São Paulo, 14% do Espírito Santo e 11% de Minas Gerais. lbid., p. 3-16. A definição das regiões obedece aos seguintes critérios: “Rio de Janeiro” refere-se a todos os municípios daquela província fora o Município Neutro. “Vale do Paraíba paulista” refere-se a todos os municípios ao norte e leste da capital São Paulo. “Oeste Paulista” refere-se a todos os municípios ao oeste da capital. É bem possível que as 13 pessoas do Município Neutro, que de alguma maneira participaram no congresso, tivessem propriedades na província do Rio de Janeiro, é mais difícil saber onde as sete pessoas da capital de São Paulo tiveram propriedades. Sobre as dificuldades de definir as regiões paulistas, veja Thomas Holloway, Migration and Mobility: Immigrants as Laborers and Landoweners in the Coifee Zone of São Paulo, Brazii, 1886-1984, tese de doutoramento. Unlversity of Wisconsin, Madison, 1974, p. 442-453.

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e sociais da grande lavoura não se homogeneizaram necessariamente dentro das fronteiras políticas de cada província, mas antes obedeciam determinantes como tipos de lavoura, mercados, solos, topografias, distâncias, etc. Assim, não se pode ignorar uma forte identidade de interesses entre os lavradores do Sudeste de Minas Gerais, de onde desceram 43 dos 52 mineiros que assinaram o livro de presença, com os do Norte do Rio de Janeiro e o baixo Vale do Paraíba. Essa identidade era tanta que o mineiro Cristiano Benedito Ottoni se dizia representante das duas áreas, e três documentos foram encaminhados para o Congresso por comissões mistas formadas por lavradores destas duas áreas118.

A primeira pergunta colocada pelo Ministro da Agricultura indagava sobre as necessidades mais urgentes e imediatas da lavoura. A grande maioria das pessoas, que responderam a pergunta, apontou para a falta de braços: onze do Rio de Janeiro e do Vale do Paraíba paulista, três do Oeste Paulista e cinco de Minas Gerais119. Entretanto, houve quatro fluminenses e dois mineiros que negaram a falta de braços: três fluminenses acharam suficiente a oferta de braços livres, três incluía os «200 mil retirantes» do Nordeste; o Barão do Rio Bonito de Valença opinou que «ainda pode encontrar porção de escravos à venda no mercado da Corte». Da mesma forma, um mineiro de Leopoldina julgou que faltava apenas «dinheiro a juro barato... porque braços se adquirem com capitais», e apontou para os «escravos supridos pela lavoura onerada» do Norte do País. Um outro mineiro de Mar de Espanha parcialmente confirmou: «ainda há muitos escravos para comprar, muitos trabalhadores livres, e muitos caboclos, que vagam aí pelas matas e podem ser aproveitados120». Somente um paulista de Taubaté no Vale do Paraíba negou a falta de braços121.

A maioria dos congressistas foi tão convencida de que o alívio da falta de braços era uma das primeiras necessidades da grande lavoura, que não comentou em extenso a segunda pergunta do Ministro da Agricultura. Essa pergunta pressupunha a existência da falta de braços, e indagava se era muito sensível. Aqueles que responderam se limitaram a um simples sim ou não, com apenas um fluminense de Barra Mansa, no Vale do Paraíba, comprovando esta falta sensível com uma referência aos «preços elevadíssimos (dos) escravos importados do norte122».

118. Só de Mar de Espanha, Juiz de Fora e Leopoldina vieram 38 mineiros. Uma comissão da Companhia União de Lavradores reunia cinco pessoas do Município Neutro e Juiz de Fora; outra juntou uns lavradores de Juiz de Fora com outros de Paraíba do Sul e Rio de Janeiro; e uma terceira apresentou uma proposta assinada por lavradores fluminenses de Valença, Cantagalo, ltaguaí e da Corte, e dois lavradores de Mar de Espanha e Leopoldina. Colleção, p. 69, 72, 78.

119. Ibid., P. 43, 46, 51, 62, 64, 141, 194, 206, 209, 252, do Rio de Janeiro; p. 31, 37, 73, do Vale do Paraíba paulista; p. 45, 57, 67, 78, 155, 230, 240, do Oeste Paulista. Houve um número quase igual de discursos nos quais se apontava também a falta de capitais como uma necessidade urgente e imediata. Alguns oradores, principalmente de Minas Gerais, citaram a instrução e vias de comunicação como prioritárias. Ibid., p. 45. 54, 67, 78. 240. Apenas umas poucas lei de terras, ou liberdade de exportação. Ibid., p. 42, 43, 34.

120. Ibid., p. 40, 137, 155, 163-164, 82, 237.

121. Ibid., p. 187. 122. Ibid., p. 52.

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Assim, ficou claro que fazendeiros do Vale do Paraíba e Minas, como do Oeste Paulista, reclamavam a falta de braços. Se fosse possível constatar que muitos fluminenses e mineiros pensavam somente na oferta da mão-de-obra escrava, enquanto que, principalmente o pessoal do Oeste Paulista, reclamava a falta de braços livres, podia-se acreditar mais que existia uma verdadeira diferença de mentalidades, conforme as regiões. Mas dos fluminenses que não reclamavam a falta de braços, vários já contavam com o trabalho livre. Apenas um fluminense, e mais dois mineiros, responderam essas perguntas com referências exclusivamente à mão-de-obra escrava. Desta análise das respostas às primeiras duas perguntas, portanto, começa-se a duvidar que os congressistas manifestaram mentalidades regionais.

A terceira e quarta perguntas atingiram o centro das preocupações, uma vez que elas convidavam diretamente os congressistas a especificar uma solução para a falta de braços. Aqui, as respostas eram das mais variadas. Por estas razões, seria necessário detalhar mais a análise.

1. O Trabalhador Livre Nacional

Para começar, é notável que muita gente via no trabalhador livre nacional um fornecedor importante de mão-de-obra. Sete pessoas e mais uma comissão de Minas Gerais, seis homens do Rio de Janeiro, as duas comissões mistas de fluminenses e mineiros, três paulistas do Vale do Paraíba e um do Oeste, se manifestaram neste sentido123. Os entusiastas do trabalhador livre nacional afirmaram que este vivia na ociosidade, estando desempregado ou subempregado, e por isso podia ser melhor aproveitado pela grande lavoura. Dos «muitos milhares de vagabundos e vadios», somente «uma diminuta parte deles se aplica a algum serviço, trabalha um ou dois dias por semana, quando muito». A comissão de lavradores mineiros de Baependi condenou esta «ociosidade, justamente estigmatizada pela moral como a mãe dos vícios, que por sua vez são as mães dos crimes, e que constituem um mal social que se ostenta sob proporções assustadoras no país124».

A concordância a respeito da ociosidade do trabalhador livre nacional não impediu que os congressistas discordassem quanto às causas e curas desta inatividade. As causas foram encaradas como falta de repressão, a politicagem e a ausência de incentivos positivos. Quem identificava a ociosidade como resultado da falta de repressão, apelou para a «correção e polícia que moralize e sujeite ao trabalho a classe jornaleira». Muita gente pediu uma maior repressão da vagabundagem, «uma boa lei de locação de serviços», e «sumaríssimo processo125». Um grupo da freguesia fluminense de Lage achava «de toda a conveniência que os vagabundos

123. Ibid., p. 45, 58, 132, 134, 147, 182, 184, 154, 241, de Minas Gerais; p. 43, 52, 62, 133, 137, 197, 198, do Rio de Janeiro; p. 139, 157, 160, 186, 196, de São Paulo; p. 78-79, para as comissões.

124. Ibid., p, 45, 47, 58.

125. lbid., P. 47, 182, 58, 67, 148, 241.

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e vadios sejam. empregados nos trabalhos paroquiais e, só na falta destes, recolhidos nas fazendas modelos, nos municípios que as tiverem, ou nas casas de correção, mas sempre sujeitos a regulamento severo». O mesmo grupo também opinou que a lei de locação de serviços devia obrigar a trabalhar quem não ganhava a renda mínima que qualificava o sufrágio, depois de ajustada para a inflação, o que podia ter implicado em trazer para o trabalho forçado todos os que ganhavam menos de 191$000 anuais. Até um médico cearense radicado em Rio Claro, no Oeste Paulista, recomendou «aproveitar os operários nacionais», e sugeriu: «arregimentando-os em uma milícia agrícola sem pressão sobre o pobre, mas com a obrigatoriedade do serviço agrícola nos sítios, e zonas onde morarem... É o meio de forçar o aborígine ao trabalho126».

Os paulistas do Vale do Paraíba tendiam mais a culpar os próprios fazendeiros do que os trabalhadores pela ociosidade destes, no sentido de que esses paulistas acharam que os grandes proprietários abrigavam homens livres improdutivos, nas suas propriedades, para fins eleitorais. Um agricultor de Taubaté propôs «excluir do direito de voto aos locadores de serviços», e outro quis «afastar das urnas a massa ignorante que tem concorrido para falsear a representação nacional e que, com a qualificação, iria prejudicar a economia da lavoura, porque é incontestável que, com o fim de ostentar grande influência política no seu município, muitos dos nossos patrícios sacrificam os interesses de sua lavoura entregando a homens ociosos e vadios grande parte de suas terras127». Entretanto, um homem de Queluz discordou da acusação contra os fazendeiros, e rejeitou o epíteto de «espoletas eleitorais» usado por um orador mineiro para descrever os agregados improdutivos: eram «espoletas de eleição aqueles que vivem dela e não os homens de trabalho» foi o seu desabafo128.

A terceira causa apontada foi a falta de estímulos positivos; várias medidas foram sugeridas. Os paulistas apoiaram a isenção do serviço militar: dois fazendeiros de Taubaté, e mais uma «comissão nomeada pelos lavradores de São Paulo», representada por dois campineiros e um taubateano, recomendaram a «isenção do serviço militar para o brasileiro

126. lbid., p. 62, 197, 160. Conforme a Constituição de 1824, capítulo VI, artigo 92, o sufrágio era um direito de todo cidadão brasileiro e estrangeiro naturalizado que ganhava pelo menos 100$000 anuais, com certas restrições que aqui não interessam. Adriano Campanhole e Hilton Lobo Campanhole, Todas as Constituições do Brasil, São Paulo, Atlas, 1978, p, 600. Oliver Óno4Y, A Inflação Brasileira (1820-1958), 10 de Janeiro, s/e.,1960, calculou a alta do índice do custo de vida no Rio de Janeiro entre 1829 e 1881 em 91%; Mircea Buescu, 300 Anos de Inflação, Rio de Janeiro, APEC, 1973, p. 222, criticou Ónody e calculou o índice, entre 1826 e 78, em 185%. Para se ter uma idéia, quem ganhava cerca de 200$000 anuais em 1874, pressupondo 200 dias trabalhados na razão de 1$000, na Fábrica de Ferro de São João de Ipanema, em Sorocaba, era um “trabalhador de 2ª classe” nas minas, na construção de estradas, e nos transportes. Relatório apresentado à Assembléia Geral Legislativa na Terceira Sessão da Décima Quarta Legislatura selo Ministro e Secretário de Estado nos Negócios da Guerra João José de Oliveira Junqueira, Rio de Janeiro, Typographia Universal de Laemmert, 1874, Anexo R. Mapa 6.

127. lbid., p. 186, 196. Veja. No mesmo sentido. Fazendeiros de Caçapava e Campinas, p.49. 166, e mineiros. P. 48. 147 e 156.

128. lbid., n. 160, 147. Manoel de Freitas Novaes, de Queluz, fundou em 1850 uma colônia de “quatro famílias dos chamados caboclos”, a qual cresceu para “500 e tantos trabalhadores voluntários”; “não os há melhores que os nacionais”. Ibid., p.139.

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que, tendo contrato de locação de serviço em um estabelecimento agrícola, apresentar atestado do locatário ou de outra qualquer prova de fiel cumprimento do contrato». Um fazendeiro de Rio Claro queria substituir o serviço militar por serviço numa «milícia agrícola» como meio de «forçar o aborígine ao trabalho129”. Uma outra comissão de lavradores de Minas, Rio de Janeiro e Espírito Santo argumentou em favor da «dispensa do imposto de sangue», como fez também um cônego mineiro de Mar de Espanha130.

Mais diretamente, um mineiro de Ubá pediu que o governo oferecesse «prêmios» para quem se engajasse na agricultura, e um comerciante de Porto Alegre queria dar, como incentivo, não somente «parte dos capitais gastos com a introdução de colonos emprestáveis, como também terras. Um outro mineiro de Mar de Espanha partiu da observação de que «se a lavoura precisa de braços, facilmente ela os obterá quando conseguir a possibilidade de maiores salários» para culpar a «falta de capitais» pelo nível inferior de salários. Um fluminense, de Barra Mansa, sugeriu que aos senhores fosse permitido escolher quais dos seus escravos iam ser liberados pelo fundo de emancipação, criado pela Lei do Ventre Livre, «pois o escravo, agradecido a seu ex-senhor, facilmente se engajará por um salário a continuar no trabalho a que se acostumou.131

Não há como negar que o apelo para o trabalho forçado dos livres deixa-nos pensar em um novo tipo de escravidão, e que, neste sentido, podia ser caracterizado como a proposta de uma mentalidade mais ligada ao passado do que ao futuro. Por outro lado, não se deve esquecer que os melhores advogados desta causa de trabalho forçado não foram os fazendeiros do Vale do Paraíba, como as teses de historiografia referidas levariam a pensar, mas os do Sul de Minas Gerais, embora os interesses regionais fossem parecidos. Também deve-se lembrar que o trabalho forçado tinha muito em comum com a Lei dos Pobres de 1834 e as casas de trabalho na Inglaterra, o berço do capitalismo industrial, onde recorria-se ao trabalho forçado para evitar a ociosidade e obrigar os pobres a procurarem trabalhar nas fábricas132. Finalmente, a atenção dedicada ao trabalhador livre nacional já mostra uma certa flexibilidade em face da questão de regime de trabalho, flexibilidade esta que não tem sido admitida pelos autores modernos como característica da mentalidade dos fazendeiros das zonas mais antigas.

A quarta pergunta, formulada pelo Ministro da Agricultura, focalizava uma categoria especial de trabalhador livre nacional: a das crianças nascidas de mães escravas depois de 1871, quando foram consideradas

129. Ibid., p. 76. 160. 185. 196. Veja também uma opinião mineira parecida, p. 45.130. lbid. P. 78. 154. 131. Ibid.,p. 132, 41, 184. 52. 132. David Thomson, England in the Nineteenth. Century, Harmondsworth, Inglaterra, Penguin Books, 1950, p.

68-71. Phyllis Deane, A Revolução Industrial, tradução de Meton Porto Gadelha, 3ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1975, p. 168-171.

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legalmente livres pela Lei do Ventre Livre. A pergunta indagava se a grande lavoura tinha esperanças de aproveitar estes ingênuos que, na época do Congresso Agrícola, tinham um máximo de sete anos de idade, e, portanto, ainda estavam todos legalmente sob a tutela dos senhores de suas mães133.

As respostas eram de dois tipos: as que entreviam alguma possibilidade de aproveitar os ingênuos, desde que certas medidas fossem tomadas, e as que negavam esta possibilidade. Das pessoas mais otimistas, vários fluminenses e mineiros apelaram para que o Estado desse uma “educação agrícola” aos ingênuos, que atenderia dois objetivos: primeiro, qualificar e condicionar o ingênuo para um trabalho eventual na agricultura e, segundo, passar do fazendeiro para o cofre público os custos de sustento do ingênuo, até chegar à idade de trabalhar. Fluminenses de Valença e São José de Leonissa (Itaocara) pediram que o Governo Imperial montasse “estabelecimentos agrícolas e industriais, onde se comece a tratar desses ingênuos, onde se lhes dê a verdadeira educação agrícola”, e o Marechal do Campo Henrique de Beaurepaire Rohan, residente em Niterói, apresentou uma longa defesa da idéia134. Um mineiro de Muriaé opinou para que as crianças ficassem estudando até os 21 anos, e um outro de Mar de Espanha foi mais além, pedindo para incluir “órfãos desvalidos, menores que dos pais não recebam educação e emprego útil, e os ingênuos cedidos gratuitamente pelos senhores de suas mães ou pelo Estado135”.

Alguns homens do Vale do Paraíba fluminense insistiram em trabalhos forçados para os ingênuos. O Barão de Rio Bonito advertiu que os ingênuos formavam “uma classe nova de indivíduos... aumentada ela em número crescido, bem longe de tornar-se útil, pode constituir um elemento de desordem, desde que não haja recurso para obrigá-la a trabalhar”, e seu vizinho, Ricardo José Guimarães, de Barra Mansa, acrescentou que “fiquem os ingênuos sob o poder dos senhores dos seus pais, e obrigados a servir até os 21 anos, em compensação do trabalho e despesas da criação136”. O único mineiro que se manifestou a respeito dos ingênuos mostrou-se cético quanto ao uso da força: “o serviço dos ingênuos virá de modo relativo a ser útil na lavoura e povoações, mais devido à ação

133. A Lei do Ventre Livre estipulava que os ingênuos tinham que ficar com as suas mães até a idade de 8 anos. Quando seriam libertos mediante uma indenização de 600$000 paga pelo Estado, ou até os 21 anos, quando seriam libertos sem a indenização. “Lei 2.040”, Colleção de Leis do Império do Brasil em 1871, tomo XXXI, parte I, p. 147-151.

134. Colleção de Documentos, 40, 201, 249-252.135. Ibid., p. 45, 153. Veja também p. 33, 41, 84.136. Ibid., p. 238, 53; veja também o. 43, 48. Guimarães opinou que os fazendeiros não deviam estar “sujeitos a ser

desmoralizados por autoridades, como são os juízes municipais, moços inexperientes e precipitados, que à mais leve queixa de um escravo ou de um ingênuo, por ter recebido uma simples e leve correção (indispensável a tais indivíduos para manter a disciplina de uma fazenda), fazem vir a sua presença os senhores, os repreendem e maltratam, muitas vezes diante dos injustos, queixosos, e assim os deixam desmoralizados”. Ele preferia deixar esta fiscalização com os “juízes de direito... mais práticas e de mais critério e experiência”. Ibid., p. 53. Seria interessante pesquisar até que ponto nesta época existia uma verdadeira divisão no judiciário a respeito da escravidão. Trabalhos recentes sobre a abolição, como o de Robert Conrad, As últimas décadas da escravidão no Brasil, 1850-1888, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, não examinam este aspecto.

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natural do interesse do trabalhador, do que à ação legislativa, sempre improfícua para prender ao trabalho o que não quiser trabalhar137”.

Muito mais congressistas, especialmente do Vale do Paraíba e de Minas Gerais, negaram a aproveitabilidade dos ingênuos, do que os que afirmaram esta possibilidade. Quatro “representantes de lavradores de Juiz de Fora e Paraíba do Sul» advertiram contra «o exemplo da insubordinação dos ingênuos», e declararam que «nem cremos portanto que possam eles permanecer como operários agrícolas, sendo outrossim quase certo que sejam destinados a outras indústrias ao exército, ou constituam uma população desocupada e indolente138». Seis membros de uma comissão da Companhia União dos Lavradores, congregando pessoas do Município Neutro e do Sul de Minas, lamentaram que «antes é de presumir, pela natural tendência do homem de procurar a sua independência, que os ingênuos morigerados e trabalhadores se esforcem por ser proprietários, e por conseguinte se dediquem à pequena lavoura que demanda poucos capitais139». Um orador de Resende qualificou o serviço dos ingênuos como «problemático, e com certeza chegará tarde ... porque, desde que eles obtenham a emancipação, a primeira coisa que devem querer é alcançar a liberdade», e outro orador, deste mesmo município do Vale do Paraíba fluminense, só esperava aproveitar o trabalho dos ingênuos «enquanto outras indústrias de mais vantagem no salário não os atraírem, e se convencerem de que não poderão viver à custa alheia, o que logo verificarão, e terrenos grátis não lhes forem ofertados». O Comendador Ângelo Thomás do Amaral de Itaboraí foi taxativo: «o ingênuo, que der trabalho frouxo, e concorrer para afrouxar o do escravo, e aumentar a indisciplina das fazendas, não é um elemento permanente da lavoura, porque, logo que findar o seu tempo de sujeição, por um sentimento natural ao homem que evita os lugares em que foi contrariado nos primeiros tempos de vida, e porque há de preferir trabalho menos pesado, procurá-lo-á nas cidades140.

Alguns lavradores do Oeste Paulista eram igualmente céticos quanto aos ingênuos. A comissão nomeada pelos lavradores de São Paulo entendeu que «a lavoura não pode contar com eles, não só pela indolência herdada dos escravos e nacionais, como porque em geral os libertos preferem o mercantilismo» e «só em 1886 estarão eles aptos para prestar, tais serviços», presumivelmente porque neste ano os ingênuos mais velhos já teriam atingido 15 anos. O representante do Comendador João Elisário de Carneiro Montenegro, de Mogi-MirIm, comunicou secamente que «os ingênuos não podem constituir elemento de trabalho permanente141».

137. Colleção, p. 152. Ênfase no original.138. Ibid., p, 72,139. lbid., p, 68” Veja também uma conclusão parecida de outra comissão composta de sete fluminenses

e mineiros, p. 78. 140. Ibid,. P. 144,138. Veja também a opinião de um mineiro. p, 134. 141. Ibid., p. 76, 31.

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Se as hipóteses de escravismo enraizado e falta de racionalidade no Vale do Paraíba tivessem mérito, era de esperar que os porta-vozes desta região apoiassem mais maciçamente o aproveitamento dos ingênuos, até com a ajuda do governo, num esforço derradeiro de prolongar a escravidão. Mas, como se vê, os representantes do Vale e do Sul de Minas eram bastante divididos nesta questão, e muitos concordaram com os seus colegas do Oeste Paulista de que o ingênuo não forneceria mão-de-obra para a grande lavoura. Então, o balanço das opiniões neste ponto sugere que as referidas hipóteses deviam ser reexaminadas.

2. O Imigrante

Desde que a opinião geral era a de que a mão-de-obra que faltava à grande lavoura não podia ser recrutada dentro do país, a alternativa lógica era de trazê-Ia de fora. Assim, a imigração estrangeira despertou grande interesse por parte dos participantes no Congresso, tanto entre o pessoal do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como de São Paulo. A maior parte das pessoas que comentaram o assunto reconheceu que a imigração realizada até então não tinha dado resultado positivo para a grande lavoura; mas não perdeu a fé na imigração, e fez várias sugestões para reformar a' política imigratória. O Barão de Rio Bonito lamentou que «a colonização oficial não tem produzido o resultado almejado», e Francisco de Paula Tavares, de Mar de Espanha, a caracterizou como «um sorvedouro de dinheiro sem resultados práticos». A comissão «nomeada pelos lavradores de São Paulo» confirmou ‘que «a imigração espontânea... tem produzido somente resultados quase negativos142».

Entre os oradores do Vale do Paraíba fluminense, vários apontaram a localização das colônias como um fator determinante do seu êxito. Manuel Ribeiro, do Vale do Paraíba do Sul, considerou que os preços do feijão e café eram tão altos que convinha mais instalar núcleos coloniais nos «centros mortos» pelo «exaurimento do terreno» como, por exemplo, Vassouras, onde o acesso ao mercado era mais fácil, do que nas fronteiras com países estrangeiros. José Fernandes Moreira concordou que era interessante implantar colônias “em terrenos já abandonados pelos lavradores nacionais junto às estradas de ferro, e que, com o mais ligeiro amanho, serão grandes celeiros», mencionando também Vassouras «que foi tão rico», Valença e São João do Príncipe143.

142. lbid., p. 188. 75. 152, 238. Veja também p. 37, 191. Para a história da política imigratória antes de 1878, consulte Michael Hall, The Origins of Mass Immigration” in Brasil. 1871-1914, tese de doutoramento. Columbia University. Nova Iorque 1969, capítulo1; Emilia Viotti da Costa, Da Senzala à Colônia, p. 65-123; Carlos H. Oberacker Jr., “A colonização baseada no regime da pequena propriedade agrícola”., Sérgio Buarque de Holanda, “As colônias de parceria”, e Tereza Schorer Petrone, “Imigração assalariada”, todos em Sérgio Buarque de Holanda (org.), História Geral da Civilização Brasileira, tomo II, vol. 3.

143. Calleção, p. 161-162. O estudo clássico de Vassouras é de Stanley J. Stein, Grandeza e Decadência do Café no Vale do Paraíba.

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Outros fluminenses defendiam um papel mais ativo para governo. Um, de Niterói, argumentou que o governo devia ser autorizado a alugar terras para os posseiros, que pagariam um foro anual. Com esta renda, o governo forneceria aos imigrantes «todo o necessário por espaço de oito meses»; depois de cinco anos, o imigrante teria que indenizar o governo pelos adiantamentos, e depois de dez anos o mesmo também começaria a pagar um aluguel anual. Um lavrador de Valença atribuiu o fracasso da colonização oficial à falta de preparo e auxílio «com a parte industrial», citando o exemplo de Porto Real, em Resende, onde os colonos tinham plantado cana-de-açúcar, mas não encontravam onde moê-Ia. Um fazendeiro de Barra Mansa pediu «a remoção dos obstáculos que nossa constituição política e a legislação em geral opõem à imigração estrangeira144».

Os mineiros concordaram com os fluminenses, tanto na explicação do fracasso da velha política imigratória, como nas sugestões para uma nova política. Os lavradores de Baependi lembraram a localização como fator importante, e afirmaram que «seria conveniente que fossem (os imigrantes) colocados em núcleos próximos aos grandes centros produtores, e distribuídos com a relativa igualdade por todas as províncias do Império», e um representante de Juiz de Fora e de São José do Rio Preto pediu que os colonos recebessem «terras de boa qualidade». Para atrair o imigrante, os lavradores de Baependi também quiseram que o governo pagasse aos imigrantes a diferença entre o custo da passagem para o Brasil e o custo da passagem para os Estados Unidos, além de custear o transporte dos imigrantes «até aos lugares de seus destinos», e a publicação e difusão na Europa de informações sobre o Brasil. A Companhia União dos Lavradores especificou que se devia multiplicar «as vias de comunicação acelerada, de modo que o imigrante possa com facilidade e comodidade, transportar-se para as terras devolutas, e com a mesma facilidade e comodidade fazer transportar os produtos de sua lavoura para os grandes mercados», e sugeriu a formação de «uma grande associação que se encarregue, sem a mínima intervenção do Governo, de receber os imigrantes no desembarque, acolhê-los, tratar os enfermos e fornecer-lhes as informações e recursos de que necessitem». Joaquim Eduardo Leite Brandão, de Mar de Espanha, acrescentou que o governo devia garantir o juro do capital desta sociedade. Muitos mineiros também recomendaram que as leis fossem reformadas para garantir os direitos civis e políticos dos imigrantes145.

Os fazendeiros do Oeste paulista, para onde uma certa corrente de imigrantes já fluía, e cuja fronteira de expansão de cafeicultura prometia exigir muito mais mão-de-obra, também se harmonizaram com as propostas dos seus colegas do Rio e Minas. A comissão nomeada pelos lavradores de São Paulo sugeriu que as colônias oficiais fossem removidas

144. Colleção, p. 42, 62, 238, 35, 193. 145. Ibid., p. 59, 241, 182, 70, 67.

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«para os centros produtores». Embora um cafeicultor que representava fazendeiros de Capivari e Porto Feliz julgasse preferível «que o Estado se limite a facultar ao agricultor a introdução do colono», José de Souza Barros, de Araraquara, foi mais direto e identificou a relação de produção como um obstáculo à imigração, notando «as queixas que os colonos levantam contra seus patrões, quando devem quantias que nunca poderão pagar com os salários que recebem por serviços contratados»; Souza Barros queria reformar a lei de locação de serviços, para que fosse proibido ao fazendeiro emprestar mais do que o colono pudesse pagar em dois anos, «a prêmio nunca mais alto de 6%», e abolir totalmente a prisão por dívidas146. A comissão e mais dois fazendeiros, de Mogi-Mirim e Araraquara, defenderam também a liberdade de cultos, o registro civil de nascimentos, casamentos e óbitos, para que não-católicos pudessem legitimar as suas famílias, e a secularização dos cemitérios, além da «grande naturalização sem restrições dos seus efeitos civis e políticos”147.

O consenso a favor da imigração estrangeira não evitou que os participantes no Congresso tivessem diferenças quanto ao tipo de estrangeiro que melhor conviesse trazer ao Brasil. Especificamente houve uma divisão de opiniões bastante marcada a respeito da idéia de incentivar a imigração asiática. Mas as opiniões não se dividiram conforme as regiões148.

Várias pessoas do Vale do Paraíba apoiaram a imigração asiática. O próprio Ministro da Agricultura, alagoano por nascimento mas com longos anos na Corte, abriu a primeira sessão do Congresso com um discurso, comparando as vantagens das experiências com o imigrante asiático em Maurícia, Ceilão,Peru, Cuba, as Antilhas e os Estados Unidos, com as desvantagens da colonização futura do Brasil por europeus, para quem «a elevação do salário é condição indispensável», cuja «tendência natural... não é para prestar-se ao serviço do assalariado, mas sim para constituir-se também proprietário», e que tem «repugnância... à cultura dos gêneros denominados coloniais149». José Fernandes Moreira, do Rio de Janeiro, elogiou o exemplo da importação de chineses para Maurícia, Peru e os Estados Unidos, e admirou «a civilização própria bem adiantada» que produziu um Confúcio, e «a perfeição» da agricultura chinesa150. Um fazendeiro de Itaguaí, Rio de Janeiro, repetiu o elogio à experiência

146. Ibid., p. 59, 241, 182, 70, 67.

147. Ibid., p. 76, 37, 44. Sobre o engenho central de Porto Feliz, veja “Os cem anos do engenho central de Porto Feliz” Mensário do Arquivo Nacional, e X:L, janeiro, 1979, p. 26-29; Jonas Soares de Souza. “A primeira usina de açúcar paulista; 1978, p. 3-5; idem, “Uma empresa pioneira de São Paulo: o engenho Central de Porto Feliz”, in Brasil Açucareiro, XC, II: 5, novembro, 1978, p. 51-64; e idem, O Engenho Central de Porto Feliz: Uma Empresa Pioneira em São Paulo, São Paulo, USP, 1978.

148. Colleção.,p. 75, 31, 43. 149. Sobre as origens da idéia de imigração asiática, veja Robert Conrad, “The Planter Class and the Debate over

Chinese Immigration to Brasil, 1850-1893”, in International Migration Review, 9:1, Spring 1975, P. 41-55. 150. Colleção, p. 128-129. Sinimbu foi eleito deputado imperial por Alagoas em 1842, e nomeado senador vitalício

para a mesma província em 1857. Ele ocupou a pasta da Agricultura, Comércio e Obras Públicas pela primeira vez em 1862-63, e depois em 1878-80: Barão de Javari, Organizações e Programas Ministeriais. Regime Parlamentar do Império, 2ª edição, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1962, p. 131, 179, 297, 414.

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norte-americana na Califórnia, com a ressalva de que o progresso daquele Estado era mais fruto da mecanização do que da imigração chinesa, e recomendou que «o chim venha como jornaleiro e não possa de modo algum tomar parte em deliberações do país151».

Lavradores de Resende e do município açucareiro de Quissamã, Rio de Janeiro, apontaram vantagens específicas do chinês: «é sóbrio, trabalhador, e pede salários baratos», e nada perdia em comparação com o africano, cujo papel importante na vida econômica do Brasil todos reconheceram. Um fazendeiro de Itaboraí, Rio de Janeiro, considerou o «cule» como «um meio de transição para uma colonização de raças mais aperfeiçoadas152».

De São Paulo, A. Scott Blacklaw, representante do New London and Brasilian Bank Ltd., em Rio Claro, apoiou entusiasticamente a imigração asiática. Ele fez um longo relatório no qual citou as vantagens da importação de cules indianos para a Maurícia, Ceilão, Jamaica, Guiana Inglesa e Caiena. Blacklaw advertiu que «a lavoura tropical, a lavoura do café, não serve para gente branca» porque «não há um branco que possa trabalhar pelo mesmo salário de um preto ou de um cule da Índia (Muitos apoiados)».

Segundo Blacklaw, os cules «respeitam muito ao branco; não são barulhentos, são pouco dados à bebida, mesmo porque não ganham para alimentar este vício. Sua língua aprende-se facilmente», e, «conforme os princípios de sua religião, os cules estão sujeitos aos preconceitos das castas; não podem aspirar, na escala social, outra posição diferente daquela que ocupam». Ele detalhou o processo de engajamento na Índia e a viagem para os cafezais de Ceilão, e recomendou a lei de trabalho desta colônia inglesa, que obrigava o cule a dar um mês de aviso prévio antes de largar o serviço, sob pena de multa de 50$000, mesmo que o cule só trabalhasse por um dia antes de desistir153.

Outros paulistas apoiaram a imigração asiática, embora menos entusiasticamente. A comissão nomeada pelos lavradores de São Paulo, reconhecendo que o «caráter subserviente e imoral há de contaminar a nossa população e afastar imigrantes de procedência europea», mesmo assim concluiu que «podem eles prestar serviços à lavoura, e ser aceitos como um meio de transição». Rodrigo Lobato Marcondes Machado, de Taubaté, que «como todos os paulistas» insistiu que «esses homens não são os melhores», contudo aceitou a imigração asiática como um «meio seguro de se passar do braço escravo para o braço livre154».

152. Ibid., p. 216. 233. 153. Ibid., p. 64, 138, 193, 222-223. Dois oradores apelaram para a colonização africana, mas não houve quem

mais se interessasse pela idéia, p. 83, 153.

151. Colleção, p. 193. Sebastião Gomes da Silva Belfort, de procedência não especificada, partiu de um pressuposto contrário para chegar a conclusão semelhante: “os povos da Ásia, menos ilustrados e mais numerosos que os povos da Europa, mais facilidades hão de unir-se à nossa raça indígena ou mestiça pela identidade de origem, e serão de maior utilidade para o Brasil no povoar o seu vastíssimo território”, p. 104.

154. Ibid., n. 255-262. Certamente os fluminenses de Lage teriam aplaudido ao Blacklaw, porque aqueles apoiaram a imigração de asiáticos “desde que se regerem pelas mesmas leis que nas colônias inglesas”. p. 62.

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A oposição à vinda dos asiáticos partiu de pessoas de quase todas as regiões representadas no Congresso: um fluminense de Serraria assegurou que «basta a índole indolente do nosso povo para o atraso do país; não se deve ajuntar a esse elemento mais do que de mau nos pode trazer o chim». Cristiano B. Ottoni, representando Paraíba do Sul e Juiz de Fora, advertiu que «o cruzamento de tal raça contribuiria para abastardar-nos», e citou estatísticas de Cuba, das Antilhas francesas e dos Estados Unidos para comprovar que os cules tinham altos índices de criminalidade e de mortalidade, e que «a colonização de cules mata a colonização útil das raças do Ocidente». Ottoni calculou que o cule, na prática, sairia mais caro do que o europeu por causa dos custos maiores de transporte do país de origem até o Brasil. A comissão de lavradores de Paraíba do Sul e Juiz de Fora previa que os cules podiam se tornar, «sem o freio da escravidão e o temor do azorrague, um elemento dissolvente da ordem e do bem-estar da família agrícola». Um mineiro de Mar de Espanha foi contundente: «a imigração, quer de chins, quer de cules, importará entre nós o estabelecimento de uma raça inferior, corrompida e degradada (Apoiados e não apoiados)155»

Alguns paulistas montaram um ataque forte contra a imigração asiática. Domingos José Nogueira Jaguaripe Filho, de Rio Claro, citou 13 autoridades, incluindo vários escritores estrangeiros e um presidente dos Estados Unidos, para reforçar o seu argumento de que o chinês era «sem força moral, sem fé, sem futuro, sem idéia de melhoramento», e traz «decadência moral, a depressão, o aniquilamento do país». Para ele, os chineses só respeitavam castigos corporais, eram dados aos pequenos furtos, morriam facilmente, não tinham ilustração, e eram «estúpidos». João Cordeiro da Graça, de Limeira, chamou a China de «um país brutal, onde se aplicam leis que nada têm de civilizadas; ainda não abriu todos seus portos ao comércio». Eduardo A. Pereira de Abreu, de Silveiras, qualificou os cules como «fracos e indolentes por natureza, alquebrados pela depravação dos costumes e hábitos que desde o berço adquirem,narcotizados física e moralmente pelo ópio, não poderão nunca no Brasil suportar o árduo e penoso trabalho da cultura do café156».

Tanto as atitudes frente à imigração, quanto as opiniões sobre os asiáticos, refletem as dificuldades de identificar determinadas idéias com determinadas regiões. Se as hipóteses de atraso no Vale do Paraíba tivessem procedência, então era de se esperar que a resolução asiática, implicando num tipo de relação de trabalho apenas semilivre, encontrasse muito mais adeptos nesta região. Entretanto, como se viu, várias pessoas

155 Ibid., P. 76, 196. Warren, Dean errou quando afirmou que “alguns delegados paulistas ao Congresso Agrícola de 1878 defenderam tenazmente a importação de cules”, Rio Claro. Um Sistema. Brasileiro de Grande Lavoura, 1820-1920, tradução de Waldívia Marchiori Portinho, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, n. 151. O único defensor tenaz parece ter sido Blacklaw. Os outros oradores citados por Dean foram um paulista e um mineiro contrários à imigração de cules, e um fluminense a favor, mas nenhum destes sustenta a afirmação do Dean.

156. Colleção, p. 203, 212-213, 70, 184. Para opiniões menos coloridas, mas no mesmo sentido, veja também p. 192, 238.

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do Vale e do Sul de Minas manifestaram-se fortemente opostas à imigração asiática, e a idéia foi aceita com certas restrições até no Oeste Paulista.

Antes de concluir que as hipóteses de atraso e falta de racionalidade no Vale do Paraíba estivessem sem fundamento, deve-se reconhecer certas limitações desta análise. Em primeiro lugar, evidentemente todas as conclusões podem somente se referir a um determinado momento, os meados de 1878. É possível que as mentalidades regionais fossem mais contrastantes em momentos anteriores ou posteriores, como, por exemplo, durante a década crítica de 1880, e especialmente depois da abolição, quando a diferenciação entre os regimes de trabalho nas duas regiões ficou mais clara. Entretanto, há que se notar que a maioria dos autores, que defendem a hipótese de atraso e falta de racionalidade no Vale, não hesitou em estender as suas afirmações a períodos de décadas e quartéis de séculos. Se, no esforço de examinar um pouco mais detalhadamente um momento, quando a suposta diferença devia estar-se manifestando, se vê que não era possível comprovar tal diferença, então, como continuar acreditando que ela tem cabimento durante períodos maiores?

Em segundo lugar, talvez as idéias manifestadas não fossem realmente representativas dos municípios e regiões dos congressistas. Embora fluminenses de Itaboraí, Mangaratiba, Monte Verde, Lage, Paraíba do Sul, São João do Príncipe, Piraí, Resende, Sapucaia e Vassouras; mineiros de Baependi, Leopoldina, Mar de Espanha, Rio Novo, São Pedro de Alcântara e Ubá; e paulistas de Barra de São Lourenço, Campo Largo, Capivari, Indaiatuba, Jacareí, Porto Feliz, Rio Claro, São José do Barreiro, Silveiras, Sorocaba, Tatuí e Taubaté, tivessem enviado para o Congresso cópias das atas das reuniões onde foram escolhidos os representantes, nem todos os participantes tinham sido eleitos. Mesmo os delegados formalmente eleitos talvez não compartilhassem da mentalidade da maioria dos fazendeiros. Evidentemente, tal objeção se estenderia também a toda assembléia representativa, e a resposta seria a mesma: mentalidades latentes não podem ser apenas adivinhadas, é preciso também examinar aquilo que chegou a ser articulado.

Em terceiro lugar, mesmo admitindo a representatividade dos congressistas, se avaliarmos com os critérios para levantamentos modernos de opinião pública, é claro que o número de respostas a cada questão era bastante reduzido, e bem aquém daquilo que é preciso para estabelecer níveis de confiança estatística. Divisões de opinião na base de 6 a 2, ou 8 a 5, quando o universo de referência inclui não só algumas centenas de congressistas mas dezenas de milhares de fazendeiros, exigem uma certa cautela quando se propõe extrapolar delas para as mentalidades de regiões inteiras. No mínimo, podem-se fazer afirmações quanto às tendências no Congresso. Contudo, não se acha necessidade para tanta modéstia nas conclusões, já que os autores das referidas hipóteses, com muito menos semelhança em um levantamento de opiniões de fazendeiros, chegaram a ser taxativos nas suas conclusões.

Finalmente, é possível que, mesmo sem estender a análise além do Congresso Agrícola de 1878, haja melhores maneiras de testar a

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hipótese. De certo ponto de vista, é possível considerar o escravo como capital, como um investimento de dinheiro na esperança da realização de uma renda futura, de modo que o preço de compra do escravo nunca podia exceder o valor líquido da sua renda capitalizada. Sabe-se que os próprios fazendeiros costumavam hipotecar os seus escravos para conseguir empréstimos, como depois da abolição eles iam penhorar as suas safras e as suas terras com a mesma finalidade157. Então, talvez este ensaio seja omisso ao não analisar os depoimentos que respondiam às últimas três perguntas do Ministro da Agricultura, sobre a falta de capitais e crédito agrícola. Pode-se até estudar as respostas a todas as perguntas como variações sobre um único tema: a necessidade dos fazendeiros de conseguir mais capital, seja qual for a sua forma concreta, para que eles pudessem melhor se reproduzir como fazendeiros. Entretanto, mesmo que se reconheça que um tal redimensionamento resultaria num estudo mais completo do Congresso, tenho dúvidas de que as conclusões a respeito das diferenças regionais fossem muito diferentes. E evidentemente se correria o risco de perder a especificidade da visão que a maioria dos congressistas tinha do problema de mão-de-obra.

Não obstante todas essas limitações, não me sinto constrangido em negar a importância das diferenças de mentalidades regionais, e até a sua própria existência, e assumir posição mais próxima à de Beiguelman, Dean, Gorender e Souza Martins. A implicação central desta conclusão, que constitui um ponto de partida para a reavaliação do período do fim do Império, é que, de fato, tanto os fazendeiros do Vale do Paraíba e do Sul de Minas, quanto os do Oeste Paulista, eram membros de uma só classe, uma classe baseada na exploração de grandes propriedades particulares e rurais, e trabalhadores diretos escravizados e, em grau menor, livres sem ser assalariados. Como qualquer classe, ela teve as suas divisões internas, mas em 1878 as divisões não obedeciam a divisões geográficas.

157. Souza Martins, O Cativeiro da Terra, p. 23-28, 62.

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QuaDro i: esCravos aFriCanos DeseMbarCaDos aléM-Mar

nas AméricasNa Europa e nas ilhas do Atlân-

tico

Média anual aproximada

Escravos desembarcados

Até 1500 33.500 – 670

1501-1600 116.400 125.000 2.400

1601-1700 25.100* 1.280.000 13.000

1701-1810 – 6.265.000 57.000

Depois de 1800 – 1.628.000 27.000

Total 175.000 9.298.000 (98,15% do

total geral) (1,85% do total geral)

(*) Quase só para as ilhas do Atlântico neste período, e 4/5 antes de 1650.

Fonte: J. D. Fage, A History of West Africa, At the University Press, Cambridge, 1969, p. 83 (dados apud P. Curtin)

4. haiti

Ciro Cardoso

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5. a plantation esCravista

Este foi o único caso em toda a Afro-América em que a abolição da escravidão resultou de uma revolução social e nacional.

A colônia francesa de Saint-Domingue, a vésperas da Revolução de 1789, estava no auge da sua riqueza. Apesar de ter uma superfície reduzida, contava com 792 engenhos, 8512 plantations (de açúcar, café, algodão e anil) e 452000 escravos segundo uma fonte, mais de 700.000 segundo outra. Os brancos, pequena minoria, possuíam a maior parte das propriedades e dos escravos (embora muitos dos proprietários importantes vivessem na França, e na colônia abundassem os brancos pobres ou petits blancs), mas entre os mulatos livres havia também pessoas letradas e possuidoras de bens.

Ao chegar a Saint-Domingue a notícia da eclosão da Revolução em Paris, os grandes proprietários residentes e os comerciantes se solidarizaram com o movimento revolucionário e formaram uma assembléia; visavam a obter o fim do exclusivo ou pacto colonial e alguma autonomia política. Quando o governador (pró-absolutista) dissolveu em 1790 essa assembléia, contou com o apoio dos mulatos livres: a esperança destes não estava na autonomia local, e sim na Assembléia Constituinte francesa, que decretara a igualdade de direitos para as pessoas livres de cor. Tal igualdade não foi, porém, efetivada na colônia, e uma revolta dos mulatos eclodiu, sendo duramente reprimida.

Em agosto de 1791 começou a revolta geral dos escravos, inicialmente encorajada pelos libertos ricos. Nas hostilidades que desde então se desenrolaram até a independência em 1804, os quilombolas, que tinham longa prática na guerra de guerrilhas, forneceram boa parte da liderança militar. A revolução haitiana foi ferozmente reprimida, em certas ocasiões com requintes de crueldade. Os negros, que se haviam aliado aos inimigos da França, só voltaram a apoiar a República Francesa quando os jacobinos decretaram a abolição da escravidão (4 de fevereiro de 1794). O choque entre os mulatos, alguns deles de educação francesa e proprietários, e os negros, com quem os primeiros não queriam dividir o poder, terminou com a vitória de Toussaint-Louverture (que se aliara aos brancos proprietários, aos Estados Unidos e à Inglaterra). Este impôs uma ditadura militar ao país virtualmente independente. Os ex-escravos foram forçados a voltar às plantations, cujo produto seria doravante dividido em quatro partes (uma para os trabalhadores, uma para o governo, e duas para os donos). As condições de trabalho eram tão duras que uma rebelião ocorreu em 1801, sendo esmagada.

Em 1802, Napoleão Bonaparte decidiu restabelecer o tráfico de escravos e a escravidão, e enviou à ilha uma grande expedição de reconquista. Assim começou a guerra de independência (1802-1803). Toussaint submeteu-se aos franceses e morreu preso na França. A

Ciro Cardoso

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vitória final dependeu de que os líderes dos mulatos (como Pétion) e dos negros (Dessalines, Christophe) pusessem fim às suas divisões; Dessalines tomou-se chefe supremo. A independência do Haiti foi proclamada em 1? de janeiro de 1804, depois da completa derrota dos franceses. A guerra da independência fora tão terrível que, em 1805, a população do novo país representava a metade ou menos da população de Saint-Domingue em 1789. A economia havia sido arrasada. A França só reconheceria a independência haitiana em 1825.

Note-se que, se a rebelião de escravos, quilombolas e libertos constituiu o núcleo do movimento emancipacionista, as divisões no interior do grupo branco (que foi totalmente eliminado da ilha), propiciadas pela Revolução Francesa, foram fator de grande importância para possibilitá-Ia.

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6. os JaCobinos negros - toussaint l’ouverture e a revolução De são DoMingos

Cyril Lionel Robert James158

Apresentação159

ENTRE TODAS as numerosas insurreições de escravos, ocorridas desde a Antiguidade clássica até os tempos modernos, somente uma foi vitoriosa: a insurreição dos escravos da colônia francesa de São Domin-gos, iniciada em 1791, no território onde hoje se localiza a República do Haiti. Finalmente em tradução para a língua portuguesa, o leitor brasileiro poderá se informar sobre este singular episódio histórico por meio do livro de C. L. R. James. Algumas causas objetivas favoreceram a eclosão do movimento rebelde e seu triunfo. A colônia francesa, então a mais próspera do continente americano, graças à produção açucareira, concentrava meio milhão de escravos, em sua maioria africanos, num território de cerca de trinta mil quilômetros quadrados. Este formidável contingente era dez vezes maior do que o dos brancos de origem fran-cesa — senhores e auxiliares imediatos. Um pequeno segmento inter-mediário, constituído por mulatos e negros libertos, era tratado de ma-neira discriminatória pelos brancos e se colocou contra eles, no decorrer da luta. Por último, o domínio colonial sofreu forte abalo com a defla-

158. Cyril Lionel Robert James, escritor negro, historiador, jornalista, socialis-ta, nasceu em 04 de janeiro de 1901 e faleceu em 19 de maio de 1989, Londres. Livro publicado originalmente na inglaterra, em 1938, traduzido e publicamente pela primeira vez em portugues, em 2000, pela editora Boitempo.

Interessados em comprar o livro interiro, 400 páginas, acesse: www.boitempoeditorial.com.br159. Jacob Gorender (Salvador, 20 de janeiro de 1923 — São Paulo, 11 de junho de 2013) foi um

dos mais importantes historiadores e cientistas sociais marxistas brasileiros. Jovem, abandonou a escola de Direito, em Salvador, para ir lutar na Segunda Guerra Mundial, na Itália, como integrante da Força Expedicionária Brasileira. De volta ao Brasil, militou como profissional no Partido Comunista Brasileiro (PCB), do qual se tornou destacado dirigente, integrando seu Co-mité Central. Após o golpe de Estado em 1964, foi expulso pela direção do PCB, de orientação prestista, à qual se opunha, para participar da fundação do Partido Comunista Brasileiro Revo-lucionário (PCBR), com diversos outros dirigentes comunistas de esquerda, como Mario Álves, Apolônio de Carvalho, etc.. Foi preso e barbaramente torturado, quando do Regime Militar, cumprindo prisão por sua militância. Destacado intelectual marxista quando de sua militância no PCB, após sair da prisão, dedicou-se a investigação da formação social brasileira. Entre seus trabalhos se destacam A burguesia brasileira, de 1981, e Combates nas trevas, de 1987. Sua principal obra foi a tese “O Escravismo Colonial”, de 1978, de caráter revolucionário, na medida em que supera o debate sobre o caráter do passado do Brasil - feudalismo versus capitalismo. Naquela obra, apresenta teoria para a compreensão da história colonial e imperial brasileira baseado na apresentação de modo de produção historicamente novo, a saber, o escravismo co-lonial. Foi surpreendentemente escrita em grande parte dentro das celas do Presídio Tiradentes, caracterís-tica da abnegação intelectual de Jacob Gorender.

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gração da revolução na Metrópole, em 1789. As ideias da Revolução Francesa foram acolhidas pelas mentes receptivas da liderança dos escravos rebelados, os jacobinos negros, como os denomina C. L. R. James. Principalmente pelo mais notável líder da rebelião — Toussaint L' Ouverture. Este concebeu o projeto de fazer da ilha de São Domingos um país independente que se aliaria à França revolucionária em pé de igualdade e se converteria num baluarte das ideias mais avançadas no continente americano. O projeto não vingou e Toussaint terminou sua vida tragica-mente. Mas a independência do Haiti se formalizou em 1803, depois que os ex-escravos derrotaram tropas francesas, inglesas e espanholas. O heroísmo dos combatentes negros e a habilidade militar de seus coman-dantes fizeram do Haiti a primeira colônia liberta da opressão estrangeira na América Latina. Mas os africanos e os negros crioulos não puderam escapar de certos condicionamentos históricos que os condenaram ao atraso e aos regimes tirânicos até os dias de hoje. Tendo destruído a produção açu-careira, os ex-escravos se dedicaram a uma agricultura de subsistência, o que os isolou das possibilidades de desenvolvimento, no contexto da economia mundial. A isto acresce a quarentena odiosa a que o Haiti foi submeti-do pelo “pecado original” de ternascido de uma rebelião de escravos, quando o regime escravista ainda era florescente nos Estados Unidos, no Brasil e em Cuba. Para escrever este ensaio, C. L. R. James se apoiou solidamente em fontes historiográficas abundantes e seguras e soube elaborar um texto fluente e cativante. O que toma este Os jacobinos negros um livro precioso não só para estudiosos especializados mas também para todos os que desejam conhecer a História a fim de entender melhor o mundo em que vivem.

Jacob Gorender

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I - A propriedade

Os escravagistas agiam predatoriamente nas costas da Guiné e, as-sim que devastavam uma área, dirigiam-se para o oeste e então para o sul, década após década. Passaram pelo Níger, desceram a costa do Congo, atravessaram Loango e Angola e deram a volta no cabo da Boa Esperança, até chegarem, por volta de 1789, ao distante Moçambique, no lado ori-ental da África. A Guiné era seu principal território de caça. A partir da costa, organizavam expedições que se aprofundavam pelo interior, onde deixavam os inocentes nativos lutando uns contra os outros, com armas modernas, por milhares de quilômetros quadrados de território. A propaganda da época alegava que, por mais cruel que fosse o tráfico, os escravos africanos eram mais felizes na América do que na sua própria civilização africana. A nossa época também é uma época de propaganda. Nós nos sobressaímos aos nossos ancestrais apenas no sistema e na organização; mas eles mentiam com a mesma habilidade e com o mesmo descaramento. No século XVI, a África Central era um território de paz e as suas civilizações eram felizes160. Os comerciantes viajavam milhares de quilô-metros de um lado ao outro do continente sem serem molestados. As guerras tribais, das quais os piratas europeus afirmavam libertar as pes-soas, eram meros simulacros; uma grande batalha significava meia dú-zia de homens mortos. Foi sobre um campesinato, em muitos aspectos superior ao dos servos em amplas áreas da Europa, que o comércio de escravos recaiu. A vida tribal foi destruída e milhões de africanos sem tribos foram jogados uns contra os outros. A interminável destruição da colheita resultou no canibalismo; as mulheres cativas se tornavam con-cubinas e degradavam a condição de esposa. As tribos tinham de suprir o comércio de escravos, ou então elas mesmas seriam vendidas como escravas. A violência e a ferocidade tornaram-se as necessidades para a sobrevivência, e foram a violência e a ferocidade que sobreviveram161. Os crânios sorridentes na ponta de estacas, os sacrifícios humanos, a venda dos próprios filhos como escravos: esses horrores foram o produto de uma intolerável pressão sobre os povos africanos, que se tornavam mais ferozes, no decorrer dos séculos, à medida que a exigência da in-dústria aumentava e os métodos de coerção eram aperfeiçoados. Os escravos eram colhidos no interior, amarrados juntos uns dos outros em colunas, suportando pesadas pedras de 20 ou 25 quilos para evitar as tentativas de fuga; então, marchavam uma longa jornada até o mar, que, algumas vezes, ficava a centenas de quilômetros e, esgota-dos e doentes, caíam para não mais se erguer na selva africana. Alguns

160. Ver os trabalhos do prof. EMIL TORDAY, um dos maiores eruditos de sua época; particularmente uma conferencia realizada em Genebra, em 1931, para uma sociedade de proteção às crianças na África.

161. Ver a conferência do prof. TORDAY mencionada acima.

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eram levados até a costa em canoas, deitados no fundo dos barcos por dias sem fim, com as mãos acorrentadas, as faces expostas ao sol e à chuva tropical e com as costas na água que nunca era retirada do fundo dos botes. Nos portos de escravos, eles permaneciam amontoados em um cercado para a inspeção dos compradores. Dia e noite, milhares de seres humanos eram apinhados em minúsculas galerias nos “depósi-tos de putrefação”, onde nenhum europeu conseguiria permanecer por mais de quinze minutos sem desmaiar. Os africanos desmaiavam e se recuperavam ou, então, desmaiavam e morriam; a mortalidade naqueles “depósitos” era maior do que vinte por cento. Do lado de fora, no porto, esperando para esvaziar os “depósitos” assim que eles enchiam, ficava o capitão do navio negreiro, com a consciência tão limpa que um deles, enquanto enriquecia o capitalismo britânico com os lucros de uma outra remessa, enriquecia também a religião britânica ao compor o hino “Como soa doce o nome de jesus1162”. Nos navios, os escravos eram espremidos nos porões uns sobre os outros dentro de galerias. A cada um deles era dado de um metro a um metro e meio apenas de comprimento e de meio metro a um metro de altura, de tal maneira que não podiam nem se deitar de comprido e nem se sentar com a postura reta. Ao contrário das mentiras que foram espalhadas tão insistentemente sobre a docilidade do negro, as revoltas nos portos de embarcação e a bordo eram constantes. Por isso os es-cravos tinham de ser acorrentados: a mão direita à perna direita, a mão esquerda à perna esquerda, e atrelados em colunas a longas barras de ferro. Nessa posição eles permaneciam durante a viagem, sendo levados ao tombadilho uma vez por dia para se exercitar e para permitir que os marinheiros “limpassem os baldes”. Mas, quando a carga era rebelde ou o tempo estava ruim, eles permaneciam no porão por semanas. A proximidade de tantos corpos humanos nus com a pele machucada e supurada, o ar fétido, a disenteria generalizada e a acumulação de imundícies tornavam esses buracos um verdadeiro inferno. Durante as tempestades, os alçapões eram pregados com tábuas e naquela fechada e repugnante escuridão eles eram arremessados de um lado a outro pelo balanço do navio, mantidos na mesma posição pelas correntes nas suas carnes sangrentas. Nenhum lugar na Terra, observou um escritor da época, concentrou tanta miséria quanto o porão do navio negreiro. Duas vezes por dia, às nove e às quatro horas, eles recebiam a comida. Para os traficantes de escravos, eram artigos de comércio e nada mais. Um capitão, que havia sido apanhado pela calmaria, ou por ventos adversos, ficou conhecido por ter envenenado a sua carga163. Um outro matou uma parte de seus escravos para alimentar com a carne deles a

162. JOHN NEWTON (1725-1807), Olney Hymns 1779, "How sweet me name ofJesus sounds". (N. doT.)

163. Ver PIERRE DE VAISSIERE, Saint-Domingue (1629-1789), Paris, 1909. Este contém um resumo admirável.

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outra parte. Morriam não apenas por causa do tratamento, mas também de mágoa, de raiva e de desespero. Faziam longas greves de fome; de-satavam as suas cadeias e se atiravam sobre a tripulação numa tentativa inútil de revolta. O que poderiam fazer esses homens de remotas tribos do interior, no mar aberto, dentro de um barco tão complexo? Para avi-var-lhes os ânimos, tornou-se costume levá-los ao tombadilho uma vez por dia e obrigá-los a dançar164. Alguns aproveitavam a oportunidade para pular ao mar gritando em triunfo enquanto se afastavam do navio e desapareciam sob a superfície. Por medo da carga, uma crueldade selvagem se desenvolvia na tripulação. Um capitão, para inspirar terror nos escravos, matou um deles e repartiu seu coração, seu fígado e suas entranhas em trezentas partes, obrigando os outros escravos a comê-las, ameaçando aqueles que não o fizessem com o mesmo suplício165. Esses sucessos não eram raros. Devido às circunstâncias, tais acontecimentos eram, e são, inevitáveis. Tampouco o sistema poupava os traficantes de escravos. Todos os anos, um quinto daqueles que toma-vam parte no tráfico africano morria. Toda a América e as Índias Ocidentais compravam escravos. Quando o navio alcançava o porto, a carga era levada para as docas para ser vendida. Os compradores examinavam-na à procura de defei-tos: olhavam os dentes, beliscavam a pele e, ocasionalmente, provavam o suor para ver se o sangue do escravo era puro e se a sua saúde era tão boa quanto a sua aparência. Algumas mulheres, fingindo curiosidade, examinavam os escravos de tal maneira que, se usassem da mesma liberdade com um cavalo, seriam escoiceadas por vinte metros ao longo das docas. Mas os escravos tinham de suportar. Então, para recuperar a dignidade que pudesse ter perdido após realizar um exame tão íntimo, a compradora cuspia na face do escravo. Tendo-se tornado propriedade de seu dono, ele era marcado em ambos os lados do peito com um ferro em brasa. As suas tarefas eram-lhe explicadas por um intérprete e um padre o instruía nos primeiros princípios do cristianismo166? O forasteiro em São Domingos era acordado pelo estalo do chi-cote, pelos gritos sufocados e gemidos profundos dos pretos que viam o sol surgir apenas para amaldiçoá-lo por mais um dia de trabalho e de sofrimento. As suas tarefas começavam ao raiar do dia; às oito horas,

164. Ver o poema ‘D navio negreiro”, de CASTRO ALVES: “Era um sonho dantesco ... O tombadilho \ Que das luzernas avermelha o brilho, \ Em sangue a se banhar. \ Tinir de ferros ... estalar do açoite ... \ Legiões de homens negros como a noite, \ Horrendos a dançar ... ( .. ) Presa nos elos de uma só cadeia, \ A multidão faminta cambaleia, \ E chora e dança ali! ( .. ) No entanto o capitão C .. ) \ Diz do fumo entre os densos nevoeiros: \ ‘Vibrai rijo o chicote, marinheiros! \ Fazei-os mais dançar!. .. “’. (N. do T.)

165. DE VAISSIERE, Saint-Domingue, p. 162.

166. Esse era o começo e o fim de sua educação.

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eles paravam para um rápido desjejum e trabalhavam de novo até o meio-dia. Retomavam às duas horas e seguiam até tarde, algumas vezes até as dez ou onze horas da noite. Um viajante suíço166 deixou-nos uma famosa descrição das turmas de escravos no trabalho: “Eram aproxima-damente cem homens e mulheres de diferentes idades, todos ocupados em escavar valas em uma plantação de cana; a maioria deles estava nua ou coberta apenas por trapos. O sol brilhava com toda a força sobre suas cabeças; o suor rolava de todas as partes dos seus corpos; seus membros, dobrados pelo calor, fatigados pelo peso das picaretas e pela resistência do solo argiloso cozido sob o sol tropical, duro o bastante para quebrar as ferramentas, faziam um esforço excessivo para vencer qualquer obstá-culo. Um silêncio lúgubre reinava. A exaustão estava estampada em cada face, e a hora do descanso não havia chegado ainda. O olho sem piedade do encarregado de patrulhar o grupo de escravos e os capatazes arma-dos de longos chicotes moviam-se periodicamente entre eles dando ver-gastadas cortantes naqueles que, esgotados pela fadiga, eram obrigados a descansar: homens ou mulheres, crianças ou velhos”. Esse não era um quadro isolado: as culturas de açúcar demandavam um trabalho árduo e contínuo. A terra tropical é cozida e endurecida pelo sol. Em volta de toda a carreira de terra destinada para a cana era necessário cavar uma larga vala para assegurar a circulação de ar. Os brotos de cana exigiam cuidados nos primeiros três ou quatro meses e atingiam a maturidade entre quatorze e dezoito meses. A cana podia ser plantada e crescia em qualquer época do ano, e a primeira colheita era o sinal para a ime-diata escavação das valas e para um novo plantio. Uma vez cortadas, eram levadas imediatamente para o moinho para evitar que o seu suco se tornasse ácido pela fermentação. A extração desse suco e a manufa-tura do açúcar bruto continuavam durante três semanas em um mês, de dezesseis a dezoito horas por dia, e eram realizadas durante sete ou oito meses por ano. Colocados para trabalhar como animais, os escravos eram alo-jados também como animais em cabanas construídas ao redor de uma praça, com provisões e frutas. O tamanho dessas cabanas variava de sete a oito metros, com aproximadamente quatro metros de largura por cinco de comprimento, divididas em dois ou três cômodos, separados por precárias divisórias. Não havia janelas e a luz entrava apenas pela porta. O chão era de terra batida; a cama, de palha, de peles ou apenas uma tosca rede estendida entre dois postes. Nelas, dormiam indiscrimi-nadamente a mãe, o pai e as crianças. Indefesos contra os seus senhores, eles enfrentavam o trabalho excessivo, que tinha como complemento habitual uma alimentação fraca. O Código Negro, uma tentativa de Luís XIV para assegurar aos escravos um tratamento humano, estabelecia que deveriam ser-lhes dados, todas as semanas, dois potes e meio de man-dioca, três de farinha, um quilo de carne salgada ou um quilo e meio de

167. GIROD-CHANTRANS, Voyage d’un suisse en diferentes colonies, 1785, p. 137

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peixe conservado em sal, que era aproximadamente o que um homem saudável precisava para três dias. Em vez disso, os seus senhores lhes da-vam três litros de uma farinha grossa, arroz, ou ervilhas e meia dúzia de arenques. Esgotados pelas suas tarefas que duravam o dia todo e iam até altas horas da noite, muitos não se animavam a cozinhar e acabavam por comer a comida crua. A ração era tão pequena e dada tão irregularmente que, com frequência, na última metade da semana não comiam nada. Mesmo as duas horas que lhes eram dadas na metade do dia, os domingos e os feriados não serviam para o descanso, mas para que cul-tivassem uma pequena porção de terra para complementar a sua ração incerta. Os escravos que trabalhavam duro cultivavam vegetais e criavam galinhas para vender nas cidades, conseguindo algum dinheiro para com-prar rum e tabaco; aqui e acolá, um Napoleão das finanças, fosse por sorte ou por talento, poderia levantar o bastante para comprar a própria liberdade. Seus senhores os encorajavam nessa prática de cultivo, pois nos anos de escassez os negros morriam aos milhares, as epidemias estoura-vam, os escravos fugiam para a floresta e as plantações eram arruinadas. A dificuldade consistia no fato de que, embora fossem apanha-dos como animais, transportados em cercados, atrelados para trabalhar ao lado de um cavalo ou de um burro sendo ambos feridos pelo mesmo chicote, colocados em estábulos e deixados para morrer de fome, eles permaneciam, apesar de suas peles negras e dos seus cabelos encara-colados, quase irresignavelmente seres humanos; com a inteligência e os rancores dos seres humanos. Para amedrontá-los e tomá-los dóceis era necessário um regime de calculada brutalidade e de terrorismo, e é isso o que explica o extraordinário espetáculo de proprietários despreo-cupados em preservar as suas propriedades: tinham antes de cuidar da própria segurança. Pela menor falta, os escravos recebiam a mais dura punição. Em 1685, o Código Negro autorizara o chicote, e em 1702 um tolonista, um marquês, acreditava que qualquer punição que demandasse mais de cem chibatadas era o suficiente para ser levada às autoridades. De-pois, o número foi fixado em 39, subindo mais tarde para cinquenta. Mas os senhores não prestavam atenção a essas regras e os escravos eram, não muito raramente, açoitados até a morte. O flagelo não era uma simples cana ou uma corda tecida, como determinava o Código. Algumas vezes, era substituída pelo rigoise ou correia grossa de couro de vaca, ou então pelas lianes, que eram juncos que cresciam no local, flexíveis e maleáveis como barbatanas de baleia. Os escravos recebiam o chicote com mais regularidade e certeza do que recebiam a comida. Era o incentivo para o trabalho e o zelador da disciplina. Mas não havia engenho que o medo ou uma imaginação depravada não pudesse con-ceber para romper o ânimo dos escravos e satisfazer a luxúria e o res-sentimento de seus proprietários e guardiães: ferros nas mãos e nos pés; blocos de madeira, que os escravos tinham de arrastar por onde quer que fossem; a máscara de folha de lata, projetada para evitar que eles

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comessem a cana-de-açúcar, e o colar de ferro. O açoite era interrom-pido para esfregar um pedaço de madeira em brasa no traseiro da vítima; sal, pimenta, cidra, carvão, aloé e cinzas quentes eram deitadas nas fe-ridas abertas. As mutilações eram comuns: membros, orelhas e, algumas vezes, as partes pudendas para despojá-los dos prazeres aos quais eles poderiam se entregar sem custo. Seus senhores derramavam cera quente em seus braços, mãos e ombros; despejavam o caldo fervente da cana nas suas cabeças; queimavam-nos vivos; assavam-nos em fogo brando; enchiam-nos de pólvora e os explodiam com uma mecha; enterravam-nos até o pescoço e lambuzavam as suas cabeças com açúcar para que as moscas as devorassem; amarravam-nos nas proximidades de ninhos de formigas ou de vespas; faziam-nos comer os próprios excrementos, beber a própria urina e lamber a saliva dos outros escravos. Um senhor ficou conhecido por, em momentos de raiva, lançar-se sobre os seus escravos e cravar os dentes em suas carnes168. Essas torturas, tão bem comprovadas, eram habituais ou meros incidentes isolados, extravagâncias de uns poucos colonistas meio malu-cos? Embora seja impossível verificar as centenas de casos, as evidên-cias mostram que essas práticas bestiais eram características normais da vida do escravo. A tortura com o chicote, por exemplo, tinha “milhares de requintes”, mas havia variedades tão comuns que recebiam nomes especiais. Quando as mãos e os braços eram amarrados a quatro postes fincados no chão, dizia-se que o escravo estava submetido aos “quatro postes”; se o escravo ficava amarrado a uma escada, era a “tortura da escada”; se suspenso pelos quatro membros, era a “rede de dormir” etc. A mulher grávida não era tampouco poupada aos “quatro postes”; um buraco era cavado na terra para acomodar a criança ainda não nascida. A tortura da argola estava especialmente reservada para as mulheres sus-peitas de aborto, e nunca era retirada de seus pescoços até que paris-sem a criança. Explodir um escravo tinha uma expressão: “queimar um pouco de pólvora no rabo de um preto”. Obviamente, não se tratava apenas de uma perversão, mas de uma prática estabelecida. Após um exame exaustivo, o melhor que De Vaissiere pôde dizer foi que havia bons e maus senhores e a sua impressão, “mas apenas uma impressão”, era a de que aqueles eram mais numerosos do que estes. Há, e sempre haverá, os que, envergonhados do comportamento de seus antepassados, tentam, e tentarão, provar que a escravidão não era assim tão ruim, apesar de tudo; que seus males e suas crueldades residiam no exagero de propagandistas e não na sorte habitual dos es-cravos. Homens dirão (e aceitarão) qualquer coisa para fomentar o or-gulho nacional ou aliviar uma consciência pesada. Sem dúvida, havia

168. Saint-Domingue, p. 153-94. DE VAISSltRE utiliza-se principalmente de relatos oficiais dos ar-quivos da França Colonial, além de outros documentos do período, fornecendo a referência específica em cada caso.

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outros senhores que não praticavam tais requintes de crueldade e cujos escravos sofriam apenas pelo excesso de trabalho, de desnutrição e por causa do chicote. Entretanto, os escravos em São Domingos não podiam repor o próprio número pela reprodução. Após aquela terrível viagem pelo oceano, era comum que as mulheres ficassem estéreis durante dois anos. A vida em São Domingos matava-as com rapidez. Os colonistas deliberadamente faziam-nas trabalhar até a morte, sem esperar as crian-ças crescerem. Mas os apologistas profissionais eram auxiliados pelos escritos de uns poucos observadores da época que descreviam cenas de beleza idílica. Um deles foi Vaublanc, a quem deveremos encontrar de novo, e cujos testemunhos entenderemos melhor quando soubermos mais sobre ele. Em suas memórias169 ele nos mostra uma plantação na qual não existiam prisões, nem masmorras e tampouco punições a serem mencionadas. Se o escravo estava nu, devido ao clima, isso não constituía um mal, e aqueles que se queixavam esqueciam-se dos trapos bastante nojentos que eram vistos com tanta frequência na França. Os escravos estavam livres dos trabalhos insalubres, fatigantes e periculosos como aqueles realizados pelos trabalhadores na Europa. Eles não tinham de descer nas entranhas da terra, nem de cavar poços profundos; não cons-truíam galerias subterrâneas; não trabalhavam naquelas fábricas onde os trabalhadores franceses respiravam um ar mortífero e infectado; não subiam em telhados altos e nem carregavam fardos enormes. Os escravos, ele concluía, tinham um trabalho leve para fazer e estavam contentes em fazê-lo. Vaublanc, que em São Domingos mostrava-se tão compadecido dos sofrimentos dos trabalhadores na França, teve de fugir às pressas de Paris, em agosto de 1792, para escapar à ira dos operários franceses. Malouet, que era funcionário nas colônias e o colega reacionário de Vaublanc, contrário a qualquer mudança nas colônias, também pro-curava dar uma ideia dos privilégios da escravidão. A primeira coisa que notou foi que o escravo, ao atingir a maioridade, começava a desfrutar “dos prazeres do amor”, e seu senhor não tinha interesse em evitar que ele se apegasse a esses gostos170. A defesa da propriedade pode levar até mesmo um homem inteligente, conhecido em sua época por ter com-paixão dos negros, a tais loucuras atrevidas. A maioria dos escravos se acostumava a essa incessante brutali-dade devido a um profundo fatalismo e a uma estupidez brutal diante de seus senhores. - Por que tu maltratas tua mula desse jeito? perguntou um colonista a um

carreteiro. - Se eu não trabalho, eu apanho; se ela não trabalha, eu bato nela. Ela

é meu negro!

169. Citadas exaustivamente por DE VAISSIERE, p. 198-202.170. DE VAISSIERE, p. 196.

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Um velho negro, que teve a orelha decepada e estava condenado a ter a outra decepada também, implorou ao Governador para poupá-lo, pois se ela fosse cortada ele não teria onde colocar o seu toco de cigarro. Um escravo, mandado por seu senhor ao jardim do vizinho para roubar, foi apanhado e levado de volta ao homem que apenas alguns minutos antes o enviara àquela missão. O seu senhor ordenou que lhe fossem dadas cem chibatadas, às quais o escravo submeteu-se sem se-quer murmurar. Quando apanhados em delito, eles persistiam em negar com a mesma estupidez fatalista. Um escravo foi acusado de roubar uma pomba. Negou. A pomba foi descoberta escondida sob a sua camisa.

- Que pombinha esperta! Pegou minha camisa para fazer um ninho! Apalpando a camisa de outro escravo, um senhor pôde sentir as batatas

que aquele negara ter roubado. - Não são batatas, dizia, são pedras! Quando foi despido, as batatas caíram no chão. - Ei, amo, o diabo é malandro. Eu coloquei pedras e, olhe, o senhor en-

controu batatas! Durante os feriados, quando não estavam trabalhando em suas hortas particulares, ou dançando, sentavam-se por horas a fio em frente às suas choças sem aparentar sinais de vida. Esposas e maridos, crianças e pais, eram separados de acordo com a vontade do senhor; e um pai e um filho, que se encontraram depois de muitos anos, não se saudaram e nem sequer demonstraram algum sinal de emoção. Muitos escravos nem mesmo se mexiam, a não ser que fossem vergastados171. O suicídio era um hábito comum, e era tal o desprezo que tinham pela existência que, muitas vezes, os escravos tiravam a própria vida não por motivos pessoais, mas apenas para irritar os seus donos. Viver era duro e a morte, acredita-vam, significava não apenas a libertação mas a volta à África. Aqueles que queriam acreditar e convencer o mundo de que os escravos eram brutos e semi-humanos, condizentes apenas com a escravidão, podiam encontrar amplas evidências para essa crença, sobretudo nessa sua mania homicida. Envenenamento era o seu método. Uma amante envenenaria a sua rival para conservar o valioso afeto de seu senhor inconstante. Uma amante rejeitada poderia envenenar o seu senhor, bem como a esposa, os filhos e os escravos dele. Um escravo, privado de sua esposa por um de seus senhores, poderia envenená-lo, e esse era um dos motivos mais frequentes para o envenenamento172. Se um colonista alimentasse uma

171. Embora possa parecer incrível, o barão de Wimpffen dá esses fatos como testemunhados pelos seus próprios olhos. Seus registros da visita a São Domingos, em 1790, é um trabalho clássico. Uma boa seleção, com várias notas completas, foi publicada com o título Saint-Domingue à Ia veille de Ia Révolution, por Albert Savine, Paris, 1911.

172. Ver Kenya do dr. NORMAN LEYS, Londres, 1926, p. 184: ‘’Alguma rivalidade em relação a uma mulher nativa seria a provável explicação para muitos dos crimes de violência cometidos pelos africanos contra os europeus no Quênia”.

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paixão por uma jovem escrava, a mãe desta poderia envenenar a esposa dele, com a intenção de colocar sua filha no comando das tarefas domésti-cas. Os escravos envenenariam as crianças mais novas dos senhores para assegurar que a herança da propriedade recaísse em apenas um filho. Por esse meio, eles evitavam que a plantação fosse dividida em várias proprie-dades dispersando o seu grupo. Em certas fazendas, os escravos dizimavam a sua própria população por envenenamento com a finalidade de mantê-la pequena e evitar que os seus senhores os colocassem em projetos mais amplos que poderiam aumentar o trabalho. Por essa razão, um escravo envenenaria a própria esposa; outro, as próprias crianças. Uma enfermeira negra declarou no tribunal que durante anos vinha envenenando todas as crianças que ela ajudava a trazer ao mundo. Enfermeiras empregadas em hospitais envenenavam soldados doentes para se livrar da tarefa desa-gradável de assisti-los, Os escravos poderiam mesmo envenenar a proprie-dade de um senhor querido. Se ele estivesse indo embora, envenenavam as vacas, os cavalos e as mulas; assim, as plantações eram deixadas em desordem e o senhor amado era obrigado a permanecer. O mais terrível de todos esses assassinatos a sangue-frio era, porém, a “doença da man-díbula”, uma doença que atacava apenas as crianças nos primeiros dias de suas vidas. As suas mandíbulas ficavam de tal maneira fechadas que era impossível abri-las para que a criança pudesse ingerir alguma coisa, e em consequência disso acabavam morrendo de fome. Não era uma doença natural e nunca atacava crianças de mulheres brancas. Apenas as parteiras negras poderiam causá-la, e acredita-se que elas realizavam uma pequena operação nos recém-nascidos que resultava na “doença da mandíbula”. Qualquer que fosse o método, essa doença causava a morte de aproxima-damente um terço das crianças nascidas nas fazendas. Qual era o nível intelectual desses escravos? Os colonistas, que os odiavam, chamavam-nos de todos os nomes infames que pudessem imaginar. “Os negros”, diz um relato publicado em 1789, “eram injus-tos, cruéis, bárbaros, semi-humanos, traiçoeiros, pérfidos, ladrões, be-berrões, arrogantes, preguiçosos, sujos, sem-vergonhas, furiosamente ciumentos e covardes.” Era devido a sentimentos como esses que eles procuravam justificar as crueldades abomináveis que praticavam. E to-mavam muito cuidado para que o negro permanecesse a fera bruta que eles queriam que fosse. ‘’A segurança dos brancos exigia que mantivé-ssemos os negros na mais profunda ignorância. Cheguei ao ponto de acreditar firmemente que os negros deveriam ser tratados como ani-mais.” Essa era a opinião do Governador de Martinica, expressa em uma carta ao ministro, e essa era também a opinião de todos os colonistas. Com exceção dos judeus, que não poupavam energias para converter os seus escravos em israelitas, a maioria dos colonistas mantinha religiosa-mente qualquer instrução, fosse ela religiosa ou não, longe dos escravos. Naturalmente, havia todo tipo de homem entre eles, desde anti-gos chefes tribais, como era o caso do pai de Toussaint L’Ouverture, até homens que tinham sido escravos em seus próprios países. O crioulo

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era mais dócil do que o escravo nascido na África. Alguns diziam que era mais inteligente. Outros duvidavam que houvesse muitas diferenças, ainda que o escravo crioulo conhecesse a língua e estivesse mais familia-rizado com o ambiente e com o trabalho. Contudo, aqueles que se deram ao trabalho de observá-los longe de seus senhores e no convívio entre si não deixaram de ver a extraordinária agilidade intelectual e a vivacidade espiritual que tanto distingue seus descendentes nas índias Ocidentais de hoje. O padre Du Tertre, que os conhecia bem, observou o orgulho secreto e o sentimento de superioridade que tinham em relação aos seus senhores; a diferença entre o comportamento que assumiam diante dos seus senhores e aquele que tinham longe deles. De Wimpffen, observador excepcional e destro viajante, ficou também admirado com essa dupla personalidade dos escravos: “É preciso ouvir com que calor e com que verbosidade, combi-nados com uma grande precisão de ideias e acuidade de julgamento, essa criatura, pesada e taciturna durante todo o dia, agora agachada perto da fogueira, conta histórias, conversa, gesticula, argumenta, opina, aprova e condena tanto o seu senhor como qualquer um à sua volta”. Era essa in-teligência que se recusava a ser esmagada, essas possibilidades latentes, que assustava os colonistas, como continua a assustar os brancos na África de hoje. “Nenhuma espécie de homem possui mais inteligência”, escreveu Hilliard d’Auberteuil, um colonista, em 1784, e o seu livro foi proibido. Mas não é preciso nem educação, nem coragem para nutrir um sonho de liberdade. Nas suas cerimônias de vodu, seu culto africano, à meia-noite, eles dançavam e cantavam geralmente esta canção predileta:

Ê! Ê! Bomba! Heu! Heu! Canga, bafio té! Canga, mouné de lé! Canga, do lei Ia! Canga, li!

“Juramos destruir os brancos e tudo o que possuem; que mor-ramos se falharmos nesta promessa!” Os colonistas conheciam essa canção e tentaram eliminá-la, bem como o culto do vodu com o qual ela estava associada. Foi inútil. Por mais de duzentos anos, os escravos cantaram-na em suas reuniões, da mesma maneira que os judeus cantavam na Babilônia as saudades de Sião173, e como hoje os bantos cantam em segredo o hino nacional da África174.

173. Salmo 136 (137) da Bíblia: «Junto dos rios de Babilônia, ali nos assentamos e pusemos a chorar, lembrando-nos de Sião». (Tradução do pe. FIGUElREDO.) Um dos temas mais recorrentes da literatura, vemo-lo no poema “Super Flumina Babylonis”, do inglês A. C. SWINBURNE: “By the toaters ofBabylon toe sat down and wept, / Remembering thee, / That for ages of agony hast endured, and slept, / And toouldst not see; e no fabuloso “Babei e Sião”, de CAMÕES: «Sôbolos rios que vão I Por Babilônia, me achei, I Onde sentado chorei I as lembranças de Sião». Aparece também na ópera Nabuco, de G. VERDI, no coro Va pensiero e também em um poema de BYRON. (N. do T.)

174. Tais observações, escritas em 1938, pretendiam usar a revolução de São Domingos como um prenúncio para o futuro colonial da África.

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Nem todos os escravos, entretanto, submetiam-se a esse regime. Havia uma pequena casta privilegiada: capatazes das turmas, cocheiros, cozinheiros, criados, arrumadeiras, enfermeiras, companhias femininas e outros criados domésticos. Esses retribuíam o tratamento gentil que recebiam e a vida comparativamente fácil com um forte apego aos seus senhores, o que permitiu que historiadores tory175, distintos professores e sentimentalistas representassem a escravidão nas fazendas como uma relação patriarcal entre senhores e escravos. Impregnados dos vícios de seus senhores e senhoras, esses serventes de altos postos davam-se ares de arrogância e desprezavam os escravos do eito. Vestidos com roupas de seda com bordados, enjeitadas pelos seus senhores, davam bailes nos quais, como macacos amestrados, dançavam minuetos e quadrilhas e faziam mesuras e reverências ao modo de Versalhes. Mas um pequeno número deles aproveitava essa posição para se educar, adquirir um pou-co de cultura e aprender tudo o que pudesse. Os líderes das revoluções foram geralmente aqueles que tiveram a capacidade de lucrar com o benefício da cultura do sistema que combatiam, e a revolução de São Domingos não foi uma exceção a essa regra. Christophe, mais tarde Imperador do Haiti, era um escravo que trabalhava como servente em um hotel público em Cabo François e, nessa função, aproveitou para adquirir conhecimentos sobre as pessoas e sobre o mundo. Toussaint L’Ouverture176 também pertenceu a essa pequena casta privilegiada. Seu pai, filho de um pequeno chefe na Áfri-ca, depois de aprisionado na guerra, foi vendido como escravo e fez a viagem em um navio negreiro. Foi comprado por um colonista com uma certa sensibilidade que, reconhecendo que esse negro era uma pessoa fora do comum, permitiu-lhe gozar de um pouco de liberdade na fazen-da e deu-lhe cinco escravos para cultivar uma horta. Tornou-se católico, casando-se com uma mulher que, além de bonita, também era uma boa pessoa, e Toussaint seria o mais velho entre os oito filhos do casal. Perto da casa-grande, vivia um velho negro chamado Pierre Baptiste, notável pela sua integridade de caráter e dotado de algum conhecimento. Os negros falavam um baixo francês conhecido por créole. Mas Pierre sa-bia francês, um pouco de latim e também um pouco de geometria, que tinha aprendido com um missionário. Pierre Baptiste tornou-se padrinho de Toussaint e ensinou ao afilhado os rudimentos do francês. Utilizando-se dos serviços da Igreja católica, instruiu-o nos rudimentos do latim. Toussaint aprendeu também a desenhar. O jovem escravo cuidava dos rebanhos e das manadas, e essa foi a sua primeira ocupação. Seu pai, porém, como muitos outros africanos, tinha um certo conhecimento so-bre plantas medicinais e ensinou a Toussaint o que sabia. Os elementos de uma educação, seu conhecimento sobre ervas e sua inteligência fora

175. Os conservadores, que se sentavam à direita no Parlamento inglês. (N. do T.) 176. Quando escravo, era chamado de Toussaint Bréda.

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do comum fizeram com que ele se destacasse e se tornasse cocheiro de seu senhor. Isso proporcionou-lhe meios adicionais de conforto e para poder educar-se a si mesmo. Por fim, foi designado administrador de todos os bens vivos da fazenda, o que era um cargo de responsabilidade, normalmente ocupado por um branco. Se a genialidade de Toussaint veio de onde vêm os gênios, por outro lado várias circunstâncias contribuíram para que ele tivesse pais excepcionais, amigos e um senhor gentil. Mas o número de escravos que ocupavam posições com tais oportunidades era infinitamente pequeno em comparação às centenas de milhares que suportavam nas suas costas arqueadas toda a estrutura social de São Domingos. Nem todos submetiam-se a isso. Aqueles cuja audácia de espírito via a escravidão como uma coisa intolerável e se recusavam a deixá-la pelo caminho do suicídio acabavam fugindo para as montanhas e florestas, onde formavam bandos de homens livres, os quilombolas. Fortificavam seus refúgios com paliçadas e valas. As mu-lheres os seguiam. Eles se reproduziam. E durante os cem anos que an-tecederam 1789 os quilombolas representaram uma fonte de perigos para a colônia. Em 1720, mil escravos fugiram para as montanhas; em 1751, havia pelo menos três mil deles. Normalmente formavam bandos separados, mas periodicamente encontravam um chefe que era forte o suficiente para unir os diferentes agrupamentos. Muitos desses líderes rebeldes inspiravam terror no coração dos colonistas devido às suas in-cursões nas fazendas e à força e determinação da resistência organizada por eles contra as tentativas de exterminá-los. O maior desses chefes foi Mackandal175. Mackandal concebeu o audacioso plano de unir os negros e ex-pulsar os brancos da colônia. Era um negro vindo da Guiné, que tinha sido escravo no distrito de Limbé, o qual mais tarde se tornaria um dos grandes centros da revolução. Mackandal era um orador, na opinião de um branco contemporâneo, e com a mesma eloquência dos oradores europeus daqueles dias, diferente apenas na força e no vigor, em que lhes era superior. Destemido, embora maneta devido a um acidente, tinha uma fortaleza de espírito que sabia preservar mesmo em meio à mais cruel das torturas. Ele dizia poder prever o futuro; como Maomé, teve revelações; convenceu seus seguidores de que era imortal e exercia sobre eles um tal domínio que consideravam uma honra servi-lo de joelhos. As mulheres mais formosas brigavam pelo privilégio de serem admitidas em seu leito. O seu bando não saía apenas para pilhar fazendas por toda a parte, mas o próprio chefe percorria essas fazendas para converter es-cravos para o seu bando, estimular seus seguidores e aperfeiçoar o seu grande plano de destruição da civilização branca de São Domingos. Uma massa sem instrução, percebendo a possibilidade da revolução, começa normalmente pelo terrorismo, e Mackandal visava libertar seu povo por

175. Mackandal faz parte do romance do cubano ALEJO CARPENTIER EI reino de este mundo, cujo cenário é, principalmente, o Haiti da época da revolução. (N. do T.)

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meio do envenenamento. Durante seis anos, construiu sua organização, e ele e seus seguidores envenenavam não apenas brancos mas membros desobedientes do próprio bando. Então, planejou que em determinado dia a água de todas as casas na capital da província seria envenenada, e os brancos seriam atacados durante as suas convulsões e angústias de morte. Possuía listas com todos os membros de seu partido em cada um dos bandos de escravos; designou capitães, tenentes e outros oficiais; dispôs que os bandos de negros deveriam deixar a vila e se espalhar pela planície para massacrar os brancos. A sua temeridade foi a causa da sua queda. Um dia, ele foi até uma fazenda, embebedou-se e foi traído. Capturado, foi queimado vivo. A revolta de Mackandal não se realizou e foi o único indício de uma tentativa de revolta organizada durante os cem anos que prece-de-ram a Revolução Francesa. Os escravos pareciam eternamente resigna-dos, embora de vez em quando um escravo fosse alforriado ou com-prasse a própria liberdade de seu dono. Dos seus senhores não partia nenhuma conversa sobre uma futura emancipação. Os colonistas de São Domingos diziam que a escravidão era necessária, e para eles o assunto estava encerrado. A legislação sobre a proteção dos escravos existia ape-nas no papel, devido à regra que reza que um homem pode fazer o que quiser com a sua propriedade. “Todas as leis a favor dos negros, por mais humanas e justas que possam parecer, significarão sempre uma violação dos direitos de propriedade se não forem patrocinadas pelos colonistas (...). Todas as leis sobre propriedade são justas apenas se apoiadas pela opinião daqueles que estão interessados nelas como proprietários.” Essa era ainda a opinião dos brancos no começo da Revolução Francesa. Não apenas os fazendeiros mas as autoridades deixaram bem claro que, quaisquer que fossem as penas para os maus-tratos aos escravos, elas nunca seriam aplicadas. Os escravos poderiam entender que tinham di-reitos, o que seria fatal para a paz e para o bem da colônia. Eis por que um colonista nunca hesitava em mutilar ou em matar um escravo que lhe tinha custado milhares de francos. “A Costa do Marfim é uma boa mãe”, dizia um provérbio colonial. Os escravos poderiam ser sempre comprados e os lucros seriam sempre altos. O Código Negro foi promulgado em 1685. Um século depois, em 1788, o caso Le Jeune176 expôs as verdades da lei do escravo e da justiça do escravo em São Domingos. Le Jeune era um plantador de café de Plaisance. Suspeitando que a mortalidade entre os seus negros era devida ao envenenamento, matou quatro deles e tentou extrair confissões de duas mulheres sob tortura. Queimou seus pés, pernas e cotovelos, enquanto as mantinha bem amordaçadas, e então retirava, nos intervalos da tortura, a mordaça na expectativa de que confessassem. Ele não obteve nada e ameaçou

176. DE VAISSIERE, p. 186-8.

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todos aqueles escravos que entendiam o francês de que iria matá-los sem piedade se eles se atrevessem a denunciá-lo. Mas Plaisance, na densamente povoada Província do Norte, sempre foi o centro dos escra-vos mais avançados, e quatorze deles foram até Le Cap e denunciaram Le Jeune à Justiça. Os juízes não puderam fazer nada além de aceitar as acusações. Nomearam uma comissão que investigou a fazenda de Le Jeune e confirmou o testemunho dos escravos. A comissão encontrou de fato as duas mulheres trancafiadas e acorrentadas, ainda vivas, mas com as pernas e cotovelos em decomposição; uma delas tinha o pescoço tão dilacerado por uma argola de ferro que não conseguia sequer engolir. Le Jeune insistia que eram culpadas pelos envenenamentos que havia tanto tempo vinham devastando a sua fazenda, e como prova forneceu uma caixa apanhada em posse das mulheres. Isto, ele disse, contém veneno. Mas, quando a caixa foi aberta, descobriram que não continha nada além de tabaco comum e fezes de rato. A defesa tornou-se impos-sível e, quando as duas mulheres morreram. Le Jeune desapareceu bem a tempo, antes de ser levado para a prisão. O caso estava esclarecido. Na audiência preliminar, os quatorze negros repetiram as acusações que fizeram anteriormente, palavra por palavra. Contudo, sete brancos tes-temunharam a favor de Le Jeune e dois de seus ajudantes absolveram-no de todas as acusações. Os colonistas de Plaisance encaminharam uma petição ao Governador e ao intendente em proveito de Le Jeune e exigiram que a cada um dos escravos fossem dadas cinquenta chibata-das por tê-lo denunciado. A Câmara Agrícola de Le Cap pediu que Le Jeune fosse simplesmente banido da colônia. Setenta colonistas do Norte impetraram uma petição parecida e o Círculo de Filadélfia, um centro cultural de São Domingos, recebeu uma solicitação para que fosse feita uma representação em proveito de Le Jeune. O pai de Le Jeune encami-nhou um mandado de intervenção contra um dos investigadores oficiais cujas provas ele impugnou. “Resumindo”, escreveram o Governador e o intendente ao ministro, “parece que a segurança da colônia depende da absolvição de Le Jeune”. Dependia, se os escravos fossem mantidos no seu próprio lugar. Os juízes, após inúmeros adiamentos, deram um veredicto contrário; as acusações foram declaradas nulas e sem efeito e o caso foi encerrado. O promotor público teve de requerer um apelo perante o Conselho Supremo de Porto Príncipe, a capital oficial da ilha. Todos os brancos de São Domingos ergueram-se em armas. O intendente nomeou o membro mais velho do Conselho como relator, imaginando que ele pudesse assegurar que a justiça fosse feita. Mas no dia do julga-mento, temendo uma condenação, ele próprio se ausentou, e o Conselho mais uma vez absolveu Le Jeune. O Governo local podia aprovar as leis que bem entendesse. A São Domingos branca não toleraria nenhuma interferência nos seus métodos de manter os escravos em ordem. Era esse o problema a ser resolvido. Esperanças vindas dos colonistas não havia. Na França, o libe-ralismo continuava sendo uma aspiração e a “curadoria”, sua folha de

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parreira, era ainda desconhecida. Mas na maré do humanitarismo que subia na revolta da burguesia contra o feudalismo, Diderot e os enciclo-pedistas atacavam a escravidão. “Deixemos as colônias serem destruídas antes que nos tornemos a causa de tantos males”, dizia a Enciclopédia177

em seu artigo sobre o comércio de escravos. Mas tais ímpetos nem antes e nem então produziram muito efeito. Qualquer ataque verbal contra a escravidão provocava a mofa dos observadores, que nem sempre era injusta. Os seus autores eram comparados a médicos que, em vez de re-ceitar um remédio a um paciente, maldiziam a doença que o consumia. Mas entre esses oponentes literários à escravidão havia um que, nove anos antes da queda da Bastilha, clamava por uma revolução de escravos com a apaixonada convicção de que era certo que ela viria para libertar a África e os africanos um dia. Era um religioso, o padre Raynal, e ele pregou a sua doutrina revolucionária na História filosófica e política dos estabelecimentos e do comércio dos europeus nas duas Índias. Era um livro famoso em sua época e foi parar nas mãos do escravo mais apto a fazer uso dele: Toussaint L’Ouverture. ‘A liberdade natural é o direito que a natureza proporcionou para todos disporem de si mesmos de acordo com a sua própria vontade.” “O escravo, um instrumento nas mãos da perversidade, está abaixo do cachorro que os espanhóis soltaram contra os povos americanos.” “Essas verdades são eternas e memoráveis: os fundamentos de toda a moral, a base de todos os governos; poderão ser contestadas? Sim!” E a passagem mais conhecida: “Se apenas o interesse pessoal predomina entre as nações e os seus senhores, é porque um outro poder existe. A natureza fala em sons mais fortes do que a filosofia ou do que o interesse pessoal. Já existem duas colônias estabelecidas de negros fugitivos onde a força e os trata-dos protegem-nas de serem tomadas. Esses relâmpagos anunciam o trovão. Um comandante corajoso é tudo de que precisam. Onde está esse grande homem que a Natureza deve aos seus molestados, oprimi-dos e atormentados filhos? Onde está? Ele aparecerá, não duvidem! Ele apresentar-se-á erguendo o estandarte da liberdade. Esse venerável sinal reunirá em torno dele os companheiros dos seus infortúnios. Mais im-petuosos do que as torrentes, eles deixarão em todas as partes a marca indelével do seu justo ressentimento. Em todas as partes, as pessoas abençoarão o nome do herói que terá restabelecido os direitos da raça humana; em todas as partes, erguerão troféus em sua homenagem”. Toussaint leu a passagem inúmeras vezes: “Um comandante corajoso é tudo de que precisam. Onde está?”. Um comandante corajo-so era preciso. É da tragédia dos movimentos de massa que eles necessi-tam, mas apenas raramente conseguem encontrar a liderança adequada. Contudo, era preciso muito mais do que isso.

177. Enciclopédia: publicação francesa da era do Iluminismo, e sua obra principal, dirigida por D’Alernbert e Diderot, contou com a colaboração de vários pensadores do século XVIII. (N. do T.)

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Os homens fazem a sua própria história. E os jacobinos negros de São Domingos fariam a história que mudaria o destino de milhões de homens e o curso econômico de três continentes. Todavia, se é possível aproveitar uma oportunidade, não é possível cria-la. O comércio de es-cravos e a escravidão estavam firmemente entrelaçados à economia do século XVIII. Três forças: os proprietários de São Domingos, a burgue-sia francesa e a burguesia inglesa prosperaram sobre a devastação de um continente e a brutal exploração de milhões de seus habitantes. En-quanto essas forças se mantivessem em equilíbrio, o tráfico demoníaco prosseguiria; e assim teria continuado até os dias de hoje. Mas nada, por mais lucrativo que seja, dura para sempre. Desde que o seu próprio desenvolvimento ganhou ímpeto, os fazendeiros das colônias e as bur-guesias francesa e britânica passaram a gerar pressões internas e a in-tensificar as rivalidades externas, dirigindo-se cegamente para conflitos e explosões que despedaçariam as bases do seu domínio e criariam a possibilidade da emancipação.

II - Os proprietários

Entre os três, os latifundiários de São Domingos, os burgueses britânicos e os burgueses franceses, os primeiros eram mais importantes. Em um terreno como o da escravidão em São Domingos, apenas uma sociedade depravada poderia florescer. Tampouco as circunstân-cias incidentais poderiam contribuir para mitigar a desmoralização iner-ente a tal sistema de produção. São Domingos é uma ilha montanhosa com picos que se elevam a até dois mil metros acima do nível do mar. Dessas montanhas, brotam inúmeros riachos que se acrescentam em rios cujas águas irrigam os vales e as não poucas planícies que repousam entre as colinas. A proximidade do equador dá uma opulência fora do comum e diversidade à exube-rância natural dos trópicos, onde a vegetação artificial não era inferior à natural. Campo após campo, o verde-claro do canavial ondulava baixa e continuamente à brisa marinha, encerrando o engenho e as habitações como se fosse um mar. Poucos metros acima dos pés de cana, balan-çavam as largas folhas das bananeiras; perto das moradias, os ramos da palmeira, coroando uma coluna perfeitamente redonda e sem folhas de vinte ou trinta metros, semelhantes a enorme penas que produziam um suave murmúrio; enquanto grupos delas, à distância, sempre visíveis no céu límpido dos trópicos, pareciam grupos de guarda-sóis gigantes esperando pelo viajante ressequido e queimado pelo sol. Na estação, a mangueira e as laranjeiras, solitárias ou entre as árvores, formavam uma massa de folhas verdes e de frutos dourados e vermelhos. Milhares de pequenos e cuidadosamente ajeitados pés de café levantavam-se sobre o declive das colinas, e as encostas abruptas e íngremes da montanha estavam cobertas até o cume pela luxuriante vegetação arbustiva dos trópicos e pelas florestas de madeira de lei de São Domingos. O viajante

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que vinha da Europa ficava encantado ao, pela primeira vez, vislumbrar esse paraíso, onde a beleza correta da agricultura e a prodigalidade da natureza contribuíam igualmente para a sua surpresa e admiração. Todavia, esse lugar era monótono. Saía ano, entrava ano, dia após dia, era sempre o mesmo: um pouco mais verde na estação das chu-vas, um pouco mais pardo na estação da seca. O cenário mais agreste era cons-tantemente magnífico, mas para o colono que via essa mesma paisagem doméstica, desde as primeiras horas do dia, ela causava pouca reação. Para o emigrante, antes encantado e satisfeito, a monotonia pro-duzia a indiferença, que podia transformar-se em uma crescente aversão e num anseio pela mudança das estações no decorrer do ano. O clima era duro e, para o europeu do século XVIII, sem os conhecimentos dos dias de hoje a respeito de higiene tropical, quase insuportável. O sol escaldante e a atmosfera úmida maltratavam todos os recém-chegados, fossem eles europeus ou africanos. Os africanos morriam, mas as doenças europeias eram temidas pelos habitantes da colônia, cuja ciência e cujos hábitos eram impotentes para combatê-las. A febre e a disenteria na estação quente; escorrimentos nasais e diarreia na estação chuvosa; o tempo todo, uma aversão pelo trabalho contínuo, favorecida pela comilança e pela lascívia criada pela fartura e por um contingente de escravos à espera de alguma tarefa, desde tirar os sapatos até passar a noite. A falta de força de vontade dominava os latifundiários brancos desde o berço.

- Eu quero um ovo! dizia uma criança da colônia. - Não há nenhum! - Então, eu quero dois!

Essa anedota era característica. À insalubridade do clima e à complacência a cada desejo eram acrescentadas a licenciosidade aber-ta e a habitual ferocidade dos seus pais. A degradação da vida humana cercava a criança por todos os lados. A ignorância inerente à vida rural anterior à Revolução Industrial era reforçada pela irritação e pela jactância do isolamento aliadas ao incontestado domínio sobre centenas de vidas humanas. As fazendas ficavam, frequentemente, a quilômetros de distância umas das outras e, naquela época em que se andava a cavalo e as estradas eram pou-cas ou ruins em um país montanhoso, a comunicação com os vizinhos era rara e difícil. Os latifundiários odiavam aquela vida e procuravam ganhar dinheiro o bastante para aposentar-se na França ou, pelo menos, para passar alguns meses em Paris, extasiando-se nas amenidades da civilização. Com tanto para beber e comer, havia uma pródiga hospi-talidade que virou tradição, mas as casas-grandes, ao contrário do que diz a lenda, eram, na sua maioria, modestamente mobiliadas, e os seus donos as viam como casas de descanso nos intervalos de suas viagens a Paris. Procurando vencer o ócio abundante e o aborrecimento com

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comida, bebida, jogos de dados e mulheres negras, haviam perdido, muito antes de 1789, a simplicidade da vida e a rude energia daqueles homens anônimos que haviam fundado a colônia. Um administrador, um capataz e o mais inteligente dos seus escravos eram mais do que o necessário para se tocar as fazendas. Assim que podiam, deixavam a ilha, se possível para nunca mais voltar. Contudo, jamais chegaram a formar na França uma força política e social tão rica e poderosa quanto aquela das Índias Ocidentais na Inglaterra. As mulheres estavam sujeitas às mesmas influências perniciosas. Nos primeiros anos da colonização elas eram importadas, assim como o eram os escravos e as maquinarias. Muitas das que chegavam tinham sido varridas das sarjetas de Paris, trazendo para a colônia “corpos tão corrompidos quanto as suas maneiras, e servindo apenas para infectar a colônia178. Um funcionário, pedindo mulheres, implorou às autoridades que não enviassem “as mais feias que pudessem encontrar nos hospi-tais”. Ainda em 1743, a São Domingos oficial reclamava que a França continuava a enviar moças cujas “aptidões para a reprodução estavam, na maioria delas, destruídas por excesso de uso”. Projetos para um siste-ma educacional nunca produziram frutos. Com o aumento da riqueza, as filhas dos latifundiários mais ricos eram mandadas a Paris, onde, após um ou dois anos em escolas de educação para moças, casavam-se bem com a decadente nobreza da França. Mas na colônia elas passavam o tempo todo se arrumando, cantando estúpidas canções e ouvindo o mexerico e as adulações dos seus serviçais escravos. A paixão era a sua ocupação principal, estimulada pela alimentação exagerada, pela preguiça e pelo imorredouro ciúme das mulheres negras e mulatas que competiam, com tanto sucesso, pelos favores dos maridos e amantes daquelas mulheres. Aos homens de diversas raças, classes e tipos que formavam a primeira população de São Domingos foi acrescentado, com o passar dos anos, um elemento mais unificado e coeso: os rebentos da aristocracia francesa. Destituídos do poder político por Richelieu e convertidos por Luís XIV em mero acessório decorativo e administrativo da monarquia absolutista, os filhos mais jovens de nobres franceses encontraram em São Domingos uma oportunidade de reconstruir as suas fortunas despe-daçadas e de viver a vida de magnata do campo que ora lhes era negada na França. Vinham como oficiais do Exército e funcionários e ficavam para encontrar fortuna e formar famílias. Comandavam a milícia e admi-nistravam uma justiça rude. Apesar de arrogantes e esbanjadores, repre-sentavam uma seção de valor da sociedade dos brancos de São Domin-gos e uniam mais firmemente uma sociedade composta de elementos tão diversos e desintegrados. Mas mesmo a sua educação, as suas tradições e o seu orgulho não eram impermeáveis à corrupção predominante e poder-se-ia encontrar um “parente dos De Vaudreils, um Châteauneuf,

178. DE VAISSIERE, p. 77-9.

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ou Boucicaut, o último descendente do famoso marechal da França, pas-sando sua vida entre um copo de rum e uma concubina negra179”. A vida na cidade é a ama-de-leite da civilização. Mas, exce-tuando-se Porto Príncipe, a capital, e Cabo François, as cidades de São Domingos no auge de sua prosperidade eram pouco mais que aldeias. Em 1789, São Marcos tinha apenas 150 casas; Môle São Nicolau, a Gi-braltar do mar do Caribe, apenas 250; Léogane, uma das mais impor-tantes cidades da Província Ocidental, estava constituída por algo entre trezentas e quatrocentas casas distribuídas por quinze ruas; Jacmel, uma das cidades-chave no Sul, tinha apenas quarenta. Mesmo Cabo Fran-çois, a Paris das Antilhas e entreposto do comércio europeu, tinha uma população de apenas vinte mil, cuja metade era de escravos. Mas Le Cap, como é familiarmente chamada, era uma cidade famosa e única no gênero em sua época. Uma atividade incessante reinava ali, com seus portos sempre cheios de navios e suas ruas repletas de mercadorias. Mas era também incômoda a marca de selvageria que parecia inseparável de tudo que estava ligado a São Domingos. Um dos mais ilustres historia-dores coloniais, Moreau de Saint-Méry, admite que as ruas eram esgotos e que o povo despejava nela todo o seu lixo. O Governo pedia em vão para que o povo não atentasse contra a ordem pública, que tivessem cuidado com a deposição da “substância fecal”, que não deixassem os carneiros, porcos e bodes à solta. Mas ninguém prestava atenção a tais ordens. Em Porto Príncipe, capital oficial da colônia, a população lavava a roupa de cama ou de mesa, fabricava o anil e deixava a mandioca de molho na água da única fonte que alimentava a cidade. Apesar de repetidas proibições, continuavam a bater nos escravos nas vias públi-cas. As próprias autoridades não eram mais cuidadosas. Se chovesse à noite, ninguém poderia andar na rua no dia seguinte, e as correntes de água enchiam as valas laterais das ruas nas quais se podia ouvir o coaxar dos sapos. De Wimpffen chamava Porto Príncipe de campo tártaro, e Moreau de Saint-Méry, ele próprio da colônia, censurou a agudeza da expressão, mas admitia que não era completamente inaplicável. O pouco de cultura que havia estava concentrado nessas ci-dades. Em Le Cap havia sociedades maçônicas e sociedades de outro tipo, sendo a mais famosa delas o Círculo de Filadélfia, um corpo de-votado à política, à filosofia e à literatura. A leitura principal da popu-lação, contudo, consistia em romances picantes. Para a diversão, havia teatros, não apenas em Le Cap e Porto Príncipe, mas em pequenas ci-dades como Léogane e São Marcos, onde os melodramas e as peças de suspense da época eram encenados em casas cheias. Em 1787, havia três companhias só em Porto Príncipe. Se, por um lado, faltava às cidades atividade intelectual, por outro, sobravam ocasiões para as pessoas se reunirem em devassidão: antros de jogos (pois todos em São Domingos jogavam e grandes fortu-

179. DE VAISSIERE, p. 217.

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nas eram ganhas e perdidas em poucos dias), casas de dança e bordéis privativos onde a mulata vivia com tanto conforto e em tamanha luxúria que, em 1789, das sete mil mulatas existentes na ilha, cinco mil eram ou prostitutas ou sustentadas como amantes de homens brancos. O clero regular de São Domingos, apesar de exercer uma for-ça moderadora, era notório pela sua irreverência e degeneração. No começo, era constituído principalmente por monges destituídos das suas ordens. Mais tarde, veio uma classe melhor de padres, mas naquela so-ciedade inchada e excessivamente quente poucos conseguiam resistir às tentações do dinheiro fácil, da vida fácil e da mulher fácil; muitos deles viviam abertamente com as suas concubinas. A avidez que tinham pelo dinheiro os fazia explorar os negros com a mesma crueldade dos outros brancos de São Domingos. Um deles, por volta da metade do sé-culo XVIII, costumava batizar o mesmo negro sete ou oito vezes, pois a cerimônia divertia os escravos e eles pagavam uma pequena soma pelos batizados. Ainda em 1790, um outro padre competia com os curan-deiros negros que praticavam o obeá180 pelos cobres dos escravos, ven-dendo encantos contra doenças e talismãs para assegurar o sucesso de pequenas empresas. Nas cidades, os grandes mercadores e os ricos agentes da bur-guesia marítima eram considerados, como os latifundiários, brancos ricos. Nas fazendas, os administradores e capatazes eram os represen-tantes do proprietário na sua ausência; caso contrário, trabalhavam sob os seus olhares, estando sempre subordinados a ele. Esses no campo e os pequenos advogados, notários, escriturários, artífices e merceeiros na cidade eram conhecidos como brancos pobres181. Entre os brancos pobres havia uma turba de vagabundos, fugitivos da lei e das galés de escravos, devedores incapazes de pagar as suas contas, aventureiros à procura da sorte ou de fortuna fácil, criminosos de toda a espécie e ho-mens de todas as nacionalidades. Do submundo de dois continentes eles vinham: eram franceses, espanhóis, malteses, italianos, portugueses e americanos. Qualquer que fosse a origem desses homens, qualquer que fosse o seu passado ou o seu caráter, a pele branca fazia deles pessoas de qualidade e, embora arruinados em seus próprios países de origem ou de lá expulsos, eram acolhidos em São Domingos, onde o respeito era obtido a um preço muito barato, o dinheiro jorrava e as oportunidades de depravação abundavam. Nenhum branco pobre era serviçal; nenhum branco faria nenhum serviço que um negro pudesse fazer por ele. Um barbeiro convocado para atender a um cliente apareceu em trajes de seda, chapéu sob o braço, espada do lado, bengala sob o cotovelo, seguido por quatro negros. Um

181.Não confundir com os “brancos pobres” modernos dos Estados Unidos ou da África do Sul. Alguns, especialmente nos Estados Unidos, levam um padrão de vida tão degradado quanto aquele dos negros em suas comunidades.

180. Sistema de crenças de origem ashanti que faz uso da feitiçaria e de rituais de magia. (N. do T.)

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deles penteava o cabelo, outro o enfeitava, um terceiro o enrolava e o quarto terminava o serviço. Enquanto eles trabalhavam, o empregador su-pervisionava as diferentes operações. Ao menor descuido, ao menor en-gano, ele esbofeteava a bochecha do infeliz escravo com tamanha força que frequentemente o derrubava no chão. O escravo não demonstrava nenhum tipo de ressentimento e recomeçava o serviço. A mesma mão que tinha derrubado o escravo fechava-se sobre uma soma enorme, e o bar-beiro saía com a mesma insolência e elegância com que havia entrado. Esse era o tipo para quem o preconceito racial era mais impor-tante até mesmo do que a propriedade de escravos, que pouco pos-suíam. A diferenciação entre um homem branco e um homem de cor era para eles fundamental. Era tudo para eles. Para defendê-la, derrubariam seu próprio mundo por inteiro. Brancos ricos e brancos pobres não representavam toda a popu-lação branca de São Domingos. Acima deles havia a burocracia, com-posta quase que total mente de franceses vindos da França, que governa-va a ilha. Os cabeças da burocracia eram o Governador e o intendente. O Governador era o funcionário representante do Rei, com tudo aquilo que esse cargo implica, mesmo até hoje, no que diz respeito à adminis-tração de colônias distantes. Seu salário oficialmente poderia chegar a cem mil libras182 por ano, além dos lucros comuns a tais postos, tanto no século XX como no XVIII: a autorização de concessões, o desempenho, na surdina, como agente de mercadorias europeias nas colônias e das mercadorias coloniais na Europa. Um nobre francês era tão ávido do cargo de Governador em São Domingos quanto o era o seu equivalente britânico para o Vice-Rei nado da Índia. Em 1787, o Governador era irmão do embaixador francês em Londres e deixou o posto de Governa-dor para tornar-se ministro da Marinha. Logo abaixo do Governador estava o intendente, que era respon-sável pela justiça, pelas finanças e pela administração geral, e algumas vezes recebia um salário de oitenta mil libras por ano. O Governador era militar e aristocrata; o intendente, um burocrata. O militar e o civil se desentendiam continuamente. Mas, contra os brancos do lugar, eles e os seus funcionários, os comandantes distritais e os oficiais graduados re-presentavam a autoridade do Rei e os privilégios comerciais da burgue-sia francesa. Eles podiam prender sem mandado, recusar-se a cumprir as instruções do ministro, forçar os membros dos conselhos consultivos locais a renunciar, conceder favores, confiscar, aumentar impostos; de fato, a sua arbitrariedade não tinha limites legais. “Deus estava muito alto e o Rei, muito longe.” Os latifundiários os odiavam. Além de exercer um poder abso-luto, eram esbanjadores e extravagantes; a sua malversação era cons-tante e vultosa, e tratavam os brancos locais com tamanha arrogância e eram tão sobranceiros que despertavam o rancor daqueles pequenos

182. Aproximadamente dois terços de um franco.

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potentados com os seus duzentos ou trezentos escravos. Havia bons e maus Governadores, bons e maus intendentes, assim como havia bons e maus proprietários de escravos. Mas era tudo uma simples questão de oportunidade. Era o sistema que era ruim. Ostentava-se uma certa aparência de autodeterminação local. Tanto em Le Cap como em Porto Príncipe existiam conselhos locais que registravam os editos reais e as decisões do governo local. Pouco an-tes da Revolução, foi nomeado também um conselho constituído pe-los brancos mais ricos e poderosos, que supostamente representavam a opinião local. Mas o intendente, da mesma forma que o Governador dos conselhos legislativos britânicos dos dias de hoje, poderia acatar ou rejeitar os seus pareceres como bem quisesse. A burocracia, com a fonte do seu poder a milhares de quilô-metros de distância, não podia depender de apenas dois regimentos na colônia. Em 1789, os funcionários de Estado em São Domingos, onde a população branca estava em torno de trinta mil habitantes, somavam apenas 513. Sem o apoio das massas, governar seria impossível. Trazen-do consigo da França a tradicional hostilidade da monarquia absolutista para com o poder político da nobreza feudal, os burocratas procuravam um contrapeso para o poder dos latifundiários locais entre os brancos pobres da cidade e do campo. A principal queixa dos brancos pobres era contra a milícia, que policiava os distritos e frequentemente transgredia a administração da justiça e das finanças do intendente. A essas queixas, o intendente era simpático. Em 1760, um intendente chegou ao ponto de dissolver toda a milícia e indicar síndicos para conduzir o governo local. A colônia foi lançada na desordem, o Governo teve de restabelecer a milícia e restau-rar seu antigo poder para os militares. Imediatamente, uma ressurreição explodiu na ilha, conduzida pelos juízes de paz do lugar, pelos advoga-dos, pelos notários e pelos promotores. Os latifundiários denunciaram que os patrocinadores dessa rebelião eram as camadas mais baixas da população; em um distrito, três judeus portugueses, um notário, um ca-pataz, um alfaiate, um sapateiro, um ajudante de açougueiro e um an-tigo soldado raso. O desprezo dos fazendeiros por “esses patifes que causaram esses problemas e de quem nós podemos dizer com justiça que são a canalha mais vil, cujos pais e mães foram lacaios ou serviçais domésticos, ou mesmo de uma origem ainda mais baixa183” era opres-sivo. Não era a origem baixa que justificava o ataque dos fazendeiros aos brancos pobres. Os alfaiates, os açougueiros e os soldados rasos representariam os papéis decisivos na Revolução Francesa e pelos seus esforços espontâneos salvariam Paris da contra-revolução tanto interna como externamente. Mas muitos desses brancos pobres eram o popu-lacho e não cumpriam nenhuma função importante na economia da

183. DE VAISSIERE, p. 145-7.

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colônia. Se até o último deles tivesse sido deportado do país, o trabalho que fazia passaria a ser feito por um mulato livre, por um negro livre, ou mesmo por um escravo. Eles não eram uma parte essencial da sociedade de São Domingos, fosse pela função, pelo nascimento ou pela tradição; mas eram brancos e, como tais, úteis para a burocracia. Em 1771, en-contramos o intendente mais uma vez se queixando da tirania militar: “Desde que a milícia foi estabelecida”, ele reclama, “os oficiais, todos os dias, privam os juízes de todas as suas prerrogativas”. Esta, portanto, foi a primeira grande divisão: aquela entre os brancos ricos e os brancos pobres, com a burocracia pendendo de um lado a outro e instigando os brancos pobres. Nada poderia aliviar ou re-solver o conflito. No momento em que a Revolução começar na França, esses dois se lançarão um sobre o outro e lutarão até a morte. Havia uma outra classe de homens livres em São Domingos, a dos mulatos livres e negros livres. Nem a legislação nem o crescimento do preconceito de raça podiam destruir a atração que as mulheres bran-cas de São Domingos sentiam pelos homens negros. Isso era caracter-ístico de todas as classes: desde a escória do cais, passando pelo fazen-deiro ou capataz que escolhia uma escrava para passar a noite consigo e a levava da cama para o chicote do condutor de escravos na manhã seguinte, até um Governador da colônia que, recém-chegado da França, se perturbava por encontrar-se tomado de paixão pela mais bela das suas quatro criadas negras. Nos primeiros tempos da colonização, todo mulato era libertado na idade de 24 anos, não pela lei, mas porque o número de brancos era tão pequeno em comparação com o número de escravos que os senhores preferiam ter esses intermediários como aliados antes que os deixar engrossar as fileiras dos seus inimigos. Naqueles tempos primor-diais, o preconceito de raça não era forte. O Código Negro em 1685 autorizava o casamento entre o branco e a escrava que tinha filhos dele; a cerimônia libertava a escrava e as crianças. O Código dava ao mulato livre e ao negro livre direitos iguais aos dos brancos. Mas, conforme a população branca aumentava, os brancos de São Domingos passa-vam a descartar aquele costume e tornavam a escravizar ou vendiam as suas numerosas crianças como qualquer rei da selva africana o faria. Todos os esforços para evitar o concubinato falhavam, e as crianças mu-latas se multiplicavam, para serem livres ou permanecerem escravas ao mero capricho de seus pais. Muitas eram libertadas, tornando-se artí-fices ou serventes domésticas. Começaram a acumular propriedade, e os brancos, enquanto aumentava incessantemente o número de mulatos, começavam a restringi-los e a hostilizá-los com uma legislação mali-ciosa. Os brancos lançavam todos os fardos possíveis do país sobre eles. De acordo com a sua maioridade eles eram obrigados a se juntar à maréchaussée184, uma organização política cujos fins eram: capturar

184. Cavalaria da polícia. (N. do T.)

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negros fugitivos, proteger os viajantes nas grandes estradas capturando os negros perigosos, lutar contra os quilombolas e, enfim, qualquer tare-fa difícil e perigosa que os brancos locais pudessem ordenar. Após três anos de serviço na maréchaussée, eles tinham que se juntar à milícia lo-cal, prover as suas próprias armas, munições e equipamentos e, sem ne-nhum pagamento ou pensão de nenhuma espécie, servir sob as ordens dos oficiais brancos em comando. Tarefas tais como a manutenção obri-gatória das estradas eram organizadas para recair sobre eles com mais severidade ainda. Eles eram excluídos dos departamentos naval e militar, da prática da lei, da medicina e da religião e de todos os ofícios públi-cos e cargos de confiança. Um branco poderia invadir a propriedade de um mulato, seduzir sua mulher ou sua filha, insultá-lo da maneira que quisesse, certo de que a qualquer insinuação de ressentimento ou de vingança todos os brancos e o Governo se apressariam logo em linchá-lo. Nas ações legais, a decisão quase sempre era contrária aos mulatos e, para aterrorizá-los a ponto de torná-los submissos, um homem livre de cor que batesse em um homem branco, fosse qual fosse a sua posição na vida, teria o seu braço direito amputado. Mas, por uma felicidade do destino, o acúmulo de propriedade que eles pudessem obter não era, como nas ilhas inglesas, limitado. Com dis-posição física e inteligência, administravam eles mesmos os seus negócios sem esbanjar as suas fortunas em viagens extravagantes a Paris; começa-vam a adquirir riqueza primeiro como mestres artesãos e depois como proprietários. Conforme começavam a se estabelecer, o ciúme e a inveja dos latifundiários brancos iam se transformando em ódio feroz e medo. A descendência de brancos, pretos e mestiços tinha 128 divisões. O verdadeiro mulato era a criança de uma negra pura com um branco puro. A criança de um branco com uma mulata era um quadrarão, com 96 partes de branco e 32 partes de preto. Mas o quadrarão poderia ser produzido pelo branco e pela marabu na proporção de 88 por 40, ou pelo branco e pela sacatra, na proporção de 72 para 56 e assim por di-ante até 128 variedades. Mas o sang-melé185, com 127 partes brancas e uma parte negra, continuava sendo um homem de cor. Em uma sociedade escrava, a simples posse da liberdade pes-soal é um privilégio valioso, e as leis da Grécia e de Roma testemunham que uma legislação rigorosa contra escravos e homens livres não tinha nada a ver com questões raciais. Por trás dessa engenhosa estupidez de quadrarão, sacatra e marabu, estava o fato predominante na sociedade de São Domingos: o temor aos escravos. As mães de mulatos ficavam com os escravos, entre os quais os mulatos tinham meio-irmãos. Apesar de muitos mulatos desprezarem a metade negra da sua origem, eles, em casa, estavam entre escravos e, levando-se em conta a sua educação e a sua riqueza, poderiam exercer uma influência entre os escravos que

185. Em francês, no original. Sangue misturado. (N. do T.)

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um homem branco jamais poderia. Ademais, além do terror físico, os escravos deveriam ser mantidos em submissão por meio da associação entre a inferioridade e a degradação e a mais distinta marca do escravo: a cor negra da sua pele. Como poucos escravos eram capazes de ler, os colonizadores não hesitavam em dizer abertamente: “É essencial man-ter uma grande distância entre aqueles que obedecem e aqueles que comandam. Uma das formas mais seguras de fazê-lo é a perpetuação da marca que a escravidão deixou”. A nenhum mulato, portanto, qualquer que fosse a proporção de sangue branco que tivesse, era permitido to-mar o nome de seu pai branco. Mas, a despeito dessas restrições, os mulatos continuavam a pro-gredir. Por volta de 1755, pouco mais de três gerações depois do Código Negro, eles estavam começando a encher a colônia, e o seu crescimento numérico e o da sua riqueza alarmavam os brancos. Eles viviam (dizia um relato)186, como os seus antepassados, dos vegetais locais, não bebiam vinho e limitavam-se ao consumo de bebi-das da região, fermentadas a partir da cana-de-açúcar. Dessa forma, o consumo pessoal não contribuía em nada para a manutenção daquele importante comércio com a França. A sua maneira sóbria de viver e as pequenas despesas que tinham possibilitavam-nos economizar uma boa parte das suas receitas a cada ano. Dessa forma, acumulavam imenso capital e se tornavam tanto mais arrogantes quanto maior se tornava a sua riqueza. Faziam ofertas para quaisquer propriedades à venda em vários distritos e elevavam os preços a alturas tão fantásticas que os brancos que não fossem ricos não poderiam comprar, ou se arruinavam na tentativa de acompanhá-los. Assim, em alguns distritos, as melhores propriedades pertenciam aos mestiços, e mesmo estando em todos os lugares eram os menos dispostos a submeter-se ao trabalho legal regu-lar e aos deveres públicos. As suas fazendas eram o santuário e o asilo dos libertos que não tinham nem trabalho nem profissão e de numero-sos escravos fugitivos. Sendo tão ricos, imitavam o estilo dos brancos e buscavam encobrir todos os traços da sua origem. Tentavam os altos comandos da milícia e aqueles que eram capazes de ocultar o vício da sua origem pretendiam até os postos do Judiciário. Se esse tipo de coisa desse resultado, eles cedo acabariam se casando com mulheres de famílias distintas, o que colocaria essas famílias em aliança com os trabalhadores escravos, de onde as mães desses arrivistas vinham. Não era uma queixa perversa de um latifundiário invejoso. Era um memorando oficial da burocracia para o ministro. O aumento nu-mérico e o aumento da riqueza estavam dando aos mulatos mais orgulho e agravando o ressentimento que sentiam com relação às humilhações. Alguns deles enviavam seus filhos para a França para serem educados e lá, mesmo cem anos antes da Revolução, havia pouco preconceito de

186. DE VAISSIERE, p. 222.

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cor. Até 1716, todo escravo negro que tocava o solo francês era con-siderado livre, e após um intervalo de cinquenta anos outro decreto, de 1762, reafirmou isso. Em 1739, um escravo servia como corneteiro no regimento real de carabineiros; jovens mulatos eram recebidos nos corpos militares reservados à jovem nobreza e nos cargos da magis-tratura; eles serviam como pajens na corte187. Contudo, esses homens tinham de voltar para São Domingos e submeter-se às discriminações e à brutalidade dos brancos de lá. E, como os mulatos começassem a exer-cer pressão contra as barreiras, a São Domingos branca tratou de apro-var uma série de leis que por sua selvageria maníaca seriam únicas no mundo moderno e (nós diríamos antes de 1933) não teriam paralelo ne-nhum na História. O Conselho de Porto Príncipe, encobrindo a questão racial com uma cortina, gostaria de exterminá-las. Assim, os brancos poderiam depurar seu sistema de uma ameaça crescente, livrando se de homens dos quais eles haviam tomado dinheiro emprestado, e confis-car uma quantidade de ótimas propriedades. O Conselho propôs: banir todos os mestiços até o grau de quadrarão para as montanhas (“as quais eles poderiam introduzir no cultivo”); proibir a venda de qualquer pro-priedade na planície para os mestiços; negar-lhes o direito de adquirir a propriedade imobiliária; obrigar todos aqueles até o grau de quadrarão e todos os brancos que tinham se casado com pessoas de cor daquele grau a vender todos os seus escravos dentro de um ano. “Pois”, dizia o Conselho, “são pessoas perigosas, mais amigáveis aos escravos, a quem continuam ligados; mais do que a nós que os oprimimos pela subordi-nação que exigimos e pelo desprezo com o qual os tratamos. Em uma revolução, em um momento de tensão, serão os primeiros a quebrar o jugo que pesa sobre eles, ainda mais pelo fato de serem mais ricos e estarem acostumados a ter devedores brancos, desde quando não têm respeito suficiente por nós.” Mas os latifundiários não puderam realizar esses planos arrojados. Os mulatos, ao contrário dos judeus alemães, eram naquele momento bastante numerosos, e a revolução começaria naquele mesmo momento. Os latifundiários tiveram de se contentar em lançar a esses rivais toda a humilhação que o engenho e a malícia pudessem arquitetar. En-tre 1758 e a Revolução, as perseguições aumentaram188. Os mulatos estavam proibidos de usar espadas, sabres e trajes europeus. Eram proi-bidos de comprar munições, a menos que tivessem uma permissão es-pecial com a quantidade exata estabelecida. Eram proibidos de se reunir “com o pretexto” de casamentos, festas ou bailes, sob pena de multa no primeiro delito; prisão, no seguinte; e ficava pior daí em diante. Eram proibidos de permanecer na França. Eram proibidos de praticar jogos

187. LEBEAU, De la condition des gens de couleur libres sous l’Ancien Régime, Poitiers, 1903. 188. LEBEAU, De Ia condition ... ; DE VAISSIERE, capo III; Saint-Domingue à Ia vielle de la Révolu-

tion. Souvenirs du Baron de Wimpffen, publicado por Savine, p. 36-8 etc.

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europeus. Os padres eram proibidos de redigir quaisquer documentos para eles. Em 1781, oito anos antes da Revolução, eram proibidos de tomar o título de Senhor e Senhora. Até 1791, se um homem branco comesse na casa de um mulato, este não poderia sentar-se à mesa com ele. O único privilégio que os brancos lhes consentiam era o privilégio de emprestar dinheiro a um homem branco. Não havia meios de escapar a esse estado de coisas a não ser pela insurreição. E, até que a Bastilha caísse, os esforços dos mulatos para a sua emancipação assumiria formas estranhas. De Vaissiere de-senterrou uma história, que podemos entender melhor agora, depois do hiderismo, do que o podíamos fazer antes. Em 1771, o sieur Chapuzet obteve do Conselho de Le Cap um decreto que lhe dava os privilégios de um homem branco. Sua obscura carreira impedia que quaisquer questões fossem levantadas sobre a sua origem. Um pouco depois, no entanto, ele tentou tornar-se oficial da milícia. Quatro tenentes da milícia da Planície do Norte fizeram uma minuciosa pesquisa nos registros e apresentaram uma genealogia bas-tante precisa da família Chapuzet, provando que um ancestral materno, 150 anos antes, era um negro de Saint Kitts. De Chapuzet defendeu-se, “de fato e de direito”: de direito, pois o poder de decisão sobre o status de um cidadão era prerrogativa do Governo e não de cidadãos comuns; de fato, porque em 1624 não havia negros em Saint Kitts. A história co-lonial tornou-se então o terreno onde a luta seria travada. Graças a extra-tos de historiadores, os brancos provaram que havia escravos em Saint Kitts em 1624. Chapuzet aceitou a derrota e foi embora para a França. Três anos mais tarde, ele voltou, chamando-se a si mesmo de monsieur Chapuzet de Guérin, ou familiarmente M. le Guérin. Aristo-crata, pelo menos no nome, por intermédio de um patrocinador ele levou novamente o seu caso ao tribunal para ser considerado branco. Mais uma vez, foi derrotado. Mas Chapuzet era um homem de recursos. Afir-mava que o seu ancestral, “o negro de Saint Kitts”, não era negro, mas um caribe, nascido livre, um membro de “uma raça nobre sobre a qual os franceses e espanhóis impuseram a lei da conquista”. Chapuzet triunfou. Em 1779, dois decretos do Conselho declararam que as suas petições eram justas. Mas ele não conseguiu o posto. Os funcionários locais não se atreveram a indicá-lo. Após a publicação dos decretos, as pessoas de cor entregaram-se a tantas demonstrações de alegria e tolas esperanças que as consequências da decisão em favor de Chapuzet poderiam ter-se tornado muito perigosas. As portas do advogado de Chapuzet foram cer-cadas por quadrarãos e outros mulatos de pele clara procurando transfor-mar os seus ancestrais remotos em livres e nobres caribes. As vantagens de ser branco eram tão evidentes que o precon-ceito de raça contra os negros impregnou a mente dos mulatos, que tão amargamente se sentiam ressentidos pelo tratamento preconceituoso que recebiam dos brancos. Os escravos negros e os mulatos se odiavam. Fosse em palavras, fosse devido ao seu sucesso na vida, fosse pelos seus

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variados procedimentos, os mulatos demonstravam a mesma perfídia que os brancos ao reivindicar uma superioridade inerente. Assim, o homem de cor que era quase branco desprezava o homem de cor que era apenas meio branco, que por sua vez desprezava o homem de cor que era um quarto branco e assim por diante, percorrendo todos os matizes. Os negros livres, falando comparativamente, não eram muitos, e tão desprezada era a pele negra que mesmo um mulato escravo sentia-se superior ao negro livre. O mulato preferia tirar a própria vida do que ser escravo de um negro189. Isso tudo soa como uma mistura de pesadelo e piada de mau gosto. Mas essas distinções continuam a exercer influência nas índias Ocidentais de agora190. Enquanto os brancos na Grã-Bretanha gostavam menos dos mestiços do que dos negros de sangue puro, os brancos nas índias Ocidentais favoreciam os mestiços em detrimento dos negros. Es-ses, todavia, eram problemas de prestígio social. Mas a discriminação ra-cial na África de hoje é, assim como o era em São Domingos, um proble-ma de política governamental, imposta por balas e baionetas. Mas nós viveríamos para presenciar os governantes das nações europeias tornarem a avó ariana tão preciosa para os seus camaradas conterrâneos quanto o ancestral caribe para o mulato. O fundamento, em cada caso, é sempre o mesmo: justificar a pilhagem por qualquer diferença óbvia entre os desti-tuídos e aqueles que detêm o poder. É bom lembrar o leitor do que um ob-servador experiente, que viajava pelas índias Ocidentais em 1935, disse a respeito dos homens de cor que encontrou por lá: “Havia poucos no topo: juízes, advogados, médicos, qualquer que fosse o seu matiz, poderiam manter-se em qualquer círculo. Muitos outros são intelectualmente iguais ou superiores aos seus contemporâneos brancos191” . Muitos mulatos e negros livres eram atrasados em comparação aos brancos, mas a sua capacidade era perfeitamente óbvia em São Do-mingos nos anos que antecederam a 1789. Foram necessários pólvora e aço frio para convencer os brancos de São Domingos. E se, como vimos, os mais inteligentes não se iludissem sobre as origens materialistas do seu preconceito contra os mulatos, cometeríamos então um grande en-gano se pensássemos que eles eram hipócritas quando pretendiam que uma pele branca garantiria ao seu dono capacidades superiores e lhe daria direito a um monopólio daquilo de melhor que a colônia oferecia. “Sobre as diversas formas de propriedade, sobre as condições so-ciais de existência como fundamento existe uma superestrutura edifica-da de sentimentos variados e característicos, ilusões, hábitos de pensam-

189. Essa arrogância do mulato é o motivo do ódio contra eles demonstrado na poesia satírica de Gregório de Matos. (N. do T.)

190. Isso continua sendo verdadeiro em 1961. 191. MACMILLAN, Warning from the West Indies, Londres, 1936, p. 49.

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ento e perspectivas sobre a vida em geral. A classe, como um todo, cria e molda essa superestrutura fora dos fundamentos materiais dela mesma e a partir das correspondentes relações sociais. O indivíduo, no qual ela aparece através da tradição e da educação, pode presumi-los como os verdadeiros determinantes, a origem real das suas atividades192.” Nessa origem vulgar do preconceito, os brancos pobres, os brancos ricos e a burocracia estavam unidos contra os mulatos. Tinha sido dessa forma por 150 anos e, portanto, sempre seria assim. Mas seria mesmo? Os mais altos burocratas, franceses cultos, chegavam à ilha sem preconceitos e, buscando o apoio das massas, costumavam ajudar um pouco aos mula-tos. E os mulatos e os brancos ricos tinham um vínculo comum: a pro-priedade. Quando a Revolução estivesse bastante adiantada, os brancos ricos teriam de escolher entre os seus aliados de raça e os seus aliados de propriedade. Eles não hesitaram muito. Tal era a sociedade dessa famosa colônia. Essas eram as pessoas, e essa a vida, pelas quais em parte muito sangue foi derramado e muito sofrimento suportado. & melhores mentes da época não alimentavam ilusões quanto a isso. O barão de Wimpffen, que viu a colônia em 1790 no próprio auge de sua prosperidade, um dia viu um escravo apoiando-se no cabo de sua enxada, olhando tristemente para o pôr-do-sol. — O que estás olhando, Nazimbo? perguntou. — O que tu estás ol-

hando? Nazimbo ergueu sua mão para o sol que se punha: — Eu vejo minha terra! respondeu, e as lágrimas rolaram-lhe dos olhos. “Eu também vejo a minha terra acolá”, disse De Wimpffen para si próprio, “e tenho a esperança de algum dia voltar a vê-Ia, mas tu, po-bre negro, jamais verás a tua outra vez!” Os liberais instruídos e o escravo comum detestavam o lugar da mesma maneira. Poucos meses depois, De Wimpffen partiu e registrou as suas opiniões. Era um epitáfio adequado àquela sociedade que em três anos seria destruída: “Quer saber a minha opinião definitiva sobre esta terra? É que quanto mais conheço o homem que a habita, mais me felicito por deixá-la. (...) Quando alguém é aquilo que a maior parte dos latifundiários é, é porque nasceu para possuir escravos. Quando alguém é aquilo que a maior parte dos escravos é, é porque nasceu para ser escravo. Nesta terra, todos estão nos seus devidos lugares”. Prosperi-

192. KARL MARX, O 18 de Brumdrio de Luís Bonaparte. (N. do E.). A tradução da mesma passagem, feita do original alemão, ficou assim: “Sobre as diversas formas de

propriedade e sobre as condições sociais de existência ergue-se toda uma superestrutura de sensa-ções, ilusões, modos de pensar e visões da vida diversos e formados de um modo peculiar. A classe inteira cria-os e forma-os a partir das suas bases materiais e das relações sociais correspondentes. O indivíduo isolado, a quem afluem por tradição e educação, pode imaginar que constituem os ver-dadeiros princípios determinantes e o ponto de partida do seu agir”. [Na metade do § 9 do Capítulo III.] (N. do T.)

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dade não é um problema moral e a razão de São Domingos era a sua prosperidade. O mundo ocidental, durante séculos, nunca conheceu tal progresso econômico. Por volta de 1754, dois anos antes do começo da guerra dos Sete Anos, havia na ilha 599 fazendas de açúcar e 3379 de anil. Durante a guerra dos Sete Anos (1756-1763), a Marinha fran-cesa, varrida dos mares pela Força Naval Britânica, não podia trazer os suprimentos dos quais a colônia dependia; o extenso contrabando de mercadorias não podia suprir a deficiência e milhares de escravos mor-riam de fome e o vertiginoso aumento de produção, embora contínuo, diminuiu. Mas após o Tratado de Paris de 1763 a colônia deu um grande passo à frente. Em 1767 exportou 35 mil toneladas de açúcar bruto e 25 mil toneladas de açúcar branco, quinhentas toneladas de anil e mil toneladas de algodão, uma certa quantidade de couro, de melado, de cacau e de rum. O contrabando, ao qual as autoridades faziam vista grossa, elevava os números oficiais em pelo menos vinte e cinco por cento. Não era apenas em quantidade que São Domingos se sobres-saía, mas em qualidade. Cada pé de café produzia uma média de meio quilo, igualando algumas vezes o de Mocha. Ó algodão crescia natural-mente, mesmo sem cuidados, em terreno pedregoso e até nas fendas das rochas. O anil também crescia espontaneamente. O tabaco tinha uma folha maior do que o de qualquer outra parte das Américas e algumas vezes era comparável em qualidade ao produzido em Havana. A polpa do cacau de São Domingos era mais ácida do que a da Venezuela e não lhe era inferior em outros aspectos; a experiência comprova que o chocolate feito de uma combinação dos dois cacaus tem um sabor mais delicado do que aquele feito apenas do cacau da Venezuela. Se em nenhum canto do mundo havia tamanha miséria concen-trada como em um navio negreiro, da mesma maneira, nenhuma parte da superfície do globo produziu, em proporção com as suas dimensões, tanta riqueza quanto a colônia de São Domingos. E seria a sua própria prosperidade o que a levaria à revolução. No começo os latifundiários estavam em desacordo com o Go-verno francês e os interesses que ele representava. O francês, como qual-quer outro governo naqueles dias, via os latifundiários como existindo exclusivamente para o progresso da metrópole. Conhecido como siste-ma mercantil na Inglaterra, o francês chamava a sua tirania econômica por um nome mais honesto: Exclusivo. Quaisquer que fossem os bens manufaturados que os latifundiários necessitassem, eram obrigados a comprá-los da França. Podiam vender sua produção apenas para a Fran-ça e os bens deveriam ser transportados em navios franceses somente. Mesmo o açúcar bruto produzido nas colônias deveria ser refinado na pátria-mãe, e a França impunha pesadas tarifas sobre o açúcar refinado de origem colonial. “As colônias”, dizia Colbert, “foram fundadas pela e para a Metrópole.” Isso não era verdade. São Domingos foi criada pelos próprios latifundiários, e a falsidade daquela afirmação tornou a explo-ração mais difícil de ser suportada.

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Em 1664, o Governo francês, de acordo com o costume da época, entregou os direitos de comércio com São Domingos a uma companhia privada. Mas os monopolistas não podiam, ou não queriam, enviar todos os bens que os latifundiários precisavam e cobravam deles aproximadamente o dobro daquilo que estavam acostumados a pagar. Os latifundiários se revoltaram e o Governo foi obrigado a relaxar as restrições. Em 1722, a mesma coisa aconteceu. Agentes receberam da companhia a concessão exclusiva do comércio africano como recom-pensa pelo abastecimento de São Domingos com dois mil negros todo o ano. Mas, por volta de 1720, os latifundiários precisavam de oito mil escravos por ano, e sabiam que, além de abastecê-los com apenas um quarto das suas necessidades, a companhia ainda aumentaria os preços. Houve outra insurreição. Os latifundiários detiveram o Governador e o puseram na prisão, e o Governador teve de modificar os privilégios da companhia. Os latifundiários viram-se colocados em xeque pelo Exclu-sivo para benefício da Metrópole, e à medida que a sua prosperidade aumentava as restrições tornavam-se cada vez mais intoleráveis. A de-pendência política da pátria-mãe estava então retardando o crescimento econômico de São Domingos. Os latifundiários queriam livrar-se dos seus grilhões da mesma maneira que as colônias americanas se livraram das algemas britânicas. Dessa forma, se os brancos ricos e os brancos pobres estavam em contínuo conflito entre si, eles estavam unidos contra os mulatos por um lado e contra a burguesia francesa por outro. Podiam perseguir os mulatos, mas contra a burguesia francesa eles não podiam fazer outra coisa que ficar furiosos. Pouco antes de 1789, a burguesia francesa era a força econômica mais poderosa da França, e o comércio de escravos e as colônias eram a base da sua riqueza e do seu poder. O comércio de escravos e a escravidão foram a base econômi-ca da Revolução Francesa. “Triste ironia da história humana”, comenta jaurês. ‘’As fortunas criadas em Bordéus, em Nantes, pelo comércio de escravos, deram à burguesia aquele orgulho que necessitava de liber-dade e contribuiu para a emancipação humana.” Nantes era o centro do comércio de escravos. Já em 1666, 108 navios foram para a costa da Guiné e embarcaram 37430 escravos192, com um valor total de mais de 37 milhões, dando à burguesia de Nantes de quinze a vinte por cento sobre o seu investimento. Em 1700, Nantes enviava cinqüenta navios por ano para as Índias Ocidentais com carne bovina irlandesa salgada, linho para uso doméstico e vestimentas para os escravos e maquinaria para os engenhos de açúcar. Aproximadamente todas as indústrias que se desenvolveram na França durante o século XVIII tiveram a sua origem em bens e mercadorias destinados ou à costa da Guiné ou à América. O capital do comércio de escravos as fertilizava; embora a burguesia co-mercializasse outros produtos além de escravos, tudo o mais dependia

192. Esta seção é baseada na obra de JAURÊS, Histoire socialiste de Ia Révolution Française, Paris, 1922, p. 62-84.

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do sucesso ou da falência do tráfico193. Alguns navios levavam, de passagem, vinho Madeira para os lati-fundiários e tartarugas secas de Cabo Verde para os escravos. Em troca, eles levavam de volta produtos coloniais para Nantes, de onde os navios holandeses os levavam para o norte da Europa. Alguns faziam a viagem de volta passando pela Espanha e por Portugal, trocando a sua carga colonial por produtos daqueles países. Sessenta navios de Rochelle e Oberon levavam o bacalhau salgado de lá para Nantes, donde seguia para o mercado do interior ou para as colônias para alimentar os escra-vos. O ano de 1758 viu a primeira indústria manufatureira de fazenda da Índia tecer o algodão bruto da Índia e das ilhas das Índias Ocidentais. Os fazendeiros e os pequenos manufatureiros de São Domingos só poderiam se estabelecer por meio de capital adiantado pela burguesia marítima. Por volta de 1789, os comerciantes de Nantes sozinhos ti-nham cinqüenta milhões investidos nas Índias Ocidentais. Bordéus tinha começado com a indústria de vinho, que dava aos construtores de navios e aos navegantes uma oportunidade de comerciar por todo o mundo; então veio a indústria de conhaque, que também abastecia os portos, mas que ia, sobretudo, para as colônias. Por volta da metade do século XVIII, dezesseis fábricas refinavam, todos os anos, dez mil toneladas de açúcar bruto originário de São Domingos, utilizando aproximadamente quatro mil toneladas de carvão de lenha. As fábricas locais supriam a cidade com potes, pratos e garrafas. O comércio era cos-mopolita: flamengos, alemães, holandeses, irlandeses e ingleses iam viver em Bordéus, contribuindo para a expansão geral e acumulando fortunas para si próprios. Bordéus negociava com Holanda, Alemanha, Portugal, Veneza e Irlanda, mas a escravidão e o comércio colonial eram a fonte, a origem e o sustento da sua próspera indústria e do seu dilatado comércio. Marselha era o grande centro do comércio mediterrâneo e do co-mércio oriental, e um decreto real no começo do século tentou excluí-la do comércio com as colônias. A tentativa fracassou. São Domingos era o centro especial do comércio de Marselha. Marselha enviava para lá não apenas os vinhos da Provença: em 1789 havia em Marselha doze refinarias de açúcar, aproximadamente o mesmo que em Bordéus. Nos primeiros anos, muito do seu comércio era sustentado por navios fabricados no exterior e de propriedade de estrangeiros. Mas em 1730 a burguesia marítima começou a construir ela mesma. Em 1778, os donos de navios de Bordéus construíram sete navios; em 1784, construíram 32, completando um total de 115 em seis anos. Um dono de navio de Marselha, George Roux, poderia armar uma frota às suas próprias expensas com o objetivo de retaliar a frota inglesa devido às conquistas que esta havia conseguido. Nantes, Bordéus e Marselha eram os principais centros da bur-

193. GASTON-MARTIN, L´Ère des négriers (1714-1774), Paris, 1913, p. 424.

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guesia marítima, mas Orléans, Dieppe, Bercy-Paris e uma dúzia de ou-tras cidades grandes refinavam açúcar bruto e tinham participação em indústrias derivadas194. Uma grande parte do couro trabalhado na Fran-ça vinha de São Domingos. A florescente indústria de tecelagem de al-godão da Normandia recebia o algodão bruto, em parte, das Índias Oci-dentais, e em todas as suas ramificações o negócio do algodão ocupava uma população maior do que a de uma centena de cidades francesas. Em 1789, as trocas com as colônias norte-americanas representavam 296 milhões. A França exportou para as ilhas 78 milhões em farinha, carne salgada, vinho e tecidos. As colônias enviaram para a França 218 milhões em açúcar, café, cacau, madeira, anil e couro. Dos 218 milhões importados, apenas 71 milhões eram consumidos na França. O resto era exportado após processamento. O valor total das colônias representava três bilhões, e dela dependia a subsistência de um número de franceses que variava entre dois e seis milhões. Por volta de 1789, São Domingos era o mercado do Novo Mundo. Recebia em seus portos 1587 navios, um número maior que o de Marselha, e a França usava apenas para o comércio de São Domingos 750 grandes navios que empregavam 24 mil marinheiros. Em 1789, as exportações da Grã-Bretanha foram de 27 milhões de libras, e as da França, de 17 milhões de libras, das quais o comércio de São Domingos foi responsável por aproximadamente 11 milhões. O comércio colonial britânico em sua totalidade, naquele ano, somou apenas cinco milhões de libras195! A burguesia marítima não queria ouvir falar de nenhuma mu-dança no Exclusivo. Tinha a atenção do ministro e do Governo, e os latifundiários não foram apenas proibidos de negociar com países es-trangeiros, mas a circulação da moeda francesa, com exceção da de menor valor, também estava proibida nas ilhas, para que não fosse usada para comprar mercadorias estrangeiras. Em tal sistema de comércio, os latifundiários estavam à mercê da burguesia. Em 1774, a sua dívida era de 200 milhões, e por volta de 1789 ela estava estimada entre 300 e 500 milhões196. Se os latifundiários queixavam-se do Exclusivo, a burguesia se queixava de que os latifundiários não queriam pagar os seus débitos, e exigia medidas de restrição ao contrabando. O comércio colonial era muito grande para a burguesia fran-cesa, apesar da sua riqueza. A burguesia britânica, a mais bem-sucedida de todas no comércio negreiro, vendia milhares de escravos contraban-deados todos os anos para os latifundiários franceses e particularmente para São Domingos. Mas, mesmo enquanto vendia os escravos para São Domingos, a burguesia britânica assistia ao progresso dessa colônia com preocupação e inveja. Depois da independência dos Estados Unidos em

194. DESCHAMPS, Les Colonies pendant Ia Réuolution, Paris, 1898, P: 3-8. 195. BROUGHAM, The Colonial Poliey ofthe European Potoers, Edimburgo. 1803. v. Il, p. 538-40 196. DESCHAMPS, Les Colonies pendant. ..., p. 25.

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1783, essa espetacular colônia francesa repentinamente deu um salto que quase duplicou a sua produção entre 1783 e 1789. Naqueles anos, Bordéus sozinha investiu 100 milhões em São Domingos. A burguesia britânica era a grande rival da francesa. Durante todo o século XVIII elas lutaram em todas as partes do mundo. A francesa pulou de alegria em ajudar a expulsá-los dos Estados Unidos. São Domingos tornou-se, então, incomparavelmente a melhor colônia do mundo e as suas pos-sibilidades pareciam ilimitadas. A burguesia britânica investigou a nova situação nas índias Ocidentais e, com base no que viu, preparou uma bomba para os seus rivais. Sem escravos, São Domingos estaria perdida. As colônias britânicas tinham escravos suficientes para todo o comércio que elas pudessem fazer. Com as lágrimas rolando em suas faces pelos negros sofredores, aqueles burgueses britânicos que não tinham interesse nas índias Ocidentais pre-pararam um grande alvoroço para a abolição do comércio de escravos. Uma raça venal de eruditos, exploradores da vaidade nacional, conspirou para obscurecer a verdade sobre a abolição. Até 1783, a bur-guesia britânica tinha como certo o comércio de escravos. Em 1773, e novamente em 1774, a Assembléia da Jamaica, temendo a insurreição e buscando aumentar a receita, taxou a importação de escravos. Com grande ira, a Junta Britânica de Comércio reprovou as medidas e disse ao Governador que ele seria exonerado se sancionasse uma proposta de lei como aquela197. Pessoas bem-intencionadas conversavam sobre a iniqüidade da escravidão e do comércio de escravos, assim como pes-soas bem-intencionadas, em 1938, conversavam sobre os problemas dos nativos na África ou sobre a miséria do camponês na índia. O dr. Johnson brindou a iminente insurreição de escravos nas Índias Ociden-tais. Membros desgarrados do Parlamento apresentaram projetos de leis para a abolição do comércio de escravos, os quais a Câmara rejeitou sem dar muita importância a eles. Em 1783, o lorde North rejeitou uma petição contra o comércio198: a petição foi uma demonstração de senti-mentos cristãos e de compaixão humana etc. etc., mas o comércio era necessário. Entretanto, com a perda da colônia americana uma nova situação surgia. Os britânicos deram-se conta de que pela abolição do sistema mercantil com a colônia americana eles ganhavam ao invés de perder. Era a primeira grande lição sobre as vantagens do livre comércio. Mas, se a Grã-Bretanha ganhava, as índias Ocidentais sofriam. A ascendente burguesia industrial, tateando o caminho para o livre comércio e uma maior exploração da índia, começou a insultar as índias Ocidentais, chamando-as de “rochas estéreis199”, e perguntou se o interesse e a in-

197. House of Commons: Accounts and Papers, 1795-1796, v. 100. 198. Parliamentary History, XXIII. p. 1026-7. 199. The Right in the Wést Indian Mercbants to a Double Monopoly of the Sugar Market of Great

Britain, and tbe expedience of all monopolies examined. (s. d.)

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dependência da nação deveriam ser sacrificados por causa de 72 mil mestres e 400 mil escravos200. A burguesia industrial começava, assim, o seu ataque, o qual seria vitorioso, sobre o monopólio agrícola que culminaria na revoga-ção das Leis do Milho em 1846. Os produtores de açúcar das índias Ocidentais eram monopolistas cujos métodos de produção proporcio-navam um alvo fácil, e Adam Smith201 e Arthur Young202, os precursores da nova era, condenavam o princípio total do trabalho escravo como sendo o mais caro do mundo. Além disso, por que não obter açúcar da Índia? A Índia, depois da perda da colônia americana, assumiu uma nova importância. A experiência britânica com açúcar em Bengala rece-beu relatórios brilhantes e, em 1791, o primeiro carregamento de navi-os chegou203. Em 1793, o sr. Randle Jackson pregaria aos acionistas da companhia um pequeno sermão sobre a nova orientação. “Parecia que a Providência, quando nos tomaram a colônia americana, não deixaria o seu povo favorito sem um amplo substituto. Quem poderá dizer que a Providência não nos tirou um membro para demonstrarmos mais se-riamente o valor de um outro204.” Certamente não era uma boa teologia, mas era uma excelente política econômica. Pitt e Dundas viram uma oportunidade de tomar o mercado continental da França no açúcar da índia. Havia o algodão e o anil. A produção de algodão da índia dobrou em poucos anos. O trabalho livre na índia custava um vintém por dia. Mas os interesses estabelecidos das Índias Ocidentais eram fortes. Os homens de Estado não agem tendo como base apenas a especulação; e essas possibilidades, por si só, não poderiam explicar nenhuma súbita mudança na política britânica. O milagroso crescimento de São Domin-gos é que foi decisivo. Pitt constatou que aproximadamente metade dos escravos importados pelas ilhas britânicas eram vendidos nas colônias francesas205”. Era o comércio britânico de escravos, portanto, que estava fazendo crescer a produção colonial francesa e colocando o mercado eu-ropeu nas mãos da França. A Grã-Bretanha estava cortando a sua própria garganta. E mesmo os lucros dessa exportação não deveriam durar.

200. CHALMERS, Opinions on Interesting Subjects ofluuo and ComercialPolicy arisingfrom Ameri-can Independence, Londres, 1784, p. 60.

201. SMITH, A riqueza das nações, v. I, p. 23. “Concluímos da experiência de todas as eras e nações ... que o trabalho feito por homens livres torna-se mais barato no final do que aquele realizado por escravos.”

202. YOUNG, Annals of Agriculture, 1788, v. IX, p. 88-96. ‘’A cultura do açúcar rea-lizada por escra-vos é a espécie mais cara de trabalho do mundo.”

203. East India Sugar, 1822, apêndice I, p. 3. . 204. Debate on the Expediency 01 cultiuating sugar in the territories 01 the East India Company, East

India House, 1793. 205. Repore 01 the Comitee 01 Privy Council for Trade and Plantations, 1789, parte IV; Tables for

Dominica and Jamaica. Ver também as estatísticas de Dundas de 18 de abril de 1792.

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Já poucos anos antes, os comerciantes de escravos tiveram um prejuízo de 700 mil libras em um só ano206. Os franceses, procurando prover a si próprios de escravos, estavam invadindo a África e aumentan-do a sua parte no comércio de escravos a cada ano. Por que continuariam a comprar da Grã-Bretanha? A Holanda e a Espanha estavam fazendo o mesmo. Por volta de 1786, Pitt, um discípulo de Adam Smith, viu clara-mente a luz. Pediu a Wilberforce para encarregar-se da campanha207. Wilberforce representava a importante divisão de Yorkshire; tinha uma grande reputação, e tudo aquilo sobre humanidade, justiça, a mancha no caráter nacional etc. etc., soaria bem, vindo dele. Pitt tinha pressa. Era importante levar o comércio a uma completa parada, rápida e repentinamente. Os franceses não tinham nem o capital nem a orga-nização para compensar a deficiência de uma vez, e São Domingos seria arruinada de um golpe só. Em 1787, ele advertiu Wilberforce de que, se este não apresentasse a moção, alguém mais o faria208, e em 1788 infor-mou o Gabinete que não permaneceria mais nele com aqueles aos quais se opunha209. Pitt estava bem certo de ter sucesso na Inglaterra. Com uma audácia verdadeiramente britânica, tentou persuadir os governos euro-peus a abolirem o comércio por causa da sua desumanidade. O Governo francês discutiu a proposta amigavelmente, mas, por volta de maio de 1789, o embaixador britânico escreveu com tristeza que foi como se toda a negociação com o Governo francês tivesse sido apenas para “fazer-nos uma cortesia e manter-nos calados e de bom humor210. Os holandeses, menos polidos, deram uma negativa mais abrupta. Porém, Pitt recebeu um grande golpe de sorte. A França estava então agitada pelos ataques pré-revolucionários a todos os abusos evidentes; e, um ano após ter sido formada na Grã-Bretanha a Sociedade Abolicionista, um grupo de libe-rais na França, Brissot, Mirabeau, Pétion, Condorcet, o padre Gregório e todos os grandes nomes dos primeiros anos da Revolução seguiram o exemplo britânico e formaram uma sociedade: os Amigos dos Negros. O espírito condutor era Brissot, um jornalista que tinha visto a escravidão nos Estados Unidos. A sociedade visava à abolição da escravidão, pu-blicava um jornal e agitava. Isso servia aos britânicos como uma luva. Clarkson foi a Paris para estimular “as energias adormecidas211”, deu-lhes dinheiro e supriu a França com propaganda antiescravagista212”. Apesar dos nomes que viriam a se tornar tão famosos e de uma ampla

206. CLARKSON, Essay on the Impolicy oftbe African Slave Trade, Londres, 1784, p. 29. 207. COUPLAND, The British Anti-Slauery Movement, Londres, 1933, p. 74. 208. COUPLAND, Wilberforce, Oxford, 1923, p. 93. 209. Fortescue MSS. (Comissão para Manuscritos Históricos, Museu Britânico.) De Pitt a Grenville,

29 de junho de 1788. v. I, p. 342. 210. Liverpool Papers. (Manuscritos adicionais, Museu Brirânico.) De lorde Dorser a lorde Hawkes-

bury. v. 38224, p. 118.211. R. r. e S. WILBERFORCE, Life of Wilberforce, Londres, 1838, v. r, p. 228. 212. Cahiers de la Révolution Française, Paris, 1935, nº III, p. 25.

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filiação, devemos tomar cuidado em pensar que os Amigos dos Negros representavam uma força. Os habitantes da colônia levavam-nos a sério; a burguesia marítima, não. Foi a Revolução Francesa que, com uma rapidez inesperada, arrastou esses franceses eloqüentes para fora da sua estimulante empolgação de propaganda filantrópica e os colocou face a face com a realidade econômica. Essas eram então as forças que, na década precedente à Revo-lução Francesa, ligavam São Domingos ao destino econômico de três continentes e aos conflitos sociais e políticos daquela era em gestação. Um comércio e um método de produção tão cruéis e tão imorais definha-riam diante daquela publicidade que uma grande revolução atira sobre as fontes da riqueza. O poderoso Governo britânico determinou a ruína do comércio nas Antilhas, agitando em casa e conspirando na França entre homens que, sem o saber, cedo teriam poderes em suas mãos. O mundo colonial (ele próprio dividido) e a burguesia francesa, cada um agindo de acordo com os seus próprios propósitos e inadvertidos do perigo que se aproximava, afastavam-se um do outro ao invés de se aproximarem. Não um líder corajoso, muitos líderes corajosos eram necessários, mas a ciência da História não era o que é hoje em dia e nenhum homem naquela época poderia prever, como podemos fazê-lo hoje, a sublevação que estava por ocorrer213. Mirabeau, de fato, disse que os habitantes da colônia dormiam à beira do Vesúvio, mas durante séculos a mesma coisa vinha sendo dita e os escravos nunca haviam feito nada. Como poderia alguém seriamente temer uma colônia tão mara-vilhosa? A escravidão parecia eterna e os lucros aumentavam. Nunca antes, e talvez nunca depois, o mundo veria algo proporcionalmente tão deslumbrante como os últimos dias da São Domingos pré-revolucionária. Entre 1783 e 1789, a produção praticamente dobrou. Entre 1764 e 1771, a média de importação de escravos variava entre dez e quinze mil. Em 1786, era de 27 mil e, de 1787 em diante, a colônia passaria a adquirir mais de quarenta mil escravos por ano. Mas a prosperidade econômica não é garantia de estabilidade so-cial. Esta reside no equilíbrio entre as classes, que muda constantemente. Foi a prosperidade da burguesia que iniciou a Revolução Inglesa do século XVII. Com cada salto na produção, a colônia marchava para a sua ruína. O enorme aumento no número de escravos estava enchendo a colônia de nativos africanos, mais ressentidos, mais obstinados, mais prontos para uma rebelião do que o crioulo. Do meio milhão de escra-vos na colônia em 1789, mais de dois terços haviam nascido na África. Esses escravos estavam sendo usados para a abertura de novas terras. Não havia tempo para permitir o período de aclimatação, conhe-cido como sazonamento, e eles morriam como moscas. Dos primeiros dias da colônia até a metade do século XVIII, foi ocorrendo alguma me-lhora no tratamento dos escravos, mas esse enorme número de recém-

213. Escrito em 1938.

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chegados, que tinham de ser quebrantados e aterrorizados para trabalhar e submeter-se, causava um medo cada vez maior e um aumento do rigor. Em 1784, os administradores, que visitavam uma das vendas de escravos, que algumas vezes serviam como mercado no lugar do tombadilho do navio negreiro onde os escravos eram normalmente negociados, pinta-ram um quadro revoltante de mortes e moribundos misturados à sujeira. O caso Le Jeune ocorreu em 1788. Em 1790, De Wimpffen relatou que nenhum artigo do Código Negro era de fato obedecido. Ele mesmo uma vez sentou-se a uma mesa com uma mulher, bela, rica e muito admirada, que havia mandado atirar um cozinheiro descuidado ao forno. O problema de alimentar esse enorme crescimento na popula-ção escrava tornava a luta entre os latifundiários e a burguesia marítima, em torno do Exclusivo, mais amarga do que nunca. Os latifundiários, depois de 1783, rasgaram uma pequena brecha na camisa-de-força que os prendia. Uma vez sentido o cheiro de sangue, queriam a carne. Os mulatos educados em Paris durante a guerra dos Sete Anos tinham voltado para casa, e sua educação e suas realizações encheram os latifundiários de ódio, inveja e medo. Foram esses últimos anos que viram a mais violenta legislação ser lançada contra eles. Proibidos de ir para a França, onde aprendiam coisas que não eram boas para eles, permaneciam em casa para aumentar a força da insatisfação. Com o crescimento do comércio e dos lucros, o número de lati-fundiários que podiam se dar ao luxo de deixar as suas propriedades a cargo de administradores aumentou. Por volta de 1789, somando-se à burguesia marítima, havia um grande grupo de proprietários absentistas na França, ligados à aristocracia pelo matrimônio, para quem São Do-mingos não era mais que uma fonte de receitas para ser gasta em Paris, na vida luxuriosa da Paris aristocrática. Tão longe penetraram esses para-sitas na aristocracia francesa que um memorando de São Domingos para o Rei diria: “Senhor, sua corte é crioula,” sem distorcer muito a verdade. A prosperidade afetou até mesmo os escravos. Um número cada vez maior deles podia poupar dinheiro, comprar a liberdade e entrar para a terra prometida. Essa era a São Domingos de 1789, a mais lucrativa colônia que o mundo jamais conhecera; para o olhar casual, a mais próspera e flores-cente possessão na face da terra; para o analista, uma sociedade dilace-rada pelas contradições internas e externas que em quatro anos poderia ter a sua estrutura fendida em tantos pedaços que não poderiam nunca ser reunidos novamente214. Foi a burguesia francesa que acendeu o pavio. Essa estranha socie-dade de São Domingos não passava de um exagero berrante, uma grotesca

214. Paródia dos versos da canção de ninar de Humpry Dumpry, o homem-ovo, que, ao cair do muro, quebrou a cabeça em tantos pedaços que não poderiam nunca ser colocados no lugar novamente. (N. do T.)

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caricatura do ancien régime215 da França. A burocracia realista, incom-petente e esbanjadora não poderia administrar as finanças da França: a aristocracia e o clero chuparam o sangue do campesinato até a última gota; impediram o desenvolvimento do país; apossaram-se vorazmente dos me-lhores lugares e consideravam a si próprios quase tão superiores à capaz e vigorosa burguesia quanto os fazendeiros brancos em relação aos mulatos. Mas a burguesia francesa também era orgulhosa, e nenhum de seus membros era mais orgulhoso do que a burguesia marítima. Vimos a sua riqueza. Eles sabiam que eram os fundamentos da prosperidade do país. E estavam-no comprando da aristocracia. Construíam grandes escolas e uni-versidades, liam Voltaire e Rousseau, enviavam seu linho para as colônias para ser lavado e obter a coloração certa e o perfume e mandavam seu vinho para duas ou três viagens de ida e volta às colônias para dar-lhe o ver-dadeiro sabor. Eles, assim como os outros burgueses, irritavam-se por causa das suas desvantagens sociais; o estado caótico da administração francesa e das finanças francesas os obstruíram e aos seus negócios. Um duro inverno, em 1788, entornou o caldo. A monarquia já estava falida e a aristocracia fez uma oferta para recuperar o seu antigo poder; os camponeses começaram a se revoltar e a burguesia viu que havia chegado a hora para ela governar o país, de acordo com o modelo britânico, em colaboração com os seus aliados, a aristocracia radical. Na agitação, na qual a Revolução Francesa começou, a burguesia marítima tomou a frente. A burguesia de Dauphiné e da Bretanha, com seus portos em Marselha e Nantes, atacou a monarquia mesmo antes da abertura oficial dos Estados-gerais; e Mirabeau, o primeiro líder da Revolução, era o deputado por Marselha. Por todo o país, os cahier216, ou listas de queixas, rebentavam. Mas o povo francês, como a vasta maioria dos europeus atuais, tinha muitas das suas próprias queixas para se preocupar com o sofrimento dos africanos, e apenas poucos cahiers, principalmente de clérigos, exi-giam a abolição da escravatura. Os Estados-gerais reuniram-se. Mira-beau, Pétion, o prefeito de Paris, o padre Gregório, Condorcet e todos os membros da Amigos dos Negros eram deputados. Todos prometiam a abolição. Mas abolição para a burguesia marítima significava ruína. No momento, entretanto, os Estados- gerais atracavam-se com o Rei. Enquanto a burguesia francesa liderava o ataque contra a monar-quia absolutista em casa, os fazendeiros seguiam o exemplo nas colô-nias. E, como na França, as divisões geográficas de São Domingos e seu desenvolvimento histórico moldavam o movimento revolucionário e a iminente insurreição dos escravos. O orgulho da colônia era a grande Planície do Norte, da qual Le Cap era o porto principal. Ao norte fazia fronteira com o oceano e

215. Em francês, no original. Antigo Regime, ou seja, a monarquia. (N. do T.) 216. Em francês, no original. Cadernos onde eram anotadas as reivindicações da população para

serem levadas aos Estados-gerais. (N. do T.)

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ao sul com uma cadeia de montanhas que corria quase todo o com-primento da ilha e tinha por volta de 35 quilômetros de comprimento e entre seis e doze quilômetros de largura. Cultivada desde 1670, era coberta de fazendas que facilmente davam uma para a outra. Le Cap era o centro econômico, social e político da ilha. Em qualquer levante revo-lucionário, os fazendeiros da Planície do Norte e os mercadores e advo-gados de Le Cap tomariam a frente. (Mas os contingentes de escravos da Planície do Norte, em estreita proximidade uns com os outros, rapida-mente tomavam consciência das várias mudanças na situação política e estariam, correspondentemente, prontos para uma ação política.) Muito diferente era a Província Ocidental, com as suas fazen-das isoladas espalhadas por amplas áreas. Em distritos como Artibonite, Verretes, Mirabelais e São Marcos, havia muitos proprietários mulatos, alguns com grandes fortunas. A Província do Sul era uma espécie de pária, algo escassamente povoado, tendo o mulato como maioria. O lado oriental, Cabo Tiburón, ficava a apenas uns 35 quilômetros da Jamaica e lá o contrabando era particularmente forte. Já em 1788, a Província do Norte tomou a liderança. Formou um comitê secreto para assegurar a representação nos Estados-gerais. Em Paris, o grupo dos nobres ricos absentistas formava um comitê com o mesmo propósito. Os dois grupos colaboraram e os nobres de Paris se recusaram a aceitar o veto do Rei. No final de 1788, os latifundiá-rios convocaram assembleias eleitorais e elegeram uma delegação, al-gumas das quais consistiam de aliados seus em Paris. Em seu cahier exigiam a abolição da justiça militar e a instituição de um poder ju-diciário civil; que toda a legislação e as taxas a serem votadas pelas assembleias provinciais estivessem sujeitas apenas à aprovação do Rei e de um Comitê Colonial reunido em Paris, mas eleito por eles. Ao res-tringir os direitos políticos dos proprietários de terra, os fazendeiros efe-tivamente excluíram os brancos pobres, que tinham pouco interesse em toda essa agitação. Dos escravos e mulatos, nem sequer fizeram men-ção. Os escravos não contavam, e os mulatos conseguiram permissão da amedrontada burocracia para enviar uma delegação a Paris às suas próprias custas. Mas um número de fazendeiros na colônia e uma boa quantidade em Paris, o Clube Massiac217, encaravam esse desejo de ser representado nos Estados gerais com desconfiança. A agitação pela abolição do comércio de escravos na Inglaterra, a propaganda dos Ami-gos dos Negros, a disposição revolucionária da França encheram-nos de pressentimentos. A representação nos Estados-gerais por um pequeno número de deputados não surtiria nenhum efeito, mas poderia atrair o brilho da publicidade e despertar o interesse político sobre o estado da sociedade em São Domingos: exatamente o que eles não queriam. Mas,

217. Clube organizado em torno do barão de Massiac, da região da Provença de mesmo nome. (N. doT.)

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se o grupo de pró-representação era minoria, com uma meta positiva eles passariam a ser intrépidos e confiantes. Os seus oponentes, com a consciência pesada e procurando apenas evitar problemas, não pode-riam opor a eles uma resistência efetiva. A representação colonial na Assembléia da metrópole era uma inovação nunca vista naquela época, mas os representantes de São Domingos, aproveitando-se do fermento revolucionário de Paris, contornavam as objeções do Rei e do ministro. Eles peticionaram à nobreza, que os ignorou. Mas, quando Luís tentou intimidar o Terceiro Estado e os deputados foram para a sala do jogo da péla218 jurar que como representantes do povo eles nunca se separariam, Gouy d’Arsy, líder da facção colonial, com arrojo liderou os seus nobres coloniais até essa reunião histórica. Por gratidão a esse apoio inespe-rado, a burguesia deu-lhes as boas-vindas e, então, a França admitiu o princípio da representação colonial. Cheios de confiança, esses donos de escravos reivindicavam dezoito cadeiras, mas Mirabeau voltou-se ferozmente para eles: “Vós reivindicais representação proporcional ao número de habitantes. Os negros livres são proprietários e pagam impos-tos, mas ainda não tiveram permissão de votar. E, quanto aos escravos, ou eles são homens, ou não o são; se os latifundiários os considerarem homens, libertã-los-ão e farão deles eleitores e elegíveis; se acaso não o considerarmos como tal, teremos nós, ao distribuir os deputados de acordo com a população da França, que considerar o número dos nos-sos cavalos e das nossas mulas?”. São Domingos tinha direito a apenas seis deputados. Em menos de cinco minutos, o grande orador liberal colocou o caso dos Amigos dos Negros claramente, diante de toda a França, em palavras inesquecíveis. Os representantes de São Domingos perceberam por fim o que eles ha-viam feito: tinham atrelado as fortunas de São Domingos à assembléia de um povo em revolução e dali em diante a história da liberdade na França e da emancipação em São Domingos seria una e indivisível. Inadvertidos desses desenvolvimentos de vulto, os latifundiários de São Domingos caminhavam de vitória em vitória. Como na França, os últimos meses de 1788 em São Domingos haviam sido difíceis. A França fora obrigada a proibir a exportação de grãos e, sob tais circunstâncias, o Exclusivo era uma imposição despótica que ameaçava a ilha com a fome. O Governador abriu alguns portos para navios estrangeiros; o in-tendente Barbé de Marbois concordou com umas pequenas aberturas para começar, mas recusou sancionar a sua ampliação. O problema chegou ao conselho do Rei, que repudiou o Governador, exonerou-o e indicou outro para o seu lugar, enquanto os latifundiários pediam a ca-beça do intendente. Essa era a situação quando, em um dia de setembro,

218. Tennis court, no original, ou quadra de tênis, devido ao fato de o jogo da péla ser semelhante ao tênis. No dia 20 de junho de 1789, os deputados do Terceiro Estado reuniram-se na sala do Jeu de Paume (jogo da péla), onde prestaram o juramento conhecido como Serment du Jeu de Paume, no qual seus membros se comprometiam “a jamais se separarem C .. ) até que seja esta-belecida a Constituição ... “. (N. do T.)

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um barco adentrou o porto e o capitão, desembarcando apressadamente, correu pelas ruas de Le Cap, gritando as novas do 14 de julho219. O Rei estivera preparando a dispersão da Assembléia Constituinte pela força, e as massas de Paris, armando-se, tomaram a Bastilha, que era um símbolo da reação feudal. A grande Revolução Francesa havia começado.

219. Queda da Bastilha: início da revolução popular. (N. doT.)

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iii- capitaliSMo induStrial

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A "Babá" dos Brasileiros: uma multinacional no setor leiteiro220

- Para Bernardo, Alaíde e Aninha, que me ajudaram para que este texto existisse.

- Para Felippe e os companheiros da Baronesa, que me ajudaram a sair da rainha fase acadêmica.

- Para Trouc, pedaço da minha vida, que me ajudou, apesar de tudo, a chegar onde cheguei.

Ouro Preto, novembro de 1981.

introDução

Subordinação da agricultura ao capital industrial e financeiro A produção agropecuária, hoje em dia, não é mais um setor isolado das demais atividades sócio-econômicas. Depende, constante-mente, do poder de decisão de entidades que lhe são estranhas: o ag-ricultor precisa receber um financiamento bancário para comprar seus insumos e ampliar suas instalações. É procurado pelas firmas difusoras das tecnologias mais sofisticadas em matéria de equipamentos. E acaba vendendo sua colheita a baixo preço, sob as pressões constantes de co-merciantes e industriais garantidos por uma forte posição oligopsônica. A agricultura se encontra em contato constante com o capital agroindus-trial e financeiro, e esse contato não é de igualdade: a agricultura está subordinada a esses setores por mecanismos complexos e variados, que podem ser alterados em função de acontecimentos conjunturais. No caso da maioria dos produtos agrícolas, existe um mecanis-mo central, pelo qual se reproduz a subordinação do produtor ao capital citado acima. Esse mecanismo é provocado pelo desajuste entre preços agrícolas e industriais. O preço dos alimentos é mantido artificialmente baixo, através de um controle governamental constante, para permitir a compressão do salário do operariado urbano: colabora, dessa maneira, com o processo de acumulação industrial. O preço dos produtos indus-triais acabados, ao contrário, não é controlado de maneira tão rígida, graças ao maior poder de barganha desse setor que se transformou, des-de a década de 1950, no eixo de acumulação da economia brasileira. Com isto, o produtor rural acaba tendo de pagar um preço cada vez mais elevado pelos insumos e equipamentos de que precisa. Proporcio-nalmente, o preço que recebe por sua produção. agrícola segue uma tendência nitidamente decrescente.

220. Esta pesquisa foi desenvolvida durante os anos de 1978 a 1980, com a ajuda financeira da Fundação Ford.

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Agricultura, Cooperativas e Multinacionais

O resultado desse processo é o endividamento crônico de mui-tos produtores rurais e a necessidade de intervenção do Estado para con-servar certo equilíbrio (crédito rural, garantia de preces mínimos e até intervenções na produção)221 . Da mesma forma, muitas empresas transformadoras de produtos agrícolas lucram com esse fenômeno: compram suas matérias-primas a um baixo preço, garantido pelo Ministério da Agricultura, e colocam seus produtos acabados no mercado a um preço bem menos controlado. A isso se soma, ainda, o poder econômico das maiores empresas trans-formadoras: nesse setor, bastante concentrado, elas possuem, frequent-emente, uma posição de monopsônio ou monopólio total. A produção agropecuária não é, portanto, um setor autárquico dentro da sociedade. A agroindústria começou a comandar o processo de produção agrícola e as relações sociais na agricultura passaram a se reorganizar em função de sua integração no complexo agroindus-trial. A agroindústria não só possibilitou uma melhoria na produtividade agrícola, um acréscimo na produção e um consequente aumento do potencial de extração do sobre trabalho no campo, mas desenvolveu, também, novas formas de extração desse sobretrabalho: uma vez que os produtores, anteriormente "independentes222” passaram a depender da agroindústria para a compra de seus insumos e para a venda de seus produtos acabados, tornaram-se subordinados a esse capital, de maneira indireta. A intensidade dessa subordinação e a forma por ela assumida dependem de vários fatores (tipo de produto, desenvolvimento das for-ças produtivas, intervenção do Estado etc.). A agroindustrialização da agricultura brasileira é um processo inevitável e irreversível. O que deve ser criticado, no entanto, é a plani-ficação do desenvolvimento agrícola do país sem um profundo controle do complexo agroindustrial que comanda a maior parte da produção rural. Não se pode esquecer a situação de crise em que se encontram os pequenos agricultores, para quem o "produzir mais", incentivado pelo Estado, muitas vezes somente é possível através de um endividamen-to maior, comprando insumos sofisticados que não lhes permitirão um aumento de sua renda. Não se podem ignorar os interesses ligados a esse "produzir mais", interesses orientados particularmente por algumas poderosas empresas oligopólicas, quase todas de capital transnacional. No Brasil, podem ser citados como exemplo, do lado dos insumos, Ford,

221. Um estudo significativo foi realizado nesse sentido, por exemplo, no Chile. Segundo esse trabalho, no final da década de 1950, somente 5% das crianças chilenas de um ano eram alimentadas artificialmente. No início da década de 1970, essa proporção tinha chegado a 80% das crianças de dois meses de idade, sendo que elas apresentavam uma taxa de mortalidade três vezes mais alta que as outras, alimentadas ao seio (Plank e Milanesi, 1973).

222. Na época de redação deste trabalho (agosto de 1980), o custo de alimentação de cada criança, de seis me-ses com leite modificado representava, aproximadamente, 18% do salário mínimo vigente. O aleitamento materno evitaria, portanto, importantes despesas, tanto no nível familiar quanto em nível macroeconômico.

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Massey-Ferguson, Valmet, Fiat, Mitsui, Bunge y Borne, Central Soja, Ralston Purina, Anderson-Clayton, Cargill, Bayer, Ciba-Geigy e o gru-po Rockefeller; do lado do processamento industrial, Unilever, Nestlé, Swift-Armour, CPC International, Standard Brands, DeI Monte, Coca-Co-la, Carnation, General Foods, Borden, BSN-Gervais Danone, Ajinomoto, Kellogg etc., todas integrantes da lista das 50 maiores empresas agroali-mentares a nível mundial223." Foram essas empresas que passaram a participar de uma série de operações ligadas à produção agrícola brasileira, desde a escolha do tipo de tecnologia que colocam no mercado, até as decisões a respeito de como e quanto vai ser plantado, e de como e quanto da produção agrícola vai ser processado. Retomando as palavras de Alberto Passos Guimarães, chegamos, aqui, a "aspectos estratégicos, que envolvem a submissão da agricultura, em todas ou na maior parte das questões de sua economia interna, às decisões das empresas multinacionais com suas subsidiárias colocadas a montante ou a jusante do complexo agroindustrial brasileiro... Essas decisões não dizem respeito apenas a questões de nature-za econômica, como, por exemplo, a captação, para as multinacionais, de grande parte da renda gerada na atividade agrícola, ao atuarem so-bre mecanismos de preços para aumentar seus lucros industriais, em detrimento dos lucros da agricultura. Elas envolvem, além daqueles, questões ainda mais importantes, de natureza não-econômica, como, por exemplo, a das opções tecnológicas e a da preferência por deter-minados cultivos em prejuízo de outros, terreno em que os interesses das multinacionais contradizem frontalmente os interesses brasileiros" (Guimarães, 1979, p. 142).

O capital estrangeiro na agricultura brasileira Já bem antes do processo de transnacionalização das grandes empresas, o capital estrangeiro estava implantado na agricultura brasilei-ra: um levantamento das empresas estrangeiras existentes no país, entre 1860 e 1913, conseguiu identificar 42 empresas ligadas ao setor agro-pecuário, num total de 534224. Essas empresas se dedicavam, quase que exclusivamente, à comercialização da produção agrícola para exporta-ção (borracha, açúcar, café). Durante as décadas que se seguiram, mas principalmente a partir dos anos 1950, o capital estrangeiro foi-se expandindo e se diversifican-do em vários setores agrícolas. Desligou-se cada vez mais das atividades

223. O trabalho mais completo a esse respeito é o de Jelliffe e Jelliffe (1979). Um estudo sobre cuidados higiênicos e diluição do leite na preparação de mamadeiras, realizado em um distrito da cidade de São Paulo, revelou dados impressionantes nesse sentido: 96% das mães classificadas no grupo sócio-econômico mais baixo não seguiam as instruções segundo as quais devem ferver todo o material cada vez que preparam uma mamadeira. Quanto à dilu-ição do leite, 49% não colocavam as quantidades aconselhadas, errando para mais ou para menos (Ulloa, [s/d )).

224. Segundo outra interpretação, seriam os próprios profissionais da saúde que colaborariam para um desmame mais rápido. Essas duas interpretações dos dados não se excluem e são válidas. Continuarão sendo aprofun-dadas em sua ação recíproca, ao longo deste trabalho.

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primárias, para concentrar-se a montante e ajusante da produção: em 1974, somente cinco das 109 maiores empresas estrangeiras estreita-mente ligadas à agricultura exerciam, ainda, atividades primárias. A partir de 1967, a penetração dessas empresas estrangeiras na agricultura chegou a alcançar um ritmo mais acelerado do que nos demais setores da economia. A totalidade dos investimentos e reinves-timentos das transnacionais "agrícolas" analisadas Por Plínio Sampaio (1977), por exemplo, superaram, em 1973-74, a soma dos 11 anos ante-riores. Quanto à proporção de reinvestimentos no estoque de capital, foi de 68,9%, contra 34,8% para as empresas estrangeiras ativas no resto da economia. Esses reinvestimentos são mais frequentes no ramo da indus-trialização de matérias-primas agrícolas. Os dados citados acima indicam a existência de uma alta lucra-tividade das empresas ligadas à agricultura, e, mais especificamente, da indústria de transformação de matérias-primas. Podem, no entanto, ser relacionados também com as possibilidades de expansão desse mercado e com a política de incentivos fiscais na área. A intervenção estatal foi essencial para a definição do lugar das empresas estrangeiras na agricultura. A reorganização do padrão de acumulação em tomo do grande capital monopolístico, os incentivos â implantação do capital transnacional no país, a modernização da agri-cultura, visando a integrá-la ao complexo agroindustrial, as medidas pro-tecionistas frente aos mercados agrícolas internacionais, os incentivos â compra de terras nas áreas de fronteiras: todos esses fatores delinearam o campo de trabalho das corporações transnacionais no Brasil. A combina-ção dessas vantagens — proporcionadas pelo modelo econômico vigente - com outras vantagens "naturais" (grandes extensões de terras agrícolas, mercado potencial considerável) tomou o Brasil um dos maiores focos mundiais de atração para o capital transnacional ligado à agricultura. Qual é a extensão atual tomada por esse fenômeno? Segundo cálculo de Plínio Sampaio, 20 a 30% do capital estrangeiro investido no país localizar-se-iam na produção agrícola propriamente dita, à sua jusante ou à sua montante. Essa participação, vista em termos de núme-ro de empresas, é a seguinte: das 400 maiores, 109 empresas, ou seja, 28%, realizam atividades ligadas à agricultura225.

Formas de integração Quais são as formas concretas que adotou o capital industrial, e mais particularmente o capital industrial transnacional, em sua integra-ção à agricultura? Na escolha entre duas opções básicas, a integração vertical (com a produção direta da matéria-prima) ou a quase-integração (em que a produção agrícola a ser processada é comprada de produtores

225. Segundo outra interpretação, seriam os próprios profissionais da saúde que colaborariam para um desmame mais rápido. Essas duas interpretações dos dados não se excluem e são válidas. Continuarão sendo aprofun-dadas em sua ação recíproca, ao longo deste trabalho.

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em estabelecimentos próprios), o segundo caso é o mais comum; mas a opção por um ou outro sistema de produção dependerá de muitos fa-tores, como o tipo de cultura escolhido, possíveis imposições estatais etc. A integração vertical permite um maior controle da regularidade nos prazos de entrega, da quantidade, qualidade e homogeneidade dos produtos, e pode até diminuir os custos de produção. Foi o esquema predileto da economia colonial, com plantações e enclaves integrados diretamente no processamento e na comercialização a nível mundial. No Brasil, temos, por exemplo, os tradicionais engenhos do Nordeste, ligados ao mercado mundial do açúcar. Agroindústrias modernas também recorreram à integração ver-tical para possibilitar um grau mais elevado de acumulação de capi-tal: no setor avícola, por exemplo, o atual desenvolvimento das forças produtivas fez com que os ganhos de escala permitissem alcançar uma rentabilidade econômica maior. Em outros casos, os incentivos públicos é que determinaram a escolha desse tipo de produção. Tais incentivos foram importantes para a implantação de muitos projetos de pecuária, de reflorestamento etc., em regiões beneficiadas por incentivos fiscais. O recurso à quase-integração, de outro lado, pode também ser induzido pelo Estado, ou então depender de contratos diretos entre produtores e agroindústria. No primeiro caso, o Estado assume, da maneira mais direta pos-sível, a organização das relações entre agricultores e indústria, chegando a controlar cada passo da produção em função de sua posterior transfor-mação industrial. É o caso, por exemplo, da Codevasf, no vale do São Francisco (ver Sorj, 1980). No caso da quase-integração mediante agricultura de contrato, de outro lado, a agroindústria assegura aos produtores — por contrato — o fornecimento dos insumos necessários e a posterior compra de toda a sua produção. Um exemplo típico a ser citado aqui é o da produção de fumo no Rio Grande do Sul: "No caso do fumo, as empresas [proces-sadoras] fornecem todos os insumos necessários, controlam as sementes, fazendo pesquisa das variedades que lhes interessam, dão assistência técnica sistemática, garantem crédito, enfim, dão todas as condições de produção ao camponês, menos terra e mão-de-obra. No final da safra o camponês é obrigado a entregar para a empresa toda a sua produção aos preços fixados pela indústria" (Bueno, in Movimento, nº 212). O produtor, ainda formalmente proprietário de sua terra, perde, de fato, toda a sua autonomia decisória e transforma-se num simples elo da corrente agroindustrial dirigida pela empresa de transformação. Para muitos tipos de produtos, as relações entre produtor e em-presa transformadora são menos definidas e a dependência recíproca menos acentuada: em certos casos, a indústria transformadora não for-nece insumos, em outros, não existe contrato formal obrigando o produ-tor a lhe entregar toda a sua colheita, ou os preços não são fixados pela indústria, e sim pelo Estado etc.

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Apesar de uma "independência" maior do produtor, existe um predomínio evidente da grande empresa industrial. Esta consegue apro-priar-se de uma parte importante do sobre produto gerado na produção agrícola, submetendo os produtores a seus interesses econômicos. É o que veremos no caso escolhido aqui como objeto de estudo: o setor leiteiro. Trata-se de um assunto particularmente importante, por ser um setor essencial à alimentação popular, caracterizado, nestes úl-timos anos, por crises alternadas de superprodução e de escassez do produto. Tanto o setor de insumos leiteiros quanto o de laticínios estão passando por um rápido processo de concentração e são dominados por alguns oligopólios transnacionais. Os produtores, por sua vez, estão cada vez mais integrados numa economia mercantil. Graças à importância de suas cooperativas, o setor leiteiro se tornou, também, um lugar privilegiado para o estudo das relações entre produtores, indústria de transformação e Estado.

Concentração e origem do capital no "ciclo do leite" No caso da produção leiteira brasileira, como se apresenta a re-lação entre capital nacional e estrangeiro? Podemos analisar o processo de produção leiteira como uma sucessão de momentos produtivos de vários subsetores, integrados entre si. Começa pela produção dos insumos e dos equipamentos necessários à exploração leiteira (rações para o gado, máquinas para ordenha etc.). Esse subsetor se comunica com um segundo, o da produção leiteira pro-priamente dita, que, por sua vez, manda seu produto final, o leite cru, para a indústria de processamento (pasteurização do leite e produção de derivados). Depois, os produtos acabados serão mandados para o setor de comercialização e, enfim, serão dirigidos para o mercado consumi-dor: é a essa sucessão de operações que se chama, aqui, "ciclo do leite". O elo principal da corrente descrita é, sem dúvida, o produtor rural: ele é o responsável pela produção leiteira propriamente dita e, sem ele, os produtos lácteos nunca poderiam chegar até à mesa do con-sumidor. Qual é, então, a situação desse produtor?

Produção leiteira Informações a nível nacional podem ser encontradas no Censo Agropecuário de 1970. Segundo essa fonte, 70% dos produtores de leite ocupam áreas de menos de 50ha e se responsabilizam por 35,5% da produção. Escolhendo outro limite, o dos estabelecimentos de até 100ha, vemos que estes representam 82% do total. Tais dados evidenciam, por-tanto, uma produção atomizada quanto ao número de produtores, local-izada principalmente em propriedades de menos de 50ha. A maior parte da produção, contudo, provém de estabelecimentos maiores. Essas informações globais, no entanto, devem ser relativizadas

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e colocadas em contextos regionais bem diferentes. Estudos específicos sobre a tradicional região leiteira de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro demonstraram que sua produção depende, principalmente, de pequenas e médias unidades familiares226. Em Minas Gerais, por exem-plo, a fragmentação da produção é retratada pelos recebimentos da co-operativa leiteira central do Estado (CCPR): 54% de seus cooperados lhe entregam uma produção que varia entre 1 e 25 litros diários. Dados da CBCL - Confederação Brasileira de Cooperativas de Laticínios (órgão político de representação cooperativista que agrupa, atualmente, as cooperativas centrais de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná) - permitem-nos dar mais um passo adiante na caracter-ização das unidades produtivas. Comparando a média diária de litros en-tregues por associado às suas cooperativas afiliadas, durante os últimos anos, vemos que está em redução constante, enquanto a produção total vem aumentando: parece que o leite entregue à Confederação Brasileira de Cooperativas é produzido de maneira cada vez mais fragmentada, em estabelecimentos cada vez menos especializa dos nessa atividade227. Na maior parte dos estabelecimentos citados pelo Censo de 1970, a produção leiteira representa uma atividade secundária, quan-do comparada, em termos de renda, à agricultura propriamente dita. É desenvolvida de maneira tradicional, ultrapassando raras vezes uma produtividade baixa (a média nacional é de 2,2 litros de leite por vaca). São poucos os produtores que conseguiram modernizar sua produção, para melhorá-la de maneira profunda. Os únicos que realmente se capi-talizaram, em grande escala, durante os últimos anos, são uma mino-ria de grandes produtores, que apresentam garantias suficientes para se beneficiar do sistema oficial de crédito. A situação de algumas regiões que não possuem tradição leiteira (novas áreas de Minas Gerais, Bahia e Goiás) é radicalmente diferente: tem-se notado ali um grande dinamismo na produção de leite, causado pelo deslocamento, para essas áreas, de importantes empresas de lat-icínios. De fato, parece ser mais lucrativo para elas implantar fábricas nessas novas regiões do que lutar contra os fatores estruturais (citados a seguir) que impeçam a expansão do setor leiteiro tradicional. Tendo escolhido regiões com numeroso rebanho de corte, es-sas empresas deram oportunidade aos produtores para comercializar um importante subproduto de sua atividade. Contrariamente à situação observada nas bacias leiteiras tradicionais, os fornecedores, aqui, são,

226. Os laboratórios Abbott, por exemplo, expandiram suas vendas internas de leite modificado para uso infantil de somente 9% entre 1972 e 1973, enquanto seus negócios no exterior aumentaram em 32% (Kucinski e Ledogar, 19.77).

227. Informações mais detalhadas sobre as práticas de venda das transnacionais de leite em pó podem ser encontra-das em Schweizerische Arbeitsgruppe fur Entwickiungspolitik, 1974; Arbeitsgruppe Dritte Welt Bem, 1976 e Lappé e Collins (1977), além da já citada pesquisa de M. Müller (1974). Esses trabalhos denunciam a maneira violenta pela qual essas empresas impunham seus produtos em países periféricos.

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sobretudo, grandes produtores rurais que possuem propriedades e re-banhos bem maiores. O crescimento da produção leiteira nessas regiões novas compensou a queda constatada nas áreas tradicionais.

O produtor no "price-cost squeeze" Vimos que, em decorrência da subordinação da agricultura às ne-cessidades da acumulação industrial, foi possível tabelar os alimentos de primeira necessidade, para tentar controlar o custo de reprodução da força de trabalho industrial urbana. Dessa maneira, o preço do leite é mantido artificialmente baixo e não consegue acompanhar o ritmo dos custos de produção, que sobem com muito mais rapidez. Isso pode ser ilustrado com uma análise comparativa da evolução dos preços do leite, dos insumos necessários à sua produção e da terra para pastos, na última década. O preço oficial pago aos produtores de leite apresentou índices decrescentes até o ano de 1973, época em que foi reajustado e aumen-tado regularmente pelo Governo Federal. O crescimento total do preço real pago ao produtor, de janeiro de 1974 a julho de 1978, por exemplo, foi de 11,5% (dados da Sunab). Como se relaciona esse aumento com o preço dos insumos? Algumas informações foram conseguidas a esse respeito, em dados do Instituto de Economia Agrícola do Estado de São Paulo. Segundo esse Instituto, o aumento anual médio do preço real dos insumos leiteiros, no Estado, entre 1973 e 1976, foi de 88,5% para adubos e defensivos, 53% para vacinas e medicamentos, 46% para utensílios e combustíveis, 31 % para mão-de-obra, 30% para sementes e mudas e 19% para a alimenta-ção do gado. De outro lado, em face da valorização constante do preço das terras agrícolas no Brasil, a compra ou o aluguel de pasto também im-plica um gasto cada vez maior para os pecuaristas. Em São Paulo, por exemplo, único Estado a respeito do qual se conseguiu esse tipo de da-dos, vemos que, para comprar um hectare de terra para pastagens, em 1971, um pecuarista leiteiro precisava ter o valor correspondente a 2,23t de leite. Para comprar a mesma quantidade de terra em 1972, 1973 e 1974, ele precisou, respectivamente, do valor correspondente a 2,58, 1,90 e 4,40t de leite in natura228. Esse aumento do preço dos insumos e da terra agrícola, muito superior aos acréscimos concedidos para o leite, constituiu importante fa-tor de desestímulo para os produtores das regiões leiteiras tradicionais. A pecuária extensiva, que precisa de grandes áreas de pastos, torna-se cada vez menos rentável, especialmente quando não é acompanhada por um crescimento da produtividade conciliável com os aumentos nos custos.

228. O leite maternizado, ou leite modificado para uso infantil, é um leite de vaca desnatado ou semidesnatado (subproduto da fabricação de manteiga), diluído a um terço, aumentado em sua lactose e acrescido de óleos vegetais e vitaminas. Essa mistura barata poderia eventualmente ser vendida pela metade do preço do leite integral (Barbosa Filho, 1977, p. 120). Atualmente, seu preço é mais caro.

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Nessas bacias leiteiras tradicionais, então, a produção de leite foi relegada essencialmente a pequenas explorações familiares, que apoiam a comercialização do leite na produção de artigos de subsistência. A remuneração desses produtores não inclui renda fundiária, nem remu-neração por seu capital: somente lhes permite a reprodução simples do processo de produção, e leva, muitas vezes, à descapitalização das uni-dades produtivas. Os únicos que conseguem trabalhar com certa rentabilidade são os grandes produtores, que aproveitam a maior escala de sua produção e o crescimento natural do rebanho. Mesmo assim, muitos procuraram no-vas possibilidades de produção. Começaram a produzir leite B, um leite de qualidade superior, com maior teor de gordura, e cuja produção ex-ige importantes investimentos e tecnologia mais avançada. Em oposição ao leite C (o leite comum), seu preço não é estabelecido oficialmente, o que permite uma significativa diferença de renda. O processo de descapitalização das pequenas unidades produ-tivas das regiões leiteiras tradicionais, mencionado acima, entra em contradição com o objetivo de capitalização do campo brasileiro, de-senvolvido pelo capital agroindustrial, e com os incentivos estatais que visam à regulamentação e ao aumento da produção. Resultam, dessas' várias tendências, a sobrevivência cada vez mais precária das peque-nas explorações tradicionais e o favorecimento das unidades médias e grandes, pela atuação do Estado e do capital agroindustrial.

O setor de insumos O setor de insumos e equipamentos ligados à produção de leite não é homogêneo: o mercado de cada um de seus produtos apresen-ta características próprias. E possível, porém, destacar alguns aspectos gerais referentes à concentração do capital e à participação nacional e estrangeira no setor229. Em todos os ramos, a dependência externa é muito importante. Para certos produtos, ela predomina sob a forma de importações: é o caso dos fertilizantes, responsáveis, até hoje, por grande parte do déficit do balanço de pagamentos brasileiro. É o caso, também, das práticas de inseminação artificial e de semeadura de pastagens, técnicas de uso recente no Brasil, que somente puderam ser introduzidas através da im-portação maciça de sementes e sêmen.

229. É bem óbvia a influência que grandes corporações tais como a Nestlé podem exercer sobre a opinião pública, através de artigos de jornalistas especializados. A estratégia das filiais da empresa não deve diferir da de sua matriz: procura-se, primeiro, um jornalista conhecido, que poderia ser favorável à sua causa. O serviço in-terno de publicidade da empresa o informa sobre os problemas a serem tratados e providencia, para ele, os documentos necessários. É preciso que ele sempre conserve um tom de “objetividade”: “É excelente que o Sr. Keller nos assista escrevendo artigos sobre multinacionais, mas deve-se evitar que pareça ser pago pelas corporações. Isso privaria seus artigos de toda credibilidade (...) Seria também útil procurar saber como ele poderia ajudar-nos a melhorar a imagem das grandes firmas, mas aqui também deveria ser evitado que sua colaboração com o nosso grupo minasse a influência que tem sobre seus leitores e diminuísse, assim, o valor do que ele faz”. (Carta de G. Altwegg, Diretor Associado da Nestlé suíça, a H. Fehr, Vice-Diretor da Hoffrnan-La Roche, em 23 de novembro de 1973, citada em The infiltratton of the UN system by multinational corpora-tions, [s/d], p. 40).

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A dependência externa existe, ainda, na implantação direta de indústrias estrangeiras para a produção dos insumos. Em quase todos os subsetores, o mercado é liderado por empresas de capital transnacio-nal230. Na produção de rações, por exemplo, encontramos a Ralston Puri-na, a Cargill, a Central Soja, a Dreyfus e a Continental Grains. O mercado de produtos veterinários é liderado pela Bayer, a Pfizer, a Rhodia-Méri-eux, a Ciba-Geigy, a Squibb e a Liquegás italiana, seguidos por muitos outros laboratórios farmacêuticos estrangeiros. Na área de sementes para pastagens, temos a International Basic Economy Corporation, a Dekalb e a Continental Grains. Quanto à produção de ordenhadeiras mecânicas, encontramos a Alfa-Laval sueca e a Westphalia alemã. Ao lado dessas empresas de capital transnacional, existem al-gumas indústrias nacionais de porte médio ou grande, que conseguem conviver ou, até mesmo, expandir-se nesse setor claramente dominado pelos interesses estrangeiros. O capital nacional conseguiu desenvolver-se principalmente nas áreas em que a concorrência exige capital menos concentrado e te cronologia menos sofisticada. Nesses setores, os vários tipos de capital chegaram a um funcionamento integrado, dividindo o mercado ou mesmo associando-se entre si. O que distingue as corporações transnacionais de suas irmãs brasileiras é sua maior capacidade de diversificação e sua consequente implantação m mercados variados, além de uma clara superioridade fi-nanceira. São favorecidas, também, quando se torna necessária a aqui-sição de recursos ou de matérias-primas do exterior. Quanto ao capital estatal, também entrou na produção direta de insumos agrícolas, prin-cipalmente no setor de fertilizantes, onde se tornou premente a neces-sidade de aumentar a produção através de grande concentração de capi-tal. Nesse setor, também, chegou-se a vários tipos de associações entre capital estrangeiro, nacional e estatal. Para quase todos os insumos leiteiros, o mercado é extremamente concentrado: os mercados de rações, produtos veterinários, corretivos, fertilizantes, sementes e ordenhadeiras são liderados por poderosos oli-gopólios, o que assegura, a essas empresas, uma maior facilidade para impor suas condições de venda, preços etc. Muitas dentre elas fazem propaganda direta junto aos pecuaris-tas e têm serviços de assistência técnica cujos funcionários visitam as fazendas, para facilitar as vendas. Induzem os produtores a escolherem o tipo de tecnologia que colocam no mercado e que, muitas vezes, pode

230. A empresa enumerou, em seu relatório de diretoria de 1976, por exemplo, sua colaboração aos seguintes acontecimentos durante o ano de 1975: “Curso Nestlé de Atualização em Pediatria”, Juiz de Fora (MG); “Encontro Nestlé de Prática Pediátrica”, Uberaba (MG); “Curso de Neonatologia”, Manaus; “Primeira Jor-nada Campista de Pediatria”, “Sexta Jornada Fluminense de Pediatria” e “Primeira Reunião Materno-Infantil de Campos”, Campos; “Décimo Curso de Atualização em Pediatria do Hospital Andaraí”, Rio de Janeiro; “Segunda Reunião de Pediatria Social dos Estados Nordestinos”, Aracaju; “XI Congresso Pan-Americano de Pediatria”, “IV Congresso Latino-Americano de Pediatria”; “XIX Congresso Brasileiro de Pediatria”, São Paulo; “Primeiro Congresso Pediátrico do Espírito Santo”, Vitória etc. (Di4rio Oficial do Estado de São Paulo, 28 de abril de 1976, p. 74).

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não ser o mais indicado, nem o mais econômico. No caso da indústria veterinária, por exemplo, existe uma venda indiscriminada de certos remédios, especialmente antibióticos, feita por vendedores leigos que ganham por comissão, o que levou a uma difusão muitas vezes abusiva de tais remédios. As empresas estrangeiras, sendo as mais dinâmicas e dispondo de maiores recursos financeiros, desempenham um papel importante na modernização e na capitalização dos estabelecimentos leiteiros. Muitos de seus serviços privados de assistência técnica chegam a orientar os pecuaristas quanto à organização de sua produção, à tecnologia a ser utilizada, aos investimentos futuros etc. Em muitos casos, a indústria de insumos e equipamentos leit-eiros teve sua expansão facilitada pelo Estado: este lhe assegurou sua colaboração, através de uma nova legislação tarifária, a instalação de serviços de assistência técnica oficial, a obrigatoriedade de vacinação do rebanho, a outorga de financiamentos orientados, a fixação do preço do leite para o produtor etc231. A menção que aqui se faz acerca do poder oligopólico das in-dústrias de insumos e de suas elaboradas estratégias de venda pode levar a uma impressão errônea sobre seu grau de penetração entre os pecu-aristas leiteiros. De fato, a difusão de seus produtos foi limitada pelo processo de descapitalização crescente constatado nas bacias leiteiras tradicionais. Faltam ao pequeno produtor tradicional, que trabalha com níveis de produtividade baixíssimos e capitalização quase nula, os re-cursos necessários à aquisição de muitos equipamentos. As empresas citadas tiveram, pois, de dirigir sua estratégia prioritariamente para os produtores médios e grandes que dispõem dos recursos e das garantias necessárias à modernização.

Transformação industrial Vimos que os pecuaristas leiteiros se tornam cada vez mais de-pendentes das indústrias de insumos. Por outro lado, eles vendem seu produto, o leite cru, a empresas que o submeterão a um processo de transformação industrial, antes de colocá-lo no mercado consumidor. Quanto às indústrias de transformação de leite em seu conjunto, é preciso tratar separadamente da pasteurização para consumo in natura e da posterior transformação industrial (leite em pó, iogurtes etc.). Trata-se de dois ramos com características bem distintas. Já se mencionou o fato de que o leite in natura, produto básico da dieta popular, tem seu preço submetido a um controle oficial. Isso é

231. Um claro exemplo desse controle pode ser encontrado nos acontecimentos que “perturbaram” o Congresso de Nutrição realizado em agosto de 1977, no Hotel Nacional do Rio de Janeiro. Durante esse congres-so, foi divulgado, entre os participantes, um abaixo-assinado que denunciava certas práticas da Nestlé em países do Terceiro Mundo. O abaixo-assinado foi retirado da circulação e a pessoa responsável por sua divulgação ficou retida pelo Serviço de Segurança do Congresso durante toda a duração do encontro.

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verdade para cada etapa da produção e da comercialização: são contro-lados tanto o preço pago ao produtor como o pago à empresa pasteuri-zadora e ao varejista. Cada um desses agentes tem seu lucro diminuído ao máximo, garantindo, assim, a chegada do leite ao mercado consumi-dor ao preço mais acessível possível. Esse controle governamental, que impõe aos produtores preços mais baixos que o valor de seu produto, permite uma importante trans-ferência de excedentes para a posterior industrialização. As transformadoras captam, assim, o excedente gerado no setor agropecuário e fixam livremente o preço dos produtos que colocam no mercado. As pasteurizadoras, ao contrário, têm seu preço regulamen-tado e são obrigadas a transferir o excedente para a esfera do capital em geral. Essa tendência ainda se encontra reforçada pela posição de monopsônio e, em muitos casos, de quase-monopólio das empresas transformadoras, fato que já seria suficiente para garantir-lhes taxas de lucro superiores às taxas médias. A partir desses dois fenômenos, chega-se a situações como a da Chambourcy, subsidiária da Nestlé e especializada na produção de iogurtes e de sobremesas lácteas, que trabalhou, em 1976, com uma rentabilidade declarada de quase 60%232. Em um aso como este, apa-rece claramente a importância da pequena produção agrícola vinculada à agroindústria: a empresa não teria nenhum interesse em assumir, ela mesma, a produção leiteira, através de fazendas próprias, porque não poderia mais usufruir esse rebaixamento oficial do custo de sua principal matéria-prima. Tendo feito essa divisão entre pasteurização do leite in natura, de um lado, e derivados, de outro, vemos que a essa primeira divisão corre-sponde outra: enquanto a pasteurização é feita unicamente por empre-sas de capital nacional privado e cooperativas, as empresas estrangei-ras se encontram no segundo grupo. Elas se concentram nesse ramo mais dinâmico e lucrativo, seja diretamente na produção (por exemplo Nestlé, Leite Glória), seja por contratos de fornecimento de know-how e assistência técnica a empresas nacionais de laticínios233. Na estrutura de mercado dos vários derivados, aparecem, niti-damente, a concentração e o domínio das empresas transnacionais no setor234.

232. Alguns anos atrás, a empresa colocava até companhia feminina à disposição dos congressistas. 233. Esse fenômeno foi analisado como um dos aspectos do processo de expropriação dos meios de sobrevivência

autônoma das classes populares em Veiga (1976). Existem alguns programas oficiais de incentivo à amamen-tação materna, porém, em face dos recursos aplicados pela Nestlé esse esforço parece ser ainda bastante marginal e descontínuo.

234. Não se pretende chegar, neste trabalho, a um estudo exaustivo do problema, uma vez que isso suporia um in-strumental metodológico mais completo, do qual a autora não dispõe agora, nem do ponto de vista da análise ideológica, nem do da análise estritamente linguística. Limita-se a oferecer certo material descritivo, resultante de algumas observações de caráter quase intuitivo. Elas contêm, sem dúvida, a indicação de certas temáticas que poderão ser aprofundadas em estudos posteriores.

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Do mercado de leite em pó, por exemplo, 75% pertencem à Nestlé. Até os anos 1950, essa empresa tinha um controle quase abso-luto do mercado. Em meados dos anos 1970, compartilhava os 25% res-tantes com a Leite Glória (subsidiária da Standard Brands, norte-ameri-cana), a Vigor (nacional), a Gervais-Danone (francesa) e outras. Quanto ao mercado específico do leite infantil modificado, o controle da Nestlé era de quase 100%. A Nestlé dominava, também, o mercado de leite condensado e o de creme de leite esterilizado. Tradicionalmente, era a única produtora. Desde 1977, no entanto, uma empresa nacional, a Mococa, conseguiu uma participação de 5 a 10% no mercado desses dois produtos. Para isso, no entanto, teve de lançá-los "idênticos em qualidade, preço e até mesmo apresentação de embalagem" aos de sua concorrente235. O mercado de iogurte e de sobremesas lácteas é liderado pelos produtos Danone, Como esta foi a primeira empresa do país a colo-car tais produtos no mercado, a partir de 1970, conseguiu facilmente dominá-lo e pôde fixar seus preços a um nível que lhe garantisse uma grande margem de lucro236. Seu sucesso estimulou outras empresas a imitá-la e, no final da década de 1970, tinha como principal concor-rente, a Chambourcy/Nestlé, seguindo-se a Vigor, as Cooperativas Cen-trais paulista, carioca, mineira e outras. A indústria de queijo, ao contrário dos derivados anteriormente citados, constitui uma área muito tradicional no setor de laticínios. Existem algumas empresas médias e grandes, que se responsabilizam pelo abastecimento das metrópoles, e inúmeras "microindústrias", que vendem seus produtos para um reduzido mercado local ou regional. A produção de queijos tradicionais está, pois, até hoje, nas mãos de em-presas nacionais. Os únicos queijos que atraíram as estrangeiras foram os finos, de luxo: também nesse caso, elas se estão dedicando aos produtos mais sofisticados, dirigidos às classes urbanas de alto poder aquisitivo e que lhes garantam taxas de lucro mais elevadas.

Papel do Estado Já se lembrou a ação do Estado na difusão de modernos insumos leiteiros. Seu papel é essencial, também, na transferência dos exceden-tes gerados na área agrícola, para as indústrias de transformação ou, no caso da pasteurização, para a esfera do capital em geral. O elemento central no processo de captação desses excedentes reside na fixação do preço do leite abaixo de seu valor. O preço do leite

235. Para facilitar a exposição, são citados fragmentos selecionados. A autora está consciente das limitações iner-entes a essa metodologia de trabalho: citações, retiradas do seu contexto, podem ser interpretadas de maneira polissêmica e manipuladas para provar qualquer coisa. No entanto, essa metodologia pareceu a única pos-sível no quadro deste estudo, pressupondo-se, evidentemente, que os fragmentos escolhidos reflitam um certo sentido contido na unidade do texto original do qual foram extraídos.

236. J.P. Brulhart, diretor-presidente da Cícobra/Nestlé, em Atualidades Nestlé n9 50, 177, p. 5.

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é um preço político, elaborado em função das' relações de força dentro da economia em geral, e do setor de laticínios em particular. O Estado não só determina o preço do litro de leite, mas também exerce um controle sobre as cooperativas, influencia o desenvolvimento das empresas agroindustriais etc.; enfim, desempenha um papel essen-cial, por ação ou omissão, ao resolver os conflitos de interesses entre os vários atores do setor leiteiro. Dentro da cadeia agroindustrial descrita acima, o subsetor de produção de leite cru é o mais fracionado. Os produtores de leite são ligados, de um lado, ao subsetor de insumos, muito concentrado e liderado por oligopólios estrangeiros. De outro lado, vendem seu produ-to para empresas de transformação pertencentes ao setor de derivados — controlado por oligopólios transnacionais — ou de pasteurização — nas mãos de indústrias nacionais privadas ou de cooperativas. O subsetor de produção do leite cru aparece, pois, como um elo mais fraco dessa corrente, controlado pelo Estado e confrontado com indústrias de grande poder econômico e financeiro.

Importância da Nestlé no "ciclo do leite" brasileiro Este trabalho se propõe estudar a atuação de urna empresa es-pecífica dentro do setor leiteiro. Trata-se da Nestlé. Essa empresa não foi escolhida em função de sua representatividade, mas, sim; por causa de sua enorme influência no setor. Ou, para citar as palavras de um alto funcionário do Ministério da Agricultura: "~ impossível, hoje, plane-jar uma política leiteira para o país que não leve em conta o poder da Nestlé." Em que consiste esse poder? Instalada no Brasil desde 1921, recebendo uma produção de mais de 3 milhões de litros por dia e controlando 75% do mercado de leite em pó, a empresa conseguiu influenciar profundamente a estrutura do setor leiteiro brasileiro, com sua atual relação entre pasteurização e produção de derivados. Em certos países, a instalação de uma fábrica de leite em pó se dá somente quando existe excesso na produção leiteira. No Brasil, ao contrário, o impulso dado às empresas de transformação tem sido primordial, e assistimos a situações tão paradoxais quanto a instalação (beneficiada por incentivos fiscais) de grandes fábricas em regiões de escassa produção leiteira, valendo-se do argumento de que são impor-tantes consumidoras de leite em pó. A Nestlé, maior representante da indústria de transformação de leite, compra grande parte da produção de leite do país para transformá-la em derivados. Com isso, provoca escassez de leite fluido no mer-cado133 . Um produto 'essencial à alimentação popular é desviado para a produção de laticínios cada vez mais diversificados e sofisticados, des-tinados a uma pequena parcela da população. São produtos "de luxo", apesar de serem comprados, também, pelas camadas mais pobres: não

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são essenciais a um regime alimentício básico e, muitas vezes, sua aqui-sição leva a gastos que diminuem o consumo de outros alimentos, de maior poder nutritivo. A empresa acaba impondo hábitos alimentares próprios aos países "desenvolvidos", colaborando, dessa maneira, para uma queda do nível geral de nutrição. A Nestlé, evidentemente, não é a única empresa que apresenta o comportamento aqui descrito: no Brasil, a falta de incentivos ao setor de pasteurização provocou um crescimento constante do volume de leite destinado à produção de derivados. Segundo estimativa do Ministério da Agricultura, essa proporção, que representava 50% do volume total produzido em 1975, já tinha aumentado para 67% em 1978. Todas as empresas brasileiras de laticínios dependem, para sua expansão (ou mesmo para sua sobrevivência), da produção de deriva-dos. Mas um dos fatores que, sem dúvida, contribuíram para a falta de incentivos ao setor de pasteurização foi a presença antiga da Nestlé nas principais bacias leiteiras do país. Esta dificultou, desde o início, o sur-gimento de cooperativas com maior poder de barganha, que poderiam defender uma política oficial voltada para o leite líquido, uma vez que elas sempre foram as principais comercializadoras desse produto237. A procura de leite para fabricação de derivados, nas bacias leiteiras próximas às metrópoles, provocou uma séria diminuição do leite fluido disponível nesses mercados. A falta de leite pasteurizado na Grande São Paulo foi estimada, por exemplo, em plena época de safra de 1977, em 500 mil litros diários238 . Como resolver o problema da escassez de leite nos grandes cen-tros consumidores? Isso vem sendo feito graças a importações regulares e crescentes de leite em pó. Aqui, de novo, somos confrontados com a presença da Nestlé: várias de suas filiais espalhadas pelo mundo são fornecedoras do leite que será importado pelo Governo brasileiro, para suprir o déficit interno239. O círculo acaba por se fechar: a Nestlé, uma das principais em-presas responsáveis pela falta de leite pasteurizado no mercado, fornece uma parte do pó que vai ser reconstituído em leite fluido, para compen-sar a falta existente. Essa rápida descrição de situações ligadas ao mercado de leite basta para justificar a escolha do terna da presente pesquisa.

237 Entreprise, n9 821,5 de junho de 1971, pp. 38-49. 238 E, em outro trecho: “(...) Duvidamos apenas de uma coisa (falamos como povo, como consumidor, repetimos):

estariam esses subprodutos do leite por melhores preços, isto é, mais baixos, caso não existisse na região uma grande fábrica de laticínios? A situação de antigamente (anterior à Nestlé) era melhor que a de hoje, isso levando em conta o poder aquisitivo daquela época? Não estamos defendendo a Nestlé, nem os produtores; raciocinamos apenas como consumidores. “ (“Sr. produtor e fornecedor de leite”, in Voz do Rio Verde, jornal local da cidade de Três Corações (MG), 2 de junho de 1963. Grifos da autora.)

239. Banas, 1º de novembro de 1971, pp. 12-16.

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Conteúdo deste estudo O primeiro capítulo tratará brevemente da implantação e da evolução da Nestlé no Brasil. Descreverá sua estrutura financeira, sua estratégia empresarial e sua evolução patrimonial. Seguir-se-á, depois, uma descrição da atuação da Nestlé no mercado leiteiro nacional. Em uma segunda parte, mais extensa, analisaremos a posição dessa empresa transnacional nas várias etapas do "ciclo do leite", já mencionado. Duas etapas desse ciclo foram escolhidas para serem aprofun-dadas em capítulos específicos: o segundo analisa as relações existentes entre a empresa e seus fornecedores de leite; o terceiro, sua atuação no mercado consumidor. O estudo do contato que a Nestlé estabelece com os produtores rurais é essencial: através dele, chegaremos aos problemas gerais da pequena produção ligada à agroindústria. Essa pequena produção, or-ganizada ou não em cooperativas, depende fortemente de suas empre-sas compradoras e dos mecanismos desenvolvidos para consolidar sua dependência. o que veremos no caso particular dos fornecedores desse grupo transnacional. Depois, seguir-se-á uma análise da atuação da Nestlé no mer-cado alimentar nacional e de sua influência nos hábitos de alimentação popular. Esse processo será estudado através de um caso particularmente interessante: o da substituição do leitamento materno pela alimentação artificial de recém-nascidos, no Brasil. Esta última parte analisará a mudança de comportamento dos consumidores, quando confrontados com a colocação de novos produ-tos no mercado. Veremos como a empresa se aproveita, de maneira ativa, de uma corrente ideológica mais ampla, ligada ao processo de acumulação do capital industrial.

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iii - capitaliSMo Financeiro e globalizado

João peDro steDile

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i- as tenDênCias Do Capital sobre a agriCultura

1. os MoviMentos Do Capital na atual Fase hegeMonizaDa pelo Capital FinanCeiro e De nível internaCional

O desenvolvimento do modo de produção capitalista passou por várias fases. Iniciou no século XV como capitalismo mercantil, depois evoluiu para o capitalismo industrial no século XVIII e XIX. No século XX se desenvolveu como capitalismo monopolista e imperialista. Nas últi-mas duas décadas estamos vivenciando uma nova fase do capitalismo, agora dominada pelo capital financeiro globalizado. Essa fase significa que a acumulação do capital, das riquezas se concentra basicamente na esfera do capital financeiro. Mas esse capital financeiro precisa controlar a produção das mercadorias (na indústria, nos minérios e agricultura) e controlar o comercio a nível mundial, para poder apoderar-se da mais-valia produzida pelos trabalhadores agrícolas em geral. O capital financeiro internacionalizado passou a controlar a ag-ricultura através de vários mecanismos. a) O primeiro deles, é que através do excedente de capital financeiro, os

bancos passaram a comprar ações de centenas de médias e grandes empresas que atuavam em diferentes setores relacionados com a ag-ricultura. E, a partir do controle da maior parte das ações, promoveu então um processo de concentração das empresas que atuavam sobre a agricultura. Em poucos anos, essas empresas tiveram seu um cres-cimento fantástico de capital pelo investimento feito pelo capital fi-nanceiro, passaram a controlar os mais diferentes setores relacionados com a agricultura, como: comércio, produção de insumos em geral, máquinas agrícolas, agroindústrias,medicamentos, agrotóxicos, ferra-mentas etc.. É importante compreender que foi um capital acumulado fora da agricultura, mas que aplicado sobre ela, aumentou rapidam-ente a velocidade do processo de crescimento e concentração, que pelas vias naturais de acumulação de riqueza das mercadorias agrí-colas, levaria anos...

b) O segundo mecanismo de controle foi através do processo de dol-arização da economia mundial. Isso permitiu que as empresas se aproveitasse de taxas de cambio favoráveis e entrassem nas econo-mias nacionais e pudessem comprar facilmente empresas e dominar os mercados produtores e o comércio de produtos agrícolas.

c) O terceiro mecanismo foi obtido através das regras do livre comér-cio impostas pelos organismos internacionais, como a Organização mundial do Comércio - OMC, Banco Mundial, Fundo Monetário In-ternacional e acordos multilaterais, que normatizaram o comercio de produtos agrícolas de acordo com os interesses das grandes empresas, e obrigaram os governos servis, a liberalizarem o comercio desses produtos. Com isso, as empresas transnacionais puderem entrar nos

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países e controlar o mercado nacional dos produtos e insumos agríco-las em praticamente todo mundo.

d) O quarto mecanismo foi o crédito bancário. Em praticamente todos os países o desenvolvimento da produção agrícola está cada vez mais dependente de insumos industriais e ficou a mercê da utilização de crédito para financiar a produção. E esses créditos permitiram finan-ciar a ofensiva desse modo de produção da “agricultura industrial”e suas empresas produtoras de insumos. Ou seja, os bancos financiaram a implantação e o domínio da agricultura industrial em todo mundo.

e) E por último, na maioria dos países, os governos abandonaram as políticas publicas de proteção do mercado agrícola nacional e da eco-nomia camponesa. Liberalizaram os mercados e aplicaram políticas neoliberais de subsídios justamente para a grande produção agrícola capitalista. Esses subsídios governamentais foram praticados princi-palmente através de isenções fiscais, nas exportações ou importações e na aplicação de taxas de juros favoráveis a agricultura capitalista.

Dessa lógica de domínio do capital financeiro sobre a produção agrícola, tivemos como resultado que em duas décadas, há agora aprox-imadamente 50 maiores empresas transnacionais que controlam a maior parte da produção e comercio agrícola mundial.

2. a Crise reCente Do Capital FinanCeiro e suas ConseQuênCias para a agriCultura e os bens Da natureza

Durante os anos 1990-2008, teve-se a ofensiva do capital finan-ceiro sobre a agricultura, e nos últimos anos, se agravou com uma situa-ção conjuntural de crise do capital financeiro, nos Estados Unidos e na Europa. Essa crise do capital financeiro está agravando ainda mais os efeitos do controle do capital internacional sobre as economias periféri-cas, sobre a agricultura e a economia camponesa. Isso vem acontecendo por diversas razões.a) Os grandes grupos econômicos do hemisfério norte, diante da crise,

das baixas taxas de juros por lá praticadas (ao redor de 0,2% ao ano), da instabilidade do dólar e de suas moedas, fugiram do hemisfério norte e correram para a periferia, buscando proteger seus capitais volá-teis e aplicaram então, em ativos fixos, como: terra,minérios,matérias primas agrícolas, água,territórios com elevada biodiversidade, inves-timentos produtivos e produção agrícola. E também no controle de fontes de energias renováveis, seja hidrelétricas, ou usinas de etanol.

b) A crise do preço petróleo e suas conseqüências sobre o aquecimento global e o meio ambiente, levou a que o complexo automobilístico-petroleiro passasse a investir grandes somas de capital na produção de agro-combustíveis. Sobretudo na produção de cana e milho para etanol e soja, amendoim, mamona e palma de dendê (palma africana) para óleo vegetal. Isso produziu uma verdadeira ofensiva do capital

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financeiro e das empresas transnacionais sobre a agricultura tropical do sul.

c) O terceiro movimento resultante da crise conjuntural é que esses capi-tais financeiros se dirigiram às bolsas de mercadorias agrícolas e de minérios, para aplicar seus ativos e assim especular no mercado fu-turo ou simplesmente transformar o dinheiro em mercadorias do fu-turo. Esse movimento gerou uma elevação exagerada nos preços dos produtos agrícolas negociados pelas empresas nas bolsas mundiais de mercadorias.

Os preços médios dos produtos agrícolas a nível internacional já não tem mais relação com o custo médio de produção e o valor real medido pelo tempo de trabalho socialmente necessário. Mas são resultado dos movimentos especulativos e do controle de oligopólio dos mercados agrícolas por essas grandes empresas.

3. a situação atual Do Controle Das eMpresas transnaCionais e Do Capital FinanCeiro sobre a agriCultura

Há muitos aspectos que se poderia analisar sobre a situação e conseqüência da ação das empresas sobre a agricultura. Aqui, vamos analisar apenas os aspectos econômicos.a) Houve uma concentração do controle da produção e do comercio

mundial de produtos agrícolas, por parte de poucas empresas, que dominam esses produtos em todo mundo, em especial os produtos agrícolas padronizáveis, como grãos, lacticínios. E dominam toda ca-deia produtiva dos insumos e máquinas utilizadas pela agricultura.

b) Houve um processo acelerado de centralização do capital. Ou seja, uma mesma empresa passou a controlar a produção e comércio de um conjunto de produtos e setores da economia. Como a fabricação de insumos agrícolas (fertilizantes químicos, venenos, agrotóxicos) maquinaria agrícola, fármacos, sementes transgênicas e uma infini-dade de produtos oriundos da agroindústria, seja alimentícia, seja de cosméticos e produtos supérfluos.

c) Há uma simbiose cada vez maior dentro de uma mesma empresa, entre o capital industrial, comercial e o capital financeiro.

d) Há um controle quase absoluto sobre os preços dos produtos agríco-las e dos insumos agrícolas, a nível mundial. Embora os preços deve-riam ter sua base, no valor real (tempo de trabalho médio necessário) o controle oligopolico dos produtos faz com que se pratiquem preços acima do valor, e assim as empresas obtém lucros extraordinários. As-sim como levam a falência os pequenos e médios que não conseguem produzir nos mesmos níveis de escala que as empresas internacionais controlam.

e) Há uma hegemonia das empresas sobre o conhecimento científico, a pesquisa (que exige cada vez maiores volumes de recursos) e sobre as

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tecnologias aplicadas a agricultura, que impõe, em todo mundo um modelo tecnológico da chamada “agricultura industrial”, dependente de insumos produzidos fora da agricultura. Esse modelo é apresen-tado como se a única, a melhor e mais barata forma de produzir na agricultura. Ignorando as técnicas milenares do saber popular e da agroecologia.

Essa hegemonia das empresas é decorrentes da ausência dos esta-dos no investimento em pesquisa agropecuária. Ao longo do século XX, muitos estados nacionais investiam recursos públicos na pesquisa agropecuária, cujos resultados obtidos eram democratizados e aces-síveis a todos agricultores daquele país. Agora o conhecimento e a pesquisa foram privatizados e seus resultados usados como merca-doria para obter maiores taxas de lucro. E na maioria dos casos inclu-sive, as empresas cobram royalties dos agricultores, pelo uso de novas tecnologias, que estão embutidos nos elevados preços das sementes com modificações genéticas ou nos elevados preços das maquinas agrícolas e agrotóxicos colocados no mercado.

f) Houve uma imposição da propriedade privada das empresas sobre os bens da natureza,em especial sobre as sementes modificadas geneti-camente, e agora mais recentemente sobre as fontes de água potável para a população e reservatórios para energia ou irrigação. Também há uma ofensiva na tentativa de privatizar territórios no hemisfério sul que detêm riqueza da biodiversidade vegetal e animal.

g) Houve uma exagerada concentração da produção dos produtos agrí-colas, em especial os destinados ao mercado externo, por um numero cada vez menor de grandes proprietários de terra aliados ás empresas. O caso do Brasil é ilustrativo, cerca de 10% de todos estabelecimen-tos agrícolas do país, controlam 80% do valor da produção.

h) Está em curso uma perigosa padronização dos alimentos humanos e animais em todo mundo. A humanidade está sendo induzida a alimentar-se cada vez mais com verdadeiras “rações” padronizadas pelas empresas. A comida se transformou numa mera mercadoria, que precisa ser consumida de forma massiva e rapidamente. Isso traz con-seqüências incalculáveis com a destruição dos hábitos alimentares locais, da cultura, e riscos para a saúde humana e dos animais.

i) Há um processo generalizado em todo mundo, da perca da soberania dos povos e dos paises sobre os alimentos e o processo produtivo, pela desnacionalização da propriedade das terras, das empresas, das agroindústrias e do comércio, da tecnologia, colocando em risco a soberania nacional como um todo. Já existem mais de 70 países, que não conseguem mais produzir o que seus povos precisam para se alimentar.

j) Implantaram-se grandes extensões de cultivos de arvores homogêneas em plantações industriais de eucalipto, pínus e palma-africana, etc

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destinados a produção de celulose, madeira ou agroenergia, que es-tão afetando gravemente o meio ambiente pela destruição total da biodiversidade e alterando o lençol freático de água subterrânea.

k) Construiu-se uma aliança maquiavélica nos países do sul, entre os in-teresses dos grandes proprietários de terra, latifundiários e fazendeiros capitalistas crioulos, com as empresas transnacionais. Essa aliança está impondo o modo de agricultura industrial em todo hemisfério sul, de forma muito rápida e concentrando a propriedade da terra de forma assombrosa. Está destruindo e inviabilizando a agricultura cam-ponesa e despovoando o interior de nossos países. Nesse modo de agricultura se usa mecanização intensiva, e agrotóxicos, que expul-sam mão-de-obra, provocando a migração de grandes contingentes da população rural.

l) Está em curso uma nova re-divisão internacional da produção e do trabalho, que condena a maior parte dos paises do hemisfério sul, a serem meros exportadores de matérias primas agrícolas e minerais.

m) A maior parte dos governos, embora eleitos em processos eleitorais tidos como democráticos, são na verdade conduzidos pela força da lógica do capital e por todo tipo de manipulação mediática, que resul-tam em governos servis a esses interesses. Suas políticas agrícolas tem sido, totalmente subalternas aos interesses das empresas transnacio-nais. Abandonaram o controle do estado sobre a agricultura e os ali-mentos. Abandonaram políticas públicas de apoio aos camponeses. Abandonaram políticas públicas de soberania alimentar e de preser-vação do meio ambiente local.

4. o MoDelo Do Capital para a agriCultura: o agronegóCio Em resumo pode-se dizer que o capital e seus proprietários-capitalistas, representados pelos grandes proprietários de terra, bancos e empresas nacionais e transnacionais, estão aplicando em todo mundo, o chamado modelo de produção do agronegócio (agribusiness) que se caracteriza sucintamente, por: organizar a produção agrícola na forma de monocultivo (um só produto) em escalas de áreas cada vez maiores. Uso intensivo de máquinas agrícolas, em escala cada vez maiores, ex-pulsando a mão-de-obra do campo. A prática de uma agricultura sem agricultores. Uso intensivo de venenos agrícolas, os agrotóxicos, que destroem a fertilidade natural dos solos e seus micro-organismos, con-taminam as águas no lençol freático e inclusive a atmosfera ao adotarem os desfolhantes e secantes que evaporam para a atmosfera e regressam com as chuvas. E sobretudo contaminam os alimentos produzidos, tra-zendo conseqüências gravíssimas para a saúde da população. Usam cada vez mais sementes transgênicas, padronizadas, e agridem o meio ambiente com suas técnicas de produção que buscam apenas a maior taxa de lucro, em menor tempo. Esse modelo de produção que busca a produção de dólares e

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commodites e não de alimentos, passa a dominar e utilizar cada vez mais terras férteis para produção também de agro-combustiveis para “alimentar” os tanques dos automóveis do transporte individual, e a plantação industrial de arvores homogêneas para celulose (destinada a embalagens da indústria) e energia na forma de carvão vegetal.

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ii. as ContraDições Do Controle Do Capital sobre a agriCultura, eM espeCial no heMisFério sul

A descrição do poder econômico sobre a agricultura, a natureza e os produtos agrícolas assusta a todos! E pode levar a um pessimismo sobre a possibilidade de reverter tal situação, tamanha a força que o capital internacional e financeiro exerce sobre eles. No entanto, todos esses processos econômicos e sociais trazem consigo contradições. E são essas contradições que geram revoltas, indig-nação, efeitos contrários que irão levar à sua superação a médio prazo. Destaca-se aqui, algumas dessas contradições do domínio do capital sobre a agricultura e da natureza, para que se possa entendê-las, e atuar sobre elas, para provocar as mudanças necessárias.

1. O modelo de produção da agricultura industrial é totalmente de-pendente de insumos, como fertilizantes químicos e derivados do petróleo, que tem limites físicos naturais, de escassez de reservas mundiais de petróleo, potássio, calcário e fósforo. Por tanto, tem sua expansão limitada a médio prazo. E tem seus custos/preços acima do valor real.

2. O controle oligopólico por algumas empresas sobre os alimentos tem gerado preços acima do seu valor, e isso provocará fome e revolta da população impedida do seu acesso, por falta de renda. Ou seja, condi-cionar o alimento simplesmente às taxas de lucro, trará a curto prazo graves problemas sociais. Já que a população mais pobre e faminta não terá renda suficiente para transformar-se em consumidores dos al-imentos transformados em meras mercadorias. A FAO (organismo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) revelou que mais de um bilhão de seres humanos passam fome todos os dias. Pela primeira vez na historia da humanidade atingimos tal magnitude de famintos. No entanto a produção de alimentos cresce sistematicamente.

3. O capital internacional está controlando e privatizando a propriedade dos recursos naturais, representados pela terra, água, florestas e bio-diversidade. E isso afeta a soberania nacional do país, e vai provocar a reação de amplos setores sociais contrários, não apenas dos cam-poneses.

4. A agricultura industrial se baseia na necessidade de uso cada vez maior de agrotóxicos, como forma de poupar mão-de-obra e de pro-duzir em monocultivo de larga escala. Isso produz alimentos cada vez mais contaminados, que afetam a saúde da população. E as popu-lações da cidade, que tem mais acesso a informação certamente re-agirão. (As classes ricas já estão se protegendo e nas redes de grandes supermercados aumenta cada vez mais o consumo de produtos ali-mentícios produzidos de forma orgânica.)

5. O modo de produzir em grande escala expulsa a mão-de-obra do

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meio rural, e faz com que aumente as populações de periferias das grandes cidades. Essas populações não tem alternativa de emprego e renda. E isso gera uma contradição com aumento da desigualdade social e do êxodo rural em todos os paises do mundo.

6. As empresas estão ampliando a agricultura baseada nas sementes transgênicas. Mas ao mesmo tempo, aumentam as denúncias e ficam mais visíveis as conseqüências das sementes transgênicas sobre a destruição da biodiversidade, sobre o clima e nos riscos para a saúde humana e dos animais. E estão aparecendo cada vez mais as reações da natureza a essa homegenização da vida vegetal. Já que as semen-tes transgênicas contaminam as demais e não podem conviver com outras espécies semelhantes. Por outro lado, surgem novas enfermi-dades e plantas que resistem aos venenos usados combinados com as sementes transgênicas.

7. A agricultura industrial, de monocultivo, destrói sistematicamente toda biodiversidade. E a destruição da biodiversidade altera o regime de chuvas, o clima e contribui para o aquecimento global. Essa con-tradição é insustentável e as populações da cidade, começarão a dar-se conta e exigir mudanças.

8. A privatização da propriedade das águas seja dos rios e lagos, ou do lençol freático aumentará o preço e restringirá o consumo para as populações de baixa renda e trará graves conseqüências sociais. Em diversos países do continente americano, as três maiores empresas do setor: Nestlé, Coca-cola e Pepsi-cola já detem o controle da maior parte do mercado de água potável vendida em garrafas.

9. O aumento da compra de terras pelas empresas estrangeiras e sua desnacionalização de forma incontrolável traz contradições na so-berania política dos países.

10. A ampliação e uso da agricultura industrial para produção de agro-combustíveis, amplia ainda mais o monocultivo, o uso de fertilizantes de origem petroleira e não resolvem o problema do aquecimento global e da emissão de gás carbônico. A causa principal desse prob-lema é o crescimento do uso do transporte individual nas grandes ci-dades, estimulado pela ganância das empresas automobilísticas. Por-tanto, o fomento da agricultura de agro-combustíveis não resolverá o problema, apenas agravará, pelos efeitos perversos na destruição da biodiversidade.

11. O projeto de redivisão internacional do trabalho e da produção transforma muitos países do hemisfério sul, em meros exportadores de matérias primas, inviabiliza projetos de desenvolvimento nacional, que possam garantir emprego e distribuição de renda para suas popu-lações. Isso vai gerar concentração de renda, desemprego e migração para os paises do hemisfério norte.

12. As empresas do agro, aliadas com o capital financeiro estão avan-

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çando também para a concentração e centralização nas redes de dis-tribuição de supermercados, com o oligopólio mundial das redes Wal-Mart, Carrefour, etc. Esse processo vai destruir milhares de pequenos armazéns e comerciantes locais, gerando conseqüências sociais in-calculáveis.

13. A agricultura industrial precisa utilizar cada vez mais hormônios e remédios industriais para a produção em massa de animais para abate, em menor tempo, como aves, gado e suínos. E isso está trazendo con-seqüências na saúde da população consumidora.

14. Os grandes proprietários de terra não controlam mais o processo de produção e as margens de lucro. Eles estão reféns das empresas que controlam a produção e o comercio. Por isso a maior parte do lucro fica com as empresas na esfera do comercio. Para compensar essa divisão de sua taxa de lucro, os capitalistas do agro aumentam a exploração dos trabalhadores assalariados, impõem o trabalho sa-zonal, temporário, com emprego apenas alguns meses por ano. E em diversos paises tem ressurgido formas de trabalho análogas ao trab-alho escravo de ou de super-exploração, em que os salários não são suficientes para sua reprodução humana e ficam sempre devendo aos “patrões”! Aumentam também a exploração do trabalho feminino e infantil, sobretudo nos períodos de colheita de produtos que exigem muita mão-de-obra, estimulando a migração de trabalhadores tem-porários, sem lhes garantir nenhum direito social.

15. No modelo de dominação do capital sobre a agricultura não há al-ternativas de emprego e renda para a juventude. E isso é uma enorme contradição, pois se um setor produtivo não contar com a juventude, não terá futuro.

16. Imensas regiões do interior dos países estão ficando desabitadas, como se a única forma de sobrevivência humana fosse a aglomeração da população nas grandes cidades. E lá, em tamanha concentração demográfica as condições de vida pioram cada vez mais. Se pratica uma agricultura sem gente! O exemplo mais ilustrativo dessa con-tradição, é que hoje nos Estados Unidos a população carcerária é maior do que a população que vive no meio rural.

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iii- uM novo prograMa CaMponês para a agriCultura

Na literatura da economia política e da sociologia há muita con-fusão sobre a expressão e conceito camponês. Em geral, sua referência é utilizada associada a formas de produção do passado, em função da origem de classe pré-capitalista dos camponeses. Na historia do capita-lismo industrial, o capital se utilizou de diferentes formas de convivência e exploração do trabalho agrícola camponês para sua lógica de acumu-lação. Em geral combinou-se as duas formas clássicas e contraditórias, porem dialéticas: destruição e ao mesmo tempo reprodução das formas camponesas. No Movimento da Via Campesina Internacional, temos acumu-lado debates e teorizações que propõem, um novo modelo de organiza-ção agrícola, baseada na hegemonia dos trabalhadores do campo, que vivem na condição de camponeses. Mas, as formas de organizar esse novo modelo dependem das condições objetivas, das forças produtivas e da natureza de cada país, e do grau de expressão social desse seg-mento dos trabalhadores. Chamamos de novo programa, porque na verdade é um pro-grama popular, anti-capitalista, anti modelo de domínio do capital. Um novo modelo de produção sob controle dos trabalhadores, para produz-irem em função das necessidades e dos direitos de todo povo. É praticamente impossível sistematizar num único enunciado as propostas que os movimentos camponeses em cada país tem defendido como plataforma alternativa de modelo agrícola. Já que cada país tem suas especificadades naturais, das forças produtivas, das classes e da correlação de forças. O objetivo aqui é elencar as principais bandeiras e propostas que representam um resumo do que a nível de América Latina, tem apa-recido como propostas do movimento camponês para um novo modelo de organização da produção agrícola em seus países.

1. Implementar um programa de produção agrícola e hídrico, que prior-ize a soberania alimentar de cada país, com a produção de alimentos sadios. Isso significa que os estados devem desenvolver políticas de estimulo e de apoio que permitam, que cada região de seu pais possa produzir todos os alimentos que a população necessita. E assim se alcançaria a soberania de alimentos em todo país.

Esse deve ser o objetivo principal e prioritário de qualquer programa de desenvolvimento agrícola e rural: garantir a soberania alimentar do seu povo.

E o comercio agrícola internacional se reduziria ao intercambio entre os paises daqueles produtos excedentes ou complementares da cesta básico dos hábitos alimentares de cada povo. Esse deve ser o objetivo principal da organização da produção agrícola em cada país e de to-dos os países do mundo.

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2. Impedir a concentração da propriedade privada da terra, das flores-tas e da água. Fazer uma ampla distribuição das maiores fazendas, instituindo um limite de tamanho máximo da propriedade de bens da natureza. A essência da reforma agrária deve ser a ampla democra-tização do acesso dos trabalhadores, dos camponeses, da população que vive no meio rural a posse e uso da terra, da água e dos bens da natureza.

3. Adotar sistemas de produção dos alimentos baseados na diversifica-ção da agricultura. Ou seja, o monocultivo destrói o equilíbrio da na-tureza e impõe o uso de agrotóxicos. Devemos desenvolver praticas de agricultura diversificada em todas as áreas. Para termos produção e trabalho ao longo de todo ano, e produzidos de forma equilibrada entre a biodiversidade e o meio ambiente.

4. Adotar técnicas de produção que busquem o aumento da produtivi-dade do trabalho e da terra, respeitando o ambiente e a biodivers-idade. Combater o uso de agrotóxicos, que contaminam os alimentos e a natureza. Essas técnicas tem recebido, em geral, a denominação de praticas agroecológicas. Embora, em cada país há expressões dife-renciadas para explicitar os mesmos métodos de produção.

5. Desenvolver a organização de agroindústrias em pequena e media es-cala, na forma cooperativa, sob controle dos trabalhadores industriais e dos camponeses que produzem sua matéria prima. A agroindústria é uma necessidade do mundo moderno para poder conservar os ali-mentos e transportá-los para as cidades. Mas devemos garantir que as agroindústrias estejam sob controle dos trabalhadores e camponeses para que a renda do maior valor agregado aos produtos sejam dis-tribuída entre os que trabalham. E ao mesmo tempo, adotando menor escala, pode-se disseminar por todas as regiões e municípios rurais, e gerar mais oportunidades de emprego e renda para os jovens do meio rural, mais abertos a trabalharem em esses empreendimentos agroindustriais.

6. Adoção de máquinas agrícolas que reduzam o grau de esforço físico das pessoas, mas que se adéqüem melhor ao meio ambiente, e por tanto devem ser em escalas menores e adaptadas a estrutura fundiária camponesa, de pequenas e médias escalas de produção.

7. A produção de alimentos de cada país deve ser controlada pelas for-ças sociais do próprio país, seja governo, empresas e trabalhadores em geral e camponeses. Deve-se impedir que empresas estrangeiras controlem a produção de insumos agrícolas e alimentos em qualquer país.

8. Defender uma “política de desmatamento zero” preservando a na-tureza e usando os recursos naturais de forma adequada e em favor do povo que lá vive. É possível produzir os alimentos necessários para a população local, em todos os paises do mundo, sem necessidade de

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destruir mais nenhum hectare de biomas de florestas ou de cobertura vegetal nativa.

Exigir que os governos promovam planos massivos de reflorestamento com arvores nativas e frutíferas em todas as áreas já degradas de nos-sos países.

9. Preservar, difundir e multiplicar as sementes nativas e melhoradas, de acordo com nosso clima e biomas, para que todos os agricultores tenham acesso. E impedir a difusão das sementes transgênicas. Os agricultores tem o direito e o dever de produzir suas próprias semen-tes, controlá-las e ter acesso a tecnologias que possam melhorá-las geneticamente, adequando-as aos biomas locais e a busca de maior produtividade.

10. Assegurar que a água, como um bem da natureza seja um direito de todo cidadão. Não pode ser uma mercadoria e deve ser geren-ciada como um bem público, acessível a todos e todas. Defendemos um programa de preservação de nossos aqüíferos (lenços freáticos no subsolo), e todas as fontes naturais existentes em nossos paises. Bem como, os estados devem desenvolver políticas de reflorestamento das margens de rios e lagos, e de proteção das nascentes de água. Bem como desenvolver políticas de armazenagem adequada das águas das chuvas.

11. Implementar um projeto energético popular para o país, baseado na soberania energética e garantir o controle da energia e de suas fontes a serviço do povo. Isso significa que cada povoado, cada município e região de nossos países pode desenvolver a produção e distribuição da energia a partir de fontes renováveis, não agressores nem depreda-doras, como são as fontes agro-combustíveis, hidrelétricas, eólicas e solar. A soberania energética de um povo é o controle que ele deve ter sobre as fontes de energia e a produção renovável, que precisa e usa.

12. Garantir a posse, uso e legalização de todas as terras/territórios das comunidades nativas, indígenas, e tradicionais e respeito às suas cul-turas.

Em todos os países há inúmeras comunidades nativas, que de acordo com a cultura local são denominadas povos indígenas, comunidades nativas, comunidades autoctonas. No caso brasileiro e de outros paises que sofreram a plantation com trabalho escravo, há diversas comuni-dades afro-descendentes remanescentes da escravidão, que vivem em territórios ocupados há dezenas de anos, mas não legalizados. Essas comunidades resistiram de todas as formas ao avanço da propriedade privada e do capitalismo. É fundamental para a construção de um novo modelo de produção agrícola e de ocupação democrática do território, que todas essas comu-nidades tenham assegurado pelo estado, seus direitos históricos sobre os territórios, terras e bens da natureza que ocupam.

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13. Proibição de que qualquer empresa estrangeira seja proprietária de terras em qualquer país do mundo.

Como parte da internacionalização do capitalismo através das empre-sas transnacionais e financiadas pelo capital financeiro está havendo uma ofensiva da compra de terras, na maior parte dos países hemis-fério sul, por empresas imperialistas do norte. Ou ás vezes até grandes empresas do mesmo hemisfério sul, que atuam também em minera-ção e hidrelétricas, celulose etc.

É fundamental que se proíba a desnacionalização da propriedade e uso das terras e bens da natureza, (como água, biodiversidade, mi-nérios,) por parte dessas empresas estrangeiras. A soberania dos povos deve ser assegurada, impedindo o controle do território por empresas estrangeiras de qualquer país.

14. Promover o desenvolvimento de políticas públicas para agricultura, por meio do Estado, que garantam:

a) Prioridade para a produção de alimentos para o mercado interno;b) Preços rentáveis aos pequenos agricultores, garantindo a compra

através de diversos mecanismos estatais ou sociais.c) Uma política de crédito rural, em especial para investimento nos

pequenos e médios estabelecimentos agrícolas;d) Uma política de pesquisa agropecuária controla pelo estado, que pri-

orize a pesquisa sobre a produção de alimentos e técnicas agroeco-logicas e que dêem amplo acesso aos agricultores e democratize seus resultados a toda população.

e) Adequar a legislação sanitária da produção agroindustrial às condições da agricultura camponesa e das pequenas agroindústrias, ampliando as possibilidades de produção de alimentos;

f) Que as Políticas públicas para a agricultura estejam adequadas às rea-lidades regionais de cada país.

15. Garantir a políticas de seguridade social para toda população do meio rural, de caráter público, universal, solidário para que todos os trabalhadores tenham acesso a serviços de saúde pública, previdência social e aposentadoria.

Na maioria de nossos países os camponeses e os trabalhadores rurais, temporários ou permanentes estão excluídos dos sistemas públicos de saúde, e da seguridade social, que representa possibilidade de apo-sentadoria e auxilio social. Por isso é fundamental que se universa-lize esses serviços e políticas de seguridade social a toda população do campo. As conquistas que a classe operária obteve após anos de longas lutas no século XX devem ser estendidas a todo meio rural.

16. Rever o atual modelo de transporte individual, em vigor na maioria dos países, que é altamente poluente e pode gerar distorções com a produção de combustível de origem agrícola.

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Deve-se desenvolver um programa nacional de transporte coletivo, que priorize os sistemas ferroviário, metrô, hidrovias, que usam me-nos energia, são menos poluentes e mais acessíveis a toda população.

Essa condição permitirá desenvolver políticas de agrocombustíveis mais racionais e que impeçam que amplas extensões de terra sejam deslocadas da produção de alimentos para produção de combustíveis para uso em automóveis individuais, como é a atual proposta do eta-nol e biodiesel.

17. Educação no campo, para todos. Assegurar a implementando de um amplo programa de escolarização

no meio rural, adequados à realidade de cada região, que busque elevar o nível de consciência social dos camponeses, universalizar o acesso dos jovens a todos os níveis de escolarização e, em especial, ao ensino médio e superior.

Desenvolver uma campanha massiva de alfabetização de todos adul-tos.

Os programas de acesso dos jovens à universidade devem estar com-binados com a moradia no meio rural, e realizados na forma de al-ternância, combinando teoria e pratica, para evitar que o ensino supe-rior seja um estimulo ao êxodo rural. Ao contrário devemos estimular que os jovens possam aplicar os conhecimentos da universidade em suas comunidades rurais.

18. Mudar os atuais acordos internacionais da Organização Mundial do Comércio (OMC), União Européia-Mercosul, convenções e conferen-cias no âmbito das Nações Unidas, que defendem apenas os inter-esses do capital internacional, do livre comércio, em detrimento dos camponeses e dos interesses dos povos do Sul.

Os atuais acordos refletem apenas necessidades de acumulação e controle do capital sobre a produção de mercadorias e sobre o comer-cio mundial. E são realizados por governos que representam apenas os interesses do capital. É necessário romper com essas imposições ilegítimas, e criar um novo marco de representação internacional, aonde se assegure a representação e os interesses dos povos.

19. Adotar a produção de celulose e papel em escalas indústrias meno-res, buscando atender as necessidades das populações locais, e evi-tando o monocultivo extensivo, de grandes plantações homogêneas de arvores, que desequilibram o meio ambiente.

20. Desenvolvimento de políticas de melhoria das condições de vida nos povoados e comunidades rurais, garantindo acesso a energia elétrica, transporte e condições de moradia adequadas a seus micro-climas.

21. Estimular a que todas as relações sociais de nossas sociedades de-vem ser baseadas no cultivo de valores, que a humanidade vem con-struindo ao longo de milênios, como a solidariedade, a justiça social

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e a igualdade. Esses valores não são apenas declarações de princípios, mas devem nortear nosso comportamento quotidiano, nos nossos movimentos, organizações, regimes políticos e Estados. A sociedade só terá futuro se cultivar os valores históricos humanistas e socialistas. Todas as demais sociedades baseadas no individualismo estão conde-nadas ao fracasso!

22. Defender e valorizar os hábitos culturais de cada povoado e comu-nidade, como uma resistência político-cultural frente a padronização que o capital impõe.

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151

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