n.º 23 (sÉrie ii) – dezembro 2019 para alÉm da vida!...de quem recusa essa «coisa imbecil»...

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DANIEL BENSAÏD E O COMPROMISSO MILITANTE P.03 PARA ALÉM DA VIDA! N.º 23 (SÉRIE II) – DEZEMBRO 2019 anti capItA lIsta TRABALHO SEXUAL P.05 BRASIL DE BOLSONARO P.06-07

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Page 1: N.º 23 (SÉRIE II) – DEZEMBRO 2019 PARA ALÉM DA VIDA!...de quem recusa essa «coisa imbecil» que é a morte. Por isso não fazemos obituários, mas partimos à conquista do tempo

DANIEL BENSAÏD E O COMPROMISSO MILITANTE

P.03

PARA ALÉMDA VIDA!

N.º 23 (SÉRIE II) – DEZEMBRO 2019

a n t ic a p I t Al I s t a

TRABALHO SEXUAL

P.05

BRASIL DE BOLSONARO

P.06-07

Page 2: N.º 23 (SÉRIE II) – DEZEMBRO 2019 PARA ALÉM DA VIDA!...de quem recusa essa «coisa imbecil» que é a morte. Por isso não fazemos obituários, mas partimos à conquista do tempo

2ANTICAPITALISTA

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Ficha Técnica

Conselho EditorialAna Bárbara PedrosaAndrea PenicheBeatriz SimõesHugo MonteiroMafalda EscadaRodrigo RiveraTatiana Moutinho

Participaram nesta ediçãoAndrea PenicheAdriano CamposBeatriz SimõesHugo MonteiroJoana SaraivaJuan LealMelina SofiaTatiana MoutinhoTiago Tavares

Depósito Legal441931/18

LeiturasCombates contra a extrema-direita, VVAAA travessia de Benjamin, Jay PariniTriângulo mágico. Uma biografia de Mário Cesariny, António Cândido Franco

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Pensamento críticoA lealdade para com os desconhecidos

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InternacionalBrasil de Bolsonaro: um ano de governo, décadas de retrocesso

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DebateDois pesos e duas medidas

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AtivismoUma voz entre sombras

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AconteceDescolonizar. Curso de formação antirracista

Encontro Feminista Internacional

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Esta é uma publicação da Rede Anticapitalista, em que se juntam militantes do Bloco de Esquerda que se empenham nas lutas sociais e no ativismo de base.

EditorialPassar por cima dos soluços

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Í N D I C EPASSAR POR CIMA DOS SOLUÇOS

E D I T O R I A L

Em entrevista ao Combate, em 1991, José Mário Branco citava Antero de Quental para instigar, com o poeta de Odes Modernas, ao caminhar

por sobre os soluços rumo às «imensas auroras do futuro». Nessa mesma entrevista, falava de A Noite, espetáculo de rebelião contra a morte, contra a «coisa imbecil» que é morrer, e lamentava o momento em que parece não haver projeto face à insegurança do futuro. Esse não se saber o que fazer seria, para ele, uma «segunda noite». Não é preciso ter-se conhecido ou privado com o Zé Mário Branco para se saber que ele nunca quis ser símbolo de coisa nenhuma, para se constatar o desdém com que lidou com vaidades e endeusamentos, que recusava com genuinidade e firmeza. O seu desaparecimento, em novembro último, espoletou um conjunto de reações públicas feitas de contradição que só podem ser avessas à singularidade do autor de Ser solidário. Enquanto isso, a extrema-direita em Portugal vai crescendo em visibilidade, aguçando a necessidade de um combate feroz por uma democracia que represente e dê sentido aos despojos do neoliberalismo reinante. Esse combate é político, é anticapitalista, é luta contra essa segunda noite da impassibilidade de que falava o Zé Mário – a vivacidade inteligente e coletiva de quem recusa essa «coisa imbecil» que é a morte. Por isso não fazemos obituários, mas partimos à conquista do tempo e do futuro. É a maneira de se «ser solidário, assim, para além da vida».

Esta solidariedade debate-se, por exemplo, com a política da extração e manipulação da vontade popular em nome da ambição desmedida que marcam a agenda na América Latina. A diversidade de contextos e a complexidade de cada situação não mascaram a causa comum, herdada do passado colonial e ainda hoje manifesta nas derivações ainda coloniais do ultraliberalismo reinante. Tomando

por exemplo o caso da Bolívia, torna-se evidente que, para lá de possíveis erros de governação, uma democracia indígena e camponesa desbarata-se na violência do golpe de Estado e no cinismo autoritário de quem o legitima. O silêncio culpado dos autoproclamados bastiões da ordem democrática – incluindo o partido do governo português e o seu compadrio abstencionista – assobia para o lado ante a fúria miliciana e vingativa com que se perseguem representantes eleitos/as e com que se incendeiam casas e bibliotecas de quem ainda ontem exercia um mandato legítimo. A persecução é mais efetiva e completa quando, à imagem do que conhecemos de outras épocas históricas do velho continente, as queimadas de livros iluminam o obscurantismo reinante. A noite avança na Bolívia e na América Latina, nas mesmas chamas que ameaçam a biblioteca de Álvaro García Linera, vice-presidente boliviano, hoje no exílio.

A solidariedade é também um sólido antídoto contra o medo. E a instrumentalização do medo é arma populista de fragilização das democracias. Os resultados eleitorais no Estado Espanhol, com o crescimento exponencial da extrema-direita, referência preferencial do partido português do mesmo quadrante, alertam para os riscos do discurso do medo e da retórica da ameaça, contra os quais se compromete a atenção solidária e a afirmação da alternativa. Por isso avançamos «por cima dos soluços», com uma política assente na proposta. Deixamos para trás a mera proclamação, disfarce preferencial da crítica mais instalada, e aliamos a solidariedade à proposta concreta, fazendo justiça a quem conta connosco nos votos e a quem reivindica connosco nas ruas. É a luta que nos cabe contra a noite, alimentados e alimentadas pela voz e obra de quem nos convida a seguir lutando. Luta sem luto e sem quartel.

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3ANTICAPITALISTA

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P E N S A M E N T O C R Í T I C O

DANIEL BENSAÏD

CONTINUA ONLINE

A LEALDADE PARA COM OS DESCONHECIDOS

O dissidente polaco Karol Mo-dzelewski, a quem pergun-taram a razão de ser do seu compromisso obstinado, respondeu simplesmente:

«Por lealdade para com os desconhecidos». Tal como a mobilização pelas grandes ideias, o compromisso é uma questão de lealdade, dessas fidelidades moleculares, desses ínfi-mos laços de memória e ação.

A 11 de julho último [1977], Roberto MacLean foi assassinado às 19 horas na soleira da porta da sua casa, em Baranquilla, por dois sicários paramilitares. A informação não merece uma linha nos jornais. Tudo normal. Baranquilla é na Colômbia, na costa atlântica. Neste país, os assassinatos políticos são às centenas por ano, às vezes milhares.

Sem assunto? Não. O mais vivo dos assuntos.

Em primeiro lugar, porque tenho vontade de saudar Roberto MacLean, com quem partilhei abrigo e teto no México. Animava o movimen-to cívico de Baranquilla. Era negro e revolu-cionário. Possuía esta dupla pertença que para ele era uma só. Tinha 39 anos. Era mili-tante desde os 14 anos. Há uma dúzia de anos que vivia a cada dia a crónica da sua morte anunciada. MacLean era o retrato personifica-do desses desconhecidos aos quais nos liga uma dívida insanável.

DIZ-SE “COMPROMETER-SE”

A forma reflexiva evoca a decisão madura-mente tomada de um sujeito soberano. Sob uma modéstia aparente, tem algo de orgulho-so, como se quem se declarasse comprome-tido honrasse a sua causa. Como se condes-cendesse doar-se a si próprio.

Por vezes reencontramos antigos combaten-tes, reciclados pela razão de Estado ou recur-vados sobre o seu nicho ecológico privativo,

que, com uma ponta de compaixão, se espan-tam: “Então, ainda és um militante? Que pena que não tenhas feito isto ou aquilo...”

Sem qualquer gosto ou disposição para o jogo das carreiras e das aparências, pela ação política como uma ascese ou um pesado sa-crifício, antes pelo contrário, foi enquanto mi-litante que vivi experiências intensas, conheci desconhecidos indispensáveis – precisamen-te, centenas como MacLean –, provei alegrias raras, tive conflitos amigáveis ou conjunturais necessários ao rejuvenescimento do coração e do espírito.

TAMBÉM SE DIZ “UM INTELECTUAL COMPROMETIDO”

Na medida em que se trabalha com as ideias e as palavras, pode admitir-se “intelectual”, ainda que Gramsci faça notar que, se na divi-são do trabalho se pode admitir a existência de uma categoria social definida como inte-lectual, pelo contrário, o não-intelectual não existe.

A ordem das palavras perturba-me: em pri-meiro, intelectual; o comprometimento pa-rece advir daí. Como se a ação fosse a razão aplicada [a aplicação da razão]. Sempre esse primado cultural do conceito, que deixa pou-co espaço às revoltas e às emoções, ao modo como se toma partido numa disputa e, por-tanto, se entra na luta.

Comprometido intelectual talvez fosse mais conveniente. Para traduzir a inquietude perma-nente das razões e a lógica íntima das paixões.

Comprometido intelectual?

Então, porque não dizer simplesmente mili-tante.

Nestes tempos de individualismo sem indivi-dualidade, a palavra tem uma má conotação.

Soa um pouco a – dir-se-á – caserna e a solda-do raso. E o comprometimento? “Comprome-tam-se...” Na legião, na polícia, nas ordens?

Militância tem, pelo menos, a vantagem de indicar o sentido do coletivo. A militância não é um prazer solitário, mas um ato partilhado. Um pequeno passo na via do «comunismo de pensamento» (e ação) que Dionys Mascolo procurava com tenacidade.

Porque a militância é, no fim de contas, a própria ética da política, um «pensamento de atos», o teste prático das ideias de uma obrigação (contrário de uma imposição ins-tituída) que fixamos em relação aos outros. «Toda a atividade política é moral, implica-se no universo de valores morais e, consequen-temente, acarreta um juízo moral», escrevia também Mascolo (e, tratando-se de compro-metimento, como não pensar nele, como não voltar a lê-lo, no dia seguinte à sua morte?).

A militância implica preferencialmente uma forma organizada que comporta uma memó-ria e põe as ideias em comum. Mas não ne-cessariamente. De uma forma mais geral, po-der-se-ia dizer que, com ou sem pertença, a atitude militante opõe-se à do eterno simpa-tizante, do compagnon de route, que preserva a sua autonomia e se reserva o recurso – tão necessário – de jogar com ambas as mãos em dois tabuleiros.

Mascolo consagrou mais de uma página ao «sombrio caso do simpatizante» – o tipo que ontem tinha sido o «estalinista do exterior» –, tão enformado de preconceitos, tão imbuído da sua liberdade e, no entanto, tantas vezes tão servil. Este [o simpatizante] constitui um dos «piores subprodutos do estalinismo» e desempenhou o seu papel com a mais «cul-pada das inocências».

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A T I V I S M O

UMA VOZ ENTRE ASSOMBRAS

E vgen Bavcar é um artista visual. É fotógrafo. É cego.

Para fabricar as suas imagens, Bavcar conta com colabora-dores que lhe descrevem os

vários momentos do seu processo composi-tivo, a fim de ajustar a imagem final ao que imaginou. Conta, portanto, com uma audio-descrição.

A audiodescrição (AD) é uma tradução inter-semiótica que transforma informação visual em palavra, narrando o que pode ser visto. É um recurso usado sobretudo em contextos culturais e possibilita o acesso de pessoas portadoras de deficiência visual à oferta cul-tural disponível. Sendo difícil traçar a história da AD em Portugal, por muitas vezes se ter fei-to de modo espontâneo e/ou informal, é pos-sível afirmar que está formalmente disponível há bem mais de uma década.

Apesar da sua crescente implementação, este recurso é ainda pouco conhecido ou simples-mente ignorado. Neste momento, correm a par duas lutas: (1) A da acessibilidade como direito fundamental e (2) a do reconhecimen-to da profissão e regulamentação das car-reiras dos técnicos e técnicas que a tornam possível.

A invisibilização da AD traz consigo inevita-velmente a das pessoas com deficiência vi-sual, que são assim privadas de frequentar inúmeros espaços de socialização. Pensemos nas vezes que encontramos alguém com defi-ciência visual no teatro ou num museu. Com a invisibilidade do recurso, vem a dos técnicos e técnicas de AD e a de uma carreira que não é reconhecida nem está regulamentada. A AD exige o domínio de uma técnica específica e não pode ser equiparada a uma tradução pura e simples.

A luta pela implementação do recurso impli-ca frequentes ações de sensibilização para a plena inclusão. As estruturas culturais que querem contar com o serviço de AD enfren-tam, para além das dificuldades orçamentais que não deixam margem à contratação do serviço, outras dificuldades, como, por exem-plo, a comunicação com um público que, não sendo homogéneo, tem características específicas e que exige que a divulgação da oferta se faça por meios também específicos. Mas falar de AD é falar também de estruturas que não assumem a tarefa da inclusão como sua, como pertinente, ou, mais preocupante ainda, que não a consideram rentável. Que fazem o cálculo de quantos mais bilhetes se venderam para justificar o investimento no recurso. Como se a inclusão fosse uma extra-vagância e não uma obrigação e um direito.

Com esta obrigação e este direito, vem uma responsabilidade. Porque, como lembra Sa-ramago, há a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam. As decisões que tem de tomar aquele que se lança nesta tarefa, para lá de técnicas, são éticas e polí-ticas. Porque entre o mundo e quem não vê há a palavra, essa distância de que fala Bav-car. Audiodescrever confere poder a quem descreve. Quem tem o privilégio da visão e a prerrogativa da descrição, estabelece a identi-dade do objeto, sobretudo se o seu destinatá-rio não tiver a possibilidade de elaborar uma descrição alternativa. A AD não pretende levar a ninguém a luz. O seu desafio é transformar poder em potência e garantir autonomia para a formulação de um juízo próprio. A prática da AD será tão mais inclusiva quanto mais po-tencie a emancipação de quem usufrui dela. E será tão mais implementada quanto mais depressa se regulamente esta prática.

A AD é o reverso discursivo das fotografias de Bavcar. Estas constroem uma poética da in-visibilidade: nascem da sombra débil entre a escuridão e a luz, da reunião do visível com o invisível. Bavcar fotografa como forma de não rendição à sua condição. Subverte os méto-dos estabelecidos de perceção: aquele que não vê produz as imagens para os que veem, afrontando um mundo que cultiva o poder da imagem e que faz sempre equivaler o conhe-cimento à luz.

JOANA SARAIVA

Eu sei que entre mim e a imagem, há o mundo, há a palavra dos outros, uma grande distância.

Evgen Bavcar

AUDIODESCRIÇÃO DA IMAGEM

Sobre fundo preto, e em contraste com este, está uma bicicleta branca, posicionada com o guiador do lado esquerdo da imagem e a roda traseira do lado direito. Aparecendo sobre o fundo preto, acima da bicicleta, e da esquerda para a direita, temos uma sequência da mesma imagem de um punho branco sobre o pulso de uma mão que agarra a asa de uma andorinha branca. A mesma imagem da mão aparece repetida sobre as rodas dianteira e traseira.

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Trabalhas constantemente para os outros, e eles lucram com o teu trabalho, mas eu é que sou chulada.

O lucro que os outros fazem com o teu traba-lho alimenta a máquina capitalista, mas eu é que sou a porca capitalista.

Continuas a adiar os teus sonhos porque não tens energia para mais nada, mas eu é que sou pouco ambiciosa.

Continuas a perseguir a beleza normativa e socialmente aceitável nas tuas relações e fi-cas enojada com o facto de eu ter sexo com pessoas com diferentes tipos de corpos, mais velhas, “pouco atraentes”, mas eu é que sou superficial.

Precisas de cumprir um código de indumen-tária para ires trabalhar e seres respeitada, mas eu é que sou constantemente objetifica-da.

Fazes sexo para manteres o teu casamento, teres filhos/filhas, garantires o teu estatuto, manteres um clima de paz familiar, mas eu é que não entendo o que é o consentimento.

O teu trabalho não é criminalizado e não po-des ser presa por o desempenhares, mas eu é que tenho um trabalho fácil.

O teu trabalho das 9 às 5 rouba-te o tempo para estares com os teus filhos/filhas, mas eu é que sou a má mãe.

És intimidada todos os dias no trabalho, mas eu é que tenho baixa autoestima.

No teu trabalho não discutes as tuas limi-tações, as coisas que queres ou não queres fazer ou quanto cobrarias para fazer algo que não te agrada, mas eu é que não conheço os limites.

Continuas a ter pessoas a dizerem-te o que fazer com o teu tempo, quando tens férias ou folgas, mas eu é que não tenho iniciativa.

Consomes álcool e fumas drogas em quanti-dades absurdas para teres energia, mas eu é que sou a dependente de drogas.

Vais para a cama com pessoas que acabaste de conhecer, mas eu é que me meto em situa-ções perigosas.

Trabalhas para teres o que comer e para sus-tentar outras e outros, para pagar os teus ví-cios, para sobreviveres, mas eu é que sou a vítima.

Resumes-me aos meus genitais, mas eu é que sou a má feminista.

Vendes todo o teu precioso tempo e criativi-dade a uma empresa, a um patrão, a pessoas que detestas, mas eu é que sou a puta.

Como trabalho que faz parte do tecido so-cial em que nos inserimos, o trabalho sexual beneficia mais pessoas brancas e cis, mas, mesmo assim, abarca pessoas de todos os

tipos sociais, culturas, formação, diversidade funcional, neuro-diversidade, género e classe, mas tu achas que é um trabalho de merda e degradante.

O trabalho sexual é o único trabalho que al-gumas pessoas podem fazer, mas tu achas bem criminalizar pessoas que já são margina-lizadas e tirar-lhe o seu ganha-pão e as suas formas de sobrevivência.

O trabalho sexual está longe de ser perfeito, exatamente porque é um trabalho! As pes-soas precisam mesmo de parar de pensar que o trabalho sexual é um mal e que as suas vidas de exploradas noutro lado qualquer são perfeitas.

Podemos começar a ter conversas mais sérias e significativas? Conversas sobre, por exem-plo, como destruir o capitalismo e termos to-das e todos vidas mais plenas?

D E B A T E

MELINA SOFIA

DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS

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I N T E R N A C I O N A L

BRASIL DE BOLSONARO:UM ANO DE GOVERNO,

DÉCADAS DE RETROCESSO

N ão se pode dizer que o go-verno de Bolsonaro tem sido uma grande surpresa. Desde a campanha presidencial em 2018, seu projeto econômi-

co foi apresentado de maneira sucinta: para gerar emprego, seria preciso retirar direitos. Essa dicotomia servente exclusivamente aos interesses das elites econômicas já deixava nítido qual seria a orientação de seus planos, caso fosse eleito. Hoje, após quase um ano de governo, Bolsonaro demonstra seu empenho em adequar o Brasil às necessidades impos-tas pela burguesia durante mais uma crise programada do capitalismo global e hiperfi-nanceirizado, enterrando de vez a discussão sobre um projeto de país para dar poder irres-trito às vontades do mercado. Em seu lema

Brasil acima de tudo, Deus acima de todos, a sua fé está no Deus Mercado.

Sob o comando de Paulo Guedes - um eco-nomista investigado por fraudes milionárias em fundos de pensão -, a política econômica se ancora no mantra vazio do corte de gastos para promover uma violenta retirada de direi-tos da classe trabalhadora e a diminuição do Estado enquanto instituição capaz de arran-jar alguma mediação entre os interesses das classes. A Reforma da Previdência, inspirada no fracassado modelo chileno de Pinochet, foi o primeiro e mais representativo ato des-sa política. Com um suposto déficit menor do que a dívida das grandes empresas com a previdência, o governo escolheu não incomo-dar seus devedores e entregou a conta para

os trabalhadores. O aumento da idade míni-ma (em alguns casos, acima da expectativa de vida) e a redução do valor da aposentado-ria foi apenas um dos aspetos de uma refor-ma que desmontou o sistema de seguridade social de um dos países mais desiguais do mundo, para estimular a previdência privada e aumentar os já exorbitantes lucros dos ban-queiros.

O mito de que a flexibilização das leis traba-lhistas atrairia mais investimento de capital para o país e, por consequência, geraria mais emprego não vem encontrando respaldo na realidade concreta, porém ganhou uma so-brevida no estímulo contínuo, a tal da econo-mia criativa. Um jeito moderno de abandonar o trabalhador ao azar do mercado. O recuo

JUAN LEAL*

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do índice de desemprego no Brasil, comemo-rado pelo governo (apesar de ainda atingir 12,6 milhões de pessoas), foi compensando por um crescimento recorde do trabalho in-formal. Estima-se que cerca de 36 milhões de brasileiros trabalhem sem carteira assinada ou por conta própria, ou seja, não estão se-gurados sequer pelos resquícios dos direitos trabalhistas que sobraram depois das últimas reformas. Por outro lado, em cumprimento às promessas de campanha, o lucro dos quatro maiores bancos com ações na bolsa também bateu o recorde: obteve um crescimento de 15%, o maior nos últimos 13 anos.

As políticas ultraliberais de Bolsonaro não pararam na acentuação da superexploração do trabalho, mas intensificaram a espoliação através do desmantelamento da proteção e de políticas públicas pétreas da Constituição brasileira. A lógica privatista impera. Áreas como saúde e educação são sistematicamen-te atacadas, com cortes de verbas e tentativas de desmonte, para possibilitar a famigerada entrega de estruturas, serviços e patentes aos grandes conglomerados da iniciativa priva-da. A mercantilização total e predatória dos recursos naturais é outra marca deste gover-no, que afirmou não abrir mão da exploração econômica da Amazônia. Os índices de des-matamento são os maiores em mais de uma década, chegando a crescer 212% no mês de julho/19. Jair Bolsonaro tenta transformar o país em um quintal de seu corporativismo fa-

miliar, agindo contrariamente aos interesses públicos, enquanto sua equipe trabalha para garantir as vontades da burguesia que o sus-tenta.

A concomitância entre a violenta retirada de direitos e o autoritarismo no controlo social não é mera coincidência. A reestruturação do capitalismo tem mostrado que essa nova fase é, em essência, antidemocrática e não vem poupando esforços para garantir a manuten-ção da dominação burguesa. Não à toa, a ala militar mais saudosa da ditadura de 1964 se tornou protagonista no atual governo brasi-leiro. Os discursos autoritários de Bolsonaro ganharam materialidade em diversos casos de censura, que se deram não somente pela proibição direta da liberdade de expressão, mas também pelo esvaziamento dos investi-mentos públicos. A extinção do Ministério da Cultura, rebaixando a pasta ao nível de Secre-taria Especial (ou seja, sem recursos próprios), e a entrega do seu comando a um fanático que abertamente declara uma “guerra cul-tural” contra a esquerda demonstram a real intenção: suprimir a diversidade e a liberdade de criação da sociedade civil para concentrar a produção cultural no Estado. Sem nenhuma novidade histórica, essa é uma característica estruturante de regimes totalitários.

Como parte deste mesmo projeto, a crise que se instaurou no interior do PSL (Partido Social Liberal), culminando com a desfilia-ção de Bolsonaro, abriu caminho para que o verniz republicano cedesse espaço à criação da Aliança pelo Brasil (APB), novo partido controlado pelo clã familiar do presidente. O manifesto partidário traça as linhas gerais de um velho programa: a identificação de um inimigo único (o comunismo), o ultranaciona-lismo, as críticas à democracia liberal e a ode a uma figura messiânica. O texto é direto ao dizer que somente cabem no partido os fiéis seguidores do Messias Bolsonaro. Com um

apoio explícito da Igreja Universal (incluindo a Record, sua grande rede de comunicação) e outro velado de grupos milicianos, sob o lema “Deus, pátria e família”, o primeiro par-tido neofascista do Brasil encontra as condi-ções materiais e culturais adequadas.

Essa movimentação de Bolsonaro reforça seu descompromisso com as vias políticas tradi-cionais, menosprezando os acordos neces-sários para compor sua base no Congresso, essenciais ao presidencialismo de coalização que ainda é marca da Nova República. O pre-sidente busca capitanear a crise política e de representatividade que ganhou força após as manifestações de 2013 para um projeto que nega o regime, mas sustenta o sistema. A so-lidificação das bases que o alçaram ao poder conjugou o assistencialismo, a partir da pre-cariedade das condições materiais em que a avassaladora maioria dos brasileiros está inserida, e a disputa cultural. E o apoio das igrejas neopentecostais é basal.

Não se trata somente de um debate entre diferentes discursos e narrativas, mas de um intenso trabalho de base realizado por gru-pos alinhados à extrema-direita, por isso, Bolsonaro se sente confortável para governar à revelia das diretrizes da velha política bra-sileira e faz com que esses aspetos da con-juntura estejam para além de uma marola de quatro anos. O Brasil, hoje, é palco de uma reestruturação do capitalismo que passa por uma nova hegemonia cultural, portanto, seus efeitos tendem a ser duradouros. No meio de um processo repleto de incertezas, uma coisa é certa: o que se vive no país não começou no processo eleitoral e nem será vencido somen-te através dele.

* JUAN LEAL É MEMBRO DA DIREÇÃO DO PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE (PSOL) NO RIO DE JANEIRO.

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O TRIÂNGULO MÁGICO. UMA BIOGRAFIA DE MÁRIO CESARINY António Cândido Franco2019 | 512 páginasQuetzalPVP: ± 22.20 Euros

Trata-se de uma biografia de Mário Cesariny (1923-2006), poeta e pintor muito justamente considerado como um dos expoentes do surrealismo português. E, como qualquer biografia séria, revela um trabalho de investigação profundo sobre os factos de vida do biografado, mas também sobre a sua época, as suas relações, a forma como essa vida se inscreve no tempo, redefinindo-o. Este livro revela-se, a este título, exemplar, pelo modo como se compromete com a obra de Cesariny, encarando a tarefa de refletir a sua vida como um verdadeiro trabalho de escrita. Enquanto leitor de Cesariny, na sequência de um mergulho profundo e problematizador pela sua vida e obra, António Cândido Franco faz uma viagem singular e absorvente pelas várias dimensões de um dos mais indomáveis provocadores do panorama artístico português. O livro oferece uma perspetiva invulgarmente documentada quanto às questões filosóficas, estéticas e literárias que definem o espaço cultural dos séculos XX-XXI, esclarecendo o papel e a centralidade de Cesariny na arte e na literatura contemporâneas.

L E I T U R A S A C O N T E C E

COMBATES CONTRA A EXTREMA-DIREITAVVAA2019 | 288 páginasEdições CombatePVP: 15 Euros

Trinta anos depois do assassinato do Zé da Messa, o que era um movimento marginal de rufias repetindo discursos paranoicos tornouse, em muitos lugares, dos Estados Unidos a alguns grandes países europeus, latinoamericanos e asiáticos, um amplo movimento político que disputa o poder ou já o conquistou. Este livro de homenagem a José Carvalho, que reúne testemunhos e reflexões de uma dezena de militantes e de historiadores, dá conta dessa realidade e discute como lhe fazer frente.

Lisboa | 7 dezembro | FCSH_UNLEm cima da mesa vai estar a discussão sobre as narrativas, os factos e os mitos do colonialismo português, sua história, memória e longa persistência na sociedade portuguesa, contribuindo para qualificar a intervenção cidadã e o combate político, disseminando conhecimento numa perspetiva crítica e emancipatória. Conta com a presença de Miguel Bandeira Jerónimo, Fernando Rosas, Bruno Sena Martins, Cristina Roldão, Marta Araújo, Miguel Cardina, Ana Rita Alves, Nuno Domingos e Beatriz Gomes Dias.

Contactosemail [email protected]/redeanticapitalistaweb www.redeanticapitalista.net

Porto | 13-15 dezembro | Encontro Feminista Internacional

13 dezembro | 21H30 (local a definir)Apresentação do projeto Feminismos Sobre Rodas - rota 2019

14 dezembro | Galeria Geraldes10-13 horas | Seminário: Movimento Feminista Internacional e Feminismo Anticapitalista

14h30-16 horas | Oficinas: Feminismo e antirracismo e Direitos reprodutivos

16h30-17h30 | Tricotando ideias: debate a partir das oficinas

18-20 horas | Oficina de colagens, com Marguerite Stein (França, Feminicides Collages Paris)

21 horas | Colagem coletiva

23 horas | Festa feminista 

15 dezembro | Galeria Geraldes11-19 horas | Oficina de Teatro da Oprimida, com Deyanira Benedetto (Argentina-Espanha, La Mujer Escena)

A TRAVESSIA DE BENJAMINJay Parini2019 | 368 páginasElsinorePVP: ± 20.99 Euros

Durante os anos 1930, o filósofo alemão Walter Benjamin dedicou o seu tempo à escrita na Paris que tanto adorava. Porém, em 1940, quando os tanques nazis chegam às portas da cidade, o judeu Benjamim foi forçado a fugir, levando consigo a mala com os seus manuscritos.

O livro relata esses dias cinzentos, a relutância de Benjamin em aceitar o perigo e a necessidade de partir, fazendo incursões pelas memórias de infância e juventude do filósofo, pelos seus amores e desamores e pelas amizades com personagens bem nossas conhecidas, como Bertolt Brecht e Theodor Adorno, por exemplo. Pelo seu caráter biográfico, desde a primeira página do livro que sabemos o fim trágico que traz dentro. E por isso é uma leitura tão intensa, permanentemente acompanhada por um nó na garganta.