musica na escola analisando a proposta dos pcn para o ensino fundamental

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113 6 MÚSICA NA ESCOLA: analisando a proposta dos PCN para o ensino fun- damental Maura Penna Música é uma das modalidades artísticas propostas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais para a área de Arte 1 , em todos os ciclos do ensino fundamental. É fato que a Educação Artística, tornada obrigatória pela Lei 5692/71, já englobava a música, que constitui, inclusive, uma habilitação específica da licenciatura plena na área. No entanto, a abordagem polivalente e a predomi- nância das artes plásticas no espaço escolar da Educação Artística reduziram, enormemente, a presença da música nas escolas. Como analisa uma pesquisadora: “Os alunos dos cursos de Educação Artística que não tenham tido formação musical anterior não conse- guem, durante o curso, dominar estratégias, habilida- des e conteúdos específicos da área; o resultado disso Agradecemos a Cláudia Ribeiro Bellochio seus comentários e sugestões. Este artigo retoma questões tratadas em trabalho anterior, que analisa o documento para os 3 o e 4 o ciclos (Penna, 1999a), apresentado no VII Encontro Anual da Associação Brasileira de Educação Musical (Recife, outubro de 1998). 1 Para facilitar as remissões, trataremos como PCN-Arte I o documento para os 1º e 2º ciclos (MEC, 1997b) e PCN-Arte II o documento para os 3 o e 4 o ciclos (MEC, 1998b).

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6MÚSICA NA ESCOLA:

analisando a proposta dos PCN para o ensino fun-damental

Maura Penna

Música é uma das modalidades artísticas propostas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais para a área de Arte1, em todos os ciclos do ensino fundamental. É fato que a Educação Artística, tornada obrigatória pela Lei 5692/71, já englobava a música, que constitui, inclusive, uma habilitação específica da licenciatura plena na área. No entanto, a abordagem polivalente e a predomi-nância das artes plásticas no espaço escolar da Educação Artística reduziram, enormemente, a presença da música nas escolas. Como analisa uma pesquisadora:

“Os alunos dos cursos de Educação Artística que não tenham tido formação musical anterior não conse-guem, durante o curso, dominar estratégias, habilida-des e conteúdos específicos da área; o resultado disso

Agradecemos a Cláudia Ribeiro Bellochio seus comentários e sugestões. Este artigo

retoma questões tratadas em trabalho anterior, que analisa o documento para os 3o e 4o

ciclos (Penna, 1999a), apresentado no VII Encontro Anual da Associação Brasileira de Educação Musical (Recife, outubro de 1998).1 Para facilitar as remissões, trataremos como PCN-Arte I o documento para os 1º e 2º ciclos (MEC, 1997b) e PCN-Arte II o documento para os 3o e 4o ciclos (MEC, 1998b).

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logo se mostrou: a música praticamente desapareceu das escolas de primeiro e segundo graus”... (Fonterra-da, 1998, p. 20) 2

É, portanto, significativa a presença da música, com pro-posta própria, nos PCN-Arte, e muitos educadores da área musical encaram este fato como um retorno dessa linguagem artística às escolas. No entanto, a nosso ver, as indagações a esse respeito persistem, pois, como discutido em artigo desta coletânea, por um lado, é grande a flexibilidade na aplicação da proposta dos Parâ-metros em Arte, sendo delegada às escolas a decisão de como abordar as diversas modalidades artísticas e, por outro, não há definições claras sobre a formação do professor. Esta questão é mais contundente com respeito às quatro primeiras séries do ensi-no fundamental, em que costuma atuar um professor com forma-ção de nível médio, formação esta que, em geral, não contempla suficientemente nenhuma das linguagens artísticas, como reco-nhece o próprio documento para os ciclos iniciais (cf. PCN-Arte I, p. 57).

O que dizer, então, da capacitação desse professor para desenvolver de modo consistente conteúdos musicais, quando o próprio curso de Educação Artística muitas vezes se mostra ina-dequado para tal, como já mencionado? Apesar desta séria ques-tão de fundo, da qual depende em grande parte as possibilidades de realização da proposta para Música dos PCN-Arte, passamos a analisá-la, procurando comparar os dois documentos - para os 1o e 2o ciclos (1a a 4a séries) e para os 3o e 4o ciclos (5a a 8a séries) -, privilegiando este último, por se tratar do nível de ensino onde o professor com formação específica costuma atuar. 2 Uma pesquisa de campo realizada em 1999 e 2000 - junto a 186 professores responsá-veis pelas aulas de Arte nas turmas de 5a a 8a séries, em 152 escolas públicas da Grande João Pessoa - confirma este quadro (Penna, 2000a; 2001). Apesar de 82,8 % dos profes-sores serem formados em Educação Artística e mais 3,2% estarem cursando a licenciatu-ra na área, encontramos apenas 9 professores com habilitação em Música (sendo que em 2 casos com a habilitação ainda em curso). Por outro lado, 32,3% dos professores decla-ram trabalhar com a linguagem musical em sala de aula.

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A prática pedagógica em Música no ensino fundamental

A parte dedicada à Música segue, em cada um dos docu-mentos, o formato que é adotado para a abordagem das diversas modalidades artísticas. Desta forma são apresentados, além de considerações iniciais:

- nos Parâmetros para as primeiras séries, tópicos dedicados aos conteúdos, sendo os critérios de avaliação tratados em item es-pecífico;

- no documento para os 3o e 4o ciclos, tópicos dedicados aos ob-jetivos gerais, conteúdos e critérios de avaliação.

Já em suas considerações iniciais, a proposta para Música caracteriza-se pela busca de uma educação musical que tome co-mo ponto de partida a vivência do aluno, sua relação com a músi-ca popular e com a indústria cultural:

“É necessário procurar e repensar caminhos que nos ajudem a desenvolver uma educação musical que con-sidere o mundo contemporâneo em suas característi-cas e possibilidades culturais. Uma educação musical que parta do conhecimento e das experiências que o jovem traz de seu cotidiano, de seu meio sociocul-tural e que saiba contribuir para a humanização de seus alunos.” (PCN-Arte II, p. 79 - grifos nossos)

“Qualquer proposta de ensino que considere essa di-versidade [da produção musical contemporânea] pre-cisa abrir espaço para o aluno trazer música para a sala de aula, acolhendo-a, contextualizando-a e ofe-recendo acesso a obras que possam ser significativas para o seu desenvolvimento pessoal em atividades de apreciação e produção.” (PCN-Arte I, p. 75 - grifos nossos)

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Nesta medida, a concepção geral do ensino de música é bem direcionada, uma vez que consideramos que a função da edu-cação musical na escola de ensino fundamental é ampliar o uni-verso musical do aluno. Isto significa dar-lhe condições para a apreensão da linguagem musical em sua diversidade de manifes-tações, pois a música, em suas mais variadas formas, é um patri-mônio cultural, capaz de enriquecer a experiência expressiva e significativa de cada um.

No entanto, esta função da educação musical tem esbarra-do, tradicionalmente, na oposição entre música popular e música erudita - a chamada música “clássica”. Estes dois universos da produção musical têm suas formas próprias e opostas de ensino e de aprendizagem, práticas culturais e valores sociais distintos. Deste modo, o ensino dos conservatórios de música - que é um ensino de caráter técnico-profissionalizante - toma como padrão praticamente exclusivo a música erudita, voltando-se, em geral, para a técnica instrumental e para o adestramento no uso da parti-tura, com as aulas de “teoria musical”. Este ensino, com suas prá-ticas pedagógicas bastante questionáveis, tem historicamente ser-vido como modelo de um ensino “sério” de música, tornando-se referência corrente para as ações educativas na área, inclusive nas escolas de 1o grau / ensino fundamental (cf. Penna, 1995a). Neste quadro, Tourinho (1998, p. 170) caracteriza a atitude dos profes-sores de educação musical por “uma surdez seletiva” em relação à produção musical e pela “reverência à cultura musical notada”.

Destaca-se, neste contexto, a importância do direciona-mento dado à proposta de Música apresentada nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental, que traz o desafio de superar a histórica dicotomia entre música erudita e popular. Este direcionamento é mais claro no documento para os 3o e 4o ciclos, onde as considerações iniciais da parte de Música são, a nosso ver, mais consistentes e bem articuladas - assim como a proposta como um todo. Neste nível de ensino, a proposta apon-ta para - ou mesmo exige como base - uma concepção de música

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bastante aberta. Isto porque, se o princípio é partir “das experiên-cias que o jovem traz de seu cotidiano, de seu meio sociocultural” - que se situam, em geral, no âmbito da música popular -, o obje-tivo é expandir a sua vivência musical rumo ao extenso, rico e praticamente ilimitado (já que a música é viva e está em constante movimento) “conhecimento musical construído pela humanidade no decorrer de sua história” e nos diferentes espaços sociais3. E esta meta é incompatível com uma concepção de música que trate as produções populares e eruditas como situadas em pólos estan-ques e opostos.

Essa necessidade de uma concepção mais aberta e abran-gente de música, como base para a prática pedagógica, pode acar-retar dificuldades na realização da proposta dos PCN-Arte para Música, uma vez que a oposição entre a música popular e a músi-ca erudita tem marcado os cursos superiores na área e, portanto, a própria formação do professor4. Neste contexto, questionamos a proposição, como conteúdo para as primeiras quatro séries do ensino fundamental, de: “Discussões e levantamento de critérios sobre a possibilidade de determinadas produções sonoras serem música” (PCN-Arte I, p. 80). Nas mãos de um professor sem uma maior vivência musical, ou então com uma formação “conservato-rial” baseada no padrão erudito, tal conteúdo pode levar a uma concepção fechada de música, justamente na direção oposta à concepção ampla que se mostra necessária.

A meta pedagógica de expandir a vivência musical do alu-no partindo de sua experiência atual é explicitada no documento para os 3o e 4o ciclos, inclusive quando, nas considerações iniciais da parte de Música, procura-se encarar o fato de muitas escolas

3 Conforme o 6o objetivo geral apresentado para Música (PCN-Arte II, p. 81 - citado adiante). No texto dos PCN-Arte, não é empregada a numeração de objetivos, conteúdos ou critérios de avaliação. Referimo-nos, portanto, à ordem em que são apresentados.4 Para um aprofundamento desta questão, ver Penna (1999b). Para uma discussão da concepção de música, ver ainda Penna (1999c).

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terem alunos adultos nas últimas séries do ensino fundamental, devido aos problemas de evasão e repetência:

“Quanto ao aluno adulto de terceiro e quarto ciclos (realidade de escolarização fundamental ainda existen-te em nosso país), a escola deve também garantir-lhe uma educação musical em que seu imaginário e ex-pressão musical se manifestem nos processos de im-provisar, compor e interpretar, oferecendo uma di-mensão estética e artística, articulada com apreciações musicais. A consciência estética de jovens e adultos é elaborada no cotidiano, nas suas vivências, daí a ne-cessidade de propiciar, no contexto escolar, oportuni-dades de criação e apreciação musicais significativas.” (PCN-Arte II, p. 60)

No documento para as quatro primeiras séries do ensino fundamental, as considerações iniciais da proposta de Música a-bordam alguns pontos relativos à prática em sala de aula. Já que, nos dois documentos, as orientações didáticas são dadas para a área de Arte de modo global, tendo um caráter bastante genérico, é relevante a indicação, nessas considerações, da importância de se trabalhar a linguagem musical com base em sua concreticidade sonora:

“Uma vez que a música tem expressão por meio dos sons, uma obra que ainda não tenha sido interpre-tada só existe como música na mente do compositor que a concebeu. O momento da interpretação é aquele em que o projeto ou a partitura se tornam música viva. (...) Além disso, as interpretações estabelecem os con-textos onde os elementos da linguagem musical ga-nham significado.” (PCN-Arte I, p. 75)

Neste sentido, essas considerações iniciais dão grande des-taque ao canto e às canções - com ênfase nas brasileiras -, como material para o trabalho musical: “a canção só se faz presente pela interpretação, com todos os demais elementos” (PCN-Arte I, p.

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76-77) . Sem dúvida, o canto permite uma prática musical signifi-cativa, sem necessidade de maiores recursos materiais, promoven-do o desenvolvimento de habilidades musicais:

“O cantar deve estar presente em toda atividade musi-cal de base. Ouvido e voz pertencem ao mesmo siste-ma neurológico, sendo assim, a interferência em um deles causa transformações no outro. Dito de outro modo, o aperfeiçoamento da percepção auditiva leva ao melhor desempenho no canto, enquanto a melhoria na capacidade de cantar propicia o desenvolvimento da capacidade auditiva.” (Fonterrada, 1998, p. 22)

O canto tem importante função na educação musical, ao mesmo tempo em que é tido como uma atividade rotineira nas séries iniciais do ensino fundamental. Como mostra Fucks (1998, p. 84), o canto - principalmente o “cantar cívico” - é praticado na escola brasileira desde, pelo menos, o final da I Guerra Mundial. Esta orientação consolida-se e “oficializa-se” com a obrigatorie-dade do Canto Orfeônico5, que deixa suas marcas até os dias de hoje, na “primazia que cantar tem representado no ensino de Mú-sica na escola” (Bellochio, 2000, p. 337), primazia esta que sem dúvida merece ser discutida. Afinal, como indica Souza (1998, p. 134), há “concepções didáticas que descentralizam o canto (como já perguntava Adorno nos anos 50, quem é que disse que na aula de música tem que se cantar?).”

Nos Parâmetros para os 1o e 2o ciclos, a ênfase dada ao canto talvez expresse, em certa medida, a sua presença na prática pedagógica deste nível de ensino, onde é comumente realizado

5 Como parte da chamada Reforma Francisco Campos, o Decreto no 18.890, de 18 de abril de 1931, “tornava obrigatório o ensino do Canto Orfeônico nas escolas da Prefeitu-ra do Distrito Federal. Para organizar o ensino musical que fora oficializado, foi criada a Superintendência de Educação Musical e Artística - SEMA - que passaria a orientar os professores de música” (Fucks, 1998, p. 82). Em 1942, sua obrigatoriedade estende-se a todas as escolas do país, sendo criado, por Villa-Lobos, o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico (Fonterrada, 1993, p. 75)

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pelo professor de classe, freqüentemente sem maiores preocupa-ções com objetivos propriamente musicais, ou até mesmo refletin-do problemas de colocação da voz. Assim, para que a proposta dos PCN-Arte não venha apenas referendar o canto como uma atividade já existente - muitas vezes distorcida de seu potencial de desenvolvimento musical -, mas antes dar-lhe real finalidade edu-cativa, consideramos que seriam indispensáveis algumas indica-ções, por breves que fossem, quanto aos cuidados com algumas questões de técnica vocal - como a tessitura fisiologicamente cor-reta para a voz infantil, ou o processo de muda de voz na adoles-cência. Por outro lado, essa ênfase no canto - que não é encontra-da no documento para as 5a a 8a séries - pode também refletir a falta de definição do professor que irá realizar a proposta para Música nas séries iniciais, pela ausência de um compromisso polí-tico com a questão de recursos humanos com formação adequada:

...“quem deve dar aulas de música? O professor de classe? O professor de Artes? O músico que é também professor de Educação Musical? Sem dúvida, há mui-tas atividades que o professor não músico pode desen-volver com sua classe para estimular o gosto pela mú-sica; sem dúvida, é possível cantar ou tocar, mesmo que o professor não saiba ler música; sem dúvida, ele poderá conduzir o interesse da classe na apreciação do ambiente sonoro escolar ou das imediações. Para isso, ele não necessita de formação específica, mas apenas de musicalidade e interesse pela música e pelos sons. Mas, mesmo para isso, é necessário que tenha uma só-lida orientação. (...) Outras questões, porém, são da alçada do professor especialista e é ele quem deverá tomar as rédeas do processo educativo”... (Fonterrada, 1998, p. 22-23)

Apesar de concordar com estas colocações de Fonterrada, temos de admitir que não seria possível contar a curto prazo -mesmo que houvesse decisão política para tal - com professores com formação específica em música em número suficiente para

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atender a todas as escolas deste país, nos diversos ciclos. Faz-se necessário, por conseguinte, reconhecer os limites das possibilida-des de atuação do professor especialista e buscar meios para capa-citar o professor das primeiras séries para o trabalho musical em suas turmas, ou então estaremos aceitando que a música, “enquan-to proposta [pedagógica] sistematizada, permaneça ausente da escola, mesmo estando presente no cotidiano dos alunos” de for-ma tão marcante (Subtil, 1998, p. 6). Alternativas para tal capaci-tação têm sido apontadas por diversos estudos e experiências6, seja inserindo e trabalhando criticamente conteúdos musicais na formação inicial do professor dos primeiros ciclos (em cursos su-periores de Pedagogia), seja através da articulação entre o profes-sor especialista no ensino de Música e o professor de classe, ou ainda em ações efetivas de formação continuada.

Os objetivos e conteúdos de Música

Como já mencionado, apenas o documento para as 5a a 8a

séries apresenta objetivos gerais, os quais, de modo global, consi-deramos adequados. Destacamos, principalmente, a pertinência do 6o objetivo, que consideramos fundamental para a linha de traba-lho proposta:

“Interpretar e apreciar músicas do próprio meio socio-cultural e as nacionais e internacionais, que fazem par-te do conhecimento musical construído pela humani-dade no decorrer de sua história e nos diferentes espa-ços geográficos, estabelecendo inter-relações com as outras modalidades artísticas e as demais áreas do co-nhecimento.” (PCN-Arte II, p.81)

6 Ver, entre outros: Bellochio (1999, 2000), Torres e Souza (1999), Ramos e Torres (1999).

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Na modalidade de Música, podemos reconhecer - tanto nos objetivos gerais quanto nos conteúdos - os três “eixos norteado-res”, apresentados na primeira parte dos Parâmetros para toda a área de Arte, que têm por base a Proposta Triangular7. Assim, quanto aos objetivos gerais, podemos observar que:

O 3o objetivo, por exemplo, diz respeito ao eixo da produção: “Pesquisar, explorar, improvisar, compor e interpretar sons de diversas naturezas e procedências”... (PCN-Arte II, p. 81)

Com o eixo da apreciação, relacionam-se o 6o objetivo, acima citado, assim como o 7o: “Conhecer, apreciar e adotar atitudes de respeito frente à variedade de manifestações musicais e ana-lisar as interpenetrações que se dão contemporaneamente entre elas, refletindo sobre suas respectivas estéticas e valores.” (PCN-Arte II, p. 81)

O 8o objetivo é um exemplo do eixo da contextualização: “Va-lorizar as diversas culturas musicais, especialmente as brasilei-ras, estabelecendo relações entre a música produzida na escola, as veiculadas pelas mídias e as que são produzidas individual-mente e/ou por grupos musicais da localidade e região”... (PCN-Arte II, p. 81-82)

Diversos objetivos articulam mais de um eixo norteador, como, aliás, coloca a própria Proposta Triangular; é o caso do 2o obje-tivo: “Desenvolver a percepção auditiva e a memória musical, criando, interpretando e apreciando músicas em um ou mais sistemas musicais, como: modal, tonal e outros.” (PCN-Arte II, p. 81)

Por sua vez, os conteúdos são agrupados em três grandes blocos, que são compatíveis com os eixos norteadores gerais, e

7 Nos dois primeiros ciclos, os eixos norteadores são a produção, a fruição e a refle-xão; para os 3o e 4o ciclos, produzir, apreciar e contextualizar. Para um maior deta-lhamento a esse respeito, ver o artigo “A orientação geral para a área de Arte e sua viabilidade”, nesta coletânea.

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que são os mesmos nos dois documentos, salvo diferentes formu-lações para o terceiro bloco:

1o) O eixo da produção, em “Expressão e comunicação em Músi-ca: improvisação, composição e interpretação” (cf. PCN-Arte I, p. 78-79; PCN-Arte II, p. 82-84);

2o) O eixo da fruição/apreciação, em “Apreciação significativa em Música: escuta, envolvimento e compreensão da lingua-gem musical” (cf. PCN-Arte I, p. 79-80; PCN-Arte II, p. 84-85);

3o) O eixo da reflexão/contextualização, em “A Música como produto cultural e histórico: música e sons do mundo” (cf. PCN-Arte I, p. 80-81) e “Compreensão da Música como pro-duto cultural e histórico” (cf. PCN-Arte II, p. 85-86).

A própria proposição destes blocos de conteúdos pode ser questionada. Por tratar do fazer musical, o primeiro é sem dúvida fundamental. Contudo, como coloca Fonterrada (1998, p. 24-25), se sua formulação é teoricamente pertinente, a situação do ensino de música nas escolas nas últimas décadas pode indicar a sua invi-abilidade: o termo “composição” é, para esta autora, “pretensioso e inadequado”, e mesmo a concepção de improvisação mereceria ser claramente delimitada8. Sendo os PCN-Arte uma orientação oficial para a prática pedagógica na área, gerando expectativas (inclusive por parte das direções de escolas) relativas ao desempe-nho tanto de professores quanto de alunos, consideramos impor-tante a clara definição dessas noções. Certamente, em determina-dos quadros teóricos ou metodológicos, o termo “composição” é tomado em sentido amplo - como em Swanwick (1991, p. 67-68), que o emprega para todo “ato de combinar sons musicais”, inclu-

8 “A idéia de improvisação como ação livremente exercida pelo aluno não corresponde a sua aplicação na área de Música, onde requer, antes de tudo, criatividade, domínio técni-co-instrumental, capacidade de escutar o que está ocorrendo sonoramente à sua volta e capacidade de integração com as propostas dos outros membros do grupo, apenas para citar algumas das necessidades mais prementes.” (Fonterrada, 1998, p. 25)

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indo desde “as manifestações mais breves” até as invenções mais elaboradas, desde que haja “uma certa liberdade para eleger a or-denação da música”. Não se pode esquecer, entretanto, que no senso comum “composição” remete a peças musicais elaboradas segundo padrões culturalmente dominantes. Desta forma, parece problemático que os PCN-Arte possam dar margem a expectativas desproporcionais, permitindo que o professor venha a ser pressio-nado, por exemplo, a realizar na escola, ao final de um ano de trabalho, um “festival de música” com as “composições” de seus alunos9. Sendo assim, talvez fosse mais adequada a noção mais ampla de “criação”, que pode se dar tanto de modo exploratório quanto por uma organização planejada do material sonoro (estru-turação).

No documento para as primeiras quatro séries, o bloco da produção tem o maior número de conteúdos. Alguns são bastante claros, permitindo vislumbrar a prática em sala de aula:

“Percepção e identificação dos elementos da linguagem musi-cal em atividades de produção, explicitando-os por meio da voz, do corpo, de materiais sonoros e de instrumentos disponí-veis.”

“Utilização e criação de letras de canções, parlendas, raps, etc., como portadoras de elementos da linguagem musical.”

“Utilização do sistema modal/tonal na prática do canto a uma ou mais vozes.”

“Brincadeiras, jogos, danças, atividades diversas de movimento e suas articulações com os elementos da linguagem musical.” (PCN-Arte I, p. 78-79)

9 Em curso sobre os PCN-Arte, ministrado durante o IX Encontro Anual da Associação Brasileira de Educação Musical / ABEM (Belém, setembro de 2000), alunos relataram problemas deste tipo em escolas em que trabalhavam.

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Por outro lado, há contéudos vagos ou confusos, como “Traduções simbólicas de realidades interiores e emocionais por meio da música” (PCN-Arte I, p. 79), conteúdo este que reflete, a nosso ver, a noção romântica de arte como expressão, que marca a fundamentação apresentada na primeira parte do documento para este nível de ensino10.

Quanto ao segundo bloco, dedicado à apreciação, boa parte dos conteúdos para os 1o e 2o ciclos remetem a processos discursi-vos e de pensamento - o que também acontece, em certa medida, na proposta para 5a a 8a séries - , como por exemplo: “Discussão de características expressivas e da intencionalidade de composito-res11 e intérpretes em atividades de apreciação musical” (PCN-Arte I, p. 80). Desta forma, é relegada a segundo plano a impor-tante questão da preparação do aluno para a escuta e apreciação musical:

...“há aspectos básicos que nem sequer foram mencio-nados nos PCN (...). A escuta de qualidade está ligada ao desenvolvimento da percepção auditiva (sono-ro/musical) e prende-se diretamente aos parâmetros do som (altura, duração, intensidade e timbre) e às dife-rentes formas de organização musical (horizontal e vertical). O ato da escuta não é passivo e nem se limi-ta ao ouvido: o homem ‘ouve’ com o corpo todo. Por esse motivo, é necessário o trabalho corporal, que le-vará ao discernimento do espaço, do tempo, e de dife-rentes formas de organização sonora.” (Fonterrada, 1998, p. 22)

Neste sentido, sentimos falta, nos dois documentos dos PCN-Arte, de uma proposta de formação progressiva de conceitos relativos

10 A este respeito, ver o artigo “Marcas do romantismo: os impasses da fundamentação dos PCN-Arte”, nesta coletânea. 11 Sobre este ponto, concordamos com a afirmação de Barbosa (1998, p. 47 - grifos nossos): “O objeto da interpretação [apreciação] é a obra, não o artista, portanto uma interpretação não precisa incluir a intenção do artista”...

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aos elementos e princípios de organização da linguagem musical, que pudesse promover o domínio gradativo desta linguagem, dan-do sustentação às atividades de apreciação e de produção.

No documento para os 3o e 4o ciclos, cada bloco apresenta doze conteúdos, bem mais do que na proposta para Dança, por exemplo. Alguns conteúdos têm enorme abrangência e complexi-dade, implicando um desenvolvimento progressivo da percepção e da compreensão da linguagem musical. É o caso, por exemplo, do seguinte conteúdo:

“Audição, comparação, apreciação e discussão de obras que apresentam concepções estéticas musicais diferenciadas, em dois ou mais sistemas, tais como: modal, tonal, serial e ou-tros, bem como as de procedimento aleatório.” (PCN-Arte II, p. 84 - grifos nossos)

E este conteúdo, do bloco de apreciação, interliga-se a outros que também abrangem os diversos sistemas musicais, no eixo de cria-ção – “Improvisações, composições e interpretações utilizando um ou mais sistemas musicais: modal, tonal e outros” (p. 82) - e tam-bém no de contextualização – “Identificação da transformação dos sistemas musicais (modal, tonal, serial), ao longo da história” (p. 85).

Para que possam ser efetivamente trabalhados, conteúdos amplos e complexos como esses exigem uma presença constante do ensino de música na vida escolar do aluno. Isto pode ser vis-lumbrado, inclusive, pela progressão que se estabelece entre as propostas para Música nos dois documentos, já que, nas séries iniciais, é prevista apenas a “utilização do sistema modal/tonal”12, e nas séries posteriores ampliam-se os sistemas musicais aborda-dos. E, na verdade, apenas esses conteúdos de criação, apreciação e contextualização sobre os diversos sistemas musicais já seriam

12 Ver PCN-Arte I, p. 76 e 79 (conteúdo apresentado acima).

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suficientes para sustentar um trabalho musical de qualidade, ao longo de toda a educação fundamental.

É possível perceber, ainda, o aprofundamento pretendido de um nível de ensino para outro, na proposição de certos conteú-dos. A questão das formas e fontes de registro, preservação e di-vulgação ou comunicação musicais é contemplada nas duas pro-postas, sendo que, nos 1o e 2o ciclos, enfatiza-se a sua disponibili-dade “na classe, na escola, na comunidade” (PCN-Arte I, p. 81), ao passo que, nas 5a a 8a séries, já se alcança a “cidade e região” (PCN-Arte II, p. 86). Um outro exemplo é a proposição, nas séries iniciais, como conteúdo do terceiro bloco, de: “Músicos como agentes sociais: vidas, épocas e produções” (PCN-Arte I, p. 81). Nos ciclos finais, o mesmo tema ganha maior complexidade:

“Investigação da contribuição de compositores e intérpretes para a transformação histórica da música e para a cultura musi-cal da época, correlações com outras áreas do conhecimento e contextualizações com aspectos histórico-geográficos, bem como conhecimento de suas vidas e importância de respectivas obras.” (PCN-Arte II, p. 86) 13

Apesar dessa possível progressão, o fato é que não é garantida a continuidade necessária ao ensino de música, na medida em que os PCN-Arte propõem quatro modalidades artísticas, deixando a cargo das escolas a decisão de como tratá-las.

Ao contrário da proposta para as séries iniciais - que se centra no canto, referindo-se, eventualmente, a “equipamentos” e “instrumentos disponíveis” (PCN-Arte I, p. 78) -, boa parte dos conteúdos para 5a a 8a séries pressupõem a disponibilidade de re-cursos, como materiais para audição, gravadores para registro dos

13 Na primeira parte dos dois documentos, um dos conteúdos colocados para a área de Arte é a vida dos “produtores de arte” (cf. PCN-Arte I, p. 57; PCN-Arte II, p. 52). Esses conteúdos de Música refletem, portanto, a proposição de conteúdos globais para Arte. Questionamos essa ênfase dada à vida dos artistas, que, a nosso ver, deriva do culto ao gênio que marca uma concepção romântica de arte.

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trabalhos de improvisação e criação, ou ainda mencionam diver-sos instrumentos musicais e até mesmo equipamentos eletrônicos (cf. PCN-Arte II, p. 83). Por exemplo:

“Improvisação, composição e interpretação com instrumentos musicais, tais como flauta, percussão etc. e/ou vozes (obser-vando tessitura e questão de muda vocal) fazendo uso de técni-cas instrumental e vocal básicas, participando de conjuntos instrumentais e/ou vocais, desenvolvendo autoconfiança, sen-so crítico e atitude de cooperação.” (PCN-Arte II, p. 83 - grifos nossos)

Embora as questões da disponibilidade de recursos huma-nos e materiais, da continuidade do trabalho em Música e da carga horária para tal não digam respeito diretamente à proposta peda-gógica dos Parâmetros Curriculares Nacionais, elas indiscutivel-mente afetam as possibilidades de concretização da proposta, e não podem, portanto, ser desconsideradas nesta análise, pois se trata de documentos que configuram uma orientação oficial para a prática pedagógica em todas as escolas do país.

Destacamos, ainda, a presença de um número bastante grande de conteúdos voltados para a discussão e reflexão, ou habi-lidades correlatas, nos dois documentos. Alguns exemplos:

“Observação e discussão de estratégias pessoais e dos colegas em atividades de apreciação.” (PCN-Arte I, p. 80 - grifos nos-sos)

“Discussão da adequação na utilização da linguagem musical em suas combinações com outras linguagens na apreciação de canções, trilhas sonoras, jingles, músicas para dança, etc.” (PCN-Arte I, p. 80 - grifos nossos)

“Discussões e reflexões sobre a música que o aluno consome, tendo em vista o mercado cultural (indústria de produção, dis-tribuição e formas de consumo), a globalização, a formação de

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seu gosto, a cultura das mídias.” (PCN-Arte II, p. 85 - grifos nossos)

“Pesquisa, reflexões e discussões sobre a origem, transforma-ções e características de diferentes estilos da música brasilei-ra.” (PCN-Arte II, p. 86 - grifos nossos)

Como os diversos elementos de um planejamento curricu-lar se inter-relacionam, “discutir e refletir” marcam também, no documento para os 3o e 4o ciclos, os “objetivos gerais” e os “crité-rios de avaliação em Música”14.

Não negamos, em absoluto, a validade - e mesmo a neces-sidade - de um trabalho que envolva discussão e reflexão. Tal perspectiva é compatível com a diretriz geral de contextualizar as produções artísticas, e ainda com a orientação dada ao ensino de música, que considera a vivência do aluno e visa desenvolver a sua participação crítica no meio cultural em que vive. No entanto, a profusão de conteúdos voltados para a discussão e habilidades correlatas pode vir a favorecer uma prática pedagógica centrada no falar sobre música, sem a presença concreta do sonoro-musical em sala de aula. E este risco é ainda maior quando se con-sideram as deficiências na formação do professor e a precariedade de recursos de grande parte das escolas deste país. Neste quadro, falar sobre música, simplesmente, pode ser a solução mais fácil para um professor mal formado ou que não dispõe dos recursos materiais necessários; no entanto, tal prática não levará o aluno a desenvolver uma progressiva compreensão da linguagem musical. No mesmo sentido posiciona-se Fonterrada (1998, p. 21), que declara “temer uma ênfase muito grande no verbal, em detrimento da prática artística”, pelo privilégio dado a conteúdos voltados para “processos de pensamento e verbalização”.

14 Um dos critérios de avaliação é: “Refletir, discutir e analisar aspectos das relações socioculturais que os jovens estabelecem com a música através dos meios tecnológicos contemporâneos, com o mercado cultural.” (PCN-Arte II, p. 87 - grifos nossos)

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Alguns dos conteúdos com tais características articulam-se aos temas transversais - como, por exemplo, “Reflexão, discussão e posicionamento crítico sobre a discriminação de gênero, etnia e minorias, na prática da interpretação e criação musicais em dife-rentes culturas e etnias, em diversos tempos históricos” (PCN-Arte II, p.86), que diz respeito diretamente ao tema da Pluralidade Cultural, o mais relevante para a área de Arte. De modo geral, os temas transversais são contemplados com clareza em todos os componentes curriculares de Música da proposta para os 3o e 4o

ciclos15, pois, neste nível de ensino, parece haver um maior com-promisso da área de Arte com os mesmos, que são discutidos na primeira parte do documento. Alguns exemplos:

O 9o objetivo interliga-se ao tema transversal Pluralidade Cul-tural – “Discutir e refletir sobre as preferências musicais e in-fluências do contexto sociocultural, conhecendo usos e funções da música em épocas e sociedades distintas, percebendo as par-ticipações diferenciadas de gênero, minorias e etnias.” (PCN-Arte II, p.82)

O 12o objetivo, ao tema Trabalho e Consumo – “Adquirir co-nhecimento sobre profissões e profissionais da área musical, considerando diferentes áreas de atuação e características do trabalho.” (PCN-Arte II, p.82)

Alguns conteúdos contemplam o tema transversal Meio Ambi-ente, como este, que atende também ao tema Saúde: “Refle-xões sobre os efeitos causados na audição, no temperamento, na saúde das pessoas, na qualidade de vida, pelos hábitos de u-tilização de volume alto nos aparelhos de som e pela poluição sonora do mundo contemporâneo, discutindo sobre prevenção, cuidados e modificações necessárias nas atividades cotidianas.” (PCN-Arte II, p.85)

15 Com exceção do tema Orientação Sexual. Os demais temas transversais propostos para os 3o e 4o ciclos são: Ética, Pluralidade Cultural, Trabalho e Consumo, Saúde e Meio Ambiente.

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O tema Ética é contemplado todas as vezes em que há referên-cia explícita a “atitudes de respeito”, por exemplo, como no ob-jetivo 7o, acima citado.

E a prática, como fica?

Muitas indagações cercam as condições de concretização das proposições para Música dos Parâmetros Curriculares, mesmo nos 3o e 4o ciclos (a princípio um espaço para a atuação do profes-sor especializado), cuja proposta tem por base uma concepção ampla de música, englobando as múltiplas manifestações musicais presentes nos dias de hoje, populares ou eruditas, brasileiras ou não. Para ser efetivamente trabalhada, a proposta para este nível de ensino exigiria um professor não apenas habilitado na área es-pecífica de música, mas que também dominasse o conhecimento educacional em sentido abrangente, incluindo aí uma ampla gama de alternativas pedagógicas e metodológicas. Como o próprio tex-to para as últimas séries coloca, a atuação do professor “vai de-pender da bagagem que ele traz consigo: vai depender de seu ‘sa-ber música’ e ‘saber ser professor de música’” (PCN-Arte II, p. 79 - grifos nossos). Sendo assim, acreditamos que dificilmente será possível encontrar, a curto prazo, profissionais capacitados para realizar plenamente esta proposta, tanto por sua amplitude, quanto pela perspectiva pedagógica de considerar a realidade do aluno - além, é claro, dos problemas relativos à carga horária e continuidade do trabalho nas diversas séries, questões que afetam todas as modalidades artísticas dos PCN.

Como vemos, a efetivação da proposta implica, também, a busca de múltiplas alternativas metodológicas, capazes de atender às necessidades das diversas situações pedagógicas das escolas de ensino fundamental. Entretanto, os Parâmetros não trazem contri-buições neste sentido, uma vez que, como já vimos, as orientações

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didáticas são dadas de modo global. Por outro lado, mesmo no documento para os 3o e 4o ciclos, que já apontamos como mais consistente, os elementos curriculares tratados na especificidade da área de Música - objetivos gerais, conteúdos e critérios de ava-liação - não são suficientes para garantir uma adequada implanta-ção da proposta. Os objetivos têm uma formulação muito geral e, além disto, por vezes os conteúdos simplesmente os reduplicam em sobreposição, o que também acontece nos critérios de avalia-ção16. Sem dúvida, é comum esta sobreposição dos elementos de um planejamento pedagógico, onde é inevitável uma certa redun-dância, mas o problema aqui é que não se tem um avanço, não se consegue uma visão mais concreta do que deverá ser a prática em sala de aula. Será que o professor ao qual se destinam estes Parâ-metros conseguirá ter uma idéia clara de como agir?

Acreditamos que, na formulação de Parâmetros Curricula-res Nacionais - e sobretudo em sua implementação -, é indispen-sável levar em consideração a realidade das escolas deste país, em sua diversidade de realizações positivas e de problemas, sob pena de se cair em um discurso de boas intenções que, no entanto, pou-co traga para a prática educacional em sala de aula, em termos de resultados efetivos. É preciso, portanto, ter em conta que o profes-sor de música que atua nas escolas de ensino fundamental muitas vezes tem apenas a formação em uma licenciatura curta em Edu-cação Artística17, formação esta que não é capaz de lhe dar quer

16 Isto acontece, por exemplo, com o conteúdo “apreciação de músicas do próprio meio sociocultural [...etc.]” (PCN-Arte II, p. 84), que praticamente reproduz grande parte do objetivo “Interpretar e apreciar músicas do próprio meio sociocultural e as nacionais e internacionais, que fazem parte do conhecimento musical construído pela humanida-de[...etc.]” (p. 81). E este objetivo é retomado no critério de avaliação “Conhecer e apreciar músicas de seu meio sociocultural e do conhecimento musical construído pela humanidade em diferentes períodos históricos e espaços geográficos” (p. 87).17 A licenciatura curta em Educação Artística leva ao extremo o modelo polivalente de formação do professor para a área de Arte, propondo formar, até mesmo em dois anos, um educador capaz de atuar no 1o grau em diversas modalidades artísticas (cf. Resolu-ção 23/73 - CFE). Em várias regiões, são numerosos os professores com essa formação que atuam nas escolas. Este modelo polivalente afeta ainda a licenciatura plena, que

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um domínio sólido da linguagem musical, quer o conhecimento de alternativas metodológicas em educação musical. Em outros ca-sos, são bacharéis em música (instrumentistas, por exemplo) que atuam como professores, sem ter nenhum conhecimento (ou mes-mo interesse) pelas questões específicas de ensino. Tanto os pro-fessores de licenciatura curta, por sua frágil formação, quanto os bacharéis, por serem marcados por uma formação “conservatori-al” que toma como padrão praticamente exclusivo a música erudi-ta, terão enormes dificuldades para implementar adequada-mente a proposta de ensino de música apresentada nos PCN -ou até mesmo serão incapazes de fazê-lo.

Diante deste quadro, é preciso buscar uma formação do professor que não apenas lhe assegure o indispensável domínio dos conteúdos musicais, mas também o conhecimento e discussão de questões próprias da educação musical, incluindo uma visão das diversas propostas pedagógicas existentes na área, para que possa dispor de alternativas metodológicas para a sua prática no ensino fundamental. É preciso, ainda, que a formação inicial este-ja firmemente conectada com a prática educacional concreta, ou seja, esteja articulada à escola e suas dinâmicas constituintes. Por outro lado, são necessárias alternativas de acompanhamento peda-gógico e formação continuada, para apoiar o professor no aprimo-ramento de sua prática na escola.

“A experiência também tem mostrado que ações curriculares isoladas não são suficientes. Além delas, é necessário propor ações formativas, pois, qual pro-fissional estará apto para trabalhar com essas novas propostas curriculares? Por outro lado, sabemos que só as ações voltadas à formação profissional por si só não garantem o espaço institucional da aula de músi-ca. São necessárias, portanto, a formulação de políti-cas administrativas que viabilizem a implementação

também apresenta sérios problemas, apesar de ser mais extensa, englobando uma habili-tação específica.

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de currículos, já que inovação e formação são pólos de uma mesma problemática.” (Souza, 1999, p. 24-25)

Consideramos, por todo o exposto, que a proposta de mú-sica dos PCN-Arte é bastante ambiciosa e difícil de ser viabiliza-da, a curto prazo, na nossa realidade escolar. Ela traz, contudo, importantes desafios que podem incitar renovações produtivas e necessárias no ensino de música. Neste sentido, cabe não apenas acompanhar cuidadosamente as experiências de aplicação dos Parâmetros na área de Música, como também repensar a própria formação do professor.