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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ LAURA CRISTINA BARTACHEVITS BUDEL MÚSICA, ARTE E SOCIEDADE: RICHARD WAGNER E A UNIFICAÇÃO DO ESTADO NACIONAL ALEMÃO CURITIBA 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

LAURA CRISTINA BARTACHEVITS BUDEL

MÚSICA, ARTE E SOCIEDADE: RICHARD WAGNER E A UNIFICAÇÃO DO ESTADO

NACIONAL ALEMÃO

CURITIBA

2013

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LAURA CRISTINA BARTACHEVITS BUDEL

ARTE, MÚSICA E SOCIEDADE: RICHARD WAGNER E A UNIFICAÇÃO DO ESTADO

NACIONAL ALEMÃO

Monografia apresentada como requisito parcial

para a obtenção do grau de Bacharel em Ciências

Sociais pelo curso de Ciências Sociais da

Universidade Federal do Paraná.

Orientação: Prof. José Miguel Rasia

CURITIBA

2013

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Para Sara, Alice, Bruno e Rafael.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que estiveram comigo no decorrer desses anos de curso, e em

especial àqueles que de alguma forma contribuíram para a realização deste trabalho.

Ao professor Semí (UNIFAE) que me aconselhou a abandonar o curso de

administração, pois certamente eu seria muito mais feliz nas ciências sociais. Aos professores

Ana Luísa Sallas e Ângelo Silva, pelos bons tempos de CECIAL e pelo carinho. À professora

Maria Alice Brandão, por toda humildade e paciência. Em especial, ao meu querido e

dedicado orientador, professor José Miguel Rasia, por toda a dedicação a este trabalho e

também pelas momentos divertidos e conversas sobre música e vida.

Aos amigos músicos, Samuel e Gustavo, por me emprestarem materiais essenciais

para este trabalho. Aos amigos de Yosemite, por se tornarem grandes amigos. Às amigas da

vida inteira: Paula, Ariadne, Renata e Géssika, por me apoiarem em cada decisão. Aos amigos

“reitorianos”: Juca, Tamy, Gabi, Sâmia, Ellis, Líssia, Eddie, Fer e toda a turma do

“GRR2008”, por me encontrar com vocês.

A Flávia e Alfredo, pelo amor de irmãos e por tudo o que fizeram por mim sempre.

À minha avó Eunice, por me fazer rir de cada momento da vida. Ao meu amor Rodrigo, pela

compreensão em todos os momentos e pelos finais de semana de estudo.

Aos meus amados pais, Mara e Aldo, pelo amor incondicional, e pela busca

incansável pelo conhecimento. À vocês dois, não apenas agradeço mas também dedico este

trabalho. Agora chegamos onde sempre esperamos. Muito obrigada, sempre!

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Se tivéssemos uma verdadeira vida não teríamos necessidade de arte. A arte

começa precisamente onde cessa a vida real, onde não há mais nada a

nossa frente. Será que a arte não é mais do que uma confissão da nossa

impotência?

Richard Wagner

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RESUMO

O presente estudo busca compreender a formação do Estado Nacional Alemão, constituído em

1871 no regime de Otto Von Bismark, por meio da análise da obra do compositor alemão

Richard Wagner, que, em 1848, inspirado pela efervescência política de seu país, aderiu à

Revolução da Alemanha para a unificação do Estado. Wagner nasceu em Leipzig, em 1813, e,

embora muito conhecido por sua inovação musical, também se fez conhecido por questões

políticas presentes em seu tempo. São analisadas a situação social e a constituição política da

Alemanha até 1871, a situação dos músicos de corte como funcionários dos pequenos

principados alemães e a vida e obra de Wagner com a análise de sua obra prima O Anel dos

Nibelungos como contribuição para a consolidação da identidade alemã. Pretendemos com

este trabalho estabelecer relações entre música e sociedade, especificamente o poder político

na produção artística, e a musica wagneriana na construção do Estado alemão.

Palavras-Chave: Sociologia da Música, Sociologia Histórica, Richard Wagner, Revolução

Alemã.

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ABSTRACT

The following research seeks to understand the formation of the German National State,

created in 1871 during the command of Otto Von Bismarck, through the analysis of Richard

Wagner’s work, who, in 1848, inspired by the German political commotion, got involved in

the German Revolution for the unification of Germany. Wagner was born in Leipzig, in 1813,

and though he is very well known for his musical renewal, he was known for some political

questions that appeared in his social life. There will be an analysis of the Germany social

situation and its political constitution up to 1871, the court musicians situation as employees

of small German principalities and the life and work of Wagner as well as the analysis of his

master piece The Ring of the Nibelung, as the main work for the German identity

consolidation. With this work, we intend to connect questions about music and society,

including the Government’s influence on the artistic production, and the role of Wagner’s

music in the unification of Germany.

Key Words: Music Sociology, History Sociology, Richard Wagner, German Revolution.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 8

2 O ESTADO ALEMÃO: HISTÓRIA E UNIFICAÇÃO ................................................. 12

2.1 O PROCESSO DE UNIFICAÇÃO DA ALEMANHA .................................................... 21

3 A MÚSICA NA ALEMANHA .......................................................................................... 25

3.1 A MÚSICA COMO IDEOLOGIA E A “SOCIOLOGIA DA MÚSICA” ........................ 26

3.2 DE BACH A WAGNER: UMA CRONOLOGIA MUSICAL ......................................... 29

3.2.1 JOHANN SEBASTIAN BACH ..................................................................................... 29

3.2.2 WOLFGANG AMADEUS MOZART …………………………………..…………… 31

3.2.3 LUDWIG VAN BEETHOVEN ..................................................................................... 35

3.2.4 RICHARD WAGNER ................................................................................................... 37

4 A MITOLOGIA GERMÂNICA E O ANEL DOS NIBELUNGOS ................................ 46

4.1 A TETRALOGIA DO ANEL ........................................................................................... 48

4.2 O MITO E O ANEL .......................................................................................................... 56

4.3 A FILOSOFIA E O ANEL ............................................................................................... 59

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 62

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 66

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1 INTRODUÇÃO

Não foi por acaso que o tema “música” entrou em minha vida. E certamente acredito

que não foi por acaso que esta monografia se constituiu ao redor desse tema. Há muito tempo

que a música rodeia minha vida. De fato, como é universal, a música está presente

praticamente na vida de todos os seres humanos. Mas na minha, em especial, sempre teve um

valor significativo, sempre fez parte com mais intensidade. Eu tinha cinco anos quando

realmente a descobri. Até então, tinha vontade de tocar violino, apenas por querer. Mas foi

aos cinco anos que vi, pela primeira vez, uma moça tocando violoncelo; e desde então me

apaixonei. Eu sabia, mesmo tão cedo, que aquilo seria parte de mim: o som, o instrumento, as

notas, a mediação, a busca pelo talento. Aos oito anos comecei minhas aulas de instrumento,

as quais nunca mais terminaram.

Anos mais tarde, quando já estava de certa forma “preparada” pelo mundo musical,

escolhi encarar as Ciências Sociais como profissão e, mais uma vez, música e escolha se

uniram no que hoje se transformou em prazer pela pesquisa. Logo nos primeiros anos de

faculdade eu já fazia parte da Orquestra e do Quarteto de Cordas da UFPR. Vi-me, então, com

a vontade de seguir um estudo sobre a sociologia da música, para buscar compreender por que

a música faz sentido para tantas pessoas. Porém, entre tantos estudos sobre poder, Estado,

instituições, raça e gênero (os quais sempre considerei importantíssimos para minha

formação), eu não via um porquê de se estudar música dentro de uma ciência tão complexa

como a Sociologia, que tem como principal objetivo compreender a sociedade. A música não

era um problema. Então, como transformá-la em questão de estudo para a Sociologia?

Depois de estudar a Escola de Frankfurt, Elias e Adorno, autores fundamentais para a

consolidação desta monografia, entendi que também seria possível constituir um problema

sociológico no campo da música e que muitas pesquisas nas ciências sociais já estavam

relacionadas ao tema. Busquei então a Professora Ana Luísa Fayet Sallas, que prontamente se

dispôs a me orientar nessa caminhada. Eu poderia estudar um compositor e primeiramente

pensei em Beethoven por diversos motivos: era meu compositor favorito, amava suas

composições e, além do mais, nascemos no mesmo dia. Mas já existiam diversos estudos

sobre Beethoven e, em uma conversa com o Professor Paulo Guérios, decidi que o meu objeto

de estudo seria Richard Wagner. Fiz então o curso de Sociologia da Música, para entender

mais sobre o assunto e sobre quais questões eu poderia abordar. Participei do 1º. Encontro de

Imaginários Sonoros Latino-Americano (2011), onde fiz uma breve apresentação sobre

Wagner. No ano seguinte, passei a ser orientada pelo Professor José Miguel Rasia, que

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também prontamente se propôs a continuar minha orientação, buscando sempre que este

trabalho fizesse sentido e, além disso, ficasse “bonito” aos olhos das Ciências Sociais.

Na Escola de Belas Artes, a EMBAP, onde fiz o curso de Formação Musical

paralelamente à faculdade, Richard Wagner era visto como um compositor “antissemita”;

embora suas obras fossem exemplo de magnitude, ele era, e sempre foi, visto com “maus

olhos”, contra os propósitos da condição humana. Wagner era o compositor favorito de Adolf

Hitler, e isso de certa forma me incomodava e incomoda. Incomoda porque sou bisneta de

judeus que fugiram para o Brasil em meados de 1920. Mesmo antes da 2ª Guerra Mundial, os

judeus já eram perseguidos e não foi diferente com meus antepassados. Até a vinda para o

Brasil, alguns deles já haviam sido mandados para campos de concentração na Sibéria e na

Polônia. Cresci ouvindo sobre minha família que vivia na Prússia (e, neste caso, a Prússia era

“o todo”) e não é à toa que carrego comigo uma Estrela de Davi, símbolo da sobrevivência e

da luta por direitos iguais. Encarar um estudo sobre Wagner para mim é entender como algo

que sempre foi tão belo pode ter influenciado algo tão atroz como foi o regime nazista de

Hitler. Meu orientador, a partir de então, começou a problematizar comigo o antissemitismo

de Wagner e, ao mesmo tempo, sem negá-lo, apontava a diferença entre a apropriação da

música wagneriana por Hitler, a prática política de Wagner e sua concepção de raça, presente

em O Anel dos Nibelungos, e o drama humano contido que seu enredo representa.

Coincidentemente, em 2013 comemoram-se os 200 anos de Wagner e também os 80

anos da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha nazista. Embora o último não seja de fato

motivo de comemoração, não pode deixar de ser citado pela relação que normalmente se faz

entre a música de Wagner e o nazismo e pelo mal radical que o nazismo causou à

humanidade. A relação entre os dois foi, de início, o que me incentivou a fazer esta pesquisa.

Porém, adianto: o estudo sobre Wagner e Hitler, apesar de ter sido meu ponto de partida para

a consolidação desta monografia, não estará presente neste trabalho. Dedico-me aqui a

compreender a formação do Estado Nacional Alemão, o 2º Reich, consolidado em 1871 por

Otto Von Bismark, por meio das obras do compositor Richard Wagner. O objetivo aqui é

relacionar Wagner com a formação do Estado e principalmente destacar a influência de sua

obra para a sociedade alemã.

Richard Wagner nasceu em Leipzig, na Alemanha, em 1813 e ao longo de sua vida

desenvolveu obras que tratavam sempre de questões ligadas à relação entre arte e sociedade.

Além de revolucionar a ópera1, para Wagner era necessário que a arte se constituísse em uma

1 Wagner utiliza uma orquestração sinfônica, que diferencia seu trabalho da ópera italiana e francesa, na qual a

orquestra na maioria das vezes tem a função de somente acompanhar o cantor. (Durães, 2008).

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obra de arte total2, onde música, teatro e dança se unem. Portanto, o estudo aqui apresentado é

sobre Wagner e sua obra prima, a ópera O Anel dos Nibelungos, e sua contribuição para a

formação do Estado e da identidade alemã.

Para compreender a ligação de Wagner com a unificação Alemã, creio que existem

algumas perguntas a serem respondidas: a) Qual a relação entre construção artística e

estruturas de poder dentro de um Estado?: b) Qual a influência de Wagner para com o caráter

nacional do povo alemão?; c) Qual a trajetória de um compositor, como artista e ativista

político?; d) Quais foram os caminhos que levaram Wagner a criar uma obra capaz de

influenciar uma nação?

Primeiramente, considero que o leitor precisa compreender como era constituída a

Alemanha até 1871. A Alemanha de Wagner era dividida em pequenos principados, cada um

regido por um príncipe local, o que enfraquecia a economia e descentralizava o poder. Assim,

no primeiro capítulo, discuto a construção social da Alemanha com o auxílio de duas obras:

As Linhagens do Estado Absolutista, de Perry Anderson (1985), e Os Alemães, de Norbert

Elias (1996). A história da Alemanha não é aprofundada nessa parte, que apresenta um esboço

de como ela era constituída, focando em pontos importantes para seu entendimento. Nesse

mesmo capítulo, discuto a Unificação do Estado e a Revolução de 1848 na Alemanha, ano em

que Marx e Engels escreveram O Manifesto do Partido Comunista, que estabelece alguns

princípios para as lutas de classe. Nesse mesmo ano, Wagner escreveu Art and Revolution,

ensaio inspirado na obra de arte grega e na modernidade. Inicia-se também a revolução alemã3

– traçamos nesse capítulo os aspectos que levaram a sua concepção.

Além da compreensão da realidade social da Alemanha, uso como base para o

entendimento questões ligadas à música. Para isso, utilizo a Sociologia da Música, por meio

das obras de Theodor Adorno, Antoine Hennion e Max Weber. No segundo capítulo, faço

uma “cronologia musical”, discorrendo sobre vida e obra de três compositores alemães

antecessores de Wagner: Bach, Mozart e Beethoven. O interesse aqui é expor em linhas gerais

como era a produção artística na Alemanha e como ela se desenvolveu até Wagner. É

necessário afirmar que a arte até então estava ligada diretamente à corte e que os artistas,

necessariamente, respondiam às demandas da corte. Não havia possibilidade de uma arte

independente do poder dos príncipes ou da Igreja. Nesta parte, também adianto a discussão

sobre Wagner, colocando aqui a sua biografia.

2 “Gesemtkunstwerk”: Conceito de Obra de arte total. 3 1848.

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Enfim, no terceiro capítulo, apresento resumidamente informações sobre a vida de

Wagner, usando como base a obra do historiador Barry Millington, que se dedicou a pesquisar

a vida do compositor. Uso Wagner, um compêndio (1995) para compreender a vida de

Wagner e os aspectos psicológicos, filosóficos e políticos que a marcaram. Aqui também

lanço a hipótese de que o compositor contribuiu para a formação da identidade alemã, usando

para análise a obra O Anel dos Nibelungos.

Assim, este estudo discute questões que envolvem não apenas criação musical,

notação e orquestração, mas também questões sociais e políticas que envolvem o trabalho do

artista, o Estado e a ação da arte sobre as massas.

Meu objetivo não é construir um trabalho sobre o “Wagner gênio”, mas, sim, mostrar

como a arte e sua proposta estética podem influenciar uma nação. Por isso, no decorrer do

trabalho, pretendo que o leitor identifique os traços que tornaram Wagner, além de um dos

maiores compositores de sua época, um exemplo da concepção do caráter nacional alemão.

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2 O ESTADO ALEMÃO: HISTÓRIA E UNIFICAÇÃO

“Assim, como no desenvolvimento de uma pessoa individual, as experiências de

períodos anteriores de sua vida continuam tendo um efeito no presente, também as

experiências passadas influem no desenvolvimento de uma nação”.

Norbert Elias

Embora esta monografia tenha como objetivo compreender a formação do Estado

Nacional Alemão, concretizada no 2º. Reich em 1871, não vejo como objetivo explicar

inteiramente a história da Alemanha e de como se constituiu sua formação social e política.

Primeiramente porque, se partirmos para essas explicações, o trabalho em questão será

demasiado extenso, o que não possibilitará a concretização deste estudo. E segundo porque

meu principal objetivo aqui é relacionar Wagner com a formação do Estado Nacional e

esclarecer em que sentido sua arte teve influência na formação do 2º. Reich. Para tanto, é

nítida a importância do esclarecimento de como era constituída a sociedade alemã e de como

questões ligadas a unificação e identidade se faziam presente. Neste capítulo, procuro mostrar,

de maneira restrita, a Alemanha antes da unificação e quais eram os principais fatores de sua

constituição.

De 1618 a 1789, a Alemanha era conhecida como o Sacro Império Alemão ou Sacro

Império Romano da Nação Germânica. Tinha em sua formação 300 principados que

constituíam cidades imperiais e eclesiásticas. Cada principado era dominado por um soberano,

porém o Sacro Império Alemão era controlado por um Imperador, geralmente escolhido entre

os 7 Eleitores4. O poder dos príncipes era restrito a seu território, geralmente adquirido por

herança. A maior característica dos pequenos impérios alemães era a de que eles continuavam

a fazer parte do sistema feudal medieval, com desenvolvimento econômico atrasado, enquanto

outras nações europeias começavam a atingir um grau mais alto de desenvolvimento em

virtude de seus príncipes estarem em “uma soberania exclusiva e individual”

(MILLINGTON, p. 50, 1995). Foi depois da Guerra dos 30 Anos5 que o senso de identidade

4 Príncipes Eleitores que escolhiam o Imperador do Sacro Império Romano Germânico, formalizando a sucessão

da dinastia.

5 Série de guerras que diversas nações europeias travaram entre si a partir de 1618, em especial a Alemanha, por

motivos de rivalidade religiosa, territorial, dinástica e comercial.

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do povo alemão começou a se diferenciar. Na situação alemã, a formação do Estado Nacional,

da Nação, supunha um espaço territorial unificado, uma mesma língua, uma mesma religião e

um governo – exercido por uma aristocracia ou nobreza única. A noção de identidade alemã

se baseava na ideia do império, na cultura alemã e na língua alemã, como menciona Norbert

Elias em O Processo Civilizador (1995) sobre o Kultur Alemão6. Mas, em questões de

demarcação de território, a Alemanha era fraca e não tinha em sua constituição um território

único. No final do século XVIII, a maioria dos principados alemães tinha como realidade

social o absolutismo de seus governantes e era regida por corpos administrativos burocráticos,

de estruturação rígida e em instituições militares dirigidas pela aristocracia.

Entretanto, o Sacro Império Alemão fazia parte de outro reino, o Reino da Prússia.

Este abrangia o leste europeu, numa vasta área que hoje em dia abrange Alemanha, Polônia,

Áustria, Rússia e pequenos países do leste, como Lituânia, Letônia e Estônia. Portanto, aqui

caberá compreender o que foi a sociedade prussiana, em sua forma de vida, seu povo e sua

organização política, para que possamos enfim, entender o processo que resultou na

unificação do Estado Alemão. Podemos observar no mapa abaixo como era o Reino da

Prússia, pequenos reinados sem demarcação de território:

Disponível em: <www.age-of-the-sage.com>. Acesso em: 10 de maio de 2013.

6 O conceito de Kultur expressa a individualidade de um povo, delimitando diferenças e a identidade nacional de

uma nação; necessidade de estar sempre em busca de um sentido de identidade do povo alemão.

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O reino prussiano dominou a história germânica até o início do século XIX, no

território que vai da Alemanha (leste) até a atual Estônia. Assim, a Prússia se expandiu a leste,

já que nesse período criou um grande poder militar, juntamente com uma eficiente burocracia

estatal. Em 1813, a Prússia retomou a guerra com a França de Napoleão, o que acarretou

ganhos territoriais, fazendo com que a população prussiana dobrasse de tamanho e se

transformasse na potência hegemônica do leste europeu. Até o século XIX, a Prússia era um

Estado absolutista, detentor de uma máquina repressiva, com fortes laços de servidão e sem

classes autônomas (ANDERSON, p. 238, 1985). Anderson descreve que o absolutismo no

leste, em especial na Prússia, foi marcado pela luta de classes e pela continuidade da servidão,

que já havia sido abolida na Europa Ocidental. A violência do absolutismo no leste foi muito

maior do que no ocidente, caracterizando-se por uma forte presença militar e um poder central

enfraquecido. Para Perry Anderson, o absolutismo oriental foi determinado pelas coações

impostas pelo sistema político internacional.

As nobrezas de toda a região estavam objetivamente integradas. Foi este o preço de

sua sobrevivência numa civilização marcada pela incessante guerra territorial: o

desenvolvimento desigual do feudalismo forçou-as a confrontar-se com as estruturas

políticas do Ocidente antes de terem atingido um estágio semelhante de transição

econômica para o capitalismo. (ANDERSON, 1985, p. 202).

Assim, a “mobilidade camponesa originou um fenômeno sociológico praticamente

desconhecido no ocidente, formando massas plebeias capazes de reunir exércitos contra a

aristocracia feudal” (ANDERSON, p. 210). Marcada por conflitos e guerras, a Prússia foi se

transformando em um Estado absolutista, com forte influência da nobreza, continuidade da

servidão e domínio dos junkers no que dizia respeito à terra e a economia. Tornou-se o maior

Estado absolutista que a Europa já conheceu, sendo também um caso clássico de

desenvolvimento desigual, já que a supremacia da nobreza era muito forte e o Estado não

possuía cidades livres.

A Alemanha do leste continuou a fazer parte do território prussiano e teve sua

história marcada por um passado de guerras e conflitos, que consequentemente influenciaram

toda a sua trajetória política. Até 1871, o território prussiano era divido em trinta e nove

principados autônomos, sem um Estado central. Os principados eram marcados por forte

presença militar e fraca economia, o que acarretou uma espécie de “baixa autoestima” em seu

povo. A ascensão da monarquia absoluta, da aristocracia centralizada e a administração

autônoma das cidades alemãs dificultaram o estabelecimento de uma identidade nacional.

Norbert Elias, em sua obra Os Alemães (1996), observa que a formação do Estado alemão

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teve dois aspectos importantes que foram fundamentais para a compreensão do habitus

alemão. O primeiro é que na época medieval, na região da Alemanha, se falavam diversas

línguas germânicas – o povo alemão não tinha uma língua única e isso dificultava a

comunicação entre os diferentes feudos que ali habitavam. O segundo ponto foram as guerras

entre os feudos, com alto grau de letalidade. Elias (1986) analisa o processo de formação do

Estado alemão em comparação com outros Estados europeus:

Entretanto, foi a fase medieval do processo de formação do Estado alemão, em

particular, que contribuiu significativamente para o fato de que na Alemanha esse

processo não acompanhou o ritmo dos processos de formação do Estado em outras

sociedades europeias. No caso de países como a França, Inglaterra, Suécia e até a

Rússia, a sociedade medieval de Estados feudais passou por um contínuo processo

de transformação em Estado do tipo mais compactante integrado de monarquia

absoluta, que era usualmente mais forte nas lutas de poder. Na Alemanha, o

equilíbrio de forças afastou-se gradualmente do nível de integração representado

pelo imperador e inclinou-se a favor do de príncipes regionais. Em contraste com

crescente centralização do poder em outros países europeus, o império germânico

(ou Sacro Império Romano) sofreu a decadência do poder central. (ELIAS, p. 36,

1996).

Na época em que Estados vizinhos se consolidavam em monarquias centralizadas, o

Estado alemão se enfraquecia devido a invasões e conflitos entre “exércitos” dos pequenos

principados que lutavam no território. O século XVII foi um período de empobrecimento,

inclusive cultural, e de grande brutalidade entre as pessoas. Elias observa também um fato

interessante no rumo da história alemã, o Ethos Guerreiro do povo alemão, marcado por um

passado de intensos conflitos, quando jovens e estudantes (em sua maioria membros da

nobreza) eram influenciados ao intenso consumo de bebida alcoólica (cervejas) para ter a

sensação de poder e de certa forma se dispor ao ato da guerra.

A partir das obras de Perry Anderson e Norbert Elias, compreendo que a formação

do Estado prussiano teve como base quatro aspectos que considero fundamentais e que nos

permitem também entender o caráter da sociedade prussiana e a Revolução de 1848, são eles:

a) a economia, b) a falta de um poder centralizado, c) um passado de guerras e conflitos

marcado pela forte influência militar e, consequentemente, d) a baixa autoestima do povo

alemão.

Partimos então para a economia, que era fraca se comparada à de outros países da

Europa. A economia prussiana se dedicava à troca de bens entre os camponeses e as pequenas

nobrezas, sem se expandir para outros países europeus, a exemplo da França e da Inglaterra,

que no século XIX já haviam expandido seus comércios para outros países da Europa. A

Alemanha ocidental estava repleta de cidades, mas nenhuma delas foi suficientemente grande

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para dar origem a uma cidade-estado. Berlim, se comparada a Paris e Londres, é uma cidade

nova, pois adquiriu sua importância como capital quando passou a ser governada pelos

Hohenzollern7, em 1848. Na Alemanha oriental, o absolutismo pôde se desenvolver devido ao

atraso econômico e colonização recente. O baixo desenvolvimento comercial dessas cidades

resultou em uma econômica fraca. No entanto, compreender essa economia implica

compreender os junkers enquanto detentores da propriedade e seu papel no Estado prussiano.

Os junkers foram os principais proprietários de terras na Alemanha antes do 2º.

Reich (1871). Dependiam economicamente de sua atividade como empresários agrícolas,

empenhados na luta por seus próprios interesses econômicos (WEBER, 1982). A aristocracia

prussiana distinguia-se entre as principais nobrezas europeias no sentido de não possuir em

seu seio um “espectro muito grande de fortunas”. Os junkers prussianos do final do século

XVII e início do século XVIII constituíram uma compacta classe social num país pequeno,

com rústicas tradições de atividade rural (ANDERSON, p. 263). Em se tratando de aspectos

sociais, os junkers eram uma classe social menos dividida do que a maior parte das outras

aristocracias europeias, formando um grupo de proprietários médios de terras, sem grandes

diferenças regionais. Desse modo, exerciam uma função na organização da produção, já que o

Estado não tinha nenhum poder direto sobre a massa da população rural, que era controlada

pelos junkers e cujos tributos eram diretamente coletados pelos seus senhores. Os junkers

eram de certa forma tão fortemente ligados à dominação da aristocracia prussiana que não

sentiam necessidade de se vincular às sociedades da Europa ocidental. Na Prússia, a classe

fundiária estava em acordo com o Estado mais do que em qualquer outra parte na Europa,

resultando assim num absolutismo com incrível capacidade de expansão. Os junkers foram

uma peça importante na construção da economia alemã, concentrando o capital gerado na

Prússia. Centralizavam o poder econômico enquanto a sociedade continuava pobre e

enfraquecida.

A econômica controlada pelos junkers e a falta de um poder centralizado geraram

impasses na unificação alemã. Lembro aqui que a Alemanha era um país dividido em trinta e

nove principados, todos dominados economicamente pelos junkers e governados, cada um,

por um príncipe. Essa situação acarretou no declínio da sociedade, pois o povo não

participava ativamente nem da política nem da economia. Elias lembra essa realidade em

Mozart: Sociologia de um Gênio (1991) quando observa que o jovem músico não

desempenhava de forma autônoma seu papel artístico justamente por fazer parte de um país

7 Importante família europeia, que foi dinastia soberana da Prússia e do Império Alemão até o fim da Primeira

Guerra Mundial (1918).

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com o poder dividido. Mozart era funcionário de um pequeno principado, submetido à

“vontade” do príncipe8, o que o impossibilitava de produzir e difundir sua arte da maneira

como gostaria. A ausência de um Estado unificado não só gerou o declínio da sociedade, mas

dificultou o desenvolvimento da identidade do povo alemão.

Na análise de Perry Anderson, à época da unificação, a Alemanha Oriental contava

com três Estados que poderiam se tornar candidatos à liderança de uma Alemanha unificada:

Baviera, Saxônia e o Brandeburgo.

A Baviera era o Estado mais forte do Império e teve uma grande influência da Igreja

católica, que controlava 56% de toda a terra cultivada, enquanto a aristocracia controlava 24%

da aristocracia e os 13% da dinastia. A aristocracia local era constituída de proprietários de

terras tradicionais – junkers – que deviam vassalagem direta à autoridade da igreja. A Baviera

era também pouco urbanizada. Munique, que era a capital, tinha apenas 12 mil habitantes em

1500 e menos de 14 mil em 1700 (ANDERSON, p. 253). Foi essa configuração social que

tornou possível o rápido surgimento do Estado absolutista na Prússia.

A Saxônia, reino vizinho ao norte, representava uma versão diferente do

desenvolvimento absolutista da cadeia oriental de estados germânicos. Partilhada em 1485

entre os ramos “ernestino” e “albertino” da família, com capitais respectivamente em Wettin e

Dresden-Leipzig, as terras saxônicas permaneceram, não obstante, como a região mais rica e

avançada da Alemanha oriental (ANDERSON, p. 254). Mesmo assim, a nobreza da Saxônia

era pouco confiante no que dizia respeito aos avanços externos do Estado, consolidando sua

economia apenas com a venda de terras aos burgueses, o que permitiu uma máquina

burocrática menos expansiva, menor do que na Baviera, gerando um Estado cheio de dívidas.

A formação social de Wettin, por exemplo, era demasiado fluida e heterogênea.

(ANDERSON, p. 260). A Saxônia:

Foi fundamentalmente um aparelho político da dominação aristocrática: o poder

social da nobreza era o motor central da sua existência. No seio da fragmentada

arena do Reich pós-medieval, somente aquelas regiões que possuíam uma classe

fundiária economicamente forte e estável tinham possibilidade de alcançar uma

liderança diplomática e militar na Alemanha: somente elas poderiam gerar um

absolutismo capaz de rivalizar com as grandes monarquias europeias. Desse modo, a

Alemanha ocidental, estava de início afastada, dada a densidade de sua civilização

urbana. A Baviera não possuía cidades de grande importância e desenvolveu um

absolutismo precoce sob o signo da Contra Reforma. Mas a sua nobreza era

demasiado fraca, o clero excessivamente privilegiado e o campesinato gozava de

suficiente liberdade para que fosse possível fundar um principado dinâmico. A

Saxônia tinha uma aristocracia mais ampla, mas as suas cidades eram também muito

fortes e o campesinato não mais servil. (ANDERSON, p. 260).

8 Príncipe Bispo de Salzburgo. (ELIAS, p. 19).

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Brandeburgo, resultado da união dos Hohenzollern com o Reino da Prússia entre

1618 e 1701, e que hoje compreende a região de Berlim, teve importante papel no processo de

Unificação da Alemanha. Diferente da Baviera e da Saxônia, que eram comandadas pelo

poder eclesiástico, Brandeburgo possuía forte poder militar, o que transformou a Prússia num

importante Estado absolutista da Europa. Dotado de uma classe fundiária forte

economicamente, conseguiu gerar um absolutismo capaz de rivalizar com as grandes

monarquias europeias (ANDERSON, p. 206). Nos anos de absolutismo e domínio prussiano

sobre a Alemanha, Brandeburgo fortaleceu-se militarmente e dominou os junkers. Com o fim

da Guerra dos Trinta Anos, passou a colonizar seu território com imigrantes vindos do sul da

Alemanha, Holanda e França. Mas, mesmo com a crescente colonização, essa parte da Prússia

ainda apresentava um desenvolvimento econômico modesto com camponeses ligados ao

trabalho servil. É no Brandeburgo, portanto, que questões ligadas a economia, poder dos

junkers, poder militar e sociedade alemã se desenvolvem, pois foi este o estado que passou a

dominar o percurso da história alemã. São essas questões sociais que seguem sendo analisadas

nesta monografia.

Levando-se em consideração a fraca economia e o poder descentralizado, trago para

discussão outro ponto importante para a compreensão da formação do Estado alemão: a

identidade de seu povo. Esta questão se liga ao fato de que a identidade nacional se

encontrava enfraquecida. A resposta é que, como o poder estava descentralizado, não existia

uma esfera pública capaz de desenvolver o sentimento de nacionalidade entre os indivíduos.

A questão da nacionalidade estava fora das possibilidades na realidade alemã de então. Em

sua história, a Alemanha esteve marcada por forte presença militar. Isso se deve ao fato de

que os príncipes alemães travavam guerras não apenas com outros países, mas também com o

próprio imperador. A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) transformou-se num confronto

entre todas as principais potências europeias, por uma hegemonia disputada

fundamentalmente em solo alemão. Quando as hostilidades finalmente cessaram, metade da

população alemã havia morrido, e o país estava devastado e na miséria, uma experiência

traumática que, séculos depois, ainda marcava a consciência alemã. (MILLINGTON, p. 45).

Com o fim da Guerra dos Trinta Anos, a Alemanha superou mais dois séculos de intensos

conflitos em seu solo, juntamente com a instabilidade de poder, que convidava os invasores.

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A casta militar9 na Alemanha compunha-se de representantes da aristocracia. Em

1739, todos os 34 generais, 56 dos 57 coronéis, 44 dos 46 tenente-coronéis e 106 dos 108

majores eram aristocratas (ANDERSON, p. 264). Porém, a rivalidade entre os grandes nobres

não era acentuada e a disciplina dessa instituição era um reflexo desta classe. Com o forte

poder militar e o domínio dos junkers sobre as terras alemãs, a aristocracia não se sentia

ameaçada pela burguesia.

Livre de tensões internas, reinando suprema sobre as cidades, senhora de seus

camponeses, a classe fundiária prussiana estava mais solidamente de acordo com o

seu Estado do que qualquer outra na Europa. A unidade burocrática e a autonomia

rural conciliavam-se de modo único neste paraíso das plantações de repolho. O

absolutismo junker, edificado sobre tais fundamentos, continha um formidável

potencial de expansão. (ANDERSON, p. 265).

Creio que todas essas questões (economia, falta de poder centralizado, forte presença

militar) contribuíram para que o povo sentisse falta de uma noção de nacionalidade em

território alemão que possibilitasse unidade e identidade. O povo alemão não se enxergava

como alemão. O habitus nacional do povo alemão precisava ser constituído. Para Elias, o

habitus nacional de um povo não é biologicamente fixado de uma vez por todas;

antes, está intimamente vinculado ao processo particular de formação do Estado a

que foi submetido [...]. À semelhança das tribos e dos Estados, um habitus nacional

desenvolve-se e muda ao longo do tempo. Também existem, sem dúvida, diferenças

biológicas, herdadas entre os povos da Terra. (ELIAS, p. 16).

Elias chama a atenção para o fato de que todos os povos constituem e preservam os

seus habitus. No caso dos alemães, o habitus se expressa através do que Elias denomina

Kultur, diferentemente dos franceses e ingleses, que empregam o conceito de civilização. Para

franceses e ingleses, a civilização tinha um significado diferente do que tinha para os alemães.

O conceito de Kultur para Elias e os alemães leva consigo os aspectos intelectuais, artísticos e

religiosos e está ligado ao comportamento das pessoas, trata-se de ter consciência de sua

existência e conhecer essas manifestações, na medida em que são expressões do impulso

9 A forte presença militar consolidou o que Elias chama de Ethos Guerreiro, e que está ligado ao costume de

“guerrear” do povo alemão. O Ethos era construído nas universidades e estava ligado ao hábito da bebida, que

incitava nos jovens a vontade de lutar e de se representar através da violência. A fragilidade estrutural do estado

alemão, o que fazia com que as tropas estrangeiras dos países vizinhos invadissem constantemente seu território,

produziu uma reação entre os alemães que fez com que a conduta militar e as ações bélicas fossem altamente

respeitáveis e, com frequência, idealizadas. (ELIAS, p. 20, 1996).

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criador e da razão. Estabelecer a identidade nacional do povo alemão é compreender a ideia

de Kultur, pois ela remete a uma forma de ser e de pensar próprias desse povo. Enquanto

países como França e Inglaterra se consideravam “civilizados” a Alemanha adotava o

conceito do Kultur para expressar seu desenvolvimento social e cultural. Enquanto França e

Inglaterra já se encontravam em plena revolução burguesa, entre os alemães ainda imperava a

aristocracia. Dessa maneira, o senso de identidade nacional alemão estava fadado a ser

diferente do de outras nações europeias, na medida em que se baseava na ideia do império, na

cultura alemã e na língua alemã, mas não em nenhum território ou razão de Estado bem-

definidos (MILLINGTON, p. 47).

Além do mais, a sociedade alemã era regida pela aristocracia. Essa classe, que era a

dominante, se sujeitava às influências de ingleses e franceses, ao tempo que a burguesia, a

qual tinha consciência coletiva cultural, precisava encarar os príncipes e a máquina

aristocrática do poder. Schiller10 descreve em Die Deutsche Muse (A musa alemã) a atitude da

burguesia alemã em relação aos príncipes, que “escreviam melhor o francês do que o alemão”

(MILLINGTON, p. 47):

Nem da Era de Augusto, o esplendor,

E nem dos Medici o favor,

Sorriam para a arte tudesca;

Nunca lhe prestaram homenagem.

E quando se abriu, flor e folhagem,

Não obteve a graça principesca.

Do filho germânico o mais rico,

Do trono do grande Frederico,

Só lhe veio desprezo e opróbrio.

Mas com força bate o coração,

E diz orgulhoso o alemão:

Temos o nosso mérito próprio! (Friedrich Schiller, 1802)

Na Alemanha dos 39 principados, a aristocracia era muito privilegiada. Isso instigou

um sentimento, de acordo com Elias, de “Ethos Guerreiro”. Esse Ethos permanecia entre os

jovens alemães como o costume “aristocrático de duelar” (ELIAS, p. 57), desenvolvendo na

Alemanha uma arena de guerra. Assim, para pertencer à sociedade alemã, seria preciso

possuir “honra”, e essa honra, inicialmente fundada no duelo, após a unificação foi

representada no Estado e nos tribunais e propagou-se aos círculos mais elevados da classe

média (ELIAS, p. 57).

10Friederich Schiller (1759 – 1805): poeta e filósofo alemão, conhecido por ser impulsionador do romantismo

alemão.

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2.1 O PROCESSO DE UNIFICAÇÃO DA ALEMANHA

Depois da Revolução Francesa, ideais revolucionários instauraram-se na população

de toda a Europa. Na Alemanha esses ideais despertaram na classe média um senso de

consciência nacional e política. Isso se deu pelo fato de que a derrota de Napoleão e o fim do

Bloqueio Continental11 coincidiram com o fracasso das colheitas alemãs em 1816 e 181712,

contribuindo assim para a crise política na Alemanha. Os trabalhadores manuais se voltaram

contra a união da aristocracia e os judeus13, reivindicando seus direitos. Com a Revolução de

Julho de 1830 em Paris, a Alemanha passou por um período no qual revoltosos locais queriam

derrubar os reacionários do governo. (MIGLITON, p. 60). Os alemães lutavam por um país

unido e pelo fim do poder da aristocracia, e pela ausência de judeus em seu governo.

A Revolução Francesa contribuiu também para a polarização do pensamento na

Europa. Na Alemanha, no entanto, sempre existiu uma tendência de se ir aos extremos, o que

não necessariamente ocorreu em outros países. Essa tendência se tornou clara com o

surgimento do Romantismo, pois ele foi uma reação às circunstâncias e aos problemas

comuns característicos de um mundo capitalista racionalizado e, em parte, resultado de

influências ideológicas secundárias (MANHEIMM, p. 84).

Em 1848, quando as massas já não aturavam o antigo regime, iniciou-se na

Alemanha uma revolução, inspirada na Revolução de fevereiro de 1848 na França, quando a

monarquia foi derrubada. Nesse ano Marx e Engels escreveram O Manifesto do Partido

Comunista, que contribuiu para o desenvolvimento de sentimento revolucionário entre o povo

alemão.

A sociedade burguesa moderna, surgida das ruínas da sociedade feudal, não aboliu

os antagonismos de classes. Nada mais fez que substituir as antigas por novas

classes, por novas condições de opressão, por novas formar de luta. (MARX;

ENGELS, p. 48).

Na França, os ideais revolucionários eram pautados sob o Iluminismo, já na

Alemanha o Manifesto teve papel importante no processo revolucionário.

11 Proibição imposta por Napoleão Bonaparte, que impedia o acesso a portos de países sob domínio do Império

Francês, do qual a Alemanha fazia parte (1804 – 1814). 12 MILLINGTON, p. 50. 13 Uma das consequências da Revolução Francesa foi que todos os cidadãos eram agora tratados como iguais,

independentemente de suas crenças: também na Prússia os judeus receberam a cidadania prussiana em 1812.

(MILLINGTON, p.51)

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Esta é então a situação: sob a pressão ideológica da Revolução Francesa, se

desenvolveu na Alemanha um contra movimento intelectual que reteve seu caráter

puramente intelectual por um longo período e assim foi capaz de desenvolver suas

premissas lógicas de forma a mais extensa possível. Ele foi “pensado até suas

últimas consequências”. A contra revolução não se originou na Alemanha, mas foi

na Alemanha que seus lemas foram pensados de forma mais completa e levados às

suas conclusões lógicas. (MANNHEIM, p. 87).

Inspirado nos ideais revolucionários, Wagner escreveu em 1848 (mas só foi

publicado em 1849) o ensaio “Art and Revolution”, que buscava renovar a arte através da

tradição artística grega, pois, para o compositor, esta era a arte verdadeira. O que Wagner

presumia aqui era que juntamente com o país armando levantes para a sua unificação, um

ensaio sobre a reforma na arte também seria o passo inicial para a busca de um país unificado.

Wagner pensava que a arte grega traria um novo sentido de existência ao homem. Com os

levantes de 1848, a Alemanha iniciou um processo de transformação, que terminou em 1871,

com a sua unificação.

Em 1848, uma assembleia se reuniu na Igreja de São Paulo em Frankfurt para criar

uma nova constituição. A esquerda republicana apoiava a ideia de que a Alemanha unificada

deveria incluir todos os territórios de fala germânica, apoiando uma monarquia constitucional

federal14. Do outro lado estavam os aristocratas, que não apoiavam a revolução e passaram a

instaurar as antigas formas de poder, atribuindo ao poder militar as novas formas de comando.

A aristocracia teve apoio da burguesia, que “observava com horror o movimento pela

democracia, que não só ameaçaria os seus privilégios de classe, como também daria poder

político à massa do povo” (BUND, p. 54).

No entanto, as tentativas de unificação do estado alemão em 1848 foram fracassadas.

O Imperador da Prússia se recusou a aceitar a nova constituição, que já havia sido aceita por

28 principados. A tentativa da esquerda de implementar a revolução levou a lutas em

Dresden, nas quais prevaleceu o poder dos militares, o que acabou com a Revolução, e

fazendo com que a unificação demorasse mais alguns anos.

A constituição concluída na Igreja de São Paulo, em Frankfurt, separava os direitos

civis das crenças religiosas, garantindo com isso igualdade de direitos para judeus,

cuja grande maioria estava disposta a se integrar ao resto da população. Ao fazê-lo, a

constituição assumia a atitude pró-emancipatória da classe média alta e dos

intelectuais, mas não da maioria da população do país, composta de artesãos de

classe média baixa e camponeses, para quem “os judeus” eram parte dos detestados

“ricos”, que haviam tomando o partido da contrarrevolução. (MILLINGTON, p. 54).

14 A esquerda discutiu a organização futura de seu país com os direitistas que apoiavam uma monarquia

constitucional federal, e a unificação só seria possível se os laços monárquicos da Áustria com territórios não

alemães como Hungria e Itália fossem cortados. (BUND, p. 54)

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Depois do fracasso da revolução de 1848, instaurou-se na Alemanha um sentimento

de aversão a tudo o que era judeu. Wagner chegou a escrever o ensaio “O Judaísmo na

Música” (1950), onde pedia o desaparecimento do judaísmo como religião e grupo religioso.

O que Wagner pensava era que, com um Estado tão enfraquecido, os alemães precisariam se

unir para valorizar a raça.15

Em 1850 a Constituição Germânica voltou a se unificar. Voltaram os argumentos

sobre a economia enfraquecida da Alemanha como ponto principal para a sua unificação.

Nesse mesmo tempo, a Revolução Industrial foi ganhando importância, agindo sobre o

sentimento de evolução política nos diferentes segmentos sociais da população alemã. Em

1866, Otto Von Bismark, então primeiro-ministro da Prússia, lançou uma ofensiva contra a

Áustria, o que resultou na Guerra Alemã de 1866 e na derrota do império austríaco, o que fez

com que se acabasse com a divisão de classes na Alemanha entre os junkers e os camponeses.

Três anos mais tarde, a Guerra Franco-Prussiana completou com esplendor a obra de unidade

nacional. O Reino da Prússia fundiu-se num Império Alemão (ANDERSON, p. 276).

Assim, a Unificação da Alemanha se deu pela aristocracia, e não pelas camadas

populares como ela foi pensada. Os grupos da burguesia urbana que abraçaram a causa da

revolução e pensaram na Alemanha unificada, viram o país se constituir com o fim da

dominação aristocrática. De fato, foi o que aconteceu: a burguesia, por estar dividida em

muitos grupos, não teve o poder necessário para consolidar a unificação. O novo Reich

alemão agora era constituído por 25 príncipes e cidade livres, sob a presidência do Rei da

Prússia.

Por outras palavras, o Estado alemão era agora um aparelho capitalista, sobre

determinado pela sua ascendência feudal, mas fundamentalmente homólogo da

formação social que, no início do século XX, era amplamente dominada pelo modo

capitalista de produção: A Alemanha imperial seria em breve a maior potência

industrial da Europa. O absolutismo prussiano transmutara-se, assim, após muitas

vicissitudes, num outro tipo de Estado. Nos aspectos geográficos e social, no social

porque no geográfico, este fora lentamente rebocado do Leste para o ocidente. As

condições de possibilidade teóricas de tal transmutação permanecem por determinar.

(ANDERSON, p. 278).

15 Isso será melhor explicado no 3º. Capítulo, sobre a mitologia germânica e a análise da ópera O Anel dos

Nibelungos.

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Disponível em: <www.imagens.claswell.com>. Acesso em: 10 de maio de

2013.

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3 A MÚSICA NA ALEMANHA

Para compreender a formação do Estado Nacional Alemão e a contribuição da obra

de Richard Wagner, partimos primeiramente de um entendimento da Alemanha até o 2º.

Reich (1871), trabalhando os processos políticos e sociais que foram fundamentais para a

compreensão da revolução Alemã de 1848 e do sentido da luta pela unificação e criação do

Estado Nacional. Por outro lado, acredito que compreender a formação de um Estado e de

uma nação implica compreender a criação da identidade nacional. Fazer isto através da

criação musical, mais especificamente através da música de Wagner, não requer apenas o

estudo histórico dessa sociedade, nem só desse compositor, mas, sim, entender a formação

musical da Alemanha e daqueles que desempenhavam a mesma função que Wagner para os

alemães: a de músico de corte, mas antes de tudo a de musico que expressa um conjunto de

valores, uma proposta estética e uma dimensão política. Este capítulo tem este objetivo.

Primeiramente, seria de interesse para a análise dos fatos um breve estudo da

Sociologia da Música. As obras que trabalho aqui consideram a música como manifestação

ideológica, auxiliando-nos na compreensão das relações entre música e sociedade. Com esse

pressuposto, este capítulo se dividirá em duas partes: a primeira enfatizará os estudos que

compreendem a Sociologia da Música, mapeando pontos importantes que destacam a função

de construção artística para a ideologia. A segunda será uma espécie de “linha do tempo”,

com a vida e a obra de três compositores que antecederam Wagner: Bach, Mozart e

Beethoven. Isso permitirá esclarecer o percurso musical desses compositores e a situação

social em que se encontravam. Isso contribuirá para o entendimento de como a arte (a música)

se desenvolveu na Alemanha no período pré-Wagner. Acredito que esses aspectos tornarão de

mais fácil compreensão as situações que possibilitaram o trabalho de Wagner, bem como a

retomada que ele faz da mitologia em sua obra e a importância desta para a construção da

identidade alemã.

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3.1 A MÚSICA COMO IDEOLOGIA E A “SOCIOLOGIA DA MÚSICA”

Acredita-se que a música, enquanto produção artística, além de ter o papel de entreter

e produzir “bem-estar” ao ouvinte, está também marcada pelo contexto histórico no qual foi

produzida e expressa dimensões ideológicas de grupos sociais em determinado momento.

Todas essas “propriedades” da criação musical são expressas através de uma proposta (forma,

ritmo, harmonia, sonoridade, melodia, notação musical etc.). De início, pode-se entender que:

Dentre todas as artes, a música sempre foi a que possuiu maior força de aglutinação

social; por uma parte, devido ao fato do exercício da arte exigir, de um modo geral,

mais pessoas concordantes na intenção e no sentimento, o que favorece a

constituição de comunidades de músicos e amantes da música; por outra parte, em

virtude de suas fortes qualidades sensíveis, a facilidade da conjugação com palavras

e, em nível superior, as possibilidades que oferece de alta espiritualidade, tudo isto

coisas que permitem à música tornar coesas grandes massas de homens. Por isso, em

todos os tempos, a música foi o instrumento predileto para dominar os espíritos.

(SCHERING, 1978).

Para este início de discussão, podemos nos basear na função social da música, sendo

esta uma arte indecifrável aos olhos humanos e que se faz sentir na “alma”. Na teoria

musical, a construção das notas musicais de uma partitura são combinadas harmônica e

melodicamente para a formação perfeita da sonoridade. As notas precisam combinar dentro

das escalas melódicas, para que sejam “boas” de se ouvir, dando a sensação de bem-estar.

Weber descreve a influência das escalas tonais em Os Fundamentos Racionais e Sociológicos

da Música (1998), quando diz que as escalas com tonalidade de quarto grau16 não podiam

mais ser aceitas em Igrejas. A escala de quarta causa desconforto ao ouvinte, sendo

comparada na época a manifestações demoníacas. Weber descreve que a música se

racionaliza quando passa a ser escrita em forma de partitura e o desenvolvimento da harmonia

(característica da música erudita ocidental), correspondeu ao processo de racionalização da

civilização ocidental. Sendo a música construída de certa forma de maneira física e

matemática, a combinação das notas exige total domínio da teoria e percepção musical. A

música transforma-se então na única arte que consegue imediatamente modificar o “espírito”

a partir do momento em que é ouvida.

Desse modo, cabe perguntar como algo que não se sabe exatamente o que é pode

entreter e influenciar de maneira tão perceptível o ouvinte? Num sentido psicológico a música

consegue modificar pensamentos, trazendo conforto e tranquilidade para o ouvinte. E em

16 Quarto grau (nota) da escala musical. Tem sentido de suspense, desconfortável.

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sentido sociológico é de fato interessante analisar os processos e condições socioculturais

implicados na produção musical. Em que pese o entendimento da música como ideologia,

entende-se que ela não é “pura e simplesmente” ideologia, torna-se ideológica a partir do

momento em que constitui consciência.

Segundo Adorno (2011), a partir do momento em que a música é experimentada pela

população, ela acaba se transformando em uma ideologia, encobrindo a realidade social e as

relações entre classes. É nítida essa constatação quando se tem conhecimento de que Bach e

Mozart fizeram seu trabalho de músico sob a condição de funcionários da corte. “Nas eras

feudais e absolutistas, as classes dominantes em geral não executavam por si mesmas o

trabalho intelectual, cujo prestígio não era muito grande, senão o que delegavam a outrem”

(ADORNO, p. 140, 2011). Assim, os compositores sob o absolutismo eram músicos de corte

e criavam sua música com o objetivo de entreter o Rei e o pequeno grupo de cortesãos que o

cercava. Os músicos eram dependentes dos favores do patronato, e, portanto, do gosto da

corte e dos círculos aristocráticos.

Quando escreve Mozart: Sociologia de um Gênio, Elias explica que o que era

chamado de “Corte” representava simplesmente o “palácio do príncipe”. Aqui, os músicos

eram tão indispensáveis quanto os criados e cozinheiros, por exemplo. Eram chamados – num

sentido pejorativo – de “Criados de Libré”, e a maior parte deles ficava satisfeita com a

garantia de subsistência e com o status hierárquico da corte. Os compositores não faziam

composições para seu próprio deleite e vontade, mas regidos sobre uma ordem que os tomava

como empregados. A posição social do músico era a de subordinado. Os compositores, em

sua maioria, eram oriundos da pequena burguesia, ou da própria corporação de músicos.

Bach, Mozart, Beethoven, Brahms eram filhos de famílias de músicos modestos, e

por vezes, amargamente pobres. No caso de todos eles (incluindo Strauss e Wagner),

poder-se-ia falar, com certo exagero, que se trata de uma secularização da esfera dos

artistas itinerantes. Ao que tudo indica, a produção musical foi administrada em sua

maioria por pessoas que, antes de se tornarem compositores, pertenciam já, aos

chamados “agregados”, aos quais a sociedade burguesa transfere, de modo geral, a

tarefa de atividade artística. Se alguém tivesse a intenção de construir uma relação

entre gênese subjetiva e o sentido social da música, então o conceito de agregado,

até chegar a dependência do servidor poderia ajudar a esclarecer por que a música,

como um “serviço” prestado aos senhores, obedeceu durante tanto tempo e sem se

revoltar a fins socialmente preordenados. (ADORNO, p. 150)

A Sociologia da Música pode ou não se preocupar com os verdadeiros significados

das obras produzidas e seus aspectos formais e também procurar desvendar seu significado

para o ouvinte. Nesse sentido, considera-se importante nesta monografia a correspondência

entre um estilo, sua época e o gosto musical. Neste caso, tanto Bach quanto Mozart e

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posteriormente Beethoven e Wagner representam o gosto de uma época, a afirmação de um

estilo sempre no limite entre a inovação e o conservadorismo. Mozart é o caso que melhor

ilustra essa situação-limite por meio do conflito entre sua criação e o gosto da corte.

Um dos estudos de Sociologia da Música é La Passion Musical (1998), do sociólogo

francês Antoine Hennion. Hennion mostra diversas formas do estudo da música. Para ele, os

intérpretes, na medida em que expressam as preocupações do compositor, elevam-se ao nível

do trabalho artístico. Nesse sentido, afirma que o intérprete se inscreve no círculo da produção

artística. Assim, interpretar é fazer parte da criação musical e de sua expansão. Baseando-se

na análise da música barroca, enfatiza a criação da construção do músico como artista. Vê nos

interpretes da música barroca a relação entre o trabalho de composição e a execução musical.

Para ele, o estudo da Sociologia da Música é algo que implica o conhecimento das

determinações sociais na arte mais que o conhecimento de arte em si. Aqui, a ideia de música

é tratada como mediação entre compositor, ouvinte e intérprete. É ela que põe esses três

segmentos em relação. Como exemplo, tomo o Concerto para violoncelo do compositor

inglês Edgard Elgar, escrito durante a Primeira Guerra mundial, com o objetivo de traduzir

para a música os horrores da guerra. O fato interessante é que esse concerto só conquistou o

público quando a violoncelista Jaqueline Du Pré o interpretou (1962) e até então não tinha

chamado a “atenção” das plateias. Aqui, podemos observar a mediação entre compositor,

intérprete e ouvinte.

É de fato interessante mencionar, como conclusão dessa parte, que o estudo da

música a revela como mediação entre ideia do compositor e sociedade, buscando interferir de

certa forma nas relações sociais por meio do som. No estudo sobre Wagner, percebemos que

foi com sua música que o compositor conseguiu contribuir para a geração no povo alemão do

sentimento de nação e de nacionalidade. Se admitirmos essa hipótese, em Wagner, mais do

que em qualquer outro compositor, a música teve, além da função estética, uma função

ideológica fundamental para o povo alemão.

Na segunda parte deste capítulo, apresentaremos a construção musical na Alemanha

de Bach até Wagner, ressaltando-se a condição social dos compositores e a produção musical.

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3.2 DE BACH A WAGNER: UMA CRONOLOGIA MUSICAL

A partir do entendimento da vida dos músicos de corte e de sua realidade social parto

para o início dessa “linha do tempo”, que aqui pretendo especificar. Pretendendo, com essa

cronologia, exemplificar o caminho percorrido pelos músicos de corte alemães. Escolhi Bach,

Mozart e Beethoven por serem músicos que se destacaram na história da música erudita

europeia, representando três épocas distintas da música: o Barroco, o Romantismo e o

Classicismo. A partir do entendimento da obra e da vida desses compositores, creio que será

possível a compreensão do destino de Wagner e sua obra na sociedade alemã, enfatizando

questões ligadas à produção artística e ao trabalho do músico de corte.

3.2.1 JOHANN SEBASTIAN BACH

(Fonte: wikipedia.org)

Johann Sebastian Bach foi um músico e compositor da era barroca, sendo que esta

durou de 1600 até 175017. Nasceu em Eisenach, no dia 21 de março 1685, e era oriundo de

uma família que viveu e trabalhou na Alemanha central do século XVI ao XVIII, sendo que

mais de 70 membros da família em algum momento de suas vidas ganharam seu sustento

através da música. A maior parte deles serviu a principados ou trabalhou em igrejas. Bach

teve o mesmo destino. Ele ficou órfão aos 10 anos de idade e foi viver com seu irmão mais

17O estilo barroco é mais conhecido nas artes plásticas, mas na música mostra-se como um estilo de espírito

variado, que incluiu o uso do baixo contínuo e a aplicação da doutrina dos afetos além da ênfase no contraste de

textura, andamento e volume sonoro

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velho, Johann Cristoph, organista na Igreja de São Miguel, que lhe deu aulas de cravo. Bach

frequentou a Escola de São Miguel, onde cantou no coral da Igreja e aprendeu órgão. Em

1703, com 28 anos, tornou-se “lacaio” e violinista da corte de Weimar e depois assumiu o

posto de organista em Neukirche. Em 1708, foi nomeado organista e músico de câmera do

duque de Saxe-Weimar e nos nove anos seguintes tornou-se muito conhecido, sendo que

nessa fase compôs as melhores obras para órgão. Em 1717, foi nomeado Kapellmeister18em

Cothen, no entanto lhe foi negada a permissão para assumir este cargo, o que só pôde ser feito

depois de ter passado um mês na prisão do Duque de Weimar.

O novo empregador de Bach, o Duque Leopoldo, era um músico talentoso que

compreendia e admirava a arte. Já que a corte era calvinista, Bach não tinha mais obrigações

com a capela, exercendo assim a tarefa de compositor. Foi nesse período que escreveu seus

concertos para violino e os concertos de Brandeburgo, além de diversas sonatas e suítes para

piano e violino. Nesse período, Bach estava casado com Maria Barbara, que veio a falecer em

1720 e com quem teve sete filhos. Depois da morte de Maria Barbara, ele se casou com Anna

Magdalena em dezembro do ano seguinte. Um mês depois, o Duque Leopoldo também veio a

se casar, e a falta de interesse de sua esposa pelas artes o fez reduzir o apoio dado à música.

Em virtude de sua nova situação, Bach se candidatou ao posto de diretor musical da corte de

Leipzig e só o assumiu o quando Telemann e Graupner19 retiraram suas candidaturas.

Até o fim da vida, Bach foi diretor musical de Leipzig, onde frequentemente tinha

conflitos com as autoridades locais. Seus deveres centralizaram-se nos serviços para a Igreja,

sendo que nos primeiros anos de trabalho em Leipzig escreveu uma quantidade significativa

de música eclesiástica. Em Leipzig sua fama como compositor começou a crescer em 1726,

quando editou algumas de suas músicas profanas para teclado e órgão. A partir de 1729, o

interesse de Bach por música eclesiástica começou a decair, e a maioria de suas obras sacras

(incluindo a Missa em Si Menor e o Oratório de Natal) consistia em paródias ou arranjos de

músicas anteriores. Interessante é ver que ao mesmo tempo que compunha as “paródias” para

as músicas da Igreja, Bach assumia a direção do Collegium Musicum, fundado por Telemann

em 1702, sendo esta uma sociedade amadora que proporcionava concertos públicos com

regularidade. Nesses eventos, Bach fazia arranjos de concertos para cravo e também

compunha cantatas e serenatas, com o objetivo de impressionar o Eleitor da Saxônia, que veio

a lhe conceder o título de Hofkompositeur (compositor do tribunal) em 1736. Bach é

18 Mestre de Capela, responsável pelas músicas da Igreja. 19 George Philip Telemann (1681-1767), compositor alemão; Johan Christoph Graupner (1683-1760),

compositor do Alto Barroco.

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considerado um gênio porque sua produção abrangeu quase todos os gêneros musicais de sua

época (exceto os gêneros dramáticos de ópera). Bach faleceu em 1750, em decorrência de um

problema na visão. Anna Magdalena, sua esposa com quem teve 13 filhos, morreu 13 anos

mais tarde em extrema pobreza.

Ele inaugurou novas dimensões em virtualmente todos os setores de trabalho

criativo e que se dedicou no formato, na qualidade musical e nas exigências técnicas.

Como era normal na época, sua produção criativa esteve, na maior parte, ligada a

fatores externos, ditados por seus locais de trabalho e empregadores, mas a

densidade e complexidade de sua música são de tal natureza que analistas e

comentadores descobriram nela significados religiosos e numerológicos dificilmente

inimagináveis na música de outros compositores [...]. O percurso do

desenvolvimento musical de Bach não se deixou desviar pelas mudanças no estilo

musical que ocorriam a sua volta. Junto com Handel (que o acaso o impediu de

conhecer) Bach foi o último grande representante da era barroca, numa época que já

rejeitava essa estética, em favor de um estilo novo, o do “Iluminismo”. (SADIE,

1988, p. 61).

3.2.2 WOLFGANG AMADEUS MOZART

Wolfgang Amadeus Mozart nasceu em Salzburg, na Áustria, em 27 de janeiro

de 1756 e, de fato, pode ser considerado um belo exemplo de músico de corte que deve ser

mencionado nesta cronologia e nesta fase do trabalho.

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(Fonte: www.biography.com)

De fato, Mozart sempre foi considerado um “gênio” da música erudita ocidental por

demonstrar, desde a infância, exímio talento musical. Aos cinco anos de idade já compunha e

aos seis tocou para o Eleitor da Baviera e para a Imperatriz da Áustria. Seu talento, sua obra

musical e seu percurso de vida chamaram tanto a atenção de musicólogos e pesquisadores que

sua vida se transformou em objeto de estudo também da Sociologia, destacando-se o estudo

Mozart: Sociologia de um Gênio, escrito por Norbert Elias em 1991, e que teve como objetivo

tornar a “sua situação [de Mozart] humana mais fácil de entender, e talvez ajudar, de maneira

modesta, a responder à pergunta o que se deveria ter feito para evitar que acontecesse um

destino como o de Mozart” (ELIAS, 1991, p. 19). A meu ver, a obra de Elias teve maior

preocupação com os aspectos psicológicos do compositor, levando em conta sua situação

social, ao contrário do objetivo desta monografia, que é a de mostrar a transformação política

de um país por meio da situação social de Wagner.

Parto então para a biografia de Mozart, para melhor entender sua vida e carreira

musical. Como já mencionado, Mozart iniciou sua carreira muito cedo, aos cinco anos de

idade, sendo desde então reconhecido pela sociedade europeia. Seu pai, Leopold Mozart,

achou apropriado – e também lucrativo – exibir o “gênio que Deus dispensara a seus filhos”,

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e, em meados de 1763, levou o pequeno “gênio” e sua família para uma turnê em Paris e

Londres, visitando diversas cortes no caminho.

Como já era de se esperar, Mozart assombrou plateias com seus dotes, tocou para as

famílias reais francesa e inglesa, e teve sua primeira música publicada, além de escrever suas

primeiras sinfonias. Entre 1770 e 1773, Mozart fez três viagens à Itália, onde buscou se

familiarizar com o estilo italiano, além da busca por seu objetivo maior, o de compor óperas,

sua maior ambição. Em 1773, fez uma visita fracassada a Munique na esperança de conseguir

um cargo na corte, mas foi só em 1774 que conseguiu trabalhar como Konzertmeister20 em

Salzburg, na corte do príncipe-arcebispo, mantendo este cargo até 1777. Depois, cansado e em

busca de novas oportunidades, embarcou para Paris, onde obteve sucesso de menor monta,

quando compôs a Sinfonia de Paris n. 31, “elaborada demais”, segundo o gosto local da

época.

Já que não tinha avançado em suas perspectivas, Mozart retornou a Salzburg, onde

tocou na Catedral da Corte, compondo músicas sacras e concertos de caráter dramático.

Mesmo assim, a Ópera continuava seu foco principal, e uma oportunidade apareceu em 1780,

com a encomenda de uma ópera dramática para Munique, intitulada Idomeneo, que foi um

sucesso, pois retratou emoções dramáticas e heroicas com uma riqueza sem paralelo com suas

antigas composições, com uma atraente escrita orquestral e abundância de recitativos

orquestrais expressivos. Mozart foi então convocado de Munique a Viena, onde a corte de

Salzburg estava em residência para a entronização de um novo imperador. Tudo isso, porém,

foi em vão, pois ele foi logo colocado entre os lacaios e cozinheiros, além do ressentimento

com o seu novo empregador, o príncipe-arcebispo, que o impedia de apresentar-se nos

eventos que contavam com a presença do Imperador. Segundo Elias, a vida dos músicos de

corte destaca o lado psicológico perante a sua situação, de que “Muitas vezes, o maior desejo

deste é serem reconhecidos como iguais por aqueles que os tratam, tão abertamente, como

inferiores.” (ELIAS, p. 39). Esse sentimento levou Mozart a um conflito interno, que o fez

pedir demissão em maio de 1781.

Mozart almejava o reconhecimento perante uma sociedade de leis e costumes que

não compreendiam a vontade da força natural do músico. Almejava um cargo na corte

imperial de Viena, mas se contentou com um trabalho autônomo que aparentemente oferecia

boas oportunidades. Ganhou a vida nos anos seguintes ensaiando, publicando músicas e

20 Concertino da Orquestra: 1º violino; o violinista que é “líder” do naipe e que comanda os músicos.

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tocando em casas de mecenas ou em público. Elias destaca uma passagem na vida de Mozart

que consegue exemplificar o que acontecia com a sua composição musical:

A 11 de dezembro de 1784, completou um concerto em fá maior (K 4599), com

tambores e trombetas tocando tutti, o qual apresentou seis anos mais tarde em

Frankfurt, na coroação do imperador Leopoldo II. Trata-se de uma obra escrita

acima de tudo para o público, como bravado e virtuosidades ostenta tórias. Mas,

como se enfatizado por essa subordinação de seus poderes criativos a uma força

maior, como se estivesse se rebelando, dois meses mais tarde escreveu um concerto

para piano inteiramente diferente, o concerto em ré menor (K 466). Em parte, trata-

-se de uma obra de intensidade dramática, apaixonada. Percebe-se que ele está

inteiramente indiferente ao que as pessoas possam pensar. Está escrevendo música

como a sente, talvez até mesmo com a intenção consciente ou inconsciente de

chocar. Não ficou mais popular com essa obra, e precisava de dinheiro.

Incidentalmente, este é o único concerto que se tornou bem conhecido no século

XIX. Mas Mozart não prosseguiu nessa direção, pelo menos de imediato. (ELIAS, p.

42)

De fato, Mozart nasceu em um período de transição da música erudita. Quando

escreveu o concerto K 466, já estava se aproximando do estilo de Beethoven, sendo que a

diferença entre os dois é de apenas quatorze anos. Mozart enfrentou, junto com o

questionamento dos músicos de corte, a transição do Classicismo para o Romantismo, a

dificuldade de poder mostrar aquilo que era belo de se ouvir. No Classicismo a obediência às

regras de composição eram mais rígidas, o que só se flexibilizou com o advento do

Romantismo.

Mozart seguiu vivendo em Viena, onde se casou com Constanze Weber e construiu

sua reputação publicando sonatas para piano e violino. Em 1782, começou a dedicar-se à

composição de concertos para piano, pois podia apresentá-los como regente ou solista.

Escreveu 15 concertos antes do final de 1786, sendo que em 1784 alcançou o auge de sua

atividade criativa. Os concertos que foram compostos neste período representam suas maiores

realizações, com mestria formal e relações sutis entre piano e orquestra, além da combinação

de lirismo e desenvolvimento sinfônico.

Outro fato marcante da obra artística do compositor foi que Mozart se destacou pelo

modo como ironizou a sociedade em suas obras. Foi em 1786 que escreveu a primeira de suas

três óperas cômicas, As Bodas de Fígaro, na qual tratou de tensões sociais e sexuais com uma

percepção aguda do caráter humano, o que aconteceu novamente, com A Flauta Mágica, que

trouxe rituais alegóricos sobre a harmonia e o esclarecimento humanos.

Mozart viveu em Viena até o final de sua vida. Fez várias viagens percorrendo a

Europa na esperança de um bom cargo, mas pouco conseguiu. Morreu de febre, aos 37 anos

de idade, deixando inacabada uma de suas mais famosas obras, o Réquiem. Mozart foi

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enterrado num subúrbio de Viena, numa pequena cerimônia e em cova sem identificação, de

acordo com o costume então predominante.

3.2.3 LUDWIG VAN BEETHOVEN

Beethoven foi um dos únicos que conseguiu, por meios sociais, “escapar” da carreira

prevista de funcionário de corte, sendo reconhecido pela sociedade alemã por suas

composições, pois foi somente a partir dele que os músicos alemães adquiriram independência

em relação à corte.

(Fonte: wikipedia.org)

Ludwig Van Beethoven nasceu em 16 de dezembro de 1770 em Bonn, na Renânia do

Norte – Alemanha. Descendia de uma família não nobre, sendo seu avô maestro da capela do

príncipe eleitor. Por força da família, passou a infância estudando piano muitas horas por dia,

desde os cinco anos de idade. Aos onze anos já era pianista suplente na orquestra de Neefe.

Aos doze teve peças publicadas e em 1792 foi para Viena, onde se estabeleceu. Continuou

seus estudos (estudando primeiramente com Haydn) e até 1974 foi sustentado pelo Eleitor de

Bonn, mas logo encontrou patronos na aristocracia vienense que eram amantes da música e

desfrutou de sucesso como virtuose do piano, tocando mais em residências particulares e

palácios do que em público. Segundo Adorno, o clima social de Beethoven já era

incomparável ao de Mozart, pois já tinha impacto de Rousseau, Kant e Hegel, sendo sua

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sociedade já transformada em relação à de Mozart. Na era de Beethoven, a sociedade já vinha

passando por transformações no que dizia respeito ao uso e desfrute da arte, sendo que

Beethoven conseguiu se destacar como músico independente (em termos).

A estreia pública de Beethoven foi em 1795, mais ou menos na mesma época em que

surgiram sua três publicações importantes (três Trios para Piano Op.1 e três Sonatas para

Piano OP. 2).

Como pianista, dizem os relatos da época, tinha tanta paixão, brilho e fantasia

quanto profundidade de sentimento. É naturalmente nas sonatas para piano, escritas

para seu próprio instrumento, que ele se mostra na sua forma mais original nesse

período: a Patética de 1799, Ao Luar (Sonata quase uma fantasia) de 1801, e essas

representam apenas as inovações mais obvias em estilo e conteúdo emocional.

(SADIE, p. 88).

Com o tempo, Beethoven foi percebendo que seus problemas de audição – que já

vinha sentindo havia algum tempo – eram incuráveis e que certamente iriam piorar. Foi então

que, em 1802, entrou em crise, em virtude desses sentimentos, e escreveu um documento

semelhante a um testamento, dirigido a seus dois irmãos, onde descreveu sua infelicidade com

essa aflição, sugerindo que a morte estava próxima. Felizmente, conseguiu superar a crise

com determinação e entrou em uma nova fase criativa, chamada de seu “período médio”,

quando escreveu a Sinfonia Heroica (n. 3, que originalmente seria dedicada não a um patrono

nobre, mas a Napoleão), e a Sinfonia n. 5, em que o clima sombrio do primeiro movimento

em dó menor dá lugar a um final triunfante.

Foi nessa fase criativa que Beethoven escreveu Fidélio (sua única ópera), sendo esta

uma ópera de resgate, pós-Revolução Francesa. Fidélio não obteve sucesso em sua estréia,

conseguindo êxito em sua versão final, em 1814, depois de duas revisões feitas pelo

compositor. Nela, Beethoven narra que a força moral não se trata apenas de liberdade, justiça

e heroísmo, mas também de amor matrimonial. Leonore, personagem principal (heroína), era

tida aos olhos de Beethoven como ideal do sexo feminino, porém ele não encontrou isso na

vida real, sendo que apaixonou-se várias vezes e quase sempre por suas alunas aristocratas.

Beethoven foi um caso raro dos compositores da sua época justamente por não

depender de nenhum principado para poder se sustentar. Com a Sinfonia Pastoral (n. 6, que

evoca seus sentimos pelo campo), as Sinfonias n. 7 e 8, os Concertos para violino, bem como

as demais obras de câmara e sonatas para piano, Beethoven conseguiu se firmar como o maior

compositor de sua época. Talvez pela sorte de ter vivido em uma era na qual a transição para

o Romantismo já havia ocorrido e as ideias de liberdade propagadas pela Revolução Francesa

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(o que não foi o caso de Mozart), ele manteve seu posto de músico. Chegou a pensar na

hipótese de deixar Viena em troca de uma posição segura na Alemanha, mas desistiu quando

três nobres se juntaram para lhe garantir uma renda fixa (o que foi um fracasso, devido às

guerras napoleônicas, que fizeram com que a moeda austríaca fosse desvalorizada). Após

1812, os anos passaram a ser improdutivos, gerando um tipo de depressão em Beethoven, em

consequência de sua surdez e do fracasso com suas possíveis relações matrimoniais.

O compositor, mais uma vez, conseguiu sair dessa “fase ruim”, o que o levou a

escrever suas músicas mais profundas em sentimento e formalmente mais elaboradas. Desse

“último período”, há sete sonatas para piano, uma grande missa e a Sinfonia Coral n. 9,

considerada sua grande obra, sendo escrita quando já estava com surdez extrema. O gosto

musical de Viena mudou durante as primeiras décadas do séc. XIX, já que o público estava

interessando pela ópera italiana e por canções “sem dificuldade”, que caíam no gosto do

público burguês. No entanto, os vienenses tinham consciência da grandeza de Beethoven:

aplaudiram a Nona Sinfonia, mesmo considerando-a difícil de compreender.

Sua reputação ultrapassou em muito o âmbito de Viena: sua Missa foi ouvida pela

primeira vez em S. Petsburgo [...]. Quando morreu, no início de 1827, conta-se que

10.000 pessoas assistiram aos funerais. Havia se transformado numa figura pública,

como ainda não acontecera a nenhum outro compositor. Ao contrário dos mestres da

geração anterior, nunca foi um fornecedor de música para a nobreza: ainda em vida,

conheceu a época – na verdade, ajudou a criá-la – do artista como herói e patrimônio

de toda a humanidade. (SADIE, p. 89)

3.2.4 RICHARD WAGNER

Wagner descendia da mesma origem social dos músicos de corte na Alemanha:

filhos de famílias sem status e nobreza, fadados a desempenhar o papel de músico de corte,

sem aspiração de crescimento social e artístico. Mas o ano e o local de seu nascimento já

poderiam ser, de partida, uma presunção para a vida do compositor. Wagner nasceu em

Leipzig em 22 de maio de 1813, mesmo ano em que Napoleão foi derrotado na Batalha das

Nações (também em Leipzig) e mesma cidade onde nasceram Johan Sebastian Bach, Robert

Schumann e Felix Mendelssohn. Wagner nasceu com saúde fraca, suspeita de não conseguir

sobreviver, além de não ter, para a época, traços considerados belos, tendo sempre um ar

desajeitado e uma “cabeça muito grande” para os estereótipos, sendo que suas características

físicas comprometeram seu estado psicológico no decorrer dos anos.

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(Fonte: wikipedia.org)

Era o nono filho de Johanna e Friedereich Wagner. Não se sabe ao certo, no entanto,

sua paternidade, pois Friederich morreu seis meses depois do nascimento de Wagner, e sua

mãe logo se casou com Ludwig Geyer (que faleceu quando Wagner tinha oito anos de idade).

Geyer era ator, poeta e pintor e era “muito amigo” da mãe de Wagner antes de se casar com

ela. A incerteza quanto a seu pai verdadeiro sempre foi presente em sua vida. Percebe-se a

curiosa obsessão do compositor em “criar” filhos sem pais em suas óperas (Siegmund,

Siegfried, Tristão e Isolda), para além da relação de pouco afeto com sua mãe, pois

manifestações de carinho não eram comuns em sua família. Sua mãe falava

“(...) em tons quase histriônicos sobre o grandioso e belo na arte, embora não fosse

inclinada muito favoravelmente ao teatro, contra o qual sempre o preveniu

convictamente, ameaçando amaldiçoá-lo se ele um dia pensasse em entrar para a

ribalta como profissão”. (MILLINGTON, 1995, p. 112).

Nas cartas que trocaram, no entanto, Wagner demonstrava um intenso carinho para

com a mãe, mesmo sem saber ao certo o segredo que ela guardava com relação a sua

verdadeira paternidade.

Como nasceu em uma família que apresentava forte relação com a arte, Wagner

desde cedo se apaixonou pelo teatro. Teve oito irmãos. Dois deles, Carl Gustav e Maria

Theresia, faleceram ainda na infância. Seu irmão mais velho Albert se tornou cantor e diretor

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de cena, e seu outro irmão Carl Julius se tornou ourives. Das irmãs, Rosalie, Louise e Clara

escolheram a vida artística. As duas primeiras como atrizes e Clara como cantora.

Naturalmente que as carreiras cênicas das irmãs inspiraram Wagner, além de sua meia-irmã

Cäcile (filha de Geyer), com quem Wagner teve maior ligação fraterna. Wagner também teve

muita ligação com seu tio Albert (irmão de Friedrich), que era um erudito famoso e respeitado

nos campos da literatura, história e filosofia. Albert fez despertar em Wagner o gosto por

Shakespeare e pela literatura clássica grega.

Como sempre teve paixão pelo teatro, desde muito cedo se destacou nos estudos de

piano, que começou aos sete anos de idade. Dois anos depois, Wagner entrou para a Escola

Religiosa de Dresden e, sob influência de Goethe e Shakespeare, escreveu sua primeira

tragédia: Leubald e Adelaide (a qual assinou como Richard Geyer). Depois disso, a família o

deixou em Dresden para estudar piano e se mudou para Praga. Aos 15 anos, já em Leipzig,

escreveu sua primeira peça teatral e aos 16 suas primeiras composições musicais. Em 1831,

entrou para a Universidade de Leipzig, onde estudou música, compôs e apresentou com

sucesso uma sinfonia. Tornou-se maestro do coro do teatro de Würzburg, em 1833, onde

escreveu sua primeira ópera, Die Feen (As Fadas), que permaneceu inédita até sua ópera

seguinte, Das Lieberverbot (O amor Proibido), escrita também em 1833. Nessa época,

Wagner se tornou regente de ópera em uma companhia pequena, que faliu em 1836. Foi então

que se casou com a atriz Mina Planer e foi morar em Königsberg, onde se tornou dirigente

musical do teatro. Logo partiram para Riga, na Lituânia, onde Wagner assumiu o cargo de

diretor do teatro. No teatro de Riga, regeu muitas músicas de Beethoven e começou a escrever

sua ópera Rienzi.

Wagner era considerado um homem arrogante e manipulador. Não era de fácil

convivência, mas era muito sincero em seus sentimentos e, ao mesmo tempo, gostava de

desfrutar dos luxos que a vida poderia oferecer, demonstrando um caráter egocêntrico. Em

virtude de sua personalidade forte, deixou Riga (fugindo dos credores) e foi com Mina a Paris,

onde viveram às custas de seus colegas, incluindo Meyerbeer21, contra o qual Wagner se

revoltou anos mais tarde. Em Paris, fez trabalhos literários para editores e teatrose recebu

remuneração por isso. Trabalhou também na ópera O Holandês Voador. Em 1842, Wagner foi

até Dresden, onde Rienzi foi encenada para prestigiar sua estreia. Essa ópera remete ao

pensamento político de Wagner adaptado à Roma Imperial. Nessa época ele já estava

21 Giacomo Meyerbeer (1791-1861); compositor alemão e judeu, escreveu diversas óperas, caracterizadas pela

fusão de estilo entre orquestra alemã e ópera italiana.

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envolvido com o movimento intelectual semirrevolucionário conhecido como “Jovem

Alemanha”.

A ópera O Holandês Voador, ou O Navio Fantasma (como é mais conhecida no

Brasil), foi apresentada no ano seguinte, mas não foi tão aclamada quanto Rienzi. O Navio

Fantasma é uma ópera dramática intensa, que começou a romper com a tradição da “ópera de

números”, apelando para a recriação de atmosferas sobrenaturais e mares bravios. Depois de

sua estreia, Wagner foi nomeado Kapellmeister adjunto da corte de Dresden. Com O

Holandês Voador, tomou para si o tema da redenção através do amor de uma mulher. Esse

tema estará presente em boa parte de sua construção operística.

“Em 1845 Tannhäuser (“O Navio Fantasma”) era concluída e encenada, e tinha

início Lohengrin. Em ambas Wagner avança para uma textura mais contínua, com

narrativa semi-melódica e uma trama orquestral de apoio que ajuda a transmitir o

sentido desta narrativa”. (SADIE, p. 1010)

É importante salientar que os escritos de Wagner sempre enfatizaram os aspectos

estéticos e filosóficos da música. Wagner sempre criticou o mundo musical e a sociedade

alemã. A crítica foi a chave para que suas ideias tivessem um maior impacto sobre a vida

musical e artística de seu tempo. Como afirmei, seus textos foram mais lidos do que suas

obras ouvidas. Suas polêmicas eram de natureza moral. Seus textos traziam na origem a

crítica da tradição musical e questionavam a forma como as instituições e as editoras tratavam

a música.

O período mais importante de Wagner como escritor foi entre 1848 e 1851, quando

escreveu sob a ótica revolucionária e suas maiores preocupações foram artísticas e não

políticas. Para Wagner, a arte seria livre na medida em que o Estado também o fosse. Em

1848, ao escrever “Art and Revolution”, convocou os artistas para que assumissem o controle

dos meios de sua produção, pois a arte era o caminho da libertação:

As antigas fundações da indústria, do comércio e da riqueza estão agora ameaçadas;

e embora a tranquilidade tenha sido exteriormente restaurada, e a fisionomia geral da

vida social completamente reestabelecida, ainda assim, uma ansiedade devastadora,

um medo tormentoso crava as garras nas entranhas desta vida. Aquele que quiser

preservar o que tem, recusa a perspectiva do ganho incerto; a indústria encontra-se

estagnada e a arte já não tem mais meios de viver. (WAG NER, 1848, p.).

Depois do fervor de 1848, Wagner fugiu para Weimar por causa de seu

envolvimento com a Revolução. De Weimar seguiu para a Suíça, onde passou 11 anos sem

poder voltar para a Alemanha. Durante o exílio, escreveu o também polêmico O Judaísmo na

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Música. Neste texto atacou Meyerbeer e ao mesmo tempo escreveu suas ideias fundamentais

sobre teatro e drama, assim como o esboço de uma série de óperas sobre as sagas nórdicas e

germânicas que são o embrião do ciclo O Anel dos Nibelungos, concluído em1853. Em 1858,

Wagner foi para Paris, onde remontou Tannhäuser numa versão que se qualificasse ao gosto

francês, mas a ópera foi retirada de cena, possivelmente por questões políticas. A versão de

Paris é que prevalece até hoje.

Em 1862, finalmente foi permitido a Wagner que retornasse à Alemanha. No ano

seguinte, o Rei Ludwig da Baviera convidou-o para afixar-se junto à corte. O Rei pagou suas

dívidas e lhe forneceu fundos. Durante esse tempo, Wagner manteve um romance secreto com

Cosima Liszt, filha do compositor Franz Liszt e mulher do maestro Hans Von Büllow. Von

Bülow regeu a estreia de Tristão e Isolda em 1865, no Teatro da Baviera em Munique. Em

1866, Mina faleceu e Cosima foi morar com Wagner. Cosima e Wagner nessa época já tinham

dois filhos e, em 1870, se casaram.

Nessa Ópera, Wagner, ao descrever cada nuance do amor sexual, desenvolveu um

estilo mais rico e mais cromático do que qualquer um já tentara antes, usando as

dissonâncias e sua permanência por resoluções em um padrão contínuo para suscitar

tensão e sensação de ânsia profunda; o segundo ato é praticamente um dueto de

amor ininterrupto, abordando todas as emoções, desde a mais tenra à mais

ardentemente erótica. (SADIE, p. 1011)

Por insistência do Rei Ludwig II, as duas primeiras óperas do Anel, O Ouro do Reno

e A Valquíria, foram apresentadas em Munique em 1869 e 1870. Mas Wagner queria mais,

pois sonhava com um teatro onde pudesse apresentar o ciclo completo do Anel e despendeu

imensos esforços para levantar fundos para a execução do projeto. Em 1874, quando a quarta

ópera do ciclo, O Crepúsculo dos Deuses, foi concluída, o Rei Ludwig forneceu ajuda

financeira para a construção do teatro em Bayreuth.

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O Teatro de Bayreuth (Fonte: www.ticket-finders.com)

O Teatro de Bayreuth é a “sede” para o conceito de Gesamtkunstwerk22, de Wagner,

uma integração entre música, poesia, belas artes e dança. A construção do teatro criou muitos

desentendimentos entre o Rei e os ministros de seu governo. Os ministros entendiam que a

conjuntura de crise da Baviera não permitia que se aplicassem recursos numa obra que atendia

aos caprichos de Rei e de seu compositor preferido.

A estreia de “O Anel do Nibelungos” em sua integridade coincidiu com a

inauguração do Festpielhaus, teatro que Wagner, graças ao apoio de Luís II da

Baviera, mandou edificar em Bayreuth especialmente para suas óperas. Esse prédio,

de uma concepção revolucionária, foi construído de forma a dar às representações a

solenidade quase mística que envolvia os espetáculos dramáticos na Antiguidade: a

iluminação sem ribalta dá a ilusão de um mundo sobrenatural, e a orquestra,

invisível ao público, está situada num fosso, chamado “abismo mítico”, a fim de que

o som dos instrumentos possa se fundir ao das vozes. Desde as primeiras

representações da Tetralogia, Wagner suscitou violentas paixões no mundo musical,

dividido entre idolatria e rejeição: enquanto os wagnerianos viam nele o profeta de

uma arte nova e de uma nova humanidade, os “antiwagnerianos” censuravam-lhe a

extensão de suas peças, sua concepção sinfônica da ópera e ser germanismo

agressivo. (SUHAMY, 2007, p. 96).

O trabalho minucioso de Wagner deixou transparecer uma obra não apenas mais

artística, mas que também refletia as ideias políticas de seu autor e sua reflexão sobre a

condição humana. A estreia de Bayreuth foi uma realização artística, porém um fracasso

financeiro, o que fez com que Wagner fosse para Londres, para conseguir recuperar as perdas

22 Conceito de “obra de arte total”, originado por Wagner, que busca reunir música, teatro, canto, dança e artes

plásticas em uma única obra de arte. Wagner acreditava que na arte grega esses conceitos estavam unidos, mas

se separaram.

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de Bayreuth. Lá, iniciou uma nova ópera, Parsifal, um drama sacro representado em forma de

festival religioso que trata da redenção por meio dos atos da comunhão e da renúncia, e que

foi apresentado em Bayreuth em 1882. Depois da apresentação de Parsifal em Bayreuth,

Wagner foi para Veneza passar o inverno e acabou falecendo em decorrência de problemas

cardíacos (1883). Seu corpo foi sepultado em Bayreuth, e Wagner se consagrou como o

compositor que mais contribuiu para as transformações na música e para a forma de pensar e

transformar a arte. Sua obra operística transformou completamente o gênero, criando a ópera

sinfônica e o leitmotiv como forma musical de identificação dos principais personagens. Neste

sentido, Wagner, com sua invenção, se opõe à forma italiana de ópera dominante na época.

“Sua vida e sua música despertam paixão como as de nenhum outro compositor. Suas obras

são tão detestadas quanto idolatradas; mas ninguém nega-lhes a grandeza”. (SADIE, p. 1011).

Wagner em 1871 (Fonte: wikipedia.org)

Mas o que teriam em comum Bach, Mozart, Beethoven e Wagner? Qual a função e o

papel social desses compositores que influenciaram sua trajetória artística e política? Por que

esta cronologia musical se faz importante para a compreensão de Wagner?

Creio que a compreensão das épocas e das condições em que viveram e produziram

estes compositores é necessária para o entendimento de sua formação musical e de suas

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plateias. Bach, como representante do Barroco, conseguiu trazer para a música diversas

formas novas de composição e de trabalho do artista intérprete. O papel do músico aqui

envolve muito mais a disciplina de estudo e a técnica do que simplesmente o talento.

Interpretar Bach requer, além de alma sensível, extrema técnica e conhecimento de teoria

musical, para que as notas soem perfeitas aos ouvidos.

Mozart, no entanto, nasceu em uma época que não entendia que o compositor estava

à frente de sua realidade social. Mozart criava em uma época de transição musical, quando os

ouvidos estavam se acostumando com o novo, o Romantismo, muito bem representado por

Beethoven. Beethoven se consagrou como uma exceção desse trio. Alguns relatos mostram

que, por ser surdo, conseguiu desempenhar seu papel de músico autônomo porque a sociedade

tinha um sentimento de “pena” para com o compositor. Talvez. É nítido, porém, que precisou

do patrocínio da nobreza para poder criar, mas conseguiu recriar a música, atraindo plateias e

novos modos de se ouvir e compreender a arte musical. Beethoven era do Romantismo, e

pôde, assim, criar ao seu bel prazer, o que tivesse vontade. Beethoven e o próprio Wagner se

sujeitaram ao gosto da nobreza para mostrar suas criações e caminhar, a passos curtos,

conforme a aristocracia regia, porém nenhum deles teve o destino de Bach ou de Mozart, pois

não foram empregados da corte.

Os três antecessores de Wagner são considerados gênios da música, muito mais do

que outros compositores que o mundo veio a conhecer. Aqui, cabe perguntar como

compositores que tiveram suas obras construídas para o gosto da aristocracia podem ser

considerados gênios perante a história da música. Não podemos saber com exatidão se esses

compositores tiveram suas vidas piamente marcadas pelos regimes absolutistas e não puderam

(como regra) trabalhar suas composições como bem queriam. Talvez a necessidade da criação

autônoma fosse vaga, pois o simples fato de se pertencer a uma corte de Rei já era motivo de

status hierárquico. A construção musical de Bach, por exemplo, foi muito mais influenciada

pelo regime aristocrático do que a de seus sucessores. Bach viveu em uma época pós-Idade

Média, quando não existia outra noção de poder a não ser o Príncipe e a Igreja. É por isso que

a maioria de suas obras é eclesiástica. Mesmo sendo tão vulnerável ao poder aristocrático,

Bach teve as maiores composições conhecidas até hoje. Qual seria, então, o papel da

construção artística aqui? Seria, como disse Hennion, o papel do músico em si, como criador?

Falamos em compositores, mas poucos foram os músicos que se tornaram conhecidos, mal

temos registros disso. Os músicos desempenhavam sua função por desempenhar ou por um

comando de poder influente? Fica a pergunta.

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Enfim, vale a reflexão de como se construiu a concepção artística alemã e quais

foram as influências de Wagner, embora fossem todas de estilos musicais diferentes, e cada

estilo de uma época e um pensamento diferente.

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4 A MITOLOGIA GERMÂNICA E O ANEL DOS NIBELUNGOS

“A composição de uma obra sobre os Nibelungos seria certamente um passo à

frente, e acredito que o compositor que conseguisse se desincumbir de modo

adequado desta tarefa tornar-se-ia a personalidade de sua época.” (Franz Brendel,

1845).

Chegamos ao último capítulo. Apresentamos até aqui a situação social e política da

Alemanha antes da unificação e como se realizou esta unificação, além da condição de três

compositores representantes da situação geral da música na Alemanha pré-Wagner. O

caminho percorrido me leva a pensar que agora é possível compreender por que Wagner

participou com tanto clamor da Revolução Alemã, que unificou o país em 1871. Para isso,

tomo como base sua obra fundamental: O Anel dos Nibelungos, que trata de questões que

envolvem a mitologia germânica e nórdica e o poder. Isso me permite examinar, enfim, a

hipótese de que Wagner queria, através de sua arte, formar no cidadão alemão o sentimento e

a identidade nacionais.

Wagner como compositor estava insatisfeito com as condições dos músicos e da

criação artística em seu país. Também sofreu muita influência das questões filosóficas e

políticas que estavam em evidência na época. Sua campanha pelo desenvolvimento político da

Alemanha foi, de certa forma, estimulada pela frustração como artista, de ser “obrigado a

suportar a burocracia mesquinha [...] em toda uma sucessão de teatros líricos, provincianos

alemães, e a se submeter a humilhação de uns quatro anos de quase indulgência em Londres e

Paris” (HOLLINRAKE, p. 156). Em questões musicais, Wagner não foi considerado, mesmo

em sua época, uma maestria artística. Por certo, suas obras escritas sobre política foram muito

mais lidas do que suas obras musicais ouvidas. Foi muito influenciado por Hegel, Engels,

Marx e Feurbach, filósofos alemães que se destacaram por pensar a revolução, a luta de

classe, o poder e o Estado. Vale lembrar que para Hegel o Estado representava a consciência

coletiva, que podia anular praticamente qualquer noção de responsabilidade individual ou

liberdade de escolha. Hegel, (citado por MILLINGTON, 1995) afirma que: “Os homens são

tão tolos que agem por sua visão ideal de concepção altruísta de liberdade de consciência e de

liberdade política, e por um fervor de entusiasmo interior, não enxergam a verdade que reside

no poder”.

Assim Wagner fez seu papel de tomar para si as influências filosóficas e indagar

sobre a situação da Alemanha e sobre o que era a Alemanha para os alemães. Wagner se

revoltou, lutou e escreveu libretos e ensaios que provocaram a discussão da relação entre arte

e sociedade. Certamente, o compositor contribuiu para a unificação alemã, porém não foi o

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único. É certo que entre os artistas foi quem mais se destacou na luta pela implementação do

Estado Nacional Alemão e usou da sua arte para consolidar suas ideias na sociedade alemã.

Não posso abordar Wagner neste trabalho apenas pelo lado político e por sua

contribuição para a transformação da Alemanha. Se seus escritos foram importantes, sua

música não deixa de ser fundamental nesse processo. Os enredos que apresenta em suas

óperas, a forma como concebe sua música e a orquestração de suas peças não podem ficar

relegados a um lugar secundário em relação ao processo. Wagner é ainda hoje um dos grandes

nomes da música erudita, tendo se destacado pela reinvenção da ópera, exigindo nova

formação orquestral (sinfônica), novos arranjos e instrumentos até então ausentes na música

operística. É claro que Wagner reconhecia o seu potencial artístico e a hipótese cabível aqui é

a de, que cansado das condições dos músicos de corte na Alemanha e da produção artística

alemã desse tempo, se revoltou e aderiu à revolução como forma de viabilizar seu projeto

estético-político.

Como regente, Wagner acreditava que a interpretação da música era a melhor forma

para que sua obra fosse amplamente concebida. A música precisaria ser muito bem executada

pelos músicos, pois, se tem o poder de atingir o espírito, precisa ser bem executada para que

isso seja possível. Os músicos precisariam ser dedicados, e não se cansar de suas condições.

Para que a orquestra conseguisse desenvolver seu trabalho com magnitude, Wagner

acreditava que era responsabilidade do regente desenvolver uma interpretação da música que

pudesse ser transmitida e realizada por ela, ou seja, era importante trabalhar com paixão para

que o significado de suas obras (e/ou regências de outros compositores, Beethoven por

exemplo) pudesse ser realmente transmitido para o ouvinte.

De acordo com Breckbill (1995, p. 119), “É sintomático da forma que tinha a

personalidade musical de Wagner – e de seu papel crucial na época – que a sua compreensão

da música que o inspirava tenha desencadeado uma transformação em grande escala no estilo

de interpretação”.

Trabalhar com as questões musicais para que tocassem amplamente os ouvintes

servia para Wagner como uma tentativa de expressão daquilo que suas obras queriam dizer. O

compositor se tornou muito conhecido no âmbito das polêmicas, pois gostava de escrever e

retratar em suas óperas questões da natureza moral da sociedade. Por meio delas, era possível

controlar os ouvintes, já que as óperas eram a principal diversão das classes mais elevadas da

Europa de então. Para que pudesse transmitir a sua visão política da época, Wagner usou dos

encontros com a aristocracia e da frequência desta à ópera como meio para difundir sua crítica

moral e política e ao mesmo tempo influir na formação de nova mentalidade entre os alemães,

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na medida em que a aristocracia tinha um papel importante na formação da opinião pública

alemã. Wagner, além de estar preocupado com a formação da identidade e da arte alemãs,

buscava num plano maior construir a unidade cultural e artística da Alemanha. “Meu próprio

ideal artístico depende da salvação da Alemanha, minha arte seria apenas um sonho”.23

4.1 A TETRALOGIA DO ANEL

O que fez com que Wagner restituísse ao povo alemão o sentimento de identidade foi

a retomada dos mitos germânicos e nórdicos em sua produção musical. Ao retomar a

mitologia, Wagner voltou às origens e às histórias do começo da nação e do país. Essa volta

possibilitou a construção da “história” que se fez eterna. Portanto, nesta parte do capítulo, será

feita uma análise da ópera O Anel dos Nibelungos, que foi concluída em 1874 e ficou marcada

como um potente símbolo da unificação alemã. Juntamente com sua análise, faço um esboço

do entendimento da mitologia, importante para este estudo.

O Anel dos Nibelungos começou a ser escrito em 1848 e foi terminado 26 anos

depois, em 1874. É uma ópera dividida em quatro partes – “O Ouro do Reno”, “A Valquíria”,

“Siegfried” e “O Crepúsculo dos Deuses” – com mais de 14 horas de música. Cada parte tem

existência autônoma, embora o conjunto esteja articulado formando um ciclo, o Ciclo do

Anel, unido pela música e pelo enredo.

O Anel é uma obra complexa. Seu sentido talvez nunca seja adequadamente

formulado. No cerne da obra está o conflito entre o poder, o amor e a morte. O melhor

exemplo desse conflito encontra-se na última parte do Ciclo – “O Crepúsculo dos Deuses” –

representado pelo embate entre Siegfried, Brunilde e Günter. Segundo Migliton (p. 320), o

“progresso da humanidade em direção ao autoconhecimento e ao entendimento compassivo

do outro é ameaçado constantemente pelo desejo de poder e as concessões que somos

obrigados a fazer no dia-a-dia de nossas vidas”.

Ainda como destaque, vale ressaltar que:

Já no início do século XIX a saga dos Nibelungos (o mito) começara a gozar de uma

crescente popularidade: na década de 1840 ela tornara-se um potente símbolo da luta

pela unificação alemã. Wagner não foi o único, nem mesmo o primeiro compositor a

dar um tratamento operístico ao assunto, mas o seu foi, de longe, aquele de maior

23 Wagner disse isso a Constantin Frantz, um teórico político, em 19 de março de 1866. (HOLLINRAKE, p.

158).

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influência e pode-se dizer que, de fato, fez dele a “personalidade de sua época.

(MIGLITON, p. 320).

O fato de Wagner ter se tornado a “personalidade de sua época” está ligado,

principalmente, ao processo que o compositor construiu, buscando relacionar sempre a sua

ideia de construção estética com a concepção da identidade alemã, o poder e a consolidação

da “Obra de Arte do Futuro”. A maior característica da ópera O Anel dos Nibelungos é a de

que Mito e História se entrelaçam do começo ao fim. Explico: Wagner usou como fontes para

o Anel a Edda Poética (ou antiga), a Völsunga Saga e a Edda em prosa escritas por Snorri

Sturluson24, todas as três compiladas na Islândia na metade do século XIII. Também teve

como fonte os seguintes textos: Das Nibelungenlied, poema épico escrito em alemão

medieval; Thidreks Saga of Bern, narrativa em prosa escrita em torno de 1260-70 em

norueguês antigo; além de contos de Karl Lachmann, Franz Joseph Mone e dos Irmãos

Grimm. Em toda sua obra operística, e especialmente no Anel, Wagner trabalha os mitos sob

forte influência da tragédia grega. É assim também em Lohengrin, O Navio Fantasma,

Tanhaüser, Tristão e Isolda e Parsifal. Em Os Mestres Cantores, que se distancia da tragédia,

o que se percebe são a grande influência da sátira grega e os torneios medievais de canto. O

Teatro Grego, portanto, é a matriz teórico-estética sob a qual Wagner aborda a mitologia,

ressaltando o idealismo vital e a aura religiosa que envolvem a encenação.

Todas as sociedades possuem mitos que, entre outras funções, explicam sua origem.

São mitos fundadores. Ao mesmo tempo, os mitos da origem organizam e expressam as

visões de mundo de um povo. Dão sentido àquilo que num primeiro olhar pode parecer

fragmentado. Estabelecem sob a forma de narrativa coesa o que pode se apresentar como

caótico. Os mitos assim possuem uma função simbólica fundamental, qual seja a de ordenar o

caos dando-lhe consistência lógica, a partir da qual os indivíduos e os povos se orientam e

constroem para si um destino. Wagner busca, no Mito dos Nibelungos e em especial no

poema Das Nibelungenlied ou A Canção dos Nibelungos, inspiração para a composição do

Anel. Para além da inspiração, porém, Wagner buscava construir uma obra que em certa

medida representasse a origem e o destino da sociedade alemã, de seu povo; que

revolucionasse esteticamente a obra de arte (Kunstwerk) e ao mesmo tempo reavivasse e

24 Historiador, poeta e político islandês (1178-1241).

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reorganizasse os valores germânicos25, tornando-os coerentes com a nova sociedade alemã

que se fundaria com a unificação.

A Canção dos Nibelungos é um poema épico escrito na idade média baseado no Mito

dos Nibelungos. Os nibelungos seriam uma raça mitológica de anões, guardiões de um

tesouro (ouro). O poema é composto por lendas sobre a época heroica das migrações dos

povos bárbaros. A canção narra a história da tribo dos Burgúndios, que estabeleceram seu

reino na região do Reno. Os burgúndios foram destruídos por Átila, rei dos hunos. A

destruição dos burgúndios serviu de inspiração para a composição do poema. Ao conflito

histórico entre os burgúndios e hunos se mistura a lenda dos nibelungos. Embora os

personagens do Anel representem seres mais próximos da divindade, ou sobrenaturais,

dotados de todas as paixões humanas, a origem destes está assentada sobre o conflito

histórico. A paixão humana é um traço que aproxima o mito dos nibelungos ao mito grego.

Julgamos importante aqui apresentar um breve resumo de cada uma das óperas que

constituem o Ciclo do Anel. Para tanto utilizarei o texto de Jeanne Suhamy (p. 99-100), por

ser um texto conciso e explicativo com relação à história do libreto em si.

I – O Ouro do Reno

Prólogo: Em tempos legendários, junto às margens do Reno, Wellgunde e

Flosshilde, guardiãs do ouro do Reno, ondulam sobre o rio. Elas zombam de

Alberich, anão repulsivo e lúbrico da raça subterrânea dos Nibelungos, que tenta

pegá-las. Ao escutá-las cantarem o hino “Rheingold” (O Ouro do Reno), Alberich

fica sabendo que o ouro forjado em anel confere um poder ilimitado, com a

condição porém de que seu possuidor renuncie ao amor. Maldizendo então o amor,

ele furta o ouro e foge.

25Esta é a idéia que historicamente gerou mais polêmicas sobre a obra de Wagner. Foi nela que se apoiaram os

argumentos sobre o caráter nazista da ópera Wagneriana, especialmente do Anel.

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Das Reinhgold (Fonte: wikipedia.org)

Segundo Quadro: Nas alturas celestes do Walhalla, Wotan, rei dos deuses,

e sua esposa Fricka despertam. Wotan mandou construir seu palácio, o Wahlhal,

pelos gigantes Fasolt e Fafner e prometeu-lhes em troca Freia, deusa da juventude e

da beleza. Mas se Freia partir os deuses envelhecerão e desaparecerão. Com Frohe

Donner, deuses da tempestade, Wotan se pergunta que outra retribuição dar aos

gigantes. O astucioso Loge, deus do Fogo, sugere substituir Freia pelo ouro do Reno

que Alberich roubou. Wotan hesita, pois é tentado pelo poder do anel. Fafner aceita,

mais leva Freia como refém.

Terceiro Quadro: Wotan e Loge descem a Nibelheim, nas entranhas da

terra. Lá, o povo dos anões (os Nibelungos) reduzido à escravidão por Alberich,

extrai e forja o ouro. O irmão de Alberich, Mime, forjou-lhe um anel que lhe dá o

poder absoluto, bem como um capacete mágico, o Tarnhelm, que permite mudar de

aparência ou tornar-se invisível. Alberich gaba-se de seu poder diante dos deuses.

Loge, adulando-o leva-o a experimentar o poder de seu capacete. Uma vez Alberich

metamorfoseado em dragão e depois em sapo, os deuses se apoderam do capacete e

do tesouro, amarrando-o em seguida,

Quarto Quadro: No Walhakka, Wotan retira o Anel de Alberich. Louco de

raiva, o anão profere uma terrível maldição: doravante a morte atingirá todos os que

se apoderarem do anel. Mas Wotanapós ter oferecido a Fasolt o ouro em troca de

Freia lhe recusa o anel. Erda, mãe do mundo surge das profundezas. Ela profetiza o

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fim dos deuses e adverte Wotan do perigo mortal do anel. Wotan decide então

entregá-lo a Fasolt e imediatamente a maldição se cumpre: os gigantes lutam entre si

e Fafner apunhala Fasolt. Irrompe uma tempestade e sobre um arco-íris os deuses

sobem majestosamente até o Walhalla. Mas Loge pressente o fim próximo deles, e

ouve-se chorar as filhas do Reno.

II – A Valquíria

Fonte: wikipedia.org

Primeira jornada: Siegmund ou o poder do amor.

Entre os dois primeiros episódios da Tetralogia transcorre um período

incomensurável, que viu o nascimento da humanidade. Temendo que os homens

viessem a destronar os deuses, Wotan engendrou com Erda nove virgens guerreiras,

as Valquírias, encarregadas de levar ao Walhal os heróis mortos em combate: eles

constituirão um exército para os deuses. Fafner, transformado em dragão, detém o

anel. Wotan não tem o direito de recuperá-lo, mas espera que um herói possa

retomá-lo e preservar deste modo o poder dos deuses. Assim, sob o nome de Wälse,

uniu-se a uma mortal e engendrou dois gêmeos, os Wälsungen, um menino

Siegmund, e uma menina, Sieglinde. Ora, Sieglinde veio a desposar Hunding, que a

raptou após ter devastado sua casa e massacrado sua família, enquanto Siegmund

que, sem saber, matou a família de Hunding vive na infelicidade e na errância.

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Ato I: Siegmund, exausto e molhado pela tempestade, refugia-se numa

choupana construída aos pés de um enorme freixo. É acolhido por Sieglinde, que lhe

oferece hidromel e água. Sem se reconhecerem, eles se olham com uma estranha

emoção. O terrível Hunding surge. Siegmund conta-lhe sua história, e eles ficam

sabendo que são inimigos. Hunding desafia-o para um duelo na manhã seguinte.

Mas Siegmund não possui arma. Sieglinde administra uma droga a Hunding e

mostra a Siegmund uma espada cintilante, cravada no freixo, que ninguém jamais

conseguiu arrancar. Súbito, um luar primaveril inunda a cena e os gêmeos se

reconhecem num êxtase. Siegmud retira a espada que batiza Nothung, brande-a e

leva sua irmã para a floresta, a fim de que “floresça o sando dos Wälsungen”.

Ato II: Wotan pede à sua Valquíria preferida, Brunilde, para ajudar

Siegmund em seu combate contra Hunding. Mas Fricka, guardiã dos laços do

casamento, ultrajada com o adultério incestuosos que acaba de acontecer, ordena-lhe

vingar Hunding. Wotan confia seu desespero a Brunilde e implora que ela obedeça a

Fricka. Na floresta Sieglinde desmaia. Brunilde, que veio anunciar a Siegmund sua

morte próxima mas também seu destino glorioso entre os deuses, fica tão comovida

com a força de seu amor por Siglinde, que decide ajuda-lo, apesar da interdição

paterna.Wotan quebra a espada de seu filho e Hunding mata Siegmund, antes de

morrer, por sua vez a um simples gesto do deus. Brunilde leva consigo Siglinde, e

Wotan se lança em sua perseguição.

Ato III: As Valquírias, montadas em seus corcéis alados, trazem os corpos

dos heróis a seu rochedo. Brunilde deposita Sieglinde, grávida de Siegmund, na

floresta, não distante do antro de Fafner (que se metamorfoseou em dragão para

guardar o anel). A Valquíria afirma a seu pai que, ao ajudar Siegmund, respeitou seu

desejo profundo. Wotanapesar, da tristeza, pune-a pela desobediência, excluindo-a

do exército celeste e do mundo dos imortais. Após mergulhá-la num sono profundo,

suscita em torno dela um círculo de fogo. Assim, somente um herói capaz de

atravessar as chamas poderá resgatá-la.

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III – Siegfried

(Fonte: wikipedia.org)

Segunda jornada: a conquista do anel e do amor pelo herói Siegfried.

Ato I: Na floresta, o anão Mime recolheu Siegfried, filho de Siegmund e

Sieglinde, que ignora seu passado. Mime tenta forjar uma espada que permita a

Siegfried vencer Fafner e se apoderar do anel. Siegfried, que detesta Mime,

interroga-o sobre suas origens. Mime acaba revelando que sua mãe morreu ao lhe

dar à luz. Wotan, disfarçado de viajante, anuncia a Mime que a espada só poderá se

forjada novamentepor um homem que jamais conheceu o medo. Quando Siegfried

retorna, Mime testa sua coragem. A seu pedido, Siegfried solda os pedaços da

espada de Siegmund e quebra a bigorna de Mime.

Ato II: Diante do antro de Fafner, Wotan, sempre disfarçado de Viajante,

revela a Alberich as intenções de seu irmão Mime. Chega Siegfried. Senta-se sob

uma tília, escuta o canto dos pássaros, lamentando não compreendê-lo. Eles desperta

o dragão Fafner ao tocar trompa e traspassa-o a seguir com a espada. Fafner morre e

com ele a raça dos gigantes. Siegfried após lamber seu dedo ensanguentado

compreende de súbito o canto do pássaro, que lhe conta a história do anel e do ouro.

Siegfried penetra no antro e se apodera do anel, do capacete e do tesouro, enquanto

Mime e Alberich lutam entre si. Siegfried mata seu pai adotivo sob os risos de

escárnio de Alberich. Siegfried sente no entanto o desejo de uma companheira.

Guiado pelo pássaro ele se dirige ao rochedo da Valquíria.

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Ato III: Wotan, temendo que com Siegfried e Brunilde o poder passe às

mãos dos homens, consulta Erda numa gruta. Mas ela não pode mudar o curso do

destino e Wotan se inclina renunciando ao poder. Antes de desaparecer para sempre

na terra Erda deixa como herança a Brunilde o Saber. Enquanto isso Siegfried se

aproxima do círculo de fogo que protege Brunilde. O deus desafia então seu neto

ameaçando-o com a lança. Siegfried quebra a lança divina: Wotan está

definitivamente aniquilado. O herói penetra nas chamas, descobre Brunilde, que ele

toma por um guerreiro e lhe retira a couraça. Deslumbrado ele a beija. Ela então

desperta e os dois são possuídos pelo amor. Renunciando a seus privilégios,

Brunilde se entrega a Siegfried.

IV - O Crepúsculo dos Deuses

Fonte: Wikipedia.org

Terceira jornada: a vitória do amor sobre o ouro.

Prólogo: No rochedo das Valquírias, as três Nornas, filhas de Erda, fiam o

cordão de ouro do Destino. Vendo o cordão se romper elas profetizam o crepúsculo

dos deuses. Siegfried e Brunilde saem da câmera de pedra onde conheceram o amor

e se despedem. Brunilde dá ao herói seu corcel Grane; Siegfried entrega-lhe o anel.

A orquestra toca um interlúdio, a “Viagem de Siegfried pelo Reno”.

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Ato I: Siegfried chega ao palácio dos Gibichungen, onde vivem Gunther,

sua irmã Gutrune e Hagen, meio irmão dela que é também filho de Alberich. Hagen,

que quer se apoderar do anel, leva o herói a beber um filtro que o faz imediatamente

esquecer Brunilde e apaixonar-se por Gutrune. Siegfried se compromete a trazer

Brunilde para Guntherem troca de Gutrune e a reaver o anel. Graças ao Tarnhelm (o

capacete mágico), ele toma as feições de Gunther, atravessa as chamas, captura a

Valquíria e recupera o anel.

Ato II: À noite, no castelo dos Gibichungen, Alberich exorta seu filho a

matar Siegfried. Preparam-se os festejos pelas bodas de Gunther e Brunilde e de

Siegfried e Gutrune. Mas Brunilde reconhecer Siegfried e percebe, horrorizada, que

ele porta o anel. Tomada de dor e de cólera proclama que ele é seu marido, enquanto

Siegfried jura sua boa fé. Hagen e Brunilde convencem Gunther que é preciso matar

Siegfried. Brunilde revela que a única parte vulnerável de Siegfried são as costas.

Ato III: As Filhas do Reno, ora sedutoras, ora ameaçadoras, imploram em

vão que Siegfried lhes devolva o anel. Hagen faz o herói beber uma nova poção que

anula o efeito da primeira. Durante uma caçada Siegfried relata seu encontro com

Brunilde. Hagen, acusando Siegfried de infidelidade para com Grutune, apunhala-o

nas costas e depois mata Gunther, que disputa come ele o anel. Mas o dedo de

Siegfried morto se ergue, impedindo-o de tomar o anel. O Saber retorna então a

Brunilde, que compreende tudo: Siegfried e ela devem morrer para expiar todos os

crimes provocados pelo anel maléfico. Ela manda erguer uma fogueira para

Siegfried, põe o anel em seu dedo e se imola nas chamas. Um incêndio gigantesco

propaga-se pelo espaço até o Walhalla. O Reno transborda e suas águas atingem a

fogueira. As três Filhas do Reno retomam o anel enquanto as águas arrastam Hagen

em sua passagem. Este se afoga. As Filhas do Reno cantam a alegria do ouro

reencontrado.

4.2 O MITO E O ANEL

O Ciclo do Anel apresenta-se sob a forma de narrativa mítica, seus personagens são

deuses, fadas, anões, gigantes e dragões, com as características e as paixões humanas. Todos

envolvidos na mesma luta – o controle do ouro do Reno forjado em anel, que representa antes

de mais nada o poder de dominar o mundo e os povos. Há um conflito explícito entre as raças

dos deuses e dos anões que habitam as profundezas do Reno26.

Na primeira parte do Ciclo (“O Ouro do Reno”), é possível identificar a relação entre

mitologia e história. O nibelungo Alberich ao roubar dos anões o ouro do Reno em forma de

26 Este conflito dá origem às ambiguidades e controvérsias que envolvem a obra de Wagner, como defensora da

superioridade da raça ariana.

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anel, adquire o poder necessário para dominar o mundo. É a partir desse ato que se forma a

trama do Ciclo, uma trama de luta constante, na qual política, poder, amor e morte se

presentificam na trajetória dos personagens mitológicos.

O mito fornece o modelo para a conduta humana, dando valor e significado à

existência do homem. “Conta uma história sagrada; [...] relata um acontecimento ocorrido no

tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘principio’” (ELIADE, 1991, p. 11). É uma

interpretação da criação, das origens do mundo. Vale ressaltar que o mito fala do que ocorreu,

e os personagens sempre são sobrenaturais e se tornam conhecidos pelo que fizeram nos

tempos primordiais. Para Eliade: “É em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o

homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural” (ELIADE, 1991, p. 11). Assim,

entender o “Anel” não é apenas entender seu enredo, sua criação, mas, sim, compreender o

significado do mito contado no Ciclo e sua importância, quer para o estabelecimento da

ordem social, quer da cosmovisão da sociedade alemã.

Uma das características mais marcantes dos mitos é que, embora a maioria deles

relate histórias de deuses ou entes sobrenaturais, todos os personagens mitológicos possuem

em comum o fato de não pertencerem ao cotidiano humano, embora tenham o poder de

transformar a vida do homem e o mundo. “Tudo o que é narrado nos mitos concerne

diretamente à eles, ao passo que os contos e as fábulas se referem a acontecimentos que

embora tendo ocasionado mudanças no mundo, não modificam as condições humanas como

tal” (ELIADE, 1991, p. 15).

O mito é a expressão da constituição da “história” dos atos dos entes sobrenaturais;

essa “história” é considerada como verdadeira, pois está relacionada ao sagrado e ao

sobrenatural; o mito refere-se sempre à criação da existência e da condição humana. Segundo

Eliade (1991, p. 22), conhecer o mito é conhecer a “origem” das coisas.

Viver o Mito implica pois, uma experiência verdadeiramente “religiosa”, pois ela se

distingue da experiência ordinária da vida cotidiana. A “religiosidade” dessa

experiência deve-se ao fato de que, ao reatualizar os eventos fabulosos, exaltantes,

significativos, assiste-se novamente às obras criadoras dos Entes Sobrenaturais;

deixa-se de existir no mundo de todos os dias e penetra-se num mundo

transfigurado, autoral, impregnado de presença dos Entes Sobrenaturais. Não se trata

de uma comemoração dos eventos míticos mas de sua reiteração. O indivíduo evoca

a presença dos personagens dos mitos e torna-se contemporâneo deles. Isso implica

igualmente que ele deixa de viver no tempo cronológico, passando a viver no Tempo

primordial, no Tempo em que o evento teve lugar pela primeira vez. É por isso que

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se pode falar no “tempo forte” do mito: é o tempo prodigioso, “sagrado”, em que

algo de novo, forte e significativo se manifestou plenamente. (ELIADE, 1991, p.

22).

Dessa forma, recontar o mito é propiciar ao humano a volta ao ponto de origem da

experiência e da vida. É bom, porém, ressaltar que não estamos falando aqui de retorno a um

tempo perdido, mas da experiência subjetiva e puramente simbólica que o mito oferece ao nos

colocar em contato com nossa própria origem. Não podemos, então, confundir a circularidade

do tempo mítico, sua repetição, com o tempo cronológico que marca nossa experiência

existencial. O tempo do mito está fora de qualquer cronologia, é o tempo da eternidade. É a

condição de eternidade, atemporal, portanto, que permite ao mito sua constante re-

significação e reapropriação pelo homem. Ao tempo histórico da experiência humana

contrapõe-se à atemporalidade do mito. É dessa atemporalidade que nos fala a saga contada

pelo Anel e é daí também que surge seu caráter de permanência enquanto obra de arte.

O retorno à mitologia e a sua atemporalidade foi a forma que Wagner encontrou para

colocar no plano estético-político a formação da nação alemã. Recontar a saga de um povo é

voltar a seus mitos de origem e reatualizar na consciência coletiva o momento mágico de sua

criação. É esse momento mágico da criação, compartilhado por meio da narrativa mítica, o

ponto de partida para a criação de identidade que une os indivíduos numa origem comum. O

momento da origem presente no Anel é o fundamento da produção da identidade alemã, pois

ele encarna o laço simbólico com os ancestrais, representado aqui de forma transfigurada nos

personagens míticos.

Presumo que essa volta às origens, na visão de Wagner, serviria como ponto de

partida para que os alemães compreendessem sua situação histórica de povo dividido entre

Alemanha e Prússia, bem como as formas de dominação política a que estavam submetidos.

Assim, para Wagner, à medida que o povo alemão conhecesse sua origem mítica comum,

estaria desejoso da construção de uma nação unificada. É nesse sentido que Wagner

desenvolve em sua obra (e não só no Anel) o sentimento nacionalista e o oferece ao povo

alemão. Esse sentimento excluía todos aqueles que não se identificassem com o mito de

origem, dos quais os judeus27compunham o grupo mais numeroso.

Ora, se o mito da origem para os alemães expressa o triunfo e a decadência de povos

em conflito, a narrativa que predomina exalta as qualidades do vencedor. Assim, apreender a

saga dos Nibelungos e julgar-se descendente deles corresponde no plano simbólico a

27 O mito de origem do povo judeu é contado no Velho Testamento.

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pertencer a um povo superior e, portanto, capaz de fundar uma nação “especial”, única. A

forma possível de superar as divisões entre Prússia e Alemanha e entre os pequenos

principados, na concepção de Wagner, passa necessariamente pelo estabelecimento de uma

origem comum e de valores compartilhados, tanto para alemães como para prussianos. Este é

o projeto wagneriano que subjaz ao esforço despendido na criação do Anel.

4.3 A FILOSOFIA E O ANEL

Não posso enfatizar apenas as questões mitológicas que contribuíram para a

construção da ópera O Anel dos Nibelungos, pois essa não foi uma obra que retomou os mitos

somente para criticar o poder de uma Alemanha dividida, mas também, e principalmente,

como forma de contribuir para a unificação. Assim, é importante salientar que a obra teve

forte influência do contexto político e filosófico da época. É nesse sentido que entendo a

importância do mito para Wagner. A ópera retrata o amor e o poder como dimensões

essenciais da natureza humana. A sociedade e a moral no Anel aparecem não como criação

divina, mas como resultado das intensões e da ação do homem. As personagens míticas do

Anel, ao encarnarem as características humanas, representam, em certa medida, a

humanidade, porém, pelo fato de serem míticos, os personagens transcendem a condição e a

temporalidade humanas. Nesse sentido, o Anel transforma-se numa obra a-histórica, embora

tenha servido para expressar o processo de constituição da sociedade e do Estado alemães.

Parece contraditório atribuir importância histórica a uma obra baseada em mitos, porém é na

capacidade que o Anel possui de ser uma metáfora da sociedade alemã que se assenta sua

importância. Assim, o a-histórico do mito, contraditoriamente, é o que remete à origem e à

formação da Alemanha como nação, como povo unificado

Três pensadores alemães se destacam como influências filosóficas para a criação do

Anel: Shopenhaeur, Feurbach e Hegel. Primeiramente, a própria concepção de Wagner sobre

o amor livre e incondicional, pois para ele o verdadeiro amor não poderia ficar sujeito às leis

ou às instituições do casamento. Os casamentos descritos no anel são sem amor, são

casamentos arranjados. O amor verdadeiro só é encontrado fora do casamento. No Anel o

amor é representado por Siegfried e Brunilde. A questão shopenhauriana se consolida na

tragédia do casal e na aceitação do “mal intrínseco” aos anseios humanos, causa da tragédia

final que envolve Siegfried e Brunilde.

As influências de Feurbach, de quem Wagner sempre foi muito amigo, trazem a

essência da natureza humana e a fonte de sua moralidade, presente na relação “eu-outro”.

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Aqui, “somente em conjunção com o outro pode um indivíduo atingir tanto a felicidade

quanto uma consciência da responsabilidade social” (MILLINGTON, p. 327). Mas são os

conceitos de Hegel que mais têm relevância na ópera, por exemplo:

1) A autorrealização – a obtenção do esclarecimento ou preocupação de si mesmo

como resultado das experiências sofridas pelo indivíduo.

2) O reconhecimento mútuo – quando o indivíduo identifica algo de si mesmo no

ser amado.

3) A relação senhor/escravo – a necessidade como o espírito motor da história.

(MILLINGTON, p. 326).

O Anel não é só uma crítica à falta de liberdade no amor, sob a forma de crítica ao

casamento, também às relações sociais e políticas (de dominação) vigentes na Alemanha de

então:

O Anel contém críticas das relações de produção, do destrutivo – e alienante

– poder do capital e da exploração e opressão tanto na esfera industrial

quanto na social. Muito mais do que uma história sobre as aventuras dos

deuses, gigantes, anões e dragões, o ciclo é uma alegoria dos conflitos que

surgem quando a civilização e a política do poder invadem o inocente

mundo natural. Contratos sociais e instituições, que se baseiam

inevitavelmente nos direitos de propriedade e nas hierarquias de poder,

contaminam a ordem natural das coisas. (MILLINGTON, 1995, p. 327).

Assim, o Anel representa a concepção wagneriana do conflito entre cultura e

natureza, conflito este que se acentua com o advento do capitalismo. A nova civilização,

baseada agora na propriedade privada dos meios de produção, no assalariamento e no

progresso técnico (Revolução Industrial), recoloca para Wagner a questão da felicidade e do

destino do homem. Nesse sentido, Siegfried e Brunilde representam as possibilidades e os

limites da felicidade e com ela a construção de um destino humano. O projeto do amor de

Siegfried e Brunilde, fora da instituição casamento, não se realiza, acabando em tragédia com

a morte dos heróis. De certo modo, as características da obra wagneriana (não só do Anel)

sempre estiveram ligadas à crítica moral, o que não deixa de ser uma expressão da visão

política de Wagner.

Wagner ultrapassa os limites musicais de sua época e formula uma nova proposta

estética com a sua música. Era importante para ele que a arte sintetizasse a verdade para a

sociedade. Além do mais, juntamente com seu conceito de “obra de arte total”28, o compositor

acreditava que o teatro deveria mostrar para os alemães sua herança mítica e, assim, à medida

28“Gesamtkunstwerk”, em alemão.

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que o povo alemão se reconhecesse nos mitos de origem, encontraria sua essência cultural, o

que lhe facultaria a construção de uma identidade. Então, o verdadeiro drama de Wagner,

ligado à mitologia, seria o reflexo de uma genuína arte nacional enquanto expressão do “ser

alemão”, ou de um habitus, no sentido elisiano do conceito.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa, embora tendo muitas limitações, procurou abranger questões

que dificilmente um trabalho de monografia em Sociologia abrangeria, por exemplo assistir a

óperas e estudar notações musicais. De certo modo, creio que, com o objetivo de relacionar a

música de Wagner à unificação do Estado Nacional Alemão, cumpri mais uma fase de minha

formação. Inicio o trabalho me dedicando ao estudo da Alemanha antes de 1848, para

compreender minimamente o processo de sua unificação e a criação artística pré-Wagner. As

relações da obra de Wagner com a unificação da Alemanha nesta monografia foram tratadas

mais como pergunta, ou mesmo como uma hipótese, para, quem sabe, estudos futuros, do que

uma resposta propriamente dita.

De fato, muitos foram os estudos que se dedicaram a Wagner. Não apenas estudos

musicais, mas também em diversas áreas da ciência, dedicando-se a compreender a

genialidade do compositor e sua contribuição para a cultura ocidental. Nas Ciências Humanas

pontuam estudos que o ligam à psicologia e à filosofia, por exemplo. Adorno se dedicou a um

estudo apenas sobre Wagner29, tratando questões que envolvem o compositor ao nazismo. Na

filosofia, Nietzsche escreveu O Caso Wagner (1888), em uma tentativa de criticar o antigo

amigo pelo retorno ao Cristianismo e pelo abandono das questões ligadas à filosofia. Porém,

os dois ensaios sobre Wagner tem o mesmo denominador comum: o antissemitismo. Longe de

querer fazer estabelecer uma comparação com Adorno e Nietzsche, o nosso objetivo neste

trabalho não foi o de abordar o antissemitismo de Wagner, mas, sim, sua participação no

processo político da criação do Estado Nacional e do sentimento de nação do povo alemão.

Para que pudesse fazer com que a sociedade de sua época compreendesse o que o ele

queria mostrar, Wagner não só escreveu sobre a música e mitologia germânicas, mas apontou

questões de ética e moral. Gastou trinta anos de sua vida preocupado com a construção de um

local onde pudesse mostrar a todos a sua criação artística e a sua “obra de arte total”. Este

lugar, o Teatro de Bayreuth, foi construído especialmente para as obras de Wagner pelo Rei

Ludwig II, da Baviera. O espaço remete a um Wagner insatisfeito com a condição dos

músicos de corte da Alemanha que o precederam. Destes destacamos aqui Bach e Mozart e na

transição para o músico independente Beethoven. Com o Festival de Bayreuth realizado

anualmente, grande número de pessoas tem contato com a obra wagneriana, disseminando-se

29 In Search of Wagner (ADORNO, 1981).

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assim os ideais projetados por Wagner para a cultura alemã. Na Indústria Cultural, o cinema é

visto como o local onde as massas se reúnem para acompanhar as grandes obras

cinematográficas. Na visão de Wagner não seria diferente – o maior número de alemães

assistindo a seu festival disseminaria o sentimento nacional alemão.

O Teatro de Bayreuth foi financiado pelo Rei Ludiwig II30, da Baviera, grande

admirador de Wagner. Ao contrário do objetivo real de Wagner, o de construir uma arte

puramente autônoma31, o compositor enxergou no príncipe o auxílio necessário para a

realização de seu desejo, um teatro dedicado à exibição de suas obras. Bayreuth seria um

santuário da arte elevada e também a regeneração da própria arte, para que ela voltasse a ser o

berço da cultura e não fosse apenas a expressão medíocre de um povo culto. Também a volta

ao estilo grego de arte permitiu a Wagner encontrar a verdade na arte. Isto ocorreu a partir da

leitura que Wagner fez de Ésquilo32. Foi o encontro com a tragédia grega que possibilitou a

Wagner impor a forma grega ao conteúdo das lendas e dos mitos nórdicos. Adorno acredita

que Wagner esperava que o Festival de Bayreuth e a obra de arte total, por ele imaginada,

serviriam para viabilizar aquilo que seria uma regeneração do povo alemão, formando uma

comunidade popular de cunho fascista33. O festival seria a oportunidade para transmitir à

sociedade o pensamento de Wagner sobre a identidade nacional. Bayreuth nasceu para que o

ciclo do Anel fosse encenado completamente, com suas quatro noites de duração, todos os

anos. Como no mito, o festival é marcado pelo tempo que sempre retorna a sua origem. Na

sua repetição desta obra, o povo alemão finalmente entenderia sua verdadeira existência:

Uma récita do festival do Anel, em quatro noites consecutivas, não apenas exerceria

um efeito salutar sobre a ópera alemã, inculcando nos intérpretes uma consciência de

sua elevada missão, como também encontraria os membros do público num estado

de espírito mais receptivo e mais reverente: estes, por sua vez, teriam “seu gosto”

apurado e o “espírito germânico” seria restaurado a sua antiga dignidade “nacional”.

(SPENCER, p. 190)

30 O relacionamento de Wagner com Ludwig foi o que impulsionou para que as obras de arte passassem a ser

admiradas na Alemanha. Quando foi exilado, Wagner nunca mais poderia voltar ao território alemão, por seu

envolvimento com a Revolução de 1848. Mas em 1864, quando Ludwig se tornou Rei da Baviera, Wagner

retornou à Alemanha, a mandado do jovem rei, apaixonado pelo trabalho do compositor. Ludwig resgatou

Wagner da penúria, liquidou suas dívidas e o instalou com luxo no castelo real, presenteando Wagner com 4.000

florins. Foi ideia de Ludwig a construção de um teatro suntuoso para Wagner, uma vez que o compositor

pensava em um teatro apenas para mostrar suas obras. Mas o Rei era apaixonado pela história da Alemanha, e os

castelos e florestas que as obras wagnerianas trazem mostravam para o rei um “autêntico tesouro”. 31 Wagner não queria depender dos pequenos príncipes alemães, pois buscava a construção musical através da

Indústria Cultural da época. Foi por ser contra ao sistema no qual os músicos eram mantidos que Wagner se

aliou à Revolução. 32 Pai da tragédia grega. 33 ADORNO, Introdução à Sociologia da Música, “Vida Musical”, p. 239.

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A construção de Bayreuth seria finalmente a realização da verdadeira “obra de arte

total”, inspiradora de Wagner. Com o teatro de Bayreuth, imagina-se que sociedade alemã

sentiu, talvez pela primeira vez, o nacionalismo que explodiu implícito anos mais tarde com a

ascensão do nazismo. As obras de Wagner sempre foram um “espelho” para as condição

humana, dado seu conteúdo político. Com o relativo atraso da Alemanha perante outros países

da Europa, o povo sentia-se cada vez mais fadado ao fim, sem muitas esperanças. A economia

era fraca e os junkers, e apenas eles, detentores da propriedade da terra. Com a falta de um

poder centralizado, não poderia existir um lei única para um Estado único, muito menos um

território. Wagner avançou no sentido de contribuir com sua obra para aglutinar o que estava

esfacelado.

O futuro da Alemanha estava fadado à incerteza. Os pequenos principados, regidos

sob intensa ordem militar e episcopal, não tinham uma direção política que os projetasse para

além de suas fronteiras territoriais. Os músicos restringiam sua capacidade criadora para o

deleite das pequenas cortes, seguindo as regras impostas pelo gosto desta.

Na Alemanha, como em quase todas as nações europeias, o desenvolvimento seguiu outro

rumo, para o qual contribuiu com sua fragmentação política e o seu repetido papel como arena de

guerra da Europa. Aí, sobretudo na Prússia e na Áustria, o código de honra dos guerreiros – a

obrigação de arriscar a vida em duelos para provar que se é digno de pertencer à elite social, àquela

que possuiu “honra” – manteve seu papel crucial até as primeiras décadas do século XX. (ELIAS,

1985, p. 57).

Outro ponto que focamos nesta monografia foi o papel dos músicos de corte na

Alemanha. De certo modo, é válido enfatizar que os músicos de corte da Europa

desempenhavam o papel de músico empregado da corte, ou seja, funcionário do governo. Mas

a Alemanha, mesmo impondo essa condição a seus artistas, se destacou com grandes nomes

que modificaram a história mundial da música. A música erudita desempenhou na Alemanha

forte influência, o que faz do país um polo musical até hoje. Mostrar a vida desses

compositores, para além de uma biografia, foi acima de tudo tornar perceptível a contribuição

desses homens à música, mesmo na condição de funcionários do poder aristocrático.

Poderíamos até pensar: se não fosse pelos poderes das cortes alemãs, teriam estes músicos

tanto destaque? Na Sociologia, foi possível entender suas obras a partir de questões ligadas à

psicologia, à vida familiar e ao meio em que estavam inseridos. Os músicos de corte

representavam uma esfera do poder, pois mesmo marginalmente faziam parte dela.

Representavam uma estrutura de classe, mas, ao mesmo tempo, eram corrompidos por ela.

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Richard Wagner se deixou levar pelos ideais revolucionários que atingiram a

Alemanha. Como sempre existiu uma tendência de se ir aos extremos, a Alemanha soube

ocupar essa posição. Com sua experiência marcada pela Revolução Francesa, a Alemanha

atingiu o máximo do conservadorismo e conseguiu explorar suas consequências ao limite.

Enfim, precisamos esclarecer: a Alemanha, antes da unificação, não tinha um Estado

único, não tinha economia sólida, exceto a Prússia. Com as efervescências da Revolução de

1848, Wagner encontrou um objetivo para que pudesse renovar sua arte: os músicos deveriam

ser bem pagos, a arte deveria se desenvolver por ela mesma, a cultura deveria se disseminar.

Para tanto seria necessário instaurar um sentimento puramente nacional, que reconhecesse a

cultura e a arte alemãs como únicas e verdadeiras. O povo precisaria aderir ao movimento.

Certamente, Wagner não sabia o que poderia acontecer depois. Quando a Alemanha

finalmente foi unificada e se instaurou no país o sentimento nacional, os artistas e músicos

tornaram-se livres do patronato e puderam desempenhar sua arte como artistas independentes.

Neste sentido, Beethoven é emblemático, pois antes de Wagner conseguiu exercer sua arte da

forma autônoma. Wagner precisou de financiamento do Estado para poder desenvolver suas

atividades. Pensando assim, creio que a arte nunca foi livre, sempre dependendo do poder

maior. Contraditoriamente, depender do poder parece ser condição para a criação autônoma. E

no caso de Wagner, sua ligação com Ludwig II explica essa contradição, sendo que mais

tarde, já no século XX, o compositor e sua criação musical vêem-se enredados na mais

terrível e trágica das experiências da humanidade não só pelo gosto pessoal do Fuhrer, mas

pela matriz antissemita e eugênica que lhe deu origem.

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Ed., 1994.

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Outras Fontes:

WAGNER, Richard. Ciclo do Anel dos Nibelungos. Hmburg: Gravadora Altaya S.A e

Universal Music Spain, S.L.– Deutsche Grammophon Gmbh, p1993/2002 (Grandes Óperas).

Filmes:

AMADEUS. Direção de Millos Forman. Burbank, CA: Warner Bros, 1984. 1 DVD (160

min), color.

WAGNER The Complet Epic. Direção de Tony Palmer. Dublin, UK: Hungarofilm, 1983. 4

DVDs (466 min), color.

LUDWIG, A Paixão de um Rei. Direção de Luchino Visconti. Itália, 1973. 1 DVD (184 min),

color.

Ópera:

O CREPÚSCULO DOS DEUSES - Drama Musical em Três Atos. Temporada 2012. Theatro

Municipal de São Paulo. Regência e Direção Musical: Luis Fernando Malheiro. Dia 17 de

agosto 2012.