museu imaginário

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1 O museu Imaginário Hoje é recorrente nos depararmos com o discurso sobre os caminhos empreendidos pelas artes depois do modernismo que permitiram o dilatamento de limites tanto no que se refere aos materiais empregados na produção das obras, (o que alterou também os procedimentos) como a ampliação do espaço da sua exposição considerando tudo o que se encontra ao se redor como itens apropriados na construção da linguagem. Ao romper esses limites a arte se distanciou da necessidade de um domínio técnico da ordem do manual que fora um dos fatores importantes na aferição da qualidade dos objetos artísticos. Pintura, escultura e gravura, tinham o domínio dos fazeres atrelada a criação, um peso considerável na produção final da obra. Hoje os objetos podem ser nomeados, recolhidos em uma infinidade de lugares, construídos a partir dos meios industrializados, muitas vezes, terceirizada sua manufatura a partir de projetos ou, até mesmo deixando de existir qualquer corpo material como na arte conceitual, efêmeros como nas performances, ações e happenings, linguagens temporárias que muitas vezes só travamos contato através dos registros que a tecnologia nos permite realizarem. Se os meios de produção destes objetos se alteraram substancialmente o que dizer dos conceitos que sempre acompanharam as artes visuais de maneira a distanciá-la de um papel meramente decorativo ou de uma plástica comprometida com o espaço narrativo suplantando sua autonomia como obra em si mesma, capaz de alterar o olhar em seu tempo promovendo a reflexão. A natureza transformadora da arte esta intrinsecamente relacionada a esta potencia conceitual que promoveu e promoverá sempre sua transformação. Não é por acaso que por volta de 1912, Marcel Duchamp falava desdenhosamente da arte dita “retiniana”, o artista dizia que o impacto do realismo de Gustav Coubert havia transformado a arte numa coisa puramente retiniana, “antes de Coubert, a arte havia atraído o intelecto de muitas maneiras diferentes, ensinando verdades

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O museu Imaginário

Hoje é recorrente nos depararmos com o discurso sobre os caminhos

empreendidos pelas artes depois do modernismo que permitiram o dilatamento de

limites tanto no que se refere aos materiais empregados na produção das obras,

(o que alterou também os procedimentos) como a ampliação do espaço da sua

exposição considerando tudo o que se encontra ao se redor como itens

apropriados na construção da linguagem.

Ao romper esses limites a arte se distanciou da necessidade de um domínio

técnico da ordem do manual que fora um dos fatores importantes na aferição da

qualidade dos objetos artísticos. Pintura, escultura e gravura, tinham o domínio

dos fazeres atrelada a criação, um peso considerável na produção final da obra.

Hoje os objetos podem ser nomeados, recolhidos em uma infinidade de lugares,

construídos a partir dos meios industrializados, muitas vezes, terceirizada sua

manufatura a partir de projetos ou, até mesmo deixando de existir qualquer corpo

material como na arte conceitual, efêmeros como nas performances, ações e

happenings, linguagens temporárias que muitas vezes só travamos contato

através dos registros que a tecnologia nos permite realizarem.

Se os meios de produção destes objetos se alteraram substancialmente o que

dizer dos conceitos que sempre acompanharam as artes visuais de maneira a

distanciá-la de um papel meramente decorativo ou de uma plástica comprometida

com o espaço narrativo suplantando sua autonomia como obra em si mesma,

capaz de alterar o olhar em seu tempo promovendo a reflexão.

A natureza transformadora da arte esta intrinsecamente relacionada a esta

potencia conceitual que promoveu e promoverá sempre sua transformação. Não é

por acaso que por volta de 1912, Marcel Duchamp falava desdenhosamente da

arte dita “retiniana”, o artista dizia que o impacto do realismo de Gustav Coubert

havia transformado a arte numa coisa puramente retiniana, “antes de Coubert, a

arte havia atraído o intelecto de muitas maneiras diferentes, ensinando verdades

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morais ou religiosas e levando a mente em viagens imaginativas.” 1 Esta opinião

dialoga com o ditado Bête comme um peintre que reinou na França durante toda a

segunda metade do século XIX.

Os modernos compartilhavam esta opinião, Vassili Kandinski, Kasimir Maliévitch e

Piet Mondrian se comprometeram com uma “arte espiritual que transcendesse o

mundo das sensações materiais.” 2 E de uma forma conceitual mais clássica

teremos o cubismo de Braque e Picasso. Picasso chegou a afirmar na época

sobre sua pintura: “não o que se vê, mas o que se sabe que está lá”. Duchamp vai

tomar direções inesperadas, e poderíamos dizer até de forma irresponsável

quanto ao compromisso com o debate, sabendo-se mais tarde que este pseudo

desinteresse já fazia parte de sua estratégia conceitual nas escolhas dos seus

Readymade, porém foi ele quem o conduziu para lugares inesperados.

A adoção de um elemento corriqueiro por Duchamp não vai sofrer nenhuma

alteração em sua estrutura material em comparação, por exemplo, ao Papier

colleé do cubismo, a não ser o titulo ou até mesmo o emprego de uma autoria

conceitual da obra. As portas abertas pelo conceitualismo pós-duchanpiano

possibilitou uma serie de mudanças nos procedimentos que sempre fora pautados

por um virtuosismo técnico de natureza manual. Entretanto, “na medida em que a

prática do espaço social veio se transformando, também essas categorias –

artista, obra e receptor – foram sendo redimensionadas”. (Vinhosa). A obra de arte

ampliou sua recepção propondo a interatividade com o receptor, transformando

sua relação às vezes contemplativa em experiências onde os processos assumem

o lugar do objeto constituindo uma rede de interações e significados.

1 TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia/ tradução Maria Tereza de Resende Costa – São Paulo: Cosac Naify, 2004.

2 Ibídem.

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Se por um lado a permissão no emprego de qualquer coisa do mundo material na

arte parece contribuir para que qualquer um possa fazer arte a partir daí, por outro

lado a complexa rede de relações conceituais que foram estabelecidas para que

um objeto corriqueiro passe ao estatuto de objeto de arte passou a ser outro

virtuosismo. Este conceitualismo faz parte da evolução do pensamento a respeito

da “imaterialidade da arte” ele forneceu estofo para sua sustentação.

Mas o que consideramos imaterial, o conceito, a forma? O conceito passou a ser

na verdade todo o estofo, aquilo que preenche e da à forma o peso material, neste

sentido o conceito de materialidade e imaterialidade vem impregnado pelo

discurso de Flusser:

O mundo dos fenômenos, tal como o percebemos com os nossos sentidos é uma geléia amorfa, e atrás desses fenômenos encontram-se ocultas as formas eternas, imutáveis, que podemos perceber graças à perspectiva supra-sensível da teoria. A geléia amorfa dos fenômenos (o mundo material) é uma ilusão e as formas que se encontram encobertas além dessa ilusão (o mundo formal) são a realidade, que pode ser descoberta com o auxílio da teoria. E é assim que a descobrimos, conhecendo como os fenômenos amorfos afluem às formas e as preenchem para depois afluírem novamente ao informe.3

A forma é entendida aqui como o conceito, aquilo que organiza o caos do informe,

constituindo a matéria, então aquela idéia de matéria como o material antes da

forma cai por terra, isto por que sem forma não podemos percebê-la e traduzi-la,

temos que considerar que a o amorfo deve preencher algo para que possamos

percebê-lo.

Assim as formas criadas são na verdade o mundo material real, e são conceitos

que se fazem ver a partir de teorias, conscientes nós podemos desfrutar realmente

do que vemos caso contrario ignorantes aceitamos coisas irreais como realidade.

Esta consciência tem uma importância vital para nos aproximarmos da arte,

principalmente da arte contemporânea que distanciada do meio tradicional trocou

o virtuosismo técnico pelo conceitual. Se por um lado ela parece ao leigo algo fácil

3 FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e de comunicação: Organizado por Rafael Cardoso. Tradução: Raquel Abi-Sâmara. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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no que diz respeito aos procedimentos técnicos, por outro, se mostra a este

inalcançável, pois exige um olhar analítico sem os velhos preconceitos.

Apropriando de toda ou qualquer manifestação humana como uma possibilidade,

ela coloca em risco o acesso fácil e inconsciente do amorfo como sendo a forma

que vazia de seu real sentido não alcança o estatuto de arte.

O museu como instituição tem como meta ser o depositário deste fazer e deverá

cumprir um papel também disseminador dos conceitos por trás dos objetos. Assim

como um lugar pode destituir a forma de seu estatuto funcional, o museu ao

contrário, converte tudo que for exposto dentro de sua arquitetura como sendo

arte, desfrutando desta aura do objeto dentro de uma moldura.

Na verdade, aquela instituição que antes guardava os itens de uma coleção

acabou sendo colocada em cheque por causa do ato de empalhamento de tudo

que ocupava seu interior, onde os ossos de um oficio eram exibidos como objetos

super valorizados, independente do acesso publico aos conceitos por trás das

formas. Sempre se pensou numa abordagem generalizante que fosse acessível a

todos.

A arte rompendo os limites tanto espaciais como temporais, chegando ao ponto de

não existir o objeto, estabelecendo como obra o seu processo de criação forçou a

uma nova concepção de Museu de Arte. Não possuindo os objetos como num

mostruário de manufaturas, como apresentar ao publico os conceitos sem cair no

vazio nas relações superficiais do puro espetáculo ou do entretenimento?

As realizações artísticas, no entanto, não podem ser encaradas como meras alegorias, simples figuras retóricas ou espelhos do real, mas, pelo contrário, como formas potentes de construção de realidades que trazem em seu bojo concepções arrojadas de sujeito. (VINHOSA, 2006)

A acessibilidade das novas tecnologias pode facilitar ou banalizar estas

tentativas de aproximação não diferindo em nada de outros eventos com outras

finalidades que não a produção de conhecimento, é sempre importante retomar e

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discutir o real papel da instituição para que ela se dinamize acompanhando os

novos tempos propostos pela arte.

Se a arte hoje busca novos espaços que não galerias e museus para se

apresentar chegando a considerar lugares como elemento constituinte da obra, os

museus devem acompanhar este movimento saindo dos seus limites materiais

buscando participar de forma a tornar acessíveis a novas propostas, ampliando o

campo de sua atuação junto a esta produção, ser mais que o depositário da

memória e sim o espaço da consciência, humanizando a relação com o fazer

artístico para além do mercadológico.

O que propomos aqui é que os museus deverão alterar a idéia convencional de

acervo e conservação e constituir memórias e experiências como um acervo e sua

disseminação entre a população como idéia de conservação, mostrando que as

alterações do tradicional não nega a tradição, mas a torna viva como forma de um

pensamento evolutivo. E o mais difícil é convencer a todos que o conhecer

constrói o sentido de pertencimento.

Devemos estabelecer as redes deste conceito ampliado de museu para o

cotidiano das pessoas, construindo um museu sem “paredes” isto é, sem barreiras

institucionais, um “Museu Imaginário” que se constitui no encontro com o outro

para a disseminação e construção da memória, isto tem a ver com uma poética de

afetos, umas das características da produção do final do século XX que tão bem

apontou Luciano Vinhosa, instaurada por “narrativas singulares” “tais poéticas

persistem na possibilidade de um sujeito singular que aciona seu próprio

mecanismo de subjetivação para operar a interação com o mundo em oposição ao

sujeito coletivo...,” 4. Mostrar como as relações, afetos e maneiras de conhecer e

de se posicionar no mundo passa a ser presentificado pela matéria.

4 Luciano Vinhosa Simão, “Da arte: sua condição contemporânea”, in Arte & Ensaio, Rio de Janeiro: UFRJ, ano 5, nº 5, 1998, p.35-63.

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Acreditamos que um museu pode ser um lugar onde tudo a seu respeito para lá

converge, torna-se um ponto onde o tempo parece voltar atrás, para seguir em

frente, um reator movido a memórias. Um lugar de memórias que provoca a

experiência no presente produzindo outras memórias, alterando assim a idéia que

se fazia do lugar.

Um lugar pode ser uma pessoa. Esta pessoa que tem um nome e vive junto a um

grupo é um lugar que se multiplica como memória no encontro com as pessoas

que formam uma comunidade. Todas estas memórias alteram a idéia que cada

pessoa faz de si e da comunidade. Esta idéia que se faz de si quando se conhece

o outro constitui o encontro de lugares diversificados pelas memórias que cada um

faz de si e dos outros, constituindo um lugar coletivo que vamos chamar de

“Museu imaginário”.

JÚLI O TI GRE - Artista plástico possui graduação em Artes Plásticas pela Universidade

Federal do Espírito Santo (1999). Em 2007 inicia doutorado no programa: Lenguages y

Poéticas en el Arte Contemporâneo na Universidade de Granada, Espanha. Suas

experiências na área de Artes englobam diversas linguagens com ênfase em instalação e

Performance.