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Vida e morte de uma estátua de “Exu” do Museu da Polícia Civil do Estado Rio de Janeiro Arthur Valle Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro O presente texto analisa uma estátua do orixá “Exu” que pertencia ao Museu da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro e que foi destruída por um incêndio em 1989. Nossa intenção é discutir as características dessa obra, as vicissitudes pelas quais ela passou durante sua “vida” e sua agência mesmo quando “encarcerada” no Museu da Polícia. Cremos que esses fatores indicam a capacidade de adaptação das culturas de origem africana no Brasil, bem como os modos com estas foram criminalizadas pelo racismo que estruturou a sociedade brasileira durante sua história colonial e pós-colonial. Palavras-Chave: Culturas Afrobrasileiras; Exu; Colecionismo; Cripto-Arte História The present paper analyses a sculpture of the Orisha “Eshu” that belonged to the Rio de Janeiro Civil Police Museum and was destroyed by a fire occurred in 1989. We will discuss the characteristics of this artwork, the vicissitudes through which it passed during its “life,” as well as its agency even when it was “incarcerated” into the Police Museum. We believe that these factors point out how African cultures reinvented themselves in Brazil, but also how these same cultures were criminalized by the racism that structured Brazilian society throughout its Colonial and Postcolonial history. Key Words: Afro-Brazilian Cultures; Eshu; Art Collection; Cripto Art History 349

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Vida e morte de uma estátua de “Exu” do Museu da Polícia Civil do Estado Rio de Janeiro Arthur Valle Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

O presente texto analisa uma estátua do orixá “Exu” que pertencia ao Museu da

Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro e que foi destruída por um incêndio em 1989.

Nossa intenção é discutir as características dessa obra, as vicissitudes pelas quais

ela passou durante sua “vida” e sua agência mesmo quando “encarcerada” no Museu

da Polícia. Cremos que esses fatores indicam a capacidade de adaptação das

culturas de origem africana no Brasil, bem como os modos com estas foram

criminalizadas pelo racismo que estruturou a sociedade brasileira durante sua

história colonial e pós-colonial.

Palavras-Chave: Culturas Afrobrasileiras; Exu; Colecionismo; Cripto-Arte História

The present paper analyses a sculpture of the Orisha “Eshu” that belonged to the Rio

de Janeiro Civil Police Museum and was destroyed by a fire occurred in 1989. We will

discuss the characteristics of this artwork, the vicissitudes through which it passed

during its “life,” as well as its agency even when it was “incarcerated” into the Police

Museum. We believe that these factors point out how African cultures reinvented

themselves in Brazil, but also how these same cultures were criminalized by the

racism that structured Brazilian society throughout its Colonial and Postcolonial

history.

Key Words: Afro-Brazilian Cultures; Eshu; Art Collection; Cripto Art History

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Arthur Valle Vida e morte de uma estátua de “Exu”

O ponto de partida do presente texto é uma obra de arte que não mais existe. Trata-se

de uma estátua de “Exu” que pertencia ao Museu da Polícia Civil do Estado do Rio de

Janeiro (Figura 1a e 1b). Exu é o orixá mensageiro do povo iorubá, sem a participação

do qual “não existe movimento, mudança ou reprodução, nem trocas mercantis, nem

fecundação biológica” (PRANDI, 2001, p. 21). Todavia, a iconografia do “Exu” do

Museu da Polícia se afasta das tradições iorubás, aproximando-se, antes, de

representações do Diabo cristão, mais precisamente da sua moderna encarnação

como Mefistófeles (RUSSELL, 1988).

Fig. 1a e 1b | Estátua de “Exu” anteriormente pertencente ao Museu da Polícia Civil do Estado do Rio de

Janeiro | Foto: Luiz Alphonsus, 1979

Como um orixá de origem africana pôde assumir uma aparência tão europeizada? A

resposta para essa questão deve ser buscada no processo de sincretismo que se

iniciou na época dos primeiros contatos europeus com os cultos de Exu na África:

desde então, esse orixá, por seu caráter contraditório e irascível, foi grosseiramente

identificado com o Diabo (VERGER, 2002, p. 76). Analisando a aparência do “Exu” e as

vicissitudes pelas quais ele passou durante sua “vida,” bem com a sua agência

mesmo quando “encarcerado” (BUONO, 2013, p. 236) no Museu da Polícia,

discutiremos a capacidade de reinvenção das culturas de origem africana no Brasil,

mas também como estas mesmas culturas foram marginalizadas pelo racismo que

estruturou a sociedade brasileira durante sua história colonial e pós-colonial.

O “Exu” do Museu da Polícia foi discutido de forma pioneira em alguns estudos da

antropóloga Yvonne Maggie, que são ilustrados por fotografias tiradas em fins dos

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anos 1970 pelo fotógrafo Luiz Alphonsus (MAGGIE, 1992, n/p; MAGGIE, 2005, p. 39;

MAGGIE, RAFAEL, 2013, p. 305-306). Essas fotos provavelmente são os últimos

vestígios existentes da estátua, que foi destruída em um incêndio ocorrido em 1989,

quando o acervo do Museu da Polícia estava instalado na Rua Frei Caneca 162, no

centro do Rio de Janeiro (CORREA, 2009, p. 191).

Seria possível, portanto, situar o presente trabalho dentro do marco metodológico da

Cripto-História da Arte, como definida pelo historiador de arte Victor Serrão. Para

Serrão (2011, p. 11), a Cripto-História da Arte é uma vertente da história da arte

”atenta no papel que as obras já desaparecidas na voragem dos séculos possam ter

assumido em determinadas circunstâncias.” Nesse sentido e de modo mais

específico, o presente texto se encontra embasado em uma análise iconológica, que,

como destaca Serrão (Idem, p. 13), se interliga e complementa a Cripto-História da

Arte.

Uma análise do “Exu” deve necessariamente partir de uma discussão do contexto

museográfico em que ele estava inserido quando foi destruído, ou seja, a coleção do

Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Um dos núcleos mais fascinantes dessa

coleção é formado por objetos apreendidos no começo do século XX pela polícia que,

entre suas tarefas, tinha como incumbência perseguir o que era então chamado baixo

espiritismo - termo que, com frequência, foi encarado como sinônimo de práticas

religiosas afrobrasileiras. Embora a primeira Constituição republicana, promulgada

em 1891, teoricamente assegurasse liberdade de culto, o primeiro código penal

republicano, promulgado em 1890, ratificava a imposição de valores culturais que

potencialmente restringiam as práticas religiosas não-católicas. Nesse sentido, são

significativos os artigos do código que puniam, como “crimes contra a saúde pública,”

o exercício ilegal da medicina (Art. 156), o espiritismo, a magia, os sortilégios (Art.

157) e o curandeirismo (Art. 158). Pesquisando julgamentos de curandeirismo e

charlatanismo no Brasil entre 1900 e 1990, a antropóloga do direito Ana Lúcia

Schritzmeyer (2004) demonstrou que esses “crimes” foram usualmente associados a

práticas religiosas afrobrasileiras.

Diversos objetos ligados a tais práticas, apreendidos em batidas policiais, foram

incorporados ao Museu da Polícia Civil, que, junto com a Escola de Polícia, foi criado

em 1912 com a finalidade de auxiliar nas aulas práticas para a formação de novos

policiais. Em 1940, os objetos religiosos afrobrasileiros do Museu da Polícia foram

listados no inventário do “Museu de Magia Negra da seção de Tóxicos, Entorpecentes

e Mistificações da Primeira Delegacia Auxiliar da Polícia Civil do Distrito Federal.¨

Segundo Cyro Advincula da Silva (Relicário Multicor, 2008, p. 3), foi o reconhecimento

do valor histórico, etnográfico e religioso do “Museu de Magia Negra” que

“fundament[ou] o pedido de preservação e tombamento feito pelo Delegado Silvio

Terra ao recém criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN).”

Com efeito, o processo de tombamento do acervo do “Museu de Magia Negra” é a

primeira inscrição no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico do

SPHAN, datada de 5 de maio de 1938.

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Arthur Valle Vida e morte de uma estátua de “Exu”

Em 1972, junto com outros itens apreendidos pela polícia durante o chamado Estado

Novo, o museu foi instalado no referido prédio na Rua Frei Caneca. Foi nesse local

que, em fins dos anos 1970, o “Exu” foi fotografado por Luiz Alphonsus, no âmbito de

uma pesquisa financiada pela FUNARTE e conduzida por Yvonne Maggie, Márcia

Contins e Patrícia Monte-Mór. Fotos de Alphonsus tiradas na ocasião deixam

entrever a instalação dos objetos do Museu da Polícia, da qual, o sociólogo Alexandre

Fernandes Corrêa recentemente apresentou um diagrama em um de seus estudos

(CORRÊA, 2009, p. 182). A coleção de objetos religiosos afrobrasileiros do Museu da

Polícia era exibida então em meio a itens muito heterogêneos: objetos usados em

falsificação, tráfico de drogas e jogo do bicho; um manequim; armas de fogo;

bandeiras nazistas etc.

Na foto de Alphonsus que mostra o “Exu” de corpo inteiro nesse espaço expositivo

(Fig. 1a) o personagem tem a cabeça curvada em direção ao peito e está envolto por

um manto negro, aparentemente de veludo, tendo uma corda em torno do pescoço.

Ele é mostrado através de um dramático contre-plongée e é iluminado por uma fonte

de luz localizada à sua esquerda, que projeta na parede e no teto sombras medonhas,

dignas de um filme expressionista alemão dos anos 1920. É difícil estimar o tamanho

da imagem apenas a partir dessa foto, mas a sua descrição no inventário do “Museu

de Magia Negra” de 1940 informa que ela era uma “estatueta,” o que nos leva a crer

que tivesse dimensões reduzidas.

Dentro de uma caixa de vidro colocada sobre um pedestal, o “Exu” era exibido como

que “encarcerado” - uma forma de exibição usualmente imposta a objetos tidos como

maléficos, capazes de, por sua agência própria, causar dano às pessoas que os

possuem e/ou com eles entram em contato. Essa ideia era enfatizada ainda mais pela

instalação do Museu da Polícia no prédio da Rua Frei Caneca: ao fundo da foto que

analisamos, é possível ver bandeiras e flâmulas nazistas; além disso, na extrema

direita da foto, podem ser vistas as afiadas pontas de um tridente - um atributo usual

de “Exu” no Brasil, mas também do Diabo na iconografia cristã.

De maneira deliberada, a constelação desses elementos em volta do “Exu” enfatizava

a sua natureza supostamente maléfica. Como recorda Maggie (1992, p. 261), quando

realizava sua investigação no Museu da Polícia “não faltaram informantes para dizer

que [objetos como o “Exu” eram] perigosos, estavam carregados, pesados e era

arriscado desvendar sua origem.” Tais advertências derivavam, em última análise, da

crença em que “os objetos carregam o feitiço, ou seja, o próprio objeto tem o poder de

produzir o mal pretendido pelo feiticeiro. É bom não tocar neles, pois podem provocar

danos incalculáveis” (Idem, p. 161). Porém, mesmo encarcerado em sua caixa de

vidro, o poder do “Exu” não havia se extinguido de todo: em fins dos anos 1970, “as

pessoas iam ao museu fazer a sua ‘fezinha’ e depositavam moedas e flores ao pé das

imagens. Para os visitantes do Museu aquelas imagens [...] ganhavam ainda mais

poder e força por ter pertencido a poderosos feiticeiros” (MAGGIE, 2005, p. 39).

Outra foto do “Exu” tirada por Luiz Alphonsus nos mostra um close-up de sua cabeça

(Fig. 1b). Embora a policromia da estátua apresentasse então sinais de desgaste, é

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Arthur Valle Vida e morte de uma estátua de “Exu”

possível afirmar que o “Exu” do Museu da Polícia era caucasiano e tinha olhos azuis,

aparentemente feitos de contas de vidro. Ele possuía um nariz aquilino, bigodes, uma

barba bifurcada negra e esboçava um sorriso sarcástico. Um capuz negro cobria a

sua cabeça, atrás da qual é possível ver uma protuberância vermelha - muito

provavelmente uma pena. Nessa foto, também se pode ver melhor a corda que

envolvia o pescoço da estátua.

Em nossa opinião, seria difícil estabelecer qualquer relação entre a aparência da

estátua do Museu da Polícia e a suposta aparência de um orixá de origem africana

(cfr. por exemplo: FROBINIUS, 1913; WESCOTT, 1962; CUNHA, 1983, p. 1004-1013;

PARSONS, 1999). Pelo contrário, é necessário frisar o quanto a estátua de “Exu” do

Museu da Polícia se aproxima da iconografia cristã, em particular da do Diabo. Essa

aproximação já estava claramente referida na ficha de identificação que

acompanhava o “Exu” quando ele estava exposto na Rua Frei Caneca e que continha

os seguintes dizeres: “Essa representação de Exu é típica da influência do

Cristianismo nos cultos afrobrasileiros. Todavia, a assimilação é algo oblíqua.

Enquanto o Satã do Cristianismo é descrito como uma entidade indesejável, que foi

expulsa do Paraíso, nos cultos afrobrasileiros Exu é descrito como uma espécie de

embaixador da humanidade junto à corte dos orixás” (MAGGIE, RAFAEL, 2013, p. 305,

tradução livre).

A estátua de “Exu” do Museu da Polícia é, portanto, fruto de um processo sincrético

que começou a tomar forma no século XIX, nos escritos de viajantes europeus, em

especial religiosos cristãos, que entraram em contato com o culto de Exu na África.

No Brasil da passagem para o século XX, Raimundo Nina Rodrigues (1896, p. 166-

167) e João do Rio (2015, p. 19 e 48) também aproximaram Exu do Diabo cristão. A

identificação de Exu com o “senhor dos infernos” cristão alcançou seu ápice no

primeiro quartel do século XX (PRANDI, 2001, p. 51) em modalidades de culto como

“macumba, quimbanda e umbanda [que] representam um sistema unificado e

coerente que se articula em torno do que [o sociólogo David J. Hess] chama um

‘dinamismo sincrético’” (CAPONE, 2004, p. 22).

Até onde pudemos apurar, foi no contexto desses cultos sincréticos, especialmente

em cidades como o Rio de Janeiro, que atributos iconográficos como tridente, chifres,

rabo e cascos passaram a ser associados de maneira sistemática a Exu. Esses

atributos permanecem até os dias de hoje caracterizando boa parte das imagens de

culto do orixá usadas no Brasil, como se pode comprovar facilmente na visita a lojas

de artigos religiosos afrobrasileiros, cuja predileção por exibir estátuas de Exu em

suas entradas possui uma dimensão ritualística (MOURÃO, 2010).

Porém, o “Exu” do Museu da Polícia também se distancia dessa tipologia mais

conhecida de representações do Diabo para se aproximar de outra, mais moderna e

refinada: o Diabo como Mefistófeles. Não por acaso, o “Exu” era referido no inventário

do “Museu de Magia Negra” de 1940 como “uma estatueta representando Mefistofels

(Eixú) [sic], entidade máxima da linha de malei.” Como é bem sabido, Mefistófeles é

um personagem da lenda de Fausto, um erudito que vende sua alma ao senhor do

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inferno em troca de sabedoria e prazer. Segundo o historiador Jeffrey Burton Russell

(1988, pos. 3686), o nome Mefistófeles é “uma invenção puramente moderna, de

origem incerta,” e aparece pela primeira vez em um livro dedicado a Fausto publicado

por um autor anônimo alemão em 1587.

Mefistófeles era um personagem bem conhecido no Brasil desde o século XIX. É

perfeitamente plausível, portanto, a sua adoção em contextos religiosos

afrobrasileiros que, com seus Exus identificados com o Diabo, “exerc[iam] fascinação

até sobre os membros considerados mais ‘evoluídos’ das classes burguesas, que

sempre constituíram a clientela dos cultos afrobrasileiros. Na verdade, no Rio de

Janeiro do fim do século XIX o satanismo já era largamente difundido, como mostram

as reportagens de João do Rio publicadas pela primeira vez em 1904” (CAPONE, 2004,

p. 95-96). Com efeito, o “Exu” do Museu da Polícia bem poderia fazer parte da

ambientação da Missa Negra descrita por João do Rio (2015, 180-191), com um

requinte decadentista comparável ao dos escritos de Joris-Karl Huysmans.

O uso efetivo de uma estatueta de Mefistófeles em um culto afrobrasileiro está

documentado em uma matéria publicada n’O Malho em setembro de 1929, que relata

os resultados da diligência feita pelo delegado Augusto Mendes contra um certo

Alvaro Pessoa, “macumbeiro,” cujo estabelecimento era localizado na Rua São

Bernardo n. 245, bairro do Encantado, Rio de Janeiro. Segundo o autor da matéria,

Walter Prestes (1929, p. 38), entre os objetos então apreendidos pela polícia se

encontrava “uma estatueta de bronze, em várias cores, representando Lúcifer,” que é

reproduzida em duas fotos d’O Malho (Figs. 2a e 2b).

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Arthur Valle Vida e morte de uma estátua de “Exu”

Fig. 2a | “O Lucifer de olhos de fogo...”; Fig. 2b | “Cousas de macumba” In: PRESTES, W.. Linha de Fogo. O

Malho, Rio de Janeiro, ano XXVIII, n. 1411, 28 set. 1929, p. 38

A heterogeneidade das “cousas de macumba” exibidas na Figura 2b nos leva a

concluir que Alvaro Pessoa estava à frente de práticas mágico-religiosas de cunho

acentuadamente sincrético. Todavia, um dos objetos evidencia que essas práticas

tinham de fato uma matriz africana: trata-se de uma caixa onde os fiéis depositavam

seus pedidos, na forma de bilhetes escritos (Fig. 3). Essa caixa é ornamentada com

grafismos semelhantes a pontos riscados de Exu (3333 Pontos Riscados, 2002, p. 61-

70) atualmente usados para evocar ou identificar entidades relacionadas ao orixá em

contextos religiosos afrobrasileiros, especialmente na umbanda (LOPES, 2011, pos.

21066). Embora os pontos riscados ainda demandem uma investigação

historiográfica sistemática, podemos adiantar que são notáveis as suas analogias

com as chamadas “firmas” usadas no Palo Monte, o conjunto de rituais de origem

banto em Cuba. Segundo Bárbaro Martínez-Ruiz (2012), as “firmas” derivam

diretamente do que ele denomina “escritura gráfica kongo” e a origem “kongo” dos

pontos riscados usados no Rio de Janeiro também é defendida em estudos

publicados ainda nos anos 1980 pelo historiador Robert Ferris Thompson (1984, pos.

1637-1687).

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Arthur Valle Vida e morte de uma estátua de “Exu”

Fig. 3a e 3b | JACQUES-LOUIS GAUTIER (1831-c.1868): Mefistófeles, c. 1855 | Bronze, 23 x 25 x 87 cm

Baltimore, The Walters Art Museum

Como bem aponta Prestes, a estatueta da Figura 2a era de autoria do escultor francês

Jacques-Louis Gautier. Não se tratava propriamente de uma representação de

“Lúcifer,” mas sim de Mefistófeles (Fig. 4a e 4b), que fez grande sucesso desde sua

exibição na Exposição Universal de Paris em 1855 e não surpreende que cópias suas

tenham chegado ao Brasil. Sabemos, além disso, que versões policromadas do

Mefistófeles de Gautier eram comuns, podendo ser facilmente encontradas ainda hoje

a venda no mercado de arte. Prestes descreve, ainda, o modo como a estatueta agia

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Arthur Valle Vida e morte de uma estátua de “Exu”

sobre os fieis: “Alvaro Pessoa fez um rombo nas costas da estátua, a fim de introduzir

uma lâmpada vermelha no interior da cabeça. Furados os olhos, a boca e o nariz, a

luz, desde que o feiticeiro faça funcionar uma pilha elétrica, mediante um movimento

despercebido, causa fortíssima impressão aos crentes, que veem no fogo a

manifestação do diabo em seu favor” (PRESTES, 1929, p. 38).

Figs. 4 | “Um dos muitos objetos aprehendidos” In: PRESTES, W.. Linha de Fogo.O Malho, Rio de Janeiro,

ano XXVIII, n. 1411, 28 set. 1929, p. 38

É possível, inclusive, que o Mefistófeles documentado n’O Malho seja a peça que o

Museu da Polícia possuía: a foto da cabeça do “Exu” (Figura 1b) mostra que o sorriso

era aberto na superfície da estátua e que os olhos eram contas de vidro encaixadas

de modo algo improvisado, talvez para encobrir os furos ali existentes. Esses olhos,

bem como a corda no pescoço e a longa capa negra - que fazem lembrar uma

imagem processional de Nosso Senhor dos Passos - poderiam muito bem ter sido

acrescentados pelos idealizadores da instalação do Museu da Polícia no prédio da

Rua Frei Caneca, a fim de aumentar a dramaticidade do “Exu.” Todavia, sem ter

acesso à estátua em questão, essas considerações permanecem como hipóteses.

No contexto de uma sessão que se propõe analisar a “biografia das coisas,” é

interessante ressaltar essa dinâmica de absorção de uma obra de arte produzida para

circular no campo artístico dentro de um contexto religioso afrobrasileiro. Os

historiadores de arte certamente conhecem melhor uma dinâmica inversa - i. e., a

incorporação de objetos de culto em contextos artísticos, especialmente em

instituições museológicas. Se, de fato, um Mefistófeles criado por um artista francês

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Arthur Valle Vida e morte de uma estátua de “Exu”

pôde ser resinificado como um Exu afrobrasileiro, isso revela muito sobre a cultura

visual religiosa afrobrasileira nas primeiras décadas do século passado, quando a

perseguição sistemática dificultava o estabelecimento de empresas voltadas para a

produção industrial ou semi-industrial de objetos de culto.

Mas essa metamorfose de Mefistófeles em Exu é um fenômeno ambivalente de

implicações mais amplas. Por um lado, ela é um exemplo da capacidade de

reconfiguração das culturas africanas transplantadas para o Brasil, pois foi

justamente no contexto de cultos sincréticos que Exu manteve um de seus traços

essenciais: a sua incessante capacidade de transformar a si mesmo. Até os dias

atuais, como sintetiza a antropóloga Stefania Capone (2004, p. 47), foi precisamente

no seio desses cultos que “o deus da África ocidental, o deus dos iorubás e dos fon

(em seu aspecto de Legba), encontr[ou] espaço para existir e para se transformar - o

que constitui um de seus traços característicos.” Ao assumir a aparência de

Mefistófeles - uma versão refinada do Diabo cristão, bem conhecida pelas elites

brasileiras do início do século XX -, Exu demonstrou mais uma vez sua astúcia,

esperteza e capacidade de manipular o destino.

Por outro lado, tal metamorfose deve ser compreendida como um sintoma da

imposição de valores culturais de origem europeia à custa de outros, de origem

africana. Sob essa ótica, o sincretismo que deu origem ao “Exu” da Polícia Civil se

revela, ele próprio, como um fenômeno ambivalente, como um processo que

potencializa a reinvenção de tradições, mas que simultaneamente pode contribuir

para a sua fragmentação e diluição. Isso ocorre especialmente em contextos

marcados pela dominação colonial e pelo racismo, como é o caso da sociedade

brasileira que durante toda a sua história literalmente criminalizou vários aspectos

das culturas afrobrasileiras. A maioria dos fatos relacionados ao “Exu” remete, com

efeito, a dominação e racismo: desde sua transformação em versão moderna do

Diabo cristão, passando por sua captura pela polícia, até o modo aviltante como ele

foi exibido ao público, antes de ser destruído.

O “Exu” foi destruído, mas - cumpre frisar - não esquecido: através dos registros

documentais e fotográficos remanescentes, bem como dos estudos elaborados nas

últimas décadas, a sua agência permanece latente. Com base nisso, o presente texto

pretendeu justamente contribuir para uma reconsideração da posição que obras

como o “Exu” do Museu da Polícia ocupam no cânone da história da arte no Brasil.

Estamos convictos de que a análise dessa estátua é hoje relevante e mesmo urgente,

pois permanecem sem solução os dilemas da sociedade brasileira que ajudaram a

moldar não somente o “Exu,” mas também muitas outras obras ligadas à

afrodescendência no Brasil.

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Arthur Valle Vida e morte de uma estátua de “Exu”

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