murcho (2000, setembro). o que é a filosofia

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  • 7/23/2019 Murcho (2000, Setembro). O Que a Filosofia

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    O que a Filosofia?Desidrio Murcho

    O objectivo destas pginas no apenas responder pergunta dottulo, mas tambm fornecer alguns instrumentos importantes paraquem chega filosofia pela primeira vez. Este texto ser por isso dointeresse, espero, de estudantes, professores e pessoas que queremrealmente saber o que afinal a filosofia.

    Definies

    Os professores e manuais portugueses de filosofia que se vemconfrontados com a pergunta "O que a filosofia?" sentem-segeralmente impotentes para dar uma resposta que se compreenda --acabando muitas vezes por se limitarem a confundir a questo comjogos de palavras, citaes autoritrias e textos obscuros. No nadadisso o que me proponho fazer.

    Para poder responder pergunta "O que a filosofia?" terei de falarprimeiro de definies. Tenho de falar de definies porque quando aspessoas perguntam "O que a filosofia?" esto em geral espera de

    um tipo particular de definio. A definio que as pessoas tm emmente uma definio explcita. Uma definio explcita algo comoisto: "Uma pessoa solteira uma pessoa que no casada". Asdefinies explcitas so, na verdade, raras.

    Ningum sabe definir explicitamente a fsica -- ou, pelo menos, muito difcil faz-lo. Dizer "A fsica a cincia que estuda osfenmenos fsicos" no adianta grande coisa; ns tambm podemosdizer que "A filosofia a prtica intelectual que estuda os problemasfilosficos". A primeira definio no muito satisfatria porque seno soubermos o que a f sica pouco provvel que saibamos o queso realmente fenmenos fsicos e como se distinguem taisfenmenos dos fenmenos no fsicos. A segunda tambm no muito satisfatria porque pouco provvel que quem no sabe o que a filosofia saiba o que so realmente os problemas filosficos e comose distinguem tais problemas dos problemas no filosficos.

    Do facto de sermos incapazes de apresentar uma definio explcitade uma dada noo no se segue que no saibamos do que estamos afalar. Afinal, sabemos do que estamos a falar quando falamos defsica, mas poucos de ns so realmente capazes de definir a fsica. Eo mesmo acontece com imensas noes. Por exemplo, eu no seidefinir o que a cor azul; mas sei reconhecer a cor azul e diferenci-la das outras cores -- apesar de haver casos em que hesito, claro;quando estou perante um azul-esverdeado, no ser antes um verde-azulado? Mas os casos claros so suficientes para eu poder afirmarque sei do que estou a falar quando digo que o cu azul.

    Mas como posso eu saber o que a cor azul ou a fsica se no seidefinir explicitamente nenhuma dessas noes? Bom, posso saber oque a cor azul ou a fsica apesar de no saber definir explicitamente

    nenhuma dessas noes porque as definies, em geral, no so tudoo que h para nos ajudar a compreender as coisas, e porque, emparticular, h outro tipo de definies alm das explcitas.

    Por exemplo, eu aprendi a distinguir os objectos azuis dos objectos deoutras cores sem que ningum me tenha fornecido uma definioexplcita da cor azul. Os psiclogos cognitivos podero estudar empormenor como se d o processo da aprendizagem das cores, masno isso que interessa agora. O que interessa que, seja qual for oprocesso, esse processo no envolveu uma definio explcita.Provavelmente, envolveu apenas aquilo a que em filosofia e lgica sechama "definio implcita": se uma pessoa que no sabe o que acor azul mo perguntar, eu posso apontar para vrios objectos queexibam um azul bem vivo e dizer que esses objectos so azuis. Eununca disse explicitamente o que era o azul. Mas a outra pessoacompreende o que eu quero dizer. isto a definio implcita.

    A definio implcita ocorre quando algum me pergunta o que X e

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    eu, em vez de dizer "X Y" aponto apenas para vrios XX, ou exibovrios contextos diferentes em que o termo "X" usado. Ilustremoseste ltimo tipo de definio implcita: muitas vezes, ao lermos umromance, deparamo-nos com certos termos que desconhecemos.Todavia, pelo contexto, percebemos do que se trata: pode ser, porexemplo, um termo raro que refere certos estados de esprito. A estetipo de definio implcita chama-se "no ostensiva" ou "contextual".Ao outro tipo de definio implcita, a que apresenta objectos que so

    X para explicar o que o termo "X" quer dizer, chama-se "ostensiva".

    Eis uma curiosidade: h por vezes a tendncia para pensar que s asdefinies explcitas so as "verdadeiras" definies. Mas no hqualquer razo para pensar isso. Na verdade, podemos desenvolvermtodos extremamente rigorosos, em lgica, de definies implcitascontextuais. Eu posso apresentar um sistema de lgica em que nuncadefino explicitamente a condicional nem a negao; mas a totalidadedo sistema constitui uma definio implcita extremamente rigorosa dacondicional e da negao -- a condicional e a negao so aquelesoperadores que tm as propriedades que o meu sistema lgico exibe.

    Caracterizaes

    Voltemos fsica e filosofia. Uma definio implcita muito simplesde fsica dizer que a fsica o que os fsicos fazem e o que estescrito nos livros de fsica. E podemos dizer o mesmo relativamente filosofia. E, na verdade, esta a melhor definio que podemos ter defsica ou de filosofia: a prova do pudim, como se diz por vezes,consiste em com-lo. A melhor maneira de saber o que a f sica estudar fsica; a melhor maneira de saber o que a filosofia estudarfilosofia.

    Mas isto injusto. Como pode algum decidir se est interessado emfsica ou em filosofia sem antes saber qualquer coisa sobre isso? Teruma pessoa de estudar fsica ou filosofia durante 2 anos para depoissaber se realmente estava interessado? No poderemos dizer nada partida que ajude as pessoas? Teremos de as mandar ler manuais defsica ou de filosofia para poderem perceber do que tratam tais coisas?

    Claro que no. Isto seria ridculo.

    Apesar de uma definio implcita de filosofia ou de fsica ser a melhormaneira de ficar a saber realmente o que a fsica ou a filosofia,podemos no entanto destacar algumas caractersticas maisimportantes destas disciplinas e explicar, de forma no exaustiva, emque consiste o estudo da fsica e da filosofia. Chama-se a isto"caracterizao". Ns fazemos isto muitas vezes, quando no somoscapazes de definir algo, nem explcita nem implicitamente.

    Por exemplo, eu no sei definir explicitamente o estilo de uma grandeescritora como Marguerite Yourcenar; e se estiver a falar com umamigo posso no ter um livro desta autora mo para lhe mostraralguns pargrafos e pginas memorveis. Mas posso caracterizar oestilo dela. Posso destacar algumas das caractersticas maisimportantes do seu estilo. Claro que isto no ser uma definioporque muitos outros escritores podero ter algumas destascaractersticas ou mesmo todas. Mas estas caractersticas de algummodo conseguiro dar uma ideia do que o estilo de MargueriteYourcenar, sem que o meu amigo tenha de ler a obra completa daautora e sem que eu tenha de lhe ler alguns dos seus melhorestrechos.

    E isso que vou fazer para responder nossa pergunta. O que afilosofia? A minha resposta ir consistir em apresentar algumas dascaractersticas mais importantes da filosofia. Mas vou fazer mais:darei vrios exemplos de problemas filosficos. Assim, com umacaracterizao e recorrendo a exemplos, espero dar uma boa ideia doque a filosofia. Acresce a isso que estarei ao mesmo tempo afornecer ao leitor alguns instrumentos filosficos bsicos -- como asnoes de "definio" e "caracterizao" que j apresentei -- que lhe

    permitiro dar os primeiros passos na filosofia.

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    Teorias e afirmaes

    Das vrias actividades humanas, como a religio, a arte, a cincia e afilosofia, as duas ltimas dedicam-se a resolver problemas. A fsicaocupa-se dos problemas fsicos, a matemtica dos problemasmatemticos e a filosofia dos problemas filosficos. Qualquer destasdisciplinas apresenta teorias, que pretendem resolver os problemas deque se ocupam. A fsica apresenta teorias fsicas, a matemticateorias matemticas e a filosofia teorias filosficas. Chama-se porvezes "teses" s teorias filosficas; podemos tambm chamar-lhes"doutrinas". No importa, desde que saibamos do que estamos afalar.

    Mas do que estamos ns a falar quando falamos de teorias? O que uma teoria? Bom, uma vez mais, talvez no seja possvel ofereceruma definio explcita de "teoria". Mas pelo menos possvelapresentar um conjunto de caractersticas salientes. A esto elas: emprimeiro lugar, as teorias no podem confundir-se com as coisas nemcom os fenmenos. A teoria da relatividade de Einstein no umfenmeno fsico; a teoria de Einstein procura explicar vriosfenmenos fsicos. Uma teoria constituda por afirmaes. Mas o quequer dizer "afirmao"?

    Uma afirmao algo como isto: "Nenhum objecto pode viajar maisdepressa do que a luz." Promessas, perguntas e exclamaes no soafirmaes: "Prometo dizer toda a verdade", "Quem foi Aristteles?" e"Fecha a porta!" no so afirmaes. Uma afirmao o que umafrase declarativa com sentido nos diz. Uma frase como "O Joo boapessoa" diz-nos que o Joo boa pessoa. Claro que h frasesdeclarativas que no tm sentido: "As dores de cabea so muitosalgadas" uma frase declarativa, mas no parece realmente afirmarcoisa alguma. Em filosofia, dizemos que uma frase destas no temsentido ou absurda -- uma frase que no tem qualquer valor deverdade. No se trata apenas de ns no sabermos qual o valor deverdade que ela tem -- no se trata apenas de no sabermos se afrase verdadeira ou falsa. mais forte do que isso. A frase no temvalor de verdade algum. muito diferente da frase "H gua emMarte" que uma frase verdadeira ou falsa, apesar de ningum saberse verdadeira ou falsa.

    Uma das caractersticas de qualquer actividade -- intelectual ou no -- o facto de dar um significado especial e muito preciso a certaspalavras ou expresses. Isso acontece na cincia, nas artes, nareligio e em vrias actividades profissionais. Isto no quer dizer queestejamos a reformar a linguagem, ou a usar a linguagem de umaforma falaciosa e propositadamente confusa -- apesar de isso porvezes acontecer realmente na m filosofia. Isto acontece na mfilosofia porque as pessoas que no tm a devida preparao filosficatm tendncia para comear a usar as palavras da filosofia semperceberem bem o que esto a dizer; e comeam a falar do Ser e doActo e da Potncia e da Metafsica, etc., etc., apesar de terem apenasuma ideia plida e muitas vezes errada do que essas palavras queremdizer. Para estas pessoas, a filosofia no passa de um jogo que se fazcom palavras que mal se conhecem. Isto, claro, no seno umaplida imagem do que a filosofia.

    Em suma: o uso tcnico de certos termos em filosofia um recursocomum a outras actividades e que nos ajuda a fazer melhor o nossotrabalho -- mas implica da nossa parte que sejamos capazes dedominar o sentido especial em que usamos esses termos, se noquisermos que a nossa actividade seja uma caricatura da verdadeirafilosofia. Por exemplo, em fsica, o termo "massa" tem um significadobastante preciso e que no coincide com o significado que, no dia-a-dia, damos a esta palavra. Em filosofia, os termos "absurdo" e"sentido" so usados de um modo ligeiramente diferente do habitual.No dia-a-dia, se eu afirmar uma contradio, como "Marco Aurlio foium filsofo e no foi um filsofo", a nossa primeira reaco pensarque estamos a querer dizer que, de um certo ponto de vista erelativamente a certos aspectos, Marco Aurlio foi um filsofo, masque de outros pontos de vista e relativamente a outros aspectos,

    Marco Aurlio no foi um filsofo. Mas se insistirmos na nossaafirmao, dizendo que no isso que queremos dizer, mas antes queele foi e no foi um filsofo, independentemente dos pontos de vista edos aspectos que tivermos em mente, a nossa reaco natural

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    exclamar "Isso absurdo!" ou "Isso no faz sentido!".

    Usamos estas mesmas expresses para qualificar afirmaesclaramente falsas. Se eu disser que a gua do mar ptima paramatar a sede, a reaco a mesma: "Isso absurdo!" ou "Isso nofaz sentido". Do ponto de vista do uso tcnico que se faz em filosofiado termo "sentido" ou "absurdo", uma afirmao s no tem sentido(isto , s absurda) quando no susceptvel de ter valor deverdade. Assim, a afirmao "Marco Aurlio foi um filsofo e no foium filsofo" no uma afirmao absurda: uma afirmao comsentido. uma afirmao com sentido visto que falsa -- na verdade, necessariamente falsa. Dado que falsa, tem um valor de verdade;dado que tem um valor de verdade, tem sentido. O mesmo acontececom a afirmao "A gua do mar ptima para matar a sede".

    Do ponto de vista popular ou comum, dizemos que uma afirmao absurda quando , do ponto de vista conversacional, intil. Ora, asfrases necessariamente falsas e as frases obviamente falsas so,geralmente, inteis do ponto de vista conversacional -- isto , noconstituem uma contribuio construtiva para uma conversa. Da quetenhamos tendncia para pensar que essas frases no tm sentido.

    As frases que nos interessam so as que exprimem afirmaes

    susceptveis de serem verdadeiras ou falsas, ainda que no saibamosse so verdadeiras ou falsas -- muitas vezes, o objectivo mesmotentar descobrir se so verdadeiras ou falsas. Por exemplo, no sesabe se Deus existe ou no -- esta uma questo filosficatradicional. Mas s faz sentido discutir esta questo se acharmos quea frase "Deus existe" exprime realmente uma afirmao; se noexprime uma afirmao nada h para discutir, porque a frase nopode ser verdadeira nem falsa.

    Mas no ser que as frases exprimem muitas outras coisas, alm doque exprimem literalmente? Claro que sim. A frase "Deus existe" podeexprimir um anseio ou esperana, ou pelo contrrio uma posioirnica perante o mal que grassa no mundo. As frases podem exprimirmuitas coisas. Mas na discusso filosfica interessa-nos tambm o seusentido literal, e no apenas os seus sentidos laterais. Fugir do sentido

    literal das frases e pretender que s os sentidos laterais soimportantes uma viso redutora da filosofia que contraria a tradiofilosfica e que em nada contribui para a discusso clara, criativa ecrtica dos problemas da filosofia.

    O facto de ns precisarmos de saber o que exprimem literalmente asfrases da filosofia obriga-nos a evitar tanto quanto possvel asambiguidades e as vaguezas. Uma frase ambgua quando exprimemais de uma afirmao. Se eu disser "A filosofia consiste na suahistria" posso estar querer afirmar duas coisas completamentediferentes: ou que o trabalho filosfico consiste apenas em fazer ahistria do que se fez; ou que o trabalho filosfico que se faz ficainscrito na histria. Para discutirmos ideias -- em filosofia, como emtudo o resto -- muito importante a preciso na linguagem: temos deevitar tanto quanto possvel as ambiguidades.

    Por vezes, o discurso "filosfico" de algumas pessoas cultiva aambiguidade, por acharem que mais "rico". Mas isto uma iluso. Averdadeira riqueza discursiva e filosfica resulta do valor das ideiasdefendidas e no do facto de no se saber bem o que se est adefender porque se defendem vrias coisas, muitas vezes opostas, aomesmo tempo. Pelo contrrio, este modo de proceder empobrecedorporque redutor -- reduz a filosofia a um jogo de palavras. A filosofiano um jogo de palavras; a filosofia no um jogo. A uma pessoasem preparao filosfica, a filosofia pode parecer um jogo, mas isso s porque no se tem preparao filosfica; se eu ler um texto demedicina do sculo XVI, porque nada sei de medicina, tambm me vaiparecer que se trata apenas de um jogo de palavras inconsequente.Mas isso uma iluso.

    Alm da ambiguidade, temos tambm de evitar a vagueza. Uma frase

    vaga quando no se sabe que afirmao est a exprimir. Issoacontece realmente muitas vezes em filosofia, e isso pode dar umavez mais s pessoas a ideia de que a vagueza uma propriedade a

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    cultivar em filosofia. Uma vez mais, isso resulta de no se ter umapreparao filosfica adequada e, uma vez mais, isso umaperspectiva redutora da filosofia. Se queremos pensar, reflectir e sercrticos, temos de saber sobre o que estamos exactamente a pensar.Mas se a frase que temos perante ns for de tal modo vaga que noconseguimos saber o que quer essa frase dizer exactamente, ento adiscusso no pode prosseguir.

    Em filosofia h uma exigncia de clareza. A ambiguidade e a vaguezaso incompatveis com a clareza. Logo, devemos evitar a ambiguidadee a vagueza. Em filosofia h tambm uma exigncia de honestidade.Mas a ambiguidade e a vagueza no so compatveis com ahonestidade. Se eu nunca me comprometer realmente com nenhumaafirmao porque o que digo sempre vago e ambguo, a minhaposio ser sempre irrefutvel. Mas a honestidade exige queapresentemos as nossas ideias de forma a que as outras pessoas aspossam avaliar criticamente. Logo, devemos ser claros.

    Muito bem. J compreendemos melhor o que quer dizer "afirmao".Uma afirmao o que expresso por uma frase declarativa quetenha sentido ou valor de verdade (independentemente de nssabermos se a frase verdadeira ou falsa). Fala-se por vezes deproposies em vez de afirmaes. H uma diferena subtil entre as

    duas coisas, havendo at filsofos que apostam forte contra a ideia eque existem proposies. Mas essa diferena no nos interessa agora.Basta-nos perceber que duas frases diferentes podem exprimir amesma afirmao ou proposio: as frases "Portugal um pas pobre"e "Portugal is a poor country" exprimem a mesma afirmao ouproposio. E uma mesma frase pode exprimir diferentes afirmaes:a frase "Hoje choveu em Lisboa" pode exprimir a afirmao ouproposio de que no dia 30 de Junho de 2000 choveu em Lisboa, sefor proferida nesse dia, ou pode exprimir a afirmao ou proposiode que no dia 3 de Dezembro de 1999 choveu em Lisboa, se forproferida nesse dia.

    Consistncia e verdade

    Agora compreendemos melhor o que uma teoria, porquecompreendemos melhor o que uma afirmao. Uma teoria constituda por um conjunto de afirmaes. Mas nem todos osconjuntos de afirmaes so teorias. As teorias so conjuntos deafirmaes que procuram resolver problemas ou explicar fenmenos.Uma vez que quaisquer conjuntos de afirmaes tm certaspropriedades lgicas, as teorias tambm tm essas propriedades.

    Uma dessas propriedades a consistncia. A consistncia umapropriedade de duas ou mais afirmaes. Duas ou mais afirmaesso consistentes quando podem ser todas verdadeiras. No quer dizerque sejam realmente todas verdadeiras; significa apenas que podemser todas verdadeiras -- mas talvez sejam todas falsas. Eis umconjunto de afirmaes consistentes:

    Portugal um pas africano.Scrates era um agricultor tunisino.

    Dificilmente quereramos que estas duas afirmaes constitussemuma teoria, claro. So afirmaes tolas. Mas o que nos importa agora que estas duas afirmaes so consistentes -- apesar de seremambas falsas. J se v que o que interessa nas teorias no apenasque elas sejam consistentes; interessa que sejam verdadeiras.

    Por vezes diz-se que uma teoria "consistente com os factos". Isto,claro, uma forma popular de falar. Podemos falar assim, desde quecompreendamos bem que, a rigor, uma teoria no pode serconsistente com os factos porque os factos no so afirmaes e aconsistncia uma propriedade apenas de afirmaes. O que se querdizer quando se diz que uma teoria consistente com os factos outra coisa; quer-se dizer que essa teoria consistente com asdescries dos factos. Por exemplo, o Holocausto foi um facto -- umfacto cujo horror difcil de exprimir. Mas no se pode confundir ofacto em si com uma descrio do facto.

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    J vimos que a consistncia de uma teoria no garante a sua verdade;mas nem no sentido popular de "consistncia com os factos" aconsistncia de uma teoria garante a sua verdade. Vejamos porqu.

    Pensemos na seguinte afirmao: "Os animais no podem terdireitos". Esta afirmao com certeza consistente com os factos. Isto: no h descries de factos que sejam inconsistentes com estaafirmao. Mas da no se segue que esta afirmao seja verdadeira.Uma maneira fcil de verificar isso pensar na afirmao contrria:"Os animais podem ter direitos". Como tambm no h descries defactos que sejam inconsistentes com esta afirmao, tambm ela teriade ser verdadeira, se tudo o que bastasse para a verdade fosse a tal"consistncia com os factos". Mas nesse caso teramos duasafirmaes contrrias que seriam verdadeiras. Mas isto absurdo,porque se duas afirmaes so contrrias, no podem ser ambasverdadeiras. Logo, no verdade que a "consistncia com os factos"garanta a verdade das teorias.

    Algumas pessoas tm tendncia para pensar que tudo o que conta nasteorias filosficas serem consistentes. Mas j vimos que aconsistncia de uma teoria no garante a sua verdade. Quem pensaisto est a fazer uma confuso, que resulta talvez do facto de, no casodas teorias das cincias empricas, a "consistncia com os factos"

    garantir a verdade de uma teoria. Mas, precisamente, a filosofia no uma cincia emprica. Mas o que quer isto dizer?

    O carcter conceptual da filosofia

    Pensemos outra vez numa afirmao como "Nenhum objecto podeviajar mais depressa do que a luz". As afirmaes das cinciasempricas so afirmaes do gnero desta: afirmaes que se referemao mundo que podemos observar pelos sentidos ou que podemosinferir a partir de observaes e medies complicadas realizadas cominstrumentos como um espectrmetro ou um radiotelescpio. Mas pormais que faamos medies e observaes no iremos descobrir se osanimais tm direitos, nem se Deus existe, nem se h nmeros.

    Ao contrrio da fsica e da biologia, a filosofia no tem um carcteremprico; um estudo conceptual. Neste aspecto, a filosofia maisparecida com a matemtica, que tambm no uma disciplinaemprica. Mas a filosofia distingue-se da matemtica por vriasrazes. Em primeiro lugar, no dispe de mtodos formais dedemonstrao, como a matemtica; em segundo lugar, no se ocupado tipo de problemas de que se ocupa a matemtica. Mas de que tipode problemas se ocupa afinal a filosofia?

    Uma vez mais, o melhor dar exemplos e apontar algumas dascaractersticas mais salientes dos problemas filosficos tpicos.Pensemos, por exemplo, em Deus. Os cristos tm uma dadaconcepo de Deus, os muulmanos outra e os hindus outra ainda. Eh muitas mais, tantas quantas as religies. As religies partem decertas verdades reveladas pelos seus profetas e inscritas nos seuslivros sagrados; procuram descobrir a verdadeira natureza de Deus eencontrar o caminho da salvao. Mas nada disso so problemasfilosficos. A filosofia no cultiva dogmas, como a religio; a filosofiafaz o contrrio: procura destruir dogmas. Os cristos, muulmanos ehindus, partem do princpio de que existe Deus. A filosofia pergunta:mas que razes temos para pensar que existe Deus? E, admitindo queexiste um deus sumamente bom e criador, omnisciente eomnipotente, como se explica a existncia do mal? A filosofia faz asperguntas difceis que muitas pessoas gostariam de calar, e queefectivamente tm muitas vezes conseguido calar ao longo da infelizhistria humana. Podemos dizer, poeticamente, que a filosofia umgrito de liberdade contra a opresso do dogma. E nisto, uma vezmais, a filosofia semelhante cincia.

    O que distingue os problemas da filosofia dos problemas da cincia oseu carcter conceptual, a sua generalidade e a inexistncia de

    fronteiras precisas. Os problemas da matemtica so tambmbastante gerais e em grande medida conceptuais -- mas tmfronteiras muito precisas. No se pode determinar matematicamente

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    se os animais tm direitos; no se pode determinar matematicamentese Deus existe -- e nem sequer se pode determinar matematicamentese os nmeros existem independentemente de ns. Qualquerproblema com suficiente generalidade, de carcter conceptual e para asoluo do qual no exista qualquer cincia pode ser um problemafilosfico. Os problemas da matemtica tm fronteiras muito claras:tm de poder ser resolvidos pelos mtodos formais da matemtica.Em filosofia, pelo contrrio, no h mtodos formais para resolver

    problemas.

    Irei de seguida dar alguns exemplos de problemas tpicos da filosofia.Antes, porm, quero esclarecer desde j uma confuso que costumasubsistir na prtica do ensino da filosofia no nosso pas. Essa confuso a seguinte. H certas correntes irracionalistas em filosofia, surgidasno sculo XIX, que defenderam o fim da filosofia -- falamdramaticamente da "morte da filosofia". O que isto quer dizer oseguinte: estas pessoas no acreditam que seja possvel alcanarqualquer tipo de resultados interessantes pela reflexo filosfica. como se estivessem intoxicadas pelo positivismo do sculo XIX, queafirmava que um dia todo o conhecimento seria matemtico e precisocomo a fsica. Uma vez que a filosofia no de modo algum como afsica, essas pessoas pensaram que a filosofia era um projecto semfuturo.

    Esta ideia, como todas as ideias filosficas, deve ser discutida sclaras, com a nossa inteligncia crtica, em vez de sersubterraneamente transmitida aos estudantes como se fosseconsensual. E claro que no nada consensual. Nunca se produziutanta filosofia de tanta qualidade como hoje em dia; na verdade,produziu-se mais filosofia nos ltimos 60 anos do que em toda ahistria da filosofia. caso para dizer que a filosofia est bem viva.

    Mas eu no quero discutir aqui esta ideia da "morte da filosofia", quepaira sobre os manuais e professores do ensino secundrio e superiorno como uma ideia claramente articulada, mas como um pressupostoturvo do qual no se tem bem conscincia. O que quero fazer mostrar como esta ideia ajuda a lanar a confuso, desvirtuando afilosofia e transformando-a num parente pobre de disciplinasrespeitveis como a psicologia, a sociologia, a antropologia ou os

    estudos literrios. Se temos a filosofia como profisso e achamos quea filosofia morreu, deveramos pelo menos ser consequentes eabandonar completamente a nossa profisso. Ao invs, o que severifica que se cultivam as especulaes antropolgicas,sociolgicas, etc., sem qualquer base cientfica, ou que se transformaa filosofia em crtica literria de m qualidade.

    Uma das caractersticas da filosofia o facto de no ser umainvestigao emprica, como j sublinhei; para saber se os animaistm direitos ou se Deus existe, no tenho de fazer trabalho cientficode campo, no tenho de fazer experincias em laboratrios, nemtenho de elaborar inquritos, nem tenho de fazer estatsticas; limito-me a pensar. Posso ter de usar dados empricos fornecidos pelascincias; mas no compete filosofia fazer o levantamento dessesdados.

    Este modo de proceder tradicional da filosofia, que resulta da suanatureza conceptual, acaba por contribuir para pseudo-investigaesde quem no sabe distinguir os problemas susceptveis de seremestudados pela filosofia dos problemas que s com algumainvestigao emprica podem ser abordados de forma respeitvel.

    Repare-se na seguinte distino crucial. Todos ns temos opiniessobre vrios aspectos do mundo que nos rodeia. Eu vou a um pasestrangeiro e formo uma ideia intuitiva sobre o carcter das pessoasdesse pas, comparando-as com as pessoas do meu prprio pas. Aformao deste tipo de opinies inevitvel; mas no se podeconfundir isto com cincia. Ningum pode dizer, s porque visitoudurante 3 anos a ndia, que os indianos so em geral mais honestosdo que os portugueses. Este resultado no oferece quaisquergarantias; suficiente para animar conversas de caf com os nossosamigos; mas basear um estudo srio sobre estas observaes nosistemticas uma tolice.

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    Se temos de basear uma reflexo filosfica sobre dados empricos,esses dados empricos tm de ser fidedignos; no podem resultar damera observao de senso comum. Isso apenas m sociologia oum psicologia. Isso no um estudo srio e honesto. O que irnico que abundam os problemas filosficos em que podemos reflectirsem termos de usar informao emprica e s as doutrinas da "morteda filosofia" afastam as pessoas desses problemas -- fazendo-asprocurar novos problemas que, no entanto, no podem ser seriamente

    estudados sem usar os mtodos empricos da sociologia ou dapsicologia.

    Outra consequncia desastrosa das doutrinas da "morte da filosofia" a ideia de que a filosofia uma arte. Uma vez mais, podemosdefender esta ideia filosfica -- mas s claras, como algo que tem deser criticamente avaliado, e no subterraneamente, como algo queest sempre suposto e latente mas que nunca se manifesta.

    claro que qualquer pessoa pode fazer o que quiser -- e se quiserescrever textos sobre temas filosficos com o objectivo de produzirobras literrias, ningum deve interferir. Mas preciso compreenderque esta ideia no o projecto original da filosofia; o projecto originalda filosofia no era produzir literatura, mas sim explicaes quesatisfaam a nossa curiosidade sobre os aspectos mais gerais da

    nossa estrutura conceptual. No s redutor querer encarar a filosofiaunicamente como uma forma de literatura, como algo que renunciaao projecto original de pessoas como Plato, Aristteles, Descartes,Hume, Kant ou Frege.

    Alis, tambm estranho que as pessoas que em geral encaram afilosofia como uma forma de literatura, gostam depois de interpretarfilosoficamente as artes. estranho que possamos escrever filosofiaartisticamente e que possamos interpretar filosoficamente as artes,mas que no possamos interpretar as artes artisticamente nemescrever filosofia filosoficamente. Claro que perante os artistas umapessoa com formao filosfica consegue impressionar, e perante osfilsofos os ademanes "literrios" podem ter o seu efeito. Mas oobjectivo de um estudioso no deveria ser impressionar, mascontribuir modestamente para o avano e transmisso doconhecimento.

    Os problemas da filosofia

    Eis, ento, alguns exemplos de problemas da filosofia. A filosofiadesenvolveu ao longo da sua vida milenar vrias disciplinas distintas.Por vezes, alguns problemas surgem em mais do que uma disciplina.Mas bom ter uma ideia dos diferentes tipos de problemas estudadospor algumas disciplinas da filosofia.

    Comecemos pela tica. A tica no estuda os preconceitoscomportamentais -- preconceitos como a ideia catlica de que oshomossexuais no podem casar e que ningum deve ter relaessexuais antes do casamento. A tica nada tem a ver com este tipo decoisas. Este tipo de coisas emana de um certo cdigo religioso decomportamentos, que pouco se relaciona na verdade com a tica -- apenas uma manifestao de uma certa viso religiosa do mundo.Faz-se por vezes uma distino entre "moral" e "tica" querendoreservar para esta ltima a acepo filosfica, ao passo que a primeirase referiria aos costumes sociais. Mas esta distino artificiosa e caiuem desuso desde h muito tempo.

    A tica ocupa-se de vrios tipos de problemas bastante distintos. Osmais fceis de compreender so os da tica aplicada, que se ocupa deproblemas como o aborto e a eutansia. Ser o aborto um mal quedeve ser proibido? Repare-se que no se trata de saber se o aborto um mal aos olhos de Deus ou do Papa ou de qualquer confissoreligiosa; trata-se de saber se o aborto , eticamente, e luz danossa razo, algo que deve ser proibido, tal como o assassnio proibido independentemente das religies. O que ocupa a reflexo

    filosfica no apenas a tentativa de dizer "Sim, o aborto um mal"ou "No, o aborto no um mal". O que distingue a reflexo filosfica a fundamentao racional: os argumentos que sustentam as nossas

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    posies. O que importa so os argumentos que se apresentam paradizer que sim ao aborto ou para dizer que no. O trabalho da filosofiaconsiste em estudar esses argumentos e avali-los criticamente. Afilosofia algo que cada um faz com a sua prpria cabea, em dilogocrtico com os outros. A filosofia no consiste em ler textos e"comentar" o que esses textos dizem. A filosofia consiste em pensarnos mesmos problemas que so tratados nesses textos, o que muito, muito diferente.

    Mas a tica ocupa-se de outras questes menos bvias. Por exemplo,o que quer dizer "Matar inocentes um mal" ou "No devemos matarinocentes"? O que quer realmente dizer a palavra "dever"? Este tipode problema enfrentado pelo que se chama "metatica". Ametatica ocupa-se da questo de saber qual a natureza do juzotico. a rea mais geral e conceptual da tica. H vrias teorias quetentam responder a este problema, algumas delas tecnicamentebastante complexas e precisas.

    A epistemologia outra disciplina da filosofia. Neste caso, trata-se deinvestigar vrios problemas relacionados com o nosso conhecimento.Uma vez mais, o carcter conceptual da filosofia obriga a distinguir osproblemas filosficos do conhecimento dos problemas psicolgicos ousociolgicos do conhecimento. Por exemplo, a psicologia cognitiva tem

    vindo a conduzir vrias investigaes sobre o modo como os sereshumanos estruturam vrios aspectos do conhecimento. Piaget, porexemplo, procurou estabelecer etapas diferenciadas nodesenvolvimento cognitivo dos seres humanos. Os seus estudos estohoje ultrapassados por investigaes mais recentes, mas tanto osseus estudos como os estudos mais recentes no so estudosfilosficos nem tm interesse para a filosofia. Os problemas estudadospela epistemologia ou pela filosofia do conhecimento no se referemde modo algum ao fenmeno do conhecimento tal como ele ocorrerealmente nos seres humanos; os problemas da epistemologia e dafilosofia do conhecimento so mais gerais e de carcter conceptual.

    Um dos problemas da epistemologia mais simples de apresentar este: o que o conhecimento? O conhecimento distingue-se da meraopinio porque o conhecimento factivo -- isto , no podemosconhecer falsidades, apesar de podermos pensar falsidades. Mas o

    que realmente o conhecimento? No ser trata apenas de opinio,porque as opinies podem ser falsas mas o conhecimento no. Serento que o conhecimento apenas a opinio verdadeira? Mas serque podemos dizer que os atomistas gregos sabiam realmente quetudo composto por tomos? Eles tinham realmente essa opinio, eessa opinio veio a verificar-se sculos depois ser verdadeira; mas, dealgum modo, parece que eles no sabiam realmente que tudo eracomposto de tomos -- apenas tinham essa opinio que, por acaso,acabou por coincidir com a realidade. O que est em causa nesteproblema a definio de conhecimento -- algo que no podedeterminar-se recorrendo a estudos de natureza emprica.

    Outro problema importante na rea da epistemologia a questo dajustificao do conhecimento -- perante um fragmento particular depretenso conhecimento, como podemos saber que se trata realmentede conhecimento e no de uma iluso? Por exemplo, todos pensamosque o mundo exterior independente de ns; mas que razesteremos para pensar isso? E no haver razes para pensar ocontrrio?

    Reserva-se por vezes o termo "epistemologia" para a filosofia doconhecimento cientfico, usando-se o termo "gnosiologia" para afilosofia do conhecimento em geral. Mas esta terminologia no usada hoje em dia nas grandes universidades do mundo inteiro, nemcorresponde realidade do que se estuda quando se estudaepistemologia. A epistemologia o estudo filosfico de vriosproblemas relacionados com o conhecimento -- independentementede se tratar de conhecimento cientfico ou de outro qualquer tipo deconhecimento. a filosofia da cincia que se ocupa de vriosproblemas relacionados com o conhecimento cientfico.

    Outra disciplina filosfica a metafsica, que se ocupa de outro tipo deproblemas. Que tipo de coisas existem no mundo? Admitindo queexistem rvores e mesas e pessoas, ser que os nmeros tambm

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    existem? E as cores? E os conceitos, como a justia? Quantos tipos deexistncia h, se h mais do que um? E quais so as categorias maisgerais da realidade? Como poderemos pensar a identidade? Se aolongo de 10 anos formos substituindo as tbuas todas de um bote demadeira, o bote de hoje ser ainda o mesmo do que o bote de h 10anos? Mas se no o mesmo, para onde foi o bote de h 10 anos equando deixou ele de existir?

    claro que h muitos, muitos mais problemas da filosofia. Osproblemas da filosofia tm esta caracterstica em geral: no se podemresolver recorrendo aos mtodos estabelecidos das cincias eimplicam um uso forte da argumentao. Os problemas da filosofiainterpelam-nos e exigem-nos argumentos. claro que eu acho que omundo exterior existe independentemente de mim; mas como possoeu justificar esta opinio? A filosofia um pedido sistemtico dejustificaes e essas justificaes so argumentos -- argumentos decarcter conceptual e no argumentos de carcter emprico.

    Argumentos

    Mas o que um argumento? Bom, um argumento uma forma dejustificarmos uma afirmao. E um argumento um conjunto de

    afirmaes. Um conjunto de tal modo organizado que algumas dessasafirmaes fundamentam a afirmao que se quer defender. Porexemplo, eu posso defender que a vida no faz sentido com oseguinte micro-argumento:

    A vida no faz sentido. Se fizesse sentido, Deus existiria. MasDeus no existe.

    Este argumento tem uma caracterstica que muito interessa aosfilsofos: vlido. O que um argumento vlido? Repare-se: no hqualquer maneira de as premissas deste argumento seremverdadeiras e a sua concluso falsa. As premissas so "Se a vidafizesse sentido, Deus existiria" e "Deus no existe". E a concluso "Avida no faz sentido". No difcil de ver que impossvel aspremissas serem todas verdadeiras e a concluso falsa. Significa isto

    que estabelecemos assim to facilmente a concluso filosfica de quea vida no faz sentido? Claro que no. Ainda mal comemos otrabalho crtico da filosofia. O nosso trabalho s comea quando nosperguntamos: ser este argumento razovel? Bom, j sabemos que vlido -- mas isso quer dizer apenas que impossvel as premissasserem verdadeiras e a concluso falsa. Mas sero as premissasverdadeiras?

    Agora comeamos a perceber que este argumento, s por si, ummau argumento. Isto acontece porque as duas premissas so pelomenos to disputveis como a concluso. Se no temos mais razespara aceitar as premissas de um argumento do que a sua concluso,ento o argumento mau, ainda que seja vlido. Ora, que razestemos para pensar que Deus no existe? E que razes temos parapensar que se a vida f izesse sentido, Deus existiria? No ser possvelque a vida faa sentido apesar de no existir Deus?

    Este argumento poderia ser a sntese de um argumento mais vasto,argumento no qual se defendesse cada uma das suas premissascuidadosamente. Nesse caso, este argumento seria to bom quanto osargumentos usados para defender cada uma das suas premissas.

    E agora j estamos a ver duas caractersticas fundamentais dafilosofia: o seu carcter eminentemente argumentativo e o facto de aargumentao filosfica raramente conduzir rapidamente a resultadosconsensuais. Este ltimo aspecto produz por vezes resultadosinfelizes.

    Se comearmos a falar filosoficamente com um amigo sobre Deus eele acreditar que Deus existe, rapidamente ele comea a ficar

    desesperado: existem tantos argumentos contra a existncia de Deus!E parecem todos to poderosos! Mas, por outro lado, tambm existemmuitos argumentos a favor de Deus! E parecem igualmente

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    poderosos! Que fazer?

    A tentao popular dizer: "No se pode saber se Deus existe ou noe a filosofia intil porque nunca se consegue decidir nada". Esta uma reaco compreensvel, mas errada. claro que nem todas aspessoas tm vocao para a filosofia e portanto nem todas as pessoasapreciam a discusso pormenorizada, sistemtica e consequente queconstitui a tarefa dos filsofos. Mas da a dizer que a filosofia nuncaconseguir concluir nada bom, a reaco filosfica normal, mastalvez irritante, perguntar: "Mas como que sabes que a f ilosofianunca vai conseguir concluir nada? Isso parece pelo menos to difcilde provar como conseguir provar que Deus existe ou que Deus noexiste!"

    J Plato tinha alertado para esta dificuldade: as pessoas tm certasopinies sobre o mundo que as rodeia e a filosofia coloca essasopinies em causa, o que desconfortvel. natural que as pessoasresistam, um pouco assustadas, discusso filosfica -- que esta um pouco vertiginosa. A discusso filosfica exige um grande apego verdade -- um apego que tem de ser maior do que o apego pelo nossoprprio conforto espiritual, feito de verdades caseiras acriticamenteaceites.

    Tambm neste aspecto a filosofia se aproxima bastante da cincia.Pessoas como Newton e Galileu, pessoas como Einstein e Bohr,procuraram continuar a pensar quando todo o pensamento pareciaintil e quando nenhumas garantias de sucesso havia. No tempo deNewton havia vrias teorias diferentes para explicar a queda doscorpos e a gravitao dos planetas e qualquer pessoa que comeassea estudar essas teorias contraditrias rapidamente ficaria com asensao de que jamais seria possvel sair daquele labirinto de razesa favor e contra cada uma das teorias. S a persistncia pode produzirresultados -- na filosofia como na cincia.

    claro que hoje estamos habituados a pensar na cincia como algoque produz resultados. Mas a histria da cincia esteve estagnadadurante sculos. Por outro lado, o tipo de desenvolvimentos que seesperam da filosofia no o mesmo tipo de desenvolvimentos que

    esperamos da cincia. Podemos ainda hoje no poder decidircabalmente que Deus existe, nem que Deus no existe; mas sabemoshoje muito mais do que necessrio acontecer para que Deus exista edo que necessrio acontecer para que Deus no exista. Em qualquercaso, os resultados mais palpveis da filosofia nunca tero o poder deconvencer a multido como a cincia; a multido convence-se de quea cincia uma coisa sria porque h automveis e micro-ondas; masse tivssemos exactamente o mesmo conhecimento cientfico quetemos hoje, mas sem quaisquer aplicaes tecnolgicas, quem estariadisposto a encarar a cincia com seriedade? Muitas pessoas teriamprecisamente a mesma reaco que tm hoje em relao filosofia:algo que no serve para nada.

    Para que serve a filosofia?

    A filosofia, diz-se por vezes, no serve para nada. Isto por vezesapontado nossa cabea como se fosse o argumento final contra afilosofia. Por vezes, professores e manuais do ensino secundrio,inquietos com esta questo, fazem o pior: jogos sofsticos de palavraspara mostrar que a resposta "A filosofia no serve para nada" mostraque a filosofia serve para alguma coisa. Isto, claro, um disparate dequem sendo licenciado em filosofia pouco mais aprendeu a fazer doque a comentar textos de filsofos que morreram h sculos, semperceber bem o que est a ler e sem saber fazer aquilo que se esperaque uma pessoa com formao em filosofia saiba fazer: argumentarclaramente.

    H trs princpios metodolgicos que o professor Aires Almeidatransmite aos seus alunos, e que so de uma importncia crucial: serclaro, ser consequente e ser crtico. Quem apresenta o sofisma acima

    referido no est a ser consequente. Mas vejamos primeiro qual osofisma. Argumentam essas pessoas do seguinte modo: se a filosofiano serve para nada, porque serve para alguma coisa, visto que

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    duas negativas nos do uma positiva. Este argumento sofsticoporque apenas um jogo inconsequente de palavras. Se essaspessoas fossem consequentes, deveriam reagir do seguinte modoquando algum diz que no est ningum no cinema: "Ahah! Deveestar l algum!" Isto uma tolice, claro. As lnguas como o francs eo portugus usam duplas negativas no sentido de negativa simples;dizer que no est ningum no cinema quer dizer que o cinema estvazio; dizer que a filosofia no serve para nada quer dizer que a

    filosofia para nada serve.

    Mas ser verdade que a filosofia no serve para nada? Claro que no.A filosofia, como a cincia, como a arte e como a religio, serve paraalargar a nossa compreenso do mundo. Em particular, a filosofiaoferece-nos uma compreenso da nossa estrutura conceptual maisbsica, oferece-nos uma compreenso daqueles instrumentos queestamos habituados a usar para fazer cincia, para fazer religio epara fazer arte, assim como na nossa vida quotidiana. A filosofia difcil porque se ocupa de problemas to bsicos que poucosinstrumentos restam para nos ajudarem no nosso estudo. Osmatemticos fazem maravilhas com os nmeros; mas so incapazesde determinar a natureza ltima dos prprios nmeros -- tm de selimitar a us-los, apesar de no saberem bem o que so. Todos nssabemos pensar em termos de deveres, no dia a dia; mas a f ilosofiaprocura saber qual a natureza desse pensamento tico que nos

    acompanha sem ns darmos muitas vezes por isso.

    Para compreendermos melhor as dificuldades da filosofia conveniente pensar numa metfora. Imagine-se que eu estou a fazeruma casa. Preciso de usar vrios instrumentos, como a p depedreiro, e vrios materiais, como o cimento. Mas quando quero fazeruma p de pedreiro, ou quando quero fazer o cimento, terei de usaroutros instrumentos mais bsicos. E depois terei de ter instrumentospara fazer os instrumentos com que fao a p de pedreiro ou ocimento. E por a fora. Experimente ir para uma ilha deserta fazeruma casa, sem levar nada da civilizao. Ser extremamente difcil:no ter instrumentos sua disposio para fazer nada, excepto assuas mos e a sua inteligncia.

    Num certo sentido, esta a dificuldade da filosofia: estamos a tentar

    estudar os prprios instrumentos que usamos habitualmente parapensar. Por esse motivo, falta-nos instrumentos, falta-nos apoio. Masno estamos completamente desamparados; temos a argumentaopara nos ajudar. So os argumentos que fazem a diferena. So osargumentos que nos permitem ir mais longe na compreenso danossa estrutura cognitiva mais profunda, que nos permitemcompreender melhor os conceitos que usamos no pensamentoquotidiano, cientfico, artstico e religioso.

    agora claro que a filosofia serve para alguma coisa. Serve paracompreendermos melhor a estrutura conceptual que usamos no dia-a-dia, na cincia, nas artes e na religio. Claro que a filosofia no servepara distrair o "povo", como o futebol ou a tourada. Mas tambm amatemtica no serve para isso, nem a religio, nem a arte em geral.Para que serve "Os Maias" de Ea de Queirs? Para que serve a teoriada evoluo de Darwin? Para que nos serve saber que s na nossagalxia h tantas estrelas quantos os segundos que existem em 3 milanos? Serve para sabermos mais sobre ns prprios e sobre ouniverso em que habitamos. Tal como a filosofia.

    Filosofia, histria da filosofia e histria das ideias

    A caracterizao da filosofia que ofereci at agora parecedecididamente pouco ter a ver com a filosofia tal como ensinada nasescolas portuguesas. Mas isto s porque Portugal foi afectado pelomais rude golpe que a filosofia sofreu na sua histria, e que quase afez desaparecer: o hegelianismo, que acabou por degenerar noirracionalismo romntico e que, graas contribuio do disparatadopositivismo, teve como resultado ltimo o abandono do projectooriginal da filosofia -- a tal "morte da filosofia". Mas a filosofia,felizmente, est bem viva. S o facto de em Portugal continuarmos atrabalhar debaixo dos preconceitos hegelianos e irracionalistas explicao estado actual da situao. Os licenciados em filosofia pouco mais

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    sabem do que citar e parafrasear textos; no sabem pensar pela suaprpria cabea. Perante um argumento, reagem como uma pessoacomum e sem qualquer preparao. Desconhecem os problemastradicionais da filosofia, assim como as teorias e argumentos que sediscutem hoje mais do que nunca por esse mundo fora. Sendo este oestado de coisas, no admira que no se veja qual a vantagem dese estudar filosofia, seja no secundrio seja no superior.

    Pior: a filosofia acaba hoje em dia em Portugal por servir, em certossectores, como uma forma sofisticada de tentar inculcar ideologiasobscurantistas anti-cincia e perigosamente perto dos mais negrosdevaneios irracionalistas. Esta situao no exclusiva do nosso pas.Acontece o mesmo em Frana, Espanha, Itlia e Alemanha; aconteceo mesmo em departamentos de literatura americanos e ingleses. Eapesar da denncia do livro de Sokal (Imposturas Intelectuais) , asituao mantm-se: o logro de uma prtica pseudo-acadmicacontinua, o uso ideolgico da filosofia um facto e hordas deestudantes so todos os anos lanados nas mos de professores quenem sabem bem o mal que esto a fazer.

    Contra este estado de coisas s pode lutar-se de uma maneira:defendendo o direito inalienvel de praticar, estudar e transmitir outramaneira de fazer filosofia -- uma maneira socrtica, crtica,

    argumentativa, que consista no na transmisso subterrnea depreconceitos irracionalistas e obscurantistas ou no comentrio vago,ambguo e palavroso do texto filosfico e na arte da exegese estril,mas antes no exerccio crtico da nossa razo, semelhana do quefizeram os nossos antecessores -- a cuja memria devemos pelomenos a homenagem de prosseguir o mesmo esforo de compreensoe discusso dos problemas, teorias e argumentos da filosofia.

    Nas nossas escolas confunde-se filosofia com histria da filosofia eesta ltima com histria das ideias. Uma vez mais, esta confusoparece resultar da ideia de que a filosofia "morreu"; logo, s restafazer a sua histria. Isto de tal forma subterrneo que as pessoasno sabem distinguir filosofia de histria da filosofia, havendo atquem afirme, com sabor a Hegel, que a filosofia consiste na suahistria. impressionante a quantidade de coisas que se inventampara fugir filosofia; parece que a filosofia incomoda muita gente.

    A filosofia ocupa-se de problemas, teorias e argumentos. A histria dafilosofia no se ocupa do estudo dos problemas, teorias e argumentosda filosofia, a no ser como meio e no como fim em si. Para umestudante de filosofia, a histria da filosofia um meio paracompreender melhor o que determinado filsofo queria realmentedizer; para compreender melhor determinado problema, teoria ouargumento. Mas apenas um meio. O fim perguntar-se se o filsofotem razo, depois de ter compreendido o que ele queria dizer. Haverboas razes para pensar que sim? Ou melhores razes para pensarque no? Estudar filosofia aprender a pensar pela sua prpriacabea nos grandes problemas e argumentos da filosofia, e ter umaatitude crtica em relao s grandes teorias que os filsofosinventaram para tentar resolver esses problemas.

    Mas muitas pessoas confundem os fins da filosofia com os fins dahistria da filosofia e acabam o estudo da filosofia ainda antes de oterem comeado. Isto , nunca chegam a fazer a pergunta filosficacrucial: "Ser que X tem razo?" Perdem um tempo inusitado emtorno de questes exegticas e histricas, em torno de questeshermenuticas e interpretativas -- e nunca chegam ao estudofilosfico propriamente dito.

    A juntar a esta confuso, h o mito da contextualizao. Julga-se quedepois de se dizer que o filsofo X nasceu no ano tal filho da pessoatal, e que no seu tempo se travava a guerra Y e que ele falava alngua H, se est melhor habilitado a compreender o filsofo. Isto spor si altamente discutvel; mas o pior ficar-se por estacontextualizao, sem que nunca se discuta realmente o que o filsofodefendeu. Depois da contextualizao vem a parfrase acrtica e acitao copiosa, em que as palavras do filsofo so usadas de umponto de vista meramente formal -- Hegel "tem a ver" com dialcticae Plato com caverna, o Ser muito importante e tem a ver comHeidegger. O discurso do estudante consiste em repetir o que leu,

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    num exerccio meramente formal de repetio de palavras que nemsabe o que querem dizer. Se Kant fala de juzos, falemos entotambm de juzos -- mas o que um juzo? No se sabe. Hume falade ideias, Kant de juzos e pronto. O erro trocar as coisas, mas nemse sabe por que razo tal coisa um erro -- se que o .

    Isto, claro, no seno a sombra, na caverna de Plato, daverdadeira filosofia. Imagine-se que eu me punha a ler um livro demedicina do sculo XVI. Eu nada sei de medicina, alm do que meensinaram no ensino bsico. Que posso eu fazer com tal texto? Noposso compreender quase nada porque no sei sequer medicinacontempornea, quanto mais a medicina do sculo XVI. Mas por muitopouco que eu compreenda o texto, por muita pouca preparao queeu tenha para compreender o texto, tenho sempre a possibilidade defazer um exerccio formal: o chamado "comentrio". Um comentrioconsiste em dizer mais ou menos pelas mesmas palavras, muitas dasquais eu nem sei o que querem dizer, o que o texto diz. No umexerccio crtico -- no se discutem as ideias do autor, no se avaliamos seus argumentos, no se compreende o problema que oatormentou; limitamo-nos a dizer mais ou menos o mesmo. umexerccio puramente formal, como se estivssemos no quarto chinsde Searle a receber instrues numa lngua que desconhecemos --no sabemos o que X quer dizer, mas sabemos que X se usa com Ymas nunca com H.

    O quarto chins uma ideia filosfica apresentada pelo filsofocontemporneo John Searle para argumentar contra a ideia de queuma mquina pode pensar. Segundo ele, tudo o que uma mquinapode fazer manipular smbolos. como se eu estivesse fechado numquarto, sem janelas e de uma ranhura me aparecesse de vez emquando um pedacinho de papel com uns riscos; eu no sei o queesses riscos querem dizer; nem parecem uma verdadeira linguagemarticulada. Mas tenho um livro enorme dentro do quarto onde cadaum desses rabiscos est anotado, seguido de uma instruo precisaem portugus, como "Carrega no boto 3". E eu carrego no boto 3.Mas no percebi realmente o pedacinho de papel que me chegou.Acontece que o pedacinho de papel estava escrito em chins e que olivro que eu tenho um dicionrio. Mas apesar de, para todos osefeitos, eu ser capaz de reagir s ordens dadas em chins, eu nocompreendia realmente essas ordens: limitava-me a reagir como umautmato. O mesmo acontece com as pessoas que, sem umapreparao filosfica prvia, se pem a ler os textos dos grandesfilsofos: aprendem a reagir verbalmente, e copiosamente, semperceberem realmente do que esto a falar.

    Curiosamente, a histria da filosofia e a histria das ideias so fracoscandidatos investigao se acharmos que a filosofia no podeavanar por abundarem os argumentos contraditrios. Isto porque aspretensas conexes histricas que interessam histria da filosofia e histria das ideias so to discutveis como os problemas filosficostradicionais. Uma vez mais, claro, a histria da filosofia e a histriadas ideias surgem como formas de fugir filosofia.

    Isto no significa que a histria da filosofia no tenha a sua dignidadeprpria e o seu uso filosfico. Claro que tem. preciso no confundiras coisas. E, sobretudo, preciso no pensar ingenuamente quepodemos fazer histria da filosofia sem saber primeiro f ilosofia -- isso to absurdo como pretender fazer histria da economia sem sabereconomia. Este simples facto devia ser suficiente para as pessoasperceberem que quem quer aprender filosofia no pode comear pelahistria da filosofia, pois para estudar histria da filosofia j necessrio saber filosofia.

    Em qualquer caso, muito estranho que se encarem os textos dosfilsofos como se tivessem sido manuais escritos para estudantes --coisa que manifestamente no foram. O resultado de ler os textos dosgrandes filsofos sem antes ter aprendido filosofia o comentrioacrtico e palavroso e a incapacidade para reflectir pela sua prpriacabea sobre o mais simples dos problemas filosficos. O resultadoltimo o facto de as pessoas com esta formao terem, perante a

    profuso de argumentos e teorias contraditrias da filosofia, a mesmareaco que uma pessoa comum: " claro que no se pode definir aarte!" Isto de uma ingenuidade que se compreende numa pessoasem formao filosfica, mas no num professor de filosofia. Um

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    professor de filosofia sabe muito bem que to difcil mostrar que no possvel definir a arte como difcil tentar defini-la.

    Concluso

    A filosofia uma actividade crtica, que consiste na tentativa de

    compreenso sistemtica dos nossos conceitos mais bsicos.Conceitos como os seguintes: bem, arte, justia, beleza, verdade,validade, igualdade, identidade, liberdade, existncia, etc., etc. Afilosofia no a sua histria. A filosofia interpela-nos a enfrentar osmesmos problemas que os grandes filsofos do passado enfrentaram;interpela-nos a pensar pela nossa prpria cabea. Um estudante sriode filosofia aprende a pensar pela sua prpria cabea, aprende adefender as suas opinies com argumentos slidos -- no aprende arepetir de forma palavrosa o que disse Kant ou Hegel ou Aristteles.

    A atitude que reduz a filosofia a um jogo de palavras inconsequente,obscuro, palavroso e acrtico uma traio ao projecto original dafilosofia; m filosofia. Acho que essa traio tem todo o direito deexistir; mas acho que no tem o direito de procurar calar o projectooriginal da filosofia. Isso seria to absurdo como ter os maus msicosa calar, nos conservatrios, os msicos de qualidade. Devemos ser

    tolerantes. Mas devemos dizer -- cordialmente -- que a pseudofilosofiano a nica alternativa que existe. H outras formas de fazerfilosofia; formas mais criativas, mais consequentes, mais claras e,sobretudo, mais crticas e menos palavrosas. A escolha deve ser livree deve haver igualdade de oportunidades para todos.

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