mundialização cultura e diversidade [armand mattelard]

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Revista FAMECOS Porto Alegre nº 31 dezembro de 2006 quadrimestral 12 RESUMO O autor apresenta uma reflexão sobre as contribui- ções e os limites da convenção internacional da Unesco sobre a diversidade cultural. Aborda a “plu- ralidade dos protagonistas que surgiram na esfera cívica mundial”, segundo os quais “a diversidade cultural só adquire sentido à luz de uma interroga- ção mais vasta sobre o modelo de sociedade”. PALAVRAS-CHAVE comunicação cultura mundialização ABSTRACT The author presents a reflection on the contributions and the limits of the international convention of Unesco about the cultural diversity. It shows the plurality of protago- nists in which cultural diversity only acquires sense to the light of a huge interrogation on the society model. KEY WORDS communication culture globalization Armand Mattelart Université Vincennes Saint-Denis – Paris VIII IMAGINÁRIO E DIVERSIDADE Mundialização, cultura e diversidade * trigésima terceira Conferência Geral da Unesco, em Paris, adotou, no dia 20 de outubro de 2005, uma convenção sobre a proteção e a promoção da diversidade cultural com a quase una- nimidade dos 154 países presentes. Dois foram con- trários: Estados Unidos e Israel. Quatro abstenções: Austrália, Honduras, Libéria e Nicarágua. Em três dias, aproximadamente, o texto foi aprovado em comissão pelos representantes dos 151 estados den- tre os 191 membros da Unesco. O objetivo dessa convenção foi o de dar força de lei à Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, adotada, por unanimidade, após os eventos do 11 de Setem- bro de 2001. Dando à diversidade o ranking de “patrimônio comum da humanidade”, essa declara- ção se opunha aos “doentios fundamentalistas” com a “perspectiva de um mundo mais aberto, mais cria- tivo e mais democrático”. 1 O paradigma ético da “diversidade em diálogo” pegava no contrapé a tese de Samuel Huntington sobre a inelutabilidade do “choque das culturas e das civilizações”. 2 Se em relação aos grandes princípios todos os estados tinham, em 2001, concordado em celebrar a pluralidade das alteridades como um instrumento capaz de “humanizar a mundialização”, não acon- teceu o mesmo, porém, dois anos mais tarde quan- do da decisão tomada pela 32ª Conferência Geral da Unesco, que dava sinal verde à discussão do texto do anteprojeto da convenção. Entre o pequeno nú- mero de países que se abstiveram figuraram os Es- tados Unidos. O cenário de obstrução prosseguiu durante as negociações do anteprojeto por causa das cerca de 30 emendas apresentadas na tentativa de esvaziar o conteúdo do texto. Essa discussão é um passo simbólico, ao reconhecer a “natureza es- pecífica das atividades, bens e serviços culturais” e estabelecer as premissas de um direito supranacio- nal. É, também, o resultado de um longo caminho. Meu primeiro ponto será, pois, refletir sobre esse percurso. Como se construiu, progressivamente, a tese em favor do estatuto particular dos “produtos de espírito”? Na segunda parte, irei me debruçar sobre a convenção. Quais são suas linhas de força, mas também os aspectos deixados em aberto? A era pós-colonial Dois fóruns institucionais contribuíram para forjar os elementos de uma doutrina sobre a cultura e as políticas culturais. O primeiro é, evidentemente, a própria Unesco. Fundamentalmente, a partir do fim dos anos 60 com a entrada na era pós-colonial, a era da independência. É nessa época que a relação de força entre os países do Norte e os do Sul afeta, numericamente e ideologicamente, o conjunto do sistema das Nações Unidas. Mesmo se o peso da A

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Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 31 • dezembro de 2006 • quadrimestral 12

RESUMO

O autor apresenta uma reflexão sobre as contribui-ções e os limites da convenção internacional daUnesco sobre a diversidade cultural. Aborda a “plu-ralidade dos protagonistas que surgiram na esferacívica mundial”, segundo os quais “a diversidadecultural só adquire sentido à luz de uma interroga-ção mais vasta sobre o modelo de sociedade”.

PALAVRAS-CHAVE

comunicaçãoculturamundialização

ABSTRACT

The author presents a reflection on the contributions andthe limits of the international convention of Unesco aboutthe cultural diversity. It shows the plurality of protago-nists in which cultural diversity only acquires sense tothe light of a huge interrogation on the society model.

KEY WORDS

communicationcultureglobalization

Armand MattelartUniversité Vincennes Saint-Denis – Paris VIII

IMAGINÁRIO E DIVERSIDADE

Mundialização, cultura e diversidade*

trigésima terceira Conferência Geral da Unesco,em Paris, adotou, no dia 20 de outubro de2005, uma convenção sobre a proteção e a

promoção da diversidade cultural com a quase una-nimidade dos 154 países presentes. Dois foram con-trários: Estados Unidos e Israel. Quatro abstenções:Austrália, Honduras, Libéria e Nicarágua. Em trêsdias, aproximadamente, o texto foi aprovado emcomissão pelos representantes dos 151 estados den-tre os 191 membros da Unesco. O objetivo dessaconvenção foi o de dar força de lei à DeclaraçãoUniversal sobre a Diversidade Cultural, adotada,por unanimidade, após os eventos do 11 de Setem-bro de 2001. Dando à diversidade o ranking de“patrimônio comum da humanidade”, essa declara-ção se opunha aos “doentios fundamentalistas” coma “perspectiva de um mundo mais aberto, mais cria-tivo e mais democrático”.1 O paradigma ético da“diversidade em diálogo” pegava no contrapé a tesede Samuel Huntington sobre a inelutabilidade do“choque das culturas e das civilizações”.2

Se em relação aos grandes princípios todos osestados tinham, em 2001, concordado em celebrar apluralidade das alteridades como um instrumentocapaz de “humanizar a mundialização”, não acon-teceu o mesmo, porém, dois anos mais tarde quan-do da decisão tomada pela 32ª Conferência Geral daUnesco, que dava sinal verde à discussão do textodo anteprojeto da convenção. Entre o pequeno nú-mero de países que se abstiveram figuraram os Es-tados Unidos. O cenário de obstrução prosseguiudurante as negociações do anteprojeto por causadas cerca de 30 emendas apresentadas na tentativade esvaziar o conteúdo do texto. Essa discussão éum passo simbólico, ao reconhecer a “natureza es-pecífica das atividades, bens e serviços culturais” eestabelecer as premissas de um direito supranacio-nal. É, também, o resultado de um longo caminho.Meu primeiro ponto será, pois, refletir sobre essepercurso. Como se construiu, progressivamente, atese em favor do estatuto particular dos “produtosde espírito”? Na segunda parte, irei me debruçarsobre a convenção. Quais são suas linhas de força,mas também os aspectos deixados em aberto?

A era pós-colonialDois fóruns institucionais contribuíram para forjaros elementos de uma doutrina sobre a cultura e aspolíticas culturais. O primeiro é, evidentemente, aprópria Unesco. Fundamentalmente, a partir do fimdos anos 60 com a entrada na era pós-colonial, a erada independência. É nessa época que a relação deforça entre os países do Norte e os do Sul afeta,numericamente e ideologicamente, o conjunto dosistema das Nações Unidas. Mesmo se o peso da

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divisão geopolítica Este/Oeste continua a influenci-ar as representações dominantes de ordenamentodo mundo, a ponto de provocar um curto-circuitona relação Norte/Sul e as demandas do dito Tercei-ro Mundo.

É o momento no qual se faz patente a crise deuma filosofia do desenvolvimento para a qual amodernização equivalia à ocidentalização, uma ver-são requintada dos programas etnocêntricos de as-similação cultural. É a falência da crença em umprogresso linear e infinito, dos paliativos sucessivosoferecidos aos povos: a única saída para o dito sub-desenvolvimento é percorrer, uma a uma, as etapaspelas quais atravessaram os grandes países ditosdesenvolvidos. De acordo com essa crença, a inova-ção social deve se dirigir do centro para as periferi-as. Não há lugar, pois, para as culturas locais dasquais se contesta sua capacidade de invenção. Estig-matizadas como tradicionais, elas são consideradaspela engenharia social como um obstáculo nocurso da modernidade segundo o padrão euro-estadounidense. Ao longo dos anos 70, aparece emcena, aos poucos, um bloco de nações chamadas aparticiparem de debates, proposições, medidas e es-tratégias: direito a comunicar, diversidade cultural,políticas culturais, políticas de comunicação e indus-triais, interdependência e diálogo das culturas.

O diagnóstico sobre o desequilíbrio das trocasinformacionais e culturais junto a Unesco por partedo Movimento dos Países Não-alinhados por umaNova Ordem Mundial de Informação e de Comuni-cação (NOMIC) se articula com o pedido de umaNova Ordem Econômica junto às outras agênciasdas Nações Unidas. A agenda do reequilíbrio dosfluxos constitui o pano de fundo da década. O rela-tório da Comissão Internacional para o Estudo dosProblemas de Comunicação, nomeada em 1977 pelodiretor-geral da Unesco, o senegalês Mohtar M’Bow,e presidida pelo irlandês Sean MacBride, prêmioNobel da Paz, assinala um primeiro passo sobre asdesigualdades dos fluxos entre os países do Norte edo Sul. Trata-se, com efeito, da primeira visão estru-tural crítica sobre a ordem cultural e comunicacionalemitida por uma instituição internacional. Também éa primeira a tratar “dos problemas de comunica-ção” em sua dimensão histórica.

A comissão legitima as demandas de uma novaordem mundial da informação e da comunicação.Ela alfineta as lógicas de concentração do poderinformacional e a falta de eqüidade nas transferên-cias de tecnologia. Ela formula uma série de propo-sições sobre as políticas públicas. Aprovado pelaConferência Geral da Unesco que se reúne em Bel-grado em 1980, o relatório MacBride é publicadosob o título simbólico de “Vozes múltiplas”. Um sómundo traduz uma tomada de consciência política.O importante é que, com ele, as noções de cultura ecomunicação penetram no campo de batalha para oreconhecimento dos direitos sociais do homem. Lem-

bremos que essa comissão pluralista tinha, entreoutras personalidades, Hubert Beuve-Méry, funda-dor do jornal “Le Monde”, e o romancista GabrielGarcía Márquez.

A década de 1970 começou sob a proposição danoção matricial de “direito à comunicação”. Ela ter-mina com a introdução da noção de “indústrias cul-turais”. A primeira é defendida publicamente porJean D´Arcy, pioneiro da televisão francesa, entãodiretor da Divisão de Rádio e de Serviços Visuais doServiço de Informação da ONU, em Nova York, em1969, em um momento no qual toma forma naUnesco o debate sobre as liberdades no domínio dainformação. Em um artigo publicado na revista UER(União Européia de Radiodifusão), ele diz que “aDeclaração Universal dos Direitos do Homem que,há 21 anos, pela primeira vez, estabelecia no seuArtigo 19º o direito do homem à informação, iráreconhecer, um dia, um direito mais ampliado: odireito do homem à comunicação.”3

Durante a década seguinte, balizada por numero-sas reuniões de especialistas e de numerosas contro-vérsias, a idéia de caducidade do modelo verticaldo fluxo deixa entrever uma representação da co-municação como processo dialógico e recíproco noqual o acesso e a participação se tornam fatoresessenciais. É a recusa de uma comunicação da eliteem direção às massas, do centro em direção à perife-ria, dos ricos em matéria de comunicação em dire-ção aos pobres. Respeito à diferença sem qualquerdistinção de origem nacional, étnica, de língua, dereligião é o que postulam os participantes em umaprimeira reunião de especialistas, organizada em1972 pela Unesco, sobre as políticas e a planificaçãoda comunicação que eles definem como “o conjuntode normas e de princípios estabelecidos para orien-tar o funcionamento dos sistemas de comunicação”.

O relatório da comissão McBride endossa a pro-blemática desse novo direito à comunicação comogarantia da democratização. Direito de conhecimen-to, direito de transmitir, direito de discutir, direito àvida privada. Quanto à noção de “indústrias cultu-rais”, ela é ratificada em 1980 como resultante deum programa de pesquisas e de uma filosofia dodesenvolvimento. Como prova, o documento redi-gido pelo Secretariado da Unesco durante a reuniãode especialistas organizada em Montreal, lugar sim-bólico, já que a comunidade francófona da Bélgica, aFrança, o Canadá – e o Québec em particular –foram os primeiros a introduzir, desde a segundametade dos anos 70, a noção de indústrias culturais(imprensa, livro, revistas, cinema, disco, rádio, tele-visão, publicidade, etc.) na linguagem de suas polí-ticas culturais.

Um programa prioritário de pesquisas: “Entre asquestões fundamentais que interpelam a reflexãosocioeconômica se encontram os fenômenos de con-centração econômica e financeira da internacionali-zação das indústrias culturais”. “Em qual ação é

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preciso se engajar para que os grupos sociais pos-sam controlar as indústrias culturais a fim de asse-gurar seu próprio desenvolvimento?”. “As análiseseconômicas deverão, entretanto, permanecer no cen-tro de um programa de reflexão que gostaria de serexaustivo. Elas deveriam aprofundar os problemasde conjunto e os aspectos setoriais das indústriasculturais. Também é evidente nessas análises que ospoderes públicos e os setores privados se apoiarãopara criar ou desenvolver as indústrias culturaisnacionais”. Uma filosofia geral de desenvolvimen-to: “Em todo o estado de coisas, o embate é a instau-ração ou a restauração de um diálogo que não seriamais somente entre produtores e consumidores, masque daria as condições de uma criação coletiva everdadeiramente diversificada, fazendo do receptorum emissor e assegurando que o emissor institucio-nalizado reaprenda a se tornar receptor. O embatefinal é o desenvolvimento harmonioso dentro dadiversidade e o respeito recíproco”. A Unesco reco-nhece que é “importante refletir em termos de polí-ticas culturais sobre as relações entre as indústriasculturais propriamente ditas e as outras formas decriação e de animação culturais de origem pública eprivada”.4

A Conferência Mundial sobre Políticas Culturais(Mondiacult), que ocorreu em 1982 na Cidade doMéxico, coroa um processo iniciado 12 anos antesna Conferência de Veneza sobre o mesmo tema eespalhado por conferências regionais tanto sobre aspolíticas culturais quanto as políticas de comunica-ção.5 O Mondiacult sublinha o elo entre economia ecultura, entre desenvolvimento econômico e cultu-ral e esboça o princípio de uma política culturalfundada no reconhecimento da diversidade. O pro-pósito dessa conferência é de, sobretudo, sugeriruma definição antropológica de cultura: “O conjun-to dos traços distintivos espirituais e materiais, inte-lectuais e afetivos que caracterizam uma sociedadeou um grupo social e que engloba, além das artes edas letras, os modos de vida, as maneiras de seviver junto, os sistemas de valores, as tradições e ascrenças”. Concebendo o papel da cultura de formaampla global, faz ligação entre a idéia universal dosdireitos fundamentais e os traços particulares dosmodos de vida que permitem aos membros de umgrupo estabelecer a ligação que os une aos outros. Osegundo propósito é o conceito de política cultural eo de política de comunicação, duas temáticas queexplodiram na década de 1970, ora de modo parale-lo, ora em sinergia através das numerosas conferên-cias regionais, por continente. A reabilitação da de-finição antropológica de cultura, mal-direcionadadesde a fundação da Unesco, é uma ampliação emrelação à idéia de uma concepção instrumental dacomunicação e da informação – cortada da história eda memória dos povos – que reagiu à elaboraçãodas estratégias de desenvolvimento pelos planifica-dores sociais dos anos 1960. Essa definição de cultu-

ra dá um sentido às noções de diversidade cultural,de identidade cultural e de assuntos interculturais.

Não de imediato, pois 20 anos irão se passar antesque uma nova configuração de atores tente conver-ter essa definição abstrata de cultura em um instru-mento jurídico. É, de fato, sobre essa definição decultura que irá acontecer, em outubro de 2004, anegociação sobre o anteprojeto da convenção. Sim,20 anos. Pois, nesse meio tempo, haverá uma glacia-ção dos debates. Em 1984–85, a retirada dos EstadosUnidos e da Grã-Bretanha da Unesco coincide, gros-so modo, com o início do processo internacional dedesmantelamento das regulações públicas e o avan-ço dos quadros jurídicos favoráveis ao desdobra-mento do espaço de racionalidade mercantil – o quese denominou impropriamente “desregulamenta-ção” – e a marginalização de um regulamento públi-co em nome da defesa do interesse coletivo. O mo-delo de capitalismo mundial integrado denominado“globalização”, inspirado pela visão ultraliberal deordenamento do planeta, é teorizado e visto comouma fatalidade.

Princípio de exceção culturalA segunda fonte doutrinal que procura submeter acultura e a comunicação à regra do funcionamentodo mercado se origina na experiência de certos paí-ses europeus e do Canadá. A idéia de uma “exce-ção” é fruto da decantação de um longo processo dematuração que não é isento de ambigüidades. Des-de os anos 1920, a idéia inspira a criação de serviçospúblicos de radiodifusão nos países membros daEuropa ocidental. O postulado é que os imperativosda preservação do pluralismo, o primado da missãocultural e pedagógica (educar, informar, dsitrair), adefesa da identidade e a soberania nacional reque-rem a formação de um espaço que escapa às lógicasimediatistas econômicas e financeiras do mercado.Bem cedo, o princípio do serviço público se opõe aode “interesse público” que faz valer o modelo co-mercial, aquele adotado pelos Estados Unidos. Fu-turamente, os partidários incondicionais do setorprivado nos debates internacionais não irão hesitarem traçar uma equivalência entre serviço público eautoritarismo de estado, entre regulação e censura,bem como entre nacionalismo e universalismo.

Nos anos do entre-guerras, é, sobretudo, em tor-no da questão cinematográfica que toma corpo aidéia de um estatuto de exceção, avant la lettre, paraos “produtos de espírito”. O que é normal, pois ocinema antecipa as relações de força que irão marcara internacionalização da produção e da circulaçãodos produtos das indústrias culturais. Em respostaao desafio da concorrência dos filmes holywoodia-nos, as primeiras políticas públicas centradas sobrea imposição de cotas de filmes importados são to-madas não somente para os grandes países euro-peus, como a Alemanha da República de Weimar, aInglaterra, a França e também o Canadá, primeiro

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país a refletir sobre o seu mercado cinematográfico,mas também sobre o conjunto de seu sistema decomunicação em função de uma confrontação diretacom o dispositivo industrial dos Estados Unidos emseu próprio território.

Desde o fim da Segunda Guerra mundial, o PlanoMarshall abrandou as políticas de cotas dos paíseseuropeus, uma condição de outorga da ajuda ameri-cana para a reconstrução das economias devastadaspela guerra. A França é, sem dúvida, o país europeuque melhor resiste. A mobilização de rua, em 1947,de atores, cineastas, produtores e técnicos, respon-dendo ao apelo da Federação Nacional do Espetá-culo, obriga o governo francês, que, num primeiromomento, havia capitulado conforme o que foraditado pelo Departamento de Estado (acordos Blum-Byrnes), a dar marcha-à-ré. A proteção do filmefrancês se desdobra para uma política de ajuda deprodução. Essa política pública fez com que a Fran-ça seja o país europeu, e um dos raros no mundo, aconservar uma variedade de ofertas em suas telas.A continuidade dessa política se explica por umaconfiguração cultural específica: um imaginário eum pensamento sobre o cinema como arte e indús-tria e a valorização de um autor; o papel do Estadodito cultural; uma organização sindical das funçõesdo espetáculo.

Só nos anos 1980, no contexto da edificação domercado único e em um contexto marcado pela ex-plosão dos canais transfronteiras por satélite e adesestabilização do modelo nacional de serviço pú-blico pelos primeiros processos de desregulamenta-ção e de privatização em escala internacional, é quea Comunidade Européia começa a debater os prin-cípios jurídicos para a construção de um espaçoaudiovisual europeu. O consenso sobre a necessida-de de reservar um status especial ao audiovisualestá longe de ser obtido. E não o será jamais, aliás,de forma plena, pois nem todos os membros daComunidade estão de acordo com a mesma idéia decultura e de identidade européia. Primeira fase deelaboração da política européia em matéria de audio-visual: em 1989, o guia sobre a televisão sem frontei-ras convida os países da comunidade a reservaremàs produções européias (ficção e documentários) amaior parte do tempo de antena. É nesse contextoque é criada a primeira fronte de resistência ao pro-jeto de desregulamentação. Particularmente ativosna promoção do projeto de orientação são os esta-dos gerais da cultura. Criada na França na seqüên-cia da privatização da primeira rede de televisão(1987), este reagrupamento das organizações pro-fissionais da cultura irá se reencontrar a cada mobi-lização contra as tentativas nacionais, intra ouextra européias de submeter a cultura à lei dolivre-comércio.

No final de 1993, a questão da arquitetura danova paisagem audiovisual sai do círculo puramen-te europeu e encontra outros dossiês sobre os pro-

blemas globais de trocas tratados pelo GATT. É aúltima a ser tratada no contexto do ciclo de negocia-ções do Uruguai, aberto em 1986. É a última, igual-mente, antes que o GATT se metamorfoseie em Or-ganização Mundial do Comércio (OMC), em 1994.O que está em jogo é não só a liberação do audio-visual, mas também do conjunto das indústrias cul-turais, como o livro e o disco, por exemplo. É naqueda-de-braço com os Estados Unidos que umadoutrina de “exceção cultural” se formaliza. Depoisde negociações e compromissos entre seus mem-bros, a Comunidade Européia obtém êxito em fazervaler a causa da exceção. O princípio das políticasnacionais e comunitárias de apoio à produção defilmes e de programas é homologada. Pouco antes,quando das negociações do Acordo de Livre-Co-mércio Norte-Americano (Alena), o governo cana-dense conseguiu dos Estados Unidos uma cláusulade “exceção cultural”. Aqui, também, as políticaspúblicas foram legitimadas.

Depois de sua derrota diante da União Européia,os Estados Unidos não pararam de tentar contornara decisão do GATT. Os megagrupos europeus nãosão menos hostis à exceção que seus colegas ameri-canos, já que eles querem convencer que a estratégiade mercado responde à expressão de diversidadesculturais pois alargam a oferta e a gama de produ-tos. Vê-se que em torno do léxico “diversidade” sedisputa uma guerra semântica cuja importância nãodeve ser subestimada, pois ela tem uma incidêncianos argumentos de lobbies industriais em todos oslugares nos quais se discute o estatuto da diversida-de cultural e midiática. Viu-se em 2000 quando aUnião Européia trocou a noção de “exceção cultu-ral” por “diversidade cultural ”, sob o pretexto, se-gundo alegações dos países membros céticos sobrea idéia de um estatuto à parte para os “produtos deespírito”, que a primeira tinha por conotação umaposição muito defensiva. O papel interpretado porpaíses como o Canadá ou a França nos processosconduziu ao reconhecimento da exceção cultural. AFrança mobilizou os países francófonos. O Canadápromoveu uma Rede Internacional sobre a PolíticaCultural (RIPC), conseguindo mobilizar cerca de 60ministros responsáveis pela cultura a discutirem demaneira informal os meios de reforçar a diversida-de com a sociedade civil organizada. Junto com ogoverno do Québec, Ottawa dá, a partir de setem-bro de 2001, apoio financeiro a uma coalizão inter-nacional de organizações profissionais da cultura.

Linhas de forçaO campo de aplicação do projeto da convenção seestende à “multiplicidade de formas pelas quais asculturas dos grupos e das sociedades encontram suaexpressão”. Formas concernentes tanto às políticasda língua, às políticas de apoio ao artesanato e àsartes plásticas quanto à valorização dos sistemas deconhecimento dos povos autóctones ou às medidas

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em favor das culturas minoritárias. Os exemplos dasindústrias da imagem ilustram os riscos de uniformi-zação que a globalização liberal provoca à diversida-de cultural. Assim, o Departamento de Estado e aMotion Picture Association (MPA), porta-voz dos in-teresses das majors, pressionaram governos como oChile, a Coréia do Sul, o Marrocos ou os antigos paí-ses comunistas, a fim de, no quadro de acordos bilate-rais, fazer com que eles renunciassem aos seus direi-tos de colocar em execução políticas cinematográficasem troca de compensações em outros setores.

Gênese não quer dizer filiação direta. Entre osdebates euro-americanos sobre a exceção culturalno início dos anos 1990 e os que conduziram à ado-ção da convenção, há uma diferença: o repatriamentoda cultura em direção a um circuito internacionalque tem por competência administrativa precisa-mente esse domínio. O debate sobre a exceção to-mou corpo no campo institucional no qual ele sedesenrolou: o GATT, cujo campo de competênciasão as relações comerciais. Para esse organismo, acultura é apenas uma rubrica da nomenclatura dos“serviços”. É difícil esse fórum abrir um verdadeirodebate sobre a cultura e as expressões culturais,mesmo se as organizações profissionais da culturareunidas nos estados-gerais da cultura, por exem-plo, “costuraram” a ocasião para fazê-lo. Para oconjunto dos negociadores internacionais, a “cultu-ra européia” e os “valores europeus” são caixas-pretas, objetos politicamente não-identificados.

A União Européia escolheu negociar e exprimirem uníssono seu apoio à convenção, apesar das reti-cências e hesitações de alguns dos seus membros,entre os quais a Grã-Bretanha. Para a União, as ne-gociações sobre a diversidade cultural em uma or-ganização como a Unesco constituem uma novidade.As visões de cultura, de identidade e de heterono-mias culturais, interpelam a visão conservadora epatrimonial dos “valores europeus” que marcou aconstrução” do mercado único. Três sessões de reu-niões intergovernamentais, a última em junho de2005, foram necessárias para polir o texto submeti-do à Conferência.

Os redatores do anteprojeto tentaram a mediaçãode duas posições. Uma, majoritária, defendendo oprincípio de um direito internacional que homologao tratamento especial dos bens e serviços culturaispara os “portadores de identidade, de valores e desentidos”. Outra, sustentada por governos como osEstados Unidos, a Austrália ou o Japão, que se incli-na a ver nesse texto apenas uma expressão a maisdo “protecionismo”. Entre eles, um conjunto de ar-gumentos disparatados, entre os quais os formuladospor estados exprimindo seu temor em ver esboroar-se a coesão nacional pela contaminação do princípiode diversidade por causa de filosofias sociopolíticascontrastadas e histórias culturais particulares. Desseponto de vista, o texto também resulta em umaproteção intercultural.

O resultado é este: um conjunto de regras geraisque concernem os direitos e as obrigações dos esta-dos. Diz o artigo 5º: “As partes reafirmam, confor-me a Carta das Nações Unidas, os princípios dodireito internacional e os instrumentos universal-mente reconhecidos em matéria de direitos do ho-mem, seu direito soberano de formular e implantarsuas políticas culturais e adotar as medidas paraproteger e promover a diversidade das expressõesculturais bem como reforçar a cooperação internaci-onal, a fim de alcançar os objetivos desta convenção”.Pivô do edifício jurídico, o princípio de soberania,que reconhece o papel do estado na adoção de polí-ticas culturais. Para que a convenção adquira umcaráter normativo em caso de litígio, crucial é adefinição dos termos em relação aos outros instru-mentos internacionais que determinam os direitos eas obrigações dos estados. É esse o embate da reda-ção do artigo 20. Confirma que as relações da con-venção com os outros tratados deverão ser guiadaspela idéia de “apoio mútuo, de complementaridadee de não-subordinação”. O calcanhar-de-Aquiles daconvenção é a questão das sanções em caso de infra-ção, a fragilidade dos mecanismos da resolução doslitígios se comparada às da OMC.

O princípio de soberania é enquadrado por umconjunto de outros princípios norteadores: respeitodos direitos do homem, igual dignidade e respeitode todas as culturas, solidariedade e cooperaçãointernacionais, complementaridade dos aspectos eco-nômicos e culturais de desenvolvimento, desenvol-vimento sustentável, acesso eqüitativo, abertura eequilíbrio. A maioria desses princípios, de agora emdiante, faz parte dos preâmbulos de todos os gran-des planos de ação das nações unidas sobre os pro-blemas ditos globais. Para colocar em prática o prin-cípio de acesso eqüitativo, o de solidariedade e o decooperação internacional, os artigos 14º e 19º prevê-em, entre outros, um “tratamento preferencial paraos países em desenvolvimento” e a criação de um“fundo internacional para a diversidade cultural”,financiado pelas contribuições voluntárias públicasou privadas.

Ainda seria conveniente questionar a experiênciade projetos semelhantes, como o da Cúpula Mundi-al sobre a Sociedade da Informação, organizada poruma outra agência das Nações Unidas, a União In-ternacional das Telecomunicações (UIT), cuja pri-meira fase aconteceu em Genebra, em dezembro de2003, e a segunda na Tunísia, em novembro de2005. A dificuldade foi mobilizar recursos públicosjunto aos grandes países industrializados, a fim definanciar um “fundo de solidariedade digital” quepermitiria lutar contra a desigualdade de acesso aociberespaço. Esforço das fundações filantrópicas dastransnacionais da indústria da informação a preen-cher o vazio deixado pela falta de vontade políticapor parte dos estados. A Fundação Microsoft pro-pôs à Unesco ceder seu pessoal especializado, e não

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apenas seus computadores, para estancar a “fraturadigital” nos países do Terceiro Mundo, prejudican-do os defensores dos softwares livres. De fato, aexperiência realmente inovadora é aquela vinda darede mundial das cidades e das autoridades locais.

Uma inovação de cooperação descentralizada quecontrasta com a frieza de vários estados. Por inicia-tiva das cidades de Lyon (France) e Genebra (Suíça)aconteceu, na semana anterior à primeira reuniãoda Cúpula Mundial da Sociedade da Informação,em dezembro de 2003, uma primeira Cúpula dasCidades e das Autoridades Locais contra a fraturadigital. Reivindicando-se abertamente como “parteda sociedade civil”, os numerosos agentes se enga-jaram em participar da luta contra a exclusão, ali-mentando os fundos de solidariedade. Essa vontadepolítica foi ratificada em novembro de 2005, às vés-peras da reunião da Cúpula Mundial da Sociedadeda Informação na Tunísia. O ministro da Cultura dogoverno do país basco enviou ao Secretário-geral dasNações Unidas as proposições da segunda CúpulaMundial das Cidades e Autoridades Locais contra afratura digital, que aconteceu na cidade de Bilbao.

Zonas de sombraA redação do anteprojeto da convenção seguiu umpercurso sinuoso após a batalha sobre conceitos. Otítulo da convenção passou de “diversidade cultu-ral” para “diversidade de conteúdos culturais e deexpressões artísticas”, depois para “diversidade deexpressões culturais”. A palavra “proteção” foi ob-jetada por suas conotações protecionistas. Foi preci-so, para legitimá-la, invocar seu uso recorrente emvárias convenções internacionais promovidas pelasNações Unidas sobre a proteção de categorias dis-criminadas ou vulneráveis. Em matéria de direitosda criança, por exemplo. A definição antropológicade cultura da Declaração Universal sobre a Diversi-dade Cultural de 2001, que figurou na primeira ses-são das negociações intergovernamentais, inspirounumerosos compromissos que repercutiram na for-mulação de artigos estratégicos, deixando o campolivre para interpretações diametralmente opostas.

O artigo 20º, celebrado pela diplomacia francesacomo uma vitória contra a visão mercantil da cultu-ra, para os britânicos, por outro lado, parece signifi-car que a convenção possa subtrair os bens e servi-ços culturais de competência da OMC. A própriadefinição de “políticas culturais” flerta com a tauto-logia: “As políticas e medidas culturais remetem àspolíticas e àas medidas relativas à cultura, em nívellocal, nacional, regional ou internacional, quer se-jam centradas na cultura enquanto tal ou destinadasa ter um efeito direto sobre as expressões culturaisdos indivíduos, grupos ou sociedades, incluindo acriação, a produção, a difusão e a distribuição dasatividades, dos bens e dos serviços culturais e oacesso a eles”.

A febre de conceitos está longe de ser conjuntural.

Não é por nada que em 1998 os participantes daConferência Intergovernamental sobre as PolíticasCulturais para o Desenvolvimento, organizada emEstocolmo, deploraram a “ausência relativa de cla-reza conceitual no domínio das políticas culturais”.Eles imputaram esse estado de coisas a uma combi-nação de fatores, entre os quais: imaturidade relativadas políticas culturais como domínio interdiscipli-nar de estudo e de pesquisa; a frágil prioridadeacordada para financiamento de pesquisa pelas ins-tituições encarregadas de definir e colocar em práti-ca essas políticas; o caráter privado ou privatizadode numerosos trabalhos; a pouca ligação entre asuniversidades e os setores culturais; a falta de recur-sos para financiar as pesquisas sistemáticas por par-te das instituições e organizações da sociedade civil;a exagerada focalização sobre o nacional e desigual-dade na repartição internacional das capacidadesde pesquisa. Enfim, assinalam o fato de que “certosaspectos das políticas culturais tocam pontos sensí-veis, o que conduz à tomada de decisões muitopolíticas”. Para ilustrar, esses especialistas das polí-ticas culturais e midiáticas citam o caso dos “gruposde pressão influentes que pesam sobre o exame dosembates cruciais das políticas culturais – a maneirade se repartir propriedade da mídia, por exemplo”.6

Cerca de 20 anos depois da introdução da noção deindústrias culturais nas referências da instituição, aUnesco é incitada a se engajar no reconhecimentodas indústrias culturais. Eis um vasto programa queconviria retomar e aprofundar.

A construção de políticas culturais é, dificilmente,concebível sem o desvio para a questão das políticasde comunicação. Pois a convenção é, fundamental-mente, a filosofia mesmo de ação da Unesco no quediz respeito à diversidade cultural, com tendência anão apenas dissociar as duas problemáticas, mastambém de ignorar a segunda. Na convenção figu-ram duas alusões à “diversidade da mídia”. Umano preâmbulo, que lembra que “a liberdade de pen-samento, de expressão e de informação, assim comoa diversidade da mídia, permitem o desenvolvi-mento das expressões cultuais no seio das socieda-des”. A segunda, no artigo 6º, entre as medidas aserem tomadas, enumera (ponto h): “Aquelas quevisam a promover a diversidade da mídia, incluin-do o meio de serviço público de informação”. O queserá essa “diversidade da mídia”, não se sabe ain-da.7 Suficiente para amedrontar os Estados Unidos(em desacordo com as demandas do Movimentodos Países Não-alinhados em favor do reequilíbriodos fluxos através de uma Nova Ordem Mundial daInformação e da Comunicação – NOMIC), que con-tribuem com 20% do orçamento da Unesco? Certa-mente. Compartimentação das taxas entre divisõesde uma grande máquina burocrática? Certamente,ainda. Mas há mais.

A instituição internacional criou sua própria len-da sobre esse período dos anos 1970, no qual o

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debate sobre as políticas culturais ia ao lado do daspolíticas de comunicação. A reflexão socioeconômicasobre as indústrias culturais situava no ranking dasquestões fundamentais os fenômenos de concentra-ção econômica e financeira no contexto da inter-nacionalização. E essas questões encontraram asexigências do “diálogo das culturas” e do “desen-volvimento harmonioso na diversidade o respeitorecíproco”. A visão cultural se tornou autônoma namedida em que refluía a reflexão estratégica sobreas políticas de comunicação enquanto conjunto deprincípios, de disposições constitucionais, de leis,regramentos e instituições estatais, públicas e priva-das que compunham o quadro normativo da televi-são, do cinema, do rádio, da internet, da publicida-de, da produção editorial, da indústria fonográfica,das artes e espetáculos. Uma definição das políticasde comunicação em direção das quais convergemtanto as ciências políticas, a economia política dacomunicação e da cultura quanto os estudos cultu-rais, na sua versão crítica.

Será vã a tentativa de encontrar algum traço de“acumulação intelectual” realizada pela Unesco so-bre os dispositivos e as políticas de comunicaçãoentre seus documentos oficiais para que possamosilustrar o caminho da questão da diversidade cultu-ral nas estratégias desde sua fundação.8 O mesmomutismo se verifica em relação ao relatório MacBridede 2005, data do aniversário de sua aprovação pelaConferência Geral de Belgrado. Esse silêncio institu-cional contrasta com as numerosas iniciativas feitas,nessa ocasião, um pouco em todo o mundo, porpesquisadores que revisitam o documento funda-dor, o reavaliam e o confrontam com as novas ques-tões suscitadas pelos desafios de construção de umasociedade do conhecimento para todos.9

Mobilização das redes de cidadãosA convenção irá se impor como referência atravésda qual os interventores privados e públicos deve-rão, de qualquer forma, compor. Aí reside sua perti-nência. Donde a necessidade de novos sujeitos, nãoapenas para colocá-la em prática, mas também paraestender sues limites. O artigo 11º os convida: “Aspartes reconhecem o papel fundamental da socieda-de civil na proteção e na promoção da diversidadedas expressões culturais. As partes encorajam a par-ticipação ativa da sociedade civil em seus esforçospara alcançar os objetivos desta convenção”. De fato,ao longo do processo de elaboração do anteprojeto,da aprovação da idéia mesmo como um instrumen-to jurídico e em vários lugares do planeta, seusprotagonistas tomaram consciência das responsabi-lidades públicas que os incitaram a a se posicionar.É uma lição de intensa mobilização, nacional e inter-nacionalmente falando, tanto de redes ligadas aomovimento social como de redes dos coletivos naci-onais das organizações profissionais da cultura.

Os primeiros criaram um elo entre os debates

sobre a convenção e os debates que se desenrolaramna Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informa-ção, fazendo convergir a tese pelos “direitos à co-municação” às problemáticas da diversidade cultu-ral e midiática. Diversidade de fontes de informação,da propriedade da mídia e dos modos de acesso aeles, apoio do serviço publico e à mídia livre e inde-pendente. Os segundos, compostos de cerca de 30coalizões nacionais formadas em menos de quatroanos, mostraram que se podiam conjugar funçõesda cultura e da cidadania, sem se fechar na defesade interesses corporativos. Elaboração de diagnósti-cos, de proposições, campanhas de sensibilização,encontros organizados sucessivamente em Montre-al, Seul e Paris. Quando do último organizado emMadri, em maio de 2005, participaram cerca de 170organizações oriundas de todas as regiões do mun-do para debater o tema “Diversidade cultural: umnovo elemento do sistema jurídico internacional”.

A extrema variedade dos centros de interesse, deproveniências lingüísticas e culturais dos novos eantigos sujeitos sociais e culturais, assim como suasformas de ação demonstram que se há uma fonte deuma nova diversidade é a da pluralidade dos prota-gonistas que surgiram na esfera cívica mundial apartir do final do século passado. O que eles procu-ram nos dizer é que os combates pela diversidadecultural só adquirem sentido à luz de uma interro-gação mais vasta sobre o modelo de sociedade: qualé o estatuto para o conjunto dos bens públicos co-muns? Os bens que têm o nome de cultura, informa-ção, comunicação e educação, mas também a saúde,o meio ambiente, a água, o espectro de freqüênciasde radiodifusão, etc., todos esses domínios que de-veriam constituir as exceções em relação à apropria-ção privada. Todos esses bens que deveriam serproduzidos e repartidos em condições de eqüidadee de liberdade segundo os princípios constitutivosda própria definição de serviço público, qualquerque seja o estatuto das empresas que asseguramessa missão. Mas a definição desse patrimônio co-mum é sempre, e mais do que nunca, objeto dedisputas nas instituições internacionais, do BancoMundial ao Programa das Nações Unidas para oDesenvolvimento. Lá, também, se disputa uma ba-talha em torno de um conceito que discute a liberali-zação excessiva de todos os interstícios da vida.

Essa filosofia dos bens públicos comuns os movi-mentos cidadãos procuram fazer valer dentro e forados circuitos internacionais nos quais se debate onovo sentido do mundo. Ao criarem sua própriatribuna, os fóruns sociais, em todos os níveis, noslugares de reflexões e de proposições, intervêm emmúltiplas frentes, por onde quer que se decida asorte de questões ditas globais. Essas frentes podemser até motivadas pelo cidadão ordinário. Na reali-dade, e é essa a nova sistemática, eles são indissociá-veis. Eles são até convergentes. É preciso juntar osfios. Costurar o elo orgânico que os une no combate

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contra a privatização do mundo, reconhecendo emcada um deles a especificidade de seus respectivosembates. A tomada de consciência sobre as contro-vérsias de temas mobilizadores como a diversidadecultural, a propriedade intelectual, etc. esbarra, fre-qüentemente, nas questões processuais e técnicas.

Ora, o que ensinam as negociações sobre a con-venção é que esses debates dizem respeito a todosnós. Partilhar os saberes, incluindo os cidadãos nodebate sobre as grandes escolhas da sociedade, setornou um imperativo categórico da vida democrá-tica. Só sob essa condição é que a nova utopia dapartilha de conhecimentos pode vir a ser a premissade uma sociedade pensada não apenas em termosde identidades múltiplas, mas à luz da igualdadesocial. FAMECOS

NOTAS

* Texto traduzido do francês por EduardoPortanova Barros (doutorando PUCRS/bolsistaCNPq).

1 Koïchiro Matsuura, Diretor-geral da Unesco, “Adiversidade cultural do mundo”, prefácio dapublicação da Unesco, Declaração universalsobre a diversidade cultural, Paris, 2002, SérieDiversidade Cultural n°1, p. 3.

2 Huntington Samuel. The Clash of Civilizationsand the remaking of World Order. New York,Simon and Schuster, 1996.

3 D’Arcy J. (1969), “ Direct Broadcast Satellitesand the Right to Communicate ”, in Right toCommunicate. Collected Papers, L. S. Harms(ed), Honolulu, University of Hawaii Press,1977. Ver também : Unesco, Relatório dareunião de especialistas sobre a política e aplanificação da comunicação, Paris, 1972.

4 Comitê de especialistas sobre o lugar e o papeldas indústrias culturais no desenvolvimentocultural das sociedades, Montreal (Canada), 9–13 juin 1980, Documento do Secretariado daUnesco, As indústrias culturais, Paris, Divisãode Desenvolvimento Cultural, p. 14. Vertambém As indústrias culturais. Um embatepara o futuro da cultura, Paris, Unesco, 1982.(Há uma versão em espanhol e em inglês).

5 Voir Mattelart A. et M. et Delcourt X., Laculture contre la démocratie ? L’audiovisuel àl’ère transnationale, Paris, La Découverte, 1984.(Cultura contra democracia ? O audiovisual naépoca transnacional, Sao Paulo, EdidoraBrasiliense, 1987).

6 Bennett T. et Mercer C., “Amélioration de la

recherche et de la coopération internationale enmatière de politiques culturelles ”, Conferênciaintergoverna-mental sobre as políticas culturaispara o desenvolvimento, Estocolmo, 30 março–2 abril de 1998, Paris, dezembro de 1997.Original inglês.

7 Ver, por exemplo, as proposições da redemundial CRIS (Derechos a la comunicacion enla Sociedad de la informacion), Comentarios al“ Ante-proyecto de Convencion sobre laProteccion de la Diversidad de los Contenidosculturales y las expresiones artisticas ”,www.crisinfo.org, 11 de novembro 2004.

8 Divisão das políticas culturais, L’Unesco et laquestion de la diversité culturelle, Bilan etstratégies, 1946–2003, Paris, Unesco, versãorevisada, 2005.

9 Ler o dossiê da Revista Eptic on line (Economiapolitica de tecnologias de informaçao e dacomunicaçao), vol. VIII, n°VI, octobre 2005 ;igualmente : Institut de la comunicacio (Incom/UAB) e Consell de l’Audiovisual de Catalunya,“XXV aniversario del Informe MacBride.Comunicacion internacional y polticas decomunicacion ”, Quaderns del Consell del’Audiovisual de Catalunya, Barcelone, n°21,janeiro–abril de 2005.