mulheres, corpos, gÊneros, lesbianidades: uma revisÃo ... · “lesbianidades”, a fim de...

5
MULHERES, CORPOS, GÊNEROS, LESBIANIDADES: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA Beatriz de Mattos Porto (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) Fernando S. T. Filho (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) [email protected] Resumo O presente trabalho é fruto da revisão bibliográfica de uma pesquisa de mestrado em andamento, compondo o primeiro capítulo desta. A pesquisa visa descrever e analisar os discursos sobre as lesbianidades no cinema brasileiro, especificamente nos filmes Como Esquecer (2010) e Flores Raras (2013). O capítulo que abarca a presente reflexão visa iniciar uma discussão acerca dos conceitos “mulheres” e “lesbianidades”, a fim de discorrer sobre o que faz com que denominemos certos corpos enquanto “mulheres” e certas práticas de “lesbianidades”, pensando também em corpo enquanto máquina e em gênero enquanto tecnologia social. Este trabalho traz reflexões iniciais a respeito deste tema e problematiza essas categorias à luz dos Estudos Queer. Palavras-chave: Psicologia; lesbianidades; estudos queer. Introdução Ô mãe, me explica me ensina/o que é ser feminina?” Começo este texto com Joyce, cantora e compositora brasileira. Em sua música “Feminina”, “a” eu lírico indaga sua mãe: o que é ser feminina? Podemos dizer que, em última instância, a pergunta é: o que é ser mulher? Parece uma pergunta com uma resposta óbvia, afinal, mulheres são... mulheres, certo? Entretanto, as respostas (ou melhor dizendo, os desdobramentos da pergunta) não são tão óbvias. A partir deste momento, a ideia de que corpos são marcados tão somente pela natureza, com seu destino imutável pré-determinado pela biologia, fica em suspenso. Aqui, corpos são um campo de ação política (FLORES, 2009), construções, efeitos de uma produção, que

Upload: others

Post on 15-Mar-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: MULHERES, CORPOS, GÊNEROS, LESBIANIDADES: UMA REVISÃO ... · “lesbianidades”, a fim de discorrer sobre o que faz com que denominemos certos corpos enquanto “mulheres” e

MULHERES, CORPOS, GÊNEROS, LESBIANIDADES: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Beatriz de Mattos Porto (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho)

Fernando S. T. Filho (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho)

[email protected]

Resumo O presente trabalho é fruto da revisão bibliográfica de uma pesquisa de mestrado em andamento, compondo o primeiro capítulo desta. A pesquisa visa descrever e analisar os discursos sobre as lesbianidades no cinema brasileiro, especificamente nos filmes Como Esquecer (2010) e Flores Raras (2013). O capítulo que abarca a presente reflexão visa iniciar uma discussão acerca dos conceitos “mulheres” e “lesbianidades”, a fim de discorrer sobre o que faz com que denominemos certos corpos enquanto “mulheres” e certas práticas de “lesbianidades”, pensando também em corpo enquanto máquina e em gênero enquanto tecnologia social. Este trabalho traz reflexões iniciais a respeito deste tema e problematiza essas categorias à luz dos Estudos Queer. Palavras-chave: Psicologia; lesbianidades; estudos queer. Introdução

“Ô mãe, me explica me ensina/o que é ser feminina?” Começo este texto com

Joyce, cantora e compositora brasileira. Em sua música “Feminina”, “a” eu lírico

indaga sua mãe: o que é ser feminina? Podemos dizer que, em última instância, a

pergunta é: o que é ser mulher? Parece uma pergunta com uma resposta óbvia,

afinal, mulheres são... mulheres, certo? Entretanto, as respostas (ou melhor dizendo,

os desdobramentos da pergunta) não são tão óbvias. A partir deste momento, a

ideia de que corpos são marcados tão somente pela natureza, com seu destino

imutável pré-determinado pela biologia, fica em suspenso. Aqui, corpos são um

campo de ação política (FLORES, 2009), construções, efeitos de uma produção, que

Page 2: MULHERES, CORPOS, GÊNEROS, LESBIANIDADES: UMA REVISÃO ... · “lesbianidades”, a fim de discorrer sobre o que faz com que denominemos certos corpos enquanto “mulheres” e

por sua vez é efeito de tecnologias sociopolíticas complexas. Nem natureza, nem

cultura, nem organismo, nem máquina: entidade tecnoviva multiconectada que

incorpora tecnologia, como definem Donna Haraway e val flores (2013, p.128).

Mas, neste contexto, o que é tecnologia? Trago aqui uma pequena explicação

do uso do termo a partir de Preciado (2014, p. 154), que por sua vez discute sua

acepção em Foucault: Para Foucault, uma técnica é um dispositivo complexo de poder e de saber que integra os instrumentas e os textos, os discursos e os regimes· do corpo, as leis e as regras para a maximização da vida, os prazeres do corpo e a regulação dos enunciados de verdade.

Continuemos. Para Preciado (2014, p. 25; p. 168), pensarmos em uma

“natureza humana” anterior ao constructo social, com um “marco zero” sem

interferências externas, já não nos oferece explicações contundentes. Para o autor o

pressuposto de “natureza humana” é uma criação desta tecnologia sociopolítica em

seu maior grau de sofisticação, exatamente porque faz-se passar como natureza, ou

seja, como imutável, intransponível. Esta ideia de natureza humana possui como um

de seus grandes efeitos a equação natureza=heterossexualidade.

Seguindo esta linha, podemos dizer que tanto a dimensão do sexo quanto a

do gênero são igualmente de ordem tecnológica. Afinal, vimos que corpos não são

matéria passiva da construção social e da modificação tecnológica, e não há como

delimitar onde termina o que seria “natural”, o corpo, e onde começa o

“social/tecnológico”. O corpo não existe por si só. Os órgãos, suas utilidades e como

as conhecemos já são produto de uma sofisticada tecnologia, que prescreve o

contexto em que cada parte do corpo atinge uma significação de que se utiliza com

propriedade, de acordo com sua “natureza” (PRECIADO, 2014, p. 31).

Para Preciado (2014, p. 26; p. 29), o sistema sexo/gênero é um sistema de

escritura que se dá na materialidade do corpo. Ele compara o corpo como um texto

que seria socialmente construído, um “arquivo orgânico da história da humanidade

como história da produção-reprodução sexual, na qual certos códigos se

Page 3: MULHERES, CORPOS, GÊNEROS, LESBIANIDADES: UMA REVISÃO ... · “lesbianidades”, a fim de discorrer sobre o que faz com que denominemos certos corpos enquanto “mulheres” e

naturalizam, outras ficam elípticos e outras são sistematicamente eliminados ou

riscados.”. Estas tecnologias sociopolíticas inscrevem e escrevem nesse arquivo

orgânico que é o corpo, produzindo-o, moldando-o, fazendo com que o corpo habite

as normas dessas tecnologias. Como diz Butler (2013), ao retomar o texto de

Foucault “O que é a crítica”, o “eu” se modela nos termos da norma, passa a habitá-

la e a incorporá-la. A partir deste momento, então, entenderemos corpos enquanto

produções, e nos aproximemos da produção dos corpos que convencionamos

chamar de femininos.

Voltemos: quem, afinal, são as mulheres? Essas perguntas geraram e geram

muitas discussões no campo do feminismo. Teresa de Lauretis (1993) conclui que

após esses questionamentos o feminismo chegou à resposta de que a mulher não

existe. É que sua existência é paradoxal, presa e excluída dos discursos, se fala

constantemente dela, porém ela não tem voz. Não é representada nem

representável, é apenas objeto de visão. Sua existência é, ao mesmo tempo,

declarada e rechaçada, negada e controlada.

Apoiando-se em uma leitura de Irigaray, Teresa de Lauretis (2000, p. 80),

define o que ela chama de (in)diferença sexual, a saber: o universo do que é

considerado feminino só existe de acordo com modelos, leis e parâmetros dados

pela masculinidade, que é hegemônica. Isso quer dizer Lauretis compreende que,

nos discursos hegemônicos, há apenas um sexo (o masculino) e não dois, uma

única prática e uma única representação sexual, que seria a heterossexual. Corpos

não cishomens são, desta forma, os corpos marcados com a diferença, já que os

corpos neutros e universais seriam os masculinos cisgêneros. Não é à toa que

existe a ideia de que são as mulheres que possuem gênero, e não os homens, em

um processo de naturalização de privilégios (PLATERO, 2013, p. 47).

A trajetória das mulheres que amam mulheres é permeada duplamente por

silêncios e clandestinidade, e a invisibilidade incide de maneira particular aqui, como

explica val flores (2009). Para ela, o regime da heterossexualidade é um regime de

Page 4: MULHERES, CORPOS, GÊNEROS, LESBIANIDADES: UMA REVISÃO ... · “lesbianidades”, a fim de discorrer sobre o que faz com que denominemos certos corpos enquanto “mulheres” e

visão social que produz cegueira em relação às manifestações que não podem ser

percebidas dentro deste regime; a hegemonia hipervisual, como ela chama, é o que

causa a cegueira e satura os olhos, carregados de imagens heterocentradas. Ou

seja, mais que objetos de visão – lugar relegado às mulheres heterossexuais -,

mulheres que têm suas práticas e vivências não heterossexuais escapam do

inteligível, do campo visível que é ditado pelo supracitado regime da

heterossexualidade, ou heteronormatividade, esta máquina de produção ontológica

(PRECIADO, 2014, p. 28).

Para Preciado (2014, p. 26; 30) a heterossexualidade é também uma

tecnologia social e está longe de surgir espontaneamente de cada corpo recém-

nascido, como se fosse uma origem natural fundadora; ela “deve se reinscrever ou

se reinstruir através de operações constantes de repetição e de recitação dos

códigos (masculino e feminino) socialmente investidos como naturais”, ou seja: tanto

a heterossexualidade quanto as outras manifestações da sexualidade são

construídas e possuem caráter político, assunto inicialmente explorado por Foucault,

em História da Sexualidade (1985).

Partindo destas discussões podemos considerar que gênero e sexo não são

categorias fixas, estáticas, naturais, imutáveis, atemporais, e sim mutáveis, plásticas

(PLATERO, 2003, p. 49) de acordo com as diferentes realidades históricas, sociais,

econômicas, que compõem os sujeitos e suas singularidades. Os corpos performam

os gêneros, e mesmo sendo um processo repetitivo, nunca há corpos idênticos, e

muito menos um gênero original, ao qual pode-se retornar. O que há é a repetição

das normas que podem ser transgredidas, imitadas, parodiadas, explicitando a

fragilidade de um sistema normativo, isto é, o par sexo/gênero/desejo/práticas

sexuais que, para sustentar-se, precisa ser exaustivamente repetido (RODRIGUES,

2012).

Enfim, não há como pensar em mulher e lesbianidades enquanto entidades

fixas, atemporais, “moldes” universais, e sim em categorias em transformação,

Page 5: MULHERES, CORPOS, GÊNEROS, LESBIANIDADES: UMA REVISÃO ... · “lesbianidades”, a fim de discorrer sobre o que faz com que denominemos certos corpos enquanto “mulheres” e

multiplicidades de experiências, de atravessamentos sociais, econômicos e

históricos. Referências BLUTER, J. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e

Filosofia Política, 22, p. 158-179, 2013.

FLORES, V. Interrupciones. Ensayos de poética activista. Neuquén: Editora La Mondonga

Dark. 2013 Disponível em: http://escritoshereticos.blogspot.com/2014/11/interruqciones-

libro-para-descargar.html

FLORES, V. Prácticas ficcionales para una política bastarda. La tecno-lesbiana. In:

Conversaciones Feministas “Biopolítica”. Edições Ají de Pollo. Buenos Aires, 2009.

Disponível em: http://escritoshereticos.blogspot.com/2009/08/practicas-ficcionales-para-una-

politica.html

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Graal,

1985

HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da

perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, p. 7-41, 1995.

LAURETIS, T. “Diferencia e Indiferencia Sexual”. In: Diferencias. Etapas de un camino a

través del feminismo. San Cristóbal, Madrid: Horas, 2000. p. 79-110.

_______________. “Sujetos excéntricos: la teoría feminista y la conciencia histórica. In:

CANGIAMO, M. C., DUBOIS, Lindsay (org.), De mujer a género, teoría, interpretación y

práctica feministas en las ciencias sociales. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina,

1993. p.73-113.

PLATERO, R. L. Marañas con distintos acentos: género y sexualidad en la perspectiva

interseccional. Encrucijadas. Revista Crítica de Ciencias Sociales, n. 5, p. 44-52, 2013.

PRECIADO, B. Manifesto Contrassexual. São Paulo: N-1 Edições, 2014. 223 p.

RODRIGUES, C. Performance, gênero, linguagem e alteridade: J. Butler leitora de J.

Derrida. Sex., Salud Soc. (Rio J.), Rio de Janeiro, n. 10, p. 140-164, Abril 12. Disponível em

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-

64872012000400007&lng=en&nrm=iso>. acessado em 08 Jan. 2018.