mÜller-lauter, wolfang - a doutrina da vontade de poder em nietzsche

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A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE

Dado s d e Cataloga o n a Publica o (CIP ) Internaciona l (Cmar a Brasileir a d o Livro , SP , Brasil ) Mller-Lauter, Wolfgan g A doutrin a d a vontad e d e pode r e m Nietzsch e / Wolfgan g Mller-Laute r ; Itradu o Oswald o Giacoi a l. S o Paul o : ANNABLUME , 1997 . (Cola o E ; 6 ) Ttulo original: Nietzsche Lehre von Willen Zr Macht . Bibliografia . 1. Nietzsche , Friedric h Wilhelm , 1844-190 0 l. Ttulo . II. Srie . CDD-19 3 ndice s par a catlog o sistemtico : 1. Vontad e de poder: Nietzsch e : Fiolosofia alem

19 3A DOUTRIN DA VONTAD DE PODER EM NIETZSCH A E E Wolfgan g Mller-Laute r ISBN 85-85596-85-6 :

SUMRI

O

A TERCEIRCapa: Luciano Guimares Reviso: Dda Bessana

A MARGE M D A INTERPRETAScarett Marton

O

A DOUTRIN A D A VONT A D E PODE R E MCONSELH O EDITORIA LEduardo Permeia Canizal Willi Bolle Norval Baitello Jnior Carlos Gardin Lucrcia D'Alssio Ferrara Ivan Bystrina SalmaT. Muchail Ubiratan D'Ambrsio Plnio de Arruda Sampaio Maria Odil Leite da Silva Dias a

NIETZSCH E Caracteriza o provisri a d a vontad e de 1 pode r

4

9 54 56 5 9

Observae s sobr e a problemtic a do s pstumo s A significa o do s pstumo s n a interpreta o de Nietzsch e po r Karl Schlecht a A respeit o da s declarae s d e Nietzsch e sobr e a vontad e de pode r em obra s publicada s Sobr e a interpreta o d a vontad e d e pode r com o princpio metafsic o A vontad e de pode r com o u m e mltipl o 'Vontad e de Poder ' n o singula r Os muito s mundo s e o nic o mund o 'As ' vontade s d e pode r 'no ' mund o

62 7 0 7 3 8 1 9 8 10 4 12 0

11 edio maio de 199 7 :

Wolfgang Mller-Lauter

ANNABLUME editora. comunicao Rua Ferreira de Arajo , 359 Pinheiros 05428-000 . So Paulo . SP . Brasil Tel. e Fax . (011)212.676 4 http://annablume.com.br

A vontad e d e pode r com o interpreta o

A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAO

Scarlett Marton

Sempre os escritos de Nietzsche do margem a mltiplas leituras. Apresentam enorme riqueza em figuras de estilo, mascaram a histria da vida de um homem, revelam uma experincia filosfica determinante. Prestam-se a estudos de ordem diversa: o exame estilstico, a anlise psicolgica, a interpretao filosfica. Neles se inspiram grande nmero de trabalhos; deles tratam outros tantos. H os que se consagram s influncias que o filsofo exerceu e os que se dedicam repercusso de sua obra. H os que comparam o tratamento que ele d a alguns temas com os de outros autores e os que se detm na anlise de um de seus textos. H ainda os que se voltam para o exame de questes precisas e os que se empenham em avaliar a atualidade de seu pensamento enquanto um todo. Entre ns, duas leituras da obra de Nietzsche acabaram por impor-se: a de Heidegger e a de Foucault. Enquanto Heidegger, com seu fino e preciso trabalho filolgico, julgou que a empresa nietzschiana consistia em levar a metafsica at as ltimas consequncias, Foucault, com a amplitude e audcia de sua viso, entendeu que ela residia em inaugurar

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novas tcnicas de interpretao. Um atenuou a reflexo do filsofo para pr em relevo a sua prpria; o outro dela se apropriou enquanto caixa de ferramentas. margem de ambas situa-se a interpretao de Mller-Lauter.

e permanece objeto das mais diversas interpretaes. Mas tal diversidade no resulta apenas dos pressupostos que norteiam as vrias leituras; deve-se tambm a uma dificuldade tcnica. sobretudo nos fragmentos pstumos, redigidos pelo filsofo entre o vero de 1882 e os primeiros dias de 1889, que tal concepo se acha presente; e s muito recentemente estas anotaes foram publicadas na ntegra.3

Em seu ensaio A doutrina da vontade de poder em Nietzsche,1 Wolfgang Mller-Lauter prope-se a explorar as ideias do filsofo e desvendar a trama dos seus conceitos. Partindo da anlise de uma concepo considerada central pela maioria dos comentadores, reconstri com clareza e vigor o pensamento do autor de Zaratustra, aquilatando o alcance de sua reflexo. No por acaso, porm, que adota este ponto de partida. Controvertida, a concepo de vontade de potncia2 1. Publicado numa primeira verso nos Nietzsche-Studien (3) 1974, Berlim, Walter de Gruyter, p. 1-60, considerado pelo prprio autor como seu ensaio mais importante. 2. Optamos por traduzir a expresso Wille zur Macht por vontade de potncia. E isto por vrias razes. Adotamos a escolha feita por Rubens Rodrigues Torres Filho na sua traduo para o volume Nietzsche Obras Incompletas da coleo "Os Pensadores" (So Paulo, Abril Cultural, 2S ed., 1978). Permanecemos fiis a outros escritos nossos, em que desde 1979 fizemos essa opo. Se traduzir Wille zur Macht por vontade de potncia pode induzir o leitor a alguns equvocos, como o de conferir ao termo "potncia" conotao aristotlica, traduzir a expresso por vontade de poder corre o risco de lev-lo a outros, como o de tomar o vocbulo "poder" estritamente no sentido poltico (e, neste caso, contribuir sem que seja essa a inteno para reforar eventualmente apropriaes indevidas do pensamento nietzschiano). Mesmo correndo o risco de fazer m filologia, parece-nos ser possvel entender o termo Wille enquanto disposio, tendn-

Mller-Lauter enfrenta o desafio. Comea por perguntar pela legitimidade de recorrer aos pstumos para examinar a concepo de vontade de potncia. Deve-se consider-los mais relevantes que a obra publicada? Ou, pelo menos, to importantes quanto ela? Deve-se, ao contrrio, levar em conta somente os textos publicados pelo prprio Nietzsche? Ou aterse sobretudo a eles? Mais at, deve-se confiar em igual medida nas diferentes edies das anotaes inditas deixadas pelo filsofo? Enfim, como se deve proceder diante dos escritos de Nietzsche? Esta , por certo, uma questo metodolgica; inevitvel que os estudiosos tenham de se haver com ela. Alguns julgam de maior valor os livros editados pelo filsofo; outros cia, impulso e o vocbulo Macht, associado ao verbo machen, como fazer, produzir, formar, efetuar, criar. Enquanto fora eficiente, a vontade de potncia fora plstica, criadora. o impulso de toda fora a efetivar-se e, com isso, criar novas configuraes em relao com as demais. Contudo, a principal razo, que nos leva a manter a escolha que fizemos, consiste em oferecer ao leitor, com as duas opes de traduo ("vontade de potncia" e "vontade de poder"), a possibilidade de enriquecer sua compreenso dos sentidos que a concepo Wille zur Macht abriga em Nietzsche. 3. Trata-se da edio crtica das obras completas do filsofo organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari: Werke. Kritische Gesamtausgabe, 30 vs., Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1967/1978.

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atribuem peso maior aos fragmentos pstumos. H ainda quem hierarquize os textos segundo a importncia que acreditam ter cada um deles, encarando este ou aquele como a "obra capital". E h quem entenda que se deva levar em conta apenas os pstumos que se mostram de acordo com a obra publicada. Contudo, esta no apenas uma questo metodolgica. Perguntar sobre a relao que se deve estabelecer com os escritos de Nietzsche tem outras implicaes. Importa, antes de mais nada, deixar clara a disposio de no considerar a obra do autor de Zaratustra mero escrito ideolgico; implica sobretudo tornar patente a inteno de toma-la enquanto texto filosfico. Esta atitude vem contrapor-se a outras que, sem dvida, no se pautam por motivos tericos nem se norteiam por razes de mtodo. Visando a construir e divulgar certa imagem do filsofo, logo depois do colapso psquico que ele sofreu nos primeiros dias de janeiro de 1889, muitos decidiram coloc-lo "no seu devido lugar". Houve ento os que se dispuseram a fazer uma reavaliao retrospectiva das ideias luz do enlouquecimento; atriburam diferentes datas manifestao dos primeiros sintomas da doena mental. Houve tambm os que tentaram detectar os escritos redigidos sob o efeito das drogas; foram unnimes em ver nos textos de Turim a influncia do cloral. Enfim, no foram poucos os que se aproveitaram do estado em que Nietzsche mergulhou para desacreditar sua obra. Hoje a situao outra. So razes de mtodo que tm de embasar os diversos procedimentos que os estudiosos adotam em relao obra publicada e s anotaes inditas do filsofo. Mas bem possvel que tais decises metodolgicas escondam intenes; provvel at que exponham ngulos de viso. certo que revelam o vis pelo qual o estudioso compreende o autor de Zaratustra, a maneira pela qual o intrprete apreende como o prprio Nietzsche se percebeu e se colocou.

Assim que Karl Jaspers, por exemplo, compara a obra do filsofo a um canteiro de obras: as pedras esto mais ou menos talhadas, mas a construo se acha por fazer. 4 Walter Kaufmann caracteriza seu modo de pensar e expressar-se como "monadolgico": cada aforismo tende a ser autosuficiente, mas o conjunto se apresenta enquanto construo filosfica. 5 Jean Granier entende seus escritos enquanto um todo como um campo de runas aspecto causado por sua vontade ilimitada de contestao. 6 Eugen Fink, por sua vez, assegura que "Nietzsche mais dissimulou que publicou sua filosofia" 7 e Heidegger, de quem esta interpretao tributria, afirma que " nos escritos 'pstumos' que ser preciso buscar a autntica filosofia de Nietzsche".8 Quanto a este ponto, Mller-Lauter parece estar de acordo com Heidegger. Tambm ele entende que Nietzsche ocultou concepes suas ou apenas as deixou entrever. De fato, no so raras as passagens em que o filsofo critica a linguagem em sua funo comunicativa.9 Para que haja comu4. Cf. Nietzsche Einfhrung in das Verstndnis seines Philosophierens, Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1950. 5. Nietzsche, Philosopher, Psychologist, Antichrist, Nova York, The World Publishing Co., 101 ed., 1965. 6. L problme de Ia vrit dans Ia philosophie de Nietzsche, Paris, Seuil, 1966. 7. Nietzsches Philosophie, Stuttgart, 1960, p. 10. 8. Nietzsche, Berlim, GuntherNeskeVerlag, 1961, v. 1,p. 17. 9. Lembremos da belssima passagem do Crepsculo dos dolos: "No nos estimamos mais o bastante, quando nos comunicamos. Nossas vivncias mais prprias no so nada tagarelas. No poderiam comunicar-se, se quisessem. que lhes falta a palavra. Quando temos palavras para algo, tambm j o ultrapassamos. Em todo falar h um gro de desprezo. A fala, ao que parece, s foi inventada para o corte transversal, o mediano, o comunicativo. Com a fala j se vulgariza o falante" (Incurses de um

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nicao, no basta utilizar as mesmas palavras; preciso comungar as mesmas experincias. Atendendo a exigncias da vida gregria, a linguagem opera abreviaes. Antes de mais nada, abrevia como o indivduo se sente e o que pensa a respeito de si e do mundo. Seu carter grosseiro est longe, pois, de ser contingente; acha-se inscrito em sua prpria natureza. para facilitar a sobrevivncia que a linguagem, grosseira, simplifica. E no se reconhecendo simplificadora torna-se o solo propcio onde se enrazam preconceitos metafsico-religiosos. Razes bastantes para Nietzsche apresentar concepes suas de modo velado, alusivo ou mesmo hipottico. E a estas razes acrescentam-se outras. Tampouco so raros os momentos em que o filsofo se antecipa elaborao de suas ideias. Tanto que, em agosto de 1881, ao ser atravessado pela viso do eterno retorno, decide no particip-la a ningum.10 Mas, passados alguns meses, j na Gaia cincia anuncia que tudo retorna sem cessar. certo que, em sua obra, existem questes sempre retomadas; certo tambm que algumas questes so tratadas num nico texto e outras surgem, sofrem mudanas e desaparecem; certo ainda que, por vezes, a descontinuidade das questes se d de uma linha para outra. Mas tambm ocorre que ideias se apresentem de incio enquanto simples anotaes, paream logo perextemporneo, 26. Utilizamos a edio das obras de Nietzsche (Werke. Kritische Studienausgabe), organizada por Colli e Montinari; sempre que possvel, recorremos traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho para o volume Nietzsche Obras Incompletas da coleo Os Pensadores. 10: Tanto que no dia 14 escreve a Heinrich Kselitz: "Pensamentos surgiram em meu horizonte, pensamentos tais como nunca vi. No direi uma palavra e procurarei manter-me calmo e impassvel. Sem dvida, preciso que eu viva ainda alguns anos".

der a importncia e recebam, por fim, cuidadosa formulao. Ao que nos parece, para tentar compreender o pensamento de Nietzsche, preciso levar em conta todas as suas ideias as claramente explicitadas e as por serem elaboradas. igualmente necessrio considerar todos os seus escritos os livros publicados e os fragmentos pstumos. Pois, como bem (az ver Muller-Lauter, o prprio filsofo "se compreendia como o mais escondido de todos os ocultos". No fim das contas, o autor de Zaratustra um pensador a quem no se aplica a mxima estruturalista que insiste em dever o historiador trabalhar to-somente com a obra assumida pelo autor.11 Por isso mesmo, fundamental distinguir, no conjunto dos inditos, os escritos pstumos e os esboos preparatrios de trabalhos publicados, as parfrases de textos j concludos e os projetos de empreendimentos futuros. imprescindvel discernir com clareza os diversos registros em que as anotaes pstumas se situam. Da, a importncia de discutir e avaliar as diversas edies da obra do filsofo. Para o leitor brasileiro, esta questo talvez parea desprovida de sentido. Ela no revela de imediato toda sua importncia; ainda hoje no se dispe sequer de uma edio 11. Cf. GOLDSCHMIDT, Victor. "Tempo histrico e tempo lgico na interpretao dos sistemas filosficos". In A religio de Plato, traduzido do francs por leda e Oswaldo Porchat Pereira, So Paulo, Difel, 1963, onde se l: "Seja qual for o valor dos inditos, eles no so, enquanto concebidos num tempo unicamente vivido, construdos no tempo lgico, que o nico a permitir o exerccio da responsabilidade filosfica. Notas preparatrias, onde o pensamento se experimenta e se lana, sem ainda determinar-se, so lxeis sem crena e, filosoficamente, irresponsveis; elas no podem prevalecer contra a obra, para corrigi-la, prolong-la ou corola" (p. 146-7).

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das obras completas de Nietzsche em portugus.12 Aqui como alhures, o filsofo tornou-se clebre antes de ser conhecido. Por volta de 1900, Andr Gide escrevia nas Lettres Angle: "A influncia de Nietzsche precedeu o aparecimento de sua obra". Atento difuso de seu pensamento na Frana, referiase ao fato de seus livros no terem sido todos traduzidos para o francs. Quase cem anos depois, as palavras de Gide prestam-se muito bem para descrever o que ocorre entre ns. Os estudiosos de Nietzsche, porm, logo se vem confrontados com srios problemas, quando se debruam sobre as primeiras edies de seus textos. Em 1901, Elizabeth Frster-Nietzsche publicou uma obra a que deu o nome de Vontade de potncia. A partir de apontamentos que o filsofo deixou e de um plano que ele seguiu durante algum tempo, reuniu 483 fragmentos pstumos redigidos entre o outono de 1887 e os primeiros dias de janeiro de 1889. Escolheu-os a dedo no caos das notas escritas durante meses e organizouos sem respeitar sequer a ordem cronolgica. Assim, com a ajuda de Heinrich Kselitz, compilou o que apresentou como a "obra filosfica capital" de Nietzsche. Para legitimar sua empresa, a irm do filsofo no hesitou em falsificar cartas por ele dirigidas, na sua maioria, amiga Malwida von Meysenbug; obteve os originais, comps o texto a partir deles e depois os destruiu. Apresentando-se como destinatria das missivas, pretendia impor imagem de credibilidade junto aos editores e amigos do filsofo; queria levar a crer que conhecia as intenes dele melhor que ningum. Esprito empreendedor, Elizabeth empenhou-se na difuso do nome de Nietzsche pela imprensa; entre 1893 e 1900, fez dele o dolo das revistas. De posse da custdia de seus escritos, elaborou uma nova edio de seus livros, supervisio12. E ainda menos da edio crtica organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari.

nou as publicaes, insistiu no lanamento de edies baratas. Leiloou os manuscritos das conferncias "Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino", vendendo-os para um jornal popular em dezembro de 1893; autorizou a publicao de O anticristoem setembro de 1895; organizou uma antologia de poemas lanada antes do Natal de 1897. Com o capital proveniente dos direitos autorais, adquiriu uma propriedade em Weimar e nela instalou os Arquivos Nietzsche, onde recebia personalidades do mundo cultural e poltico. Mais tarde, permitiu e incentivou a utilizao da filosofia nietzschiana pelo Terceiro Reich e, em 1935, foi enterrada com as honras nacionais. E sobre o filsofo Elizabeth Frster-Nietzsche escreveu ensaios, artigos e uma biografia em trs volumes. Para a primeira edio da Vontade de potncia, redigiu longa introduo. Nela afirmava que o livro constitua a principal obra em prosa do irmo; infelizmente no fora concludo ou talvez tivesse sido, perdendo-se o manuscrito por ocasio da crise de Turim. Em 1906, publicou a segunda edio, em que reuniu 1.067 fragmentos pstumos, e mais uma vez no respeitou a ordem cronolgica nem explicitou os critrios de seleo. Nos manuscritos de Nietzsche, a inteno de escrever um livro intitulado Vontade de potncia surge por volta de agosto de 1885; apenas um ttulo ao lado de outros, um projeto literrio dentre vrios. No vero do ano seguinte, um plano de trabalho intitulado "Vontade de potncia" traz como subttulo "Ensaio de uma transvalorao de todos os valores. Em 4 livros", disposio que se mantm at 26 de agosto de 1888. A partir da, o ttulo "Vontade de potncia" desaparece, cedendo lugar a "Transvalorao de todos os valores".13 13. A esse propsito, comenta Mazzino Montinari: "Assim terminam, na viglia do prprio fim de Nietzsche, as vicissitudes do projeto literrio da Vontade de potncia" (Su Nietzsche, Milo, Editor! Riuniti, 1981, p. 65).

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Questionve l so b vrio s aspectos , a obr a qu e a irm do filsof o publico u com o Vontade d e potncia serviu , at a dcad a d e 1950 , enquant o instrument o d e trabalh o par a o s estudiosos . Contudo , depoi s d a Segund a Grand e Guerra , Kar l Schlecht a denuncio u o procediment o de Elizabet h Frster-Nietzsch e e desqualifico u o livr o po r el a inventado .

Vei o a pblico , po r fim , a edi o crtic a da s obra s completa s d e Nietzsche , organizad a po r Giorgi o Coll i e Maz /m o Montinari . Frut o d e u m trabalh o d e flego , desenvolvid o iio long o d e ano s co m extrem o cuidad o e rigor , conto u co m a colabora o decisiv a d e Muller-Lauter . D e inci o parceir o d e Montinar i ness e empreendimento , el e acabo u po r substitu-lo , depoi s d e su a mort e e m 1986 , passand o a coordena r e dirigi r ,is tarefa s editoriai s relativa s ao s pstumo s Q s carta s d e Nietzsche.15

Baseando-s e e m pesquisa s feita s no s Arquivo s Nietzsch e e m Weimar , constato u qu e n o existi a a Vontade d e potncia, a "obr a capital" ; tud o o qu e havi a era m papi s pstumos.14

Imprescindve l par a a pesquis a internaciona l acer -

N o coub e a ele , porm , publica r n a ntegr a o s escri to s d o filsofo ; n a edi o e m tr s volume s qu e levo u a termo ,

c a d a obr a d o filsofo , est a edi o crtic a acumul a mrito s inquestionveis : torno u acessve l ao s estudioso s a totalidad e

limitou-s e a divulga r pequen o nmer o d e inditos . E , a o lad o do s escrito s d e Nietzsche ; busco u recupera r o s texto s d e acor de algun s outro s textos , nel a inclui u justament e o s fragmento s d o co m o s manuscrito s originai s ordenado s cronologicamente ; pstumo s reunido s n a edi o d e 190 6 d a Vontade d e potn- procuro u depura r da s deformae s e falsificae s qu e sofrera m cia. be m verdad e qu e procuro u estabelece r a orde m crono - a obr a publicada , a s anotae s indita s e a correspondncia ; lgic a e m qu e teria m sid o redigidos ; ma s n o alcano u grand e inclui u imens o aparat o histrico-filolgic o d e valo r inestim xito , pois , a o qu e consta , n o tev e acess o ao s manuscrito s vel . Contudo , ante s d e el a vi r a pblico , grave s equvoco s originais . N o po r acas o que , n o entende r d e Muller-Lauter , fora m gerado s pela s edie s qu e a antecederam . Alguma s o grand e mrit o d a edi o qu e Schlecht a organizo u residi u dentr e elas , se m dvida , tamb m contribura m par a a s dife em denuncia r a lend a d e qu e a Vontade d e potncia consti - rente s apropriae s ideolgica s da s ideia s d o auto r d e Zaratuiri a a "obr a filosfic a capital " d e Nietzsche . E se u maio r defeit o apesa r d e n o se r ess a a inten o d o edito r consisti u e m refora r a image m d o filsof o qu e ess e mesm o livr o divulgou . tustra. No inci o d o sculo , n a Europa , muito s considerava m Nietzsch e u m pensado r do s mai s revolucionrio s e , n a Espa nha , chegava m a v-l o com o u m "anarquist a intelectual" . Pas sada s pouca s dcadas , porm , tomaram-n o com o u m do s pila -

re 14 . Foi , ento , incisivo : "bast a folhea r ess e conjunt o par as d o nazism o n a Alemanh a e dele s e apropriara m com o u m ve r qu e o s texto s reunido s (n a Vontade d e potncia), 15 . N o s e det m a a atividad e editoria l d e Muller-Lauter embor a pstumos , despertara m interess e considervel . Al m d e responde r durant e algu m temp o enquant o dire Deve-s e refleti r aind a mai s sobr e o fato , quand o s e per to r d e Theologia Viatorum, u m do s mai s importante s pe ceb e qu e a maio r part e desse s texto s impresso s se m a ridico s n a re a d e teologi a filosfic a e filosofi a d a reli autoriza o d e Nietzsch e n o concord a co m a textur a do s manuscritos : a Vontade d e potncia n o um a obr a gio , fundo u e m 197 2 o s Nietzsche-Studien. At be m pstuma " (" A lend a e seu s amigos" . In L Cs Nietzsche, recentemente , fo i u m do s editore s responsvei s dess a traduzid o d o alem o po r Andr Coeuroy , Paris , Galli publica o anual , que , po r su a qualidade , conquisto u u m luga r mpa r n a cen a filosfic a mundial . mard , 1960 , p . 123) .

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pensado r d e direit a n a Frana. 16 Po r certo , houv e que m de - ideolgica . Reivindicand o " a exignci a ancestra l d a racionali nuncio u a tram a qu e ligav a o nom e d e Nietzsch e a o d e Hitler .dade" , algun s pensadore s d a nov a gera o frances a quisera m D e 1935 a 1945, vrio s intelectuai s dentr e eles : Bataille , pensa r co m Nietzsch e contra o nietzschianismo ; melho r ainda Klossowski , Jean-Wahl , qu e s e reunia m e m torn o d a revist a contra determinad a utiliza o da s ideia s d o filsofo . E pensa co m Nietzsche , e m princpio , deveri a significa r leva r a sr Acphale empenharam-s e e m desfaze r o equvoco . N o fina l d a dcad a d e 1960 , a extrema-esquerd a fran - sua s afirmaes . Ma s o propsit o qu e declarava m persegui ces a fe z d o filsof o o suport e d e sua s teorias . E intelectuai s dn o impedi u qu e fizesse m recorte s arbitrrio s no s textos 1 8 o e s - apoiasse m e m citae s extrada s d a Vontade d e potncia peso , durant e a s dua s ltima s dcada s n a Frana , privilegia e ra m a vertent e corrosiv a d o se u pensamento . Incluram-n o ase m leva r e m cont a qu e est e fo i u m livr o inventad o pel a irm o d-o filsofo. 1 9 D e fato , combatend o o qu e julgara m se r um lad o d e Mar x e Freu d entr e o s "filsofo s d a suspeita" ; e enten dera m a filosofi a com o "exercci o infinit o d a desconstruo" apropria o ideolgica , a d e apresenta r Nietzsch e com o o mes . tr e d a suspeita , limitaram-s e a substitui r um a image m su a p Be m mai s recentemente , algun s pensadores d a nov a gera o outra . E co m a agravant e d e qu e est a nov a imagem , n a verda pretendera m rompe r co m Nietzsch e atrav s d e u m acert o d e de , reedito u outra s be m mai s antigas : a d e Nietzsch e racist a conta s co m o s nietzschiano s francese s d e hoje . E voltara m anti-semit a ou, na melho r das hipteses , a de Nietzsch e com contr a seu s mestres , Foucault , Deleuze , Derrid a e outros , a s prometid o co m o pensament o tradicional . arma s qu e este s lhe s ensinara m a manejar. 1 7 co m determina o qu e Mller-Laute r s e empenh a Est e fat o ilustr a be m o s mau s feito s d a apropria o e m desmascara r a s leitura s ideologizante s d a obr a d o filsofo E m se u artig o " O desafi o Nietzsche" , el e fa z ve r co m clarez 16 . A ttul o d e exemplo , cf . o artig o "Nietzsch e contr a Marx" , com publicad o e m 193 4 po r Drieu-la-Rochelle , e m Socialis- o "ideologia s t m frequentement e relae s prpria s d reciprocidade". 2 0 Mostr a com o s e construi u a image m marxist me fasciste. d ps 17 . Cf . BOYER , Alai n et alii. Pourquoi nous ne sommes e Nietzsch e num a rea o image m nacional-socialist a forja nietzschens, Paris , Bernar d Grasse t & Fasquelle , 1991 n. o Terceir o Reich . E apont a que, par a tanto , e m muit o con da D e mod o geral , o livr o pec a po r falt a d e reflex o filos fic a e excess o d e estado s psicolgicos , relato s autobio 18 . o cas o d o artig o d e Andr Comte-Sponvill e " A be grficos . Mas , par a al m d a aparent e catarse , te m u m fera , o sofist a e o esteta : ' a art e a servi o d a ilus objetiv o poltic o muit o preciso : demarca r territrio , con (n a edi o brasileira , p . 37-96) . quista r espa o n o cenri o intelectua l francs . E , par a 19 . o qu e ocorr e n o text o d e Pierre-Andr Taguief tanto , nad a mai s eficient e qu e a polmica . S e a obr a paradigm a tradicionalista : horro r d a modernidad e e possu i a qualidad e d o panfleto , ist o , a veemncia , se u tiliberalismo , Nietzsch e n a retric a reacionria " (n a maio r defeit o resid e e m manifesta r a alergi a po r Nietzsche , o brasileira , p . 213-94) . co m o mpet o d e contrapor-s e ao s nietzschiano s france - 20 . Traduzid o num a primeir a vers o po r Ernan i Chave s ses . Lanad o n o Brasi l co m o ttul o Po r qu e n o somos n a vers o definitiv a pel a Comiss o Editoria l d a revista nietzschianos (S o Paulo , Ensaio , 1994) , esperemo s qu e in discurso (21) , 1993 , p . 21 . Est e fo i o primeir o text o n o venh a apena s substitui r u m equvoc o po r outro s Mller-Laute r qu e co m grand e satisfa o logramo s tantos , mai s grave s e numerosos . blica r n o Brasil .

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correu o trabalho de Georg Lukcs. Recorrendo sociologia, o autor de A destruio da razo pretendeu explicar as colocaes do filsofo como resultantes de determinada posio ideolgica que vinha em defesa da burguesia imperialista na Alemanha. Embora suas ideias fossem nebulosas, suas afirmaes confusas e sua reflexo eivada de contradies, ao seu pensamento garantia coeso o contedo social nele expresso. E este consistia na luta contra o socialismo. Mas Mller-Lauter pergunta: "Pode-se demonstrar melhor o irracionalismo de Nietzsche do que quando se lhe nega toda coerncia de ideias e se encontra sua unidade pura e simplesmente na irrazo ideolgica da fundamentao do imperialismo?"21 No por acaso que o livro de Lukcs foi determinante na antiga Repblica Democrtica da Alemanha; ele contribuiu para a maneira pela qual l passaram a encarar Nietzsche. Julgaram que seu pensamento se propunha a fazer a roda da histria girar para trs; entenderam, por exemplo, que a vontade de potncia e o eterno retorno do mesmo estavam na base da viso de mundo que alimentava todas as cruzadas anticomunistas.22 E a ns surpreende que tambm no Brasil ainda haja quem partilhe tais preconceitos. Entre ns, muito cedo as ideias de Nietzsche despertaram interesse. J no incio do sculo, sua obra deixava marcas na literatura anarquista. Poucas dcadas depois, seguindo o esprito da poca, o filsofo passou a ser tomado como pensador de direita. E quando chegava ao auge a sua difamao, Antnio Cndido tomou a sua defesa. No ensaio "O portador", publicado em 1946 no Dirio de So Paulo, conclamou a que se levasse em conta "sua tcnica de21. Idem, ibidem, p. 21. 22. Mller-Lauter menciona o ltimo livro sobre Nietzsche que veio a pblico na Repblica Democrtica da Alemanha. Trata-se de Zur Philosophie Fredrich Nietzsches de Heinz Malorny lanado em 1989, em Berlim.

pensamento, como propedutica superao das condies individuais", e concluiu: "recuperemos Nietzsche". Por furtar-se a enfrentar seu pensamento, h quem pretexte os efeitos polticos desastrosos que ele teria causado. Se hoje h quem declare que seus escritos so monstruosos, porque no quer ver as deturpaes de que foram objeto. Assim reaviva-se a imagem de Nietzsche precursor do nazismo, fruto de uma leitura ligeira e superficial. Por desprezar sua reflexo, h quem sustente que o filsofo no fornece instrumentos para analisar as questes polticas. Se hoje h quem assegure que, no Brasil, intil ler seus textos, porque deles espera respostas imediatas para os nossos problemas. Assim divulga-se a imagem de Nietzsche desnecessrio e inoperante, fruto de um modo de pensar pragmtico e utilitarista. Para desvalorizar suas ideias, h quem argumente que o autor de Zaratustra um fenmeno episdico da histria da filosofia. Se hoje h quem afirme que sua obra no deixou marcas, porque desconhece a gama de escritos e debates que ela continua a ensejar. Assim difunde-se a imagem de Nietzsche sem escola ou seguidores, fruto de uma abordagem precipitada e cheia de preveno. Em suma, se entre ns ainda hoje h quem alerte para os perigos do contgio Nietzsche ou por ele manifeste alergia, argumentando que um pensador contraditrio e irracionalista, porque no se dispe a enfrentar, sem intermediaes, sua fala: corrosiva, mas tambm construtiva.

Nietzsche, um dos pensadores mais controvertidos de nosso tempo, deixou uma obra polmica que continua no centro da discusso filosfica. Mas, na verdade, dele sempre se disse o que se quis. Nos cem anos que nos separam do momento em que interrompeu sua produo intelectual, as mais

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variadas imagens colaram-se sua figura, as leituras mais diversas juntaram-se ao seu legado. Logo depois da crise de Turim, a sbita repercusso da obra trouxe em seu bojo o exorcismo de sua filosofia. Num primeiro momento, o interesse despertado pela biografia e a nfase dada ao estilo atenuaram a fora de suas ideias. Episdios de sua vida como a estada em clnicas psiquitricas atraam a ateno e aguavam a curiosidade. Genialidade e loucura eram termos indissociveis nos "crculos nietzschianos", que comearam a proliferar em toda a Alemanha na passagem do sculo. Tudo se passava como se a crise em que o filsofo mergulhara o envolvesse numa aura de mistrio, conferindo a afirmaes suas o peso das proclamaes de um profeta. Era na literatura mais do que em qualquer outro campo que se exercia a sua influncia. Nele se inspiraram autores naturalistas e expressionistas menos conhecidos e, tambm, escritores de renome como Stefan George, Thomas Mann e, mais recentemente, Robert Musil e Hermann Hesse. Muitos partiam do princpio de que Nietzsche no elaborou um programa, mas criou uma atmosfera: o importante era respirar o ar de seus escritos. Fascinados por sua linguagem, nele redescobriam a sonoridade pura e cristalina das palavras, a correspondncia exata entre nuanas de sons e sentidos, a nova perfeio da lngua alem. Mas viam-no sobretudo como um fino estilista e abandonavam quase por completo o exame de suas ideias. Entre 1890 e 1920, biografia e estilo ficaram em primeiro plano; com os anos, porm, comearam a surgir as mais diversas interpretaes da filosofia de Nietzsche. Alguns fizeram dele o defensor do irracionalismo; outros, o fundador de uma nova seita, o guru dos tempos modernos. Houve os que o consideraram um cristo ressentido e os que viram nele o inspirador da psicanlise. Houve ainda os que o tomaram por

precursor do nazismo e os que o encararam como o crtico da ideologia, no sentido marxista da palavra. E multiplicaram-se as interpretaes de suas ideias. Alguns tentaram esclarecer os textos partindo de uma abordagem psicolgica. Entendiam as possveis contradies neles presentes como manifestao de conflitos pessoais;23 percebiam suas ideias como uma "biografia involuntria de sua alma";24 compreendiam, em particular, sua concepo de alm-dohomem como fruto de uma "filosofia de temperamento".25 Outros, apoiando-se na psicanlise, diagnosticaram seu pensamento como expresso de uma personalidade neurtica. Encaravam a doutrina da vontade de potncia como traduo filosfica do jogo de seus mecanismos inconscientes;26 relacionavam essa mesma doutrina com seu sentimento de inferioridade;27 tomavam as teses da morte de Deus e do surgimento do alm-do-homem como o ponto de chegada de um processo que remontava s origens da conscincia moderna.2823. Cf. ANDRAS-SALOM, Lou. Friedrich Nietzsche In seinen Werken, Frankfurt am Main, Insel Verlag, 1983; em portugus, Nietzsche em suas obras, So Paulo, Brasiliense, 1992. O propsito do livro esclarecer o pensador atravs do homem; o pressuposto de que parte o de que, em Nietzsche, obra e biografia coincidem. 24. Cf. WOLFF, Hans. Friedrich Nietzsche. Der Weg zum Nichts, Berna, A. Francke Verlag, 1956.0 autor procura mostrar como o empenho de Nietzsche em conhecer condenou-o ao niilismo. 25. Cf. JANKLVITCH, S. Rvolution et Tradition, Paris, Janin, 1947. O objetivo do livro reside em fazer ver que o pensamento de Nietzsche uma "filosofia de atmosfera". 26. Cf. JUNG, Cari Gustav. berdie Psychologie ds Unbewussten, Zurique, Rasher Verlag, 1951. 27. Cf. DELAY, Jean. Aspects de Ia Psychiatrie moderne, Paris, PDF, 1956. O autor dedica uma parte desse estudo interpretao de algumas teses de Nietzsche. 28. Cf. ADLER, Gerhard. tudes de Psychologie Jungienne,

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A repercusso de seus escritos acabou por fazer-se sentir nas mais diversas reas: na literatura, nas artes, na psicanlise, na poltica, na filosofia. inegvel que seus textos deixaram marcas indelveis em nossa cultura. Sensvel ao impacto causado por Nietzsche nos ltimos cem anos, MllerLauter afirma: "A histria de sua influncia, que no se limitou nem Alemanha, nem Europa, j foi diversas vezes escrita sob diferentes pontos de vista". E acrescenta: "Com resultados considerveis, foi inserida no conjunto de experincias de sucessivas geraes de nosso sculo".29 Antes de tudo, Nietzsche no queria ser confundido. Para sua surpresa e horror, tanto anti-semitas quanto anarquistas se diziam seus adeptos. Ao longo de dcadas, porm, ser evocado por socialistas, nazistas e fascistas, cristos, judeus e ateus. Pensadores e literatos, jornalistas e homens polticos tero nele um ponto de referncia, atacando ou defendendo sua obra, reivindicando ou exorcizando suas ideias. No mais das vezes, vo operar recortes arbitrrios em seu pensamento visando a satisfazer interesses imediatos. Dessa perspectiva, quem julgou compreend-lo equivocou-se a seu respeito; quem no o compreendeu julgou-o equivocado. Uma coisa denunciar as utilizaes indevidas que se fez do autor de Zaratustra; outra apontar as dificuldades de compreenso que seus escritos colocam. Atento a estas duas ordens de questes, Mller-Lauter adverte: " primeira vista parecem ser suprfluas indicaes acerca de como seGenebra, Librairie de 1'Universit, 1957. Consagra uma parte do trabalho ao esclarecimento de ideias de Nietzsche, a partir de teses de Jung. 29. "O Desafio Nietzsche", loc. cit., p. 7. E Mller-Lauter refere-se ao livro de Hermann Rausching, Masken und Metamorphosen ds Nihilismus (Frankfurt/Viena, 1954), em que, a partir da iminncia do niilismo antecipada por Nietzsche, o autor distingue trs fases de sua influncia.

deve ler Nietzsche. Nenhum filsofo alemo escreveu textos to acessveis como ele".30 bem verdade que, neste caso, o leitor no se arrisca a defrontar-se com um escrito hermtico e impermevel a toda abordagem. certo, porm, que corre o risco de julgar, iludindo-se, apreender com justeza o que parece facilmente acessvel. Mais grave este perigo que tem de enfrentar: o de deter-se onde instado a prosseguir investigando, o de abandonar arbitrariamente a busca e apegar-se ao j conhecido. E nada mais avesso ao esprito nietzschiano que cristalizar convices.31 No entender de Mller-Lauter, o filsofo lana mo de diversos recursos "para induzir seus leitores a um trato penetrante com seus textos". E todos contribuem para incit-los a portarem-se enquanto fillogos.32 Recorre a expedientes vrios para atra-los, provoc-los e lev-los a toda espcie de tentaes. E todos concorrem para instig-los a ruminar seus pensamentos.33 desta forma que quer ser lido; lentamente,30. "Uma filosofia para ruminar", Folha de S. Paulo, 9 de outubro de 1994, Caderno Mais, p. 7. Sob esse ttulo veio a pblico a primeira parte do texto "ber den Umgang mit Nietzsche" (Sobre o trato com Nietzsche) na traduo de Oswaldo Giacia Jnior. E este foi o segundo texto de Mller-Lauter que pudemos trazer para o leitor brasileiro. 31. Lembremos do aforismo 483 de Humano, demasiado humano, onde se l: "As convices so inimigas mais perigosas da verdade que as mentiras". 32. Cf. nesse sentido Ecce homo, Por que escrevo livros to bons, 5: "Que, nos meus escritos, fala um psiclogo sem igual, talvez a primeira constatao a que chega um bom leitor um leitor tal como mereo e que me l como os bons fillogos de outror liam Horcio". 33. Cf. nessa direo A genealogia da moral, prefcio, 8: " certo que, a praticar desse modo a leitura enquanto arte, necessrio algo que precisamente em nossos dias mais se desaprendeu e por isso exigir tempo

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com cuidado e considerao. Do leitor ideal espera coragem e curiosidade; exige uma leitura compromissada. Acerca da questo "como ler Nietzsche?", Deleuze e Lyotard tomaram posio no Colquio de Cerisy.34 Entenderam que ele no se presta a comentrios, como Descartes ou Hegel. Nele, a relao com o exterior no mediada pela interioridade do conceito ou da conscincia; as palavras no valem como significaes, representaes das coisas. E querer coment-lo, revelar o sentido de seu discurso, implica tomar o partido da interioridade e da representao. preciso, ao contrrio, fazer uma leitura intensiva do filsofo; no dizer de Deleuze, conectar o texto com a fora exterior pela qual ele faz passar algo ou, no de Lyotard, produzir novas, diferentes intensidades. Com isso, o autor desapareceria no texto e este, nos leitores. Naquela ocasio, Deleuze,35 Lyotard36 e tambmat que meus escritos sejam 'legveis' para o qual se deve ser quase vaca e de modo algum 'homem moderno': o ruminar..." 34. Em julho de 1972, o Colquio de Cerisy congregou pensadores franceses e alemes, na sua maioria, para debater o tema "Nietzsche hoje?" Os trabalhos ento apresentados foram publicados sob o ttulo Nietzsche aujourd' hui? em dois volumes na coleo 10/18 (Paris, UGE, 1973), que reuniu 24 comunicaes, geralmente seguidas pela reproduo das discusses, e duas mesas-redondas. A partir desse material, organizamos o volume Nietzsche hoje? (traduzido do francs por Milton Nascimento e Snia Salzstein Qoldberg, So Paulo, Brasiliense, 1984), que trouxe a pblico nove trabalhos seguidos das discusses que ento ensejaram. O critrio de nossa seleo consistiu em oferecer ao leitor brasileiro a mxima diversidade, diversidade de temas, abordagens e perspectivas. 35. Cf. "Pense nmade". In Nietzsche aujourd'hui?, volume 1, p. 159-74; "Pensamento nmade". In Nietzsche hoje?, p. 56-76.

Klossowski37 pareciam atentos quilo que o discurso nietzschiano suscitava; nortearam-se menos pelas ideias do filsofo que pela perspectiva que acreditavam apontar. Em 1964, no Colquio de Royaumont, Foucault aproximara "Nietzsche, Marx, Freud".38 No se tratava de examinar os pensadores para contrapor concepes suas ou de lanar mo de um deles para demolir o outro, mas de relacion-los justamente porque, em vez de multiplicar os signos do mundo ocidental, teriam criado nova possibilidade de interpret-los. Em 1972, Deleuze, Klossowski e Lyotard insistiram em atribuir a Nietzsche lugar privilegiado. A ele recorreram para refletir sobre poltica, arte, cultura, psiquiatria; tomaram-no como referncia para pensar sequestros e justia popular, ocupao de fbricas e squattings, insurreies e comunidades antipsiquitricas, happenings e pop art, a msica de Cage e os filmes de Godard. Segundo Lyotard, s Nietzsche permitia um discurso de intensidades mximas; para Deleuze, ele operava uma decodificao absoluta, enquanto Freud e Marx apenas recodificaes. com prudncia e cautela que Mller-Lauter se posiciona diante da leitura proposta pelos franceses e, em particular, por Deleuze. Antes de mais nada, busca situ-la no espao em que conflitam as diversas apropriaes ideolgicas do autor de Zaratustra. No artigo "O desafio Nietzsche", mostra que imagem nacional-socialista do filsofo construda no Terceiro Reich veio opr-se a marxista, que via seu pensamento como expresso da luta da burguesia contra o socialismo.36. Cf. "Notes sur l retour et l kapital". In Nietzsche aujourd'hui?, v. 1, p. 141-57; "Notas sobre o retorno e o Kapital". In Nietzsche hoje?, p. 44-55. 37. Cf. "Circulus vitiosus". In Nietzsche aujourd'hui?, v. 1, p. 141-57; "Circulus vitiosus". In Nietzsche hoje?, p. 91-103. 38. In Nietzsche, Cahiers de Royaumont Philosophie ne VI, Paris, Minuit, 1967, p. 183-92.

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E, a partir do incio da dcada de 1970, a esta ltima imagem intelectuais franceses contrapuseram outra, a que tomava sua filosofia justamente como aliada no combate ao emburguesamento. Foi nessa direo que caminhou Michel Foucault. Grande foi o impacto do texto que apresentou no Colquio de Royaumont. Aproximando Nietzsche, Freud e Marx, seu trabalho serviu, por um lado, como ponto de partida para as reflexes que Deleuze, Lyotard e Klossowski vieram a desenvolver acerca da atualidade do pensamento nietzschiano. E, por outro, provocou reaes imediatas da parte dos idelogos na antiga Repblica Democrtica da Alemanha. Insurgindo-se contra a ideia de colocar Nietzsche e Marx lado a lado, eles sustentaram que no era possvel nem legtimo pretender que ambos tivessem algum ponto em comum. Por no ater-se ao passado, Deleuze no se preocupou com a utilizao indevida que fascistas e nazistas fizeram dos escritos de Nietzsche; entendeu que com ela Jean-Wahl, Klossowski e Bataille j haviam acertado as contas. Por voltar-se para o futuro, empenhou-se em ressaltar o carter ativo das ideias do autor de Zarafusfra; julgou que nelas se manifestava grande fora revolucionria. Seguindo em vrios pontos a interpretao de Foucault, considerou que, se a "trindade" Nietzsche, Marx e Freud se achava na aurora da modernidade, o primeiro nome que a constitua deveria ocupar posio de destaque. As ideias de Freud e as de Marx concorreram para desmontar os cdigos sociais estabelecidos; o marxismo e a psicanlise, enquanto "as duas burocracias fundamentais", voltaram a normalizar a vida pblica e a privada. E assim operaram recodificaes. Contra a "cultura burguesa", de que acreditava fazer parte inclusive o pensamento marxista, Deleuze procurou utilizar a filosofia nietzschiana. Contra a construo da imagem marxista do filsofo, que s pde condenar o estilo aforismtico que ele adotou em vrios de seus textos, o pensador francs quis resgatar o aforismo como instrumento de luta.

Mas, pondo em relevo o carter transgressor da filosofia de Nietzsche, no acabou Deleuze por atribuir-lhe "um pathos social que lhe estranho"? Mais at, no acabou por ler os escritos do filsofo "de uma maneira particularmente descompromissada"? justamente o que pensa Muller-Lauter. "Impe-se a questo de saber", diz ele, "se a corrente de fora, com a qual Deleuze penetra de fora no interior dos aforismos nietzschianos e de novo volta para fora, enriquecido pelo seu contedo, no acaba por estabelecer um tratamento arbitrrio dos textos do filsofo, tratamento que excede a abertura j concedida por Nietzsche a seus leitores". E conclui: "Tal pergunta deve ser respondida afirmativamente".39 Ainda a propsito da questo "como ler Nietzsche?", Karl Lwith defende este ponto de vista: No so as leituras que constituem um texto filosfico; ele permanece o que , independentemente delas. H, portanto, leituras corretas e erradas. O critrio que se impe o de compreender o autor como ele mesmo se compreendeu nem mais, nem menos. E, no caso de Nietzsche, as dificuldades no so grandes, uma vez que ele reexaminou seus escritos nos prefcios de 1886 aos livros j publicados e ainda na autobiografia. "Nietzsche o tipo de pensador que sempre tentou, ele prprio, fazer o balano de seu pensamento", afirma Lwith; "no Ecce Homo, viso retrospectiva da obra, constata, surpreso, que teve ideias, mas ignorava sua unidade e era inconsciente de sua coerncia, que s lhe aparecia no fim".40 Outra a posio de Mller-Lauter. Tomando distncia em relao a Lwith, ele entende que, na autobiografia mais do que em qualquer outro texto, Nietzsche desafia o leitor a compreender seu pensamento. Tanto que j no prlogo39. "O Desafio Nietzsche", loc. cit., p. 24. 40. In Nietzsche aujourd'hui?, volume 2, p. 227; Nietzsche hoje?, p. 159.

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clama que no o confundem.41 Mas, se no primeiro pargrafo faz essa exigncia, logo no seguinte apresenta-se como uma natureza antagnica.'12 E, no seu caso, preciso levar em conta no s os antagonismos que tem fora de si mas tambm aqueles que traz em si. por essa razo que "no h o nico entendimento correio do pensamento de Nietzsche em um sentido definitivo e conclusivo", assegura Mller-Lauter. "Isso porque no apenas ele prprio inconcluso, mas, segundo pressupostos a ele inerentes, tambm tem que permanecer inconcluso".43 Nos dois artigos publicados no Brasil, no passam despercebidas as inquietaes de Mller-Lauter diante da questo "como ler Nietzsche?". Na verdade, ele se dedica a desmascarar as apropriaes ideolgicas da obra do filsofo e empenha-se em lidar com as peculiaridades de sua maneira de expressar-se. Se preciso impedir desvios e deturpaes propositais de seu pensamento, tambm necessrio evitar mal compreender suas ideias. E, no limite, os dois procedimentos vm juntos; num caso e noutro, trata-se de desfazerse de hbitos, abandonar comodidades, renunciar segurana. Numa palavra, trata-se de impedir a adoo de crenas, evitar41. o que se l nas ltimas linhas do primeiro pargrafo do prlogo de Ecce homa "Nessas circunstncias h um dever, contra o qual se revolta, no fundo, meu hbito, e mais ainda o orgulho de meus instintos, ou seja, de dizer: Ouam! Pois eu sou tal e tal. No me confundam, sobretudo!" 42. Cf. as primeiras linhas do segundo pargrafo do prlogo de Ecce homcr. "No sou, por exemplo, nenhum bichopapo, nenhum monstro de moral sou at mesmo uma natureza oposta (eine Gegensatz-Natur) espcie de homem que at agora se venerou como virtuosa. Entre ns, parece-me que precisamente Isso faz parte de meu orgulho". 43. "Uma filosofia para ruminar", loc. cit., p. 7.

a defesa de convices. No por acaso que, no entender de Nietzsche, seriam justamente estes os requisitos essenciais do esprito livre.44 Alguns no hesitam em falar do mal-estar que hoje lhes provocam os escritos do filsofo; outros, da seduo que ainda exercem. No Colquio de Cerisy, Eugen Fink45 reconheceu que sua obra literria no mais influenciava escritores de talento como outrora; o encanto produzido pela perfeio de sua linguagem era coisa datada. Tambm Lwih'16 admitia que a embriaguez provocada por suas metforas, parbolas e aforismos pertencia ao passado, quando Assim falava Zaratustra, verdadeira bblia, acompanhava os voluntrios da Primeira Guerra. Contudo, a averso ou o fascnio, que porventura os textos de Nietzsche ainda podem causar, no devem ofuscar o olhar do comentador. Ele deseja, por certo, um leitor atento e no preconceituoso ou entusiasta. De diferentes maneiras, ao longo dos anos, os historiadores da filosofia interpretaram a sua obra. Alguns procura44. Vale lembrar esta passagem notvel da Gaia cincia: "Onde um homem chega convico fundamental de que preciso que mandem nele, ele se torna 'crente'; inversamente seria pensvel um prazer e uma fora de autodeterminao, uma liberdade da vontade, em que um esprito se despede de toda crena, de todo desejo de certeza, exercitado, como ele est, em poder manter-se sobre leves cordas e possibilidades, e mesmo diante de abismos danar ainda. Um tal esprito seria o esprito livre par excellence" ( 347). 45. Cf. "Nouvelle exprience du monde chez Nietzsche". In Nietzsche aujourd'hui?, v. 2, p. 345-64; "Nova experincia do mundo em Nietzsche". In Nietzsche hoje?, p. 168-92. 46. Cf. "Nietzsche et 1'achvement de 1'athisme". In Nietzsche aujourd'hui?, v. 2, p. 207-22; "Nietzsche e a completude do atesmo". In Nietzsche hoje?, p. 140-67.

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ra m aponta r o s referenciai s terico s qu e el e adoto u e apro funda r o s conceito s co m qu e trabalhou ; outro s buscara m si tu-l o e m se u moment o histric o e reinscrev-l o n a atmosfer a cultura l d e su a poca . U m do s primeiro s a desenvolve r u m trabalh o d e conjunt o sobr e o se u pensament o fo i Charle s Andler. 47 Lanado s entr e 192 0 e 1931 , o s sei s volume s d e se u estud o fora m criticado s po r outro s comentadores . Henr i Lefebvre48

1954, 55 Heidegge r apontav a a ntim a liga o entr e a teori a d a vontad e d e potnci a e a doutrin a d o etern o retorno ; e m 1961,56

permiti u qu e fosse m editado s seu s curso s sobr e a filosofi a nietzschiana . U m an o depois , aparece u n a Fran a o trabaih o de Gille s Deleuze,57

qu e p s e m relev o a no o d e valo r e

saliento u a importnci a d o procediment o genealgico . E m 1964 , n o Colqui o d e Royaumont , Miche i Foucaul t aproximo u "Nietzsche , Marx , Freud" , entendend o que , n o scul o XIX , ele s teria m inaugurad o um a nov a hermenutica . E , e m 1972 , n o Colqui o d e Cerisy , encontr o internaciona l e m torn o d a quest o "Nietzsch e hoje?" , Deleuze , Klossowsk i e Lyotar d ex plorara m e m outr a dire o a trilh a abert a po r Foucault ; n o pretendera m pensa r a atualidad e ci o text o nietzschian o ma s pensa r a atualidad e atravs dele . Fo i pel a leitur a do s pensadore s franceses , e m parti cula r d e Foucaul t e Deleuze , que , recentemente , n o inci o d a dcad a d e 1980 , o auto r d e Zaratustra ganho u outr a ve z des taqu e n o Brasil . A parti r d e Royaumont , Foucaul t encaro u Nietzsch e meno s com o objet o d e anlis e qu e com o gritle d e lecture; relacionou-s e co m el e meno s com o o comentado r co m se u interpretandum qu e com o o pensado r co m su a caix a d e ferramentas . E m Cerisy , Deleuze , qu e e m 196 2 havi a publica d o u m comentri o exempla r d a obr a d o filsofo , questiono u o

nele vi u um afrancesament o da s ideia s de Nietzsch e49

e Jea n Granier

nel e responsabilizo u o acmul o d e documen -

tos acessrio s pel a penri a d a anlis e do s tema s propriamen te filosficos . O trabalh o d e Andle r teve , porm , grand e rele vncia : aponto u a s influncia s a qu e Nietzsch e fo i suscetvel , refe z a tram a conceitua i d e seu s escrito s e empenhou-s e e m reintroduzi-l o n a tradi o cultural . Kar l Lwith , po r su a vez , publico u e m 194 1 u m estudo,50

e m qu e tentav a reinseri-l o n o

pensament o alem o d o scul o XIX , e ante s disso , e m 1935 , outro, 51 e m qu e s e detinh a n o exam e d a doutrin a d o etern o retorno . E m 1936 , Kar l Jaspers Walte r Kaufmann53 52

escreve u u m trabalh o siste -

mtic o sobr e a vid a e obr a d o filsofo . Vint e ano s mais tarde , troux e a pblic o important e estud o e m ln 54

gu a inglesa , consagrando-s e sobretud o anlis e d a teori a da vontad e d e potncia . Ness a poca , e m texto s d e 1950 e de

47 . Cf . Nietzsche, s vie e t s pense, Paris , Gallimard . qu e er a se r nietzschian o hoje : prepara r u m trabalh o sobr e 48 . Cf . Hegel, Marx, Nietzsche, Paris , Casterman , 2 - ed. , 1975 . Nietzsch e o u produzir , n o curs o d a experincia , enunciado s 49 . Cf . L problme d e I a vrit dans I a philosophie d e nietzschianos . Nietzsche, Paris , Seuil , 1966 . Amig o pessoa l d e Foucault , Grar d Lebrun , qu e este 50 . Cf . Von Hegelzu Nietzsche, Zurique , EuropaVerlag , 1941 . v e entr e n s po r mai s d e trint a anos , sempr e privilegio u pen 51 . Cf . Nietzsches Philosophie de r ewigen Wiederkehr ds Gleichen, Hamburgo , Feli x Meine r Verlag , 3 - ed. , 1978 .sadore s com o Nietzsch e e Pascal . A ele s recorri a com o instru 52 . Cf . Nietzsche Einfhrung in da s Verstndnis seines \ Berlim , Walte r d e Gmyte r & Co. , 1950 . 55 . Cf . VortrgeundAufstze, Tbigen , GuntherNesk e Ver 53 . Cf . Nietzsche, Philosopher, Psychologist, Antichrist, No lag , 1954 . va York , Th e Worl d Publishin g Co. , 10 a ed. , 1965. 56 . Cf . Nietzsche, 2vs., Berlim , GuntherNeskeVerlag' , 1961 . 54 . Cf . Holzwege, Frankfurt , Vittori o Klostermann , 2 - ed. , 1952 . 57 . Cf . Nietzsche e t I a philosophie, Paris , PUF , 1962 .

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escrev e Muller-Lauter , "n o pod e se r encontrad a com o u m mento s d e trabalho ; com o operadore s utilizav a conceito s seus . Fazend o d a filosofi a um a histri a heterodoxa , n o procuro u reconstitui r sistema s d e pensamento , tomando-o s isolado s un s do s outros , o u determina r verdade s d e doutrinas , substituindo a s uma s s outras . Tampouc o pretende u coteja r sistema s filo sfico s o u compara r verdade s doutrinrias , apontand o sua s afinidade s e divergncias , seu s dbito s e crditos . Rejeitand o a tcnic a d a contabilidade , trato u d e apreende r o s parti pris velado s d e u m procediment o lgico , capta r a s ideia s subjacen te s a um a obra , diagnostica r o no-dit o d e u m autor . A Lebrun , e a muito s qu e el e formou , a genealogi a nietzschian a permiti u desvenda r o ardi l do s filsofos , pratica r a desconfian a fac e s mai s diversa s formae s ideolgicas , enfim , questiona r a vertent e clericalista , teolgica , crist d e noss o pensamento . Poi s com o escrev e o prpri o Grar d Lebrun : Ma s qu e outra coisa pretender, quando no s propomos a ler Nietzsche hoje? Muito se enganaria quem pretendesse travar conhecimento com um filsofo a mais. Nietzsche no um sistema: um instrumento de trabalho insubstituvel. E m ve z d e pensar o qu e el e disse , importa ele".58 Co m Lebrun , Muller-Laute r talve z s e pusess e d e acor do quant o a est e ponto : Nad a mai s estranh o a Nietzsch e que ; o projet o d e enclausura r o pensamento , encerr-l o no s limite s j estreito s d e um a dogmtica . Nad a mai s distant e del e qu e o ; propsit o d e coloca r a reflex o a servi o d a verdade , asfixia- 1 Ia so b o pes o d o incontestvel . "Ta l unidad e ( a d e su a obra)" , j 58 . "Po r qu e le r Nietzsch e hoje? " In : Passeios Paulo , Brasiliense , 1983 , p . 38 . a o lu. So ] acima d e tudo pensar co m ultim o substrat o d e 'verdades ' subjacente s a se u pensamento , ne m simplesment e extrada s d e seu s textos". 59 Qu e Nietzsch e n o se pretend a u m pensado r sistem tico , salt a ao s olho s d e que m entr a e m contat o co m su a obra . E iss o n o s e dev e apena s a o estil o especfic o qu e adot a o u a o tratament o peculia r qu e d a certa s questes . Deve-s e so bretud o su a recusa , explcita , do s sistema s filosficos . D e fato , n o s o rara s a s veze s e m qu e a ele s s e ope. 60 Ma s o pont o centra l d e su a crtic a n o resid e n o fat o d e apresenta re m um a unidad e metodolgic a e si m d e fixare m um a dogm tica . Tampouc o s o rara s a s ocasie s e m qu e s e op e ao s esprito s sistemticos.61

A o pretende r impo r a o pensament o

carte r monoltico , ele s seria m levado s a desisti r d a busca , abandona r a pesquisa , abri r m o d a criatividade . Acreditand o precisa r d e amplo s horizonte s par a te r grande s ideias , Nietzsch e nega-s e a encerra r o pensament o num a totalidad e coes a ma s fechada . Pondo-s e com o u m pensado r assistemtico , e mes m o anti-sistemtico , manifest a su a dissonnci a fac e a cert a concep o d o saber , qu e identific a filosofi a e sistema . Par a o s estudioso s d o filsofo , desd e log o s e imp s a pergunt a acerc a d a existnci a o u n o d e u m sistem a e m su a obra . Na s primeira s dcada s dest e sculo , Charle s Andle r cons tat a que , embor a j haj a consens o quant o existnci a d e um a

59 . " O Desafi o Nietzsche" , loc. cit, p . 13 . 60 . Nu m fragment o pstumo , afirma : "n o so u limitad o o bastant e par a u m sistem a ne m mesm o par a me u sis tema... " ([255 ] 1 0 [146 ] d o outon o d e 1887) . 61 . N a Aurora assegura : "Exist e um a comdi a do s esprito s sistemticos ; querend o perfaze r u m sistem a e arredon da r o horizont e qu e o cerca , foram-s e a p r e m cen a a s qualidade s mai s fraca s n o mesm o estil o da s qualida de s mai s forte s quere m apresentar-s e com o nature za s inteira s e homognea s e m su a fora " ( 318) .

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filosofi a nietzschiana , aind a s e duvid a d e qu e el a poss a com porta r u m sistema . N o se u entender , porm , a obr a d e Nietzsch e abrig a pel o meno s doi s sitemas , fruto s d e dua s grande s intui es : o d o pessimism o esttico , elaborad o entr e 186 9 e 1881 , e o d o transformism o intelectualista , desenvolvid o d e 188 1 a 1888 . Parcialment e incoerente s entr e si , cad a u m dele s revel a perfeit a coernci a e m s i mesmo . Po r outr o lado , Jasper s sus tent a qu e o filsof o n o constr i u m conjunt o intelectua l lgico . O s esboo s d e sistema , presente s e m seu s escritos , s o ape na s apresentae s provisria s d e ideia s visand o exposio , consequncia s d e determinad a orienta o d e pesquis a o u re sultado s d a a o qu e pretend e exerce r atrav s d a reflex o filosfica . Kauimann , po r su a vez , recorrend o distin o pro post a po r Nicola i Hartman n e m O pensamento filosfico e su a histria, s isten a qu e Nietzsch e n o u m pensador-de-siste ma s (system-thinker), blem-thinker}. ma s u m pensador-de-problema s (pro-

esprito s sistemticos , tev e d e reconhecer , e m 1888 , qu e po r veze s fo i co m esfor o qu e escapo u d e se r u m deles. 62 Este s s o o s argumento s qu e alinhava , par a ent o concluir :

S e s e levam e m conta, apesar d e todas a s suas oposies, as conexes imanentes do pensamento nietzschiano, este no pode ser simplesmente oposto sistematicidade. 63Ma s tamb m co m Kaufman n e m cert a medid a concor da Mller-Lauter . S e Nietzsch e u m pensador-de-problemas , ne m po r iss o s e det m n o exam e d e queste s isoladas . A o contrrio , sempr e vis a unidade . S e procur a conecta r o s pro blema s especfico s co m u m todo , ne m po r iss o esper a torna r su a reflex o definitiva . A o contrrio , que r continuament e p r prov a sua s hipteses . "El e experiment a co m o pensamento" , escrev e Mller-Lauter .

Procurand o faze r experimento s co m o pensar ,

e! e lecorr e a o estil o aforismtic o e , ness a medida , est d e acord o co m o esprit o d a poca , marcad o pel a insatisfa o crescer e co m o s modo s tradicionai s d e expresso . Po r enten de r "experimentar " com o "tenta r vive r d e acord o com" , a uni dad e do - se u pensamento , embor a po r veze s obscurecid a ma s nunc a obliterad a pel a descontinuidad e d o experimen talismo , encontrari a garantia s n a unidad e d a prpri a vida , o u seja , repousari a num a "unidad e existencial" . Lwith , po r fim , encar a o pensament o nietzschian o com o u m sistem a e m afo rismos . Su a produ o aforismtic a apresent a um a unidade , ligad a d a prpri a taref a filosfica , amba s sustentada s pel a lgic a d e cert a sensibilidad e diant e d a filosofia . Quant o a est e ponto , Mller-Laute r concord a e m cert a medid a co m Lwith . S e Nietzsch e sustent a qu e o cao s s e ach a inscrit o n o mundo , tamb m reconhec e qu e a orde m indispen sve l par a a vida . Tant o qu e n o pd e furtar-s e co m o se u pensament o a ordenar . E , malgrad o a crtic a qu e dirig e ao s 62 . Cf . o fragment o pstum o (372 ) 1 1 [410 ] d e novembr o d 1887/mar o d e 1888 , a qu e Mller-Laute r s e refere : "NB Desconfi o d e todo s o s sistemtico s e o s evito . A vonta d e d e sistem a , par a u m pensado r a o menos , alg o qu compromete , um a form a d e imoralidade.. . Talve z adivi nhe m atrav s d e u m olha r lanad o embaix o e atr s des te livr o d e qu e sistemtic o el e prpri o escapo u co m es for o d e mi m mesmo... " 63 . " O Desafi o Nietzsche" , loc. c/f. , p . 13 . 64 . " O Desafi o Nietzsche" , loc. cit,, p . 13 .

S e no s deixarmos levar po r seus questionamentos, que no essencial ainda so os nossos, poderemos ser enredados por suas reflexes, poderemos trilhar os caminhos que levam ao mago dos problemas e conjuntos de seu filosofar? 4

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Lwit h e Kaufman n insiste m n o fat o d e o filsof o te r colocad o o estil o aforismtic o a servi o d e se u experimentalis mo . O s aforismos , tentativa s renovada s d e refleti r sobr e algu ma s questes , possibilitaria m experimento s co m o prpri o pen sar . Mai s cuidadoso , Mller-Laute r julg a qu e n o s e dev e atri bui r a Nietzsch e u m estil o aforismtico , porqu e el e recorre u a diverso s meio s estilsticos de expresso . Contudo , tant o Lwith e Kaufman n quant o Mller-Laute r ressalta m o carte r funda mentalment e experimenta l d o pensament o nietzschiano . De fato , s o vrio s o s texto s e m qu e o filsof o convi da o leito r experimentao , sej a po r entende r qu e ns , hu manos , n o passamo s d e experincia s o u po r acredita r qu e n o nos devemo s furta r a faze r experincia s com ns mesmos . Em Assim falava Zaratustra, jamai s lan a m o da linguage m conceituai ; a s posie s qu e avan a tampouc o s e baseia m e m argumento s o u razes ; assentam-s e e m vivncias. experimentadores65

se acha m intimament e relacionadas . est a relao , ao qu e no s parece , qu e defin e o carte r experimenta i de su a filosofia . Nest e contexto , encontr a luga r um a quest o centra l pa ra grand e part e do s comentadores : a de investiga r se Nietzsch e incoerent e ou no , se se u pensament o contraditri o ou no . Jaspers , Kaufman n e Granier , entr e outros , alerta m par a a exis tnci a de contradie s e m seu s textos . Kar l Jasper s sustent a que ela s n o se deveriam , porm , ao privilgi o de um mod o de expresso , mesm o porqu e a obr a n o apresentari a um a form a dominant e e abrigari a tant o o discurs o contnu o quant o o aforis mtic o o u polmico . A interpreta o teri a d e busca r toda s a s contradie s e, reunind o concepe s relativa s a um mesm o te ma , chega r "dialtica real", que levaria a esclarece r o projet o nietzschian o e , co m isso , compreende r a necessidad e da s con tradies . Walte r Kaufmann , po r su a vez , entend e qu e a maneir a de pensa r e expressar-s e de Nietzsch e permitiri a qu e surgisse m contradie s no s seu s escritos , ma s ela s poderia m se r resolvi das , se considerados os "processos de pensamento" que o levara m a pensa r com o fez . O primeir o pass o par a apreend-lo s consistiri a e m reexamina r a rela o entr e o s fragmento s pstu mo s e o s livro s publicados . A obr a pstum a comportari a um a divis o em tr s partes : O anticristo, Ecce homoe O caso Wagner, trabalho s concludo s qu e s viera m a pblic o depoi s da cris e de 1889 , deveria m ser tratado s como livros publicados; as nota s utilizada s par a as aula s na Universidad e da Basileia , apresen tand o u m discurs o contnuo , n o traria m maiore s dificuldades ; enfim , a mass a de fragmentos , redigido s durant e as caminhada s no s Alpe s e utilizado s o u n o e m trabalho s posteriores , seri a revelador a d o mod o pel o qua l o auto r chego u a sua s posie s finais, ma s no poderi a ser equiparad a ao s livro s concludos .meu corpo e a minha vida; ignor o o que seja m proble ma s 'purament e espirituais'".

E m Para

alm d e be m e mal, refere-s e ao s filsofo s d o futur o com o , com o o s qu e t m o deve r "da s ce m tentati vas , das cem tentae s da vida".66 E, num fragment o pstu mo , afirm a ignora r "o qu e seja m problema s 'purament e espiri tuais ' ", 67 Co m isso , que r ressalta r qu e su a reflex o e su a vid a65 . Tant o que , nu m determinad o momento , a personage m centra l diz a um de seu s discpulos : "Po r que ? Pergunta s por que ? N o so u daquele s a que m se tem o direit o de perguntar por seu porque. Acas o de onte m a minha vivncia ? H muit o qu e vivencie i as raze s de minha s opinies " ("Do s poetas") . Recusand o teoria s e doutrinas , rejeitand o a erudio , Zaratustr a sempr e apel a par a su a experinci a singular . co m o intuit o de refora r est a atitu de que , repetida s vezes , recorr e image m do sangue . "De todo s os escritos", diz ele , "am o apena s o que algum escrev e com seu sangue" ("D o ler e escrever"). 66. Cf. 42. 67. Cf . o fragment o pstum o 4 (285 ) do ver o de 1880 , ond e se l: "Sempre escrev i minha s obra s co m tod o o

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Jean Granier, por fim, julga que as contradies que a obra de Nietzsche comporta se tornariam compreensveis, se tomadas enquanto expresso da pluralidade de pontos de vista do autor. Estes, no entanto, no se achariam linearmente justapostos, mas estruturados em "andares", de modo que, levando em conta a verticalidade das intuies nietzschianas, seria possvel detectar as linhas de ruptura responsveis pela clivagem dos diferentes pontos de vista e apreender, assim, a dinmica de seus "ultrapassamentos". Preocupados com as contradies que emergem dos textos de Nietzsche, Jaspers, Kaufmann e Granier propem trs maneiras distintas de lidar com elas. Para Jaspers, uma vez que quer chegar "dialtica real", elas so necessrias; para Kaufmann, j que espera entender os "processos de pensamento", elas acabam por dissolver-se; para Granier, porque pretende apreender a dinmica dos "ultrapassamentos", elas se tornam compreensveis. Ora, experimentalismo e perspectivismo tm ligao estreita. Ao fazer experimentos com o pensar, Nietzsche persegue uma ideia a partir de vrios ngulos de viso, aborda um tema assumindo diversos pontos de vista, enfim, reflete sobre uma problemtica adotando diferentes perspectivas. Nessa medida, as contradies que o confronto com os textos traz tona so necessrias, tornam-se compreensveis e acabam por dissolver-se. So necessrias, no por terem sido colocadas por uma "dialtica real", como quer Jaspers, mas por emergirem da diversidade de ngulos de viso assumidos na abordagem da mesma questo; tornam-se compreensveis, no por corresponderem a momentos que seriam em seguida "ultrapassados", como pretende Granier, mas por surgirem da pluralidade de pontos de vista tomados no tratamento do mesmo tema; acabam por dissolver-se, no por se apresentarem enquanto etapas preparatrias que levariam a posies finais, como espera Kaufmann, mas por brotarem da multipli-

cidade de perspectivas adotadas na reflexo sobre a mesma problemtica. Quando se trata de examinar as eventuais incoerncias do autor de Zaratustra, as contradies eventuais de seu pensamento, Mller-Lauter taxativo: o que se coloca sob nossos olhos uma filosofia que vive de seus prprios conflitos. "A filosofia de Nietzsche vive de suas tenses imanentes", assegura. "Somente delas se obtm a unidade de sua obra".68 E esta talvez a principal razo pela qual ele tem de permanecer inconcluso, no pode almejar um termo de chegada para suas investigaes. De fato, no mais um sistema filosfico o que prope. O que faz criar outra forma de conceber a filosofia, outro modo de filosofar. Pondo em prtica sua "psicologia do desmascaramento", questiona preconceitos, combate pr-juzos, denuncia convices. Suas consideraes, audaciosas, ousadas, irreverentes, so por isso mesmo extemporneas. Distanciando-se de Foucault, que toma o filsofo como sua caixa de ferramentas, Mller-Lauter talvez ento dissesse que ele antes de tudo um instrumento de trabalho para si mesmo.

Mas, em seu ensaio A doutrina da vontade de poder em Nietzsche, sobretudo com Heidegger que Mller-Lauter se prope a discutir.69 Se com Foucault ele no chega a dialo68. "O Desafio Nietzsche", loc. c/f., p. 13. 69. fato que deixa clara sua inteno, na primeira nota ao texto, de nele levar em conta principalmente as objees que Weischedel ("A vontade e as vontades. Para a discusso de Wolfgang Mller-Lauter com Martin Heidegger". InZeitschriftfurphilosophische Forschung27/'\, 1973, p. 71-6) e Kster ("A problemtica da interpretao cientfica de Nietzsche. Reflexes crticas a respeito do livro de Wolfgang Mller-Lauter sobre Nietzsche".

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gar intensamente, com Heidegger se defronta vrias e repetidas vezes. 70 Em seu artigo "O desafio Nietzsche", constata com razo que, "a despeito de seus aspectos discutveis, a interpretao heideggeriana de Nietzsche exerceu capital influncia, que ainda perdura, no s sobre as leituras de Nietzsche na Alemanha, mas tambm na Frana e nos Estados Unidos".71 In Nietzsche-Studien (2), 1973, p. 31-60) fizeram a seu livro Nietzsche, Sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia (Nietzsche. Seine Philosophie der Gegenstze und die Gegenstze seiner Philosophie, Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1971). Contudo, as primeiras linhas do ensaio revelam que seu interlocutor privilegiado, embora oculto, Heidegger. 70. Em seu livro Nietzsche Sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia, publicado em 1971, j apresenta refutao filosfica decisiva da interpretao que Heidegger faz do pensamento nietzschiniano. 71. Loc. c/f., p. 9. O interesse particular, que Mller-Lauter demonstra pela interpretao heideggeriana de Nietzsche, ao contrapor-se a ela de maneira determinada e decidida, torna-se ainda mais compreensvel, se se levar em conta a sua formao. Nas palavras de Oswaldo Giacoia Jnior: "Membro de uma gerao de intelectuais cuja formao transcorreu sob marcante influncia de filsofos como Martin Heidegger e Karl Jaspers, assim como sob o impacto avassalador das consequncias da Segunda Grande Guerra, Mller-Lauter fez tambm parte do grupo dos jovens acadmicos que assumiu como prpria a tarefa de soerguer dos escombros aquilo que restara do patrimnio universitrio e do legado espiritual da tradio alem. Data, pois, de muito cedo sua ocupao reflexiva com a obra de M. Heidegger, bem como seu envolvimento de incio marcado por certa disposio negativa para com a filosofia de Nietzsche, que como sabido foi apropriada e deformada, malgrado seu, para fins de propaganda e mistificao ideolgica nacional socialista".

No entender de Heidegger, a metafsica, no se colocando a pergunta pelo Ser, encerra-se nos parmetros exclusivos do ser do ente.72 nesse espao que Nietzsche desenvolve a reflexo filosfica. Seu pensamento apresenta cinco termos fundamentais: a vontade de potncia, o niilismo, o eterno retorno do mesmo, o alm-do-homem e a justia; atravs de cada um deles, a metafsica revela-se sob certo aspecto, numa relao determinada. A vontade de potncia designa o ser do ente enquanto tal, sua essncia; o niilismo diz respeito histria da verdade do ente assim determinado; o eterno retorno do mesmo exprime a maneira pela qual o ente em totalidade, sua existncia; o alm-do-homem caracteriza a humanidade requerida por essa totalidade; a justia constitui a essncia da verdade do ente enquanto vontade de potncia. A partir da, Heidegger empenha-se em mostrar de que modo o pensamento nietzschiano fica enredado nas teias da metafsica. Procurando impor a prpria reflexo como um movimento antimetaf sico, Nietzsche opera to-somente a inverso do platonismo, pois "a inverso de uma proposio metafsica permanece uma proposio metafsica".73 Com a morte de Deus, o filsofo nomeia o destino de vinte sculos da histria ocidental, apreendendo-a como o advir e o desdobrar-se do niilismo. Ao afirmar que "Deus est morto", quer dizer que o mundo supra-sensvel no tem poder eficiente. Encarando-o como ilusrio, levado a considerar verdadeiro o mundo sensvel e, nisto, segue a inspirao positivista da poca. Ao passar do esprito para a vida, pensa a metafsica at as ltimas consequncias, sem 72. Cf., entre vrios outros textos, Kant und das Problem der Meiaphysik, onde se l: "a metafsica o conhecimento fundamental do ente enquanto tal e em totalidade". 73. Cf. Sobre o humanismo, traduzido do alemo por Emmanuel Carneiro Leo, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967, p. 47-8.

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conseguir, porm, romper com ela.74 Sem chegar a desmontar a estrutura fundamental do ente enquanto tal, a filosofia nietzschiana continuaria a desenvolver-se no horizonte do "esquecimento do Ser". Muller-Lauter poderia muito bem pr-se de acordo com Heidegger quanto a incluir Nietzsche na histria da metafsica. E com ele poderia tambm concordar quanto necessidade de outro comeo para o pensar. Contudo, Heidegger julga que a reflexo nietzschiana constitui o momento de completude da metafsica ocidental, uma vez que, ao inverter o platonismo, a ela propiciou esgotar suas possibilidades essenciais. E MullerLauter entende que a empresa de Nietzsche consiste justamente em proceder destruio da metafsica a partir dela mesma. Se, por vezes, o filsofo assume ares de metafsico, (ao pensar, por exemplo, o eterno retorno como a suprema aproximao entre o vir-a-ser e o ser 75 }, por trs das aparncias que inventa para si a cada momento, leva a metafsica a desmoronar, porque no se detm em momento algum em suas investigaes. "A significao completa desse acontecimento", conclui Muller-Lauter, "s poderia ser adequadamente interpretada no quadro de uma extensa discusso em que a metafsica fosse problematizada na multiplicidade de suas 74. Heidegger conclui: "Enquanto simples inverso da metafsica, o antimovimento de Nietzsche contra ela cai irremediavelmente nas suas ciladas e de tal forma que a metafsica, divorciando-se de sua natureza prpria, no pode mais, enquanto metafsica, pensar a prpria essncia" ("Nietzsche's Wort 'Gott ist tot'". In Holzwege, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 2- ed., 1952, p. 200). 75. Cf. o fragmento pstumo 7 (54) do final de 1886/ primavera de 1887, onde se l: "Que rudo retome a mais extrema aproximao de um mundo do vir-a-ser com o do ser".

camadas". 76 Ora, justamente o que ele pe em prtica, com discrio e modstia, mas tambm com determinao. Em seu livro Nietzsche Sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia, pretende fazer uma apresentao e crtica imanentes da obra do filsofo. Em seu ensaio A doutrina da vontade de poder em Nietzsche, conta no perder de vista em momento algum o horizonte de sua filosofia. Em ambos os casos, pe-se escuta e busca compreender os interesses e questionamentos especficos do autor de Zaratustra. Opta assim por estar atento quilo que o prprio Nietzsche quis dizer ou disse. Tomadas tais decises metodolgicas, dispe-se a investigar em profundidade o que elegeu como seu objeto de exame. E, no caso do ensaio, ele consiste nesta afirmao aparentemente simples do filsofo: "esse mundo a vontade de potncia e nada alm disso!" 77 tal a estratgia a que Muller-Lauter recorre que, a cada passo do texto, destitui a concepo da vontade de potncia das conotaes metafsicas com que os intrpretes a carregaram: unicidade, permanncia, substancialidade, fixidez, universalidade. Mas no nos enganemos; o principal objetivo que persegue o de demonstrar, contrapondo-se a Heidegger, que a reflexo de Nietzsche exclui a pergunta pelo fundamento do ente, no sentido da metafsica tradicional. E, com isso, pe em evidncia o que ela tem de mais prprio: o pluralismo e o dinamismo, pois graas a eles que pode abrirse para o futuro. Pluralista, o pensamento nietzschiano apresenta ao leitor mltiplas provocaes. Dinmico, a ele prope sempre novos desafios: a crtica contundente dos valores, que entre ns ainda vigem; os ataques virulentos religio crist e 76. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche, p. 53. 77. Cf. o fragmento pstumo 38 (12) de junho/julho de 1885.

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mora l d o ressentimento , constitutiva s d e noss a maneir a d e pensar ; o combat e metafsica , qu e devast a noe s consa grada s pel a tradi o filosfica ; a desconstru o da linguagem , qu e subvert e termo s comument e empregados ; a tentativ a de implodi r as dicotomias , qu e desestabiliz a noss a lgica , noss o mod o habitua l d e raciocinar . Contudo , se u desafi o maio r tal ve z consist a no carte r experimenta l qu e reveste . Instigand o a questiona r se m trgu a o u termo , descart a grand e quantidad e de preconceitos , desmascar a a falt a d e sentid o d e inmera s convices . Tant o que , a o concebe r a vid a com o possibilida de d e "experimenta o d e conhecimento" , Nietzsch e fa z d o experimentalism o su a op o filosfica . Distanciando-s e da s leitura s empreendida s po r Hei degge r e po r Foucault , aind a t o e m vog a entr e ns , Muller Laute r inaugur a um a nov a vertent e interpretativ a d a obr a d o filsofo . Compreend e d e outr o mod o se u carte r peculiar ; el e n o residiri a na tentativ a de leva r a metafsic a at a s ltima s consequncia s ne m no ensai o de inaugura r nova s tcnica s de interpretao . A filosofi a nietzschian a s e d a o leito r enquant o reflex o incessante , e m permanent e mudana . Com o o ri o de Herclito , el a afirm a a inocnci a d o vir-a-ser ; mai s ainda , el a se p e enquant o vir-a-ser . E a o perceb-l a dess a perspectiva , Mller-Laute r situa-s e par a lembra r u m ttul o d e Guimare s Ros a n a terceir a marge m do rio .

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A DOUTRIN A DA VONTAD E D E PODE R EM NIETZSCH E Wolfgang Oswaldo Mller-Lauter Traduo de Giacoia Jnior

A doutrina da vontade de poder em Nietzsche1

Tambm aqui, como to frequentemente, a unidade da palavra nada garante para a unidade da coisa.

H.H. l, 14

Quando Nietzsche escreve que o mundo seria vontade de poder e nada alm disso, com essa clara declarao ele parece nos ter posto em mos uma chave para a compreenso de seu pensamento, com emprego da qual os intrpretes filosficos esto familiarizados: ele nomeia o fundamento do ente e determina, a partir dele, o ente em sua totalidade; seu penA presente traduo tem por base a segunda verso, at aqui indita, do texto publicado nos Nietzsche/Studien de 1974, Berlim/Nova York, Walterde Gruyter, p. 1-60. Trata-se de verso revista e ampliada, que nada altera nas posies hermenuticas fundamentais do texto original. Optei por vontade de poder, no pelo corrente termo vontade de potncia, para traduzir o conceito nietzschiano Der Wille zur Macht. A traduo tem o inconveniente de arriscar-se a circunscrever o conceito demasiadamente

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samento metafsica, no corrente sentido da longa histria da filosofia ocidental. A compreenso desse pensamento no nos coloca, pois, em princpio, diante de novos problemas. Nietzsche pode tambm se voltar explicitamente contra a metafsica, mas podemos rapidamente nos convencer de que ele dela fala apenas no sentido de uma teoria dos dois mundos (Zweiweltentheorie). Se desconsideramos esse estreitamento, no pode ser mantida a pretenso de Nietzsche de que sua filosofia no seja metafsica. Nietzsche apenas prolonga, poderamos assim dizer, a cadeia das interpretaes metafsicas do mundo com um elo ulterior. Heidegger atribuiu filosofia de Nietzsche uma significao particular no interior da histria da metafsica. Ele a interpreta como acabamento (Vollendung) da metafsica ocidental, na medida em que, na inverso (Umkehrung) da metafsica por ela operada, as possibilidades essenciais desta ltima deveriam se esgotar. No pensamento de Nietzsche acontece, porm, ainda mais: a destruio da metafsica a partir dela prpria. Deixa-se mostrar que dela, justamente como do pncaro supremo da "metafsica da subjetividade", essa subjetividade despenca no infundado (Grund-lose). A metafsica "vontade de vontade", na figura da vontade de poder transparente a si mesma, se torna querer-do-querer (gewolltes Wollen), que no mais remete a um algum que quer, vontade, mas to-sono registro da filosofia poltica, mas apresenta tambm a vantagem de evitar a ressonncia e a evocao da distino metafsica entre ato e potncia o que certamente contraria a inteno de Nietzsche , assim como de manter presente um dos mais fundamentais aspectos de seu pensamento, qual seja, uma concepo de fora e poder se esgotando, sem resduos, a cada momento de sua efetivao. Nos termos de Para alm de Bem e Mal, aforismo n8 22, todo poder (jede Macht) extrai, a todo instante, sua ltima consequncia. (N. do T.)

mente estrutura do volitivo (Gefge von Wollendem), que, perguntado pelo seu derradeiro, fctico ser-dado (Gegebensein), subtrai-se no in-fixvel (Un-fest-stell-bare). No h dvida de que Nietzsche permanece metafsico. Nenhuma dvida de que ele restaura a metafsica: por exemplo, quando pensa, na doutrina do retorno, a suprema aproximao entre o devir e o ser. Mais essencial parece-me, porm, que, por detrs das fachadas, sempre de novo erigidas por ele, a metafsica desmorona, em consequncia de seu incessante perguntar. A significao completa desse acontecimento s poderia ser adequadamente interpretada no quadro de uma extensa discusso em que a metafsica fosse problematizada na multiplicidade de suas camadas. Seja observado que minha interpretao de Nietzsche, com efeito, contradiz fundamentalmente a de Heidegger, mas que no me vejo por isso em oposio ao esforo de Heidegger por um "ultrapassamento (Verwindung) da metafsica". Sua necessidade assim como tambm a necessidade do "outro comeo" preparado por Heidegger parece-me muito mais crescer, a partir do pensar de Nietzsche, em medida ainda mais forte do que se tornou manifesto por meio das interpretaes at agora existentes. Trata-se, nessa investigao, da pergunta pela vontade de poder. Ao empreend-la, queremos tentar nos mover inteiramente no horizonte da filosofia de Nietzsche. Mostrar-se- qual complexa problemtica se encontra por detrs da afirmao, que soa to simples: o mundo seria vontade de poder e nada alm disso.2 Nessa problemtica queremos ingressar 2. Em linhas fundamentais, apresentei minha interpretao da "vontade de poder" em meu livro: Nietzsche. Sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia, Berlim-Nova York, 1971. Em crtica mais pormenorizada discutiram comigo: W. Weischedel em uma contribuio para a discusso intitulada A vontade e as vontades.

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passo a passo. Parece-me conveniente, em face de sua complexidade, comear com a introduo de algumas caractersticas declaraes de Nietzsche acerca do que ele entende por "vontade de poder". Elas devem abrir um primeiro acesso ao que na sequncia ser explicitado.3

um da vontade de poder. Assim "um quantum de poder ... designado por meio do efeito que ele exerce e a que resiste."5 Por toda parte, encontra Nietzsche a vontade de poder em obra. "Mais inequivocamente" ela se deixa mostrar "em todo vivente ... que tudo faz no para se conservar, mas para se tornar mais."6 Mas, tambm no mbito inorgnico, a vontade de poder o unicamente atuante. Nietzsche se sepa-

Caracterizao provisria da vontade de poderVontade de poder no um caso especial do querer. Uma vontade "em si" ou "como tal" uma pura abstrao: ela no existe {actualmente. Todo querer , segundo Nietzsche, querer-algo. Esse algo-posto, essencial em todo querer : poder, Vontade de poder procura dominar e alargar incessantemente seu mbito de poder. Alargamento de poder se perfaz em processes de dominao. Por isso querer-poder (Machtwolien] no apenas" 'desejar', aspirar, exigir." A ele pertence o 'afeio do comando".4 Comando e execuo pertencem ao Para a discusso de Wolfgang Mller-Lauter com Martin Heidegger. In: Z/pf)F27/1, 1973, p. 71-76 e P. Kster em A problemtica da interpretao cientfica de Nietzsche. Reflexes crticas a respeito do livro de Wolfgang MllerLauter sobre Nietzsche, In: Nietzsche-Studien2,1973, p. 31-60. No que se segue, considerarei em notas as objees essenciais principalmente desses crticos, na medida em que se relacionem problemtica da vontade de poder. Onde isso no ocorre expressamente, penso, porm, ter tomado em conta as objees no curso da minha exposio. 3. As exposies seguintes originaram-se de uma conferncia sob o ttulo Reflexes sobre a doutrina de Nietzsche da vontade de poder, que pronunciei em Lwen (Louvain) a convite da Wijsgerig Gezelschap em 13 de maio de 1973. 4. Fragmento pstumo, novembro 1877-maro 1888,11 [114]; KGW (Kritische Gesamtausgabe der Werke Nietzsches,

ra da "vontade de vida" de Schopenhauer, como forma fundamental da vontade: "a vida um mero caso particular da vontade de poder, totalmente arbitrrio afirmar que tudo anseia por passar para essa forma da vontade de poder."7 ed. G. Colli e M. Montinari, Berlim-Nova York, Walter de Gruyter, 1967 s. OGJ.) VIII2, 296. As obras publicadas ou preparadas para publicao por Nietzsche sero citadas com precisa indicao, tanto quanto possvel, do escrito, pargrafo, aforismo etc., segundo a edio KGW. Os pstumos sero citados de acordo com a KGW, na medida em que j publicados nessa edio. Uma vez que para os pstumos da dcada de 1880, at aqui publicados na KGW, em parte no se dispe de quaisquer concordncias (V 1 e 2), em parte apenas daquelas da KGW (VIII 2 e 3) para a edio/n ocravo (GA. 19 volumes e um volume de ndice remissivo, Leipzig, Naumann/Krner, 1894 s.), possvel que um ou outro fragmento pstumo j publicado na KGW seja citado segundo a edio GA. Na medida em que forem indicados textos da KGW que foram impressos em edies anteriores da compilao de fragmentos pstumos A VONTADE DE PODER, sero indicados entre parnteses os nmeros dos aforismos dessa compilao sem mencionar eventuais diferenas na decifrao e limitao do aforismo ou alteraes de texto efetuadas pelos editores de GA. 5. Fragmento pstumo, primavera de 1888, 14 [79]; KGW VIII 3, 50 (Vontade de Poder doravante VP. 634). 6. Fragmento pstumo, primavera de 1888, 14 [121]; KGW VIII 3, 93 (VP. 688). 7. Idem, (VP. 692).

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No apenas naquilo que domina e que estende seu domnio se exterioriza a vontade de poder, mas tambm no dominado e submisso. "Mesmo o relacionamento do que obedece para com aquele que domina" tem de ser entendido "como um resistir", no sentido mencionado.8 Tambm o homem , no fundo em qualquer que seja o modo de relao , vontade de poder. Nietzsche remete todas as nossas atividades intelectuais e anmicas a avaliaes (Wertschtzungen), que "correspondem a nossos impulsos e suas condies de existncia." Num apontamento pstumo, escreve a esse respeito: "Nossos impulsos so redutveis vontade de poder. A vontade de poder o ltimo Faktum por detrs do qual podemos chegar."9 Com isso se torna claro, que para Nietzsche "a essncia mais interna do ser vontade de poder."10 Essas primeiras exposies da temtica da vontade de poder se orientaram pelos pstumos. Pergunta-se se tal orientao legtima. Numa questo to importante, no deveramos, de preferncia, nos ater apenas ou pelo menos primariamente aos escritos publicados pelo prprio Nietzsche? Como fica, ento, a confiabilidade filolgica dos pstumos editados? Que peso filosfico tm os apontamentos no publicados por Nietzsche em relao obra autorizada por ele?

tornada acessvel discusso acerca de Nietzsche nos quadros da assim chamada "edio em oitavo maior". Os pstumos completos s estaro prontos quando a edio crtica da obra completa promovida por G. Colli e M. Montinari tiver chegado sua concluso. No entanto, j segundo os volumes at aqui publicados dessa edio, pode ser dito que, sobre a base do material ora tornado conhecido, a pesquisa sobre Nietzsche (Nietzsche-Forschung) se v colocada, sob vrios aspectos, diante de uma nova situao. No se pode dizer, no momento, se conhecimentos essencialmente novos para a resposta pergunta pela vontade de poder podem resultar dos textos at aqui a