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P O N T O S D E V I S T A
CADERNO CRH, Salvador, n. 36, p. 209-215, jan./jun. 2002
Movimento Negro no Brasil: novos e velhos desafios
Sueli Carneiro*
o longo dos ltimos 25 anos, so muitas e ricas as aes de combate ao
racismo que vimos desenvolvendo. Construmos excelncia em alguns
campos que tem resultado em avanos reais da questo racial. Como
nos alerta Maria Aparecida da Silva,
a educao uma das reas em que figura o maior nmero de experincias con-cretas e produo terica no escopo de trabalhos implementados pelo MovimentoNegro contemporneo. Desde os primeiros anos da dcada de 80, dois aspectosvm sendo abordados com nfase, o livro didtico e o currculo escolar.
No que tange ao livro didtico, denunciou-se a sedimentao de papis sociais
subalternos protagonizados por personagens negros e a reificao de estereti-pos racistas. Apontou-se em que medida essas prticas afetam a formao de
crianas e adolescentes negros e brancos, destruindo a auto-estima do primeiro
grupo e, no segundo, cristalizando imagens negativas e inferiorizadas da pessoa
negra, em ambos, empobrecendo o relacionamento humano e limitando as pos-
sibilidades exploratrias da diversidade racial, tnica e cultural.
No que se refere aos currculos escolares, chamou-se ateno para a ausncia
dos contedos ligados cultura afro-brasileira e Histria dos povos africanos
no perodo anterior ao sistema escravista colonial. Houve vrias iniciativas de
incluso destes temas nos currculos formais de certas escolas, ou mesmo redes
de ensino de algumas cidades brasileiras. Entretanto, esbarrou-se no problemada falta de formao do professorado para tratar essas questes em sala de
aula. Mais recentemente, duas novas linhas de ao tm sido evidenciadas pelo
movimento negro, a capacitao de educadores e a produo de recursos didti-
*Coordenadora do Programa de Direitos Humanos do Geleds Instituto da Mu-lher Negra, So Paulo, SP.
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co-pedaggicos para discusso do racismo, da discriminao racial e compreen-
so das desigualdades geradas por eles.
Avanos significativos se processaram no combate ao racismo do ponto de vista
legal, constituindo uma nova e vigorosa rea de atuao e produo de conhe-
cimento, a do Direito e Relaes Raciais, com crescente engajamento de ope-
radores do direito, instituies jurdicas e a proliferao dos SOS Racismo, tanto
no Brasil como em alguns pases da Amrica Latina.
Avanou a organizao poltica das comunidades remanescentes de quilombos,
adquirindo dimenses nacionais. Cresceu a participao dos negros nos meiosde comunicao e a conscincia da excluso da imagem negra nesses veculos.
O movimento de mulheres negras emergiu, introduzindo novos temas na agenda
do movimento negro e enegrecendo as bandeiras de luta do movimento feminista.
significativo o crescimento do nmero de militantes negros adquirindo ttulos
acadmicos, resgatando a condio do negro como sujeito do conhecimento,
especialmente o conhecimento de si prprio. Passamos de objeto de estudo a
sujeitos do conhecimento, fazendo com que a Universidade comece a se consti-
tuir como um importante campo estratgico de atuao.
Apesar deste conjunto de aes, creio que ainda persiste entre ns um senti-
mento de insatisfao em relao nossa trajetria poltica. Vivemos momentos
de paradoxos e perplexidades. Momentos, a meu ver, de reciclagem da nossa
velha democracia racial, que sinalizam a antecipao das elites desse pas dian-
te do avano da questo racial. Quais so os sinais que nos permitem caracteri-
zar esse momento?
Parece que a Rede Globo de Televiso resolveu fazer ao afirmativa por sua
prpria conta e ento estabeleceu uma cota mnima de um e mxima de trs
negros por novela. Estou certa de que vimos lutando para ampliar a presena
negra nos meios de comunicao, mas tambm tenho certeza de que nunca
definimos essa cota estabelecida pela Globo!
Nas propagandas perceptvel o aumento da presena negra. Ns tambm
lutamos por isso. No entanto, no nossa a definio de que basta um negro
perdido numa multido de brancos para expressar uma perspectiva inclusiva. Ou
seja, no nossa a definio de uma imagem negra que exprime uma incluso
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minoritria e subordinada, como espelha a maioria das propagandas em que os
negros so mostrados.
H diversos produtos editoriais segmentados para negros, cujo trao comum o
estabelecimento de um novo padro esttico que, supostamente, atende s
necessidades de modernizao da imagem do negro. Isto significa que lutamos
por produtos especficos para a nossa populao, mas no conseguimos deter-
minar as caractersticas destes produtos. o mercado que o faz.
Mas por que no conseguimos manter o controle sobre processos que ns mes-
mos desencadeamos? Por que no temos instrumentos de monitoramento dosdesdobramentos de nossa ao? Por que todos esses novos eventos no so
apresentados, a ns e sociedade abrangente, como produto de nossa ao
poltica, construda ao longo de dcadas de denncia e reivindicaes? Tudo
acontece como se fosse fruto de gerao espontnea ou de uma disposio
repentina de valorizao da diversidade que teria acometido a sociedade. O que
permite que sejamos expropriados de nossa prpria prtica poltica?
Referindo-se ao seminrio sobre multiculturalismo, organizado pelo Ministrio da
Justia, o vice-presidente Marco Maciel, afirmou que o mesmo indicava que o
Estado brasileiro est finalmente engajado em um aspecto que diz respeito s
suas responsabilidades histricas, em relao s quais sucessivas geraes da
elite poltica brasileira sempre demonstraram um inconcebvel alheamento.1
A partir dessa fala, entendo que o Estado busca recuperar a iniciativa sobre o
ordenamento das relaes raciais, ao mesmo tempo em que expropria o movi-
mento negro da condio de sujeito de um processo no qual, em verdade, o
Estado foi obrigado a intervir sob pena de perder o controle; a ele, portanto, ca-
beria estabelecer os limites em que o debate deve se processar. Exemplo con-
creto disso foi o papel secundrio, ou de mero coadjuvante, reservado militn-
cia negra do Brasil no contexto daquele seminrio, caracterizando o mesmo
processo de alijamento que ocorre em outras instncias da sociedade.
1Anais do Seminrio Internacional. Multiculturalismo e Racismo: o papel da aoafirmativa nos Estados democrticos contemporneos. Braslia: Ministrio da Jus-tia, Secretaria Nacional de Direitos Humanos. 1996.
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Assim, reitero, as conquistas que negros e negras vm obtendo na desmistifica-
o da democracia racial, na maior visibilidade do racismo e na reverso de
certas prticas discriminatrias, longe de legitimar nossa ao poltica enquanto
movimento social, tm servido para subsidiar o que eu chamo, na ausncia de
melhor conceito, de neo-democracia racial. Esta atende a pelo menos dois inte-
resses.
O primeiro, de ordem poltica, visa amortizar a crescente tomada de conscincia
e a capacidade reivindicatria dos afro-descendentes, especialmente o segmento
mais jovem, assim impedindo que o conflito racial se explicite com toda a radica-
lidade necessria para promover a mudana social. O segundo interesse, de
ordem econmica, determinado pela lgica de mercado estabelecida pelo capi-
talismo globalizado, vido por novos mercados, o qual antev, na potencial con-
solidao de uma classe mdia negra, a viabilizao de um novo mercado con-
sumidor.
Para atender a estes dois interesses, a neo-democracia racialestabelece a ca-
pacidade de consumo como o limite da cidadania negra. Desse modo, no novo
desenho de relaes raciais que se delineia s portas do novo milnio, o status
de consumidor garantido a alguns afro-descendentes, enquanto, por outro lado,
ampliam-se os mecanismos de excluso social da maioria.
Ento, onde fica o movimento negro? Temos reivindicado em vrios campos por
polticas pblicas, por polticas de ao afirmativa. Contudo, reivindicamos polti-
cas sem querer fazer poltica no seu sentido mais amplo, sem atentar para as
condies em que se trava a luta poltica. Enfim, sem priorizar a construo da
organizao poltica que possa viabilizar as nossas reivindicaes.
Apesar dos nossos esforos, a questo racial no est na agenda nacional! Ela
no tem merecido apoio pblico de nenhuma fora poltica relevante, s sendo
referida quando se trata de momentos eleitorais. Como, ento, um tema ausente
da agenda nacional pode se transformar em objeto de polticas pblicas?
A lenta absoro da dimenso racial pelas instituies tem se dado porque, co-
mo diz um ex-deputado de So Paulo, ao contrrio de outros movimentos soci-
ais, o movimento negro no conspira, no tem lobby, no negocia as suas dife-
renas em prol de um objetivo estratgico. Este objetivo estratgico no outro,
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seno a mudana das condies materiais da populao negra, pois o que move
a ao poltica o desejo de mudana. E isso exige ir ao encontro do nosso povo.
Somos um movimento de denncia ou de transformao? Como vimos, temos
at sido propositivos no que concerne eliminao das desigualdades raciais.
Na Marcha de 95, construmos um documento de consenso que contm um
Programa de Superao do Racismo e da Desigualdade Racial.2No entanto, no
assumimos coletivamente nenhuma responsabilidade de monitoramento da im-
plementao ou no daquele Programa.
Mesmo assim, temos sido eficientes na denncia da farsa da democracia racial.Construmos massa crtica sobre diferentes temas: educao, sade, direito e
relaes raciais, a luta pela terra, gnero; com a nossa prtica poltica e nossa
experincia histrica de opresso, redefinimos as noes de democracia, cida-
dania e direitos humanos. Isto faz de ns agentes civilizatrios desta sociedade.
Contudo, ainda no construmos uma organizao poltica reconhecida como
interlocutora dos interesses da nossa coletividade, que articule os avanos nos
diferentes campos, em torno de um projeto poltico que tenha como eixo funda-
mental a mudana das condies de vida de nossa gente, que otimize o capital
poltico, o capital financeiro, o capital social, os recursos humanos e materiais
dispersos nas diferentes formas de combate ao racismo.
Ainda no construmos uma organizao poltica capaz de identificar os elemen-
tos mobilizadores de nossa comunidade, de forma a possibilitar a massificao
do movimento, de demonstrar fora poltica e organizativa, e capacidade de
colocar em risco a governabilidade, que o que usualmente obriga o poder a
negociar. No temos uma forma organizativa que nos permita disputar poder real
nessa sociedade.
Talvez nunca, como agora, essa questo tenha sido colocada de maneira to
crucial, pois, a despeito de nossas debilidades organizativas, temos promovido o
avano da questo racial na sociedade. Porm este avano se d sem direo,sem liderana, sem uma estratgia poltica que o informe. Por isso, o projeto
poltico, que deveria ser nosso, comea a ser definido por foras externas, e at
2Documento da Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e aVida, realizada em Braslia nos 300 anos da imortalidade de Zumbi, em 20 de no-vembro de 1995.
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contrrias, ao movimento: o mercado, os governos, as empresas, os meios de
comunicao. a isso que eu venho chamando de neo-democracia racial.
Considero, portanto, que a nossa debilidade organizativa que explica porque
no mantemos o controle sobre os desdobramentos de nossa ao, porque to-
dos esses novos eventos de valorizao da diversidade so apresentados como
se nada tivessem a ver com a nossa luta.
Resta analisar a que se devem as nossas dificuldades no plano organizativo. Em
primeiro lugar, a militncia do presente no presta tributo, no se referencia nas
experincias histricas de organizao poltica no continente africano e na dis-pora. No esgotamos, por exemplo, as possibilidades polticas abertas pela ex-
perincia extraordinria do Quilombo dos Palmares, ou at mesmo da Frente
Negra Brasileira - FNB. Como foi possvel, naquele momento histrico, construir
um tipo de organizao como a FNB, que chegou a formar um partido negro?
Por que a Frente Negra, ao contrrio de todos os partidos extintos pelo Estado
Novo, no se rearticulou aps 1946?
Nunca fizemos um exerccio efetivo de avaliar a potencialidade poltica do Qui-
lombismo de Abdias do Nascimento. Esquecemos as lutas de libertao dos
pases africanos, no nos inspiramos nas teses de Kwame NKrumah, de Amlcar
Cabral, de Agostinho Neto, de Patrick Lumumba. Perdemos a perspectiva ex-
pressa na tradio pan-africanista. Deixamos de nos fazer muitas perguntas: em
termos organizativos, h algo a aprender com o Congresso Nacional Africano
CNA da frica do Sul? O pensamento de Steve Biko responde a alguma di-
menso da luta racial travada no Brasil? O pensamento de Malcolm X pode apor-
tar alguma contribuio luta dos negros brasileiros? E o movimento de direitos
civis, liderado por Martin Luther King? Deixou lies que interessam ao nosso
processo? Se no a nossa histria de lutas, quem, ou o que informa hoje a
nossa prtica poltica?
Os brancos revisitam os seus clssicos, especialmente nos momentos de crise.As novas geraes de militantes negros sequer conhecem os nossos, pois no
criamos meios de transmitir nosso patrimnio libertrio. Onde foram parar os
nossos encontros regionais, que durante anos foram elementos de socializao
de experincias diversas e que afinavam a nossa anlise de conjuntura? Como
um movimento transformador pode levar 8 anos para construir um II Encontro
Nacional?
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beira de um novo milnio, assistimos, impotentes, novela Terra Nostra, da
Rede Globo de Televiso, na qual personagens brancos, diante de milhes de
espectadores, afirmam que italianos no poderiam ir para senzala porque so
brancos, trazem no corao o esprito da liberdade... Consentimos que um jovem
personagem negro reclame, na mesma novela, Deus no quis me embranque-
cer.
beira de um novo milnio, permitimos que intelectuais brancos, racistas, sin-
tam-se vontade para desqualificar, ridicularizar e ofender a militncia negra,
sem esboar uma resposta coletiva, uma reao organizada.
A construo de estratgias coletivas de luta produto de organizao poltica,
de liderana reconhecida e legitimada. Nossa responsabilidade histrica res-
ponder aos desafios que esto colocados, atravs de uma expresso poltica que
represente os anseios do povo negro desse pas. Este um desafio poltico
fundamental para a militncia negra no presente.
(Recebido para publicao em fevereiro de 2002)(Aceito em junho/2002)
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