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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X MÓVEL DE CONCRETO E QUESTÕES DE GÊNERO E DE DOMESTICIDADE: A CASA BUTANTÃ DE PAULO MENDES DA ROCHA EM PERIÓDICOS DE ÉPOCA Bárbara Cardoso Garcia 1 Resumo: Neste artigo, abordamos a casa projetada por Paulo Mendes da Rocha, no Butantã, e discutimos como esse projeto foi veiculado em revistas do período. Nos reportamos principalmente à Acrópole e à Casa e Jardim, buscando observar se há discursos de gênero nas matérias sobre essa residência. Interpretamos que os discursos de cada publicação foram construídos de acordo com o público que se pretendia alcançar; o discurso adotado para apresentar o projeto para público especializado é diferente da abordagem em revista de estilo de vida destinada, principalmente, para mulheres. Refletimos como tais discursos contribuem para construção de identidades de gênero e como são associados a representações de feminilidade de periódicos do período. O artigo também atenta às questões de gênero existentes no discurso projetual adotado pelo arquiteto, pois ao mesmo tempo que é interpretado como de contestação, com ideais de borrar as construções do lar burguês unifamiliar, é, também interpretado como projeto que deixa pouca margem para que os usuários o remodelem, uma vez que, móveis fixos engessam os modos de habitar o ambiente; é controverso recorrer ao móvel fixo como solução de projeto para reger a casa burguesa, que apresenta em sua construção histórica ideais como conforto, lugar da mulher e da vida intima, e que por sua vez é dinâmica, uma vez que seus habitantes mudam ao longo da vida e reconstroem diferentes relações entre si e com o espaço habitado. Palavras-chave: Móveis de concreto. Relações de gênero. Periódicos. Domesticidade. Interiores domésticos. Entre as casas de grande repercussão do grupo de residências modernas realizadas em São Paulo um projeto de grande repercussão são as casas gêmeas concebidas por Paulo Mendes da Rocha para sua própria família e a de sua irmã entre 1964 e 1967. Essas residências são quase idênticas, a principal diferença entre elas trata-se da casa do arquiteto possuir um quarto a mais em relação à casa gêmea e de possuir uma escada de acesso enquanto a de sua irmã possuem duas. As casas ocupam três lotes no bairro City Butantã, a do arquiteto localiza-se na esquina e a de Lina Cruz Mendes da Rocha no meio da quadra. Ambos projetos são um volume quase totalmente suspenso por pilotis, salvo banheiro e quarto de empregada que são construídos no térreo, no qual organiza-se a maior parte do programa da casa. Essas duas casas são interpretadas por diversos autores a partir do discurso de forte engajamento social existente no projeto, que propõe vivências mais coletivas no ambiente unifamiliar. 1 Designer (2013), pela Faculdades de Campinas (FACAMP), mestranda no Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie (PPGAU-UPM).

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Page 1: MÓVEL DE CONCRETO E QUESTÕES DE GÊNERO E DE … · idênticas, a principal diferença entre elas trata-se da casa do arquiteto possuir um quarto a mais em relação à casa gêmea

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

MÓVEL DE CONCRETO E QUESTÕES DE GÊNERO E DE

DOMESTICIDADE: A CASA BUTANTÃ DE PAULO MENDES DA ROCHA

EM PERIÓDICOS DE ÉPOCA

Bárbara Cardoso Garcia1

Resumo: Neste artigo, abordamos a casa projetada por Paulo Mendes da Rocha, no Butantã, e

discutimos como esse projeto foi veiculado em revistas do período. Nos reportamos principalmente

à Acrópole e à Casa e Jardim, buscando observar se há discursos de gênero nas matérias sobre essa

residência. Interpretamos que os discursos de cada publicação foram construídos de acordo com o

público que se pretendia alcançar; o discurso adotado para apresentar o projeto para público

especializado é diferente da abordagem em revista de estilo de vida destinada, principalmente, para

mulheres. Refletimos como tais discursos contribuem para construção de identidades de gênero e

como são associados a representações de feminilidade de periódicos do período. O artigo também

atenta às questões de gênero existentes no discurso projetual adotado pelo arquiteto, pois ao mesmo

tempo que é interpretado como de contestação, com ideais de borrar as construções do lar burguês

unifamiliar, é, também interpretado como projeto que deixa pouca margem para que os usuários o

remodelem, uma vez que, móveis fixos engessam os modos de habitar o ambiente; é controverso

recorrer ao móvel fixo como solução de projeto para reger a casa burguesa, que apresenta em sua

construção histórica ideais como conforto, lugar da mulher e da vida intima, e que por sua vez é

dinâmica, uma vez que seus habitantes mudam ao longo da vida e reconstroem diferentes relações

entre si e com o espaço habitado.

Palavras-chave: Móveis de concreto. Relações de gênero. Periódicos. Domesticidade. Interiores

domésticos.

Entre as casas de grande repercussão do grupo de residências modernas realizadas em São

Paulo um projeto de grande repercussão são as casas gêmeas concebidas por Paulo Mendes da

Rocha para sua própria família e a de sua irmã entre 1964 e 1967. Essas residências são quase

idênticas, a principal diferença entre elas trata-se da casa do arquiteto possuir um quarto a mais em

relação à casa gêmea e de possuir uma escada de acesso enquanto a de sua irmã possuem duas. As

casas ocupam três lotes no bairro City Butantã, a do arquiteto localiza-se na esquina e a de Lina

Cruz Mendes da Rocha no meio da quadra. Ambos projetos são um volume quase totalmente

suspenso por pilotis, salvo banheiro e quarto de empregada que são construídos no térreo, no qual

organiza-se a maior parte do programa da casa.

Essas duas casas são interpretadas por diversos autores a partir do discurso de forte

engajamento social existente no projeto, que propõe vivências mais coletivas no ambiente

unifamiliar.

1 Designer (2013), pela Faculdades de Campinas (FACAMP), mestranda no Programa de Pós Graduação em

Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie (PPGAU-UPM).

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Marlene Acayaba (2011, p. 29), autora de pesquisa seminal sobre casas modernas em São

Paulo, ao escrever texto/relato de apresentação para reedição de seu livro Residências em São

Paulo: 1947-1975 aponta a casa de Paulo Mendes da Rocha como modelo a ser seguido pelos

arquitetos que possuíam a mesma filiação moderna do arquiteto em questão. Nesse texto, a autora

aponta para a existência de uma atitude de vanguarda nos arquitetos e nos clientes das obras que

analisa em sua pesquisa, referindo-se à existência de uma dimensão pública e coletiva encontrada

nos projetos de residências unifamiliares da escola paulista, objeto de sua pesquisa (Acayaba, 2011,

p. 385-394).

Segundo a autora, tais arquitetos se percebiam com a responsabilidade moral de fazer da

arquitetura seu meio para questionar o status quo. A autora diz que “habitar é uma atividade”,

apontando para essa compreensão crítica e não alienada do viver (Acayaba, 2011, p. 30) e de acordo

com o discurso existente nos projetos a intenção seria de devolver à casa a dimensão da convivência

pública, em oposição ao isolamento individual.

Apostar nessa interpretação vanguardista desses projetos parece estar de acordo com a

utopia da arquitetura moderna de refazer os vínculos entre domínio público e privado e instituir uma

vivência pública ativa seria a maneira de transformar a sociedade. Marlene Acayaba usa o termo

“casas de vanguarda”, para se referir a tais projetos que visam instituir tal vivência e que teriam a

casa Butantã como modelo. O vocábulo aponta para o ideal de ruptura de práticas burguesas em

relação à vida privada, ideal compartilhado no discurso do projeto da casa de Paulo Mendes da

Rocha.

Daniele Pisani, autor da publicação mais recente sobre a obra completa de Paulo Mendes da

Rocha, oferece uma interpretação parecida dos ideais que motivam o projeto da casa Butantã. Esse

autor afirma que essa casa pode ser entendida como manifesto contra o morar burguês (Pisani,

2013, p. 91). O vocábulo usado novamente remete à postura de contestação e de ruptura das

vanguardas artísticas do início do século XX.

Ambos autores apostam que o projeto da casa Butantã reage criticamente ao modo de viver

burguês. E o morar burguês, de acordo com Adrian Forty seria fruto da Revolução Industrial, que

separa a esfera do lar e a do trabalho, quando “o lar passou a ser considerado um repositório das

virtudes perdidas ou negadas no mundo exterior. Para as classes médias do século XIX, lar

significava sentimento, sinceridade, honestidade, verdade e amor” (Forty, 2007, p. 140) e passou a

ser identificado como lugar de refúgio individual e acolhimento familiar.

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Segundo Daniele Pisani, o projeto da casa Butantã “não se limita a servir de moldura neutra

e apropriada à vida de seus moradores. Ao contrário: ela (a casa) os compele a executar grande

parte de suas atividades não entre as quatro paredes de um cômodo, mas sob o sigilo do

compartilhamento do espaço e da colaboração.” (Pisani, 2013, p. 91).

A constatação que o projeto da residência em análise persegue uma relação com o domínio

público – seja na convivência dos moradores ou na relação que busca estabelecer com a cidade – é

uma de suas características discursivas fundamentais e o programa estabelecido pelo arquiteto visa

transpor essas intenções conceituais para os modos de morar. É curioso como a tipologia

estabelecida por Paulo Mendes da Rocha ao mesmo tempo que questiona o programa mais habitual

da casa brasileira, que a divide em três setores (estar, repouso e serviço), também mantém muitos

desses aspectos considerados tradicionais, pois apesar de seu discurso crítico e de ruptura trata-se de

um projeto de casa unifamiliar, sozinha no lote, e que parece abrigar uma família engajada

politicamente, mas que mantém traços correntes e conservadores da construção familiar brasileira

baseada na seguinte hierarquia: pai, chefe de família, mãe, dona de casa, e filhos (e empregados); o

projeto mantém inclusive, as dependências de serviço consideradas mais tradicionais no programa

da casa burguesa brasileira: cozinha, lavanderia e aposentos de empregados.

O projeto elaborado por Paulo Mendes da Rocha acomoda a maior parte do programa em

três faixas paralelas, concentrando os quartos – a área mais íntima da casa – na faixa central,

compreendida por duas áreas de uso comum. Ao fazer isso, criam-se duas áreas laterais e ambas são

destinadas a um convívio mais coletivo: a primeira é quase totalmente livre, a não ser pelo balcão

de concreto que acompanha a janela em fita dessa face da construção. Trata-se de um balcão que

serve para muitos usos, “sobre ela estão a máquina de costura, os brinquedos, os livros que não

cabem nas prateleiras, a roupa a ser distribuída pelos quartos, o correio e as chaves do carro”

(Otondo, 2016, p.30). A outra área, do outro lado da faixa de dormitórios, abriga a sala de refeições

– no projeto da casa Butantã não há distinção entre copa e sala de jantar, apontando para a

sobreposição de uso dos ambientes –, sala de estar e escritório; nesse espaço também há lareira e

janela em fita que ocupa toda a extensão da parede, assim como na face paralela a ela, na outra

extremidade da construção. A lareira é central nesse ambiente de uso comum e, segundo Daniele

Pisani (2013, p. 91), o fogo da lareira convidaria à reunião familiar. Assim como o lavabo

escultórico, elemento central e inusitado na planta da casa, a lareira também possui certo caráter

cênico no ambiente, talvez por sua centralidade.

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Acredito que o desenho de móveis fixos seja a principal ferramenta projetual que converge

com a interpretação de que no projeto da casa Butantã haveria intenção de se criar novas soluções

mais adequadas à vida daquele período e que dialogaria com o discurso de romper o programa

tradicional da casa burguesa brasileira. Na residência em quentão há diversas mesas, como a de

refeições, as escrivaninhas dos quartos e a mesa do escritório, balcões, prateleiras, estantes, sofás e

camas construídos de concreto e integrados ao projeto arquitetônico. As paredes que dividem os

ambientes também são de concreto, têm a mesma espessura delgada dos móveis fixos e não chegam

até o teto. Acredito que esse seja um artifício de projeto usado para colocar em tensão os ideais de

intimidade da casa burguesa, pois faz os habitantes sempre se lembrarem de que estão em um

ambiente habitado por outras pessoas. Acredito também que fixar, inclusive usos relativos ao estar

seria o extremo de uma atitude projetiva que visa propor o viver programático do discurso moderno,

pois não deixa margem para rearranjo; e que o desenho frugal e o material da mobília fixa –

concreto bruto e aparente – questionam a noção de conforto com a mesma radicalidade da primeira

operação. Vale lembrar que a noção de conforto é um dos principais traços que caracterizam a

noção de casa burguesa (Sparke, 1995, p. 27-28), ideia que o projeto de Paulo Mendes da Rocha

quer se opor.

No projeto da casa Butantã, os móveis fixos ou recebem vários usos, como o balcão já

mencionado, ou definem o lugar em que determinadas atividades cotidianas devem se realizar,

como trabalhar, comer, dormir, estudar. Para Júlio Katinsky propor móveis fixos é uma solução

projetual empregada por questões práticas, “em consequência de uma verificação sistemática do que

pode ser considerado equipamento e portanto incorporado à própria construção” (Katinsky, 1970, p.

29). Esse autor não evidencia qualquer atitude de ruptura em relação aos modos de morar

burgueses, apesar de apontar os equipamentos de concreto da casa Butantã como “uma

manifestação autônoma (em relação aos padrões internacionais do móvel moderno) que merece

registro” (Katinsky, 1970, p. 29).

Ruth Verde Zein, que estudou a obra residencial de Paulo Mendes da Rocha, aponta que o

projeto da casa Butantã “poderia ser denominado ‘casa-apartamento’ à maneira paulista, onde o

programa é acomodado em apenas um pavimento, disposto sobre pilotis abertos, usados como área

de lazer e estacionamento” (Zein, 2000, p. 221). A autora esboça uma filiação desse projeto aos

esquemas Dom-ino e Citrohan de Le Corbusier e à discussão em torno da máquina de morar, e

também chama atenção para a característica repetível e multiplicável do projeto. “A casa no Butantã

já são, de fato, duas casas iguais e vizinhas; a escada de acesso, exterior ao corpo da casa, podendo

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sugerir a possibilidade de uma superposição; e a sistematização do processo produtivo sugerindo,

enquanto desejo, a possibilidade futura de pré-fabricação” (Zein, 2000, p. 398).

A autora ressalta a ideia de seriação presente no projeto, uma intenção romântica que muitas

vezes não se mostra efetiva, que nesse projeto de Paulo Mendes da Rocha chegou mais perto de ser

concretizada e que só vai ser efetivamente alcançado no projeto da casa Gerassi Neto realizado

muito depois, em 1989 (Zein, 2005, p. 226). A possibilidade de superposição e repetição do projeto

poderia justificar o discurso que visa propor vivências mais coletivas, mas como a própria autora

aponta trata-se mais de uma intenção do que de uma possibilidade real.

A frugalidade do desenho é quase uma premissa ética do arquiteto discípulo do Projeto

Moderno, pois é uma maneira de expressar a racionalização do projeto e da construção, além de

guardar relações com a ideia de corpo ativo também presente nesse discurso. Esse tipo de projeto,

como a residência de Paulo Mendes da Rocha, que dialoga com crenças e ideologias, muitas vezes

românticas, se desenvolve na chave da simplificação. Essa “atitude econômica” também se

relaciona com a postura crítica e ativa que parece guiar os ideais de domesticidade que parecem

existir no projeto da casa Butantã, e converge com o discurso do arquiteto ao apresentar tal projeto

em publicações de época.

Também acredito que esse recurso de projeto, de incorporar móveis ao projeto arquitetônico,

elimine o consumo de alguns móveis, ou seja, de uma parcela de objetos de consumo doméstico.

Talvez isso demonstre um posicionamento crítico perante a profusão de objetos de consumo que

tem, principalmente, as mulheres como público-alvo. Mas, ao mesmo tempo, tira delas e dos

clientes de modo geral participação mais ativa no projeto, como a escolha dos móveis.

A partir dessas considerações sobre a casa que Paulo Mendes da Rocha projetou para sua

própria família, surge a dúvida sobre qual teria sido a recepção da obra em análise pela família que

habitou essa residência. Há poucas informações a respeito do período em que família morou na casa

ou se houve alterações no projeto, principalmente referentes aos móveis fixos. Sabe-se que a família

residiu na casa entre 1970 e 1990 e que atualmente nela mora Lito Mendes da Rocha, filho de Paulo

Mendes da Rocha (Otondo, 2016, p. 27). Acredito que esse projeto de residência pode interferir

muito nos modos de habitar os ambientes, devido ao engessamento proposto pelo projeto que

parece impor um modo de morar, não sendo simpático à remodelação de uso pelo usuário. Isso

parece estar de acordo com o caráter programático do Projeto Moderno que parece perseguir o

homem perfeito como sujeito ideal. Apesar de relatos, como o de Catherine Otondo, sobre a casa

que se abre em dias de festa (Otondo, 2016, p. 31), indicando fluidez e flexibilidade do projeto, me

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parece que o projeto da casa Butantã guarda a contradição recorrente do discurso do Projeto

Moderno e da produção de casas de arquitetura moderna em São Paulo: apesar do discurso de

transformação e abrangência social, são projetos que costumam depender do financiamento e

interesse de uma burguesia culta com afinidade com os códigos estéticos e discursivos da

arquitetura moderna, digamos mais engajada, como a defendida por Paulo Mendes da Rocha.

Quando o arquiteto projeta sua própria casa, cria-se a expectativa de que ele encontre o

máximo da liberdade criativa – pois quem faz a encomenda e concebe o projeto é o mesmo sujeito –

e o projeto resultante pode ser expressão da melhor oportunidade de o arquiteto atingir suas

aspirações cruciais, que, no caso de Paulo Mendes da Rocha, diz respeito à transformação social via

projeto arquitetônico. Há debates que apontam que esse tipo de projeto corre o risco de impor um

modo de morar que pode não se mostrar agradável ou tolerável para os indivíduos que o habitem,

pois lida com o risco de sobrepor o teor simbólico do projeto às necessidades reais dos habitantes da

casa nem sempre previsíveis e caras à lógica programática da arquitetura moderna. E abre-se a

discussão se não seria autoritária a atitude do arquiteto em determinar de forma tão engessada os

usos dos espaços e eliminar a escolha de boa parte da mobília.

Yves Bruand descreve as casas no Butantã como um projeto com “preocupações ambiciosas

que visavam propor soluções revolucionárias que influíssem no modo de vida dos moradores” e diz

que, nesse sentido, a casa para a família de Paulo Mendes da Rocha apresenta projeto mais radical

que a de sua irmã (Bruand, 1981, p. 315). Esse autor ressalta que o projeto da casa Butantã,

principalmente a casa da família do arquiteto, simboliza uma concepção social nitidamente

autoritária e uma recusa de concessões, fixar a maior parte da mobília definitivamente e propor

quartos que não podem ser fechados e portanto, que não permitem o isolamento, são exemplos

dessa atitude. Sobre os quartos esse autor diz que “as divisões estabelecidas entre eles e a varanda

de entrada não foram concebidas como verdadeiras separações; vazadas, não chegam até o teto e as

portas têm de ficar abertas para que a luz lateral possa penetrar. Aqui, Paulo Mendes da Rocha

impõe seu ideal de vida comunitária, impedindo qualquer morador dessa casa de escapar dele”

(Bruand, 1981, p. 315).

A partir desse comentário surge a questão de qual seria o ideal de vida comunitária que o

arquiteto teria em mente ao propor a casa Butantã. Seria apenas a convivência coletiva que

cumpriria função de preparar os filhos para uma vida cívica ativa? Não há evidências que indiquem

a existência de um projeto de vida comunal, como por exemplo o existente na Red House

concebida, por Philippe Webb e William Morris, não como residência unifamiliar e sim espécie de

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comunidade de artistas (Leon, 2017, p. 22). Na casa Butantã não há propostas de ligações mais

permeáveis com a casa gêmea, nem sugerem a participação de pessoas que não pertençam a família

e que não seja a figura da empregada doméstica; apesar do projeto indicar a possibilidade de

adensamento com a superposição de pavimentos, trata-se mais de uma utopia do que algo realmente

provável.

Paulo Mendes da Rocha parece usar o recurso do móvel fixo evocando a mesma

radicalidade com que busca banir áreas íntimas, que permitem isolamento, em seu projeto. Acredito

que incluir móveis fixos no projeto de arquitetura trata-se de uma maneira de agir incisiva nas

formas de morar ao mesmo tempo em que delega como e onde as tarefas cotidianas seriam

realizadas em ambiente doméstico. Entendo que esse tipo de casa com móvel fixo obriga os

habitantes a convívios específicos, influenciando de maneira engessada os modos de morar, além de

suprimir completamente a ação de rearranjo dos ambientes da casa; tratam-se de atitudes que se

opõem à vida dinâmica e em constante transformação do cotidiano doméstico. Acredito que esse

seja um ponto crucial para justificar a relação entre mobiliário fixo e uma atitude autoritária do

projeto frente ao morar; e que reverbera a discussão do Projeto Moderno pretender ser tão

programático a ponto de acabar se distanciando dos usos e dos usuários reais para os quais os

projetos são destinados.

A casa Butantã em periódicos de época

Apesar de ser uma das casas modernas realizadas em São Paulo de grande repercussão, ela

foi pouco publicada, isso acontece em parte por opção do próprio arquiteto que prefere enfatizar

seus projetos de dimensão macro e não projeto de residências unifamiliares (Otondo, 2016, p. 25-

26).

Foram localizadas seis publicações de época sobre esse projeto, sendo que considero as duas

primeiras de maior destaque, principalmente por estarem mais próximas da data de conclusão do

projeto e por se tratar de duas publicações de tipos diferentes, para público especializado e para

público leigo, e que portanto permitem uma análise do discurso adotado em cada situação.

A primeira publicação do projeto da casa Butantã aconteceu na revista Acrópole número

343, em setembro de 1967. Trata-se da segunda edição consecutiva dedicada à obra dos arquitetos

Paulo A. Mendes da Rocha e João E. de Gennaro, e contém texto de apresentação de Flávio Motta2

2 O mesmo texto foi publicado em 2016 no livro Paulo Mendes da Rocha: Casa Butantã com o título “O espaço como projeto social”. OTONDO, Catherine (org.). Casa Butantã: Paulo Mendes da Rocha. São Paulo: Ubu, 2016.

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sobre Paulo Mendes da Rocha. Esse texto aborda, principalmente, o conteúdo ético e moral

existente no discurso dos seguidores do Projeto Moderno e aponta Paulo Mendes da Rocha como

discipulo dessa filiação conceitual e com compromisso de atualizar a arquitetura em direção aos

novos costumes e de “recuperar a integridade da arquitetura” (Motta, 1967, p. 17). O autor aponta

esse arquiteto como um discípulo de Oscar Niemeyer e Vilanova Artigas que não teria se

distanciado dos ensinamentos dos mestres de defender o ideal humano da arquitetura; e alerta que o

acúmulo de objetos contribui para o fechamento das pessoas em sua intimidade, e que, estabelecer

relações afetivas com tais objetos afastam o convívio em sociedade; “O homem acumula coisas até

virar coisa. ” (Motta, 1967, p. 18).

Flávio Motta afirma que Paulo Mendes da Rocha projeta tendo em vista romper com o

fechamento do homem em sua intimidade. E, nesse sentido, a casa Butantã seria um exemplo de

projeto que propõe novas formas de relacionamento entre pessoas. Esse autor, assim como a

bibliografia posterior já mencionada, especialmente Marlene Acayaba e Daniele Pisani, demonstra

entender o discurso dos projetos de Mendes da Rocha, como a casa Butantã, como possuidor de

uma postura “heroica” por procurar se colocar de maneira diferente ao que é corrente, questionando

criticamente as fronteiras já estabelecidas.

A Acrópole é uma revista especializada em arquitetura e por isso apresenta o projeto da casa

Butantã com vocabulário mais técnico. A descrição textual do projeto é concisa, são poucas linhas

de texto e diversas imagens do projeto com legendas explicativas. Nessa publicação não há

necessidade de detalhar o discurso conceitual existente no projeto, pois o público da revista sabia a

filiação modernista da publicação. Trata-se da revista de arquitetura de maior circulação no país no

período, com periodicidade regular, mensal ou bimestral; no início seu foco é comercial e apresenta

conteúdo descritivo e informativo que focava na instrumentalização do arquiteto (Dedecca, 2012, p.

86) e com o passar do tempo, a revista ganha orientação mais técnica quando o corpo editorial se

aproxima do grupo de arquitetos paulistas (Dedecca, 2012, p. 93). Essa fase mais técnica da revista

é marcada pela direção editorial de Eduardo Corona, a partir de 1963, e se “aproximava das novas

problemáticas arquitetônicas, na medida em que os profissionais locais se habituavam com seu

modo de funcionamento, entregando plantas e textos, e percebendo-a como meio de debate e de

visibilidade” (Dedecca, 2012, p. 93).

O texto sobre a casa Butantã publicado na Acrópole chama atenção para o projeto tratar de

duas casas quase idênticas, apontando para a ideia de repetição, e tenta estabelecer relação do

projeto residencial com a cidade, dizendo que o projeto segue o compromisso com a organização

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dos jardins e ruas do entorno. Na matéria há imagens de desenhos técnicos, da casa construída

mostrando o interior e exterior do projeto e inclusive, da etapa de construção do projeto,

curiosamente detalhando a existência dos móveis fixos integrados à arquitetura, com legenda que

diz que as peças fundidas à arquitetura da casa organizam o grande espaço social, chamando

atenção para o caráter programático e para as vivências mais coletivas que o projeto propõe

(Acrópole, 1967, p. 33).

Quatro meses depois de ser publicado na Acrópole, o projeto da casa Butantã foi publicado

na Casa & Jardim, uma revista de estilo de vida com público formado sobretudo por mulheres, em

janeiro de 1968. Essa revista aborda principalmente conteúdo de decoração, jardinagem e dicas de

“faça você mesmo” e surgiu para guiar o consumo de objetos domésticos da classe média brasileira,

a revista era espaço de visibilidade do estilo de vida da classe média e visava construir estilos de

vida mediante práticas de consumo (Santos, 2010, p. 63-64).

Nessa revista, a matéria intitulada “Casa de concreto” apresenta a casa Butantã assumindo

que trata-se de um projeto pouco convencional. O texto se aproxima do formato de uma conversa,

adota primeira pessoa do singular, como se o próprio arquiteto tivesse explicando o projeto em uma

conversa com o leitor. Apesar da Casa & Jardim em geral se dirigir a seu público majoritariamente

feminino, inclusive empregando termos como “amiga” e “leitoras”, nas reportagens sobre

arquitetura seus textos apresentam discurso neutro pois o corpo editorial considera que são matérias

que interessam a homens e mulheres (Santos, 2010, p. 49).

Na Casa & Jardim a matéria apresenta fotos coloridas da casa Butantã, o que permite ver as

cores existentes no projeto no período em que ele foi construído e as legendas são mais explicativas

quanto aos usos dos espaços, por exemplo: “no prolongamento do living, mesa longa onde as

crianças estudam e todos trabalham” e “porte de entrada, diante do corredor de circulação. À direita,

outro ângulo do prolongamento do living, onde as crianças brincam” (Casa & Jardim, 1968, p. 34).

No texto o arquiteto explica que projetou a casa Butantã com a intenção de “torná-la o

habitat que lhe parecia mais válido e atual, uma síntese das experiências arquitetônicas”. Nesse

trecho, assim como na matéria da Acrópole, encontramos o discurso de um compromisso moral que

o projeto assume perante a vida cotidiana e que busca encontrar soluções mais adequadas para o

contexto de desenvolvimento urbano de São Paulo daquele período.

Esse texto é uma das poucas fontes sobre os ideais de domesticidade pretendidos pelo

arquiteto ao conceber tal projeto. Por exemplo:

“A casa que construí não restringe ninguém a um modo de vida específico e

definitivo. Está mais ligada às possibilidades das coisas que se farão do que a uma fórmula

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atual e pretenciosa, estática, apoiada nos costumes, como por exemplo em relação à vida

das crianças dentro da casa. Na minha, procurei ligar as crianças ao que enfrentarão

fatalmente na vida real, e não submetê-las a uma proteção às vezes constrangedora. ”

(CASA & JARDIM, 1968, pp. 32-34).

Nesse trecho encontramos referência à sobreposição de funções no programa da casa, sugerindo que

a casa é projetada para se adaptar a vários usos, mas surge a dúvida de como acontece essa

flexibilidade de uso com a quantidade de móveis de concreto integrados à arquitetura existentes no

projeto; não há detalhes sobre a opinião de outros moradores sobre como seria habitar essa casa. O

trecho também aponta que o projeto teria a intenção de preparar as crianças para a vida cívica, além

de apontar para o desejo de vivências mais coletivas.

Exemplo do tom informativo do texto publicado na Casa & Jardim é a passagem que

explica aos leigos quanto ao discursso da arquitetura moderna, porque deixar o concreto aparente. A

revista aborda o concreto como um material simples e barato e há passagem em que o arquiteto

explica o desenho frugal da mobília, que rejeita o supérfluo e busca os elementos essenciais do

desenho.

“A mobília funciona como equipamento complementar e aparece naturalmente a

partir do espaço que decorre do desenho, já adequadamente organizado. Alguns

desses espaços estão tão marcados que certas peças participam do próprio projeto,

com por exemplo, planos de trabalho, bancos e mesas. Assim, a casa é comunicante,

porque faz o espaço render o máximo e se definir com nitidez.”. (CASA &

JARDIM, 1968, p. 34) Esse trecho aponta necessidade de explicar a existência da mobília fixa no projeto, os ideais por trás

do projeto frugal: “a ideia central do projeto é a rejeição do supérfluo em favor da beleza, da

limpidez das formas e da clara intenção plástica” (Casa & Jardim, 1968, p. 34).

O texto termina chamando atenção para o comentário do arquiteto: “A casa não é mais o

lugar de morar, o homem mora nas cidades. As casas são apenas um dos equipamentos das

cidades”. Assumindo que se trata de um comentário polêmico, assim como assume que a casa

Butantã é um projeto pouco convencional, mas não a apresenta como um projeto de ruptura, apenas

diferente.

A próxima publicação da casa Butantã aconteceu no periódico Artes, em 1970, espécie de

jornal sobre arte e que apresenta esse projeto em formato de entrevista com o arquiteto, precedido

por breve introdução que apresenta a arquitetura como a arte de organizar o espaço e que ressalta o

caráter artístico e humano dessa prática profissional. A matéria aborda principalmente o concreto

como matéria construtiva e Paulo Mendes da Rocha o defende como a solução mais adequada à

realidade social brasileira. A introdução à entrevista diz que uma casa com construção de concreto

bruto pode parecer primitiva aos olhos dos leigos, mas para os arquitetos são resultado da estrutura

essencial e completa, trata-se de uma arquitetura “sem os retoques do artificial e do acessório”

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(Artes, 1970, p.7). Nesse trecho assim como em toda matéria, nota-se a preocupação em explicitar

os códigos da arquitetura moderna, principalmente justificando o uso do concreto armado, mas de

uma forma digamos mais culta do que acontece na Casa & Jardim.

Em 1972 a casa Butantã é publicada em edição especial sobre casas na América Latina da

Global Interior, revista editada em Tóquio e com textos em japonês, apenas os títulos são em

inglês. Apesar da barreira do idioma que dificulta a compreensão do discurso ao apresentar o

projeto da casa Butantã, nessa revista se encontra abundancia de fotografias, inclusive a única foto

do interior da casa com pessoas em cena, trata-se do arquiteto e talvez de sua esposa, não tenho

certeza, sentados um de frente para o outro na mesa do escritório (Global Interior, 1972, pp. 24-31).

Quase dez anos depois, em 1981, a revista semanal A Construção São Paulo publica a casa

Butantã sob o título “Residências Paulo Mendes da Rocha e L. G. Cruz Secco|1964”. Trata-se de

apenas uma página, com imagens com vistas externas da construção e com a casa da esquina em

destaque. É curioso como até em publicações que ressaltam que se tratam de dois projetos gêmeos,

apenas a casa do arquiteto costuma ser abordada com mais ênfase.

No ano seguinte, o projeto da casa Butantã é publicado na revista carioca Módulo, revista

carioca especializada em arquitetura e que tem filiação moderna, assim como a Acrópole em São

Paulo. A matéria é sucinta, apenas duas páginas, e apresenta a ideia de simplificação e organização

como motes principais do projeto, pontuando que essas preocupações eram partilhadas por muitos

dos arquitetos daquela época e fazendo ressalva que “não queremos com isso negar as intenções de

caráter criativo e inovador no resultado final dos espaços” do projeto da casa Butantã (Módulo,

1982, p. 56). A revista apresenta o projeto como um ensaio, dizendo que apesar do “desejo de

organizar rigorosamente a construção com a atenção voltada para as técnicas de pré-fabricação e

industrialização das estruturas de concreto armado. Não são pré-fabricadas.” (Módulo, 1982, p. 56).

Acredito que o projeto da casa Butantã realmente é um projeto contraditório, pois por mais

que tenha um discurso que pregue altíssimo engajamento social, em direção à vida cívica e coletiva

e à realidade social brasileira, na prática, trata-se de uma casa com projeto muito criativo, mas que

não apresenta nenhuma solução que busque estabelecer relações efetivas com a cidade ou com o

ideal de vida comunitária que transcenda o núcleo familiar do arquiteto autor do projeto. E essas

contradições conceituais não escapam de aparecer nos periódicos ao publicarem tal residência.

Referências

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Fixed funiture and gender experiences: Paulo Mendes da Rocha’s Butantã house in

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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Astract: In this article, we will talk about the house projected by Paulo Mendes da Rocha, in Butantã

and will discuss how this Project was published in periodicals. We will refer especially to Acrópole

and Casa & Jardim, seeking gender speeches in the articles about this house. We interpret the

speeches of each publication as being constructed in accordance with the audience it was intended

to reach. The discourse adopted to present the project to the specialized audience is different from

the approach in lifestyle magazine aimed, mainly, at women. We reflect how such discourses

contribute to the construction of gender identities and how they are associated with representations

of femininity of periodicals in this time span.

The article also looks at gender issues in the design discourse adopted by the architect, because

while it is interpreted as a challenge, with ideals to blur the constructions of the bourgeois single-

family home, it is also interpreted as a project that leaves little room for the users to remodel it since

fixed furniture plasters the ways of inhabiting the environment. It is controversial to resort to fixed

furniture as a design solution to govern the bourgeois house, which presents in its historical

construction ideals such as comfort, woman's place and intimate life which in turn is dynamic, since

its inhabitants change throughout life and rebuild different relations among them and the inhabited

space. Keywords: Domesticity. Home interiors. Gender relations. Periodicals. Representations of

femininity.