morte vermelha - edgar allan poe

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  • 7/24/2019 Morte Vermelha - Edgar Allan Poe

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    E D G A R A L L A N P O E

    Contos de terror, mistrio & morte

    Traduo de Jos Lus Silva

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    A mscara da Morte Vermelha

    M O R T E V E R M E L H A tinha h muito devastado o pas. Nenhuma pestilncia havia

    jamais sido to fatal, ou nefanda. O sangue era seu Avatar e selo: a vermelhido e o

    horror do sangue. Sobrevinham dores agudas e vertigens sbitas, e ento o sangramento pro-

    fuso pelos poros e a liquefao. As manchas escarlates sobre o corpo e especialmente sobre o

    rosto da vtima eram o antema da peste, que a exclua da assistncia e simpatia de seus seme-

    lhantes. Todo o processo de contaminao, desenvolvimento e consumao da doena era

    coisa de meia hora.

    Mas o Prncipe Prspero era feliz, destemido e sagaz. Quando seus domnios se encontra-

    ram despovoados pela metade, chamou sua presena um milhar de amigos sos e de corao

    leve colhidos entre os cavaleiros e as damas de sua corte, e com eles se retirou para o isola-

    mento profundo de uma de suas abadias acasteladas. Esta era uma edificao ampla e esplen-

    dorosa, criao do gosto excntrico, porm augusto, do prprio Prncipe. Um muro forte e

    alto a circundava. Tal muro tinha portes de ferro. Uma vez l dentro, os cortesos apanha-

    ram fornalhas e martelos pesados, e soldaram os ferrolhos. Resolveram no deixar meios nem

    de ingresso nem de egresso para os impulsos sbitos de desespero dos de fora, ou de exaltao

    dos de dentro. A abadia foi amplamente abastecida. Com tais precaues, os cortesos poderi-

    am desafiar o contgio. E o mundo externo que se arranjasse por si. Nesse meio tempo, insen-

    sato era se afligir, ou pensar. O prncipe providenciara todos os meios de prazer. Havia bufes

    e improvvisatori,* havia danarinos e msicos havia Beleza, havia vinho. Isso tudo e a segu-

    rana estavam do lado de dentro. Do lado de fora, a Morte Vermelha.

    Por volta do fim do quinto ou sexto ms de isolamento, quando a pestilncia vociferava

    ainda mais furiosamente l fora, o Prncipe Prspero entreteve seus mil amigos com um baile

    de mscaras do mais extraordinrio esplendor.

    Foi um espetculo voluptuoso, aquela mascarada. Mas, primeiro, deixe-me falar dos sales

    nos quais se deu. Eram sete: uma srie imperial de sales. Em muitos palcios, entretanto, tais

    sries formam um longo panorama retilneo quando as portas dobradias so deslizadas para

    ambos os lados at as paredes, de modo que apenas de raro em raro a viso da extenso com-

    pleta obstruda. Aqui, o caso era bem diferente; como se poderia esperar do amor do duque

    pelo bizarro. Os cmodos se encontravam to irregularmente dispostos que a viso abrangia

    pouco mais que um por vez. Havia uma curva fechada a cada vinte ou trinta jardas e, a cada

    curva, alguma impresso nova. esquerda e direita, no meio de cada parede, uma alta e es-

    treita janela gtica se abria para um corredor fechado que acompanhava os meandros da srie.

    *Improvisadores. Em italiano no original. (N T )

    A

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    Tinha vitrais cuja cor variava de acordo com o matiz predominante na decorao de cada

    aposento que servia. O da extremidade oriental pendia, por exemplo, para o azul e vivamen-

    te azuis eram suas janelas. O segundo aposento possua ornamentos e tapearias purpreos, e,

    aqui, purpreas eram as vidraas. O terceiro era completamente verde, e assim eram os baten-

    tes. O quarto fora mobiliado e iluminado com a cor laranja. O quinto, com a branca. O sexto,

    com a violeta. O stimo cmodo fora inteiramente amortalhado com tapearias de veludo

    preto, que pendiam de todo o teto e das paredes, depositando-se em pesadas dobras sobre um

    tapete de mesmo material e matiz. Mas neste aposento apenas, a cor das janelas no combina-

    va com a decorao. As vidraas, aqui, eram escarlate da cor do sangue profundo. Ora, em

    nenhum dos sete cmodos, havia lamparina ou candelabro algum em meio quela profuso de

    ornamentos dourados que descaiam, dispersos, para l e c, e, s vezes, do forro. Luz de esp-

    cie alguma emanava de lamparina ou vela alguma no interior da srie de aposentos. Todavia,nos corredores que a contornavam, jazia, oposto a cada janela, um pesado trip sobre o qual se

    sustentava um braseiro de fogo que projetava seus raios atravs do vidro tingido e, assim, ilu-

    minava deslumbrantemente o quarto. E, deste modo, produzia-se uma multido de aparncias

    berrantes e fantsticas. Mas, no aposento ocidental ou preto, o efeito da luz do fogo, que flua

    at as colgaduras negras atravs das vidraas tingidas de sangue, era cadavrico em extremo, e

    gerava uma expresso to selvagem nos semblantes dos que ali entravam, que, dentre os con-

    vivas, poucos eram corajosos o suficiente para sequer pr os ps no interior de seu recinto.

    Era neste cmodo, tambm, que jazia contra a parede ocidental um enorme relgio de

    bano. Seu pndulo balanava para l e c com um tinido surdo, pesado e montono; e, quan-

    do o ponteiro dos minutos completava uma volta no mostrador, e a hora estava para ser soa-

    da, provinham dos pulmes de bronze do relgio um som que era claro, alto, profundo e ex-

    cessivamente musical, mas de canto e nfase to peculiares que, a cada lapso de hora, os

    msicos da orquestra eram obrigados a interromper, momentaneamente, sua performance,

    para escutar o som; e, assim, os valsistas forosamente suspendiam seus passos; e um breve

    desconcerto habitava a todos os alegres convivas; enquanto o carrilho do relgio ainda repi-cava, via-se os mais levianos ficando plidos, e os mais velhos e tranqilos passando as mos

    sobre a fronte, como se em confuso devaneio ou meditao. Quando os ecos cessavam por

    completo, um riso sem graa permeava de imediato a reunio; os msicos olhavam uns para

    os outros e sorriam, como que de seu prprio nervosismo e desatino, e ainda faziam, uns para

    os outros, promessas sussurrantes de que o prximo repique do relgio, neles no produziria

    efeito similar; e ento, aps o lapso de sessenta minutos (que abrange trs mil e seiscentos

    segundos do Tempo que voa), advinha um outro repique do relgio, e ento se seguiam o

    desconcerto, o tremor e a meditao de antes.

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    Mas, a despeito dessa situao, era uma festa alegre e esplendorosa. Os gostos do duque

    eram peculiares. Tinha um olho apurado para as cores e seus efeitos. Desdenhava os decora*

    do mero bom-tom. Seus projetos eram audazes e impetuosos, e suas idias fulguravam um

    lustro brbaro. Alguns o achariam louco. Seus seguidores sentiam que no. Era preciso ouvi-

    lo, v-lo e toc-lo para ter certezade que no era.

    Ele havia, em grande parte, comandado a ornamentao, em nada rgida, dos sete aposen-

    tos, por ocasio dessa grande fte;, e foi seu prprio gosto diretor que atribuiu personagens

    aos mascarados. Por certo, eles eram grotescos. Havia muito esplendor, brilho, malcia e fan-

    tasmagoria muito do que vemos desde o Hernani. Figuras arabescas com membros e acess-

    rios inaptos. Fantasias delirantes como as predilees dos loucos. Muito de belo, feminino, e

    bizarro, algo de terrvel, e nem um pingo do que quer que pudesse estimular o sentimento do

    desgosto. Para l e c, nos sete aposentos, espalhava-se, de fato, uma multido de sonhos. Es-ses os sonhos , retorcidos sobre si mesmos, e de um lado ao outro, adotavam a cor e a for-

    ma dos quartos, e faziam a msica selvagem da orquestra passar por eco de seus prprios pas-

    sos. Ento, de pronto, soa o relgio de bano no vestbulo de veludo. Por um instante, tudo

    para e silencia, exceto a voz do relgio. Os sonhos, como esto, congelam-se. Mas os ecos do

    carrilho fenecem eles haviam durado apenas um instante e um riso sem graa e um tanto

    contido tremula depois deles, quando partem. Agora, de novo, a msica se dilata, os sonhos

    revivem e se retorcem para l e c mais jovialmente que nunca, adotando a cor das janelas

    hiper-tingidas atravs das quais fluem os raios dos trips. Mas, ao mais ocidental dos sete apo-

    sentos, nenhum mascarado se aventura agora a ir; pois a noite cai sem cessar; flui uma luz

    afogueada atravs das vidraas coloridas de sangue; a escurido das tapearias negras apavora;

    e tambm porque, para aquele cujo p assalta o tapete negro, advm do relgio de bano ao

    lado, um estrondo abafado mais solenemente enftico que o que alcana os seus ouvidos

    quando esto entregues s alegrias distantes dos outros cmodos.

    Mas esses outros cmodos se achavam apinhados de gente, e neles batia febrilmente o co-

    rao da vida. A festa seguiu em turbilho, at que, por fim, o relgio precipitou o som dameia-noite. A msica, ento, cessou, do modo j descrito; os passos dos valsistas se aquieta-

    ram; e houve uma interrupo constrangida de tudo, como antes. Mas agora, eram doze as

    badaladas a serem retumbadas pelo sino do relgio; por isso, talvez, mais pensamentos se in-

    sinuaram, por mais tempo, nas meditaes dos mais reflexivos entre os festeiros. Talvez por

    isso, tambm, aconteceu de, antes de os ltimos ecos do ltimo carrilho terem se abismado

    por completo no silncio, muitos indivduos na multido terem tido oportunidade de notar a

    *Ornamentos. Em latim no original. (N T )Festa. Em francs no original. (N T )

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    presena de uma figura mascarada, a qual no havia at ento atrado a ateno de ningum.

    Tendo o rumor dessa nova presena se espalhado aos sussurros pelos quatro cantos, originou-

    se, por fim, entre todos os convivas, um burburinho, ou murmrio, indicativo, no incio, de

    desaprovao e surpresa mas logo, finalmente, de terror, horror e repugnncia.

    Numa reunio de fantasmagorias tal como a descrita, poderia-se bem supor que nenhuma

    apario ordinria haveria de estimular tal sensao. Em verdade, a licenciosidade mascarada

    da noite era quase ilimitada; mas a figura em questo havia ultrapassado o prprio Herodes, e

    ido alm dos limites at mesmo do decoro indefinido do prncipe. H cordas nos coraes dos

    mais imprudentes que no podem ser tocadas sem emoo. At para os que esto completa-

    mente perdidos, e a vida e a morte so igualmente gratas, h assuntos com relao aos quais

    nenhuma graa pode ser feita. Todos os convivas, de fato, pareciam agora sentir profunda-

    mente que no existia na fantasia e no comportamento do estranho nem espirituosidade nemadequao. A figura era alta e lgubre, e se encontrava amortalhada da cabea aos ps com os

    trajes do sepulcro. A mscara que escondia seu rosto fora feita para assemelhar to proxima-

    mente o semblante de um cadver enrijecido, que o escrutnio mais estreito teria dificuldade

    em detectar o engano. At a, tudo ainda poderia ter sido tolerado, seno aprovado, pelos en-

    sandecidos festeiros sua volta. Mas o mascarado tinha ido longe demais ao adotar a fantasia

    da Morte Vermelha. Sua vestimenta estava chuviscada de sangue bem como sua larga testa e

    todas as linhas de sua face se encontravam sarapintadas de horror escarlate.

    Quando os olhos do Prncipe Prspero se deitaram sobre essa imagem espectral (que com

    um movimento lento e solene, como se para representar mais cabalmente o seu role,* movia-

    se para l e c entre os valsistas), ele, de incio, entrou em convulso, em meio a um forte es-

    tremecimento de terror ou repulsa; de pronto, contudo, sua face ficou vermelha de raiva.

    Quem ousa? perguntou, roucamente, aos cortesos prximos a ele. Quem ousa nos

    insultar com esse escrnio blasfemo? Peguem-no e tirem-lhe a mscara vejamos quem temos

    para enforcar nas ameias ao amanhecer!

    O Prncipe Prspero estava no aposento oriental ou azul quando pronunciou essas pala-vras. Repercutiram sonora e claramente de um extremo ao outro dos sete quartos , pois o

    prncipe era um homem forte e seguro de si, e aquietara a msica com um gesto de mo.

    O prncipe estava ento no quarto azul, com um grupo de cortesos plidos ao seu lado.

    De incio, enquanto falava, houve, da parte desse grupo, um ligeiro movimento de assalto em

    direo ao intruso, que j se encontrava, alm disto, ao alcance de suas mos, e agora se apro-

    ximava ainda mais, em passo deliberado e majestoso, do falante. Mas, em razo de uma certa

    estupefao sem nome que a tresloucada presuno do mascarado inspirou em todos os con-

    *Papel. Em francs no original. (N T )

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    vidados, no se achou ningum que esticasse a mo para agarr-lo; de modo que, desimpedi-

    do, passou a um metro da pessoa do prncipe; e, enquanto o vasto grupo, como que por efeito

    de um empurro, encolhia-se do centro dos quartos para as paredes, seguiu ele o seu caminho

    sem interrupo, com o passo solene e medido que o havia desde o incio distinguido, do apo-

    sento azul para o prpura, do prpura para o verde, do verde para o laranja, deste, mais uma

    vez, para o branco, e, ainda, dali para o violeta, antes que qualquer movimento decidido tenha

    sido feito para det-lo. Foi ento, todavia, que o Prncipe Prspero, enlouquecido de raiva e

    vergonha com sua prpria covardia momentnea, atirou-se com mpeto e muito s pressas

    pelos seis aposentos, mas ningum, por conta do terror mortfero que a todos havia captura-

    do, o seguiu. Carregava no ar uma adaga desembainhada, e chegara, com sbita impetuosida-

    de, a dois braos da figura recolhida, quando esta, tendo alcanado a extremidade do cmodo

    aveludado, voltou-se de repente e confrontou seu perseguidor. Houve um grito lancinante ea adaga tombou lampejando no tapete negro, sobre o qual, logo depois, sucumbiu, prostrado

    em morte, o Prncipe Prspero. Em seguida, convocando a coragem selvagem do desespero, a

    massa de festeiros se lanou de uma s vez para dentro do aposento preto, e, tendo agarrado o

    mascarado, cuja figura alta jazia ereta e imvel na sombra do relgio de bano, arquejou com

    inexprimvel horror ao descobrir que a mortalha fnebre e a mscara cadavrica que amarro-

    tavam com violncia no era habitada por nenhuma forma tangvel.

    Foi ento reconhecida a presena da Morte Vermelha. Chegara como um ladro na noite.

    Um a um, tombou cada festeiro nos vestbulos orvalhados de sangue da festa, morto na posi-

    o desesperada de sua queda. A vida do relgio de bano se apagou com a do ltimo homem

    alegre. As chamas dos trips se extinguiram. E as Trevas, o Declnio e a Morte Vermelha tive-

    ram domnio ilimitado de tudo.