poesias de edgar allan poe

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POESIAS De Edgar Allan Poe O CORVO ANNABEL LEE A ZANTE ULALUME UM SONHO NUM SONHO OS SINOS À MARIE-LOUISE SHEW ISRAFEL PARA HELENA PARA ANNIE ELDORADO LINHAS SOBRE A CERVEJA VALE DA INQUIETUDE TAMERLÃO SILÊNCIO LENORA HINO A CIDADE NO MAR 1

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Page 1: Poesias de Edgar Allan Poe

POESIAS De

Edgar Allan Poe

O CORVOANNABEL LEE

A ZANTEULALUME

UM SONHO NUM SONHOOS SINOS

À MARIE-LOUISE SHEWISRAFEL

PARA HELENAPARA ANNIEELDORADO

LINHAS SOBRE A CERVEJAVALE DA INQUIETUDE

TAMERLÃOSÓ

SILÊNCIOLENORA

HINOA CIDADE NO MAR

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Page 2: Poesias de Edgar Allan Poe

O Corvo

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste, Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais, E já quase adormecia, ouvi o que parecia O som de alguém que batia levemente a meus umbrais «Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais. É só isso e nada mais.» 

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro, E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais. Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada P'ra esquecer (em vão) a amada, hoje entre hostes celestiais — Essa cujo nome sabem as hostes celestiais, Mas sem nome aqui jamais! Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais! Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo, «É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais; Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais. É só isso e nada mais». 

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante, «Senhor», eu disse, «ou senhora, decerto me desculpais; Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo, Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais, Que mal ouvi...» E abri largos, franquendo-os, meus umbrais. Noite, noite e nada mais. 

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando, Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais. Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita, E a única palavra dita foi um nome cheio de ais — Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais. Isto só e nada mais. 

Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo, Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais. «Por certo», disse eu, «aquela bulha é na minha janela. Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.» Meu coração se distraía pesquisando estes sinais. «É o vento, e nada mais.» 

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça, Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais. Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento, Mas com ar solene e lento pousou sobre meus umbrais, 

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Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais. Foi, pousou, e nada mais. 

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura Com o solene decoro de seus ares rituais. «Tens o aspecto tosquiado», disse eu, «mas de nobre e ousado, Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais! Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.» Disse-me o corvo, «Nunca mais». 

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro, Inda que pouco sentido tivessem palavras tais. Mas deve ser concedido que ninguém terá havido Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais, Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais, Com o nome «Nunca mais». 

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto, Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais. Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento Perdido, murmurei lento, «Amigo, sonhos — mortais Todos — todos lá se foram. Amanhã também te vais». Disse o corvo, «Nunca mais». 

A alma súbito movida por frase tão bem cabida, «Por certo», disse eu, «são estas vozes usuais. Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais, E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais Era este «Nunca mais». 

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura, Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais; E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais, Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais, Com aquele «Nunca mais». 

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo À ave que na minha alma cravava os olhos fatais, Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais, Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais, Reclinar-se-á nunca mais! 

Fez-me então o ar mais denso, como cheio dum incenso Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais. 

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«Maldito!», a mim disse, «deu-te Deus, por anjos concedeu-te O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais, O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!» Disse o corvo, «Nunca mais». 

«Profeta», disse eu, «profeta — ou demónio ou ave preta! Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais, Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais, Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!» Disse o corvo, «Nunca mais». 

«Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!, eu disse. «Parte! Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais! Não deixes pena que ateste a mentira que disseste! Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!» Disse o corvo, «Nunca mais». 

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais. Seu olhar tem a medonha dor de um demónio que sonha, E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais, E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais, Libertar-se-á... nunca mais!

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ANNABEL LEE (de Edgar Allan Poe) 

Foi há muitos e muitos anos já,Num reino de ao pé do mar.Como sabeis todos, vivia láAquela que eu soube amar;E vivia sem outro pensamentoQue amar-me e eu a adorar. 

Eu era criança e ela era criança,Neste reino ao pé do mar;Mas o nosso amor era mais que amor --O meu e o dela a amar;Um amor que os anjos do céu vierama ambos nós invejar. 

E foi esta a razão por que, há muitos anos,Neste reino ao pé do mar,Um vento saiu duma nuvem, gelandoA linda que eu soube amar;E o seu parente fidalgo veioDe longe a me a tirar,Para a fechar num sepulcroNeste reino ao pé do mar. 

E os anjos, menos felizes no céu,Ainda a nos invejar...Sim, foi essa a razão (como sabem todos,Neste reino ao pé do mar)Que o vento saiu da nuvem de noiteGelando e matando a que eu soube amar. 

Mas o nosso amor era mais que o amorDe muitos mais velhos a amar,De muitos de mais meditar,E nem os anjos do céu lá em cima,Nem demônios debaixo do marPoderão separar a minha alma da almaDa linda que eu soube amar. 

Porque os luares tristonhos só me trazem sonhosDa linda que eu soube amar;E as estrelas nos ares só me lembram olharesDa linda que eu soube amar;E assim 'stou deitado toda a noite ao ladoDo meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,

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No sepulcro ao pé do mar,Ao pé do murmúrio do mar. 

A ZANTE

Linda ilha, que à mais bela das formosasflores pediste o nome, que é o mais lindo,quantas recordações de horas radiosasnos vêm, se à nossa vista vais surgindo!

Quantas cenas perdidas de ventura!Quanta esperança nas saudades morre!Quantas visões daquela virgem puraque teus outeiros já não mais percorre!

Não mais! Ai! como a frase triste a mágicatudo altera! Não mais os teus fulgoresrecordarei! Não mais! Paragem trágica,

sê maldita em tuas praias e em tuas flores!ó ilha de jacinto! ó rubra Zante!"Isola d`oro! Fior di Levante!"

ULALUME

Era o céu de um cinzento funerárioe a folhagem, fanada, morria,a folhagem, crispada, morria;era noite, no outubro solitáriode ano que já me não lembraria;ficava ali bem perto o lago de Auber,na região enevoada de Weir;bem perto, o pantanal úmido de Auber,na floresta assombrada de Weir.

Lá, uma vez, por um renque titânicode cipreste, vagueei, em desconsolo,com minha alma, Psique, em desconsolo.Era então o meu peito vulcânicoqual torrente de lava que no solosalta, vinda dos cumes do Yaanek,nas mais longínquas regiões do pólo,que ululando se atira do Yaaneknos panoramas árticos do pólo.

Tristonha e gravemente conversamos,

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mas a idéia era lassa e vaziae a memória traidora e vazia;que o mês era o de outubro não lembramos,nem soubemos que noite fugia.(Ai! a noite das noites fugia!)não recordamos a lagoa de Auber(E já fôramos lá, certo dia);não pensamos no charco úmido de Aubernem no bosque assombrado de Weir.

Quando a noite ia já desmaiadae as estrelas clamavam pela aurora,pálidos astros apontando a aurora,eis o que surge, no extremo da estrada,uma luz fluida, nebulosa; e foradela se ergue um crescente recurvo,diadema de Astarté, que se alcandora.

"Menos fria que Diana é essa Estrela",digo, "a girar num éter feito de ais,sorridente, num éter feito de ais.Viu o pranto, que a mágoa revela,nas faces em que há vermes imortaise, por onde o Leão se constela,vem mostrar o caminho aos céus, letaiscaminhos para a paz dos céus letais;a despeito do Leão, vem-nos elailuminar, com os olhos triunfais;das cavernas do Leão, vem-nos ela,cheia de amor nos olhos triunfais."

Mas diz Psique, tremendo de aflição:"Dessa estrela, por Deus, desconfia!Desse estranho palor desconfia!É preciso fugir de luz tão fria!Apressemo-nos! Voemos, então!"e, pendidas, de tanta agonia,suas asas se inclinavam para o chão;soluçava e, de tanta agonia,as plumas rastejavam pelo chão,tristemente roçando pelo chão.

"Isso", falei "é um sonho de criança!Oh! sigamos a luz que fascina,mergulhemos na luz cristalina!é um clarão de beleza e de esperançao que vem dessa luz sibilina.

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Olha-a: entre as sombras, como gira e dança!Guie-nos, pois, essa estrela, que iluminanossa estrada, com toda a confiança;que nos guie para onde se destina.Nessa estrela tenhamos confiança,pois nas sombras, assim, volteia e dança!"

Dou um beijo a Psique, que a conforta,impedindo que o medo se avolume,que a dúvida, a tristeza se avolume,e da estrela seguimos o lumeaté que nos deteve uma portade tumba, e uma legenda nessa porta."Doce irmã", perguntei, "dessa portaque tragédia a legenda resume?""Ulalume" - respondeu-me. "Ulalume!""Essa é tumba perdida de Ulalume!"

E me vi de tristezas referto,como a folhagem seca que morria,a folhagem fanada que morria!E exclamei: "Era outubro, decerto,e era esta mesma, há um ano, a noite friaem que vim, a chorar, aqui perto,fardo horrível trazendo, aqui perto!Nesta noite das noites, sombria,que demônio me arrasta aui tão perto?Bem reconheço agora o lago de Auber,na região enevoada de Weir;bem vejo o pantanal úmido de Auber,na floresta assombrada de Weir!"

UM SONHO NUM SONHO

Este beijo em tua fronte deponho!Vou partir. E bem pode, quem parte,francamente aqui vir confessar-teque bastante razão tinhas, quandocomparaste meus dias a um sonho.Se a esperança se vai, esvoaçando,que me importa se é noite ou se é dia...ente real ou visão fugidia?De maneira qualquer fugiria.O que vejo, o que sou e suponhonão é mais do que um sonho num sonho.

Fico em meio ao clamor, que se alteia

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de uma praia, que a vaga tortura.Minha mão grãos de areia seguracom bem força, que é de ouro essa areia.São tão poucos! Mas, fogem-me, pelosdedos, para a profunda água escura.Os meus olhos se inundam de pranto.Oh! meu Deus! E não posso retê-los,se os aperto na mão, tanto e tanto?Ah! meu Deus! E não posso salvarum ao menos da fúria do mar?O que vejo, o que sou e suponhoserá apenas um sonho num sonho?

OS SINOS

I

Escuta: nos renós tilintam sinosargentinos!Ah! que de mundo de alegria o som cantante prenuncia!Como tinem, lindo, lindo,no ar da noite fria e bela!Vão tinindo e o céu inteiro se constela,florescente, refulgindocom deleites cristalinos!Dão ao Tempo uma cadência tão constantecomo um rúnico descante,com os tintinabulares, pequeninos sons, bem finos,que nascendo vão dos sinos,sim, dos sinos, sim, dos sinos,saltitantes, bimbalhantes, dentre os sinos.

II

Escuta: em núpcias vão cantando os sinos,áureos sinos!Quantos mundos de ventura seu tanger nos prefigura!No ar da noite, embalsamado,como entoam seu enlevo abençoado!Tons dourados, lentas notasconcordantes...E tão límpido poema aí flutuapara as rolas que o escutam, divagantes,vendo a lua!Volumoso, vem das celas retumbantestodo um jorro de eufoniaque se amplia,

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"O futuro é belo e bom!"- clama o som,que arrebata, com em êxtases divinos,no balanço repicante que lá soa,que tão bem, tão bem ecoana vibrante voz dos sinos, sinos, sinos,carrilhões e sinos, sinos,no rimado, consonante som dos sinos.

III

Escuta: em longo alarma bradam sinos,brônzeos sinos!Ah! que história de agonia, turbulenta, se anuncia!Treme a noite, com pavor,quando os ouve em seu bramido assustador.Tanto é o medo que, incapazes de falar,se limitam a gritar,em tons frouxos, desiguais,clamorosos, apelando por clemência ao surdo fogo,contendendo loucamente com o frenesi do fogo,que se lança bem mais alto,que em desejo audaz estuade, no empenho resoluto de algum salto(sim! agora ou nunca mais!),alcançar a fronte pálida da lua!Oh! os sinos, sinos, sinos!De que lenda pavorosa, de alarmar,falam tanto?Clangorantes, ululantes, graves, finos,quanto espanto vertem, quanto,no fremente seio do ar!E por eles bem a gente sabe - ouvindoseu tinido,seu bramido -se o perigo é vindo ou findo.Bem distintamente o ouvido reconhecepela luta,na disputa,se o perigo morre ou cresce,pela ampliante ou descrescente voz colérica dos sinos,badalante voz dos sinos,sim, dos sinos, sim, dos sinos,do clamor e do clangor que vêm dos sinos!

IV

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Escuta: dobram, lentamente, os sinos,férreos sinos!Ah! que mundo pensares tão solenes põem nos ares!Na silente noite fria,quando a alma se arrepiaà ameaça desse canto melancólico de espanto!Pois em cada som saídoda garganta enferrujadahá um gemido!E os sineiros (ah! essa genteque, habitando o campanáriosolitário,vai dobrando, badalando a redobradavoz monótona e envolvente...),quão ufanos ficam eles, quando vãotombar pedras sobre o humano coração!Nem mulher nem homem são,nem são feras: nada maisdo que seres fantasmais.E é seu Rei quem assim tange,é quem tange, e dobra, e tange.E reboatriunfal, do sino, a loa!E seu peito de ventura se intumescecom os hinos funerários lá dos sinos;dança, ulula, e bem pareceter o Tempo num compasso tão constantequal de rúnico descante,pelos hinos lá dos sinos!Ah! dos sinos!Leva o Tempo num compasso tão constantecomo em rúnico descante,pela pulsação dos sinos,a plangente voz dos sinos,pelo soluçar dos sinos!Leva o Tempo num compasso tão constante,que a dobrar se sente, ovante,bem feliz  esse rúnico descante,com o reboar que vem dos sinos,a gemente voz dos sinos,o clamor que sai dos sinos,a alucinação dos sinos,o angustioso,lamentoso, lutuoso som dos sinos!

A MARIE-LOUISE SHEW

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Aquele que estas linhas traça, outrora,no louco orgulho do intelectualismo,defendia o "poder do verbo", crendojamais haver na mente um pensamentoque fosse intraduzível em palavras.Mas, agora, a zombar dessa jactância,dois dissílabos suaves, estrangeiros,sons da Itália, só de anjos murmuradosquando sonham ao luar, que faz do orvalho"sobre o outeiro do Hermon um rio de pérolas",tiraram, dos abismos deste peito,almas de pensamentos não pensados,visões tão belas, singulares, célicas,que nem mesmo Israfel, cantor seráfico("a mais doce das vozes já criadas")poderia narrar. Quebrou-se o encanto!Cai a pena, impotente, da mão trêmula.Com teu nome por tema, embora o ordenes,eu não posso escrever... Pois não é sentimentoficar assim, imóvel, à douradaenorme porta aberta sobre os sonhos,contemplando, extasiado, o panorama,trêmulo, por só ver, de cada ladoe pela longa estrada, entre impurpúreasnévoas, e na distância, onde terminaa perspectiva - A TI UNICAMENTE.

ISRAFEL

"E o anjo Israfel, em quem as fibras do coração formam um alaúde e que tem amais doce voz de todas as criaturas deDeus." (Alcorão)

Há no céu um espírito "em que as fibrasdo coração formam um alaúde".Canção nenhuma tem a mágica virtudedo teu canto, Israfel! Quando a voz vibras,os astros que andam no firmamento(contam as lendas) em desatinoscessam seus hisnos,emudecidos de encantamento.

Vacilante, flutuano seu zênite a lua;mas, se te ouve a canção,enamorada, enrubescida de paixão,

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Page 13: Poesias de Edgar Allan Poe

a luz purpúrea no céu detém,e as sete Plêiades, ante essa voz,cessam tambéma carreira veloz.

Diz o coro estrelado, a multidãode astros que o ouvir-te encanta,que deves, Israfel, a inspiraçãoao alaúde de teu coração;ele é que cantaquando, trêmulas, vibrasas suas vivas, singulares fibras.

Mas os céus, Israfel, percorresteonde cumpre um dever quem fundamente pensae onde o Amor é um deus sem par;onde o olhar das huris se revestedessa beleza imensaque só na estrela vamos adorar.

Tu não erras, portanto,Israfel, se te esquivasa um desapaixonado canto!Sejam-te dados todos os louvores!És o melhor, és o mais sábio dos cantores!Feliz eternamente vivas!

Os êxtases do céu perfeitamentese harmonizam com teu ritmo ardente;teu pesar, a ventura, e ódio, e amor,de tua lira se casam ao fervor.Bem deve cada estrela estar silente!

Sim, teu é o Céu, mas esta Terraé um mundo de doçuras e de dores;nossas flores nada mais são que flores,e o que de sombra encerratua perfeita venturaé, para nós, a luz do sol mais pura.

Se eu, porém, Israfel, morasse onde viveste,se vivesses onde euvivo, magicamente assim não poderiascantar terrestres melodias;e um hino mais audaz, talvez, do que este,de minha lira iria arrojar-se no céu.

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PARA HELENA

Vi-te uma vez, só uma, há vários anos,já não sei dizer QUANTOS, mas NÃO MUITOS.Era em junho; passava a meia-noitee a lua, em ascensão, como tua alma,nos céus abria um rápido caminho.O luar caía, um véu de seda e prata,calma, tépida, embaladoramente,Em cheio, sobre as faces de mil rosas,que floresciam num jardim de fadas,onde até o vento andava de mansinho.Caía o luar nas faces dessas rosas,que morriam, sorrindo, no jardimpela tua presença enfeitiçado.

Toda de branco, vi-te reclinadasobre violetas; e o luar caíasobre a face das rosas, sobre a tua,voltada para os céus, ai! de tristeza!

Não foi o Destino, nessa meia-noite,não foi o Destino (que é também Tristeza)que me levou a esse jardim, detendo-mecom o incenso das rosas que dormiam?nenhum rumor. O mundo silenciara.Só tu e eu (meu Deus! como palpitao coração, juntando estas palavras!)...Só tu e eu... Parei... Olhei...E logo todas as coisas se desvaneceram.(Lembra-te: era um jardim enfeitiçado.)Fugiu a luz de pérola da lua.Os canteiros, os meandros sinuosos,flores felizes, árvores aflitas,tudo se foi; o próprio odor das rosasmorreu nos braços do ar que as adorava.

Tudo expirara... Tu ficaste... Menosque tu: a luz divina nos teus olhos,a alma mos olhos para os céus voltados.Só isso eu vi durante horas inteiras,até que a lua fosse declinando.Ah! que histórias de amor se não gravavamnas celestes esferas cristalinas!que mágoas! que sublimes esperanças!que mar de orgulho, calmo e silencioso!e que insondável aptidão de amar!

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Mas, afinal, Diana se sepultanum túmulo de nuvens tormentosas.tu, como um elfo, entre árvores funéreas,deslizas. Só TEUS OLHOS PERMANECEM.NÃO QUISERAM fugir e não fugiram.Iluminando a estrada solitáriade meu regresso, não me abandonaramcomo o fizeram minhas esperanças.

E ainda hoje me seguem, dia a dia.São meus servos - mas eu sou seu escravo.Seu dever é luzir em meu caminho;meu dever é SALVAR-ME pro seu brilho,purificar-me em sua flama elétrica,santificar-me no seu fogo elísio.Dão-me à alma Beleza (que é Esperança).Astros do céu, ante eles me prosternoNas noites de vigília silenciosa;e ainda os fito em pleno meio-dia,duas Estrelas-d`Alva, cintilantes,que sol algum jamais extinguirá.

PARA ANNIE

Graças a Deus! A crise,o perigo passou!O mal languidescenteafinal se acabou.E essa febre chamadavida se conquistou!

Tristemente me sintodas forças despojadoe músculo algum possomover, assim deitado.Mas que importa? Prefiroficar assim deitado.

E em meu leito descanso,com tamanho confortoque, ao ver-me, poderiamimaginar-me morto;talvez estremecessem,como quem olha um morto.

Gemidos e lamentos,

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suspiros e aflição agora se acalmaram,com a palpitaçãocruel no meu peito. Horrívelessa palpitação!

O mal-estar, a náusea,a impiedosa agonia,tudo se foi, com a febreque a mente enlouquecia:febre chamada vida, que em meu cérebro ardia.

De todos os tormentos, o que mais amarguracessou: o ardor terrívelda sede que tortura,sede do rio naftálicoda Paixão vil e impura.Oh! eu bebi de uma a'guaque toda a sede cura!

Água que flui com um cantoque o ar de doçura inunda,de uma fonte bem poucoescondida e profunda,de furna que no soloquase não se aprofunda.

E, ah! nunca loucamentese diga e seja aceitoque é sombrio o meu quartoe apertado o meu leito,pois nunca o homem descansaem diferente leito.Para dormir, deitai-vosem semelhante leito.

Nele, a alma supliciadadorme, sem dolorosasrecordações, não tendomais saudades das rosas,das velhas inquietudesde seus mirtos e rosas.

e, aqui jazendo, o espírito,tão calmo e satisfeito,crê que o cerca um mais santoodor de amor-perfeito,

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odor de rosmaninho,misto de amor-perfeito,de malva, do belíssimoe puro amor-perfeito.

E assim feliz repousa,mergulhado em perenesonho de lealdadee da beleza de Annie,mergulhado nas ondasdas longas tranças de Annie.

Ela beijou-me e, terna,acariciar-me veio.E eu caí, docemente,a dormir no seu seio.Dormi profundamentesobre o céu de seu seio.

Cobriu-me, ao apagar-sea luz no castiçal,e orou para que os anjosme livrassem do male a Rainha dos anjosme afastasse do mal.

E durmo em tal conforto,agora no meu leito(desse amor satisfeito)que me acreditais morto.E é tal o meu confortoa repousar no leito(seu amor no meu peito)que me imaginais mortoe tremei, com trejeitode quem contempla um morto.

Mas o meu coraçãofulge mais que a pereneluz dos astros celestes,pois fulgura por Anniee se abrasa na chamado amor de minha Annie,só pensando na chamado olhar de minha Annie.

ELDORADO

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Page 18: Poesias de Edgar Allan Poe

Gentil, faceiro,um cavaleiro,sob sol e sombreado,seguiu avante,cantarolante,em busca do Eldorado.

Mas o andarilhoficou tão velho,no âmago assombrado,por não acharnenhum lugarassim como Eldorado.

E, enfim diantede sombra errante,parou, quando esgotadoe arguiu-lhe "onde,sombra, se escondea terra de Eldorado?"

"Sobre as montanhasda lua e entranhasdo Vale Mal-Assombrado,vá com coragem,"disse a miragem,"se procuras o Eldorado".

LINHAS SOBRE A CERVEJA

Cheio de espuma e âmbar misturadosEsvaziarei este copo novamenteVisões as mais hilariantes embarafustamPela alcova de meu cérebroPensamentos os mais curiosos fantasias as mais extravagantesGanham vida e se dissipam;O que me importa o passar das horas?Hoje estou tomando cerveja.

O VALE DA INQUIETUDE

Dantes, silente vale sorria.Era um vale onde ninguém vivia.Haviam todos partido em guerra,deixando os doces olhos de estrelasnoturnamente velarem pelasflores formosas daquela terra,

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Page 19: Poesias de Edgar Allan Poe

em cujos braços, dia após dia,a luz vermelha do sol dormia.Não há viajante que, hoje, não falesobre a inquietude do triste vale.Lá, agora, tudo é só movimento,exceto os ares, pesando, adustos,nas soledades de encantamento.Ah! nenhum vento move os arbustosque vibram como as ondas geladasem torno às Hébridas enevoadas!Ah! nenhum vento essas nuvens guia,murmurejantes, nos céus insanos,e que se arrastam, por todo o dia,sobre violetas, que alguém diriaserem milhares de olhos humanos,e sobre lírios, de haste pendida,chorando em tumba desconhecida,tremendo; e sempre caem, com o perfume,gotas de orvalho do flóreo cume,chorando; e desce, nas hastes frias,um pranto eterno de pedrarias.

TAMERLÃO

Doce consolação nesta hora extrema!Tal, Padre, agora não será meu tema...Não direi loucamente que um poderterreno me liberte do pecadosobre-humano de orgulho, em mim a arder.O tempo de sonhar é já passado:Dizes que isso é esperança; e a desvairadachama é só a agonia de um anseio!Se CREIO na Esperança... Ó Deus! Bem creio...Sua fonte é mais divina, mais sagrada...Ancião louco eu não quero te chamar,mas isso é coisa que não podes dar.

Conheces de um espírito o segredo,da sabedoria atirado em plena lama?Herdei, ó coração a palpitar,teu quinhão de desprezo, com a fama,a glória consumida, a cintilarde meu trono entre as jóias, qual coroainfernal. Porque dor alguma o infernopode agora trazer, que me dê medo.E anseias pelas flores, coração,e pelo sol das horas de verão!

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Desse tempo defunto o canto eterno,com seu soluço intérmino, reboa,em teu vazio, nos sons enfeitiçadosde um dobre doloros de finados.

Do que hoje sou, já fui bem diferente.Usurpador, obtive, conquisteio diadema que cinge a fronte ardente.Roma e César não deu a mesma ousadaherança, que me estava reservada?A herança de um espírito de rei,para lutar, espírito altaneiro,triunfalmente, contra o mundo inteiro.Em região montanhosa ao mundo vim.As brumas de Taglay pulverizavam,à noite, o seu orvalho sobre mim,e acredito que as asas, em violentostumultos, e as tormentas, e os mil ventos,em meus próprios cabelos se aninhavam.

Esse orvalho, depos, do céu tombando(entre noites de sonhos condenados)era um toque de inferno sobre mim,enquanto rubras luzes, cintilandoem nuvens, que oscilavam quais pendões,pareciam-me, aos olhos mal cerrados,do poder régio as predestinações,e dos trovões profundos o clarimsobre mim se atirava, proclamandoque, em humanas batalhas, estentórea- criança louca! - a minha voz bradava(como minha ala se regozijavae ante esse grito o coração saltava!)o grito de combate da Vitória!

Na fronte sem abrigo se esparziaa chuva rude, e o vento me tornavadesatinado, cego, ensurdecido.Era apenas um ente que lançavalouros em mim, pensava então, e a friafúria do ar fustigante, a meus ouvidoscantava a evocação de destroçadosimpérios, o clamor dos capturados,o rumor dos cortejos, a cançãocom que aos tronos rodeia a adulação.

Minhas paixões, desde esse infausto dia,

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sobre mim exerceram tiraniatamanha, que, somente com o poder,se pôde o meu caráter conhecer.Mas, Padre, então, ali vivia alguém...então... na juventude... quando a chamadas paixões mais se alteia e mais se inflama(porque paixões só a juventude tem),alguém que soube ver, no peito de aço,de uma fraqueza feminil o traço.

Não tenho termos... ai... para dizero quanto é doce o verdadeiro amor!Nem tentarei agora descreverdessa face lindíssima o primor,pois seus contornos são, na minha mente,sombras que ao vento vão, voluvelmente.Recordo ter-me outrora debruçadosobre folhas de ciência do Passado,até que cada letra, tão fitada,e cada termo se desvanecesseme seu próprio sentido se perdesseem fantasias e, por fim, em nada.

Ah! todo o amor bem elas mereciae era o meu afeto qual de criança.Razão tinham os anjos de a invejar.Seu jovem coração era um altarem que meus pensamentos e a esperançaeram o incenso, a oferta que subiacom pureza infantil, imaculada,de seu jovem modelo copiada.Por que os abandonei pela paixãoda luz, que inflama e empolga o coração?

Crescemos... e conosco o amor crescia...vagueando na floresta e nos desertos.Na tormenta meu peito a protegiae quando, amiga, a luz do sol sorria.E se ela contemplava os céus abertos,somente em seu olhar os céus eu via.

A primeira lição do amor nascenteestá no coração, pois, sob o ardentesol, vendo esses sorrisos sem cuidados,rindo de seus brinquedos estouvados,eu me lançava no seu seio arfantee em lágrimas minha alma se expandia.

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Ah! dizer mais eu não precisaria,nem acalmar temores vãos, perantequem ficava, sem nada perguntar,voltando para mim o quieto olhar.

E embora merecesse MAIS que o amor,a minha alma impaciente se exaltavaquando, num cume de montanha, a sós,a ambição lhe falava em nova voz.

Todo o meu ser só nela consistia,o mundo e tudo quanto ele encerrava,na terra, no ar, nos mares, a alegria,os quinhões pequeníssimos de dor,que eram novo prazer, os ideais,noturnos sonhos de vaidade impura,e as coisas mais sombrias, porque reais(as sombras... e uma luz bem mais obscura!)nas asas do nevoeiro se evolavame assim confusamente se tornavamnuma imagem, num nome... um nome... duascoisas, unificadas, por que tuas.

Eu era ambicioso. Já tivestepaixões, Padre? Não! Não as conheceste!Um trono para mim, filho do lodo,que o mundo dominasse quase todo,sonhei, a maldizer a minha sorte.mas, como todo sonho, também este,sob o vapor do orvalho, voaria,não viesse da beleza o brilho forteque o cumulava, ainda que, se tanto,por um minuto, por uma hora, um diapesar-me na alma com dobrado encanto.

E passeávamos juntos, pela cristade elevada montanha, donde a vistacaía, dos penhascos escarpadose altivos, das florestas, nos outeirosesparsos, de bosquetes coroados,rumorando com seus mil ribeiros.Falava de poder e de vaidade,porém misticamente, que a verdadea ela eu não queria revelarno que dizia; e então, em seu olhar,talvez eu lesse, descuidadamente,um sentimento, do meu próprio irmão.

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O brilho de suas faces parecia,para mim, transformar-se em refulgentetrono; e eu consentir não poderiaque elas brilhassem só na solidão.

De grandezas então eu me envolviatomando uma fantástica coroa;e não era, contudo, a Fantasiaque seu manto viera em mim lançar.E se, entre a humanidade, a turba alvar,é o leão da ambição, que se agrilhoa,entregue à mão de um domador que o mande,não é assim no deserto; lá, o que é grandeconspira com o terrível e o sem parpara as almas com o sopro incendiar.

Contempla Samarkand! Contempla-a agora!Não é a rainha da terra e se alcandorasobre as cidades todas? Não lhes trazos destinos na mão? E não desfaz,solitária e fidalga, tudo quantode glória e fama neste mundo medra?Se cair, sua mais humilde pedrahá de formar de um trono o pedestal.Quem é seu soberano? Tamerlão.Esse que os povos viram, com espanto,subir, calcando aos pés cada nação,um bandido com a coroa real!

Ó amor humano! Tu, que dá no mundoo que esperamos vir do céu profundo;que cais na alma qual chuva abençoada,sobre a planície adusta e calcinada;e, não podendo dar ventura, fazesdo coração deserto sem oásis;tu, idéia que toda a vida encerraem música de sons tão singularese belos, que na selva têm seus lares,adeus! adeus! pois conquistei a Terra!

Quando a Esperança, essa águia da amplidão,so altos cimos já não mais avista,Suas asas se curvam, de mansinho,e o olhar se volta, doce, para o ninho.Era o sol-pôr; e quando o sol declinaum desespero sobe ao coraçãode quem ainda quisera ter à vista

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o esplendor estival da luz solar.A alma aspira a bruma vespertina,tão cariciosa, atenta a percebero som da treva (ouvido sempre pelosque sabem dar-lhe ouvido) a se arrastar,como quem QUER, em meio a pesadelos,fugir de algum perigo, sem PODER.

Que importa brilhe a lua, a lua fria,com seu fulgor mais lúcido e mais forte?SEU sorriso e SEU brilho são gelados,naquelas horas de melancolia,como um retrato feito após a morte(vendo-o, nem respiramos, assustados).E a juventude é como um sol deio,como poente é o mais triste, porque entãojá nada mais ignora o coraçãoe o que guardar quisemos no fugiu.Pareça a vida, pois, qual flor de um dia,com a beleza que, esplêndida, irradia.

Eu creio, Padre, eu firmemente creio,e bem SEI - pois a morte, que me veioda longínqua região abençoada,onde não mais existem ilusões,vai entreabrindo os rígidos portõese cintilam os raios da verdade.que não vês, através da Eternidade...Sim, eu creio que Eblis posto haviasua armadilha, sob a humana estrada.E se não, por quê, quando eu me perdiano bosque santo desse ídolo, o Amor,de asas de eneve sempre perfumadascom o incenso das ofertas mais sagradas,no bosque iluminado intensamentepelos raios do céu, nesse bosque ondenenhum ser, por mais ínfimo, se escondea seu olhar de águia, abrasador,por que, então, a ambição se insinuou,sem ser vista, entre os sonhos, a crescer,até lançar-se, a rir, ousadamente,nas madeixas do Amor, do próprio Amor?

Não fui, na infância, como os outrose nunca vi como outros viam.

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Minhas paixões eu não podiatirar de fonte igual à deles;e era outra a origem da tristeza,e era outro o canto, que acordavao coração para a alegria.Tudo o que amei, amei sozinho.Assim, na minha infância, na alvada tormentosa vida, ergueu-se,no bem, no mal, de cada abismo,a encadear-me, o meu mistério.Veio dos rios, veio da fonte,da rubra escarpa da montanha,do sol, que todo me envolviaem outonais clarões dourados;e dos relâmpagos vermelhosque o céu inteiro incendiavam;e do trovão, da tempestade,daquela nuvem que se alteava,só, no amplo azul do céu puríssimo,como um demônio, ante meus olhos.

SILÊNCIO

Há qualidades incorpóreas, de existênciadupla, nas quais segunda vida se produz,como a entidade dual da matéria e da luz,De que o sólido e a sombra espelham a evidência.

Há pois, duplo silêncio; o do mar e o da praia,do corpo e da alma; um, mora em deserta regiãoque erva recente cubra e onde, solene, o atraialastimoso saber; onde a recordação

O dispa de terror; seu nome é "nunca mais";E o silêncio corpóreo. A esse, não temais!Nenhum poder do mal ele tem. Mas, se uma hora

Um destino precoce (oh, destinos fatais!)Vós levar as regiões soturnas, que apavorasua sombra, elfo sem nome, ali onde humana palma

Jamais pisou, a Deus recomendai vossa alma!

LENORA

Ah! foi partida a taça de ouro! o espírito fugiu!Que dobre o sino! Uma alma santa já cruza o Estígio rio!

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E tu não choras, Guy de Vere? Venha teu pranto agora,ou nunca mais! No rude esquife jaz teu amor, Lenora!Leiam-se os ritos funerários e o último canto se ouça,um hino à rainha dentre as mortas, a que morreu mais moça.E duplamente ela morreu, por que morreu tão moça!

"Pela riqueza a amastes, míseros, o seu orgulho odiando,e, doente, a bendissestes, quando a morte ia chegando.E como, então, lereis o rito? Os cantos de repousoentoareis vós, olhar do mal? Vós, o verbo aleivoso,que o fim trouxestes à existência tão jovem da inocência?"

Peccavimus; mas não se irrites! O réquiem tão solenee embalador ascenda aos céus, que a morta já não pene!Para aguardar-te ela se foi, tendo ao lado a Esperançae tu ficaste, louco e só, chorando a noiva criança,meiga e formosa, que ali jaz, magnífica, sem par,com a vida em seus cabelos de ouro, mas não em seu olhar,com a vida em seus cabelos, sim, e a morte em seu olhar.

"Ide! Meu coração não pesa! Sem canto funeral,quero seguir o anjo em seu vôo com um velho hino triunfal.Não dobre mais o sino! que a alma em seu prazer sagradonão o ouça, triste, ao ir deixando o mundo amaldiçoado.Ela se arranca aos vis demônios da terra e sobe aos céus.Do inferno, à altura se conduz e lá, na luz dos céus,livre do mal, da dor, se assenta num trono, aos pés de Deus!"

HINO

Santa Maria! Volve o teu olhar tão belo,de lá dos altos céus, do teu trono sagrado,para a prece fervente e para o amor singeloque te oferta, da terra, o filho do pecado.

Se é manhã, meio-dia, ou sombrio poente,meu hino em teu louvor tens ouvido, Maria!Sê, pois, comigo, ó Mãe de Deus, eternamente,quer no bem ou no mal, na dor ou na alegria!

No tempo que passou veloz, brilhante, quandonunca nuvem qualquer meu céu escureceu,temeste que me fosse a inconstância empolgandoe guiaste minha alma a ti, para o que é teu.

Hoje, que o temporal do Destino ao Passadoe sobre o meu Presente espessas sombras lança,

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fulgure ao menos meu Futuro, iluminadopor ti, pelo que é teu, na mais doce esperança.

A CIDADE NO MAR

Olhai! a Morte edificou seu trononuma estranha cidade solitáriapor entre as sombras do longínquo oeste.Lá, os bons, os maus, os piores e os melhores,foram todos buscar repouso eterno.Seus monumentos, catedrais e torres(torres que o tempo rói e não vacilam!)em nada se parecem com os humanos.E em volta, pelos ventos olvidadas,olhando o firmamento, silenciosase calmas, dormem águas melancólicas.

Ah! luz nenhuma cai do céu sagradosobre a cidade, em sua imensa noite.Mas um clarão que vem do oceano lívidoinvade dos torreões, silentemente,e sobe, iluminando capitéis,pórticos régios, cúpulas e cimos,templos e babilônicas muralhas;sobe aos arcos templos magníficos, sem conta,onde os frios se enroscam e entretecemde vinhedos, violetas, sempre-vivas.

Olhando o firmamento, silenciosas,calmas, dormem as águias melancólicas.Torreões e sombras tanto se confundemque é tudo como solto nos espaços.E a Morte, do alto de soberba torre,contempla, gigantesca, o panorama.Lá, os sepulcros e os templos se escancarammesmo ao nível das águas luminosas;mas não pode a riqueza portenhosados ídolos com olhos de diamante,nem das jóias que riem sobre os mortos,tirar as vagas de seu leito imóvel;pois, ai! nem leve movimento ondulaesse imenso deserto cristalino!Nem ondas falam de possíveis ventossobre mares distantes, mais felizes;ondas nào contam que existiram ventosem mar de menos espantosa calma.

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Mas, vede! Um frêmito percorre os ares.Uma onda... Fez-se ali um movimento!e dir-se-ia que as torres vacilarame afundaram de leve na água turva,abrindo com seus cumes, debilmente,um vazio nos céus enevoados.As ondas têm, agora, luz mais rubra,as horas fluem, lânguidas e fracas.E quando, entre gemidos sobre-humanos,a cidade submersa for fixar-se no fundo,o Inferno, erguido de mil tronos,curvar-se-á, reverente.

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