contos de edgar allan poe - ii

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CONTOS DE Edgar Allan Poe Vol. II Pequena Conversa com uma Múmia Poço e o Pêndulo, O Queda da Casa de Usher, A Rei Peste, O Retrato Ovalado, O Silêncio Sombra Willian Wilson Disponível em: http://contosdocovil.wordpress.com/category/edgar-allan-poe/

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Page 1: Contos de Edgar Allan Poe - II

CONTOS DE

Edgar Allan Poe Vol. II

Pequena Conversa com uma Múmia

Poço e o Pêndulo, O

Queda da Casa de Usher, A

Rei Peste, O

Retrato Ovalado, O

Silêncio

Sombra

Willian Wilson

Disponível em:

http://contosdocovil.wordpress.com/category/edgar-allan-poe/

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PEQUENA CONVERSA COM UMA MÚMIA

O banquete da noite precedente me abalara um tanto os nervos. Estava com uma

forte dor de cabeça e sentia-me desesperadamente sonolento. Em vez de sair,

portanto, para passar a noite fora, como tencionava, ocorreu-me que o que melhor

poderia fazer, após saborear uma pequena ceia, era meter-me logo na cama.

Uma ceia, leve, sem dúvida. Gosto imensamente de queijo derretido com cerveja e

torrada quente. Mais de uma libra de uma vez, porém, pode nem sempre ser

aconselhável. Entretanto, não pode haver objeção material a duas. E realmente,

entre duas e três, há apenas uma unidade de diferença. Arrisquei-me, talvez, a

quatro. Minha mulher afirma que foram cinco ? mas, certamente, confundiu duas

coisas bem distintas. O número abstrato, cinco, estou disposto a admiti-lo; mas,

concretamente, refere-se a garrafas de cerveja preta, sem as quais, a modo de

tempero, aquele manjar deve ser evitado.

Tendo dessa forma concluído uma refeição frugal e colocado na cabeça meu barrete

de dormir, com a suave esperança de gozar dele, até o meio-dia seguinte, repousei

a cabeça no travesseiro e, graças a uma excelente consciência, mergulhei sem

demora no mais profundo sono.

Mas quando teve a humanidade realizadas as suas esperanças? Não completara

ainda meu terceiro ronco, quando a campainha da porta da rua começou a tocar

violentamente e, depois, impacientes pancadas com a aldrava me despertaram

incontinenti. Um minuto depois, e enquanto ainda esfregava os olhos, meteu-me

minha mulher diante do nariz um bilhete, de meu velho amigo, o Dr. Ponnonner.

“Largue tudo imediatamente, meu caro e bom amigo, logo que receba este. Venha

participar de nossa alegria. Afinal, depois de longa e perseverante diplomacia, obtive

o consentimento dos diretores do Museu da Cidade, para examinar a Múmia. (Você

sabe a que múmia me refiro ). Tenho permissão de desenfaixá-la e abri-la, se for

preciso. Estarão presentes apenas poucos amigos ? você é um deles ? está claro. A

Múmia acha-se agora em minha casa e começaremos a desenrolá-la, às onze horas

da noite.

Sempre seu

Ponnonner”.

Ao chegar à assinatura de “Ponnonner”, senti que já me achava tão desperto quanto

um homem necessita estar. Saltei da cama, num estado de êxtase, derrubando tudo

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quanto se encontrava em meu caminho; vesti-me com uma rapidez verdadeiramente

incrível, e dirigi-me, a toda pressa, para a casa do doutor.

Ali encontrei reunido um grupo bem ansioso. Aguardavam minha chegada, com

grande impaciência. A Múmia estava estendida sobre a mesa de jantar, e logo que

entrei o exame dela foi começado.

Era uma das múmias trazidas, muitos anos atrás, pelo Capitão Artur Sabrestash,

primo de Ponnonner, de um túmulo perto de Eleithias, nas montanhas da Líbia, a

grande distância de Tebas, às margens do Nilo. As grutas nesse lugar, embora

menos magníficas que os sepulcros de Tebas, despertam mais interesse, pelo fato

de oferecerem maior número de ilustrações sobre a vida privada dos egípcios. A

sala, donde fora retirado o nosso exemplar, era, dizia-se, riquíssima de tais

ilustrações, estando as paredes inteiramente recobertas de pinturas a fresco e de

baixos-relevos, enquanto estátuas, vasos e mosaicos de magníficos desenhos,

indicavam a valiosa fortuna dos mortos.

A preciosidade fora depositada no museu, exatamente nas mesmas condições em

que o Capitão Sabrestash a havia descoberto, isto é, o sarcófago estava intacto.

Durante oito anos, assim permanecera, exposto apenas, externamente, à

curiosidade pública. Tínhamos pois agora a Múmia completa à nossa disposição; e

para aqueles que sabem quão raramente chegam intactas às nossas plagas as

antigüidades, torna-se evidente, logo, que possuíamos razões de sobra, para

congratularmo-nos por nossa boa sorte.

Aproximando-me da mesa, vi sobre ela, uma grande caixa, ou estojo, de quase sete

pés de comprimento e talvez com três pés de largura, por dois e meio de

profundidade. Era oblonga, mas sem forma de ataúde. Julgamos a princípio que o

material empregado fora a madeira do alcômoro, contudo, logo ao cortá-lo,

verificamos que era papelão, ou mais propriamente, papel comprimido, feito de

papiro. Estava densamente ornamentada de pinturas, representando cenas

funerárias e outros assuntos fúnebres, entre os quais serpeavam, nas mais variadas

posições, numerosas séries de caracteres hieróglifos, significando, sem dúvida, o

nome do falecido. Por felicidade, fazia parte do nosso grupo, o Sr. Gliddon, que não

teve dificuldade em traduzir os caracteres, simplesmente fonéticos e representando

a palavra Allamistakeo.

Não foi sem esforço que conseguimos abrir a caixa, sem danificá-la, mas tendo

finalmente conseguido o que desejávamos, chegamos a uma segunda, em forma de

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ataúde, e de tamanho consideravelmente menor, que o da de fora, mas, semelhante

a ela, exatamente, sob todos os aspectos. O intervalo entre as duas estava

preenchido de resina que havia, até certo ponto, apagado as cores da caixa interna.

Ao abrir esta última (trabalho que executamos com bastante felicidade) demos com

uma terceira caixa, também em forma de ataúde, e não se diferenciando da segunda

em nada de particular a não ser no material de que era feita, de cedro, e ainda

exalava o odor característico e altamente aromático dessa madeira. Entre a segunda

a terceira e caixa, não havia intervalo, estando uma encerrada ajustadamente dentro

da outra.

Removendo a terceira caixa, descobrimos o próprio corpo, que tiramos para fora.

Esperávamos encontrá-lo, como de costume, enrolado em numerosas faixas, ou

ligaduras de linho; mas, em lugar destas, encontramos uma espécie de bainha, feita

de papiro, e revestida duma camada de gesso, densamente dourada e pintada. As

pinturas representavam assuntos relativos a vários supostos deveres da alma, e sua

apresentação a diferentes divindades, com numerosas figuras humanas idênticas,

intentando representar, bem provavelmente, retratos das pessoas embalsamadas.

Estendendo-se da cabeça aos pés, havia uma inscrição colunar ou perpendicular,

em hieróglifos fonéticos, dando de novo seu nome e títulos de seus parentes.

Em volta do pescoço, assim desembainhado, havia um colar de contas coloridas e

colocadas de modo a formar imagens de divindades, do escaravelho, etc., com o

globo alado. Na parte mais delgada da cintura, havia um colar semelhante a um

cinturão.

Retirando o papiro, encontramos a carne em excelente estado de preservação, sem

nenhum odor perceptível. A cor era avermelhada. A pele rija, macia e lustrosa. Os

dentes e os cabelos achavam-se em boas condições. Os olhos (parecia), tinham

sido arrancados e substituídos por outros de vidro, muito bonitos e imitando

perfeitamente os naturais, cem exceção da fixidez do olhar, um tanto acentuada. Os

dedos e as unhas estavam brilhantemente dourados.

O Sr. Gliddon foi de opinião, em face do vermelho da epiderme, que o

embalsamento se efetuara, totalmente, por meio de asfalto; mas tendo raspado a

superfície, com um instrumento de aço, e lançado ao fogo um pouco de pó, assim

obtido, o odor de cânfora e de outras gomas aromáticas se tornou sensível.

Rebuscamos bem atentamente o cadáver, para encontrar as aberturas usuais, pelas

quais são extraídas as entranhas, mas, com surpresa nossa, nenhuma descobrimos.

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Nenhum dos presentes, nessa ocasião, sabia ainda que não são raras de encontrar

múmias inteiras, ou não cortadas. O cérebro era habitualmente retirado pelo nariz;

os intestinos, por incisão ao lado; o corpo era em seguida, raspado, lavado e

salgado; depois deixavam-no assim, durante várias semanas, quando começavam a

operação de embalsamamento, propriamente dita.

Como não fosse possível encontrar nenhum sinal de abertura, preparava o Dr.

Ponnonner, os instrumentos para a dissecação, quando observei, então, que já

passava das duas horas. Por esse motivo todos concordaram em deixar para depois

o exame interno, para a noite seguinte e já nos dispúnhamos a separar-nos, quando

alguém sugeriu uma ou duas experiências com a pilha de Volta.

A aplicação da eletricidade a uma múmia velha de três ou quatro mil anos, pelo

menos, era uma idéia se não bastante sensata, contudo suficientemente original e

todos a acolhemos sem protesto. Com quase um décimo de seriedade e nove

décimos de brincadeiras, dispusemos uma bateria no gabinete do Doutor e para lá

levamos o egípcio.

Só depois do muito trabalho, foi que conseguimos pôr a nu algumas partes do

músculo temporal, que se mostrou com menos rigidez pétrea, do que outras parte do

corpo, mas que, como sem dúvida prevíramos, não dava indício de suscetibilidade

galvânica, quando em contato com o fio.

Esta primeira experiência, de fato, pareceu decisiva e, com uma cordial risada ao

nosso próprio absurdo, estávamos dando boa-noite uns aos outros, quando,

casualmente, meus olhes fitaram os da múmia, e ficaram neles cravados de

espanto. Meu breve olhar, na verdade, bastara para assegurar-me de que es

glóbulos, que todos nós julgávamos de vidro e que, anteriormente, se distinguiam

por certa fixidez estranha, estavam agora tão bem recobertos pela pálpebras, que só

uma pequena parte da Túnica Albugínea permanecia visível.

Com um grito, chamei a atenção para e fato, que se tornou logo evidente a todos.

Não posso dizer que fiquei alarmado, diante do fenômeno, porque, no meu caso,

“alarmado” não é bem o termo. É possível, porém, que, sem as cervejas pretas

talvez me tivesse sentido um pouco nervoso. Quanto a meus companheiros, não

tentaram ocultar o terror alarmante, que deles se apossara. O Dr. Ponnonner

causava lástima. O Sr. Gliddon, graças a não sei que processo especial, tornara-se

invisível. Creio que o Sr. Silk Buckingham não terá por certo a coragem de negar,

que se arrastou de quatro pés para baixo da mesa.

Page 6: Contos de Edgar Allan Poe - II

Depois do primeiro choque de espanto, porém, resolvemos, como coisa natural,

tentar, imediatamente, nova experiência. Nossas operações se dirigiram agora para

o artelho do pé direito.

Fizemos uma incisão por cima da parte exterior do osso sesamoideum pollicis pedix

e assim chegamos à raiz do músculo obductor.

Reajustando a bateria, aplicamos então o fluido aos nervos expostos, quando, com

um movimento de excessiva vivacidade, a Múmia, primeiro levantou e joelho direito,

a ponto de pô-lo quase em contato com o abdômen, e depois, endireitando com

inconcebível força, acertou um pontapé no doutor Ponnonner, tendo, com efeito,

lançado este cavalheiro, como o dardo duma catapulta, pela janela lá embaixo na

rua. Precipitamo-nos, en masse, para ir buscar os restos despedaçados da vítima,

mas tivemos a felicidade de encontrá-la na escada, subindo numa pressa

inconcebível, repleta da mais ardente filosofia e mais do que nunca convencida da

necessidade de prosseguir nossa experiência com vigor e com zelo.

Foi a conselho seu, portanto, que fizemos, sem demora, uma profunda incisão, na

ponta do nariz do paciente, enquanto o próprio doutor deitando mãos fortes sobre

ele, punha-o em vibrante contato com o fio. Moral e fisicamente, figurativa e

literalmente, o efeito foi elétrico. Em primeiro lugar, o cadáver abriu os olhos, e

piscou com bastante rapidez, durante alguns minutos, como o faz o Sr. Barnus na

pantomima; em segundo lugar, espirrou; em terceiro, sentou-se; Em quarto, agitou o

punho diante do rosto do Dr. Ponnonner; em quinto, voltando-se para os Srs.

Gliddon e Buckinghan, dirigiu-se-lhes, no mais puro egípcio, da seguinte maneira:

? Devo dizer-vos, cavalheiros, que estou tão surpreso quanto mortificado pela vossa

conduta. Do Dr. Ponnonner, nada de melhor se poderia esperar. É um pobre

toleirão, que nada sabe de nada. Tenho pena dele e perdôo-lhe. Mas vós, Sr.

Gliddon, e vós Silk, que viajastes pelo Egito, e lá residistes, a ponto de poder crer

que lá houvésseis estado desde o berço ? vós, digo eu, que tanto vivestes entre nós

a ponto de falardes o egípcio tão bem, penso, como escreveis vossa língua materna

? vós, a quem sempre fui levado a olhar, como o amigo fiel das múmias ? realmente,

esperava de vós uma conduta mais cavalheiresca. Que devo pensar de vossa

atitude tranqüila, vendo-me assim tão estupidamente tratado? Que devo supor de

vós, consentindo que Fulano, Sicrano e Beltrano me arranquem dos meus caixões,

tirem-me as roupas, neste clima miseravelmente frio?

Sob que aspecto (para acabar com isto), deve encarar o fato de estardes a ajudar e

Page 7: Contos de Edgar Allan Poe - II

incitar esse miserável velhaco do Dr. Ponnonner a puxar-me o nariz?

Há de supor-se, sem dúvida, que, ao ouvir tal discurso, naquelas circunstâncias,

todos nós corremos para a porta, ou caímos em violentos ataques histéricos ou

mesmo desmaiamos todos. Uma destas três coisas, digo eu, era de esperar. De

fato, cada uma dessas três maneiras de proceder poderia ter sido seguida. E,

palavra de honra, não posso compreender como, ou por que foi, que não fizemos

nem uma coisa nem outra.

Mas talvez, a verdadeira razão esteja no espírito deste tempo, que procede

totalmente de acordo com a regra dos contrários, e é agora usualmente admitida

como solução de todos os paradoxos e impossibilidades. Ou talvez, quem sabe, foi

somente o ar excessivamente natural e familiar da Múmia, que destituía suas

palavras de seu aspecto terrível. Seja o que for, os fatos são claros, e nenhum dos

presentes demonstrou qualquer medo particular, ou pareceu acreditar que se

houvesse passado qualquer coisa de especialmente irregular.

Quanto a mim, achava-me convencido de que tudo aquilo estava direito e

simplesmente me coloquei do lado, fora do alcance do punho da múmia. O Dr.

Ponnonner meteu as mãos nos bolsos das calças, fitou diretamente a múmia e ficou

excessivamente vermelho.

O Sr. Gliddon cofiava suas suíças e ajeitava o colarinho da camisa. O Sr.

Buckingham baixou a cabeça e meteu o polegar direito no canto esquerdo da boca.

O egípcio olhou-o, com expressão severa, durante alguns minutos, e disse, por fim,

com escárnio:

? Por que não fala, Sr. Buckinghan? Ouviu ou não e que lhe perguntei? Tire o

polegar da boca!

O Sr. Buckingham, em conseqüência, teve um leve sobressalto, tirou o polegar

direito do canto esquerdo da boca e, a título de indenização, inseriu o polegar

esquerdo, no canto esquerdo da abertura acima mencionada.

Não tendo conseguido arrancar uma resposta do Sr. Buckingham, a Múmia se

voltou, de mau humor, para o Sr. Gliddon e, em tom peremptório, perguntou, em

termos gerais, o que todos nós queríamos.

O Sr. Gliddon depois de grande demora, respondeu em termos fonéticos; e, não

fosse a deficiência de caracteres hieroglíficos nas tipografias americanas, grande

prazer me seria dado, em transcrever aqui, no original, todo seu excelente discurso.

Aproveito a ocasião para observar que toda a conversa subseqüente, em que a

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Múmia tomou parte, foi travada em egípcio primitivo, por intermédio (pelo menos no

que se refere a mim e aos outros membros não viajados do grupo), dos Srs. Gliddon

e Buckingham, como intérpretes.

Esses cavalheiros falavam a língua materna da Múmia com inimitável fluência e

graça; mas não posso deixar de observar que (devido, sem dúvida, à introdução de

imagens inteiramente modernas e, como é natural, inteiramente novas para o

estranho) os dois exploradores foram, por vezes, forçados ao emprego de formas

visíveis, para traduzir algum significado especial.

Em dado momento, por exemplo, o Sr. Gliddon não pode fazer o egípcio

compreender a palavra “política”, enquanto não esboçou sobre a parede, com um

pedaço de carvão, um homenzinho de nariz cônico, cotovelos esburacados, de pé

sobre um cepo, com a perna esquerda lançada para trás, o braço direito atirado para

a frente, o punho fechado, os olhos girando pelo céu e a boca aberta, num ângulo de

noventa graus. De modo bem igual, o Sr. Buckingham não conseguiria explicar a

idéia absolutamente moderna de “whig”, sem que (a uma sugestão do Dr.

Ponnonner), empalidecendo, tirasse o chinó.

Facilmente se compreenderia que o discurso do Sr. Gliddon versou principalmente

sobre os vastos benefícios, extraídos para a ciência, do desempacotamento e do

escavamento, das múmias, desculpando-se, desse modo, por qualquer incômodo,

que pudesse ter-lhe sido causado, pessoalmente, à Múmia chamada Allamistakeo; e

concluindo com uma simples insinuação (pois mal podia ser considerada mais do

que isso) de que, explicados agora esses pequenos pormenores, muito bem se

poderia continuar a investigação pretendida. Nesse ponto o Dr. Ponnonner preparou

seus instrumentos.

Relativamente às últimas sugestões do orador, parece que Allamistakeo teve certos

escrúpulos de consciência, sobre cuja natureza não fui precisamente informado;

manifestou-se, porém, satisfeito com a s desculpas apresentadas e, descendo da

mesa, fez volta ao grupo, apertando a mão de todos.

Quando terminou esta cerimônia, ocupamo-nos, imediatamente, em reparar os

danos infligidos ao sujeito pelo escalpelo. Costuramos o ferimento de sua têmpora,

pusemos-lhe uma atadura no pé e aplicamos uma polegada quadrada de emplastro

preto, na ponta do nariz.

Observou-se então que o Conde (era esse, parece, o título de Allamistakeo) teve um

leve tremor, sem dúvida de frio.

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O Doutor imediatamente encaminhou-se para o seu armário e logo voltou com uma

casaca preta, pelo melhor figurino de Jenning, um par de calças de xadrez, azul-

celeste, uma camisa de gingão cor de rosa, um colete de brocado com abas, um

sobretudo branco, uma bengala de passeio com ganho, um chapéu sem aba,

botinas de verniz, luvas de pele de cabrito, cor de palha, um monóculo, um par de

suíças e uma gravata cascata. Devido à disparidade de tamanho, entre Conde e o

Doutor (sendo a proporção de dois para um), houve certa dificuldade em ajustar

esses trajes à pessoa do egípcio: mas quando tudo se arranjou, podia-se dizer que

ele estava bem vestido. O Sr. Gliddon lhe deu, portanto, o braço e levou-o a uma

confortável cadeira, junto à lareira, enquanto o Doutor tocava imediatamente a

campainha e ordenava fossem trazidos mais charutos e vinho.

A conversa em breve se animou. Muita curiosidade, sem dúvida, foi expressa, a

respeito do fato, seu tanto quanto notável, de estar Allarnistakeo ainda vivo.

? Eu teria pensado ? disse o Sr. Buckingham ? que já faz muito tempo que o senhor

está morto.

? Ora! replicou o Conde, bastante espantado. ? Tenho pouco mais de setecentos

anos de idade! Meu pai viveu mil e não se achava de modo algum caduco, quando

morreu.

Seguiu-se então uma rápida série de perguntas e cálculos, por meio dos quais se

tornou evidente que a antigüidade da Múmia fora erroneamente estimada. Já se

haviam passado cinco mil e cinqüenta anos e alguns meses, desde que fora ela

depositada nas catacumbas de Eleithias.

? Mas minha observação ? continuou o Sr. Buckingham ? não se refere à sua idade,

por ocasião do enterro (quero crer de fato, que o senhor é ainda um homem moço) e

minha alusão foi à imensidade de tempo durante o qual, segundo sua própria

explicação, o senhor tem estado empacotado em asfalto.

? Em quê? ? perguntou o Conde.

? Em asfalto ? repetiu o Sr. Buckingham.

? Ah! sim; tenho uma fraca noção do que o senhor quer dizer; de certo isso poderia

dar resultado, mas no meu tempo empregava-se raramente outra coisa que não

fosse o bicloreto de mercúrio.

? Mas o que especialmente não achamos jeito de compreender ? disse o Dr.

Ponnonner ? é como acontece que, tendo morrido e sido enterrado no Egito, há

mais de mil anos, esteja o senhor hoje aqui vivo e parecendo tão magnificamente

Page 10: Contos de Edgar Allan Poe - II

bem.

? Se eu estivesse morto, como o senhor diz ? replicou o Conde ? é mais que

possível que morto ainda estaria, pois percebo que os senhores estão ainda na

infância do galvanismo e não podem realizar com ele o que era coisa comum entre

nós, antigamente. Mas o fato é que sofri um ataque de catalepsia e meus melhores

amigos acharam que eu estava morto, ou deveria estar. De acordo com isso,

embalsamaram-me imediatamente.

Suponho que os senhores tem conhecimento do principal mestre do processo de

embalsamamento.

? Bem, não totalmente.

? Ah! percebo… deplorável estado de ignorância! Muito bem, não posso entrar em

pormenores neste momento, mas é necessário explicar, que embalsamar

(propriamente falando), no Egito, era paralisar indefinidamente todas as funções

animais sujeitas a este processo. Uso a palavra “animais”, no seu sentido mais lato,

como incluindo não só o ser físico, como o ser modal e vital. Repito que o primeiro

princípio do embalsamamento consistiu, entre nós. na paralisação imediata e na

manutenção perpétua em suspenso, de todas as funções animais, sujeitas ao

processo.

Para ser breve, em qualquer estado em que se encontrasse e indivíduo, no período

de embalsamamento, não permaneceria vivo. Ora, como tenho a felicidade de ser

do sangue do Escaravelho, fui embalsamado vivo, como os senhores me vêem

agora.

? O sangue do Escaravelho! ? exclamou o Dr. Ponnonner.

? Sim. O Escaravelho era o emblema, ou as “armas” duma distintíssima e pouco

numerosa família patrícia. Ser “do sangue do Escaravelho” é apenas ser um dos

membros daquela família de que o Escaravelho é o emblema. Estou falando

figurativamente.

? Mas que tem isso com o fato de estar vivo o senhor?

? Ora, é costume geral no Egito, antes de embalsamar um cadáver, extrair-lhe os

intestinos e os miolos; só a raça dos Escaravelhos não se conformava com esse

costume. Portanto, não tivesse eu sido um Escaravelho, e me haveriam extraído

intestinos e miolos, e sem uns e outros é inconveniente viver.

? Entendo ? disse o Sr. Buckingham ? e suponho que todas as múmias intactas, que

nos têm chegado às mãos, são da raça dos escaravelhos.

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? Sem dúvida alguma.

? Eu pensava. ? disse o Sr. Gliddon, com timidez que o Escaravelho era um dos

deuses egípcios.

? Um dos egípcios quê? ? perguntou a Múmia, dando um salto.

? Deuses! ? repetiu o viajante.

? Sr. Gliddon, estou realmente atônito por ouvi-lo falar neste estilo ? disse o Conde,

tornando a sentar-se. Nenhuma nação, sobre a face da terra, jamais conheceu

senão um único Deus. O Escaravelho, o íbis, etc., eram entre nós (o que outros

seres têm sido para outras nações) os símbolos, ou intermediários, através dos

quais prestávamos culto ao Criador, demasiado augusto para que dele nos

aproximássemos de mais perto.

Houve aqui uma pausa. Finalmente, reatou-se a conversa pelo Dr. Ponnonner.

? Não é impossível, então, pelo que o senhor acaba de explicar ? disse ele ? que

entre as catacumbas, perto do Nilo, possam existir outras múmias da tribo do

Escaravelho, em condições de vitalidade.

? Não pode haver dúvida alguma a respeito ? respondeu o Conde. ? Todos os

Escaravelhos embalsamados, acidentalmente, quando ainda vivos, estão vivos.

Mesmo alguns dos que foram propositadamente assim embalsamados podem ter

sido esquecidos pelos seus executores testamentários e ainda permanecem nos

túmulos.

? Quer ter a bondade de explicar ? perguntei eu, o que quer o senhor dizer com

“propositadamente assim embalsamados”?

? Com grande prazer ? respondeu a Múmia, depois de me haver examinado à

vontade, através de seu monóculo, pois era a primeira vez que me aventurara a

fazer uma pergunta direta.

? Com grande prazer ? disse ele. ? A duração habitual da vida de um homem, no

meu tempo, era de quase oitocentos anos. Poucos homens morriam, a não ser em

virtude do mais extraordinário acidente, antes dos seiscentos anos; poucos viviam

mais do que uma década de séculos; mas oitocentos anos eram considerados o

termo natural.

Depois da descoberta do princípio do embalsamamento, como já descrevi aos

senhores, ocorreu a nossos filósofos que se poderia satisfazer uma louvável

curiosidade e. ao mesmo tempo, fazer avançar os interesses da ciência, vivendo-se

esse termo natural a prestações.

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Relativamente à ciência histórica, de fato, a experiência demonstrava que algo

dessa natureza era indispensável. Tendo por exemplo um historiador atingido a

idade de quinhentos anos, escrevia um livro, com grande trabalho, e depois fazia-se

embalsamar, com todo o cuidado, deixando instruções a seus executores

testamentários pro tempore, para que o fizessem reviver, depois de certo lapso de

tempo ? digamos quinhentos ou seiscentos anos. Voltando à vida, ao expirar aquele

prazo, encontraria invariavelmente sua grande obra convertida numa espécie de

caderno de notas à toa, isto é, uma espécie de arena literária, para as conjecturas

antagônicas, enigmas e rixas pessoais de rebanhos inteiros de comentaristas

exasperados. Essas conjecturas, etc., que passavam sob o nome de anotações, ou

emendas, verificavam-se haver tão completamente envolvido, torturado e sufocado e

texto, que o autor era obrigado a sair de lanterna na mão, à busca de seu próprio

livro. Ao descobri-lo, nunca merecia o trabalho da busca. Depois de reescrevê-lo,

totalmente, cabia ainda, como dever obrigatório do historiador, pôr-se a trabalhar,

imediatamente, em corrigir, de acordo com seu saber individual a e a sua

experiência, as tradições do dia, concernente à época em que ele havia

originalmente vivido. Ora, este processo de recomposição e retificação pessoal,

levado a efeito por diferentes sábios, de tempos em tempos, tinha como resultado

evitar que nossa história degenerasse em fábula completa.

? Peço-lhe perdão ? disse o Dr. Ponnonner, neste ponto, pousando delicadamente

sua mão sobre o braço do egípcio ? peço-lhe perdão, senhor, mas posso ter a

liberdade de interrompê-lo um instante?

? Perfeitamente, senhor ? respondeu o Conde, afastando-se um pouco.

? Desejava fazer-lhe simplesmente uma pergunta ? disse o Doutor. ? O senhor se

referiu à correção pessoal do historiador, nas tradições relativas à sua própria

época. Rogo-lhe que me diga, qual a proporção, em média, de verdade misturada. a

essa Cabala?

? A Cabala, como o senhor muito bem definiu, gozava em geral de fama de estar

justamente a par dos fatos relatados nas próprias histórias não reescritas, isto é,

jamais se viu, em circunstâncias alguma um simples jota em qualquer deles, que

não estivesse absoluta e radicalmente errado.

? Mas já que está perfeitamente claro ? continuou o Doutor ? que pelo menos cinco

mil anos se passaram, desde que o senhor foi enterrado, tenho como certo que

vossos anais daquele período, senão vossas tradições, eram suficientemente

Page 13: Contos de Edgar Allan Poe - II

explícitos, a respeito daquele tópico de interesse universal, que é a Criação, a qual

se realizou, como suponho que é de seu conhecimento, havia apenas dez séculos

antes.

? O senhor! ? disse o Conde Allamistakeo.

O Doutor repetiu suas observações, mas, somente depois de muita explicação

adicional, foi que o estrangeiro pôde chegar a compreendê-las. Por mim, respondeu,

hesitantemente:

? As idéias que o senhor me apresentou são, confesso, extremamente novas, para

mim. No meu tempo, não conheci ninguém que sustentasse fantasia tão singular,

como essa de que o universo (ou este mundo, se gostar mais) tivesse uma vez um

começo. Lembro-me de que uma vez, uma vez apenas, ouvi algo de remotamente

vago, de um homem de muito saber, a respeito da origem da raça humana, e esse

homem empregava essa mesma palavra Adão (ou Terra Vermelha), de que o

senhor fez uso. Empregava-a, porém, em sentido genérico, com referência à

germinação espontânea do limo da terra (da mesma maneira por que são geradas

milhares de criaturas dos mais baixos genera), a geração espontânea digo eu, de

cinco vastas hordas de homens, simultaneamente brotada em cinco distintas e

quase iguais divisões do globo.

Aqui, todos os presentes encolheram os ombros e um ou dois de nós tocou na

fronte, com ar bastante significativo.

O Sr. Buckingham, depois de lançar ligeiro olhar para o occipício e depois para o

sincipício de Allamistakeo, disse o seguinte:

? A longa duração da vida humana no seu tempo, e ainda mais a prática ocasional

de passá-la, como o senhor explicou, a prestações, deve ter contribuído, na

verdade, bastante poderosamente, para o desenvolvimento geral e acumulação do

saber. Suponho, por conseqüência, que devemos atribuir a acentuada inferioridade

dos velhos egípcios, em todos os ramos da ciência, quando comparados com os

modernos e, mais especialmente, com os ianques, inteiramente à solidez mais

considerável do crânio egípcio.

? Confesso novamente ? respondeu o Conde, com bastante mansidão ? que estou

um tanto em dificuldade para compreendê-lo; por obséquio, a que ramos de ciência

alude o senhor?

Aqui, todo o grupo, unindo as vozes, pormenorizou prolixamente, as aquisições da

frenologia e as maravilhas do magnetismo animal.

Page 14: Contos de Edgar Allan Poe - II

Tendo-os ouvido até o fim, o Conde começou a contar algumas anedotas, que

demonstraram terem florescido e fenecido no Egito, há tanto tempo, a ponto de

terem sido quase esquecidas, tipo de Gall, Spurheim, de que os processos de

Mesmer não passavam realmente de desprezíveis artifícios, quando comparados

com os positivos milagres dos sábios tebanos, que criavam piolhos e muitos outros

seres dessa espécie.

Nisto perguntei ao Conde se o seu povo era capaz de calcular eclipses. Ele sorriu,

com certo desdém, e disse que era.

Isto me perturbou um pouco, mas comecei a fazer outras perguntas, a respeito de

seu saber astronômico, quando um membro do grupo, que ainda não abrira a boca,

cochichou a meu ouvido que, para informação a respeito do assunto, melhor seria

que eu consultasse Ptolomeu (quem era esse tal de Ptolomeu?), bem como um tal

Plutarco, no capítulo de facie lunae.

Interroguei depois a Múmia, a respeito de lentes convexas e doutra espécie, e, em

geral, acerca da manufatura de vidro. Nas ainda não terminara eu minha pergunta e

já o companheiro silencioso, de novo me tocava de mansinho o cotovelo e pedia-me,

pelo amor de Deus, que desse uma olhadela em Diodoro Sículo. Quanto ao Conde,

perguntou-me simplesmente, a modo de réplica, se nós modernos, possuímos

microscópios, que nos permitissem gravar camafeus, no estilo dos egípcios.

Enquanto pensava na maneira de responder a esta pergunta, o miúdo Doutor

Ponnonner se pôs a falar de maneira verdadeiramente extraordinária.

? Veja a nossa arquitetura! ? exclamou ele, com grande indignação dos dois

viajantes que o beliscavam, mas sem resultado.

? Veja ? gritou ele, com entusiasmo ? a Fonte do Jogo de Bola de New York! Ou se

o espetáculo é por demais imponente, contemple por um instante o Capitólio, em

Washington, D. C.! ? e o bom doutorzinho se pôs a pormenorizar, com toda a

prolixidade, as proporções do edifício a que se referia. Explicou que só o pórtico

estava adornado de não menos de vinte e quatro colunas, de cinco pés de diâmetro,

e dez pés de distância uma das outras.

O Conde disse que lamentava não poder lembrar-se, justamente naquele momento,

das dimensões precisas de qualquer dos principais edifícios da cidade de Aznac,

cuja fundação se perdia na noite do Tempo, mas cujas ruínas estavam ainda de pé,

na época do seu sepultamento, numa vasta planície arenosa, a oeste de Tebas.

Lembrava-se, porém, (a propósito de pórticos) que um havia, pertencente a um

Page 15: Contos de Edgar Allan Poe - II

palácio inferior, numa espécie de subúrbio chamado Carnac, e formado de cento e

quarenta e quatro colunas, de trinta e sete pés de circunferência e distantes umas

das outras vinte e cinco pés. Chegava-se do Nilo a esse pórtico, através duma

avenida de duas milhas de extensão, formada de esfinges, estátuas e obeliscos, de

vinte, de sessenta e de cem pés de altura. O próprio palácio (pelo que podia

lembrar) tinha, só numa direção, duas milhas de comprimento e ao todo poderia ter

cerca de sete de circuito. Suas paredes estavam todas ricamente pintadas, por

dentro e por fora, de hieróglifos. Não pretendia afirmar que mesmo cinqüenta ou

sessenta dos Capitólios do Doutor pudessem ter sido construídos, dentro daquelas

paredes, mas de nenhum modo achava impossível que duzentos ou trezentos deles

pudessem ser lá dentro comprimidos, sem muita dificuldade. Aquele palácio de

Carnac não passava afinal duma insignificância. Ele (o Conde), porém, não podia

em consciência recusar-se a admitir a engenhosidade, a magnificência e a

superioridade da Fonte do Jogo da Bola, tal como foi descrita pelo Doutor. Nada de

semelhante, era forçado a convir, fora jamais visto no Egito, nem em qualquer outra

parte.

Perguntei então ao Conde qual sua opinião a respeito de nossas estradas de ferro.

? Nada de particular ? respondeu ele.

Eram um tanto fracas, um tanto mal projetadas e toscamente construídas. Não

podiam ser comparadas, por certo, com as estradas vastas, planas, retas e raiadas

de ferro, sobre as quais os egípcios transportavam templos inteiros e sólidos

obeliscos, de cento e cinqüenta pés de altura. Falei de nossas gigantescas forças

mecânicas.

Concordou que alguma coisa conhecíamos nesse particular, mas indagou quanto

teria eu de trabalhar, para levantar as cornijas sobre os dintéis, como do pequeno

palácio de Carnac.

Resolvi não dar por ouvida esta pergunta e perguntei se ele tinha alguma idéia de

poços artesianos, mas ergueu simplesmente as sobrancelhas, enquanto o Sr.

Gliddon piscava fortemente para mim e dizia, em voz baixa, que fora descoberto um,

recentemente, por engenheiros encarregados de canalizar água para o Grande

Oásis.

Mencionei depois nosso aço, mas o estrangeiro levantou o nariz e perguntou-me se

nosso aço podia ter executado o duro trabalho de insculpir os obeliscos, realizado

totalmente com instrumentos cortantes de cobre.

Page 16: Contos de Edgar Allan Poe - II

Isto nos desconcertou tanto que achamos prudente mudar nosso ataque para a

metafísica. Mandamos buscar um exemplar do livro, chamado o Relógio de Sol, e

lemos um capítulo ou dois, a respeito dum assunto não bastante claro, mas que os

bostonianos chamam de Grande Movimento do Progresso.

O Conde disse simplesmente que Grandes Movimentos eram coisas

excessivamente comuns no seu tempo e quanto ao Progresso, foi, em certo tempo,

uma completa calamidade, porém jamais progredira.

Falamos então da grande beleza e da importância da Democracia e muito nos

esforçamos para fazer bem compreender ao Conde as vantagens de que

gozávamos em viver num país onde havia sufrágio ad libitum, e não havia rei. Ele

escutou com todo interesse e de fato mostrou-se não pouco divertido. Quando

acabamos, disse ele que, há muitíssimo tempo, ocorrera algo bem semelhante.

Treze províncias egípcias resolveram tornar-se imediatamente livres e dar assim um

magnífico exemplo ao resto da humanidade. Reuniram-se seus sábios e cozinharam

a mais engenhosa constituição, que é possível conceber-se. Durante algum tempo,

as coisas correram admiravelmente bem, somente que seu costume de ufanar-se

era prodigioso. A coisa acabou, porém, com a consolidação dos treze estados, com

mais quinze ou vinte outros, no mais odioso e insuportável despotismo de que

jamais se ouviu falar na superfície da Terra.

Perguntei o nome do tirano usurpador.

Tanto quanto podia lembrar-se, era POPULAÇA.

Não sabendo que dizer a isso, ergui a voz e deplorei que os egípcios não

conhecessem o vapor.

O Conde olhou para mim com bastante espanto, mas não deu resposta. O

cavalheiro silencioso, porém, deu-me uma violenta cotovelada nas costelas dizendo-

me que eu já me havia suficientemente comprometido duma vez, e perguntou se eu

era tão maluco, realmente, para não saber que a moderna máquina a vapor deriva

da invenção de Hero, através de Salomão de Caus.

Estávamos agora em eminente perigo de sermos derrotados, mas nossa boa sorte

fez que o Doutor Ponnonner, tendo-se reanimado, voltasse em nosso auxílio e

perguntasse se o povo do Egito pretendia seriamente rivalizar com os modernos, em

todas as importantíssimas particularidade, do trajo.

Ouvindo isto, o Conde baixou a vista sobre as alças de suas calças e, depois,

pegando a ponta de uma das abas de sua casaca, levou-a até bem perto dos olhos,

Page 17: Contos de Edgar Allan Poe - II

examinando-a, durante alguns minutos. Deixando-a cair, por fim, sua boca

escancarou-se gradualmente, duma orelha à outra, mas não me recordo se ele disse

qualquer coisa à guisa de resposta.

Neste momento, recuperamos nossas energias e o Doutor, aproximando-se da

Múmia, com grande dignidade, rogou-lhe que lhe dissesse, com toda a franqueza, e

sob sua honra de cavalheiro, se os egípcios tinham compreendido em alguma

época, a fabricação, quer das pastilhas de Ponnonner, quer das pílulas de Bandreth.

Aguardávamos, com profunda ansiedade, uma resposta, mas foi em vão. A resposta

não chegava. O egípcio enrubesceu e baixou a cabeça. Jamais houve triunfo mais

consumado; jamais derrota alguma foi suportada de tão má vontade. De fato, não

podia tolerar o espetáculo da mortificação da pobre Múmia. Peguei do chapéu,

cumprimentei-a e despedi-me.

Ao chegar em casa, já passava das quatro horas e fui imediatamente para a cama.

São agora dez horas da manhã. Estou de pé desde as sete, escrevendo estas

notas, em benefício da minha família e da humanidade. Quanto à primeira, não mais

a verei. Minha mulher é uma víbora. A verdade é que estou nauseado, até o mais

íntimo, desta vida e do século dezenove em geral. Estou convencido de que tudo vai

de pernas viradas. Além disso, estou ansioso por saber quem será o Presidente, em

2045. Portanto, logo que acabar de barbear-me e de tomar uma xícara de café, irei

até a casa de Ponnonner fazer-me embalsamar por uns duzentos anos.

Page 18: Contos de Edgar Allan Poe - II

O POÇO E O PÊNDULO

Estava exausto, mortalmente exausto com aquela longa agonia e, quando por fim

me desamarraram e pude sentar-me, senti que perdia os sentidos. A sentença – a

terrível sentença de morte – foi a última frase que chegou, claramente, aos meus

ouvidos. Depois, o som das vozes dos inquisidores pareceu apagar-se naquele

zumbido indefinido de sonho. O ruído despertava em minha alma a idéia de rotação,

talvez devido à sua associação, em minha mente, com o ruído característico de uma

roda de moinho. Mas isso durou pouco, pois, logo depois, nada mais ouvi. Não

obstante, durante alguns momentos, pude ver, mas com que terrível exagero! Via os

lábios dos juízes vestidos de preto. Pareciam-me brancos, mais brancos do que a

folha de papel em que traço estas palavras, e grotescamente finos – finos pela

intensidade de sua expressão de firmeza, pela sua inflexível resolução, pelo severo

desprezo ao sofrimento humano. Via que os decretos daquilo que para mim

representava o destino saíam ainda daqueles lábios. Vi-os contorcerem-se numa

frase mortal; vi-os pronunciarem as sílabas de meu nome – e estremeci, pois

nenhum som lhes acompanhava os movimentos. Vi, também, durante alguns

momentos de delírio e terror, a suave e quase imperceptível. ondulação das negras

tapeçarias que cobriam as paredes da sala, e o meu olhar caiu então sobre as sete

grandes velas que estavam em cima da mesa. A princípio, tiveram para mim o

aspecto de uma claridade, e pareceram-me anjos brancos e esguios que deveriam

salvar-me. Mas, de repente, uma náusea mortal invadiu-me a alma, e senti que cada

fibra de meu corpo estremecia como se houvesse tocado os fios de uma bateria

galvânica. As formas angélicas se converteram em inexpressivos espectros com

cabeças de chama, e vi que não poderia esperar delas auxílio algum. Então, como

magnífica nota musical, insinuou-se em minha imaginação a idéia do doce repouso

que me aguardava no túmulo. Chegou suave, furtivamente – e penso que precisei

de muito tempo para apreciá-la devidamente. Mas, no instante preciso em que meu

espírito começava a sentir e alimentar essa idéia, as figuras dos juízes se

dissiparam, como por arte de mágica, ante os meus olhos. As grandes velas

reduziram-se a nada; suas chamas se apagaram por completo e sobreveio o negror

das trevas; todas as sensações pareceram desaparecer como numa queda louca da

alma até o Hades. E o universo transformou-se em noite, silêncio, imobilidade.

Page 19: Contos de Edgar Allan Poe - II

Eu desmaiara; mas, não obstante, não posso dizer que houvesse perdido de todo a

consciência. Não procurarei definir, nem descrever sequer, o que dela me restava.

Nem tudo, porém, estava perdido. Em meio do mais profundo sono… não! Em meio

do delírio… não! Em meio do desfalecimento. . . não! Em meio da morte… não! Nem

mesmo na morte tudo está perdido. Do contrário, não haveria imortalidade para o

homem. Quando despertamos do mais profundo sono, desfazemos as teias de

aranha de algum sonho. E, não obstante, um segundo depois não nos lembramos

de haver sonhado, por mais delicada que tenha sido a teia. Na volta a vida, depois

do desmaio, há duas fases: o sentimento da existência moral ou espiritual e o da

existência física. Parece provável que, se ao chegar à segunda fase tivéssemos de

evocar as impressões da primeira, tornaríamos a encontrar todas as lembranças

eloqüentes do abismo do outro mundo. E qual é esse abismo? Como, ao menos,

poderemos distinguir suas sombras das do túmulo?

Mas, se as impressões do que chamamos primeira fase não nos acodem de novo ao

chamado da vontade, acaso não nos aparecem depois de longo intervalo, sem ser

solicitadas, enquanto, maravilhados, perguntamos a nós mesmos de onde provêm?

Quem nunca perdeu os sentidos não descobrirá jamais estranhos palácios e rostos

singularmente familiares entre as chamas ardentes; não contemplará, flutuante no

ar, as melancólicas visões que muitos talvez jamais contemplem; não meditará

nunca sobre o perfume de alguma flor desconhecida, nem mergulhará no mistério de

alguma melodia que jamais lhe chamou antes a atenção.

Em meio de meus freqüentes e profundos esforços para recordar, em meio de minha

luta tenaz para apreender algum vestígio desse estado de vácuo aparente em que

minha alma mergulhara, houve breves, brevíssimos instan-tes em que julguei

triunfar, momentos fugidios em que cheguei a reunir lembranças que, em ocasiões

posteriores, meu raciocínio, lúcido, me afirmou não poderem referir-se senão a esse

estado em que a consciência parece aniquilada. Essas sombras de lembranças

apresentavam, indistintamente, grandes figuras que me carregavam, transportando-

me, silenciosamente, para baixo… para baixo… ainda mais para baixo… até que

uma vertigem horrível me oprimia, ante a idéia de que não tinha mais fim tal descida.

Também me lembro de que despertavam um vago horror no fundo de meu coração,

devido precisamente à tranqüilidade sobrenatural desse mesmo coração. Depois, o

Page 20: Contos de Edgar Allan Poe - II

sentimento de uma súbita imobilidade em tudo o que me cercava, como se aqueles

que me carregavam (espantosa comitiva!) ultrapassassem, em sua descida, os

limites do ilimitado, e fizessem uma pausa, vencidos pelo cansaço de seu esforço.

Depois disso, lembro-me de uma sensação de monotonia e de umidade. Depois,

tudo é loucura – a loucura da memória que se agita entre coisas proibidas.

Súbito, voltam à minha alma o movimento e o som – o movimento tumultuoso do

coração e, em meus ouvidos, o som de suas batidas. Em seguida, uma pausa, em

que tudo é vazio. Depois, de novo, o som, o movimento e o tato, como uma

sensação vibrante que penetra em meu ser. Logo após, a simples consciência da

minha existência, sem pensamento – estado que durou muito tempo. Depois, de

maneira extremamente súbita, o pensamento, e um trêmulo terror – o esforço

enorme para compreender o meu verdadeiro estado. Logo após, vivo desejo de

mergulhar na insensibilidade. Depois, um brusco renascer da alma e um esforço

bem sucedido para mover-me. E, então, a lembrança completa do que acontecera,

dos juízes, das tapeçarias negras, da sentença, da fraqueza, do desmaio.

Esquecimento completo de tudo o que acontecera – e que somente mais tarde,

graças aos mais vivos esforços, consegui recordar vagamente.

Até então, não abrira ainda os olhos. Sentia que me achava deitado de costas, sem

que estivesse atado. Estendi a mão e ela caiu pesadamente sobre alguma coisa

úmida e dura. Deixei que ela lá ficasse durante muitos minutos, enquanto me

esforçava por imaginar onde é que eu estava e o que é que poderia ter acontecido

comigo. Desejava, mas não me atrevia a fazer uso dos olhos. Receava o primeiro

olhar sobre as coisas que me cercavam. Não que me aterrorizasse contemplar

coisas terríveis, mas tinha medo de que não houvesse nada para ver. Por fim,

experimentando horrível desespero em meu coração, abri rapi-damente os olhos.

Meus piores pensamentos foram, então, confirmados. Envolviam-me as trevas da

noite eterna. Esforcei-me por respirar. A intensidade da escuridão parecia oprimir-

me, asfixiar-me. O ar era intoleravelmente pesado. Continuei ainda imóvel, e

esforcei-me por fazer uso da razão. Lembrei-me dos procedimentos inquisitoriais e,

partindo daí, procurei deduzir qual a minha situação real.

Page 21: Contos de Edgar Allan Poe - II

A sentença fora proferida, e parecia-me que, desde então, transcorrera longo

espaço de tempo. Não obstante, não imaginei um momento sequer que estivesse

realmente morto. Tal suposição, pese o que lemos nos livros de fic-ção, é

absolutamente incompatível com a existência real. Mas onde me encontrava e qual

era o meu estado? Sabia que os condenados à morte pereciam, com freqüência,

nos autos-de-fé – e um desses autos havia-se realizado na noite do dia em que eu

fora julgado. Teria eu permanecido em meu calabouço, à espera do sacrifício

seguinte, que não se realizaria senão dentro de muitos meses? Vi, imediatamente,

que isso não poderia ser. As vítimas eram exigidas sem cessar. Além disso, meu

calabouço, bem como as celas de todos os candenados, em Toledo, tinha piso de

pedra e a luz não era inteiramente excluída.

De repente, uma idéia terrível acelerou violentamente o sangue em meu coração e,

durante breve espaço, mergulhei de novo na insensibilidade. Ao recobrar os

sentidos, pus-me logo de pé, a tremer convulsivamente. Alucinado, estendi os

braços para o alto e em torno de mim, em todas as direções. Não senti nada. Não

obstante, receava dar um passo, com medo de ver os meus movimentos impedidos

pelos muros de um túmulo. O suor brotava-me de todos os poros e grossas gotas

frias me salpicavam a testa. A angústia da incerteza tornou-se, por fim, insuportável

e avancei com cautela, os braços estendidos, os olhos a saltar-me das órbitas, na

esperança de descobrir algum tênue raio de luz. Dei muitos passos, mas, não

obstante, tudo era treva e vácuo. Sentia a respiração mais livre. Parecia-me evidente

que o meu destino não era, afinal de contas, o mais espantoso de todos.

Continuei a avançar cautelosamente e, enquanto isso, me vieram à memória mil

vagos rumores dos horrores de Toledo. Sobre calabouços, contavam-se coisas

estranhas – fábulas, como eu sempre as considerara; coisas, contudo, estranhas, e

demasiado horríveis para que a gente as narrasse a não ser num sussurro. Acaso

fora eu ali deixado para morrer de fome naquele subterrâneo mundo de trevas, ou

quem sabe um destino ainda mais terrível me aguardava? Conhecia demasiado bem

o caráter de meus juízes para duvidar de que o resultado de tudo aquilo seria a

morte, e uma morte mais amarga do que a habitual. Como seria ela e a hora de sua

Page 22: Contos de Edgar Allan Poe - II

execução eram os únicos pensa-mentos que me ocupavam o espírito, causando-me

angústia.

Minhas mãos estendidas encontraram, afinal, um obstáculo sólido. Era uma parede

que parecia de pedra, muito lisa, úmida e fria. Segui junto a ela, caminhando com a

cautelosa desconfiança que certas narrações antigas me haviam inspirado. Porém,

essa operação não me proporcionava meio algum de averiguar as dimensões de

meu calabouço; podia dar a volta e tornar ao ponto de partida sem perceber

exatamente o lugar em que me encontrava, pois a parede me parecia perfeitamente

uniforme. Por isso, procurei um canivete que tinha num dos bolsos quando fui levado

ao tribunal, mas havia desaparecido. Minhas roupas tinham sido substituídas por

uma vestimenta de sarja grosseira. A fim de identificar o ponto de partida, pensara

em enfiar a lâmina em alguma minúscula fenda da parede. A dificuldade, apesar de

tudo, não era insuperável, embora, em meio à desordem de meus pensamentos, me

parecesse, a princípio, uma coisa insuperável. Rasguei uma tira da barra de minha

roupa e coloquei-a ao comprido no chão. formando um ângulo reto com a parede.

Percorrendo as palpadelas o caminho em torno de meu calabouço, ao terminar o

circuito teria de encontrar o pedaço de fazenda. Foi, pelo menos, o que pensei; mas

não levara em conta as dimensões do calabouço, nem a minha fraqueza. O chão era

úmido e escorregadio. Cambaleante, dei alguns passos, quando, de repente,

tropecei e caí. Meu grande cansaço fez com que permanecesse caído e, naquela

posição, o sono não tardou em apoderar-se de mim.

Ao acordar e estender o braço, encontrei ao meu lado um pedaço de pão e um

púcaro com água. Estava demasiado exausto para pensar em tais circunstâncias, e

bebi e comi avidamente. Pouco depois, reiniciei minha viagem em torno do

calabouço e, com muito esforço, consegui chegar ao pedaço de sarja. Até o

momento em que caí, já havia contado cinqüenta e dois passos e, ao recomeçar a

andar até chegar ao pedaço de pano, mais quarenta e oito. Portanto, havia ao todo

cem passos e, supondo que dois deles fossem uma jarda, calculei em cerca de

cinqüenta jardas a circunferência de meu calabouço. No entanto, deparara com

numerosos ângulos na parede, e isso me impedia de conjeturar qual a forma da

caverna, pois não havia dúvida alguma de que se tratava de uma caverna.

Page 23: Contos de Edgar Allan Poe - II

Tais pesquisas não tinham objetivo algum e, certamente, eu não alimentava

nenhuma esperança; mas uma vaga curiosidade me Ievava a continuá-las.

Deixando a parede, resolvi atravessar a área de minha prisão. A princípio, procedi

com extrema cautela, pois o chão, embora aparentemente revestido de material

sólido, era traiçoeiro, devido ao limo. Por fim, ganhei coragem e não hesitei em pisar

com firmeza, procurando seguir cm linha tão reta quanto possível. Avancei, dessa

maneira, uns dez ou doze passos, quando o que restava da barra de minhas vestes

se emaranhou em minhas pernas. Pisei num pedaço da fazenda e caí violentamente

de bruços.

Na confusão causada pela minha queda, não reparei imediatamente numa

circunstância um tanto surpreendente, a qual, no entanto, decorridos alguns

instantes, enquanto me encontrava ainda estirado, me chamou a atenção. Era que o

meu queixo estava apoiado sobre o chão da prisão, mas os meus lábios e a parte

superior de minha cabeça, embora me parecessem colocados numa posição menos

elevada do que o queixo, não tocavam em nada. Por outro lado, minha testa parecia

banhada por um vapor pegajoso, e um cheiro característico de cogumelos em

decomposição me chegou às narinas. Estendi o braço para a frente e tive um

estremecimento, ao verificar que caíra bem junto às bordas de um poço circular cuja

circunferência, naturalmente, não me era possível verificar no momento. Apalpando

os tijolos, pouco abaixo da boca do poço, consegui deslocar um pequeno fragmento

e deixei-o cair no abismo. Durante alguns segundos, fiquei atento aos seus ruídos,

enquanto, na queda, batia de encontro às paredes do poço; por fim, ouvi um

mergulho surdo na água, seguido de ecos fortes. No mesmo momento, ouvi um som

que se assemelhava a um abrir e fechar de porta. acima de minha cabeça, enquanto

um débil raio de luz irrompeu subitamente através da escuridão e se extinguiu de

pronto.

Percebi claramente a armadilha que me estava prepa-rada, e congratulei-me comigo

mesmo pelo oportuno acidente que me fizera escapar de tal destino. Outro passo

antes de minha queda, e o mundo jamais me veria de novo. E a morte de que

escapara por pouco era daquelas que eu sempre considerara como fabulosas e

frívolas nas narrações que diziam respeito à Inquisição. Para as vítimas de sua

tirania, havia a escolha entre a morte com as suas angústias físicas imediatas e a

Page 24: Contos de Edgar Allan Poe - II

morte com os seus espantosos horrores morais. Eu estava destinado a esta última.

Devido aos longos sofrimentos, meus nervos estavam à flor da pele, a ponto de

tremer ao som de minha própria voz, de modo que era, sob todos os aspectos, uma

vítima adequada para a espécie de tortura que me aguardava.

Tremendo dos pés à cabeça, voltei, às apalpadelas, até a parede, resolvido antes a

ali perecer do que a arrostar os terrores dos poços, que a minha imaginação agora

pintava. em vários lugares do calabouço. Em outras condições de espírito, poderia

ter tido a coragem de acabar de vez com a minha miséria, mergulhando num

daqueles poços; mas eu era, então, o maior dos covardes. Tampouco podia

esquecer o que lera a respeito daqueles poços: que a súbita extinção da vida não

fazia parte dos planos de meus algozes.

A agitação em que se debatia o meu espírito fez-me permanecer acordado durante

longas horas; contudo, acabei por adormecer de novo. Ao acordar, encontrei ao meu

lado, como antes, um pão e um púcaro com água. Consumia-me uma sede

abrasadora, e esvaziei o recipiente de um gole só. A água devia conter alguma

droga, pois, mal acabara de beber, tornei-me irresistivelmente sonolento. Invadiu-me

profundo sono – um sono como o da morte. Quanto tempo aquilo durou, certamente,

não posso dizer; mas, quando tornei a abrir os olhos, os objetos em torno eram

visíveis. Um forte clarão cor de enxofre, cuja origem não pude a princípio determinar,

permitia-me ver a extensão e o aspecto da prisão.

Quanto ao seu tamanho, enganara-me completamente. A extensão das paredes, em

toda a sua. volta, não passava. de vinte e cinco jardas. Durante alguns minutos, tal

fato me causou um mundo de preocupações inúteis. Inúteis, de fato, pois o que

poderia ser menos importante, nas circunstâncias em que me encontrava, do que as

simples dimensões de minha cela? Mas minha alma se interessava vivamente por

coisas insignificantes, e eu me empenhava em explicar a mim mesmo o erro

cometido em meus cálculos. Por fim, a verdade fez-se-me subitamente clara. Em

minha primeira tentativa de exploração, eu contara cinqüenta e dois passos até o

momento em que caí; devia estar, então, a um ou dois passos do pedaço de sarja;

na verdade, havia quase completado toda a volta do calabouço. Nessa altura,

adormeci e, ao despertar, devo ter voltado sobre meus próprios passos – supondo,

Page 25: Contos de Edgar Allan Poe - II

assim, que o circuito do calabouço era quase o dobro do que realmente era. A

confusão de espírito em que me encontrava impediu-me de notar que começara a

volta seguindo a parede pela esquerda, e que a terminara seguindo-a para a direita.

Enganara-me, também, quanto ao formato da cela. Ao seguir o meu caminho,

deparara com muitos ângulos, o que me deu idéia de grande irregularidade, tão

poderoso é o efeito da escuridão total sobre alguém que desperta do sono ou de um

estado de torpor! Os ângulos não passavam de umas poucas reentrâncias, ou

nichos, situadas em intervalos iguais. A forma geral da prisão era retangular. O que

me parecera alvenaria, parecia-me, agora, ferro, ou algum outro metal, disposto em

enormes pranchas, cujas suturas ou juntas produziam as depressões. Toda a

superfície daquela construção metálica era revestida grosseiramente de vários

emblemas horrorosos e repulsivos nascidos das superstições sepulcrais dos

monges. Figuras de demônios de aspectos ameaçadores, com formas de esqueleto,

bem como outras imagens ainda mais terríveis, enchiam e desfiguravam as paredes.

Observei que os contornos de tais monstruosidades eram bastante nítidos, mas que

as cores pareciam desbotadas e apagadas, como por efeito da umidade. Notei,

então, que o piso era de pedra. Ao centro, abria-se o poço circular de cujas fauces

eu escapara – mas era o único existente no calabouço.

Vi tudo isso confusamente e com muito esforço, pois minha condição física mudara

bastante durante o sono. Estava agora estendido de costas numa espécie de

andaime de madeira muito baixo, ao qual me achava fortemente atado por uma

longa tira de couro. Esta dava muitas voltas em torno de meus membros e de meu

corpo, deixando apenas livre a minha cabeça e o meu braço esquerdo, de modo a

permitir que eu, com muito esforço, me servisse do aumento que se achava sobre

um prato de barro, colocado no chão. Vi, horrorizado, que o púcaro havia sido

retirado, pois uma sede intolerável me consumia. Pareceu-me que a intenção de

meus verdugos era exasperar essa sede, já que o alimento que o prato continha

consistia de carne muita salgada.

Levantei os olhos e examinei o teto de minha prisão. Tinha de nove a doze metros

de altura e o material de sua construção assemelhava-se ao das paredes laterais.

Chamou-me a atenção uma de suas figuras, bastante singular. Era a figura do

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Tempo, tal como é comumente representado, salvo que, em lugar da foice, segurava

algo que me pareceu ser, ao primeiro olhar, um imenso pêndulo, como esses que

vemos nos relógios antigos. Havia alguma coisa, porém, na aparência desse objeto,

que me fez olhá-lo com mais atenção.

Enquanto a observava diretamente, olhando para cima, pois se achava colocada

exatamente sobre minha cabeça, tive a impressão de que o pêndulo se movia. Um

instante depois, vi que minha impressão se confirmava. Seu oscilar era curto e, por

conseguinte, lento. Observei-o, durante alguns minutos, com certo receio, mas,

principalmente, com espanto. Cansado, por fim, de observar o seu monótono

movimento, voltei o olhar para outros objetos existentes na cela.

Um ligeiro ruído atraiu-me a atenção e, olhando para o chão, vi que enormes ratos o

atravessavam. Tinham saído do poço, que ficava a direita. bem diante de meus

olhos. Enquanto os olhava, saíam do poço em grande número, apressadamente,

com olhos vorazes, atraídos pelo cheiro da carne. Foi preciso muito esforço e

atenção de minha parte para afugentá-los.

Talvez houvesse transcorrido meia hora, ou mesmo uma hora – pois não me era

possível perceber bem a passa-gem do tempo -, quando levantei de novo os olhos

para o teto. O que então vi me deixou atônito, perplexo. O oscilar do pêndulo havia

aumentado muito, chegando quase a uma jarda. Como conseqüência natural, sua

velocidade era também muito maior. Mas o que me perturbou, principal-mente, foi a

idéia de que havia, imperceptivelmente, descido. Observei, então – tomado de um

horror que bem se pode imaginar -, que a sua extremidade inferior era formada de

uma lua crescente feita de aço brilhante, de cerca de um pé de comprimento de

ponta a ponta. As pontas estavam voltadas pura cima e o fio inferior era,

evidentemente, afiado como uma navalha. Também como uma navalha, parecia

pesada e maciça, alargando-se, desde o fio, numa estrutura larga e sólida. Presa a

cela havia um grosso cano de cobre, e tudo isso assobiava, ao mover-se no ar.

Já não me era possível alimentar qualquer dúvida quanto à sorte que me reservara o

terrível engenho monacal de torturas. Os agentes da Inquisição tinham

conhecimento de que eu descobrira o poço – o poço cujos horrores haviam sido

Page 27: Contos de Edgar Allan Poe - II

destinados a um herege tão temerário quanto eu -, o poço, imagem do inferno,

considerado como a Última Tule de todos os seus castigos. Um simples acaso me

impedira de cair no poço, e eu sabia que a surpresa, ou uma armadilha que levasse

ao suplício constituíam uma parte importante de tudo o que havia de grotesco

naqueles calabouços de morte. Ao que parecia, tendo fracassado a minha queda no

poço, não fazia parte do plano demoníaco o meu lançamento no abismo e, assim,

não havendo outra alternativa, aguardava-me uma forma mais suave de destruição.

Mais suave! Em minha angústia, esbocei um sorriso ao pensar no emprego dessas

palavras.

Para que falar das longas, longas horas de horror mais do que mortal, durante as

quais contei as rápidas oscilações do aço? Polegada a polegada, linha a linha,

descia aos poucos, de um modo só perceptível a intervalos que para mim pareciam

séculos. E cada vez descia mais, descia mais!…

Passaram-se dias, talvez muitos dias, antes que chegasse a oscilar tão perto de

mim a ponto de me ser possível sentir o ar acre que deslocava. Penetrava-me as

narinas o cheiro do aço afiado. Rezei – cansando o céu com as minhas preces –

para que a sua descida fosse mais rápida. Tomado de frenética loucura, esforcei-me

para erguer o corpo e ir ao encontro daquela espantosa e oscilante cimitarra.

Depois, de repente, apoderou-se de mim uma grande calma e permaneci sorrindo

diante daquela morte cintilante, como uma criança diante de um brinquedo raro.

Seguiu-se outro intervalo de completa insensibilidade -um intervalo muito curto, pois,

ao voltar de novo à vida, não me pareceu que o pêndulo houvesse descido de

maneira perceptível. Mas é possível que haja decorrido muito tempo; sabia que

existiam seres infernais que tomavam nota de meus desfalecimentos e podiam

deter, à vontade, o movimento do pêndulo. Ao voltar a mim, senti um mal-estar é

uma fraqueza indescritíveis, como se estivesse a morrer de inanição. Mesmo entre

todas as angústias por que esta-va passando, a natureza humana ansiava por

alimento. Com penoso esforço, estendi o braço esquerdo tanto quanto me permitiam

as ataduras e apanhei um resto de comida que conseguira evitar que os ratos

comessem. Ao levar um bocado à boca, passou-me pelo espírito um vago

pensamento de alegria… de esperança. Não obstante, .que é que tinha com a ver

Page 28: Contos de Edgar Allan Poe - II

com a esperança? Era, como digo, um pensamento vago – desses que ocorrem a

todos com freqüência, mas que não se completam. Mas senti que era de alegria, de

esperança. Como senti, também, que se extinguira antes de formar-se. Esforcei-me

em vão por completá-lo… por reconquistá-lo. Meus longos sofrimentos haviam

quase aniquilado todas as Faculdades de meu espírito. Eu era um imbecil, um idiota.

A oscilação do pêndulo se processava num plano que tormava um ângulo reto com

o meu corpo. Vi que a lâmina fora colocada de modo a atravessar-me a região do

coração. Rasgaria a ininha roupa, voltaria e repetiria a operação… de novo, de novo.

Apesar da grande extensâo do espaço percorrido – uns trinta pés, mais ou menos –

e da sibilante energia de sua oscilação, suficiente para partir ao meio aquelas

próprias paredes de ferro, tudo o que podia fazer, durante vários minutos, seria

apenas rasgar as minhas roupas. E, ao pensar nisso, detive-me. Não ousava ir além

de tal reflexão. Insisti sobre ela com toda atenção, como se com essa insistência

pudesse parar ali a descida da lâmina. Comecei a pensar no som que produziria ao

passar pelas minhas róupas, bem como na estranha e arrepiante sensação que o

rasgar de uma fazenda produz sobre os nervos. Pensei em todas essas coisas

fazendo os dentes rangerem, de tão contraídos.

Descia… cada vez descia mais a lâmina. Sentia um prazer frenético ao comparar

sua velocidade de cima a baixo com a sua velocidade lateral. Para a direita… para a

esquerda… num amplo oscilar… com o grito agudo de uma alma penada; para o

meu coração, com o passo furtivo de um tigre! Eu ora ria, ora uivava, quando esta

ou aquela idéia se tornava predominante.

Sempre para baixo… certa e inevitavelmente! Movia-se, agora, a três polegadas do

meu peito! Eu lutava violentamente, furiosamente. para livrar o braço esquerdo. Este

estava livre apenas desde o cotovelo até a mão. Podia mover a mão, com grande

esforço, apenas desde o prato, que haviam colocado ao meu lado, até a boca. Nada

mais. Se houvesse podido romper as ligaduras acima do cotovelo, teria apanhado o

pêndulo e tentado detê-lo. Mas isso seria o mesmo que tentar deter uma avalancha!

Sempre mais baixo, incessantemente, inevitavelmente mais baixo! Arquejava e me

debatia a cada vibração. Encolhia-me convulsivamente a cada oscilação. Meus

Page 29: Contos de Edgar Allan Poe - II

olhos seguiam as subidas e descidas da lâmina com a ansiedade do mais completo

desespero; fechavam-se espasmodicamente a cada descida, como se a morte

houvesse sido um alívio… oh, que alívio indizível! Não obstante, todos os meus

nervos tremiam. à idéia de que bastaria que a máquina descesse um pouco mais

para que aquele machado afiado e reluzente se precipitasse sobre o meu peito. Era

a esperança que fazia com que meus nervos estremecessem, com que todo o meu

corpo se encolhesse. Era a esperança – a esperança que triunfa mesmo sobre o

suplício -, a que sussurrava aos ouvidos dos condenados à morte, mesmo nos

calabouços da Inquisição.

Vi que mais umas dez ou doze oscilações poriam o aço em contato imediato com as

minhas roupas e, com essa observação, invadiu-me o espírito toda a calma

condensada e viva do desespero. Pela primeira vez durante muitas horas – ou,

talvez dias – consegui pensar. Ocorreu-me, então, que a tira ou correia que me

envolvia o corpo era inteiriça. Não estava amarrada por meio de cordas isoladas.

O primeiro golpe da lâmina em forma. de meia lua sobre qualquer lugar da correia a

desataria, de modo a permitir que minha mão a desenrolasse de meu corpo. Mas

como era terrível, nesse caso, a sua proximidade. O resultado do mais leve

movimento, de minha parte, seria mortal! Por outro lado, acaso os sequazes do

verdugo não teriam previsto e impedido tal possibilidade? E seria provável que a

correia que me atava atravessasse o meu peito justamente no lugar em. que o

pêndulo passaria? Temendo ver frustrada essa minha fraca e, ao que parecia, última

esperança, levantei a cabeça o bastante par ver bem o meu peito. A correia,

envolvia-me os membros e o corpo fortemente em todas as direções, menos no

lugar em que deveria passar a lâmina assassina.

Mal deixei cair a cabeça em sua posição anterior, quando senti brilhar em meu

espírito algo que só poderia descrever proximadamente, dizendo que era como que

a metade não formada da idéia de liberdade a que aludi anteriormente, e da qual

apenas uma parte flutuou vaga-mente em meu espírito quando levei o alimento aos

meus lábios febris. Agora, todo o pensamento estava ali presente – débil, quase

insensato, quase indefinido -, mas, de qualquer maneira, completo. Procurei

imediatamente, com toda a energia nervosa do desespero, pô-lo em execução.

Page 30: Contos de Edgar Allan Poe - II

Havia várias horas, um número enorme de ratos se agitava junto do catre em que

me achava estendido. Eram temerários, ousados, vorazes; fitavam sobre mim os

olhos vermelhos, como se esperassem apenas minha imobilidade para fazer-me sua

presa. “A que espécie de alimento”, pensei, “estão eles habituados no poço?”

Haviam devorado, apesar de todos os meus esforços para o impedir, quase tudo o

alimento que se encontrava no prato, salvo uma pequena parte. Minha mão se

acostumara a um movimento oscilatório sobre o prato e, no fim, a uniformidade

inconsciente de tal movimento deixou de produzir efeito. Em sua veracidade,

cravavam freqüentemente em meus dedos os dentes agudos. Com o resto da carne

oleosa e picante que ainda sobrava. esfreguei fortemente, até o ponto em que podia

alcançá-la, a correia com que me haviam atado. Depois, erguendo a mão do chão,

permaneci imóvel, quase sem respirar.

A princípio, os vorazes animais ficaram surpresos c aterrorizados com a mudança

verificada – com a cessação de qualquer movimento. Mas isso apenas durante um

momento. Não fora em vão que eu contara com a sua voracidade. Vendo que eu

permanecia imóvel, dois ou três dos mais ousados soltaram sobre o catre e

puseram-se a cheirar a correia. Dir-se-ia que isso foi o sinal para a investida geral.

Vindos da parede, arremeteram em novos bandos. Agarraram-se ao estrado,

galgaram-no e pularam. as centenas sobre o meu corpo. O movimento rítmico do

pêndulo não os perturbava de maneira alguma. Evitando seus golpes, atiraram-se à

correia besuntada. Apertavam-se, amontoavam-se sobre mim. Contorciam-se sobre

meu pescoço; seus focinhos, frios. procuravam meus lábios. Sentia-me quase

sufocado sob o seu peso. Um asco espantoso, para o qual não existe nome, enchia-

me o peito e gelava-me, com pegajosa umidade, o coração. Mais um minuto, e

percebia que a operação estaria terminada. Sentia claramente que a correia

afrouxava. Sabia que, em mais de um lugar, já devia estar completamente partida.

Com uma determinação sobre-humana continuei imóvel.

Não errei em meus cálculos; todos esses sofrimentos não foram em vão. Senti,

afinal, que estava livre. A correia pendia, em pedaços, de meu corpo. Mas o

movimento do pêndulo já se realizava sobre o meu peito. Tanto a sarja da minha

roupa, como a camisa que vestia já haviam sido cortadas. O pêndulo oscilou ainda

por duas vezes, e uma dor aguda me penetrou todos os nervos. Mas chegara o

Page 31: Contos de Edgar Allan Poe - II

momento da salvação. A um gesto de minha mão, meus libertadores fugiram

tumultuosamente. Com um movimento decidido, mas cauteloso, deslizei encolhido,

lentamente, para o lado, livrando-me das correias e da lâmina da cimi-tarra. Pelo

menos naquele momento, estava livre.

Livre! E nas garras da Inquisição! Mal havia escapado daquele meu leito de horror e

dado uns passos pelo piso de pedra da prisão, quando cessou o movimento da má-

quina infernal e eu a vi subir, como que atraída por alguma força invisível, para o

teto. Aquela foi uma lição que guardei desesperadamente no coração. Não havia

dúvida de que os meus menores gestos eram observados. Livre! Escapara por

pouco à morte numa determinada forma de agonia, apenas para ser entregue a uma

outra, pior do que a morte. Com este pensamento, volvi os olhos, nervosamente,

para as paredes de ferro que me cercavam. Algo estranho – uma mudança que, a

princípio, não pude apreciar claramente – havia ocorrido, evidentemente, em minha

cela. Durante muitos minutos de trêmula abstração, perdi-me em conjeturas vãs e

incoerentes. Pela primeira vez percebi a origem da luz sulfurosa que alumiava a

cela. Procedia de uma fenda, de cerca de meia polegada de largura, que se estendia

em torno do calabouço, junto a base das paredes, que pareciam, assim, e, na

verdade estavam, completamente separadas do solo. Procurei, inutilmente, olhar

através dessa abertura.

Ao levantar-me, depois dessa tentativa, o mistério da modificação verificada tornou-

se-me, subitamente, claro. Já observara que, embora os contornos dos desenhos

das paredes fossem bastante nítidos, suas cores, não obstante, pareciam apagadas

e indefinidas. Essas cores, agora, haviam adquirido, e estavam ainda adquirindo, um

brilho intenso e surpreendente, que dava às imagens fantásticas e diabólicas um

aspecto que teria arrepiado nervos mais firmes do que os meus. Olhos demoníacos,

de uma vivacidade sinistra e feroz, cravavam-se em mim de todos os lados, de

lugares onde antes nenhum deles era visível, com um brilho ameaçador que eu, em

vão, procurei considerar como irreal.

Irreal! Bastava-me respirar para que me chegasse às narinas o vapor de ferros em

brasa! Um cheiro sufocante invadia a prisão! Um brilho cada vez mais profundo se

fixava nos olhos cravados em minha agonia! Um vermelho mais vivo estendia-se

Page 32: Contos de Edgar Allan Poe - II

sobre aquelas pinturas horrorosas e sangrentas. Eu arquejava. Respirava com

dificuldade. Não poderia haver dúvida quanto à intenção de meus verdugos, os mais

implacáveis, os mais demoníacos de todos os ho-mens! Afastei-me do metal

incandescente,colocando-me ao centro da cela. Ante a perspectiva da morte pelo

fogo,que me aguardava, a idéia da frescura do poço chegou à minha alma como um

bálsamo. Precipitei-me para as suas bordas mortais. Lancei o olhar para o fundo. O

resplendor da abóbada iluminava as suas cavidades mais profundas. Não obstante,

durante um minuto de desvario, meu espírito se recusou a compreender o

significado daquilo que eu via. Por fim, aquilo penetrou, à força, em minha alma,

gravando-se a fogo em minha trêmula razão. Oh, indescritível! Oh, horror dos

horrores! Com um grito, afastei-me do poço e afundei o rosto nas mãos, a soluçar

amargamente.

O calor aumentava rapidamente e, mais uma vez, olhei para cima, sentindo um

calafrio. Operara-se uma grande mudança na cela – e, dessa vez, a mudança era,

evidentemente, de forma. Como acontecera antes, procurei inutilmente apreciar ou

compreender o que ocorria. Mas não me deixaram muito tempo em dúvida. A

vingança da Inquisição se exacerbara por eu a haver frustrado por duas vezes – e

não mais permitiria que zombasse dela! A cela, antes, era quadrada. Notava, agora,

que dois de seus ângulos de ferro eram agudos, sendo os dois outros, por

conseguinte, obtusos. Com um ruído surdo, gemente, aumentava rapidamente o

terrível contraste. Num instante, a cela adquirira a forma de um losango. Mas a

modificação não parou aí – nem eu esperava ou desejava que parasse. Poderia

haver apertado as paredes incandescentes de encontro ao peito, como se fossem

uma vestimenta de eterna paz. “A morte”, disse de mim para comigo. “Qualquer

morte, menos a do poço!” Insensato! Como não pude compreender que era para o

poço que o ferro em brasa me conduzia? Resistiria eu ao seu calor? E, mesmo que

resistisse, suporturia sua pressão? E cada vez o losango se aproximava mais, com

uma rapidez que não me deixava tempo para pensar. Seu centro e, naturalmente, a

sua parte mais larga chegaram até bem junto do abismo aberto. Recuei, mas as

paredes, que avançavam, me empurravam, irresistivelmente, para a frente. Por fim,

já não existia, para o meu corpo chamuscado e contorcido, senão um exíguo lugar

para firmar os pés, no solo da prisão. Deixei de lutar, mas a angústia de minha alma

se extravasou em forte e prolongado grito de desespero. Senti que vacilava à boca

Page 33: Contos de Edgar Allan Poe - II

do poço, e desviei os olhos… Mas ouvi, então, um ruído confuso de vozes humanas!

O som vibrante de muitas trombetas! E um rugido poderoso, como de mil trovões,

atroou os ares! As paredes de fogo recuaram precipitadamente! Um braço estendido

agarrou o meu, quando eu, já quase desfalecido, caía no abismo. Era o braço do

General Lassalle. O exército francês entrara em Toledo. A Inquisição estava nas

mãos de seus inimigos.

Page 34: Contos de Edgar Allan Poe - II

A QUEDA DA CASA DE USHER

Durante todo aquele triste, escuro e silencioso dia outonal, com o céu encoberto por

nuvens baixas e opressivas, estive percorrendo sozinho, a cavalo, uma região rural

singularmente deserta, até que enfim avistei, com as primeiras sombras da noite , a

melancólica Casa de Usher. Não sei por quê, mas, assim que entrevi a construção,

um sentimento de intolerável tristeza apoderou-se de meu espírito. Digo intolerável

porque essa impressão não era suavizada por qualquer sensação meio prazenteira,

porque poética, com que a mente geralmente recebe até mesmo as mais sombrias

imagens naturais de desolação e de terror. Observei a paisagem à minha frente: a

casa simples e a simplicidade do aspecto da propriedade, as paredes frias, as

janelas semelhando órbitas vazias, os poucos canteiros com ervas daninhas e

alguns troncos esbranquiçados de árvores apodrecidas ? e senti na alma uma

depressão profunda que não posso comparar a nenhuma sensação terrena senão

ao que experimenta, ao despertar, o viciado em ópio: o amargo retorno à vida

cotidiana, o terrível descair de um véu. Havia um frio, uma prostração, uma

sensação de repugnância, uma irrecuperável aflição de pensamento que nenhum

excitamento da imaginação conseguiria forçar a transformar-se em algo sublime.

Que era, parei para pensar, que era que tanto em perturbava ao contemplar a Casa

de Usher? Era um mistério completamente insolúvel, e eu não conseguia controlar

as sombrias imagens que me enchiam a cabeça enquanto refletia isso. Fui forçado a

socorrer-me da conclusão nada satisfatória de que existem, sem dúvida,

combinações de objetos naturais muito simples, que têm o poder de nos afetar

assim, embora a análise desse poder se situe em considerações além de nossa

perspicácia. Era possível, pensei, que um mero arranjo diferente nos pormenores da

cena, dos detalhes do quadro, bastasse para modificar, ou talvez, parar suprimir sua

capacidade de provocar impressões aflitivas. Com essa idéia na cabeça, guiei o

cavalo até a margem íngreme de um fosso negro e sinistro cujas águas paradas

refulgiam junto a casa e contemplei, com um arrepio ainda mais forte do que antes,

a imagem invertida e modificada dos arbusto cinzentos, dos lívidos troncos de

árvores e das janelas semelhantes a órbitas vazias.

Apesar disso, era nessa desolada mansão que eu tencionava passar algumas

semanas. O proprietário, Roderick Usher, havia sido um de meus joviais amigos de

Page 35: Contos de Edgar Allan Poe - II

infância, mas muitos anos tinham se passado desde o nosso último encontro. Uma

carta, no entanto, que me chegara recentemente numa parte distante do país ? uma

carta dele ? exigia pela insistência de seu teor resposta pessoal. A caligrafia revela

agitação nervosa. O remetente falava de aguda doença física, de opressiva

perturbação mental e do intenso desejo de me ver, como seu melhor e na verdade

único amigo pessoal, com a intenção de lograr, pela alegria de minha companhia,

alguma alívio para sua doença. A maneira pela qual tudo isso e muito mais coisas

foram ditas e o manifesto estado de espírito expresso no pedido impediram-me

qualquer hesitação e por esse motivo obedeci na mesma hora ao que ainda

considerava como um convite muito estranho.

Apesar de, quando crianças, termos sido companheiros íntimos, eu na verdade

conhecia pouco meu amigo. Sua reserva sempre tinha sido excessiva e habitual. Eu

sabia, no entanto, que sua família, muito antiga, distinguia-se havia muito tempo

pela peculiar sensibilidade de temperamento, demonstrada ao longo de muitos

séculos em notáveis obras de arte e que ultimamente se manifestava em repetidos

atos de generosa e discreta caridade e também na apaixonada devoção pela

complexidade da ciência musical, talvez ainda mais do que por suas belezas

naturais e fáceis de reconhecer. Fiquei sabendo também de um fato incrível: o

tronco da linhagem dos Usher, embora tão antiga, nunca tinha produzido qualquer

ramo duradouro. Em outras palavras, a família se perpetuara apenas em linha direta

e assim continuava, com variações bem poucos importantes e temporárias. Era essa

deficiência, pensava eu, enquanto repassava em pensamento a perfeita harmonia

entre o aspecto da propriedade e o caráter de seus moradores, imaginando a

possível influência que aquela podia ter exercido, ao longo dos séculos, sobre estes

? era essa deficiência, talvez, de um ramo colateral e a conseqüente transmissão

direta, de pai para filho, do patrimônio e do nome da família que haviam ao longo

dos tempos identificado ambas de tal modo que fundiram o título original da

propriedade na estranha e equívoca designação de Casa de Usher ? designação

que, na mente dos camponeses que a utilizavam, parecia servir tanto para a família

quanto para a mansão da família.

Eu disse que o único efeito da minha experiência um tanto infantil de olhar para o

fosso havia sido aprofundar aquela primeira impressão. Sem dúvida, quando tomei

Page 36: Contos de Edgar Allan Poe - II

consciência do rápido aumento de minha superstição (por que não usar esse

termo?), isso serviu principalmente para intensificar o próprio aumento. Tal é, sei

disso há muito tempo, a lei paradoxal de todos os sentimentos fundados no terror. E

pode ter sido por essa única razão que, ao levantar os olhos de sua imagem no

fosso para a própria mansão, surgiu-me na mente uma estranha visão ? tão

estranha, de fato, que só a menciono para mostrar a intensa força das sensações

que me sufocavam. Minha imaginação mostrava-se tão excitada que realmente

acreditei que em volta da mansão e da propriedade pairava uma atmosfera especial,

própria do lugar e de seus arredores, atmosfera que não se relacionava como o ar

do céu, emanando antes das árvores apodrecidas, das paredes cinzentas, do fosso

silencioso ? um vapor místico e pestilento, espesso, entorpecido, sutil e lívido.

Afastando do espírito o que devia ser um sonho, examinei mais atentamente o

aspecto real do edifício. Sua característica principal parecia ser a extrema

antigüidade. Fora grande a descoloração causada pelos séculos. Minúsculos fungos

cobriam todo o exterior, pendendo dos beirais qual fina e emaranhada teia. Mas

nada disso indicava grande destruição. Nenhum bloco de alvenaria tinha

desmoronado, mas parecia haver um profundo contraste entre o encaixe ainda

perfeito das partes e as péssimas condições de cada pedra. Isso me lembrou muito

a enganosa integridade de antigas peças de madeira que apodreceram por longos

anos em algum porão esquecido, sem serem perturbadas pelo sopro do ar exterior.

Afora esse indício de grande decadência, porém, a construção não mostrava

nenhum sinal de falta de segurança. Talvez o olho de um observador mais atento

conseguisse descobrir uma fenda quase imperceptível que riscava a frente do

edifício desde

o telhado, descendo em ziguezague pela parede até mergulhar nas águas turvas do

fosso.

Observando tudo isso, atravessei a cavalo o curto carreiro que levava até a casa.

Um cavalariço levou minha montaria, e avancei pelo arco gótico do vestíbulo. Um

criado de andar furtivo conduziu-me então, calado, por muitas passagens escuras e

tortuosas, até o gabinete de seu patrão. Muitas das coisas que vi pelo caminho

contribuíam, não sei como, para fortalecer os imprecisos sentimentos de já falei. Os

objetos à minha volta ? os entalhes do forro, as sombrias tapeçarias das paredes, o

Page 37: Contos de Edgar Allan Poe - II

negrume de ébano do assoalho e as fantasmagóricas armaduras que retiniam

quando eu passava ? eram coisas com que eu estava, ou devia estar, familiarizado

desde a infância, mas, embora não hesitasse em reconhecê-las como tais, ainda me

espantava ao perceber como eram estranhas as visões que essas imagens tão

comuns produziam em mim. Numa das escadas, cruzei com o médico da família.

Julguei ver em sua fisionomia uma expressão desanimada e perplexa.

Cumprimentou-me agitado e afastou-se. O criado então abriu uma porta e me levou

até a presença de seu patrão.

Achei-me numa sala muito ampla e alta. As janelas, compridas, estreitas e pontudas,

tinham peitoris tão afastados do assoalho de carvalho negro que era impossível

alcança-los. Fracos raios de luz avermelhada penetravam pelas vidraças

guarnecidas com rótulas, só conseguindo tornar visíveis os objetos próximos mais

volumosos. O Olhar, porém, lutava em vão para perceber os cantos mais distantes

da sala ou os recessos do forro em abóbada guarnecido com entalhes. Sombrias

cortinas pendiam das paredes. O mobiliário era excessivo, desconfortável, antigo e

gasto. Os muitos livros e instrumentos musicais que jaziam dispersos não

conseguiam dar vitalidade alguma ao ambiente. Senti que respirava uma atmosfera

de tristeza. Uma ar de severo, profundo e irrecuperável desalento pairava sobre as

coisas e impregnava a tudo.

Assim que entrei, Usher levantou-se do sofá onde estava deitado ao comprido e

cumprimentou-me com calorosa vivacidade, na qual havia muito, de inicio julguei, de

cordialidade forçada, do esforço constrangido de um homem de sociedade

entediado. Mas, olhando seu rosto, convenci-me de sua perfeita sinceridade.

Sentamos e, por alguns momentos, como ele não falava nada, fiquei olhando-o com

um sentimento misto de piedade e espanto. Com toda a certeza, nenhum homem

jamais se transformara tão terrivelmente, em período tão curto, quanto Roderick

Usher! Só com muita dificuldade consegui admitir que o homem doentio diante de

mim era o mesmo companheiro de infância. No entanto, suas feições sempre tinham

sido notáveis: tez cadavérica; olhos grandes, líquidos e luminosos, sem

comparação; lábios um tanto finos e muito pálidos, mas de conformação

extremamente bela; o nariz, com delicado desenho hebraico, mas exibindo narinas

largas, incomuns nesse tipo; o queixo finamente delineado, revelando, pela ausência

Page 38: Contos de Edgar Allan Poe - II

de volume, carência de energia moral; cabelos mais finos e macios que os fios de

uma teia. Todos esses traços e mais o extraordinário desenvolvimento da fronte

combinavam-se num aspecto difícil de esquecer. E agora, com o mero exagero

desses traços e da expressão que costumavam mostrar, havia tal mudança que

cheguei a duvidar de que era com ele que falava. A cadavérica palidez da pele e o

brilho agora sobrenatural dos olhos, acima de tudo, surpreendiam-me e até me

aterravam. O cabelo sedoso também tinha crescido descuidadamente e como, por

causa da textura muito fina, flutuasse em vez de cair nos lados do rosto, eu não

conseguia, mesmo com esforço, vincular sua expressão fantástica com qualquer

idéia de simples humanidade.

Fiquei abalado ao perceber logo certa incoerência nas maneiras de meu amigo,

certa inconsistência, e logo descobri que isso se devia a um série de fracos e inúteis

esforços para dominar tremor freqüente, uma excessiva agitação nervosa. Eu estava

preparado para encontrar algo assim, não só por sua carta, mas também pela

lembrança de certos traços juvenis e pelas conclusões deduzidas de seu estado

físico e de seu temperamento. Suas atitudes alternavam da vivacidade ao desânimo.

A voz variava, rapidamente, passando da trêmula indecisão (quando seu ardor

parecia tornar-se profundamente entorpecido) para o tipo de energética concisão,

para a abrupta, pesada, lenta e oca articulação, para a fala arrastada, controlada,

gutural e perfeitamente modulada que se pode observar nos bêbados costumazes e

nos fumadores de ópio irrecuperáveis, durante os períodos mais intensos de

excitação.

Foi assim que ele se referiu ao objetivo de minha visita, de seu grande desejo de me

ver e do alívio que esperava encontrar em minha companhia. Depois, falou por

algum tempo do que achava da natureza de sua doença. Segundo ele, era um mal

de família e de nascença, para o qual já tinha perdido a esperança de encontrar

remédio; mera perturbação nervosa, disse logo em seguida, que sem dúvida ia

passar logo. A doença se manifestava numa série de sensações antinaturais.

Algumas, enquanto as ia descrevendo, me deixaram interessado e confuso, apesar

talvez de que tenham influído os termos usados e a forma geral da descrição. Ele

sofria, e muito, de doentia exageração dos sentidos: só tolerava o mais ínspido

alimento; não podia usar senão roupas de determinadas texturas; os perfumes de

Page 39: Contos de Edgar Allan Poe - II

todas as flores pareciam-lhe sufocantes; até a luz mais suave lhe torturava os olhos

e só os sons especiais dos instrumentos de cordas não lhe provocavam horror.

Compreendi que ele estava escravizado por uma espécie anormal de terror.

- Vou morrer ? disse ele. ? Devo morrer nesta loucura lamentável. Assim, assim e de

nenhuma outra forma é que vou me perder. Abomino os fatos do futuro, não em si

mesmos, mas por seus resultados. Estremeço diante da idéia de qualquer incidente,

até mesmo o mais trivial, que possa afetar essa intolerável agitação da alma. Não

tenho, na verdade, aversão pelo perigo, a não ser em seu efeito absoluto: o terror.

Neste deplorável estado de abatimento sinto que mais cedo ou mais tarde chegará

um momento em que vou ter de abandonar ao mesmo tempo a vida e a razão, na

luta com o fantasma sinistro do MEDO.

Descobri também, aos poucos e através de pistas equívocas fragmentadas, outro

traço singular de seu estado mental. Ele estava acorrentado a certas impressões

supersticiosas quanto à casa em que morava e da qual, por longos anos, não se

aventurava a sair… a uma influência, cuja suposta força foi narrada em termos

vagos demais para reproduzir aqui… influência que alguns detalhes da matéria e da

forma da mansão familiar tinham, às custas de longo sofrimento, conseguindo

exercer sobre seu espírito… efeito físico que as paredes e torres cinzentas e o

sombrio fosso onde elas refletiam tinham acabado por exercer sobre o moral de sua

existência.

Ele admitia, porém, embora com hesitação, que grande parte do desalento que

sofria talvez tivesse origem mais natural e bem mais palpável: na séria e prolongada

doença (na verdade, na morte evidentemente próxima) de uma irmã adorada, sua

única companheira por longos anos, sua única e última parenta nesta terra.

- A morte dela ? disse ele, com amargura que nunca esquecerei ? tornará (a ele,

fraco e sem esperanças) o último representante da antiga raça dos Usher.

Enquanto falava, Lady Madeline (pois era assim que se chamava) passou pela parte

mais distante do aposento e, sem notar minha presença, desapareceu. Olhei-a com

Page 40: Contos de Edgar Allan Poe - II

profunda surpresa e uma ponta de medo ? e, no entanto, não encontrava explicação

para esses sentimentos. Uma sensação de estupor me sufocava, enquanto seguia

com os olhos seus passos. Quando uma porta, afinal, se fechou atrás dela, meu

olhar procurou instintiva e ansiosamente o irmão, mas este escondera o rosto nas

mãos, e só pude perceber que uma palidez maior que a normal tinha tomado conta

dos dedos magros, pelos quais escorriam muitas lágrimas emocionadas.

A doença de Lady Madeline vinha desafiando, por muito tempo, a habilidade dos

médicos. Apatia permanente, progressivo enfraquecimento físico e crises

freqüentes, mas passageiras, caráter parcialmente cataléptico eram o diagnóstico

incomum. Até então ela tinha resistido firmemente contra o avanço da doença,

recusando-se a cair de cama, mas no final da tarde de minha chegada ela sucumbiu

(como me contou o irmão, à noite, com indescritível agitação) ao poder destruidor do

mal. E compreendi que a visão de relance de seu vulto seria provavelmente a última

e que não veria mais a moça, pelo menos com vida.

No decorrer dos dias seguintes, seu nome não foi mencionado por Usher ou por

mim. Durante esse período dediquei-me vivamente a aliviar a melancolia de meu

amigo. Pintávamos e líamos juntos; ou eu ouvia, como num sonho, as arrebatadas

improvisações que ele fazia em sua eloqüente guitarra. E assim, à medida que

aumentava a intimidade que ia me revelando os recessos mais íntimos de seu

espírito, mais amargamente eu percebia quão inúteis seriam as tentativas de alegrar

aquela mente da qual a escuridão, como uma qualidade inerente e ativa, vertia

sobre todos os objetos do mundo físico e moral um incessante radiação de tristeza.

Ficarão para sempre gravadas em minha memória as muitas horas solenes que

passei a sós como o chefe da Casa de Usher. Mas nunca conseguiria dar uma idéia

do caráter exato dos estudos ou das ocupações em que ele me envolvia ou me

conduzia. Uma idealidade excitada e altamente desequilibrada lançava um brilho

sulfuroso sobre todas as coisas. Suas longas cantigas fúnebres soarão para sempre

em meus ouvidos. Entre outras coisas, lembro-me dolorosamente de certa estranha

alteração e amplificação da romântica melodia da última valsa de Von Weber.

Quanto às pinturas em que extravasava sua elaborada fantasia e que se

metamorfoseavam, pincelada por pincelada, até atingir uma indefinição que me

Page 41: Contos de Edgar Allan Poe - II

causava estremecimentos ainda mais emocionantes, pois eu não sabia por que

estremecia ? quanto a essas pinturas (tão vívidas que até hoje tenho suas imagens

diante dos olhos) em vão me esforçaria para retirar delas apenas uma pequena

parte, passível de ser traduzida por simples palavras escritas. Através da extrema

simplicidade e crueza do desenho, ele retinha e dominava a atenção. Se algum

mortal jamais pintou uma idéia, esse mortal foi Roderick Usher. Para mim, pelo

menos, na situação em que então em encontrava, dessas puras abstrações que o

hipocondríaco conseguia projetar nas suas telas surgia um terror intenso e

intolerável, assombro que nem de longe jamais senti nas fantasias (sem dúvida

brilhantes) de Fuseli, mas ainda assim concretas demais.

Uma das criações fantasmagóricas de meu amigo em que esse espírito abstrato não

era tão rígido pode ser descrita, ainda que pobremente, em palavras. Era um quadro

pequeno, representando o interior de uma câmara ou túnel imensamente longo e

retangular, com paredes baixas, lisas, brancas e sem qualquer interrupção ou

adornos. Certos detalhes do desenho conseguiam dar muito bem a idéia de que

essa escavação ficava a uma extrema profundidade, abaixo da superfície da terra.

Não se via qualquer abertura em toda a sua vasta extensão nem se percebiam

tochas ou qualquer outra fonte de luz artificial. No entanto, uma torrente de intensos

raios jorrava, tudo banhando num esplendor cadavérico e antinatural.

Falei há pouco do estado mórbido do nervo auditivo, que tornava intolerável

qualquer música para esse sofredor, com exceção de certos efeitos de instrumentos

de cordas. Foram, talvez, os estreitos limites a que ele se limitava na guitarra que

deram origem, em grande parte, ao caráter fantástico de suas execuções. Mas a

fervorosa facilidade de seus improvisos era inexplicável. Deviam ser e eram, tanto

nas notas quanto nas palavras de suas loucas fantasias (pois ele muitas vezes

acompanhava a música com improvisações verbais rimadas), resultado da intensa e

imperturbável concentração mental de que já falei antes, só observáveis nos

momentos de maior excitação artificial. Lembro-me facilmente das palavras de uma

dessas rapsódias. Fiquei, talvez, tão impressionado quando ele as cantou, porque,

na corrente subjacente ou mística de seu significado, julguei perceber, pela primeira

vez, que Usher tinha plena consciência da instabilidade de sua mente altiva sobre

Page 42: Contos de Edgar Allan Poe - II

seu trono. Os versos, intitulados “O Palácio Assombrado”, eram quase exatamente

assim:

I

No mais verde de nosso vales, Por bons anjos habitado, Outrora um belo e rico palácio, Radiante palácio, se erguia. Nos domínios do rei Pensamento, Lá estava ele! Nunca serafim algum abriu as asas Sobre tão bela obra.

II

Bandeiras amarelas, gloriosas, douradas, Em seus telhados flutuavam, ondulando (Isso, tudo isso, ocorreu nos velhos tempos De antigamente) E toda suave brisa que brincava, Naqueles doces dias, Pelos muros pálidos e engalanados, Um sublime perfume desprendia.

III

Quem passava por esse vale feliz Por duas janelas luminosas via Espíritos deslizando, musicais, Ao som de alaúde bem afinado, Em volta de um tronco, onde sentava-se (Porfirogênito (1)!), Na grandeza de sua glória muito justa, O senhor desse reinado.

IV

Pela bela porta do palácio Brilhante com pérolas e rubis, Ia passando, passando, passando, E sempre mais cintilando, Uma tropa de Ecos cujo doce dever Era apenas cantar Com vozes de insuperável beleza, A viva sabedoria do rei.

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V

Mas vultos maus, trajados de luto, Atacaram o alto reino do monarca; (Ah, choremos, pois nunca mais O dia vai nascer para ele, o desolado!) E, em volta do palácio, a glória Que brilhava e florescia Não passa agora de mal lembrada história Dos velhos tempos sepultados.

VI

E quem passa agora pelo vale, Pelas janelas rubras vê Enormes formas que fantásticas se movem, Ao som de melodia discordante; Enquanto isso, como rio terrível, Pela pálida porta se precipita Para sempre uma hedionda multidão Que gargalha, mas não mais sorri.

Lembro-me bem de que as sugestões despertadas pela balada nos levaram a uma

linha de pensamento em que se tornou manifesta uma opinião de Usher, que

menciono não tanto por causa de sua novidade (pois outros homens (2) já pensaram

desse modo), mas devido à insistência com que ele a defendia. Essa opinião, em

termo gerais, afirmava que todos os vegetais têm sensibilidade. Mas, na imaginação

desordenada de Usher, essa idéia tinha assumido caráter ainda mais ousado e

chegava, sob certos aspectos, ao reino das coisa inorgânicas. Não encontro

palavras para expressar toda a extensão, ou melhor, a sincera espontaneidade de

sua convicção. Tal crença, no entanto, relacionava-se (como já insinuei antes) com

as pedras cinzentas da mansão e seus antepassados. As condições para essa

sensibilidade eram realizadas, imaginava ele, no método de colocação das pedras e

na ordem com que tinham sido organizadas, assim como na dos muitos fungos que

as cobriam e nas árvores agonizantes que existiam em volta, mas, acima de tudo,

na longa e imperturbável duração desse arranjo e na sua duplicação nas águas

paradas do fosso. A prova (a prova dessa sensibilidade) podia ser encontrada, dizia

ele (e me assustei ao ouvir tal coisa), na lenta mas inegável condensação de uma

Page 44: Contos de Edgar Allan Poe - II

atmosfera que lhes era própria em torno das águas e das paredes. O resultado

podia ser percebido, acrescentou ele, na influência silenciosa, mas perturbadora e

terrível, que vinha moldando havia séculos o destino de sua família e que fizera dele,

como eu podia ver agora, aquilo que ele era. Essas opiniões dispensam comentário

e não farei nenhum.

Nossos livros ? os livros que durante anos constituíram grande parte da existência

mental do doente ? estavam , como se pode supor, em harmonia absoluta com esse

caráter fantasmagórico. Lemos juntos, atentamente, obras como Vert Vert e a

epístola La Chartreuse, de Gresset; Belphegor, de Maquiavel; Céu e inferno, de

Swendenborg; Viagem subterrânea de Nils Klimm, de Holberg; Quiromancia, de

Robert Flud, de Jean D`Indaginé e de De la Chambre; Jornada às distâncias azuis,

de Tieck; e Cidade do sol, de Campanella. Um dos volumes preferidos era uma

pequena edição in-oitavo do Directorium Inquisitorum, do padre dominicano

Eymerico de Gerona; e havia passagens de Pomponius Mela (3), sobre os velhos

sátiros africanos e mitológicos, sobre os quais Usher era capaz de sonhar durante

horas. Seu maior prazer, no entanto, era a leitura de um raro e curioso livro em

gótico in-quarto, o manual de uma igreja esquecida, as Vigiliae Mortuorum

secundum Chorum Ecclesiae Maguntinae.

Eu não podia deixar de pensar no estranho ritual descrito nesse livro e na sua

provável influência sobre o hipocondríaco quando, uma noite, depois de me informar

repentinamente que Lady Madeline havia morrido, ele disse que tinha intenção de

manter o corpo por quinze dias (antes do enterro definitivo) em uma das muitas

câmaras subterrâneas existentes no interior da mansão. A razão profana para essa

estranha atitude, no entanto, era tal que não me sentia à vontade para discutir.

Como irmão, tinha sido levado a essa resolução (assim me contou ele) por causa da

natureza incomum da doença da falecida, de certas perguntas inconvenientes e

ansiosas feitas pelos médicos e por causa da localização distante e exposta do

jazigo da família. Não posso negar que, ao lembrar do rosto sinistro da pessoa que

encontrei na escada no dia em que cheguei àquela casa, não senti nenhum impulso

para me opor a uma preocupação que me parecia inofensiva e de forma alguma

antinatural.

Page 45: Contos de Edgar Allan Poe - II

A pedido de Usher, ajudei-o nos preparativos do sepultamento provisório. Depois de

colocar o corpo no caixão, nós dois, sozinhos, o levamos até o lugar de descanso. A

câmara em que o deixamos (e que estivera fechada por tanto tempo que nossas

tochas, quase apagadas pela atmosfera abafada, não nos permitiram examinar) era

pequena, úmida, sem nenhuma entrada para a luz e situada a grande profundidade,

exatamente debaixo da parte da mansão onde estava o meu quarto de dormir.

Aparentemente, tinha sido usada em remotos tempos feudais para as piores

finalidades de cárcere privado e, mais recentemente, como depósito de pólvora ou

de alguma outra substância altamente inflamável, pois parte do chão e todo o interior

da longa arcada que percorremos para chegar até ali estavam cuidadosamente

revestidos de cobre. A porta, de ferro maciço, tinha sido igualmente protegida.

Quando girava as dobradiças, seu imenso peso fazia um som incrivelmente agudo e

áspero.

Após depositar nossa triste carga sobre cavaletes nesse horrendo lugar, abrimos

parcialmente a tampa do caixão, ainda não parafusada, e olhamos o rosto da morta.

A incrível semelhança entre irmão e irmã me chamou a atenção, e Usher,

adivinhando talvez meus pensamentos, explicou-me num murmúrio que ele e a

falecida eram gêmeos e que afinidades de natureza quase incompreensível sempre

existiram entre eles. Mas nossos olhares não se demoraram muito tempo sobre a

morta, pois era impossível fitá-la sem se perturbar. A enfermidade que assim levara

ao túmulo a jovem senhora tinha deixado, como é normal em todas as doenças de

natureza estritamente cataléptica, um arremedo de coloração no seio e no rosto e

uma sombra de sorriso nos lábios, que é tão terrível na morte. Recolocamos e

parafusamos a tampa do caixão e, fechando a porta de ferro, voltamos abatidos para

os cômodos pouco menos sinistros dos andares superiores da mansão.

Então, passados alguns dias de amarga tristeza, ocorreu uma nítida mudança nos

sintomas da perturbação mental de meu amigo. Seu modo de ser habitual

desapareceu. Suas ocupações diárias eram negligenciadas ou esquecidas. Ele

vagava a esmo de sala em sala, com passos apressados e irregulares. A palidez de

seu rosto assumiu, se isso é possível, um tom ainda mais cadavérico, mas a

luminosidade de seus olhos dissipou-se completamente. Não se ouvia mais o tom

áspero de sua voz, como às vezes sucedia antes, e um trêmulo balbucio, como se

Page 46: Contos de Edgar Allan Poe - II

estivesse tomado de horror extremo, passou a caracterizar o seu modo de falar.

Houve momentos, na verdade, em que pensei que sua mente sempre agitada

estava em luta com algum segredo opressivo, empenhando-se em reunir coragem

para contá-lo. Outras vezes era eu levado a atribuir tudo aquilo à inexplicável

confusão da loucura, pois o via fitar o vazio durante horas, numa atitude da mais

profunda atenção, como se estivesse ouvindo algum som imaginário. Não era de

admirar que seu estado me causasse terror e me contaminasse. Senti-me aos

poucos, inexoravelmente, invadido pela estranha influência de suas fantásticas mas

impressionantes superstições.

Foi especialmente ao me deitar, já tarde da noite, sete ou oito dias depois de

colocarmos o corpo de Lady Madeline na câmara, que percebi toda a força de tais

sentimentos. O sono não se aproximava de minha cama e as horas ecoavam-se

lentamente. Lutei para controlar o nervosismo que me dominava. Esforcei-me por

acreditar que muito, senão tudo o que estava sentindo, se devia à perturbadora

influência da soturna mobília do aposento, das tapeçarias escuras e esfarrapadas

que, movidas pelo sopro de uma tempestade que se formava, oscilavam de modo

irregular nas paredes e roçavam inquietas pelos adornos do leito. Mas meus

esforços foram inúteis. Um tremor incontrolável aos poucos tomou conta de meu

corpo e, afinal, instalou-se sobre meu próprio coração o íncubo de uma comoção

inteiramente infundada. Sacudindo essa sensação com um arquejo e um

sobressalto, ergui-me dos travesseiros e, sondando com o olhar a escuridão do

aposento, prestei atenção e ouvi ? não sei por quê, talvez por um instinto que me

aguçou o espírito ? ruídos baixos e indefinidos que nas pausas da tempestade, a

longos intervalos, vinham não sabia de onde. Dominado por forte sentimento de

horror, inexplicável e por isso mesmo impossível de suportar, vesti-me rapidamente

(pois senti que seria impossível dormir naquela noite) e tentei livrar-me, caminhando

de um lado para outro pelo aposento, do estado penoso em que me achava.

Logo depois de iniciar as idas e vindas, um leve ruído de passos numa escada

próxima me chamou a atenção. Logo reconheci que era Usher. No instante seguinte,

ele bateu de leve em minha porta e entrou, trazendo um lampião. Seu rosto estava,

como sempre cadavérico, mas além disso havia uma espécie de riso louco em seus

olhos, e, e, seu modo de proceder, uma histeria evidentemente contida. Seu aspecto

Page 47: Contos de Edgar Allan Poe - II

me aterrou, mas qualquer coisa era preferível à solidão por mim suportada durante

tanto tempo e acolhi sua presença com grande alívio.

- E você não o viu? ? perguntou ele de repente, depois de olhar em volta por alguns

momentos, sem silêncio. ? Não o viu? Mas espere! Você vai ver.

Assim dizendo ? e enquanto protegia cuidadosamente o lampião ? correu para uma

das janelas e a escancarou para a tempestade.

A impetuosa fúria das rajadas de vento quase nos levantou do chão. Era na verdade

uma noite tempestuosa, mas ainda assim bela e espantosamente singular no seu

terror e perfeição. Aparentemente, um redemoinho juntara todas as suas forças ao

nosso redor pois ocorriam freqüentes e violentas mudanças na direção do vento, e a

extrema densidade das nuvens (tão baixas que pareciam pesar sobre os torrões da

mansão) não nos impedia de observar a viva velocidade com que deslizavam de

todos os pontos, chocando-se umas contra as outras, sem desaparecer ao longe.

Digo que nem mesmo a sua extrema densidade nos impossibilitava de perceber isto,

embora não pudéssemos vislumbrar a lua ou as estrelas, nem havia ali qualquer

clarão de relâmpagos. Mas tanto a superfície inferior das imensas massas de vapor

agitando como todos os objetos terrenos das proximidades brilhavam, por efeito de

uma luz antinatural que provinha de uma exalação gasosa ligeiramente luminosa e

perfeitamente visível que envolvia toda a mansão como uma mortalha.

- Você não deve… não pode ficar olhando para isso! ? eu disse, estremecendo, a

Usher, enquanto o afastava com leve violência da janela e o fazia sentar. ? Essas

manifestações que tanto perturbam você são meros fenômenos elétricos, nada

incomuns, ou talvez tenham origem nas exalações malcheirosas do fosso. Vamos

fechar esta janela. O ar está gelado e é perigoso para sua saúde. Eis aqui um de

seus romances favoritos. Vou ler para você, e assim passaremos juntos esta noite

terrível.

O volume antigo que peguei era o Mad Trist (Assembléia do loucos) de Sir Launcelot

Canning. Disse que era um dos favoritos de Usher mais como triste gracejo do que a

sério, pois, na verdade, sua prolixidade vulgar e estéril muito pouco continha que

Page 48: Contos de Edgar Allan Poe - II

pudesse interessar à idealidade elevada e espiritual de meu amigo. Era, porém, o

único livro à mão ? e nutri a vaga esperança de que a excitação que então agitava o

hipocondríaco talvez encontrasse algum alívio (pois a história das perturbações

mentais está cheia de anomalias desse tipo), até mesmo nos excessos de

imaginação que eu ia ler. A julgar pelo ar de intensa vivacidade como que ouvia, ou

parecia ouvir a leitura, podia congratular-me pelo êxito de minha tentativa.

E Ethereld, que tinha por natureza coração audaz e agora se sentia muito forte,

graças ao vigor do vinho que havia bebido, não gastou mais tempo em discutir com

o eremita, que em verdade tinha caráter obstinado e malicioso. Sentindo a chuva

nos ombros e temendo que caísse a tempestade, levantou a maça e, com vários

golpes, logo abriu espaço nas tábuas da porta, para passar a mão com luva de ferro;

brandindo-a com firmeza, quebrou e lascou e despedaçou de tal foram a madeira

que o eco desse ruído seco e oco alarmou toda a floresta.

Ao terminar esta frase, assustei-me e parei por um momento, pois em parecia

(embora logo concluísse que estava sendo iludido por minha excitada imaginação),

me parecia que, de algum ponto remoto da mansão, chegava indistintamente a

meus ouvidos algo que, por sua exata semelhança, podia ser o eco (apesar de baixo

e abafado) do ranger e estalar que Sir Launcelot descrevia tão detalhadamente. Era,

sem dúvida, apenas a coincidência que me chamava a atenção, pois que, em meio

do bater dos caixilhos das janelas e dos ruídos da tempestade crescente, o som

nada tinha, por certo, que pudesse me interessar ou perturbar. E continuei com a

história:

Mas o bom paladino Ethelred, entrando agora pela porta, ficou dolorosamente

enraivecido e surpreendido por não encontrar nem sinal do malicioso eremita, mas

sim, em seu lugar, uma dragão coberto de escamas, de aparência prodigiosa e com

língua de fogo, que guardava um palácio de ouro com chão de prata. E sobre a

muralha pendia um escudo de bronze reluzente onde estava escrita a legenda:

Quem aqui penetrar, conquistador será;

Quem o dragão matar, o escudo ganhará.

Page 49: Contos de Edgar Allan Poe - II

E Ethelred levantou a maça e golpeou a cabeça do dragão, que caiu a seus pés,

exalando o pestilento suspiro com um guincho tão horrível, áspero e penetrante que

Ethelred teve de tapar os ouvidos com as mãos para suportar aquele terrível som,

como jamais tinha ouvido antes.

Aqui, outra vez parei abruptamente, agora com a sensação de tremenda surpresa,

pois não podia haver qualquer dúvida de que, desta vez, ouvi realmente (embora

fosse impossível dizer de onde provinha) um grito ou rangido baixo, aparentemente

distante, mas áspero, prolongado, singularmente agudo e dissonante, a exata

reprodução daquilo que minha fantasia imaginava como o guincho do dragão

descrito pelo romancista.

Oprimido, como eu naturalmente estava, diante dessa Segunda e tão extraordinária

coincidência, por mil sensações conflitantes, nas quais predominavam a

perplexidade e o extremo terror, consegui ainda manter suficiente presença de

espírito para não aguçar, com qualquer observação, a sensibilidade nervosa de meu

companheiro. Não tinha certeza de que ele houvesse percebido os ruídos em

questão, embora, sem dúvida, uma estranha alteração tenha ocorrido nos últimos

minutos em seu rosto. Sentado diante de mim, fez girar pouco a pouco a cadeira até

ficar de frente para a porta do aposento, de forma que eu só podia ver parcialmente

seu rosto, apesar de perceber que seus lábios tremiam, como se estivesse

murmurando baixinho. Pendeu a cabeça, mas eu sabia que não estava adormecido,

porque o olho que via de perfil mantinha-se muito aberto e fixo. O movimento de seu

corpo também desmentia essa idéia, pois oscilava de um lado para o outro com um

balanço suave, embora constante e uniforme. Tendo notado rapidamente tudo isso,

voltei para a narrativa de Sir Launcelot, que continuava assim:

E agora o paladino, tendo escapado à terrível fúria do dragão e lembrando-se do

escudo de bronze e da quebra do encantamento que sobre ele pesava, afastou a

carcaça do caminho e valorosamente avançou pelo chão de prata do castelo na

direção da parede em que pendia o escudo, o qual, na verdade, não esperou que

ele chegasse até perto, caindo-lhe aos pés sobre o chão prateado, com horrendo e

retumbante estrondo.

Page 50: Contos de Edgar Allan Poe - II

Nem bem essas palavras me passaram pelos lábios, ouvi distintamente como se um

pesado escudo de bronze de fato tivesse caído, naquele momento, sobre um chão

de prata ? uma reverberação nítida, surda, metálica e poderosa, apesar de

aparentemente abafada. Inteiramente nervoso, fiquei em pé de um salto, mas o

movimento regular de balanço de Usher não se alterou. Corri para a cadeira diante

de si e todo o seu rosto apresentava rigidez de pedra. Mas, assim que lhe toquei o

ombro com a mão, forte estremecimento sacudiu todo o seu corpo, um sorriso

doentio brincou em seus lábios como se não tivesse consciência de minha presença.

Inclinando-me sobre ele, pude afinal compreender o sentido terrível de suas

palavras.

- Não ouve, agora?… Sim, estou ouvindo e já ouvi antes. Há muitos, muitos, muitos,

muitos minutos, muitas horas, muitos dias, venho ouvindo… e no entanto não tive a

coragem… Oh, pobre de mim, miserável infeliz!… não tive coragem… não tive

coragem de falar! Nós a enterramos viva! Eu não disse que meus sentidos eram

aguçados? Agora lhe digo que ouvi os primeiros movimentos dela no caixão. Ouvi-

os… há muitos, muitos dias… mas não tive coragem… não tive coragem de falar! E

agora… esta noite… Ethelred… ha! há!… o rompimento da porta do eremita e o grito

de morte do dragão e clangor do escudo!… Seria melhor dizer o destroçar do caixão

e o ranger das dobradiças de ferro de sua prisão e sua luta lá dentro das arcadas de

cobre da cripta! Oh, para onde é que vou fugir? Pois ela não vai chegar agora

mesmo? Não está vindo apressadamente para censurar minha sofreguidão? Não

são seus passos que ouço na escada? Não é a batida pesada e horrível de seu

coração que estou ouvindo? Louco! ? e aqui levantou-se, de um salto, furioso, e

berrou cada sílaba, como se estivesse entregando a própria alma nesse esforço ?

Louco! Digo-lhe que ela está agora, atrás da porta!

Como se a energia sobre-humana de suas palavras produzisse a força de um

encantamento, a imensa e antiga porta para a qual apontava foi abrindo lentamente,

nesse instante, suas mandíbulas negras e pesadas. Havia sido obra do vento furioso

? mas além da porta estava de fato a figura alta e amortalhada de Lady Madeline de

Usher. Havia sangue em suas vestes brancas e sinais de violenta luta por todo o seu

corpo emagrecido. Por um momento ela permaneceu trêmula e vacilante no umbral.

Depois, com um gemido baixo e queixoso, caiu pesadamente sobre o irmão, e em

Page 51: Contos de Edgar Allan Poe - II

sua violenta e agora final agonia. Arrastou-o consigo para o chão, já morto, vítima

dos terrores que tinha previsto.

Fugi aterrorizado daquele quarto e daquela mansão. A tempestade ainda soprava

com toda a fúria lá fora, quando atravessei o carreiro. De repente fulgurou sobre o

caminho uma luz fantástica, e me virei para ver de onde podia provir luminosidade

tão estranha, pois atrás de mim só havia a vasta casa e suas sombras. A irradiação

vinha da lua cheia e cor de sangue, já baixa no horizonte, e brilhava agora

vivamente através daquela fenda antes quase invisível, à qual já me referi, que

descia em ziguezague do teto até a base do edifício. Enquanto eu a olhava, a fenda

foi se alargando rapidamente… soprou uma feroz rajada de vento… O círculo inteiro

do satélite tornou-se visível aos meus olhos… Meu cérebro vacilou quando vi

aquelas sólidas paredes desmoronarem… ouviu-se um longo e desordenado

estrondo, como o retumbar de mil cataratas… e o fosso fétido e profundo, a meus

pés, fechou-se, tétrica e silenciosamente, sobre os restos da Casa de Usher.

(1) Porfirogênito: Significa, em grego, “nascido na púrpura”. Dizia-se dos filhos dos

antigos imperadores do Oriente nascidos durante o reinado do pai.

(2) Watson, Dr. Percival, Spallanzani e especialmente o Bispo de Llandaff. Ver

Chemical essays, v.V. [Richard Watson (1737 ? 1816), químico inglês e bispo de

Llandaff. James Gates Percival (1795 ? 1856), erudito norte-americano. Lazzaro

Spallanzani (1729 ? 1799), naturalista Italiano.]

(3) Jean Baptiste Louis Gresset (1709 ? 1777), poeta e dramaturgo francês; Niccolò

Maquiavel (1469 ? 1527), político e escritor italiano; Emanuel Swedenborg (1688 ?

1772), cientista e filósofo sueco; Ludvig Holberg (1684 ? 1754), escritor

dinamarquês; Robert Flud (1574 ? 1637), médico inglês; Jean D`Indaginé é a grafia

francesa para Joannes Indagine, pseudônimo de Johann von Hagen (séc XVI),

escritor alemão; Marin Cureau De la Chambre (1596 ? 1669) médico francês; Ludwig

Tieck (1773 ? 1853), escritor alemão; Tommanso Campanella (1568 ? 1639), filósofo

italiano; Nicolás Eymerico (1320 ? 1399), teólogo espanhol; Pomponius Mela (séc. I

d.C.), geógrafo Latino.

Page 52: Contos de Edgar Allan Poe - II

O REI PESTE

Os deuses suportam nos reis, e permitem,

as coisas que odeiam em meio à ralé.

BUCKHURST: A Tragédia de Ferrex e Porrex.

Por volta da meia-noite de um dia do mês de outubro, durante o cavalheiresco

reinado de Eduardo III, dois marinheiros pertencentes a tripulação do Free and Easy

(Livre e Feliz), escuna de comércio que trafegava entre Eclusa (Bélgica) e o Tâmisa,

e então ancorado neste rio, ficaram bem surpresos ao se acharem sentados na ala

duma cervejaria da paróquia de Santo André, em Londres, a qual tinha como

insígnia a tabuleta dum “Alegre Marinheiro”. embora mal construída, enegrecida de

fuligem, acachapada de todos os outros aspectos, semelhante às demais tabernas

daquela época, estava, não obstante, na opinião dos grotescos grupos de

freqüentadores ali dentro espalhados, muito bem adaptada a seu fim.

Dentre aqueles grupos, formavam nossos dois marinheiros, creio eu, o mais

interessante, se não o mais notável.

O que parecia mais velho e a quem seu companheiro se dirigia, chamando-o pelo

característico apelido de Legs (Pernas) era também o mais alto dos dois. Mediria

talvez uns dois metros e dez centímetros de altura e a inevitável conseqüência de

tão grande estatura se via no hábito de andar de ombros curvados. O excesso de

altura era, porém, mais que compensado por deficiências de outra natureza. Era

excessivamente magro e poderia, como afirmavam seus companheiros, substituir,

quando bêbedo, um galhardete no topete do mastro, ou servir de pau de bujarrona,

se não estivesse embriagado. Mas essas pilhérias e outras de igual natureza jamais

produziam, evidentemente, qualquer efeito sobre os músculos cachinadores do

marinheiro. Com as maçãs do rosto salientes, grande nariz adunco, queixo fugidio,

pesado maxilar inferior e grandes olhos protuberantes e brancos, a expressão de

sua fisionomia, embora repassada duma espécie de indiferença intratável por

assuntos e coisas em geral, nem por isso deixava de ser extremamente solene e

séria, fora de qualquer possibilidade de imitação ou descrição. O marujo mais moço

Page 53: Contos de Edgar Allan Poe - II

era, pelo menos aparentemente, o inverso de seu companheiro. Sua estatura não ia

além de um metro e vinte. Um par de pernas atarracadas e arqueadas suportava-lhe

o corpo pesado e rechonchudo, enquanto os braços, descomunalmente curtos e

grossos, de punhos incomuns, pendiam balouçantes dos lados, como as barbatanas

duma tartaruga-marinha. Os olhos pequenos de cor imprecisa, brilhavam-lhe

encravados fundamente nas órbitas. O nariz se afundava na massa de carne, que

lhe envolvia a cara redonda, cheia, purpurina. O grosso lábio superior descansava

sobre o inferior, ainda mais carnudo, com um ar de complacente satisfação pessoal,

mais acentuada pelo hábito que tinha o dono de lamber seus beiços, de vez em

quando. E evidente que ele olhava seu camarada alto com um sentimento meio de

espanto, meio de zombaria, e, quando, às vezes, erguia a vista para encará-lo,

parecia o vermelho sol poente a fitar os penhascos de Ben Nevis. Várias e

aventurosas haviam, porém, sido as peregrinações do digno par, pelas diversas

cervejarias da vizinhança, durante as primeiras horas da noite. Mas os cabedais, por

mais vastos que sejam não podem durar sempre e foi de bolsos vazios que nossos

amigos se aventuraram a entrar na taberna aludida. No momento preciso, pois, em

que esta estória começa, Legs e seu companheiro, Hugh Tarpaulin, estão sentados,

com os cotovelos apoiados na grande mesa de carvalho, em meio da sala e a cara

metida entre as mãos. Olhavam, por trás duma enorme garrafa de humming-stuff a

pagar, as agourentas palavras: Não se fia, que para indignação e espanto deles,

estavam escritas a giz na porta de entrada. Não que o dom de decifrar caracteres

escritos – dom considerado então, entre o povo, pouco menos cabalístico do que a

arte de escrever – pudesse, em estrita justiça, ter sido deixado a cargo dos dois

discípulos do mar; mas havia, para falar a verdade, certa contorção no formato das

letras, uma indescritível guinada no conjunto, que pressagiava, na opinião dos dois

marinheiros uma longa viagem de tempo ruim, e os decidia a, imediatamente na

linguagem alegórica do próprio Legs, “correr às bombas, ferrar todas as velas e

correr com o vento em popa”.

Tendo, conseqüentemente, consumido o que restava da cerveja e abotoado seus

curtos gibões, trataram afinal de saltar para a rua. Embora Tarpaulin houvesse, por

duas vezes, entrado de chaminé adentro, pensando tratar-se da porta, conseguiram

por fim com êxito a escapada, e meia hora depois da meia-noite achavam-se nossos

heróis prontos para outra e correndo a bom correr por uma escura viela, na direção

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da Escada de Santo André, encarniçadamente perseguidos pela taberneira do

“Alegre Marinheiro”.

Periodicamente, durante muitos anos antes e depois da época desta dramática

estória, ressoava por toda a Inglaterra, e mais especialmente na metrópole, o

espantoso grito de: “Peste!” A cidade estava em grande parte despovoada, e

naqueles horríveis bairros das vizinhanças do Tâmisa, onde, entre aquelas vielas e

becos escuros, estreitos e imundos, O Demônio da Peste tinha, como se dizia, seu

berço, a Angústia, o Terror e a Superstição passeavam, como únicos senhores, à

vontade.

Por ordem do rei, estavam aqueles bairros condenados e as pessoas proibidas, sob

pena de morte, de penetrar-lhes a lúgubre solidão. Contudo, nem o decreto do

monarca, nem as enormes barreiras erguidas às entradas das ruas, nem a

perspectiva daquela hedionda morte que, com quase absoluta certeza, se

apoderaria do desgraçado a quem nenhum perigo poderia deter de ali aventurar-se,

impediam que as habitações vazias e desmobiliadas fossem despojadas, pelos

rapinantes noturnos, de coisas como ferro, cobre ou chumbo, que pudessem, de

qualquer maneira, ser transformadas em lucro apreciável. Verificava-se, sobretudo,

por ocasião da abertura anual das barreiras, no inverno, que fechaduras, ferrolhos e

subterrâneos secretos não passavam de fraca proteção para aqueles ricos depósitos

de vinhos e licores que, dados os riscos e incômodos da remoção, muitos dos

numerosos comerciantes, com estabelecimentos na vizinhança tinham consentido

em confiar, durante o período de exílio, a tão insuficiente segurança.

Mas poucos eram, entre o povo aterrorizado, os que atribuíam tais fatos à ação de

mãos humanas. Os espíritos, os duendes da peste, os demônios da febre eram,

para o povo, os autores das façanhas. E tamanhas estórias arrepiantes se contavam

a toda hora que toda a massa de edifícios proibidos ficou, afinal, como que envolta

numa mortalha de horror e os próprios ladrões, muitas vezes, se deixavam tomar de

pavor que suas depredações haviam criado e abandonaram todo o vasto recinto do

bairro proibido, às trevas, ao silêncio, e à morte. Foi uma daquelas terrificas

barreiras já mencionadas e que indicavam estar o bairro adiante sob a condenação

da Peste que deteve, de repente a disparada em que vinham, beco adentro, Legs e

Page 55: Contos de Edgar Allan Poe - II

o digno Tarpaulin. Arrepiar caminho estava fora de cogitação e não havia tempo a

perder, pois os perseguidores se achavam quase a seus calcanhares. Para

marinheiros chapados era um brinquedo subir por aquela tosca armação de

madeira; exasperados pela dupla excitação do licor e da corrida, pularam sem

hesitar para dentro do recinto e, continuando sua carreira de ébrios, com berros e

urros, em breve se perderam naquelas profundezas intrincadas e pestilentas .

Não se achassem eles tão embriagados, a ponto de haverem perdido o senso moral,

o horror de sua situação lhes teria paralisado os passos vacilantes. O ar era frio e

nevoento. As pedras do calçamento, arrancadas do seu leito, jaziam em absoluta

desordem, em meio do capim alto e viçoso, que lhes subia em torno dos pés e

tornozelos.

Casas desmoronadas obstruíam as ruas. Os odores mais fétidos e mais deletérios

dominavam por toda a parte, e, graças àquela luz lívida que, mesmo à meia-noite,

nunca deixa de emanar duma atmosfera pestilencial e brumosa, podiam-se

perceber, jacentes nos atalhos e becos, ou apodrecendo nas casas sem janelas, as

carcaças de muitos saqueadores noturnos, detidos pela mão da peste, no momento

mesmo da perpetração de seu roubo.

Mas não estava no poder de imagens, sensações ou obstáculos como esses deter a

corrida de homens que, naturalmente corajosos e, especialmente naquela ocasião,

repletos de coragem e de humming-stuff, teriam ziguezagueado, tão eretos quanto

lhes permitia seu estado, sem temor, até mesmo dentro das fauces da morte. Na

frente, sempre na frente, caminhava o disforme Legs, fazendo aquele deserto solene

soar e ressoar, com berros semelhantes aos terríveis urros de guerra dos índios; e

para a frente, sempre para a frente rebolava o atarracado Tarpaulin, agarrado ao

gibão de seu companheiro mais ativo, levando-lhe enorme vantagem nos tenazes

esforços, à moda de música vocal, com seus mugidos taurinos arrancados das

profundezas de seus pulmões estentóricos.

Haviam agora evidentemente alcançado o reduto da peste. A cada passo, ou a cada

tropeção, o caminho que seguiam se tornava mais fedorento e mais horrível, as

veredas mais estreitas e mais intrincadas. Enormes pedras e vigas que caiam de

Page 56: Contos de Edgar Allan Poe - II

repente dos telhados desmoronados demonstravam, com sua queda soturna e

pesada, a altura prodigiosa das casas circunvizinhas; e quando lhes era necessário

imediato esforço para forçar passagem através de freqüentes montões de caliça,

não era raro que a mão caísse sobre um esqueleto ou pousasse num cadáver ainda

com carne.

De repente, ao tropeçarem os marujos, à entrada dum elevado e sinistro edifício, um

berro, mais retumbante que os outros, irrompeu da garganta do excitado Legs e lá

de dentro veio uma em rápida sucessão de ferozes e diabólicos guinchos,

semelhantes a risadas. Sem se intimidarem com aqueles sons que, pela sua

natureza, pela ocasião e pelo lugar, teriam gelado todo o sangue de corações

menos irrevogavelmente incendiados, o par de bêbados embarafustou pela porta,

escancarando-a e, cambaleantes, com um chorrilho de pragas, se viram em meio

dum montão de coisas.

A sala em que se encontravam era uma loja de cangalheiro; mas um alçapão, a um

canto do soalho, perto da entrada, dava para uma longa fileira de adegas, cujas

profundezas, reveladas pelo ocasional rumor de garrafas que se partiam, estavam

bem sortidas do conteúdo apropriado. No meio da sala havia uma mesa, em cujo

centro se erguia uma enorme cuba, cheia, ao que parecia, de ponche. Garrafas de

vários vinhos e cordiais, juntamente com jarros, pichéis e garrafões de todo formato

e qualidade, estavam espalhadas profusamente pela mesa. Em torno desta via-se

um grupo de seis indivíduos sentados em catafalcos. Vou tentar descrevê-los um por

um.

Em frente à porta de entrada e em plano acima dos companheiros estava sentado

um personagem que parecia ser o presidente da mesa. Era descarnado e alto, e

Legs sentiu-se confuso ao notar nele um aspecto mais emaciado do que o seu.

Tinha o rosto açafroado, mas nenhum de seus traços, exceção feita de um, era

bastante característico para merecer descrição especial. Aquele traço único

consistia numa fronte tão insólita e tão horrivelmente elevada que tinha a aparência

de um boné ou coroa de carne acrescentada à cabeça natural. Sua boca, enrugada,

encovava-se numa expressão de afabilidade horrível, e seus olhos, bem como os

olhos de todos quantos se achavam em torno à mesa, tinham aquele humor vítreo

Page 57: Contos de Edgar Allan Poe - II

da embriaguez. Esse cavalheiro trajava, da cabeça aos pés, mortalha de veludo de

seda negra, ricamente bordada, que lhe envolvia, com displicência, o corpo à moda

duma capa espanhola. Estava com a cabeça cheia de plumas negras mortuárias,

que ele fazia ondular para lá e para cá, com um ar afetado e presunçoso e na mão

direita segurava um enorme fêmur humano, com o qual parecia ter acabado de bater

em algum dos presentes para que cantasse. Defronte dele, e de costas para a porta,

estava uma mulher de fisionomia não menos extraordinária. Embora tão alta quanto

o personagem que acabamos de descrever, não tinha direito de se queixar da

mesma magreza anormal. Encontrava-se, evidentemente, no derradeiro grau de

uma hidropisia e seu todo era bem semelhante ao imenso pipote de cerveja-de-

outubro que se erguia, de tampa arrombada, a seu lado, a um canto do aposento.

Seu rosto era excessivamente redondo, vermelho e cheio e a mesma peculiaridade,

ou antes falta de peculiaridade, ligada à sua fisionomia, que já mencionei no caso do

presidente, isto é, somente uma feição de seu rosto era suficientemente destacada

para merecer caracterização especial. De fato, o perspicaz Tarpaulin notou logo que

a mesma observação podia ser feita a respeito de um dos indivíduos ali presentes.

Cada um deles parecia monopolizar alguma porção particular de fisionomia. Na

dama em questão, essa parte era a boca. Começando na orelha direita, rasgava-se,

em aterrorizante fenda, até a esquerda. Ela fazia, no entanto, todos os esforços para

conservar a boca fechada, com ar de dignidade. Seu traje consistia num sudário,

recentemente engomado e passado a ferro, chegando-lhe até o queixo, com uma

gola encrespada de musselina de cambraia. À sua direita sentava-se uma mocinha

chocha, a quem ela parecia amadrinhar. Essa delicada criaturinha deixava ver, pelo

tremor de seus dedos descarnados, pela lívida cor de seus lábios e pela leve

mancha héctica que lhe tingia a tez, aliás cor de chumbo, sintomas de tuberculose

galopante. Um ar de extrema distinção, porém, dominava em toda a sua aparência.

Usava, duma maneira graciosa e negligente, uma larga e bela mortalha da mais fina

cambraia, indiana. Seu cabelo caía-lhe em cachos sobre o pescoço. Um leve sorriso

pairava-lhe nos lábios, mas seu nariz extremamente comprido, delgado, sinuoso,

flexível e cheio de borbulhas, acavalava por demais sobre o lábio inferior; e, a

despeito da delicada maneira pela qual ela, de vez em quando, o movia para um

lado e outro com a língua, dava-lhe à fisionomia uma expressão um tanto quanto

equívoca.

Page 58: Contos de Edgar Allan Poe - II

Do outro lado, e à esquerda da dama hidrópica, estava sentado um velho pequeno,

inchado, asmático e gotoso, cujas bochechas lhe repousavam sobre os ombros

como dois imensos odres de vinho do Porto. De braços cruzados e uma perna

enfaixada posta sobre a mesa, parecia achar-se com direito a alguma consideração.

Evidentemente orgulhava-se bastante de cada polegada de sua aparência pessoal,

mas sentia mais especial deleite em chamar a atenção para seu sobretudo de cores

vistosas. Para falar a verdade, não deveria este ter custado pouco dinheiro e lhe

assentava esplendidamente bem, talhado como estava em uma dessas cobertas de

seda, curiosamente bordadas, pertencentes àqueles gloriosos escudos que, na

Inglaterra e noutros lugares, são ordinariamente suspensos, em algum lugar patente,

nas residências de aristocratas falecidos.

Junto dele, e à direita do presidente, via-se um cavalheiro, com compridas meias

brancas e ceroulas de algodão. Seu corpo tremelicava de maneira ridícula, num

acesso daquilo que Tarpaulin chamava “os terrores”. Seus queixos, recentemente

barbeados, estavam estreitamente atados por uma faixa de musselina, e, tendo os

braços amarrados nos pulsos da mesma maneira, não lhe era possível servir-se

muito à vontade, dos licores que se achavam sobre a mesa, precaução necessária,

na opinião de Legs, graças à expressão caracteristicamente idiota e tremulenta de

seu rosto. Sem embargo, um par de prodigiosas orelhas, que sem dúvida era

impossível ocultar, alteava-se na atmosfera do aposento e, de vez em quando,

arrebitavam-se espasmodicamente ao rumor das rolhas que espoucavam. Defronte

dele, sentava-se o sexto e último personagem, de aparência rígida que, sofrendo de

paralisia, devia sentir-se, falando sério, muito mal à vontade nos seus trajes nada

cômodos. Essa roupa um tanto singular, consistia em um novo e belo ataúde de

mogno. Sua tampa ou capacete apertava-se sobre o crânio do sujeito e estendia-se

sobre ele, à moda de um elmo, dando-lhe a todo o rosto um ar de indescritível

interesse. Cavas para os braços tinham sido cortadas dos lados, mais por

conveniência que por elegância; apesar disso, o traje impedia seu proprietário de se

sentar direito como seus companheiros. E como se sentasse reclinado de encontro a

um cavalete, formando um ângulo de quarenta e cinco graus, um par de enormes

olhos esbugalhados revirava suas apavorantes escleróticas para o teto, num

absoluto espanto de sua própria enormidade.

Page 59: Contos de Edgar Allan Poe - II

Diante de cada um dos presentes estava a metade dum crânio, usada como copo.

Por cima, pendia um esqueleto humano, pendurado duma corda amarrada numa

das pernas e presa a uma argola no forro. A outra perna, sem nenhuma amarra,

saltava do corpo em angulo reto, fazendo flutuar e girar toda a carcaça

desconjuntada e chocalhante, ao sabor de qualquer sopro de vento que penetrasse

no aposento. O crânio daquela hedionda coisa continha certa quantidade de carvão

em brasa, que lançava uma luz vacilante, mas viva, sobre a cena, enquanto ataúdes

e outras mercadorias de casa mortuária empilhavam-se até o alto, em toda a sala e

contra as janelas, impedindo assim que qualquer raio de luz se projetasse na rua.

À vista de tão extraordinária assembléia e de seus mais extraordinários adornos,

nossos dois marujos não se conduziram com aquele grau de decoro que era de

esperar. Legs, encostando-se à parede junto da qual se encontrava, deixou cair o

queixo ainda mais baixo do que de costume e arregalou os olhos até mais não

poder, quanto Hugh Tarpaulin, abaixando-se a ponto de colocar o nariz ao nível da

mesa e dando palmadas nas coxas, explodiu numa desenfreada e extemporânea

gargalhada, que mais parecia um rugido longo, poderoso e atroador.

Sem, no entanto, ofender-se diante de procedimento tão excessivamente grosseiro,

o escanifrado presidente sorriu com toda a graça para os intrusos, fazendo-lhes um

gesto cheio de dignidade com a cabeça empenachada de negro, e, levantando-se,

pegou-os pelos braços e levou-os aos assentos que alguns dos outros presentes

tinham colocado, enquanto isso, para que eles estivessem a cômodo. Legs

nenhuma resistência ofereceu a tudo isso sentando-se no lugar indicado, ao passo

que o galanteador Hugh removendo cavalete de ataúde do lugar perto da cabeceira

da mesa para junto da mocinha tuberculosa, da mortalha ondulante derreou-se a

seu lado, com grande júbilo, e, emborcando um crânio de vinho vermelho, esvaziou-

o em honra de suas mais íntimas relações. Diante de tamanha presunção, o

cavalheiro teso do ataúde mostrou-se excessivamente exasperado, e sérias

conseqüências poderiam ter-se seguido não houvesse o presidente, batendo com o

bastão na mesa, distraído a atenção de todos os presentes para o seguinte discurso:

- É nosso dever nosso na atual feliz ocasião.

Page 60: Contos de Edgar Allan Poe - II

- Pare com isso! – interrompeu Legs, com toda a seriedade. Cale essa boca, digo-

lhe eu, e diga-nos que diabos são vocês todos e que estão fazendo aqui, com essas

farpelas de diabos sujos e bebendo a boa pinga armazenada para o inverno pelo

meu honrado camarada Will Wimble, o cangalheiro!

À vista daquela imperdoável amostra de má educação, toda a esquipática

assembléia se soergueu e emitiu aqueles mesmos rápidos e sucessivos guinchos

ferozes e diabólicos que já haviam chamado antes a atenção dos marinheiros. O

presidente, porém, foi primeiro a retomar sua compostura e por fim, voltando-se para

Legs com grande dignidade, recomeçou:

- De muito boa-vontade satisfaremos qualquer curiosidade razoável da parte de

hóspedes tão ilustres, embora não convidados. Ficai, pois, sabendo que, nestes

domínios, sou o monarca e governo, com indivisa autoridade, com o título de “Rei

Peste I.” Esta sala, que supondes injuriosamente ser a loja do cangalheiro Will

Wimble, homem que não conhecemos e cujo sobrenome plebeu jamais ressoara,

até esta noite, aos nossos reais ouvidos… esta sala, repito, é a Sala do Trono de

nosso palácio. Consagrada aos conselhos de nosso reino e outros destinos de

natureza sagrada e superior.

A nobre dama sentada à nossa frente é a Rainha Peste, nossa Sereníssima Esposa.

Os outros personagens ilustres que vedes pertencem todos à nossa família e usam

as insígnias do sangue real nos respectivos títulos de: “Sua Graça o Arquiduque

Peste-Ifero”, “Sua Graça o Duque Pest- Ilencial”, “Sua Graça o Duque Tem-

Pestuoso” e “Sua Serena Alteza a Arquiduquesa Ana-Peste”.

Quanto à vossa pergunta – continuou ele -, a respeito do que nos trás aqui reunidos

em conselho, ser-nos-ia lícito responder que, concerne e concerne exclusivamente,

ao nosso próprio e particular interesse e não tem importância para ninguém mais

que não nós mesmos. Mas em consideração aos direitos de que, na qualidade de

hóspedes e estrangeiros, possais julgar-vos merecedores, explicar-vos-emos

entanto, que estamos aqui, esta noite, preparados por intensa pesquisa e acurada

investigação, a examinar, analisar e determinar, indubitavelmente, o indefinível

espírito, as incompreensíveis qualidades e natureza desses inestimáveis tesouros

Page 61: Contos de Edgar Allan Poe - II

do paladar que são os vinhos, cervejas e licores desta formosa metrópole. Assim

procedemos não só para melhorar nossa própria situação, mas para o bem-estar

verdadeiro daquela soberana sobrenatural que reina sobre todos nós, cujos

domínios não têm limites e cujo nome é “Morte”.

- Cujo nome é Davi Jones! – exclamou Tarpaulin, oferecendo à sua vizinha um

crânio de licor e emborcando ele próprio um segundo.

- Lacaio profanador! – exclamou o presidente, voltando agora para o digno Hugh. –

Miserável e execrando profanador. Dissemos que, em consideração àqueles direitos

que, mesmo na tua imunda pessoa, não nos sentimos com inclinação para violar,

condescendemos em responder às tuas grosseiras e desarrazoadas indagações.

Contudo, tendo em vista a vossa profana intrusão no recinto de nossos conselhos,

acreditamos ser de nosso dever multar-te a ti e a teu companheiro, num galão de

Black Strap, que bebereis pela prosperidade de nosso reino, dum só gole e de

joelhos; logo depois estareis livres para continuar vosso caminho ou permanecerdes

e serdes admitidos aos privilégios de nossa mesa, se acordo com vossos

respectivos gostos pessoais.

- Será coisa de absoluta impossibilidade – replicou Legs, a quem a imponência e a

dignidade do Rei Peste I tinham evidentemente inspirado alguns sentimentos de

respeito, e que se levantara, ficando de pé junto da mesa, enquanto aquele falava.

- Será, com licença de Vossa Majestade, coisa extremamente impossível arrumar no

meu porão até mesmo a quarta parte desse tal licor que vossa Majestade acaba de

mencionar. Não falando das mercadorias colocadas esta manhã a bordo para servir

de lastro, e não mencionando as várias cervejas e licores embarcados esta noite em

vários portos, tenho, presentemente, uma carga completa de humming-tuff, entrada

e devidamente paga na taberna do “Alegre Marinheiro”. De modo que há de Vossa

Majestade ter a bondade de tomar a tenção como coisa realizada, pois não posso de

modo algum, nem quero, engolir outro trago e muito menos um trago dessa

repugnante água-de-porão que responde ao nome de Black Strap.

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- Pare com isso! – interrompeu Tarpaulin, espantado não só pelo tamanho do

discurso de seu companheiro como pela natureza de sua recusa. – Pare com isso,

seu marinheiro de água doce! Repito, Legs, pare com esse palavreado! O meu

casco está ainda leve, embora, confesse-o, esteja o seu mais pesado em cima que

em baixo. Quanto à estória de sua parte da carga, em vez de provocar uma

borrasca, acharei jeito de arrumá-la eu mesmo no porão, mas…

- Este modo de proceder – interferiu o presidente – não está de modo algum em

acordo com os termos da multa ou sentença que é de natureza média e não pode

ser alterada nem apelada. As condições que impusemos devem ser cumpridas à

risca, e isto sem um instante de hesitação… sem o quê, decretamos que sejais

amarrados, pescoços e calcanhares juntos, e devidamente afogados, rebeldes,

naquela pipa de cerveja-de-outubro!

- Que sentença! Que sentença! Que sentença justa e direita! decreto glorioso! A

condenação mais digna, mais irrepreensível, sagrada! – gritaram todos os membros

da família Peste ao mesmo tempo.

O rei franziu a testa em rugas inumeráveis; o homenzinho gotoso soprava, como um

par de foles; a dona da mortalha de cambraia movia o nariz para um lado para o

outro; o cavalheiro de ceroulas de algodão arrebitou as orelhas; a mulher do sudário

ofegava como um peixe agonizante, e o sujeito do ataúde entesou-se mais,

arregalando os olhos para cima.

- Oh, uh, uh! – ria Tarpaulin, entre dentes, sem notar a excitação geral. – Uh, uh, …

Uh, uh, uh… Estava eu dizendo quando aqui o Sr. Rei Peste veio meter seu

bedelho, que a respeito da questão de dois ou três galões mais ou menos de Black

Strap era uma bagatela para um barco sólido como eu que não está

sobrecarregado; e quando se tratar de beber à saúde do Diabo (que Deus lhe

perdoe) e de me pôr de joelhos diante dessa horrenda majestade aqui presente, que

eu conheço tão bem como sei que sou um pecador, e que não é outro senão Tim

Hurlygurly, o palhaço!… Ora essa, é muito outra coisa, e vai muito além de minha

compreensão.

Page 63: Contos de Edgar Allan Poe - II

Não lhe permitiram que terminasse tranqüilamente seu discurso ao nome de Tim

Hurlygurly, todos os presente pularam dos assentos.

- Traição! – gritou Sua Majestade o Rei Peste I.

- Traição! – disse o homenzinho gotoso.

- Traição! – esganiçou a Arquiduquesa Ana-Peste.

- Traição! – murmurou o homem dos queixos amarrados.

- Traição! – grunhiu o sujeito do ataúde.

- Traição, traição! – berrou Sua Majestade, a mulher da bocarra. E, agarrando o

infeliz Tarpaulin pela traseira das calças, o qual estava justamente enchendo outro

crânio de licor, ergueu-o no ar e deixou-o bem alto no ar, e deixou-o cair sem

cerimônia no imenso barril aberto de sua cerveja predileta. Boiando para lá e para

cá, durante alguns segundos, como uma maçã numa tigela de ponche, desapareceu

afinal no turbilhão de espuma que, no já efervescente licor, haviam provocado seus

esforços de safar-se.

Não se resignou, porém, o marinheiro alto com a derrota de seu camarada.

Empurrando o Rei Peste para dentro do alçapão aberto, Legs deixou cair a tampa do

alçapão sobre ele, com uma praga, e correu para o meio da sala. Ali, puxando para

baixo o esqueleto que pendia sobre a mesa, com tamanha força e vontade que o fez

que conseguiu fazer saltar os miolos do homenzinho gotoso, ao tempo que morriam

os derradeiros lampejos de luz dentro da sala.

Precipitando-se, então, com toda a sua energia, contra a pipa fatal cheia de cerveja-

de-outubro e de Hugh Tarpaulin, revirou-a, num instante, de lado. Dela jorrou um

dilúvio de licor tão impetuoso, violento, tão irresistível, que a sala ficou inundada de

parede a parede, as mesas carregadas viraram de pernas para o ar, os cavaletes

rebolaram uns por cima dos outros, a tina de ponche foi lançada na chaminé da

lareira… e as damas caíram com ataques histéricos. Montes de artigos fúnebres

boiavam. Jarros, pichéis e garrafões confundiam-se, numa misturada enorme, e as

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garrafas de vime embatiam-se, desesperadamente, com cantis trançados. O homem

dos tremeliques afogou-se imediatamente. O sujeito flutuava no seu caixão… e o

vitorioso Legs, agarrando pela cintura pela criatura a mulher gorda do sudário,

arrastou-a para a rua e em linha reta, a direção do Free and Easy, seguido, a bom

pano, pelo temível Hugh Tarpaulin, que, tendo espirrado três ou quatro vezes,

ofegava e bufava atrás dele, puxando a Arquiduquesa Ana-Peste.

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SILÊNCIO

Escuta – disse o demônio, pousando a mão sobre a minha cabeça. – O país de que

te falo é um país lúgubre, na Líbia, às margens do rio Zaire. E ali não há repouso

nem silêncio. As águas do rio, amarelas e insalubres, não correm para o mar, mas

palpitam sempre sob o olhar ardente do Sol, com um movimento convulsivo. De

cada lado do rio, sobre as margens lodosas, estende-se ao longe um deserto

sombrio de gigantescos nenúfares, que suspiram na solidão, erguendo para o céu

os longos pescoços espectrais e meneando tristemente as cabeças sempiternas. E

do meio deles sai um sussurro confuso, semelhante ao murmúrio de uma torrente

subterrânea. E os nenúfares, voltados uns para os outros, suspiram na solidão.

E o seu império tem por limite uma floresta alta, cerrada, medonha! Lá, – como as

vagas em torno das Híbridas, pequenos arbustos agitam-se sem repouso, contudo

não há vento no céu! – e as grandes árvores primitivas oscilam continuamente, com

um estrépito enorme. E dos seus cumes elevados filtra, gota a gota, um orvalho

eterno. A seus pés contorcem-se num sono agitado, flores desconhecidas –

venenosas. E por cima das suas cabeças, com um ruge-ruge retumbante,

precipitam-se as nuvens negras a caminho do ocidente, até rolarem as cataratas

para trás da muralha abrasada do horizonte. E nas margens do rio Zaire há repouso

nem silêncio.

Era noite e a chuva caía enquanto caía, era água mas quando chegava ao chão era

sangue! E eu estava na planície lodosa, por entre os nenúfares, vendo a chuva que

caía sobre mim. E os nenúfares voltados uns para os outros suspira na solenidade

da sua desolação.

De repente apareceu a lua através do nevoeiro fúnebre vinha toda carmesim! e o

meu olhar caiu sobre um rochedo enorme, sombrio, que se erguia a borda do Zaire,

refletindo a claridade da lua; era um rochedo sombrio sinistro de uma altura

descomunal!

Sobre o seu cume estavam gravadas algumas letras. Caminhei através dos

pântanos de nenúfares, até a margem para ler as letras gravadas na pedra; mas não

Page 66: Contos de Edgar Allan Poe - II

pude decifrá-las. Ia voltar quando a lua brilhou mais viva e mais vermelha; olhando

outra vez para o rochedo distingui só caracteres. E esses caracteres diziam:

desolação.

Levantei os olhos; na crista do rochedo estava um homem de figura majestosa.

Pendia-lhe dos ombros a antiga toga romana, cobrindo-se até aos pés. Os contornos

da sua pessoa não se distinguiam, mas as feições eram as da divindade porque

brilhavam através da escuridão da noite a do nevoeiro. Tinha a fronte alta e

pensativa, os olhos profundos e melancólicos. Nas rugas do semblante, liam-se as

legendas da desgraça e da fadiga o aborrecimento da humanidade e o amor da

solidão. Escondi-me no meio dos nenúfares para ver o que aquele homem fazia ali.

E o homem assentou-se no rochedo, deixou pender a cabeça sobre a mão e

espraiou a vista pela soledade, contemplou os arbustos buliçosos e as grandes

árvores primitivas; depois, ergueu os olhos para a céu a para a lua carmesim. Eu

observava as ações do homem escondido no meio dos nenúfares e o homem tremia

na solidão. Todavia a noite avançava e ele continuava assentado sobre o rochedo.

Então o homem desviou os olhos do céu para o rio lúgubre para as águas amarelas

do Zaire, e para as legiões sinistras dos nenúfares; escutou-lhes os suspiros

melancólicos e as oscilações murmurantes E eu o espreitava sempre, do meu

esconderijo e o homem tremia na solidão. Todavia a noite avançava e ele

continuava assentado sobre o rochedo.

Embrenhei-me na profundezas longínquas do pântano, caminhei sobre e as flores

dos nenúfares e chamei os hipopótamos que habitavam a espessura do bosque. E

os hipopótamos ouviram o meu chamado e vieram os Behemothes até o pé do

rochedo e soltaram um rugido medonho. E eu, escondido por entre os nenúfares,

espreitava os movimentos do homem e o homem tremia na solidão. Todavia a noite

avançava e ele continuava assentado sobre o rochedo.

Então invoquei os elementos e uma tempestade horrorosa rosa sobreveio. E o céu

tornou-se lívido pela violência da tempestade e a chuva caía em torrente sobre a

cabeça do homem e as ondas do rio transbordavam e o rio espumava enfurecido e

Page 67: Contos de Edgar Allan Poe - II

os nenúfares suspiravam com mais força, e a floresta debatia-se com o vento, e o

trovão ribombava e os raios flamejavam, e o rochedo estremecia.

Irritei-me e amaldiçoei a tempestade, o rio e os nenúfares, o vento e as floresta, o

céu e o trovão. E na minha maldição os elementos emudeceram e a lua parou na

sua carreira, e o trovão expirou e o raio deixou de faiscar, e as nuvens ficaram

imóveis e as águas tornaram n repousar no seu imenso leito, e as árvores cessaram

de se agitar, e os nenúfares não suspiraram mais e na floresta não se tornou a ouvir

o mínimo murmúrio, nem a sombra de um som no vasto deserto sem limites. Olhei

para os caracteres escritos no rochedo e os caracteres diziam agora: Silêncio.

Volvi outra vez os olhos para o homem, e o seu rosto estava pálido de terror. De

repente, levantou a cabeça, ergueu-se sobre o rochedo e pôs o ouvido à escuta.

Mas não se ouviu nem uma voz no deserto ilimitado. E os caracteres gravados no

rochedo diziam sempre: Silêncio. E o homem estremeceu e fugiu e para tão longe

fugiu que jamais o tornei a ver.

Ora, os livros dos magos, os melancólicos livros dos magos encerram belos contos,

esplêndidas histórias do céu, da terra e do mar poderosos; dos gênios que têm

reinado sobre a terra, sobre o mar e sobre o céu sublime. Há muita ciência na

palavra das Sibilas. E das florestas sombrias de Dodona saíam outrora oráculos

profundos.

Mas jamais se ouviu uma história tão espantosa como esta! Foi o demônio que ma

contou, assentado ao um lado, na solidão do túmulo. Quando acabou de falar,

desatou a rir e como não pudesse rir com ele, amaldiçoou-me. Então o lince, que

vive eternamente no túmulo, saiu do seu esconderijo e veio deitar-se aos pés do

demônio, olhando-o fixamente nas pupilas.

Page 68: Contos de Edgar Allan Poe - II

SOMBRA

Vós que me ledes por certo estais ainda entre os vivos; mas eu que escrevo terei

partido há muito para a região das sombras. Por que de fato estranhas coisas

acontecerão, e coisas secretas serão conhecidas, e muitos séculos passarão antes

que estas memórias caiam sob vistas humanas. E, ao serem lidas, alguém haverá

que nelas não acredite, alguém que delas duvide e, contudo, uns poucos

encontrarão muito motivo de reflexão nos caracteres aqui gravados com estiletes de

ferro. O ano tinha sido um ano de terror e de sentimentos mais intensos que o terror,

para os quais não existe nome na Terra. Pois muitos prodígios e sinais haviam se

produzido, e por toda a parte, sobre a terra e sobre o mar, as negras asas da Peste

se estendiam. Para aqueles, todavia, conhecedores dos astros, não era

desconhecido que os céus apresentavam um aspecto de desgraça, e para mim, o

grego Oinos, entre outros, era evidente que então sobreviera a alteração daquele

ano 794, em que, à entrada do Carneiro, o planeta Júpiter entra em conjunção com

o anel vermelho do terrível Saturno. O espírito característico do firmamento, se muito

não me engano, manifestava-se não somente no orbe físico da Terra, mas nas

almas, imaginações e meditações da Humanidade. Éramos sete, certa noite, em

torno de algumas garrafas de rubro vinho de Quios, entre as paredes do nobre

salão, na sombria cidade de Ptolemais. Para a sala em que nos achávamos a única

entrada que havia era uma alta porta de feitio raro e trabalhada pelo artista Corinos,

aferrolhada por dentro. Negras cortinas, adequadas ao sombrio aposento, privavam-

nos da visão da lua, das lúgubres estrelas e das ruas despovoadas; mas o

ressentimento e a lembrança do flagelo não podiam ser assim excluídos.

Havia em torno de nós e dentro de nós coisas das quais não me é possível dar

conta, coisas materiais e espirituais: atmosfera pesada, sensação de sufocamento,

ansiedade; e, sobretudo, aquele terrível estado de existência que as pessoas

nervosas experimentam quando os sentidos estão vivos e despertos, e as

faculdades do pensamento jazem adormecidas. Um peso mortal nos acabrunhava.

Oprimia nossos ombros, os móveis da sala, os copos em que bebíamos. E todas se

sentiam opressas e prostradas, todas as coisas exceto as chamas das sete

lâmpadas de ferro que iluminavam nossa orgia. Elevando-se em filetes finos de luz,

assim que permaneciam, ardendo, pálidas e imotas. E no espelho que seu fulgor

Page 69: Contos de Edgar Allan Poe - II

formava sobre a redonda mesa de ébano a que estávamos sentados, cada um de

nós, ali reunidos, contemplava o palor de seu próprio rosto e o brilho inquieto nos

olhos abatidos de seus companheiros. Não obstante, ríamos e estávamos alegres, a

nosso modo – que era histérico – , e cantávamos as canções de Anacreonte – que

são doidas -, e bebíamos intensamente, embora o vinho purpurino nos lembrasse a

cor do sangue. Pois ali havia ainda outra pessoa em nossa sala, o jovem Zoilo.

Morto, estendido a fio comprido, amortalhado, era como o gênio e o demônio da

cena. Mas ah! Não tomava ele parte em nossa alegria! Seu rosto, convulsionado

pela doença, e seus olhos, em que a Morte havia apenas extinguido metade do fogo

da peste, pareciam interessar-se pela nossa alegria,, na medida em que, talvez,

possam os mortos interessar-se pela alegria dos que têm de morrer. Mas embora

eu, Oinos, sentisse os olhos do morto cravados sobre mim, ainda assim obrigava-me

a não perceber a amargura de sua expressão. E mergulhando fundamente a vista

nas profundezas do espelho de ébano, cantava em voz alta e sonorosa as canções

do filho de Teios. Mas, Pouco a pouco, minhas canções cessaram e seus ecos,

ressoando ao longe, entre os reposteiros negros do aposento, tornavam-se fracos e

indistintos, esvanecendo-se. E eis que dentre aqueles negros reposteiros, onde ia

morrer o rumor das canções, se destacou uma sombra negra e imprecisa, uma

sombra tal como a da lua quando baixa no céu, e se assemelha ao vulto dum

homem: mas não era a sombra de um homem, nem a de um deus, nem a de

qualquer outro ente conhecido. E, tremendo um instante entre os reposteiros do

aposento, mostrou-se afinal plenamente sobre a superfície da porta de ébano. Mas a

sombra era vaga, informe, imprecisa, e não era sombra nem de homem, nem de

deus, de deus da

Grécia, de deus da Caldéia, de deus egípcio. E a sombra permanecia sobre a porta

de bronze, por baixo da cornija arqueada, e não se movia, nem dizia palavra

alguma, mas ali ficava parada e imutável. Os pés do jovem Zoilo, amortalhado,

encontravam-se, se bem me lembro, na porta sobre a qual a sombra repousava.

Nós, porém, os sete ali reunidos, tendo avistado a sombra no momento em que se

destacava dentre os reposteiros, não ousávamos olhá-la fixamente, mas

baixávamos os olhos e fixávamos sem desvio as profundezas do espelho de ébano.

E afinal, eu, Oinos, pronunciando algumas palavras em voz baixa, indaguei da

sombra seu nome e lugar de nascimento. E a sombra respondeu: “Eu sou a

Page 70: Contos de Edgar Allan Poe - II

SOMBRA e minha morada está perto das catacumbas de Ptolemais, junto daquelas

sombrias planícies infernais que orlam o sujo canal de Caronte”. E então, todos sete,

erguemo-nos, cheios de horror, de nossos assentos, trêmulos, enregelados,

espavoridos, porque o tom da voz da sombra não era de um só ser, mas de uma

multidão de seres e, variando suas inflexões, de sílaba para sílaba, vibrava aos

nossos ouvidos confusamente, como se fossem as entonações familiares e bem

relembradas dos muitos milhares de amigos que a morte ceifara.

Page 71: Contos de Edgar Allan Poe - II

WILLIAM WILSON

Que me seja permitido, no momento, chamar-me William Wilson. A página em

branco, que tenho diante de mim, Não deve ser manchada com meu verdadeiro

nome. Esse nome já tem sido demais objeto de desprezo, de horror e de ódio para

minha família. Os ventos indignados Não têm divulgado, até nas mais longínquas

regiões do globo, a sua incomparável infâmia? Oh! de todos os proscritos, o

proscrito mais abandonado! ? não estás morto para sempre a este mundo, às suas

honras, suas flores e aspirações douradas? ? e uma nuvem densa, lúgubre,

ilimitada, não pende eternamente entre tuas esperanças o céu?

Não desejaria, mesmo que pudesse, encerrar hoje, nestas páginas, a lembrança dos

meus últimos anos de indizível miséria e crimes imperdoáveis. Esse período recente

de minha vida alcançou subitamente um auge de torpeza. da qual quero apenas

determinar a origem. Os homens, em geral, tornam-se vis gradualmente. Mas, de

mim, toda virtude se desprendeu num minuto, de repente, como um manto. Da

perversidade relativamente comum, encontrei-me, a. passo de gigante, em

enormidades maiores que as de Heliogábalo. Permitam-me contar o acaso, o

acidente único que me trouxe essa maldição. A morte se aproxima e a sombra que a

precede lançou uma influência suavizadora em meu coração. Passando através do

sombrio vale, anseio pela simpatia ? ia dizer piedade ? de meus semelhantes.

Desejaria persuadi-los de que fui, de certa maneira, o escravo de circunstâncias que

desafiavam todo o controle humano. Desejaria que descobrissem para mim, nos

detalhes que lhes vou dar, algum pequeno oásis de fatalidade, num deserto de

erros. Queria que concordassem ? se é que não podem recusar-se a concordar que,

embora este mundo tenha conhecido grandes tentações, jamais um homem foi

tentado assim e certamente jamais sucumbiu desta maneira. Será por isso que não

conheceu os mesmos sofrimentos? Na verdade não terei vivido num sonho? Não

estarei morrendo vítima do horror e do mistério das mais estranhas de todas as

visões sublunares?

Descendo de uma raça que se distinguiu, em todos os tempos, por um

temperamento imaginativo e facilmente impressionável; e minha primeira infância

provou que eu herdara em cheio o caráter de minha família. Avançando em idade,

esse caráter desenvolveu-se com mais força, tornando-se, por várias razões, uma

causa de séria inquietação para meus amigos e de prejuízo positivo para mim

Page 72: Contos de Edgar Allan Poe - II

mesmo. Tornei-me voluntarioso, dado aos mais selvagens caprichos, fui presa de

paixões indomáveis. Meus pais, que eram de espírito fraco, e atormentados pelos

defeitos constitutivos da mesma natureza, pouco podiam fazer para deter as

tendências más que me caracterizavam. Fizeram algumas tentativas fracas, mal

dirigidas, que fracassaram completamente e que para mim trouxeram um triunfo

completo. A partir desse momento, minha voz foi uma lei doméstica e, numa idade

em que poucas crianças deixam de obedecer à disciplina, fui abandonado ao meu

livre arbítrio e tornei-me senhor de todas as minhas ações exceto de nome.

Minhas primeiras impressões da vida de estudante ligam-se a uma vasta e

extravagante casa do estilo elisabetano, numa aldeia sombria da Inglaterra,

decorada de numerosas árvores gigantescas e nodosas e da qual todas as casas

eram excessivamente antigas. Parecia, na verdade, um lugar de sonho, essa velha

cidade venerável, bem própria para encantar o espírito. Neste momento, mesmo,

sinto na imaginação o estremecimento do frescor de suas avenidas profundamente

sombreadas, respiro as emanações de seus mil bosques e tremo ainda com uma

indefinível volúpia à nota profunda e surda do sino, rompendo, a cada hora, com seu

rugir súbito e moroso, a quietude da atmosfera sombria na qual se enterrava e

adormecia o campanário gótico todo denteado.

Encontro talvez tanto prazer quanto me é possível experimentar ainda, demorando

sobre essas minuciosas recordações da escola e de seus sonhos. Mergulhado como

me encontro na desgraça ? infelicidade, ai de mim! por demais real ?, espero que

me perdoem procurar um alívio, bem leve e bem curto, nesses detalhes pueris e

divagantes. Aliás, embora absolutamente vulgares e risíveis em si mesmos, esses

acontecimentos tomam, em minha imaginação, uma importância circunstancial,

devido à sua íntima relação com os lugares e a época onde agora distingo as

primeiras advertências ambíguas do destino, que desde então me envolveu tão

profundamente em sua sombra. Deixem-me pois recordar.

A casa, como disse, era velha e irregular, os terrenos vastos e um alto e sólido muro

de tijolos, coroado por uma camada de cimento e de vidro quebrado, os rodeava.

Essa fortificação, digna de uma prisão, formava o limite de nosso domínio. Nossos

olhares não iam além senão três vezes por semana ? uma vez cada sábado à tarde,

quando, acompanhados por dois professores, tínhamos permissão para dar

passeios curtos em comum, através do campo, nas imediações e duas vezes ao

domingo, quando íamos, com a regularidade de tropas em parada, assistir aos

Page 73: Contos de Edgar Allan Poe - II

ofícios da manhã e da tarde, no único templo da aldeia. O diretor de nossa escola

era o pastor dessa igreja. Com que profundo sentimento de admiração e de

perplexidade eu costumava contemplá-lo, de nosso banco afastado, na tribuna,

quando subia para o púlpito, com um passo solene e lento! Essa personagem

venerável, de rosto tão modesto e benigno, de roupa tão bem escovada e caindo de

maneira impecavelmente eclesiástica, de peruca tão minuciosamente empoada,

rígida e vasta, seria o mesmo homem que havia pouco, com um rosto irascível e a

roupa manchada de rapé, fazia executar, férula em mão, as leis draconianas da

escola? Oh! Gigantesco paradoxo cuja monstruosidade exclui toda solução!

Num ângulo do muro maciço, uma severa porta, ainda mais maciça, solidamente

fechada, guarnecida de ferrolhos e encimada por espigões de ferro denticulados.

Como eram profundos os sentimentos de terror que inspirava! Nunca se abria senão

para as três saídas e entradas periódicas de que já falei; então, em cada rangido de

seus gonzos potentes, encontrávamos uma plenitude de mistério ? todo um mundo

de observações solenes ou de meditações ainda mais solenes.

O vasto recinto era de forma irregular e dividido em várias partes, das quais três ou

quatro das maiores constituíam o pátio de recreio. Era aplainado e recoberto de um

saibro fino e duro. Lembro-me bem de que não continha árvores, nem bancos, nada

de semelhante. Naturalmente ficava situado atrás da casa. Diante da fachada,

estendia-se um pequeno terraço plantado de buxos e outros arbustos, mas não

atravessávamos esse recanto sagrado senão em raras ocasiões, por exemplo, o dia

da chegada à escola, o dia da partida definitiva, ou então quando um parente ou

amigo nos mandava chamar, e seguíamos alegremente para a casa paterna, nas

férias de Natal, ou de verão.

Mas a casa! ? que estranha e antiga construção! Para mim, que verdadeiro palácio

encantado! Realmente, eram infindáveis os seus desvios, as suas incompreensíveis

subdivisões. Era difícil dizer com certeza, a determinado momento, se nos

encontrávamos no primeiro ou no segundo pavimento. De uma peça a outra, tinha-

se sempre a certeza de encontrar dois ou três degraus a subir ou descer. Além

disso, as subdivisões laterais eram inúmeras, inconcebíveis, giravam de tal maneira

umas sobre as outras, que nossas idéias mais exatas, acerca do conjunto do

edifício, não eram muito diferentes daquelas através das quais considerávamos o

infinito. Durante os cinco anos de residência ali, nunca fui capaz de determinar, com

precisão, em que localidade longínqua ficava situado o pequeno dormitório que me

Page 74: Contos de Edgar Allan Poe - II

fora designado em comum, com mais dezoito ou vinte outros escolares.

A sala de estudo era a mais vasta da escola e ? eu não podia deixar de pensar ? até

mesmo do mundo inteiro: longuíssima, muito estreita e lugubremente baixa, com

janelas em ogiva e teto de carvalho. Num canto afastado, de onde emanava o terror,

havia um recinto quadrado, de oito a dez pés, representando o sanctum “durante

horas” do nosso diretor, o Reverendo Doutor Bransby. Era uma sólida estrutura, de

porta maciça, e, a abri-la na ausência do Dominie, teríamos preferido morrer, da

peine forte et dure. Em dois outros ângulos, dois recintos análogos, muito menos

reverenciados, sem dúvida, mas ainda assim de um terror bastante considerável.

Um era a cátedra do mestre de humanidades e o outro a do professor de inglês e

matemática. Espalhados através da sala, inúmeros bancos e cadeiras, terrivelmente

carregados de livros maculados pelos dedos e cruzando-se numa irregularidade sem

fim ? negros, antigos, devastados pelo tempo, tão marcados de letras iniciais, nomes

inteiros, figuras grotescas e outras inúmeras obras-primas da faca, que haviam

perdido o pouco da forma original que lhes fora designada, em dias muito antigos.

Numa extremidade da sala, encontrava-se um enorme balde cheio de água e na

outra um relógio de prodigiosa dimensão.

Encerrado entre os muros maciços dessa escola venerável, passei contudo, sem

tédio ou repulsa, os anos do terceiro lustro de minha vida. O cérebro fecundo da

infância não exige um mundo exterior de incidentes para o ocupar e divertir e a

monotonia, aparentemente lúgubre, da escola, era repleta de excitações mais

intensas do que todas as que minha juventude, mais amadurecida, exigiu à volúpia,

ou minha virilidade, ao crime. Entretanto, julgo dever dizer que meu primeiro

desenvolvimento intelectual foi, em grande parte, pouco comum e até mesmo outré.

Em geral, os acontecimentos da existência infantil não deixam sobre a humanidade,

chegada à idade madura, uma impressão bem definida. Tudo é sombra, cinza, débil

e irregular recordação, confusão de fracos prazeres e desgostos fantasmagóricos.

Comigo isso não aconteceu. Devo ter sentido em minha infância, com a energia de

um homem feito, tudo o que encontro hoje gravado na memória em linhas tão vivas,

tão profundas e duráveis como os exergos das medalhas cartaginesas.

E contudo, de fato ? do ponto de vista comum do mundo ¯, como havia la tão pouca

coisa para relembrar! O despertar, de manhã, a ordem para deitar-se, as lições a

aprender, os recitativos, as meias férias periódicas e os passeios, o pátio de recreio,

com suas disputas, seus passatempos, suas intrigas, tudo isso, por uma magia

Page 75: Contos de Edgar Allan Poe - II

psíquica desaparecida, continha em si um desvario de sensação, um mundo rico de

incidentes, um universo de emoções variadas e de excitações das mais apaixonadas

e embriagadoras. Oh! Le bon temps que ce siècle de fer!

Na realidade, minha natureza ardente, entusiasta, imperiosa fez de mim, dentro em

pouco e entre meus camaradas, um caráter marcado, e pouco a pouco,

naturalmente, deram-me um ascendente sobre todos os que não eram mais velhos

do que eu ? sobre todos, exceto um. Era um aluno que, sem qualquer parentesco

comigo, tinha o mesmo meu nome de batismo, o mesmo nome de família ?

circunstância pouco notável, em si ? porque meu nome, malgrado a nobreza de

minha origem, era um desses nomes vulgares que parecem ter sido, desde tempos

imemoriais, por direito de prescrição, a propriedade comum da multidão. Nesta

narrativa dei a mim mesmo o nome de William Wilson, fictício, porém não muito

distante do verdadeiro. Meu homônimo, somente, entre os que, segundo a

fraseologia da escola, compunham a nossa classe, ousava rivalizar comigo nos

estudos, nos jogos e nas discussões do recreio, recusar uma crença cega em

minhas assertivas e uma submissão completa à minha vontade ? em suma

contrariar minha ditadura, em todos os casos possíveis. Se jamais existiu sobre a

terra um despotismo supremo e sem reservas, é bem o despotismo de um menino

de gênio sobre as almas menos enérgicas de seus camaradas.

A rebeldia de Wilson era para mim origem do maior constrangimento, tanto mais

que, apesar das bravatas com que eu julgava dever tratá-lo publicamente, a ele e às

suas pretensões, sentia, no íntimo, que Wilson me intimidava e não podia deixar de

considerar a equanimidade que mantinha tão facilmente diante de mim, como a

prova de uma verdadeira superioridade ? pois havia de minha parte um esforço

perpétuo para não ser dominado. Contudo, essa superioridade, ou antes igualdade,

não era verdadeiramente conhecida senão por mim; nossos camaradas, por uma

inexplicável cegueira, nem mesmo pareciam desconfiar disso. E, de fato, sua

rivalidade, sua resistência e particularmente sua impertinente e irritadiça intervenção

em todos os meus desígnios não eram tão manifestas, e antes, confidenciais. Ele

parecia igualmente desprovido da ambição que me levava a dominar e da energia

apaixonada que me dava os meios para isso. Poder-se-ia crer que, nessa rivalidade,

Wilson era dirigido unicamente por um desejo caprichoso de opor-se a mim, de me

espantar, ou mortificar; se bem que houvesse casos em que eu não podia deixar de

notar, com um sentimento confuso, de surpresa, humilhação e cólera, que ele punha

Page 76: Contos de Edgar Allan Poe - II

em seus ultrajes, suas impertinências e contradições certos ares de afetuosidade,

dos mais intempestivos e, sem dúvida, mais desagradáveis do mundo. Eu não podia

compreender uma conduta tão estranha senão supondo-a o resultado de uma

suficiência perfeita, permitindo-se o tom vulgar da condescendência e da proteção.

Talvez fosse por esse último traço, na conduta de Wilson ? acrescido da nossa

homonímia e o fato puramente acidental de nossa entrada simultânea na escola ?,

que todos. entre nossos condiscípulos das classes superiores, acreditavam que

éramos irmãos. Habitualmente, esses estudantes não se informam com muita

exatidão quanto aos assuntos dos mais jovens. Já disse antes, ou deveria tê-lo dito,

que Wilson não era, nem em grau afastado, parente de minha família. Mas decerto,

se fôssemos irmãos, teríamos sido gêmeos: pouco depois de ter deixado a escola

do Doutor Bransby soube, por acaso, que o meu homônimo nascera em 19 de

janeiro de 1813 ? coincidência bastante notável, sendo esse dia, precisamente, o do

meu nascimento.

Pode parecer estranho que, malgrado a contínua ansiedade que me causava a

rivalidade de Wilson e seu insuportável espírito de contradição, eu não era levado a

odiá-lo completamente. Sem dúvida, quase todos os dias tínhamos uma briga, na

qual, concedendo-me publicamente os louros da vitória, ele conseguia, de certa

maneira, fazer-me sentir que eu não os merecera. Contudo, um sentimento de

orgulho, de minha parte, e uma verdadeira dignidade, da dele, nos mantinham

sempre em termos de estrita cortesia, apesar de haver muitos pontos de forte

identidade no nosso caráter, que faziam despertar em mim o desejo, reprimido

talvez pela nossa posição, de transformar aquilo em amizade. Na verdade, é difícil

definir, ou mesmo descrever meus verdadeiros sentimentos para com ele: formavam

um amálgama extravagante e heterogêneo ? uma animosidade petulante que não

era ainda ódio, estima, ainda mais respeito, uma boa parte de temor e uma imensa e

inquieta curiosidade. É supérfluo acrescentar, para o moralista, que Wilson e eu

éramos os mais inseparáveis camaradas.

Foram decerto a anomalia e ambigüidade de nossas relações que jogaram todos os

meus ataques contra ele e, francos ou dissimulados, eram numerosos ? moldados

de ironia ou de troça (a zombaria não causa também excelentes feridas?) em vez de

uma hostilidade mais séria e mais determinada. Porém meus esforços, neste ponto,

não obtinham regularmente um triunfo perfeito, mesmo quando os planos eram mais

engenhosamente maquinados. É que o meu homônimo tinha em seu caráter muito

Page 77: Contos de Edgar Allan Poe - II

dessa austeridade plena de reserva e de calma que, mesmo deliciando-se com a

pungência de suas próprias zombarias, nunca mostra o calcanhar-de-aquiles e foge

absolutamente ao ridículo. Não podia assim encontrar nele senão um ponto

vulnerável: era constituído por um detalhe físico que, vindo talvez de uma

enfermidade de seu organismo, teria sido poupado por algum outro antagonista

menos encarniçado do que eu: meu rival tinha no aparelho vocal uma fraqueza que

o impedia de jamais erguer a voz acima de um sussurro muito baixo. E eu não

deixava de tirar, dessa imperfeição, toda a pobre vantagem que estava em meu

poder.

Várias eram as represálias de Wilson; tinha, particularmente, esse gênero de malícia

que me perturbava de maneira intolerável. Como tivera, no início, a sagacidade de

descobrir que uma coisa tão insignificante podia mortificar-me, eis uma questão que

jamais pude resolver; mas, assim que a descobriu, habitualmente me atormentava

com isso. Sempre sentira aversão por meu infeliz nome de família tão deselegante,

e por meu prenome tão vulgar ou mesmo absolutamente plebeu. Essas sílabas eram

um veneno para meus ouvidos e quando, no dia de minha chegada, apresentou-se

na escola um segundo William Wilson, odiei-o pela fato de ter esse nome e por ser

também o de um estranho ? um estranho que seria a causa de sua dupla repetição,

que estaria permanentemente em minha presença e cujas atividades, na rotina da

vida do colégio, seriam muitas vezes e inevitavelmente confundidas com as minhas,

devido a essa detestável coincidência.

O sentimento de irritação criado por esse acidente tornou-se mais vivo, a cada

circunstância que tendia a focalizar toda a semelhança moral entre meu rival e mim.

Não havia notado ainda senão o fato extraordinário de sermos da mesma idade;

mas via agora que éramos da mesma altura e havia uma semelhança singular em

nossa fisionomia e nossas feições. Exasperava-me igualmente o rumor que corria

sobre nosso parentesco e a que geralmente se dava crédito, nas classes superiores.

Numa palavra, nada poderia causar-me preocupação mais séria (embora eu

ocultasse com o maior cuidado todo sintoma dessa perturbação) do que uma alusão

qualquer à semelhança entre nós, em relação ao espírito, à pessoa ou ao

nascimento. Mas, na verdade, não tinha razão alguma para acreditar que essa

semelhança (excetuando o fato do parentesco e de tudo o que o próprio Wilson

sabia ver) tivesse jamais sido assunto de comentários ou mesmo notada por nossos

camaradas de classe. Que ele a observasse em todos os sentidos e com tanta

Page 78: Contos de Edgar Allan Poe - II

atenção quanto eu próprio, era evidente, mas que tivesse podido descobrir em tais

circunstâncias uma mina tão rica de contrariedades, não o posso atribuir, como já

disse, senão à sua penetração mais do que comum.

Wilson dava-me a réplica com uma perfeita imitação de mim mesmo ? gestos e

palavras ? e representava admiravelmente o seu papel. Meu traje era coisa fácil de

copiar, meu andar, minha atitude geral, ele fizera seus sem dificuldade e, a despeito

de seu defeito constitutivo, nem mesmo minha voz lhe havia escapado.

Naturalmente, não tentava os tons elevados, mas a clave era idêntica e sua voz,

apesar de falar baixo, transformou-se em perfeito eco da minha.

A que ponto esse curioso retrato (porque não posso chamá-lo propriamente uma

caricatura) me atormentava, é o que nem ouso tentar dizer. Não me restava senão

um consolo: é que a imitação, segundo me parecia, era notada apenas por mim e

que eu tinha simplesmente de suportar os sorrisos misteriosos e estranhamente

sarcásticos do meu homônimo. Satisfeito de haver produzido em meu coração o

efeito desejado, parecia expandir-se em segredo sobre a ferida que me infligira e

mostrar um desdém singular pelos aplausos públicos que os sucessos de sua

engenhosidade lhe teriam facilmente conquistado. Como era possível que nossos

camaradas não adivinhassem o seu desígnio, não vissem sua realização e não

partilhassem de sua alegria zombeteira? Foi isso, durante muitos meses de

inquietação, um mistério insolúvel para mim. Talvez a gradação de sua cópia não

fosse logo percebível, ou antes, eu devia minha segurança ao ar de maestria do

copista, que desdenhava a letra ? coisa que os espíritos obtusos logo notam numa

pintura ? e não dava senão o perfeito espírito do original, para minha maior

admiração e pesar.

Já falei, várias vezes, do desagradável ar de proteção que assumira para comigo e

da sua freqüente e oficiosa intervenção em minha vontade. Essa intervenção tomava

muitas vezes a forma desagradável de um conselho, que não era dado abertamente,

mas sugerido, insinuado. Eu o recebia com uma repugnância que crescia com os

anos. Contudo, nossa época já longínqua, quero fazer-lhe a justiça estrita de

reconhecer que não me lembro de uma só vez em que as sugestões de meu rival

tivessem pactuado com os erros e loucuras tão comuns em sua idade, geralmente

destituída de maturidade e experiência; que o seu senso moral, ou seu talento e sua

prudência mundana, era muito mais fino que o meu, e hoje eu seria um homem

melhor se não tivesse sempre recusado os conselhos daqueles sussurros

Page 79: Contos de Edgar Allan Poe - II

significativos que me causavam, então, tão-somente ódio cordial e amargo

desprezo.

Por isso tornei-me extremamente rebelde à sua odiosa vigilância e detestava cada

vez mais abertamente o que considerava sua intolerável arrogância. Já disse que,

nos primeiros anos de nossa camaradagem, meus sentimentos para com ele

poderiam facilmente ter-se transformado em amizade, mas, durante os últimos

meses de minha permanência na escola, embora sua habitual intromissão tivesse

diminuído bastante, meus sentimentos, numa proporção quase semelhante, tinham-

se inclinado para o verdadeiro ódio. Certa ocasião, ele o percebeu, presumo, e

desde então me evitou ou fingiu evitar-me.

Foi pouco mais ou menos na mesma época, se não me falha a memória, numa

discussão violenta que tivemos, na qual ele perdeu sua reserva habitual e falava e

agia com um desembaraço bem diferente à sua natureza, que descobri, ou imaginei

descobrir, em seu tom, sua atitude, enfim, no seu aspecto em geral, algo que a

princípio me fez estremecer e depois me interessou profundamente, trazendo-me ao

espírito visões obscuras de minha primeira infância lembranças estranhas, confusas,

precipitadas, de um tempo no qual minha memória não nascera ainda. Não poderia

definir melhor a sensação que me dominou, senão dizendo que me era difícil

libertar-me da idéia de já haver conhecido a pessoa que se encontrava diante de

mim, em alguma época muito longínqua, em algum ponto do passado, mesmo que

infinitamente remoto. Contudo, essa sensação esvaiu-se tão rapidamente como

veio; e não a menciono aqui senão para assinalar o dia do último encontro que tive

com o meu singular homônimo.

Com suas inumeráveis subdivisões, a velha e vasta casa tinha vários e amplos

aposentos, que se comunicavam entre si e serviam de dormitório à maioria dos

alunos. Havia contudo (como seria inevitável, num edifício tão impropriamente

planejado) uma porção de cantos e recantos fragmentos e aberturas da construção,

que a engenhosidade do Doutor Bransby transformara também em dormitórios.

Eram porém simples compartimentos, que só poderiam acomodar uma pessoa. Um

desses pequenos quartos era ocupado por Wilson.

Uma noite, ao fim do meu quinto ano na escola e imediatamente após a discussão

de que falei, aproveitando um momento em que todos dormiam, levantei-me e, com

uma lâmpada na mão, dirigi-me, através de um labirinto de corredores estreitos, do

meu ao quarto do meu rival. Havia muito planejara pregar-lhe uma peça de mau

Page 80: Contos de Edgar Allan Poe - II

gosto, mas, até então, sempre fracassara. Tive pois a idéia de pôr o meu plano em

prática e resolvi fazê-lo sentir toda a força da maldade de que estava possuído.

Cheguei à porta de seu cubículo e entrei sem fazer ruído, deixando à porta a

lâmpada com um abajur. Avancei um passo e escutei o som de sua respiração

tranqüila. Convencido de que dormia profundamente, voltei à porta, peguei a

lâmpada e aproximei-me novamente da cama. Como os cortinados estavam

cerrados, abri-os de leve e lentamente, para a execução de meu plano, mas uma luz

viva caiu em cheio sobre o adormecido e ao mesmo tempo meus olhos se detiveram

sobre sua fisionomia. Olhei; e um entorpecimento, uma enregelante sensação

penetraram instantaneamente todo o meu ser. Meu coração palpitou, os joelhos

vacilaram, toda a minha alma foi tomada de um horror intolerável e inexplicável.

Arquejando, baixei a lâmpada até quase encostá-la no seu rosto. Seriam… seriam

mesmo as feições de William Wilson? Vi, sem dúvida, que eram os meus traços,

mas tremia como que tomado de um acesso de febre, imaginando que não o eram.

Que haveria pois neles para me confundir a tal ponto? Eu o contemplava e meu

cérebro girava em torno de milhares de pensamentos incoerentes. Ele não me

aparecia assim ? seguramente não parecia tal ? nas horas ativas de sua vida

acordado. O mesmo nome! Os mesmos traços! A entrada na escola no mesmo dia!

E, ainda, essa odiosa e inexplicável imitação de minhas maneiras, andar, voz e

costume! Estaria, na verdade, nos limites da possibilidade humana que aquilo que

eu via agora fosse o simples resultado desse hábito de imitação sarcástica? Tomado

de horror, estremecendo, apaguei a lâmpada, saí silenciosamente do quarto e deixei

imediatamente o recinto da velha escola, para nunca mais voltar.

Após um lapso de alguns meses vividos em casa de meus pais, em ociosidade

absoluta, fui mandado para o colégio de Eton. Esse breve intervalo fora suficiente

para enfraquecer em mim a recordação dos acontecimentos na escola Bransby, ou

pelo menos operar uma mudança notável na natureza dos sentimentos que essas

lembranças me causavam. A realidade, o lado trágico do drama, não existiu mais.

Encontrava agora alguns motivos para duvidar do testemunho de meus sentidos e

raramente me lembrava da aventura sem admirar-me de quão longe pode ir a

credulidade humana, e sem sorrir da prodigiosa força de imaginação que havia

herdado de minha família. E a vida que eu levava em Eton não era de molde a

diminuir essa espécie de ceticismo. O turbilhão de loucura em que mergulhei

imediatamente e sem reflexão tudo varreu, exceto a lembrança de minhas horas

Page 81: Contos de Edgar Allan Poe - II

passadas, absorvendo imediatamente todas as impressões sólidas e sérias, não

deixando em minha lembrança senão as leviandades de minha existência anterior.

Não tenho, contudo, a intenção de descrever aqui a trajetória de meus infames

desregramentos ? desregramentos que desafiavam as leis e iludiam a vigilância.

Três anos de loucuras, gastos sem proveito, só poderiam ter-me dado hábitos de

vício, enraizados, e haviam aumentado, de maneira quase anormal, meu

desenvolvimento físico. Um dia, após uma semana inteira de dissipações

embrutecedoras, convidei um grupo de estudantes, dos mais dissolutos, para uma

orgia secreta em meu quarto.

Reunimo-nos a uma hora avançada da noite, porque a nossa orgia devia prolongar-

se religiosamente até a manhã. O vinho corria livremente e outras seduções, mais

perigosas, talvez, não haviam sido negligenciadas, tanto que quando o alvorecer

empalidecia o céu, no oriente, nosso delírio e nossas extravagâncias tinham atingido

o auge. Furiosamente exaltado pelas cartas e pela bebida, insistia em fazer um

brinde estranhamente indecente, quando minha atenção foi subitamente distraída

por uma porta que se abria violentamente e pela voz precipitada de um criado. Disse

que uma pessoa, que parecia ter muita pressa, pedia para falar comigo no vestíbulo.

Loucamente excitado pelo vinho, essa interrupção causou-me mais prazer do que

surpresa. Precipitei-me, cambaleando, e, após alguns passos, encontrei-me no

vestíbulo da casa. Nessa sala, baixa e estreita, não havia nenhuma lâmpada e a

única luz que ali entrava era a do alvorecer, muito fraca, que se infiltrava através da

janela semicircular. Pisando na soleira, distingui um rapaz pouco mais ou menos da

minha estatura, vestindo um roupão de casimira branca, talhado à moda do dia,

como o que eu usava naquele momento. A luz fraca me permitiu ver tudo isso; mas

os traços do rosto, não os pude distinguir. Mal entrei, ele se precipitou para mim e,

segurando-me o braço com um gesto imperativo de impaciência, murmurou em meu

ouvido as palavras:

? William Wilson!

Num segundo, tornei-me absolutamente sóbrio.

Havia na maneira do estranho, no tremor nervoso de seu dedo, que erguera entre

meus olhos e a luz, qualquer coisa que me causou um espanto completo: mas não

era isso o que me emocionara de maneira tão violenta, e sim a importância, a

solenidade da admoestação contida na palavra singular, baixa, sibilante, e, acima de

tudo, o caráter, o tom, a clave dessas poucas sílabas, simples, familiares e, contudo,

Page 82: Contos de Edgar Allan Poe - II

misteriosamente sussurradas, que vieram, com mil recordações acumuladas dos

dias passados, abater-se em minha alma como uma descarga elétrica. Antes que eu

pudesse recobrar os sentidos, ele havia desaparecido.

Embora o fato produzisse sem dúvida um efeito muito vivo sobre minha imaginação

desregrada, esse efeito, tão vivo, contudo, se foi em breve esvaindo. Na verdade,

durante várias semanas, vivi entregue a investigações mais sérias, ou envolvido

numa nuvem de mórbida meditação. Não tentava ocultar a mim mesmo a identidade

da singular criatura que se imiscuía de maneira tão obstinada em minha vida e me

fatigava com seus conselhos oficiosos. Porém, quem era? Quem era esse Wilson? E

de onde vinha? Qual o seu objetivo? Sobre nenhum desses pontos consegui obter

resposta satisfatória ? e constatei somente, em relação a ele, que um acidente

súbito, em sua família, o fizera deixar a escola do Doutor Bransby na tarde do dia

em que eu fugira. Mas, depois de algum tempo, deixei de pensar nisso e minha

atenção foi inteiramente absorvida pela partida, projetada, para Oxford. Ali, em breve

? a vaidade pródiga de meus pais permitindo-me levar um alto padrão e entregar-me

à vontade ao luxo, já tão do meu gosto ?, vim a rivalizar em prodigalidade com os

mais orgulhosos herdeiros dos mais ricos condados da Grã-Bretanha. Estimulado ao

vício por semelhantes meios, minha natureza explodiu em breve com um duplo ardor

e na louca embriaguez de minhas devassidões calquei aos pés os vulgares entraves

da decência. Mas seria absurdo demorar aqui em detalhes de minhas loucuras.

Basta dizer que ultrapassei Herodes em dissipações e que, dando um nome a uma

multidão de novos desvarios, acrescentei um copioso apêndice ao longo catálogo

dos vícios que reinavam então na universidade mais dissoluta da Europa.

Custa a acreditar que eu tivesse decaído a tal ponto, de minha posição de nobreza,

procurando familiarizar-me com os mais vis artifícios do jogador de profissão e me

tornasse um adepto dessa ciência desprezível, que a praticasse habilmente com o

pretexto de aumentar meu rendimento já enorme, à custa de companheiros cujo

espírito era mais fraco. Mas foi o que aconteceu. E a própria enormidade desse

atentado contra os sentimentos de dignidade e honra era, evidentemente, a

principal, se não a única razão da minha impunidade. Quem, pois, entre meus mais

devassos camaradas, não teria contestado ao mais evidente testemunho de seus

próprios sentidos, a desconfiar de semelhante conduta da parte do alegre, do franco,

generoso William Wilson ? o mais nobre, o mais liberal dos companheiros de Oxford

?, aquele cujas loucuras, diziam meus parasitas, eram apenas as loucuras de uma

Page 83: Contos de Edgar Allan Poe - II

mocidade e de uma imaginação sem freio, cujos erros não eram senão inimitáveis

caprichos, e os vícios mais negros, uma descuidada e soberba extravagância?

Havia dois anos que eu vivia dessa maneira, quando chegou à universidade um

jovem de nobreza recente, um parvenu, chamado Glendinning ? rico, diziam, como

Herodes Ático e cuja riqueza fora também facilmente adquirida. Descobri bem

depressa que era de inteligência fraca e, naturalmente, marquei-o como possível

vítima de meus talentos. Convidava-o freqüentemente a jogar e deixava-o ganhar

somas consideráveis, a fim de prendê-lo mais eficazmente na armadilha.

Finalmente, com o meu plano bem estabelecido (procurei-o na intenção inabalável

de que esse encontro seria decisivo), no apartamento de um dos nossos camaradas,

Preston, íntimo igualmente de ambos, porém, que ? faço-lhe essa justiça ? não tinha

a menor desconfiança quanto ao meu desígnio. A fim de melhor colorir o

acontecimento, tive o cuidado de convidar um grupo de oito ou dez pessoas, tendo o

mais rigoroso cuidado de fazer com que o aparecimento das cartas parecesse

inteiramente acidental e não se fizesse senão sob proposta daquele a quem eu

queria lograr. Para resumir tão vil passagem, digo que não negligenciei nenhuma

das infames astúcias praticadas da maneira mais banal em tais ocasiões e é de

admirar que ainda existam pessoas bastante ingênuas a ponto de caírem como suas

vítimas.

Prolongamos muito a nossa vigília, e já era tarde da noite, quando, afinal, consegui

fazer de Glendinning meu único adversário. O jogo era o meu favorito: o écarté. Os

outros presentes, interessados pelas proporções de nosso jogo, tinham deixado

suas cartas e se reuniam em torno de nós. como espectadores. O nosso parvenu,

que, durante a primeira parte da noite, eu induzira a beber fartamente, embaralhava,

dava as cartas agora de maneira nervosa, estranha, na qual, pensava eu, a

embriaguez influía de certo modo, porém não explicava inteiramente. Em muito

pouco tempo já se tornara meu devedor de uma grande soma, quando, depois de

beber um grande copo de vinho do Porto, fez justamente o que eu havia previsto

friamente: propôs que dobrássemos a nossa parada, já absurdamente elevada. Com

uma hábil afetação de relutância, e somente depois que minhas recusas repetidas

lhe haviam provocado algumas palavras ásperas, que deram ao meu consentimento

um tom ofendido, acedi finalmente. O resultado foi o que devia ser: a presa caíra

irremediavelmente na armadilha e em menos de uma hora quadruplicara a dívida.

Havia algum tempo, seu rosto começara a perder o rubor produzido pelo vinho, mas

Page 84: Contos de Edgar Allan Poe - II

agora eu percebia, atônito, que sua palidez era verdadeiramente terrível. Digo

atônito, porque tomara sobre Glendinning informações minuciosas: davam-no como

sendo imensamente rico e as somas que ele perdera até então, embora realmente

vastas, não podiam ? pelo menos eu supunha ? preocupá-lo muito seriamente e

ainda menos afetá-lo de maneira a tal ponto violenta. A idéia que se apresentou

mais naturalmente ao meu espírito foi que ele ficara perturbado pelo vinho que

bebera e, antes para salvaguardar o meu caráter aos olhos de meus camaradas do

que por um motivo de desinteresse, ia insistir peremptoriamente para interromper o

jogo, quando algumas palavras pronunciadas ao meu lado, entre as pessoas

presentes e uma exclamação de Glendinning, demonstrando o mais completo

desespero, fizeram-me compreender que eu o levara à ruína total, em condições

que, tornando-o objeto da piedade de todos, deveriam tê-lo protegido, mesmo contra

os maus ofícios de um demônio.

Que atitude deveria ter sido então a minha, é difícil dizer. A lastimável situação de

minha vítima lançara sobre nós um ar de tristeza e constrangimento. Por alguns

minutos reinou um silêncio profundo durante o qual eu sentia, malgrado meu, o rosto

a formigar, sob os olhares ardentes de desprezo e censura que me eram dirigidos

pelos menos endurecidos do grupo. Confessarei, mesmo, que meu coração sentiu-

se instantaneamente aliviado do intolerável peso da angústia, pela súbita e

extraordinária interrupção que sobreveio. As largas e pesadas portas se

escancararam subitamente, com uma impetuosidade tão vigorosa e violenta, que

todas as velas se apagaram como por encanto. Mesmo no escuro ainda nos foi

possível notar que um estranho entrara; um homem mais ou menos da minha

estatura, apertadamente envolvido numa capa. Contudo, agora, as trevas eram

completas e podíamos apenas sentir que ele estava entre nós. Antes que qualquer

dos presentes voltasse a si do extremo espanto em que nos lançara aquele gesto de

violência, ouvimos a voz do intruso:

? Senhores ? disse ele, numa voz muito baixa, mas distinta, inesquecível, que

atingiu a medula de meus ossos ?, senhores, não procuro desculpar a minha

conduta, por que, agindo assim, não faço mais do que cumprir um dever. Sem

dúvida, não estão informados sobre o verdadeiro caráter da pessoa que ganhou esta

noite uma soma enorme no écarté, tendo como parceiro Lorde Glendinning. Vou

assim propor-lhes um meio rápido e decisivo de conseguir essas importantíssimas

informações. Examinem, rogo-lhes, sem pressa, o forro do punho de sua manga

Page 85: Contos de Edgar Allan Poe - II

esquerda e os pacotinhos que serão encontrados nas algibeiras suficientemente

vastas de seu roupão bordado.

Enquanto o estranho falava, o silêncio era tão profundo, que se teria ouvido um

alfinete cair sobre o tapete. Terminando, ele partiu de repente, tão bruscamente

como entrara. Poderia descrever a minha impressão? Será preciso dizer que senti

todos os horrores dos danados, no inferno? Decerto, tive pouco tempo para reflexão.

Vários braços me agarraram com violência, reacenderam-se imediatamente as

luzes. Revistaram-me: no forro de minha manga, encontraram todas as figuras

essenciais do écarté e, nos bolsos do meu roupão, um certo número de baralhos

exatamente semelhantes aos que usávamos em nossas noitadas, com a única

exceção de que os meus eram daqueles chamados, tecnicamente, arrondées: as

cartas figuradas ligeiramente convexas nas extremidades mais estreitas e as sem

figuras também imperceptivelmente convexas, nos lados mais largos. Graças a essa

marcação, a vítima quando corta o baralho ao comprido, como é habitual, dá,

inevitavelmente, uma carta figurada ao adversário, ao passo que o trapaceiro,

cortando no sentido da largura, jamais dará ao outro algo que lhe possa trazer

vantagem.

Uma tempestade de revolta me afetaria menos do que o silencioso desdém e a

calma sarcástica com que receberam essa descoberta.

? Sr. Wilson ? disse nosso anfitrião, baixando-se para apanhar sob meus pés uma

magnífica capa de pele rara ?, Sr. Wilson, isto lhe pertence.

Fazia frio e, ao sair de meu quarto, eu pusera sobre a roupa que vestira de manhã

uma capa que tirei, ao chegar ao local do jogo.

? Imagino ? disse olhando as dobras do manto com um sorriso amargo ? que será

supérfluo procurar aqui novas provas de sua habilidade. Realmente, estamos fartos.

Espero que compreenda a necessidade de deixar Oxford e, de qualquer modo, de

sair imediatamente de meus aposentos.

Aviltado, humilhado até a poeira, como estava no momento, é provável que tivesse

castigado essa linguagem insultante com violência imediata, se toda a minha

atenção não estivesse, nesse momento, detida por um fato dos mais

surpreendentes. A capa que eu trouxera era de uma pelica superior ? de uma

raridade e de um preço tão extravagantes, que não me atrevo a dizer. O modelo

também era de minha invenção, pois nessas questões frívolas eu era exigente e

levava o dandismo às raias do absurdo. Por isso, quando Preston me entregou o

Page 86: Contos de Edgar Allan Poe - II

que apanhara no chão, junto à porta da sala ? com um espanto quase terror ?,

percebi que já tinha a minha capa sobre o braço onde a colocara sem prestar

atenção, e aquela que agora me davam era uma exata reprodução em todos os

detalhes da minha. A singular criatura que me denunciara de maneira tão desastrosa

estava, lembro-me bem, envolta numa capa e nenhum dos presentes, exceto eu,

usava capa naquela ocasião. Conservei porém uma certa presença de espírito e

recebi a capa que Preston me oferecia, coloquei-a ? sem que ninguém prestasse

atenção ? sobre a minha; saí da sala com um desafio ameaçador no olhar e nessa

manhã mesmo, antes do alvorecer, fugi precipitadamente de Oxford, em viagem

pelo continente, angustiado de horror e vergonha.

Fugi em vão. Meu destino maldito me perseguiu, triunfante, provando-me que seu

misterioso poder apenas começava. Mal chegara a Paris, tive outra prova do

interesse detestável que esse Wilson tomava pelos meus negócios. Os anos

passaram, e não tive trégua. Miserável! Em Roma, com que importuna

obsequiosidade, com que ternura, o espectro se interpôs entre mim e a minha

ambição! Em Viena… em Berlim!… em Moscou! Na verdade, em que lugar não tinha

eu uma razão amarga para maldizê-lo do íntimo do meu coração? Tomado de

pânico, fugi enfim de sua impenetrável tirania, como de uma peste até o fim do

mundo, fugi, e fugi em vão.

E sempre, sempre interrogando secretamente minha alma, perguntava a mim

mesmo: “Quem é ele? De onde vem? Qual o seu objetivo?” Mas não encontrava

resposta. E analisava então com um cuidado minucioso as formas, o método e os

característicos de sua insolente vigilância. Mas aí, ainda, não encontrava muita coisa

que pudesse servir de base a uma conjetura. Era verdadeiramente notável o fato de

que das inúmeras vezes em que ele atravessara no meu caminho, recentemente,

jamais o fez senão para frustrar planos ou derrotar ações que, se bem sucedidas,

teriam redundado em amarga decepção. Pobre justificativa, na verdade, para uma

autoridade tão imperiosamente usurpada! Pobre indenização para esses direitos

naturais de livre-arbítrio tão obstinada e ofensivamente negados!

Fui obrigado a notar que meu algoz, havia longo tempo, mesmo exercendo

escrupulosamente e com hábil destreza a mania de se vestir da mesma maneira que

eu, cada vez que interferira na minha vontade, fizera tudo de maneira que eu não

pudesse ver o seu rosto. Fosse lá quem fosse esse maldito Wilson, sem dúvida,

semelhante mistério era o cúmulo da afetação e da tolice. Poderia ele supor um

Page 87: Contos de Edgar Allan Poe - II

instante que, como meu conselheiro de Eton, destruidor de minha honra em Oxford,

aquele que frustrou minha ambição em Roma, minha vingança em Paris, meu amor

apaixonado em Nápoles e, o que ele chamava, erroneamente, a minha avareza, no

Egito ? nesse ser, meu grande inimigo e meu gênio mau, eu não reconhecia o

William Wilson dos meus anos de colégio, o homônimo, o camarada, o rival

execrado e temido do colégio Bransby? Impossível! Mas deixem-me descrever a

terrível cena final do drama.

Até então, eu me submetera sem reação ao seu imperioso domínio. O sentimento de

profundo respeito com o qual me acostumara a considerar o caráter elevado, a

sabedoria majestosa, a onipresença e onipotência aparentes de Wilson,

acrescentados a uma certa sensação de terror que me inspiravam alguns outros

traços de sua natureza e determinados privilégios, tinham criado em mim a idéia de

minha fraqueza absoluta, de minha impotência, me haviam aconselhado uma

submissão sem reservas, embora cheia de amargura e de repugnância, à sua

ditadura arbitrária. Mas, nesses últimos tempos, abandonara-me inteiramente ao

vinho e sua influência exasperante sobre meu temperamento hereditário tornava-me

cada vez mais relutante a todo controle. Comecei pois a murmurar, a hesitar, a

resistir. E seria simplesmente minha imaginação que me induzia a crer que a

obstinação de meu algoz diminuiria em razão da minha própria firmeza? É possível,

mas em todo caso começava a sentir a inspiração de uma esperança ardente, e

acabei nutrindo, no mais secreto de meus pensamentos, a sombria, a desesperada

resolução de libertar-me dessa escravidão.

Foi em Roma, durante o carnaval de 18…; encontrava-me num baile à fantasia, no

palácio do Duque Di Broglio, de Nápoles. Abusara da bebida, além do habitual, e a

atmosfera sufocante dos salões apinhados irritava-me de maneira insuportável. A

dificuldade de abrir caminho através da multidão contribuiu ainda mais para

exasperar o meu humor, porque eu procurava ansiosamente (não direi com que

motivo indigno) a jovem, alegre e bela esposa do velho e extravagante Di Broglio.

Com uma confiança bastante imprudente, ela me revelara o segredo da fantasia

com que iria ao baile e, como eu acabava de avistá-la de longe, apressei-me para

alcançá-la. Nesse momento, senti uma mão pousar de leve em meu ombro ? e

depois esse inesquecível, profundo e maldito sussurro em meu ouvido!

Tomado de cólera e frenesi, voltei-me bruscamente para aquele que ousara me

perturbar e segurei-o com violência pelo colete. Wilson vestia, conforme já esperava,

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um traje absolutamente semelhante ao meu: capa espanhola de veludo azul, presa

por um cinto carmesim do qual pendia uma espada. Uma máscara de seda negra

cobria-lhe inteiramente o rosto.

? Miserável! ? exclamei com voz rouca de cólera, e cada sílaba que me escapava

era como um combustível acrescentado ao fogo de minha ira. ? Miserável! Impostor!

Vilão maldito! Não seguirás a minha pista… não me atormentarás até a morte!

Segue-me, ou apunhalo-te aí onde estás!

E abri caminho, do salão de baile, para uma pequena antecâmara vizinha,

arrastando-o irresistivelmente comigo.

Entrando, atirei-o com fúria para longe de mim. Ele cambaleou, de encontro à

parede. Fechei a porta, com uma imprecação, e ordenei-lhe que desembainhasse a

espada. Wilson hesitou um segundo; depois, com um leve suspiro, tirou

silenciosamente a arma e se pôs em guarda.

O combate foi rápido. Eu estava exasperado, sentia desvarios de toda a espécie e,

num único braço, a energia e o poder de uma multidão. Em alguns segundos,

dominei-o pela força, contra o lambril, e ali, tendo-o à minha mercê, mergulhei várias

vezes, golpe após golpe, a espada em seu peito, com uma ferocidade de bruto.

Nesse momento, alguém tentou abrir a porta. Apressei-me em evitar uma

intromissão importuna e voltei-me imediatamente para meu adversário que expirava.

Porém. que ser humano poderá traduzir suficientemente o espanto, o horror que se

apoderaram de mim, ante o espetáculo que se apresentou aos meus olhos? O curto

instante, durante o qual me desviara, fora suficiente para produzir, aparentemente,

uma mudança material nas disposições do outro extremo da sala. Um vasto espelho

? em minha perturbação pareceu-me assim, a princípio ? erguia-se no ponto onde

antes nada vira; e, enquanto me dirigia tomado de horror, para esse espelho, minha

própria imagem, mas com o rosto pálido e manchado de sangue, adiantou-se ao

meu encontro, com um passo fraco e vacilante.

Foi o que me pareceu, repito, mas não era. Era meu adversário, Wilson, que diante

de mim se contorcia em agonia. Sua máscara e capa jaziam sobre o soalho, no

ponto onde ele as lançara. Não havia um fio de sua roupa ? nem uma linha em toda

a sua figura tão característica e tão singular ? que não fossem meus: era o absoluto

na identidade!

Era Wilson, mas Wilson sem mais sussurrar agora as palavras, tanto que teria sido

possível acreditar que eu próprio falava, quando ele me disse:

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? Venceste e eu me rendo. Mas, de agora em diante, também estás morto… morto

para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu existias… e vê em minha

morte, vê por esta imagem, que é a tua, como assassinaste absolutamente a ti

mesmo.