a visão da figura feminina na poesia de edgar allan poe

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3 1 INTRODUÇÃO O tema da presente pesquisa é a visão da figura feminina na poesia do escritor norte- americano Edgar Allan Poe, autor que, como poeta, contista, ensaísta e crítico, exerceu uma grande influência sobre muitos outros autores e movimentos da literatura ocidental a partir de meados do século XIX. Tendo como base a análise dos poemas “O Corvo” e “Annabel Lee”, tentar-se-à estabelecer como o poeta apresenta e interpreta a figura da mulher em sua poesia. Para isso, serão comentados também, ainda que com menor profundidade, outros poemas do autor, a fim de reforçar e ilustrar as interpretações a respeito da imagem feminina na poesia de Poe. O objetivo deste trabalho não é a análise meramente biográfica dos poemas do autor, apesar de tal procedimento ser uma possibilidade interpretativa de sua poesia. Sendo assim, é interessante comentar brevemente a vida do escritor, a fim de oferecer tal possibilidade de interpretação para os mais afeitos a isso. Edgar Allan Poe nasceu em Boston, em 19 de janeiro de 1809, filho de Elizabeth Arnold e David Poe, dois atores de teatro de origem humilde e cuja condição financeira era bastante precária. Seu pai abandonou a família quando Poe tinha apenas dois anos, e a partir daí o pequeno Edgar ficou aos cuidados da mãe, que viria a falecer um ano depois. Após a morte da mãe, Poe foi adotado pelo rico comerciante John Allan, cujo sobrenome foi acrescentado, não oficialmente, ao de Poe, que lhe deu uma ótima educação escolar. No entanto, tal educação não foi suficiente para aplacar o gênio irrequieto e temperamental do poeta, que se desentendeu com o padrasto e, sendo deserdado, passou a viver em Baltimore, na casa da tia, a sra. Maria Clemm. Aos 27 anos Edgar Allan Poe casou-se com a prima Virgínia, que contava então apenas quatorze anos. O casamento durou sete anos, e os dois viviam muito humildemente, uma vez que Poe mudou várias vezes de emprego devido ao seu temperamento irascível e sua dependência de álcool, problema que viria a acompanhá-lo pelo resto da vida. Em 1847, Virgínia morre de tuberculose, o que representa uma grande perda para o poeta, que passa por um período de grande instabilidade emocional que culminaria com a sua trágica morte dois anos depois. Poe morre em Baltimore, cinco dias depois de ter sido encontrado caído em uma rua, no ano de 1849. A causa de sua morte é desconhecida; muitos acreditam que tenha sido em decorrência do alcoolismo, que já havia atingido níveis perigosos para a saúde do escritor. Devido a isso, e no que diz respeito a Poe, “fixou-se firmemente na mente do público o retrato do

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Page 1: A visão da figura feminina na poesia de Edgar Allan Poe

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1 INTRODUÇÃO

O tema da presente pesquisa é a visão da figura feminina na poesia do escritor norte-

americano Edgar Allan Poe, autor que, como poeta, contista, ensaísta e crítico, exerceu uma

grande influência sobre muitos outros autores e movimentos da literatura ocidental a partir de

meados do século XIX. Tendo como base a análise dos poemas “O Corvo” e “Annabel Lee”,

tentar-se-à estabelecer como o poeta apresenta e interpreta a figura da mulher em sua poesia. Para

isso, serão comentados também, ainda que com menor profundidade, outros poemas do autor, a

fim de reforçar e ilustrar as interpretações a respeito da imagem feminina na poesia de Poe.

O objetivo deste trabalho não é a análise meramente biográfica dos poemas do autor,

apesar de tal procedimento ser uma possibilidade interpretativa de sua poesia. Sendo assim, é

interessante comentar brevemente a vida do escritor, a fim de oferecer tal possibilidade de

interpretação para os mais afeitos a isso. Edgar Allan Poe nasceu em Boston, em 19 de janeiro de

1809, filho de Elizabeth Arnold e David Poe, dois atores de teatro de origem humilde e cuja

condição financeira era bastante precária. Seu pai abandonou a família quando Poe tinha apenas

dois anos, e a partir daí o pequeno Edgar ficou aos cuidados da mãe, que viria a falecer um ano

depois. Após a morte da mãe, Poe foi adotado pelo rico comerciante John Allan, cujo sobrenome

foi acrescentado, não oficialmente, ao de Poe, que lhe deu uma ótima educação escolar. No

entanto, tal educação não foi suficiente para aplacar o gênio irrequieto e temperamental do poeta,

que se desentendeu com o padrasto e, sendo deserdado, passou a viver em Baltimore, na casa da

tia, a sra. Maria Clemm. Aos 27 anos Edgar Allan Poe casou-se com a prima Virgínia, que

contava então apenas quatorze anos. O casamento durou sete anos, e os dois viviam muito

humildemente, uma vez que Poe mudou várias vezes de emprego devido ao seu temperamento

irascível e sua dependência de álcool, problema que viria a acompanhá-lo pelo resto da vida. Em

1847, Virgínia morre de tuberculose, o que representa uma grande perda para o poeta, que passa

por um período de grande instabilidade emocional que culminaria com a sua trágica morte dois

anos depois. Poe morre em Baltimore, cinco dias depois de ter sido encontrado caído em uma rua,

no ano de 1849. A causa de sua morte é desconhecida; muitos acreditam que tenha sido em

decorrência do alcoolismo, que já havia atingido níveis perigosos para a saúde do escritor.

Devido a isso, e no que diz respeito a Poe, “fixou-se firmemente na mente do público o retrato do

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típico poeta romântico, que canta versos imortais, naufragando prematuramente no desespero do

amor e da morte.” (SPILLER, 1955: 62)

Como poeta, Poe foi dos mais influentes da sua geração, tendo sido também um contista

revolucionário e um crítico literário incisivo, como confirma Joseph Wood Krutch, em seu ensaio

“The Philosophy of Composition”, ao dizer que Poe era conhecido em sua época como “um

crítico cáustico e incisivo” (KRUTCH, 1926: 15) Para James Gargano, no ensaio “The Question

of Poe’s Narrators”, Poe não era um mero autor romântico: era, antes de tudo, um “cronista dos

excessos do Romantismo, que levaram à desordem física, à dor e a desintegração”, sendo “um

sério artista que explora as neuroses de seus personagens”. (GARGANO, 1963: 165) Para Floyd

Stovall, (STOVALL, 1963: 172) no ensaio “The Conscious Art of Edgar Allan Poe”, Poe é o

“mais mal-entendido de todos os escritores americanos”1, pois apresenta uma imagem muito

distorcida como artista para os seus contemporâneos. Apesar de todas as críticas negativas que

recebeu em um primeiro momento de sua produção, Poe vem a ser, conforme já dito, “um dos

mais populares autores norte-americanos, exercendo uma contínua influência sobre os mais

renomados escritores e críticos.” (PERKINS, 1990: 661)

O primeiro livro de Poe, Tamerlane and Other Poems (Tamerlane e Outros Poemas) foi

publicado em 1826, quando o poeta estava freqüentando a Universidade de Virgínia. Esta obra

não despertou a atenção da crítica, tendo passado despercebida e sem o devido reconhecimento.

Logo que foi morar com sua tia em Baltimore, Poe começou a publicar contos em revistas, e

ganhou alguns concursos literários, o que lhe conferiu o emprego de editor no Southern Literary

Messenger. Em 1840, foi publicado o livro Tales of the Grotesque and Arabesque (Histórias

Extraordinárias), que incluía um de seus mais famosos contos, “A Queda da Casa de Usher”.

Seu célebre poema “O Corvo” foi publicado em 1845, trazendo um pouco de reconhecimento

para o trabalho do autor, mas não o suficiente para sustentar sua esposa e sua tia, que passavam

privações financeiras severas. Poe morreu sem ter seu trabalho reconhecido, embora sua

genialidade tenha sido minimamente reconhecida por alguns de seus contemporâneos,

ironicamente não nos EUA, e sim na França, tais como Charles Baudelaire e Arthur Rimbaud,

que receberam grande influência de sua poesia. A real importância de sua colaboração para a

literatura só seria evidenciada pela crítica muitas décadas após a sua morte. Além de poeta, Poe

também se destacou como crítico, ainda que o reconhecimento de seu trabalho tenha sido

1 A tradução dos trechos citados nesta página e na página 3 é de minha autoria.

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póstumo. Seu ensaio “A Filosofia da Composição”, de 1845, é considerado uma das maiores

obras primas da crítica literária, tendo influenciado uma enorme variedade de autores

contemporâneos com suas idéias modernas a respeito da estruturação do poema e da narrativa e

da teorização de efeitos psicológicos a serem explorados no texto. “O interesse de Poe nas

sensações de terror e culpa levou-o a escrever histórias constantemente patológicas em seu

conteúdo e macabras na sua atmosfera.”2 (GOWER, 1996: 401).

Considerando o status de Poe como poeta, analisar-se-à como a figura feminina é

concebida em sua poesia, naturalmente com base não só nos dados biográficos do autor, mas

também tomando como referencial a maneira como a mulher é vista na literatura contemporânea

da época do poeta e nas épocas subseqüentes. Como ponto de partida para uma consideração da

figura feminina, observamos na literatura ocidental uma forte tendência a idealizar e santificar o

elemento feminino, tendência esta perceptível não só nas literaturas inglesa e norte-americana,

mas também nas literaturas brasileira e portuguesa.

A fim de se estabelecer uma comparação ilustrativa com a poesia de Poe, vale destacar

aqui os escritores ingleses John Keats e William Wordsworth como exemplos de poetas que

idealizam enormemente a mulher, colocando-a sempre em um pedestal, vendo-a como um anjo e

até como uma santa. No entanto, a maneira como Keats idealiza a mulher é bem diferente da de

Wordsworth, que conserva influências do neoclassicismo na descrição do elemento feminino,

visto como um ser completamente espiritual, desprovido de sexualidade, inserido em um cenário

bucólico que lembra o das éclogas de Virgílio os poemas de Horácio. Keats, por sua vez, idealiza

a mulher de forma negativa, isto é: ao contrário da figura angelical representada por Wordsworth,

Keats a concebe como um ser dual, anjo e demônio ao mesmo tempo. É esta concepção que

iremos encontrar, por exemplo, em Charles Baudelaire e no poeta simbolista brasileiro Cruz e

Sousa: uma mulher que atrai e ao mesmo tempo, aterroriza com seu charme fatal, uma “hedionda

libertina”3 que causa o mal e a desgraça. Baudelaire foi influenciado por Poe, tendo sido lido,

mais tarde, por Cruz e Sousa, que incorporou características de ambos em sua poesia.

Poe, por sua vez, concebe a mulher como um ser idealizado e assexuado, sem qualquer

laivo de sexualidade, à maneira de Wordsworth. Ao mesmo tempo, assim como Keats, Poe não

deixa de apontar aspectos negativos na descrição do elemento feminino, uma vez que a mulher,

2 A tradução do trecho citado é de minha autoria. 3 Esta frase é retirada de “Sed Non Satiata”, de Charles Baudelaire, poema de “As Flores do Mal” Trad. Jamil Haddad. 6ª edição. São Paulo: 1987.

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em sua obra, trará sempre uma perspectiva de morte e de destruição para o narrador, no caso da

prosa, ou para o eu lírico, no caso da poesia. A visão do amor que encontramos na poesia de Poe

difere bastante da dos neoclássicos, se enquadrando nos padrões românticos e prenunciando, ao

mesmo tempo, aspectos da estética simbolista.

Page 5: A visão da figura feminina na poesia de Edgar Allan Poe

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2 “O Corvo”

Na seqüência, a fim de se compreender o cerne da visão da figura feminina na obra de

Poe, partiremos para a análise de seu poema mais célebre, análise esta que irá estabelecer os

pontos principais que serão aprofundados na presente pesquisa.

“O Corvo”4 foi composto por Poe em 1845 e tem como central o tema da morte da mulher

amada, assunto este que se repetirá em outros poemas do autor, tais como “Lenore”, “To Helen”

e “Annabel Lee”, que também serão comentados no presente trabalho. Ao tema da morte da

amada, em “O Corvo”, se articulam os demais, tais como a idéia de transcendência espiritual, a

superstição relacionada à chegada do corvo, o isolamento do eu lírico e a sensação de loucura e

alucinação que acarreta a personificação da ave. Para fins de análise mais detalhada, segue o

poema abaixo:

/ - / - / - / - / - / - / - / - Once u/pon a /midnight/ dreary,/ while I /pondered,/ weak and/ weary, / - / - / - / - / - / - / - / - Over/ many a/ quaint and/ curious/ volume/ of for/gotten /lore,

/ - / - / - / - / - / - / - / - While I/ nodded,/ nearly/ napping,/ sudden/ly there/ came a/ tapping, / - / - / - / - / - / - / - / As of/ someone/ gently/ rapping,/ rapping/ at my /chamber/ door.

/ - /- / - / - / - / - / - / " ‘Tis some/ visi/tor," I /muttered, /"tapping /at my/ chamber/ door -

/ - / - / - / - - Only /this, and/ nothing/ more.

/ - / - / - / - / - / - / - / - Ah, dis/tinctly /I re/member/ it was/ in the/ bleak De/cember,

/ - / - / - / - / - / - / - / And each /separate/ dying/ ember/ wrought its /ghost u/pon the/ floor.

/ - / - / - / - / - / - / - / - Eager/ly I/ wished the/ morrow;/ vainly/ I had/ sought to/ borrow / - / - / - / - / - / - / - / - From my / books sur/cease of /sorrow - /sorrow /for the/ lost Le/nore, - / - / - / - / - / - / - / - / - For the/ rare and /radiant /maiden /whom the/ angels/ name Le/nore –

4Todos os poemas de Poe analisados e comentados no presente trabalho foram retirados de POE, E. A. Spirits of the Dead: Tales and Poems. Penguin Books: London, 1997.

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/ - / - / - / - Nameless/ here for/ ever/more.

/ - / - / - / - / - / - / - / -

And the/ silken,/ sad, un/certain /rustling /of each/ purple /curtain / - / - / - / - / - / - / - / -

Thrilled me -/ filled me/ with fan/tastic /terrors/ never/ felt be/fore; / - / - / - / - / - / - / - / -

So that/ now, to/ still the /beating /of my /heart, I/ stood re/peating: / - / - / - / - / - / - / - /

" ‘Tis some/ visi/tor en/treating/ entrance/ at my/ chamber/ door – / - / - / - / - / - / - / - /

Some late/ visi/tor en/treating/ entrance/ at my/ chamber/ door - / - / - / - / -

This it /is and/ nothing /more."

/ - / - / - / - / - / - / - / -

Presen/tly my /soul grew/ stronger: /hesi/tating /then no /longer, / - / - / - / - / - / - / - / -

"Sir," said /I, "or /Madam,/ truly /your for/giveness/ I im/plore; / - / - / - / - / - / - / - / -

But the/ fact is/ I was/ napping,/ and so/ gently/ you came /rapping, / - / - / - / - / - / - / - /

And so/ faintly/ you came/ tapping,/ tapping/ at my/ chamber/ door, / - / - / - / - / - / - / - /

That I/ scarce was/ sure I/ heard you" - /here I/ opened/ wide the/ door -; / - / - / - / -

Darkness /there and/ nothing/ more.

/ - / - / - / - / - / - / - / -

Deep in/to that /darkness/ peering,/ long I /stood there,/ wondering,/ fearing, / - / - / - / - / - / - / - / -

Doubting, /dreaming/ dreams no/ mortals /ever /dared to/ dream be/fore; / - / - / - / - / - / - / - / -

But the/ silence /was un/broken, /and the /stillness /gave no/ token / - / - / - / - / - / - / - / -

And the /only /word there s/poken/ was the /whispered /word, “Le/nore!” / - / - / - / - / - / - / - / - This I /whispered,/ and an/ echo/ murmured /back the /word, “Le/nore!”

/ - / - / - / - Merely /this and /nothing /more.

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/ - / - / - / - / - / - / - / - Back in/to the /chamber /turning,/ all my /soul wi/thin me/ burning, / - / - / - / - / - / - / - / - Soon a/gain I /heard a /tapping,/ something/ louder/ than be/fore,

/ - / - / - / - / - / - / - / - "Surely",/ said I, /"surely,/ that is/ something/ at my/ window /lattice;

/ - / - / - / - / - / - / - / - Let me /see, then, /what the/reat is,/and this/ myste/ry ex/plore, -

/ - / - / - / - / - / - / - / - Let my/ heart be/ still a/ moment/ and this/ myste/ry ex/plore. / - / - / - / -

" Tis the/ wind, and/ nothing/ more."

/ - / - / - / - / - / - / - / -

Open/ here I/ flung the/ shutter,/ when, with/ many a/ flirt and/ flutter, / - / - / - / - / - / - / - / -

In there/stepped a/ stately/ Raven/ of the/ saintly/days of/ yore. / - / - / - / - / - / - / - / - Not the/ least o/beisance/ made he,/ not a/ minute/ stopped or /stayed he;

/ - / - / - / - / - / - / - / But, with/ mien of/ lord or/ lady,/ perched a/bove my/ chamber/ door -

/ - / - / - / - / - / - / - / Perched u/pon a/ bust of/ Pallas/ just a/bove my/ chamber/ door -

/ - / - / - / - Perched and/ sat, and/ nothing/ more.

/ - / - / - / - / - / - / - / -

Then, this/ebony/ bird be/guiling/ my sad/ fancy in/to s/miling, / - / - / - / - / - / - / - / -

By the/ grave and/ stern de/corum/ of the/ counte/nance it/ wore, / - / - / - / - / - / - / - / -

"Though thy/ crest be/ shorn and/ shaven/ thou," I /said, "art/ sure no/ craven, / - / - / - / - / - / - / - / -

Ghastly,/ grim, and/ ancient/ Raven,/ wandering/ from the/ nightly/ shore: / - / - / - / - / - / - / - / - Tell me/ what thy/ lordly/ name is/ on the/ Night's Plu/tonian/ shore!"

/ - / - / - / - Quoth the/ Raven,/ "Never/more."

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/ - / - / - / - / - / - / - / - Much I/ marvelled/ this un/gainly/ fowl to/ hear dis/course so/ plainly,

/ - / - / - / - / - / - / - / - Though its/ answer/ little/ meaning,/ little/ rele/vancy/ bore;

/ - / - / - / - / - / - / - / - For we/ cannot/ help a/greeing/ that no/ living/ human/ being

/ - / - / - / - / - / - / - / Ever/ yet was/ blessed with/ seeing/ bird a/bove his/ chamber/ door -

/ - / - / - / - / - / - / - / Bird or/ beast u/pon the/ sculptured/ bust a/bove his/ chamber/ door -

/ - / - / - / - With such/ name as/ "Never/more."

/ - / - / - / - / - / - / - / -

But the/ Raven,/ sitting/ lonely/ on that/ placid/ bust, spoke/ only / - / - / - / - / - / - / - /

That one/ word, as/ if his/ soul in/ that one/ word he/ did out/pour. / - / - / - / - / - / - / - / -

Nothing/ further/ then he / uttered, /not a / feather / then he / fluttered; / - / - / - / - / - / - / - / -

Till I/ scarcely/ more than/ muttered,/ "Other/ friends have/ flown be/fore: / - / - / - / - / - / - / - / -

On the/ morrow/ he will/ leave me,/ as my/ Hopes have/ flown be/fore." / - / - / - / -

Then the/ bird said,/ "Never/more."

/ - / - / - / - / - / - / - / -

Startled/ at the/ stillness/ broken/ by re/ply so/ aptly/ spoken, / - / - / - / - / - / - / - / -

"Doubtless,/" said I,/ "what it/ utters/ is its/ only s/tock and s/tore, / - / - / - / - / - / - / - / -

Caught from/ some un/happy/ master/ whom un/merci/ful Di/saster / - / - / - / - / - / - / - / -

Followed/ fast and/ followed/ faster/ till his/ songs one/ burden / bore, / - / - / - / - / - / - / - / -

Till the/ dirges/ of his/ Hope that/ melan/choly/ burden/ bore, / - / - / -

Of ‘Never/ – never/more’.

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/ - / - / - / - / - / - / - / - But the/ Raven s/till be/guiling/ all my/ sad soul/ into/ smiling,

/ - / - / - / - / - / - / - / Straight I/ wheeled a/ cushioned/ seat in/ front of/ bird, and/ bust and /door;

/ - / - / - / - / - / - / - / - Then, u/pon the/ velvet/ sinking,/ I be/took my/self to/ linking

/ - / - / - / - / - / - / - / - Fancy/ unto/ fancy,/ thinking/ what this/ ominous/ bird of/ yore,

/ - / - / - / - / - / - / - / - What this/ grim, un/gainly,/ ghastly,/ gaunt and/ ominous/ bird of/ yore

/ - / - / - / - Meant in/ croaking/ "Never/more."

/ - / - / - / - / - / - / - / -

This I/ sat en/gaged in/ guessing,/ but no/ sylla/ble ex/pressing / - / - / - / - / - / - / - / -

To the/ fowl, whose/ fiery/ eyes now/ burned in/to my/ “bosom's”/ core; / - / - / - / - / - / - / - / -

This and/ more I /sat di/vining,/ with my/ head at/ ease re/clining / - / - / - / - / - / - / - / On the/ cushion's/ velvet/ lining/ that the/ lamplight/ gloated/ o'er,

/ - / - / - / - / - / - / - / But whose/ velvet/ violet /lining/ with the/ lamplight/ gloating/ o'er,

/ - / - / - / - She shall/ press, ah,/ never/more!

/ - / - / - / - / - / - / - / -

Then, me/thought, the/ air grew/ denser,/ perfumed/ from an unseen/ censer / - / - / - / - / - / - / - /

Swung by/ sera/phim whose/ foot-falls/ tinkled/ on the/ tufted/ floor. / - / - / - / - / - / - / - / -

"Wretch," I/ cried, "thy/ God hath/ lent thee/ - by these/ angels/ he hath/ sent thee / - / - / - / - / - / - / - / -

Respite/ - respite/ and ne/penthe/ from thy /memories /of Le/nore! / - / - / - / - / - / - / - / - Quaff, oh/ quaff this/ kind ne/penthe,/ and for/get this/ lost Le/nore!"

/ - / - / - / - Quoth the/ Raven,/ "Never/more".

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/ - / - / - / - / - / - / - / - "Prophet!",/ said I,/ "thing of /evil!/ - prophet/ still, if /bird or/ devil! -

/ - / - / - / - / - / - / - / - Whether/ Tempter/ sent, or /whether/ tempest/ tossed thee/ here a/shore,

/ - / - / - / - / - / - / - / - Deso/late yet/ all un/daunted,/ on this/ desert/ land en/chanted -

/ - / - / - / - / - / - / - / - On this/ home by/ Horror/ haunted/ - tell me/ truly,/ I im/plore: / - / - / - / - / - / - / - / -

Is there/ - is there/ balm in/ Gilead?/ - tell me/ - tell me,/ I im/plore!" / - / - / - / -

Quoth the/ Raven,/ "Never/more."

/ - / - / - / - / - / - / - / -

"Prophet!"/, said I,/ "thing of/ evil /- prophet/ still, if/ bird or/ devil! / - / - / - / - / - / - / - / -

By that/ Heaven/ that bends/ above us,/ by that/ God we/ both a/dore, / - / - / - / - / - / - / - / -

Tell this/ soul with/ sorrow/ laden/ if, wi/thin the/ distant /Aidenn, / - / - / - / - / - / - / - / - It shall/ clasp a /sainted/ maiden/ whom the/ angels/ name Le/nore:

/ - / - / - / - / - / - / - / - Clasp a /rare and/ radiant/ maiden,/ whom the/ angels/ name Le/nore.”

/ - / - / - / - Quoth the/ Raven,/ "Never/more."

/ - / - / - / - / - / - / - / - "Be that/ word our /sign of/ parting,/ bird or /fiend!" I/ shrieked, up/starting:

/ - / - / - / - / - / - / - / - "Get thee/ back in/to the/ tempest/ and the/ Night's Plu/tonian/ shore! / - / - / - / - / - / - / - / - Leave no/ black plume/ as a/ token /of that /lie thy/ soul hath s/poken!

/ - / - / - / - / - / - / - / Leave my/ loneli/ness un/broken!/ quit the/ bust a/bove my/ door! / - / - / - / - / - / - / - / Take thy/ beak from/ out my/ heart, and/ take thy/ form from/ off my /door!"

/ - / - / - / - Quoth the/ Raven,/ "Never/more."

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/ - / - / - / - / - / - / - / - And the/ Raven,/ never/ flitting,/ still is/ sitting,/ still is/ sitting

/ - / - / - / - / - / - / - / On the/ pallid/ bust of/ Pallas/ just a/bove my/ chamber/ door;

/ - / - / - / - / - / - / - / - And his/ eyes have/ all the/ seeming/ of a /demon's /that is/ dreaming, / - / - / - / - / - / - / - / And the/ lamplight /o'er him/ streaming/ throws his/ shadow /on the/ floor;

/ - / - / - / - / - / - / - / And my/ soul from/ out that/ shadow/ that lies/ floating/ on the/ floor

/ - / - / - / - Shall be/ lifted/ - never/more!

A fim de aprofundar a análise, cumpre estabelecer uma relação entre a poesia e os ensaios

críticos de Poe, a fim de averiguar a maneira como o autor põe em prática o que afirma na teoria.

Em seu ensaio “A Filosofia da Composição”, escrito em 1845, Poe declara que o tema da morte

da mulher amada vem a ser o mais comovente de todos os temas poéticos, especialmente se tal

mulher for jovem e bela:5

De todos os temas melancólicos, qual, segundo a compreensão universal da humanidade, é o mais melancólico?” A Morte – foi a resposta evidente. “E quando”, insisti, “esse mais melancólico dos temas se torna o mais poético?” Pelo que já explanei, um tanto prolongadamente, a resposta também era aí evidente: “Quando ele se alia, mais de perto, à Beleza; a morte, pois, de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo, e, igualmente, a boca mais capaz de desenvolver tal tema é a de um amante despojado de seu amor. (POE, 1987: 115)

De fato, a imagem da donzela constitui uma verdadeira obsessão na poesia de Poe, onde

ela se apresenta, conforme já dissemos, como um ser absolutamente idealizado e inacessível,

desprovido de qualquer manifestação de sexualidade. Tal idealização do elemento feminino

adquire contornos góticos e macabros, uma vez que, na poesia de Poe, a mulher jovem aparece

muitas vezes morta, o que configura, por parte do ser amado, uma atitude de necrofilia6 em

relação ao corpo da amada morta. Tais aspectos estão presentes em “O Corvo”, se manifestando

também na noção de transcendência espiritual e união com o cosmos que representam, para o eu

lírico, a única maneira de reencontrar a amada.

5 Todos os trechos de “A Filosofia da Composição” comentados neste trabalho foram extraídos de: POE, E. A . Poemas e Ensaios. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado. Rio de Janeiro: Globo, 1987. 6 Define-se como necrofilia o desejo sexual e/ou tentativa de aproximação física em relação a pessoas mortas.

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No poema, o eu lírico, solitário e compungido, tenta fugir de sua melancolia lendo

“doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais”7 a fim de encontrar um bálsamo para a dor

da morte de sua amada, Lenore. A “ação” do poema se situa no “gélido dezembro”, em uma

“meia-noite erma e sombria” repleta do mistério e da solidão que envolvem o eu, cuja leitura é

interrompida por um estranho barulho que repercute nos vitrais da janela. Tal acontecimento

provoca uma mudança significativa no estado de espírito do amante, que passa de melancólico e

indiferente ao mundo externo a curioso e alerta ao barulho que acabou de escutar do lado de fora.

Ele abre a porta e tem a impressão de ouvir um eco murmurando o nome de Lenore, voltando

para o interior do quarto com a alma revolta, até ouvir um novo barulho. Desta vez, ao abrir a

porta, ele se depara com um “corvo hierático e soberbo”, que parece vir da noite tempestuosa e

sombria, pousando em um busto de Palas Atena localizado junto à janela do quarto. O eu lírico

começa a dialogar com a ave, curioso sobre sua origem, fazendo-lhe perguntas a respeito da

possibilidade de reencontrar a amada, e a todas estas perguntas a ave responde “nunca mais”. A

fala insólita do corvo atiça ainda mais a curiosidade do amante, fazendo com que ele entre em um

ciclo de tortura que culminará na certeza terrível de que ele jamais encontrará Lenore outra vez.

Finalmente, ele desiste de dialogar com a ave, derrotado pelo fatalismo daquelas palavras e

declarando que sua alma ficará para sempre presa à sombra do corvo:

And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting On the pallid bust of Pallas just above my chamber door; And his eyes have all the seeming of a demon’s that is dreaming, And the lamplight o’er streaming throws his shadow on the floor; And my soul from out that shadow that lies floating on the floor Shall be lifted – nevermore!

No poema, há uma série de elementos importantes que ajudam a caracterizar a figura

feminina e a postura do amante melancólico, retratado como um ser completamente isolado do

mundo externo, cuja atitude é de profunda introspecção devido à perda da amada. Tal isolamento

se manifesta no estado moroso de espírito do amante, que se distrai com a leitura de livros

antigos para tentar esquecer a morte da mulher que ama, o que mostra sua erudição e tentativa de

fuga para um passado remoto e distante. A quietude do quarto ricamente mobiliado onde se

encontra o eu lírico é quebrada pela chegada do corvo, o que causa uma grande modificação em

7 Os trechos citados em português foram retirados da tradução de “O Corvo” feita por Milton Amado em 1943. A

Page 13: A visão da figura feminina na poesia de Edgar Allan Poe

15

seu estado de espírito. A oposição entre os dois ambientes, o quarto onde há o busto de Palas e

onde as cortinas “arfam em lúgubre surdina”, e a noite sombria de Plutão da onde vem o corvo,

ajuda a construir uma das principais dicotomias do poema, que se assenta no embate entre a

alienação do personagem, perdido em reminiscências a respeito da amada morta, e a chegada

repentina do corvo, um elemento externo que representa o mistério da noite, o fatalismo

agourento e a desesperança que constituem os motes centrais do poema. Além disso, os fatos

narrados ocorrem à meia noite, no mês de dezembro, referências temporais que simbolizam o fim

de algo e o começo de uma nova vida, idéias estas que reforçam os sentimentos de ansiedade em

relação à mudança e a angústia que assolam o eu lírico.

Outra característica marcante do eu lírico de “O Corvo” é o apego incessante ao passado,

manifesto não só na leitura de livros antigos como também no uso de uma linguagem preciosista

e repleta de referências a elementos religiosos e da Antigüidade greco-latina, tais como: “balm in

Gilead”8, “Aidenn”, “Plutonian”, “bust of Pallas”, “seraphim” e, sobretudo, “nepenthe”, alusão

esta que remete a uma antiga poção usada pelos antigos, a fim de induzir o esquecimento ou o

alívio da dor gerada pela morte da amada, que aparece absolutamente idealizada, em meio aos

anjos.

Ao longo de todo o poema, a figura feminina é descrita com o termo “maiden”, o que

reforça a pureza e a virgindade da amada, concebida como um ser celestial que não pertence a

este mundo: “the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore.” Tal tendência a

idealizar o elemento feminino pode ser verificada não só na poesia de Poe como também na

poética simbolista em geral, da qual o autor é precursor.9 A idealização da mulher provém,

sobretudo, da poética romântica, que na maioria das vezes concebe a figura feminina como um

ser puro e assexuado, intocado e inacessível, objeto de um amor exclusivamente espiritual. O

ideário romântico está fortemente presente na poesia de Poe, onde a visão do elemento feminino

adquire contornos que prenunciam características simbolistas, presentes na idéia de que a amada

é um ser transcendente que se encontra em meio às “hostes celestiais” e também na noção de que

o eu lírico necessita transcender as percepções comuns da vida para unir-se a ela no cosmos.

tradução completa se encontra nos anexos do presente trabalho. 8 Esta é uma referência a uma região remota da Palestina. 9 Na poética simbolista, verifica-se uma enorme tendência a idealizar a mulher, concebendo-a como uma santa, ou como um ser puramente espiritual, desprovido de sexualidade, que não pertence a este mundo. Conforme vemos, estas características já estão presentes na poesia de Poe.

Page 14: A visão da figura feminina na poesia de Edgar Allan Poe

16

Neste sentido, a presença do corvo parece ser o principal obstáculo para a transcendência

do amante, uma vez que a ave introduz o elemento de desesperança manifesto no fatalismo

inexorável da expressão “nunca mais”. Tal fatalismo é o do amor perdido, amor este que o eu

lírico tem a esperança de reencontrar na esfera celestial, em meio aos seres angelicais. O desejo

de elevação espiritual é também comum na poética simbolista, se baseando na idéia de que o

mundo concreto é penoso demais para o ser humano, que desejará sempre superar os valores

mundanos em busca de outros valores mais nobres, tais como o amor, e a união com as formas

etéreas e puras. Desta forma, o desejo de transcendência se articula ao sentimento de perenidade

amorosa, manifesto também, conforme já dito, no isolamento do amante e na leitura de tomos

antigos que aliviam sua dor.

Ao tema da morte da amada se articula um recurso muito importante no poema: o

simbolismo do corvo. Tal simbolismo se associa à cultura popular, na qual o corvo é reputado

como a ave do mau-agouro e da desgraça. A superstição em torno da ave é o elemento propulsor

da atitude de auto-tortura do personagem, pois, mesmo sabendo que a resposta será

desesperançosa, ele insiste em saber do corvo se encontrará outra vez a sua amada, o que

configura um extremo masoquismo e desejo de auto flagelação psicológica. Sendo assim, a

chegada do corvo introduz o elemento simbólico central no poema, pois a ave representa o

mundo dos mortos, tendo vindo do reino sombrio de Plutão. O conflito entre o universo do

amante sofredor e o da ave sinistra parece se manifestar não só no contraste entre os ambientes

nos quais se encontram os dois, como também no fato de que o corvo, de penugem preta, pousar

no busto alvo de Palas Atena, o que evidencia o contraste entre o apego ao passado e a erudição

do amante e o universo desconhecido e soturno representado pela ave. Tal conflito entre mundos

diferentes parece ser a raiz da angústia do personagem, que deseja encontrar a amada morta em

outra dimensão, em um mecanismo de elevação cósmica que não se efetiva, o que acaba levando

à loucura e à aniquilação.

Desta forma, é vã a luta do amante para se desprender do mundo terreno e encontrar a

amada na esfera celestial; é um desafio existencial perdido, uma derrota espiritual. Ao fim do

poema, o eu lírico implora para que o corvo retire a garra de seu peito, o que parece ser a

representação máxima de sua angústia e dor extrema, a certeza terrível de que sua alma ficará

eternamente presa à sombra de ave, que o observa com os olhos de um demônio adormecido. O

fim do amante em luto é trágico, pois a sua luta para transcender o universo terreno é perdida

Page 15: A visão da figura feminina na poesia de Edgar Allan Poe

17

para os sentimentos de morbidez e desesperança que o corvo representa. Sendo assim, o amante

permanece preso ao mundo concreto, sem qualquer possibilidade de fuga, sem jamais poder

reencontrar a mulher amada, cuja morte é a força propulsora de sua angústia. Com isso, podemos

concluir que “o herói de Poe destrói a si mesmo. E sua destruição envolve os outros, e

principalmente a mulher amada.” (CUNLIFFE, 1954: 69)

O tema da morte da amada organiza não só o material temático de “O Corvo” como

também a estruturação formal do poema, uma vez que todos os artifícios estruturais usados pelo

autor se relacionam ao tema principal do texto. De fato, Poe declara, no seu ensaio “A Filosofia

da Composição”, que sua maior intenção foi fazer de “O Corvo” um poema universalmente

apreciável, isto é, um texto que poderia ser apreciado pelo público e pelos críticos: “Meu

pensamento seguinte referiu-se à escolha de uma impressão, ou efeito, a ser obtido; e aqui bem

posso observar que, através de toda a elaboração, tive firmemente em vista o desejo de tornar a

obra apreciável a todos” (POE, 1987: 112). Ainda de acordo com o autor, a beleza é “o solo

legítimo do poema”, e a melancolia, a maior manifestação de beleza em um trabalho literário:

Ora, designo a Beleza como a província do poema, simplesmente porque é evidente regra de arte que os efeitos deveriam jorrar de causas diretas, que os objetivos deveriam ser alcançados pelos meios melhor adaptados para atingi-los (...) A beleza de qualquer espécie, em seu desenvolvimento supremo, invariavelmente provoca na alma sensitiva as lágrimas. A melancolia é, assim, o mais legítimo de todos os tons poéticos. (POE, 1987: 115)

Sendo assim, de todos os temas poéticos, o da morte da mulher amada seria o mais

comovente, uma vez que corresponderia ao uso lírico do tema da morte aliado ao da beleza. A

escolha do tema da morte da amada foi intencional, pois corresponde às convicções ideológicas e

literárias do autor, influenciado pela estética romântica de sua época.

No que diz respeito à forma, Poe carrega o mérito de ter composto um poema que muitos

críticos, como Ivo Barroso, consideram perfeito e muito difícil de traduzir: “Há em “O Corvo”,

de Edgar Allan Poe, uma tal interdependência entre o conteúdo emotivo e seu suporte estrutural

que qualquer tentativa ou intuito de alterá-la concorre fatalmente para a diluição do encantamento

poético causado precisamente por essa combinação”. (BARROSO, 1996: 12) Poe ainda afirma,

em “A Filosofia da Composição”, que a gênese de “O Corvo” ter-se-ia dado com a exatidão de

um problema matemático. Em seu ensaio, Poe enfatiza a necessidade de se gerar um efeito único,

Page 16: A visão da figura feminina na poesia de Edgar Allan Poe

18

obtido, para ele, com uma leitura rápida. Desta forma, na visão de Poe, o trabalho literário deve

ser curto, uma vez que textos longos demandariam um maior tempo de leitura, o que destruiria o

efeito obtido pelo leitor:

A consideração inicial foi a da extensão. Se alguma obra literária é longa demais para ser lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito imensamente importante que se deriva da unidade de impressão, pois, se se requerem duas assentadas, os negócios do mundo interferem e tudo o que se pareça com totalidade é totalmente destruído (...) Pois é claro que a brevidade deve estar na razão direta da intensidade do efeito pretendido, e isto com uma condição, a de que certo grau de duração é exigido, absolutamente, para a produção de qualquer efeito. (POE, 1987: 111)

Poe revela em seu artigo que “O Corvo” foi composto de trás para frente, pois o autor

acredita que o efeito deve ser determinado primeiro para que depois se proceda à composição do

poema. Poe compôs “O Corvo” partindo da estrofe que corresponde ao clímax do texto,

construindo a partir daí o efeito, passo a passo, sem deixar de levar em consideração a disposição

das rimas, o uso de efeitos sonoros e o emprego das figuras de linguagem. Tais aspectos fazem de

“O Corvo” um poema extremamente rico, que demanda uma análise detalhada dos componentes

formais que o autor levou em conta em sua composição.

“O Corvo” tem 108 versos, dispostos em 18 estrofes de 6 versos cada. A disposição das

rimas é abcbbb, o que estabelece uma regularidade que se estenderá por todo o poema. O pé

utilizado é o troqueu ou trocaico, que se caracteriza pela alternância de sílabas fortes e fracas. Os

versos apresentam oito pés cada, com exceção do último verso de cada estrofe, que tem quatro

pés. O uso do trocaico dá um ritmo seco ao poema, o que ajuda a criar a atmosfera lúgubre e

macabra que permeia todo o texto. Outro aspecto formal importante é a ocorrência das repetições

sonoras, que também dão o suporte estrutural às idéias de melancolia sinistra e isolamento.

Dando seqüência à análise, segue a primeira estrofe do poema:

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary, Over many a quaint and curious volume of forgotten lore, While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping, As of someone gently rapping, rapping at my chamber door

“Tis some visitor”, I muttered, “tapping at my chamber door Only this, and nothing more”.

Page 17: A visão da figura feminina na poesia de Edgar Allan Poe

19

De início, tem-se a repetição do /on/ em “Once upon”, que irá fazer eco, por exemplo, em

“pondered”, ao passo em que a vogal /o/ se repetirá em “curious volume of forgotten lore” e em

“nodded”. Tem-se ainda a aliteração do /n/ em “nodded, nearly napping” e o uso dos verbos

monossilábicos “nap”, “tap”, “rap”. A recorrência do som /t/ é visível em “midnight”, “quaint”,

“forgotten”, “there came a tapping” e em “gently”, “visitor”, “muttered”, “tapping at”, “this and

nothing more”. Já a aliteração do /s/ aparece em “as”, “some”, “tis”, “visitor” e “this” formando

uma forte rede sonora. Há outros exemplos marcantes de repetição de sons no poema. Na

segunda estrofe, por exemplo, tem-se a assonância da vogal /e/ no primeiro verso: “I remember it

was in the bleak December”; na terceira estrofe, há a repetição do /s/ em “silken, sad, rustling”;

na quinta estrofe, a aliteração do /d/ em “doubting, dreaming dreams no mortals ever dared to

dream before”, e na décima terceira estrofe, a magistral aliteração do /f/ em “followed fast and

followed faster”. As aliterações e assonâncias em “O Corvo” formam uma rede sonora que ajuda

a reforçar a atmosfera de melancolia e tristeza que permeia todo o poema, o que mostra uma

incrível correspondência entre som e sentido, forma e conteúdo. Tal correspondência também se

evidencia na disposição das rimas internas dentro da estrofe: “dreary rimando com “weary” no

primeiro verso, “napping” rimando com “tapping” no segundo, e no terceiro tem-se a repetição

consecutiva de “rapping”, o que reforça ainda mais a atmosfera gótica e misteriosa do poema.

Além disso, há em “O Corvo” um paralelismo formal que se repete de estrofe em estrofe.

Apresentamos abaixo a segunda:

Ah, distinctly I remember it was in the bleak December, And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor Eagerly I wished the morrow, vainly I had sought to borrow From my books surcease of sorrow, sorrow for the lost Lenore For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore Nameless here for evermore.

Nos dois primeiros versos desta e das outras estrofes, tem-se uma definição situacional,

ou seja, o estabelecimento das características básicas da ambientação, isto é, o tempo e o lugar da

“ação” retratadas na estrofe. O quinto verso reitera o conteúdo do quarto verso, bem como a

primeira menção ao nome da amada e a referência a ela como “radiant maiden”, expressão esta

que denota a idéia de pureza e virgindade que é característica das mulheres na poesia de Poe.

Como fechamento, Poe coloca um verso mais curto, que sintetiza a idéia principal da estrofe: a

amada já não se encontra mais na terra, e sim em meio aos anjos. Além das reiterações sintáticas,

Page 18: A visão da figura feminina na poesia de Edgar Allan Poe

20

também as rimas internas e externas dão o suporte estrutural para a idéia de morte que está

presente em todo o poema. No primeiro verso, “remember” rima com “December”, “morrow”

com “borrow” e “sorrow” no terceiro verso. Quanto às rimas externas, tem-se “Lenore” rimando

com “evermore”; aliás, o nome da amada rima também com “nevermore”, a palavra dita pelo

corvo, o que associa a ave à idéia de separação entre o eu e sua amada. Tal associação aparecerá

de forma mais intensa com o uso do refrão, a principal forma de paralelismo no poema. Na

décima sexta estrofe, fica mais clara a idéia do corvo como um obstáculo para a união do eu com

o ser amado:

“Prophet”, said I, “thing of evil, prophet still, if bird or devil By that heaven that bends above us, by that God we both adore Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore? Quoth the raven, “nevermore” A rima de “Lenore” com “nevermore” marca, na estrutura do poema, a tragédia

existencial do amante, impossibilitado de transcender o universo terreno a fim de encontrar a

mulher amada. A fala do corvo, por sua vez, constitui o principal apelo psicológico do poema,

uma vez que é através da audição e da visão da ave sob o busto de Palas na janela que a desgraça

do eu lírico tem lugar, originando o profundo desespero que se relaciona com a morte do ser

amado.

A partir da extensiva análise de “O Corvo”, o poema mais conhecido de Poe, foi possível

perceber a grande importância do tema da morte da mulher amada em sua poesia. Para dar

suporte à argumentação desenvolvida nesta análise, será analisado a seguir o poema “Annabel

Lee”, em que a temática apresenta importantes nuances para a compreensão da maneira como

Poe vê a mulher em sua obra.

Page 19: A visão da figura feminina na poesia de Edgar Allan Poe

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3 “Annabel Lee”

Composto em 1849, quatro anos após a composição de “O Corvo” e no ano da morte de

Poe, “Annabel Lee” também tem como central o tema da morte da mulher amada. Comparado

com “O Corvo”, é um poema mais curto, com apenas 41 versos, o que parece contradizer a idéia

defendida pelo próprio Poe de que o poema deveria apresentar pelo menos cem versos10. Além

disso, “Annabel Lee” apresenta várias características do ideário simbolista, manifestadas em uma

tensão constante, que se articula em torno de idéias de ascensão e queda, conforme veremos na

análise do poema.

- - / - - / - - / - - / It was ma/ny and ma/ny a ye/ar ago, - - / - / - / In a king/dom by/ the sea, - - / - - / - / - - / That a mai/den there li/ved whom/ you may know - - / - / - / By the name/ of ANNA/BEL LEE; - - - / - - / - / - - / And this mai/den she lived/ with no/ other thought - - / - - / - / Than to love/ and be loved/ by me.

/ - - / - / - - / I was/ a child/ and she/ was a child,

- - / - / - / In this king/dom by/ the sea, - - / - - / - - / - / But we loved/ with a love/ that was more/ than love – / - - / - - / I and/ my Anna/bel Lee – - - / - - / / - / - With a love/ that the winged/ seraphs of/ heaven / - - / - / Cove/ted her/ and me.

10 Não seria uma revisão do autor da idéia do que é um poema curto?

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- / - - / - / - - / And this/ was the rea/son that,/ long ago, - - / - / - / In this king/dom by/ the sea, - / - / - - / - / A wind/ blew out/ of a cloud/ by night / - - / - - / Chilling my/ Anna/bel Lee; / - - / - / - / So that/ her high/-born kins/man came - / - - / - / And bore/ her away/ from me, - / - / / - / - To shut/ her up/ in a se/pulchre - - / - / - / In this king/dom by/ the sea. - / - / - / - / The angels,/ not half/ so happy/ in Heaven, - / - / - / Went envy/ing her/ and me: - / / - - / - / - / Yes! That/ was the reason/ (as all/ men know, - - / - / - / in this king/dom by/ the sea) - - / - / - - / / - That the wind/ came out/ of the cloud,/ chilling, - / - - / - / And ki/lling my Anna/bel Lee. - - / - - / - / - - / But our love/ it was stronger/ by far/ than the love - / - - / - / Of those/ who were older/ than we – - / - - / - / Of ma/ny far wiser/ than we – - / - / - / - / And neither/ the angels/ in Heaven/ above, - - / - / - / Nor the demons/ down under/ the sea,

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- / - / - / - - / Can ever/ dissever/ my soul/ from the soul - - / - - / - /

Of the beau/tiful Anna/bel Lee. – - - / - - / - - / - - / For the moon/ never beams/ without brin/ging me dreams - - / - - / - / Of the beau/tiful Anna/bel Lee; - - / - - / - - / - - / And the stars/ never rise/ but I see/ the bright eyes - - / - - / - / Of the beau/tiful Anna/bel Lee; - - / - - / - - / - - / And so, all/ the night-tide,/ I lie down/ by the side - - / - / - / - - / Of my darling,/ my darling,/ my life/ and my bride, - - / - - / - - / In the se/pulchre there/ by the sea – - - / - - / - - / In her tomb/ by the side/ of the sea.

“Annabel Lee” se diferencia bastante de “O Corvo”, não apenas em relação à linguagem,

que é mais acessível e declarativa do que a linguagem hermética, preciosista e elevada de “O

Corvo”, mas também no que diz respeito à forma. Em “Annabel Lee”, por exemplo, a disposição

das rimas, apesar de menos sofisticada do que em “O Corvo”, segue um padrão que pode ser

percebido desde a primeira estrofe:

It was many and many a year ago, a In a kingdom by the sea, b That a maiden there lived whom you may know, a By the name of ANNABEL LEE; b And this maiden she lived with no other thought c Than to love and be loved by me. b

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Este padrão, que se repete de estrofe em estrofe, (segundo, quarto e sexto versos

rimando), bem como a reiteração do nome da amada, ajudam a construir a regularidade formal

que atualiza a todo o momento a tragédia do amor perdido que é o tema principal do poema. É

relevante notar que o padrão da repetição se constrói em torno de palavras que rimam com o

nome da amada, assim como em “O Corvo”, tais como “sea”, “me” e “we”, o que mostra como a

figura feminina é de crucial importância no poema. Este paralelismo, expresso não só na

disposição das rimas como na repetição de palavras, ajuda a construir estruturalmente a atmosfera

de mistério e a idéia de morte que permeiam todo o texto. No que diz respeito à alternância entre

sílabas, no entanto, temos uma variação significativa entre o anapesto, um tipo de verso bastante

musical, e o troqueu ou trocaico, um tipo de verso mais seco. Segue abaixo a segunda estrofe:

/ - - / - / - - / I was/ a child/ and she/ was a child, - - / - / - / In this king/dom by/ the sea, - - / - - / - - / - / But we loved/ with a love/ that was more/ than love- / - - / - / I and/ my Anna/bel Lee, - - / - - / / - / - With a love/ that the winged/ seraphs of/ heaven / - - / - / Cove/ted her/ and me.

No que diz respeito à trama sonora do poema, destacamos o uso das aliterações e

assonâncias. Na terceira estrofe, temos a marcante assonância do /u/ no sétimo verso: “to shut her

up in a sepulchre”, que espelha estruturalmente a idéia do sepultamento aprisionador. A maior

ocorrência de aliterações e assonâncias se encontra na última estrofe, conforme esquematizado

abaixo:

For the moon never beams, without bringing me dreams Of the beautiful Annabel Lee; And the stars never rise, but I see the bright eyes Of the beautiful Annabel Lee; And so, all the night-tide, I lie down by the side Of my darling, my darling, my life and my bride In her sepulchre there by the sea In her tomb by the sounding sea.

Page 23: A visão da figura feminina na poesia de Edgar Allan Poe

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A repetição sonora constrói formalmente as idéias de ascensão e queda, bem como o som

das ondas do mar, sugerido pela aliteração do /s/. Pode-se notar que há uma reiteração da

estrutura sintática dos dois primeiros versos da estrofe, que se repetem de maneira espelhada no

terceiro e quarto versos, reforçando a idéia da proximidade dos elementos da natureza com a

amada. No sexto verso, a repetição de “my darling” e o uso metafórico de “my life” dão o

arremate à principal idéia do poema: a visão do amor como algo puramente espiritual, e da

mulher como objeto idealizado deste amor. Tais idéias serão discutidas mais amplamente na

próxima seção, com mais exemplos de poemas que tratem da imagem do elemento feminino.

Na primeira estrofe do poema, o eu lírico já define a dimensão espaço-temporal da

“ação”: um lugar misterioso e longínquo, um “reino junto ao mar”, em um passado também

misterioso e distante. No terceiro e no quarto versos, aparecem as primeiras menções à mulher

amada, referida com o termo “maiden”, o que remete a uma idealização do elemento feminino,

concebido como um ser angelical, que não pertence a este mundo. Na segunda estrofe, a amada

aparece referida com o termo “child”, o que reforça a sua idealização e a noção de que esta

mulher é objeto de um amor espiritual, amor este que leva a uma subversão da lógica divina, uma

vez que os anjos do paraíso começam a invejar o casal de namorados, a ponto de “matar”

Annabel Lee. No poema, a morte se apresenta de maneira simbólica, representada pelo vento

gelado que sopra das nuvens à noite, e pelo cavaleiro de estirpe nobre que vem “seqüestrá-la”, a

fim de encerrá-la em um sepulcro junto ao mar. Todavia, conforme dito na quinta estrofe, o amor

dos dois jovens era muito mais forte do que a influência dos anjos do céu e das pessoas mais

velhas da terra, o que torna impossível uma separação espiritual do amante e de Annabel Lee.

Desta forma, ao final do poema, ele se deita ao lado da amada em seu sepulcro junto ao mar,

buscando uma união que só se realizará plenamente na morte e sugerindo sua própria “morte” na

imobilidade tumular.

Analisando mais profundamente a estrutura temática pode-se perceber que o tema da

morte da amada em “Annabel Lee” se constrói em torno da polarização ascensão versus queda,

que se manifesta, por um lado, em referências ao céu, ás nuvens e às estrelas, e por outro, em

referências à morte e ao mundo subterrâneo. Tal dicotomia pode ser observada nitidamente na

organização temática do poema. Na primeira estrofe, temos a descrição do ambiente e da amada,

em um cenário absolutamente idealizado, que causa estranhamento e remete ao exotismo

romântico, configurando as idéias de isolamento e solidão que estão presentes no poema. Na

Page 24: A visão da figura feminina na poesia de Edgar Allan Poe

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segunda estrofe, temos a primeira referência do pólo ascensional: os anjos do paraíso, que sentem

a emoção terrena da inveja, o que contradiz ironicamente a sua essência angelical. Na terceira

estrofe, mais uma referência do pólo ascensional: as nuvens, através das quais sopra o vento

mortal que misteriosamente causa a separação trágica dos jovens amantes. Esta estrofe contém já

a primeira referência do pólo descensional: o sepulcro da amada junto ao mar. Na quinta estrofe,

além da reafirmação heróica do amor jovem e da idéia de oposição dos mais velhos e mais sábios

em relação a este amor, fica clara a dicotomia ascensão x queda no quarto e quinto versos: a

menção aos anjos do paraíso e aos demônios do mar reafirma o conflito céu x terra, material x

espiritual, um dos conflitos que caracterizam o imaginário simbolista, onde se observa um desejo

de transcendência que se realiza, muitas vezes, na morte. Em “Annabel Lee”, tal desejo se

manifesta na tentativa de união do eu lírico com a amada, que transcende o mundo concreto

descendo, como Perséfone11, às profundezas da terra. Na última estrofe do poema, o desejo maior

do eu se realiza: pela lua e pelas estrelas do céu, que refletem os brilhantes olhos de Annabel Lee,

na noite sombria e misteriosa, ele se deita ao lado da amada, referida aqui como “my darling, my

life and my bride”, em seu sepulcro junto ao mar, em uma atitude de quase necrofilia que também

ajuda a construir a constante descensional do poema. A polarização ascensão versus queda, na

medida em que ajuda a construir a idealização do elemento feminino, pode ser esquematizada, à

guisa de ilustração dos elementos acima discutidos, da seguinte maneira:

11 Esta é uma referência ao mito grego de Perséfone, que foi seqüestrada pelo deus Plutão e desceu ao mundo dos mortos, se tornando a rainha do inferno na mitologia grega.

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ASCENSÃO QUEDA

Winged seraphs of heaven Sea Cloud Night Angels Sepulchre Moon Demons

Stars Tomb

IDEALIZAÇÃO DO ELEMENTO FEMININO Maiden Child Beautiful Soul Darling

Estão presentes, em “Annabel Lee”, características tanto do ideário romântico quanto do

ideário simbolista que permeiam toda a poesia de Poe. É típica do Romantismo, que surge na

virada do século XIX, trazendo novas noções de individualidade e liberdade, a idealização de

tempo e lugar que encontramos no poema, centrada na referência ao mar, que denota mistério,

estranhamento e solidão. É também típica do gosto romântico a idealização do amor, visto como

puramente espiritual e desprovido de desejos carnais e/ou aspirações terrenas. No Romantismo

também encontramos o senso heróico e o ideal cavalheiresco do amor, bem como a apologia do

amor jovem, presente na idéia de que os dois amantes, por serem jovens, são capazes de superar

quaisquer obstáculos que se interponham entre eles, sejam eles obstáculos terrenos ou celestiais.

De acordo com Robert Spiller, “o ideal cavalheiresco está no centro da vida e da arte de Poe”,

tendo sido estabelecido como a “imagem literária de uma sociedade comprometida com a defesa

da ordem aristocrática.”12 (SPILLER, 1955: 63). No Romantismo também está presente a

valorização da infância, vista como a época áurea da vida, e da natureza, concebida como um

recanto de paz e fascínio.

12 A tradução do trecho citado é de minha autoria.

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Em “Annabel Lee”, são abundantes as referências aos elementos da natureza, tais como o

mar, o vento, a lua e as estrelas. Mas no poema, em contraste com o que acontece no

Romantismo13, a natureza não aparece idealizada como algo perfeito, mas sim como algo que traz

a sensação consoladora de refúgio e também um tormento terrível, expresso principalmente na

idéia de abdução da amada pelas forças naturais e sobrenaturais. As idéias de natureza se

encontram intimamente associadas com as idéias de ascensão e queda, como pudemos observar

no esquema acima. Tais idéias, por sua vez, ajudam a construir a imagem idealizada do elemento

feminino, caracterizado com elementos tanto do Simbolismo quanto do Romantismo. De fato,

encontramos em toda a obra de Poe uma série de características do ideário romântico, que tem

como um dos elementos essenciais a recuperação da “liberdade de imaginação dos romances da

Idade Média”, que contrastam com “a disciplina da literatura clássica da antiga Grécia e Roma.”

(GOWER, 1996: 146)

Na poesia de Poe, além das características do Romantismo, encontramos também

características da estética simbolista. Em “Annabel Lee”, assim como em “O Corvo”, estão

presentes as idéias de transcendência espiritual e influência cósmica que encontraremos, mais

tarde, na produção literária do Simbolismo. Em ambos os poemas, o mundo celestial aparece

como influência decisiva no destino amoroso do eu lírico e de sua amada, causando a morte da

jovem ou impedindo a união dos amantes. Em “O Corvo”, tal união não se realiza jamais, uma

vez que o corvo a impede com o seu refrão terrível, que espelha a angústia do eu e o leva ao

desespero existencial do “nunca mais”. Em “Annabel Lee”, a união com a amada se realiza

subterraneamente, nas profundezas da terra, em uma atitude de adoração não usual e até mesmo

macabra pela mulher morta. Tal adoração vem do Romantismo e se propaga no Simbolismo,

constituindo uma verdadeira obsessão poética. De acordo com Affonso Romano de Sant’Anna, o

gosto pela amada morta, assim como a idealização da sua figura, vem a ser uma forma de

“interdição do desejo”, ou seja, uma maneira de eliminar qualquer vestígio de atração sexual com

o objetivo de infantilizar e/ou colocar em um pedestal a figura feminina, que passa a ser vista

como um ser inacessível e assexuado. (SANT'ANNA, 1984: 87) Tal postura, conforme viemos

analisando na presente pesquisa, é bastante freqüente na poesia de Poe, onde se verifica sempre

uma idealização e até mesmo uma santificação da figura feminina. Na próxima seção, serão

13 Esta concepção de natureza que vemos no Romantismo aparece em William Wordsworth, que, apesar de ser neoclássico, antecipa uma série de características românticas em sua poesia.

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analisados mais alguns poemas de Poe onde a mulher também aparece idealizada, vista como

anjo, criança e até mesmo, mãe.

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4 A figura feminina: desdobramentos

Partindo da análise de “O Corvo” e “Annabel Lee”, foi possível aproximar-se do modo

como Poe vê a figura feminina em sua poesia. Perceptíveis não só nestes poemas, a postura de

idealização e santificação da mulher aparecerá em outros textos poéticos do autor, indicando

alguns desdobramentos significativos que merecem ser analisados, uma vez que compõem um

quadro bastante interessante da visão de Poe a respeito da mulher em sua poesia.

De início, é preciso ao menos tentar definir a maneira como Poe vê o sentimento amoroso

em sua poesia. Conforme analisado em “O Corvo” e “Annabel Lee”, há uma idealização do

amor, visto como algo espiritualizado e desprovido de quaisquer manifestações de desejos

carnais. No entanto, este amor, apesar de idealizado no âmbito sexual, não é concebido como

algo harmonioso e feliz, pelo contrário: adquire contornos de tortura e sofrimento, angústia e

aniquilação. Isso pode ser também entrevisto, por exemplo, neste trecho do poema

“Alone”(1850):

From childhood’s hour I have not been As others were; I have not seen As others saw; I could not bring My passions from a common spring. From the same source I have not taken My sorrow; I could not awaken My heart to joy at the same tone; And all I loved, I loved alone.

Percebe-se aqui a angústia do eu lírico, em especial nos versos “I could not bring / My

passions from a common spring”, que remetem à infância do eu lírico a tragédia de sua

experiência amorosa, confirmando a idéia de que ele sempre amou sozinho, em um processo de

auto-comiseração que reflete o seu isolamento em relação ao mundo. A isso, soma-se o tema

recorrente do amor platônico e do amor perdido, já apontados anteriormente, bem como a

tragédia existencial do próprio Poe, retratada em “To my mother” (1850):

Because I feel that, in the Heavens above, The angels, whispering to one another, Can find, among the burning terms of love, None so devotional as that of “Mother”,

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Therefore by that dear name I long have called you – You who are more than a mother unto me, And fill my heart with hearts, where Death installed you In setting my Virginia’s spirit free. My mother – my own mother, who died early, Was but the mother of myself; but you Are mother to the one I loved so dearly, And thus are dearer than the mother I knew By that infinity with which my wife Was dearer to my soul than its soul-life.

Considerando as informações biográficas que temos a respeito de Poe, pode-se concluir

que este poema é claramente autobiográfico, tendo sido composto em homenagem à tia do poeta,

a Sra. Maria Clemm. Vale lembrar que Maria era mãe de Virgínia, esposa do autor, que morreu

de tuberculose em 1847, deixando Poe em estado de profundo desespero. No entanto, a despeito

das referências à biografia do autor, e do fato de que muitos de seus contos e poemas apresentam

um teor autobiográfico, o poema se sustenta literariamente com o tema do amor maternal

atribuído à figura feminina, que aqui assume o papel da mãe que substitui a esposa morta no

amor e na devoção do eu lírico. Isso teria realmente acontecido, uma vez que, após a morte de

Virgínia, a Sra. Clemm teria se tornado muito importante na vida de Poe, que começara a padecer

definitivamente com problemas de saúde e com o alcoolismo. Há também no poema a menção

aos anjos do céu, o que confere uma aura de religiosidade e misticismo ao texto, aspecto este que

lembra o tema da amada morta entre “hostes celestiais”. Esta visão da mulher como uma espécie

de “mãe” para o eu lírico está também presente nestes trechos de “For Annie” (1850):

She tenderly kissed me She fondly caressed And then I fell gently To sleep on her breast – Deeply to sleep From the heaven of her breast.

When the light was extinguished, She covered me warm, And she prayed to the angels

To keep me from harm – To the queen of the angels To shield me from harm.

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É clara a idéia de busca de carinho e proteção, presente nas escolhas lexicais do texto, tais

como “angels” e harm”, bem como a visão da mulher como um ser acolhedor, capaz de proteger

o eu lírico dos perigos e mantê-lo seguro junto de si e dos anjos. O amor por Annie vem a ser

absolutamente idealizado e transcendente, como se pode constatar na última estrofe do poema:

But my heart it is brighter Than al of the many Stars in the sky, For it sparkles with Annie – It glows with the light Of the love of my Annie – With the thought of the light Of the eyes of my Annie.

A figura de Annie é também idealizada, pois seus olhos são capazes de inspirar os mais

nobres sentimentos. A referência aos olhos da amada é bastante freqüente na poesia de Poe,

aparecendo também neste trecho de “To Helen”14 (1850):

But now, at length, dear Dian sank from sight, Into a western couch of thunder-cloud; And thou, a ghost, amid the entombing trees Didst glide away. Only thine eyes remained; They would not go – they never yet have gone; Lighting my lonely pathway home that night, They have not left me (as my hopes have) since; They follow me – they lead me through the years. They are my ministers – yet I their slave. Their office is to illumine and enkindle – My duty, to be saved by their bright light, And purified in their electric fire, And sanctified in their elysian fire. They fill my soul with Beauty (which is Hope), And are far up in Heaven – the stars I kneel to In the sad, silent watches of my night; While even in the meridian glare of day I see them still – two sweetly scintillant Venuses, unextinguished by the sun!

14 Este poema é dedicado a Mrs. Sarah Helen Whitman, que teria sido noiva de Poe. Há dois poemas com o mesmo título, e o segundo se encontra também citado no presente trabalho.

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Neste trecho é também muito clara a idéia da mulher amada como o ser que guia o eu e o

protege do mal. Tal noção é representada metonimicamente pelos olhos da amada, que são os

“ministros” da vontade do amante, que se coloca em posição de submissão perante eles,

afirmando que é seu escravo. Ele afirma também que o seu destino é ser salvo, purificado e

santificado pela luz brilhante dos olhos de Helen, que serão capazes de banhá-lo na Beleza e na

esperança do paraíso. Por aí se percebe a extrema idealização da figura feminina, com a ênfase no

olhar como fonte de salvação, idéia esta presente, também, em “To M. L. S” (1850):

Of all who hail thy presence as the morning – Of all to whom thine absence is the night – The blotting utterly from out high heaven The sacred sun – of all who, weeping, bless thee Hourly for hope – for life – ah! above all, For the ressurection of deep-buried faith In Truth – in Virtue – in Humanity – Of all who, on Despair’s unhallowed bed Lying down to die, have suddenly arisen At thy soft-murmured words, “Let there be light!” At the soft-murmured words that were fulfilled In the seraphic glancing of thine eyes – Of all owe thee most – whose gratitude Nearest resembles worship – oh, remember The truest – the most fervently devoted, And think that these weak lines are written by him – By him who, as he pens them, thrills to think His spirit is communing with an angel’s.

É principalmente a menção aos olhos que ajuda a construir a aura angelical na qual a

mulher está envolvida, aura esta que é reforçada pelas menções à Verdade, à Virtude e à

Humanidade enquanto sentimentos nobres que ela carrega em seu espírito. Tal idéia da mulher

como um ser salvador/acolhedor sugere um amor fraternal, desprovido de sexualidade, que

transcende a idéia da paixão física para se inscrever em uma outra dimensão, espiritualizada e

religiosa. Nesse sentido, são comuns as menções a um passado longínquo e distante, bem como a

idealização da beleza da amada, presentes, por exemplo, em “To Helen”15:

15 Helen vem a ser Mrs. Stannard, cuja morte teria inspirado o poema “Lenore”. Este é o segundo poema com o mesmo título na poesia de Poe.

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Helen, thy beauty is to me Like those Nicean barks of yore, That gently, o’er perfumed sea, The weary, wayworn wanderer bore To his own native shore.

On desperate seas long wont to roam, Thy hyacinth hair, thy classic face, Thy Naiad airs have brought me home To the glory that was Greece And the grandeur that was Rome.

Lo! in yon brilliant widow-niche How statue-like I see thee stand, The agate lamp within thy hand! Ah, Psyche, from the regions which Are Holy Land!

Aqui, a mulher amada é comparada a uma estátua da Antigüidade Clássica, idéia esta

reforçada pelas menções à Grécia e Roma como lugares idealizados do passado e pelas

comparações entre a beleza da amada e elementos greco-latinos, tais como as náiades. É bastante

recorrente na poesia de Poe a referência a um espaço na descrição da mulher amada, seja este

espaço idealizado ou não. Temos o exemplo de um espaço não-idealizado na caracterização da

figura feminina neste trecho de “To F” (1845):

And thus thy memory is to me Like some enchanted far-off isle In some tumultous sea – Some ocean throbbing far and free With storms – but where meanwhile Serenest skies continually Just o’er that one bright island smile.

A memória que o eu guarda de sua amada é comparada a uma ilha radiante que, apesar de

cercada por um mar tumultuoso e em ressaca, permanece bela e encantada. Assim, pode-se

constatar mais uma vez a idealização da figura feminina, que ora é santificada no interior de uma

relação maternal ou fraternal, ora é colocada sobre um pedestal, associada à calmaria do ambiente

marítimo revolto que aparece no poema. A idealização da mulher, na poesia de Poe, acaba se

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manifestando também na imagem da bela adormecida, que é bastante recorrente na literatura

romântica e simbolista. Segue abaixo o seguinte trecho de “The Sleeper” (1845):

The lady sleeps! Oh, may her sleep,

Which is enduring, so be deep! Heaven have her in its sacred keep! This chamber changed for one more holy, This bed or one more melancholy, I pray to God that she may lie For ever with unopened eye, While the pale sheeted ghosts go by!

A imagem da mulher que dorme, de acordo com Affonso Romano de Sant'Anna, é um dos

símbolos da interdição do desejo, uma vez que esta mulher não se move, e portanto não é capaz

de qualquer aproximação amorosa, permanecendo na dependência do olhar do amante, que só faz

contemplá-la, em uma adoração platônica de quem nunca se aproxima do corpo físico.

Entretanto, a interdição do desejo, para Sant’Anna, não se manifesta só na imagem da mulher

adormecida, mas também na figura da mulher morta, verdadeira obsessão na poesia romântica e

simbolista. Para o autor, tal obsessão seria uma “influência do Simbolismo francês e belga” e

também da “contaminação literária e ideológica na absorção do clima decadentista de fim de

século, vindo de uma Europa traumatizada por uma série de problemas sociais, econômicos e

metafísicos.” (SANT'ANNA, 1984: 119). Poe foi um dos poetas que mais cultivou esta

temática, levando-a inclusive para sua obra em prosa, como atestam os contos “Berenice”,

“Ligeia”, “O Retrato Oval”, “Eleonora”, “A Queda da Casa de Usher”, e outros. O tema da

mulher morta está presente nas duas últimas estrofes de “The Sleeper”:

My love, she sleeps! Oh, may her sleep As it is lasting, so be deep! Soft may the worms about her creep! Far in the forest, dim and old, For her may some tall vault unfold – Some vault that oft has flung its black And winged panels fluttering back,

Triumphant, o’er the crested palls, Of her grand family funerals – Some sepulchre, remote, alone, Against whose portal she hath thrown, In childhood, many an idle stone – Some tomb from out whose sounding door

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She ne’er shall force an echo more, Thrilling to think, poor child of sin! It was the dead who groaned within.

Pode-se observar a referência aos vermes que devoram o corpo da amada, bem como a

menção ao seu sepulcro “remoto e solitário”. Para Sant'Anna, esta imagem da mulher falecida

teria influenciado enormemente os poetas brasileiros do fim do século, tais como Cruz e Sousa e

Alphonsus de Guimaraens, que bebem de “uma influência da literatura anglo-saxônica sobre a

literatura ocidental, associando as sensibilidades alucinadas de Edgar Poe e Charles Baudelaire às

imagens criadas por Sade e Leopold Sacher-Masoch.” (SANT'ANNA, 1984: 122)16 Esta atitude

de adoração macabra em relação ao corpo da amada resulta na necrofilia, isto é, no desejo de se

relacionar sexualmente com a amada morta. A postura necrofílica é também bastante recorrente

na poesia dos autores românticos e simbolistas, especialmente em Poe, que centra grande parte da

sua obra neste tema. Estes trechos de “Lenore” são exemplos da temática da morte da amada:

How shall the burial rite be read? The solemn song be sung? The requiem for the loveliest dead, That ever died so young?

Her friends are gazing on her, And on her gaudy bier, And weep! – oh! to dishonour Dead beauty with a tear!

They loved her for her wealth – And they hated her for her pride – But she grew im feeble health, And they love her – that she died.

A contemplação do corpo morto da amada é também coletiva, uma vez que todos a

admiravam por sua riqueza e a odiavam por seu orgulho. Também está presente no poema a idéia

de subida, de união com o cosmos:

16 Sade e Leopold Sacher-Masoch são escritores eróticos do final do século XVIII, que revolucionaram o tratamento dado até então ao erotismo e à figura da mulher. É dos nomes deles que surgem, respectivamente, os termos “sadismo” e “masoquismo”, perversões estas que são retratadas em suas obras.

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From more than friends on earth Thy life and love are riven, To join the entained mirth Of more than thrones in heaven.

Therefore, to thee this night I will no requiem raise, But waft thee on thy flight, With a Paean of old days. A transcendência espiritual da amada é interpretada como um “vôo” em direção ao

cosmos, onde ela ficará em comunhão com os anjos e com a alegria do paraíso. O processo de

transcendência é o que purifica o ser das impurezas terrenas, e, no caso da mulher amada, é o que

vem a confirmar a idealização da qual ela é objeto. Tal postura é típica do Simbolismo, onde se

observa um processo de purgação das faltas terrenas, processo este que culmina em uma união

com o cosmos e, como conseqüência, em uma libertação doa pecados terrenos. No que diz

respeito à caracterização da mulher, o que se pode observar é que Poe absorve aspectos do

Romantismo, aspectos como a postura de constante idealização da figura feminina, que é vista

como um anjo e até mesmo como mãe. O autor preconiza também aspectos que serão absorvidos

pelo Simbolismo, presentes na tendência a santificar o elemento feminino, garantindo-lhe sempre

um lugar privilegiado entre as hostes celestiais.

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5 CONCLUSÃO

A partir da análise de “O Corvo” e “Annabel Lee”, e dos demais poemas de Poe, tais

como “Lenore” e “To Helen”, foi possível chegar a uma conclusão do modo como Poe concebe a

figura feminina em sua obra. As observações conclusivas a que chegamos evidenciam haver na

poesia de Poe uma constante tendência à idealização e santificação da mulher, vista como um

anjo e até como uma criança. Percebeu-se também a tendência a idealizar a mulher como um ser

protetor e até como mãe, dentro do que parece ser um processo de sublimação do desejo

amoroso. É um aspecto importante a ser levantado aqui: a angústia existencial do eu lírico de “O

Corvo”, dividido entre o desejo de rever a amada entre hostes celestiais e a atitude de tortura e

auto-comiseração perante o corvo, que desempenha no poema o papel tradicional de ave do mau

agouro e da desgraça.

Há uma série de procedimentos interpretativos possíveis a respeito da visão sobre a

mulher na poesia de Poe. Um deles, conforme já citamos, é biográfico, e procura na vida do poeta

explicações para a visão trágica do amor que permeia a sua obra como um todo. De fato, a vida

conturbada de Poe dá margem a esta interpretação, uma vez que o poeta nunca alcançou sucesso

profissional, foi marginalizado pela sociedade em que vivia, perdeu a família e teve que lutar

contra o vício do álcool. Por isso mesmo, sua poesia permite uma interpretação biográfica

especialmente para os mais afeitos a isso, que podem ver, em todos os poemas do autor, traços do

sofrimento que ele teria enfrentado durante toda a sua vida.

Por outro lado, não podemos esquecer de que é possível conferir à poesia de Poe uma

interpretação unicamente literária, que exclui toda e qualquer consideração de ordem biográfica.

É claro que, neste caso, a biografia do poeta se revela muito importante para a compreensão de

sua poesia, mas não se pode esquecer de que toda a obra pode se sustentar literariamente, sem

qualquer suporte de base biográfica. Portanto, podemos dizer que, apesar de o aspecto biográfico

ser importante, não se deve nunca esquecer que – considerando a noção de falácia intencional do

autor - o texto literário é capaz de se sustentar por si só, e isso, aplicado à poesia de Poe, é de

grande importância, uma vez que seus contos e poemas são de um talento literário

impressionante, que viria a fascinar os movimentos literários posteriores. Desta forma, a visão

sobre a mulher na poesia de Poe não está só relacionada à sua biografia: ela se sustenta

literariamente de forma admirável, estabelecendo conexões com as formas pelas quais a figura da

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mulher seria vista em momentos literários posteriores. O que se tentou fazer nesta pesquisa foi

mostrar como Poe vê a mulher em sua poesia, sem deixar de considerar qualquer aspecto que

pudesse esclarecer melhor esta visão, e procurando deixar uma colaboração, ainda que modesta,

para os estudos sobre a obra poética de Edgar Allan Poe.

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ANEXOS

O corvo

Tradução de Milton Amado

Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria, A ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais, E, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído, Tal qual se houvesse alguém batido à minha porta, devagar. "É alguém ? fiquei a murmurar ? que bate à porta, devagar; Sim, é só isso e nada mais." Ah! claramente eu o relembro! Era no gélido dezembro E o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais. Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda Algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora Essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora E nome aqui já não tem mais. A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina, Arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais. De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia E a sossegá-lo eu repetia: "É um visitante e pede abrigo. Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo. É apenas isso e nada mais." Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim: "Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais; Mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido, Que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta, Assim de leve, em hora morta." Escancarei então a porta: Escuridão, e nada mais.

Sondei a noite erma e tranqüila, olhei-a a fundo, a perquiri-la, Sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais. Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo, Só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: "Lenora!" E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: "Lenora!" Depois, silêncio e nada mais.

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Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente, Mais forte, o ruído recomeça e repercute nos vitrais. "É na janela" ? penso então. ? "Por que agitar-me de aflição? Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento, O vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento. É o vento só e nada mais."

Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto: É um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais. Como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto, Adeja e pousa sobre o busto ? uma escultura de Minerva, Bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva, Empoleirado e nada mais. Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura, Desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais. "Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular" ? então lhe digo ? "Não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo!" Qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!" E o Corvo disse: "Nunca mais."

Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe, Misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais; Pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente, Que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta, Uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta E que se chame "Nunca mais". Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria, Com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais. Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena, Enquanto a mágoa me envenena: "Amigos? sempre vão-se embora. Como a esperança, ao vir a aurora, ele também há de ir-se embora." E disse o Corvo: "Nunca mais."

Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo, Julgo: "É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais. Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura E a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo De seu cantar; do morto anelo, um epitáfio: o ritornelo De "Nunca, nunca, nunca mais".

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Como ainda o Corvo me mudasse em um sorriso a triste face, Girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais E, mergulhado no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim, Visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo, Com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo Grasnava sempre: "Nunca mais." Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar-me fixamente, Eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais. Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada Dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente, Dessa poltrona em que ela, ausente, à luz cai suavemente, Já não repousa, ah! Nunca mais?

O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incenso Ali descessem a esparzir turibulários celestiais. "Mísero!, exclamo. Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus, Esquecimento, lá dos céus, para as saudades de Lenora, Sorve-o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!" E o Corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta!” brado. Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal Que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais, De algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita Mansão de horror, que o horror habita, imploro, dize-mo, em verdade: Existe um bálsamo em Galaad? Imploro! Dize-mo, em verdade!" E o Corvo disse: "Nunca mais." "Profeta!" exclamo. "Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal! Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais, Fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante, Verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora, Essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!" E o Corvo disse: "Nunca mais!"

"Seja isso a nossa despedida! ? ergo-me e grito, alma incendida. ? Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais! Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste! Deixa-me só neste ermo agreste! Alça teu vôo dessa porta! Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!" E o Corvo disse: "Nunca mais!"

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E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio, Sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais. No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme, E a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra. Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra, Não há de erguer-se, ai! nunca mais! Annabel Lee Tradução de Fernando Pessoa Foi há muitos e muitos anos já, Num reino ao pé do mar. Como sabeis todos, vivia lá Aquela que eu soube amar; E vivia sem outro pensamento Eu era criança e ela era criança, Neste reino ao pé do mar; Mas o nosso amor era mais que amor O meu e o dela a amar; Um amor que os anjos do céu vieram A ambos nós invejar. E foi esta a razão por que, há muitos anos, Neste reino ao pé do mar, Um vento saiu duma nuvem, gelando A linda que eu soube amar; E o seu parente fidalgo veio De longe a me a tirar, Para a fechar num sepulcro Neste reino ao pé do mar. E os anjos, menos felizes no céu, Ainda a nos invejar... Sim, foi essa a razão (como sabem todos, Neste reino ao pé do mar) Que o vento saiu da nuvem de noite Gelando e matando a que eu soube amar. Mas o nosso amor era mais que o amor De muitos mais velhos a amar, De muitos de mais meditar, E nem os anjos do céu lá em cima, Nem demônios debaixo do mar

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Poderão separar a minha alma da alma Da linda que eu soube amar. Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos Da linda que eu soube amar; E as estrelas nos ares só me lembram olhares Da linda que eu soube amar; E assim estou deitado toda a noite ao lado Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado, No sepulcro ao pé do mar, Ao pé do murmúrio do mar. Para Annie Tradução de Fernando Pessoa Graças a Deus! A crise, o perigo passou! O mal languidescente afinal se acabou. E essa febre chamada Vida se conquistou. Tristemente me sinto das forças despojado e músculo algum posso mover, assim deitado. Mas que importa? Prefiro ficar assim deitado. E em meu leito descanso, com tamanho conforto que, ao ver-me, poderiam imaginar-me morto; talvez estremecessem, como quem olha um morto. Gemidos e lamentos, suspiros e aflição agora se acalmaram, com a palpitação cruel no meu peito. Horrível essa palpitação.

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O mal-estar, a náusea, a impiedosa agonia, tudo se foi, com a febre que a mente enlouquecia: febre chamada vida, que em meu cérebro ardia. De todos os tormentos, o que mais amargura cessou: o ardor terrível da sede que tortura, sede do rio naftálico da Paixão vil e impura. Oh! eu bebi de uma água que toda a sede cura ! Água que flui com um canto que o ar de doçura inunda, de uma fonte bem pouco escondida e profunda, de furna que no solo quase não se aprofunda. E, ah! nunca loucamente se diga e seja aceito que é sombrio o meu quarto e apertado o meu leito, pois nunca o homem descansa em diferente leito. Para dormir, deitai-vos em semelhante leito. Nele, a alma supliciada dorme, sem dolorosas recordações, não tendo mais saudades das rosas, das velhas inquietudes de seus mirtos e rosas. E, aqui jazendo, o espírito, tão calmo e satisfeito, crê que o cerca um mais santo odor de amor-perfeito, odor de rosmaninho, misto de amor-perfeito, de malva, do belíssimo e puro amor-perfeito.

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E assim feliz repousa, mergulhado em perene sonho de lealdade e da beleza de Annie, mergulhado nas ondas das longas tranças de Annie. Ela beijou-me e, terna, acariciar-me veio. E eu caí, docemente, a dormir no seu seio. Dormi profundamente sobre o céu de seu seio. Cobriu-me, ao apagar-se a luz no castiçal, e orou para que os anjos me livrassem do mal e a Rainha dos anjos me afastasse do mal. E durmo em tal conforto, agora no meu leito (desse amor satisfeito) que me acreditais morto. E é tal o meu conforto a repousar no leito (seu amor no meu peito) que me imaginais morto e tremei, com trejeito de quem contempla um morto. Mas o meu coração fulge mais que a perene luz dos astros celestes, pois fulgura por Annie e se abrasa na chama do amor de minha Annie, só pensando na chama do olhar de minha Annie.

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Para Helena Tradução de Fernando Pessoa Vi-te uma vez, só uma, há vários anos, já não sei dizer quantos, mas não muitos. Era em junho; passava a meia-noite e a lua, em ascensão, como tua alma, nos céus abria um rápido caminho. O luar caía, um véu de seda e prata, calma, tépida, embaladoramente, Em cheio, sobre as faces de mil rosas, que floresciam num jardim de fadas, onde até o vento andava de mansinho. Caía o luar nas faces dessas rosas, que morriam, sorrindo, no jardim Pela tua presença enfeitiçado. Toda de branco, vi-te reclinada sobre violetas; e o luar caía sobre a face das rosas, sobre a tua, Voltada para os céus, ai! de tristeza! Não foi o Destino, nessa meia-noite, não foi o Destino (que é também Tristeza) que me levou a esse jardim, detendo-me com o incenso das rosas que dormiam? nenhum rumor. O mundo silenciara Só tu e eu (meu Deus! como palpita o coração, juntando estas palavras!)... Só tu e eu... Parei... Olhei... E logo todas as coisas se desvanaceram. (Lembra-te: era um jardim enfeitiçado.) Fugiu a luz de pérola da lua. Os canteiros, os meandros sinuosos, flores felizes, árvores aflitas, tudo se foi; o próprio odor das rosas morreu nos braços do ar que as adorava. Tudo expirara... Tu ficaste... Menos que tu: a luz divina nos teus olhos, a alma mos olhos para os céus voltados. Só isso eu vi durante horas inteiras, até que a lua fosse declinando. Ah! que histórias de amor se não gravavam nas celestes esferas cristalinas! que mágoas! que sublimes esperanças! que mar de orgulho, calmo e silencioso! e que insondável aptidão de amar!

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num túmulo de nuvens tormentosas. tu, como um elfo, entre árvores funéreas, deslizas. Só teus olhos permanecem. Não quiseram fugir e não fugiram. Iluminando a estrada solitária de meu regresso, não me abandonaram como o fizeram minhas esperanças. E ainda hoje me seguem, dia a dia. São meus servos - mas eu sou seu escravo. Seu dever é luzir em meu caminho; meu dever é salvar-me pro seu brilho, purificar-me em sua flama elétrica, santificar-me no seu fogo elísio. Dão-me à alma Beleza (que é Esperança). Astros do céu, ante eles me prosterno Nas noites de vigília silenciosa; e ainda os fito em pleno meio-dia, duas Estrelas-d`Alva, cintilantes, Que sol algum jamais extinguirá. Só Tradução de Oscar Mendes. Não fui, na infância, como os outros e nunca vi como outros viam. Minhas paixões eu não podia tirar de fonte igual à deles; e era outra a origem da tristeza, e era outro o canto, que acordava o coração para a alegria. Tudo o que amei, amei sozinho. Assim, na minha infância, na alba da tormentosa vida, ergueu-se, no bem, no mal, de cada abismo, a encadear-me, o meu mistério. Não fui, na infância, como os outros e nunca vi como outros viam. Minhas paixões eu não podia tirar de fonte igual à deles; e era outra a origem da tristeza, e era outro o canto, que acordava o coração para a alegria. Tudo o que amei, amei sozinho. Assim, na minha infância, na alba da tormentosa vida, ergueu-se,

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no bem, no mal, de cada abismo, a encadear-me, o meu mistério. Veio dos rios, veio da fonte da rubra escarpa da montanha, do sol, que todo me envolvia em outonais clarões dourados; e dos relâmpagos vermelhos que o céu inteiro incendiavam; e do trovão, da tempestade, daquela nuvem que se alteava, só, no amplo azul do céu puríssimo, como um demônio, ante meus olhos.