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A morte desprivilegiada no Rio de Janeiro escravista (Século XVIII – 1850)
Milra Nascimento Bravo
Orientadora: Profª Dra. Cláudia Rodrigues
Bolsista CAPES
As hierarquias na sociedade brasileira escravista, não se davam apenas entre os vivos;
na questão dos enterramentos também havia uma hierarquização e a posição social e
financeira de cada indivíduo tinha total influência na hora de sua morte. João Reis afirma que
de um modo geral, qualquer pessoa podia ser enterrada nas igrejas; porém, havia uma divisão
sócio-espacial que definia onde cada indivíduo deveria ser sepultado. O adro (área em volta
da igreja) por ser gratuito e mais distante dos santos era o local reservado para escravos e
pessoas livres pobres. Já o corpo (parte interna da igreja) era o espaço onde eram enterrados
indivíduos de maior prestígio e quanto mais importante, mais próximo do altar e
consequentemente, da salvação na vida eterna. Isto não quer dizer que escravos nunca
tivessem seus cadáveres sepultados no corpo de uma igreja em Salvador; porém, isto era
pouco comum, exceto no caso de crianças escravas que mais ou menos até 1820 eram
enterradas no interior dos templos. Nesta divisão social dos mortos, aqueles que em vida
haviam se filiado a alguma irmandade ou confraria obtinham certas vantagens. Dentre elas, a
garantia de um enterro em terreno santo e especialmente assistência desde o momento que
precedia a morte até sua sepultura; a morte solitária era muito temida entre os cristãos. (REIS,
1991, p. 175-176)
Havia irmandades muito ricas, e outras que dividiam-se por cor de seus membros e até
mesmo por profissão. A filiação a uma irmandade era garantia de certa assistência na hora da
morte – desde que o membro cumprisse com suas obrigações, pagando joias, por exemplo – e
para os escravos era um meio de evitar que seus corpos fossem enterrados em cemitérios onde
estariam sujeitos a profanações; algumas irmandades ajudavam, inclusive, seus membros
escravos a conseguirem a alforria.
Antes de prosseguir, é importante frisar que por se tratar do estudo de elementos
sociais e levando em consideração que os pensamentos e relações humanas são mutáveis, não
é possível generalizar minhas afirmações acreditando que todos os negros – cativos ou forros
– aderiram às crenças católicas; como também não posso dizer que todos se afiliavam a
irmandades apenas buscando um funeral considerado digno. Devo considerar a existências
destas duas realidades.
Tendo em vista que os enterros se davam nos templos ou terrenos pertencentes à Igreja
católica, o indivíduo que não fosse católico, em tese, não teria direito à sepultura e aos rituais
necessários para uma boa morte. Portanto, quando analisar os casos de negros afiliados a
irmandades, não farei juízo de valor discutindo se eles acreditavam realmente no catolicismo,
se aliavam práticas africanas e católicas ou se realmente haviam se cristianizado. O que
interessa nas exposições realizadas é alertar ao leitor que estes negros eram indivíduos ativos
e que desta forma, suas participações nas irmandades podem ter se dado de maneiras distintas.
Desta forma, irei me deter principalmente aos benefícios na hora da morte garantidos por
estas instituições religiosas e também nos prejuízos – se posso assim chamar – que assolavam
aqueles que não faziam parte delas.
Como citado anteriormente, negros que se associavam a uma irmandade recebiam
desta uma garantia de morte considerada digna dentro dos parâmetros estabelecidos pela
tradição e seguidos pela sociedade, e eram sepultados nas igrejas. Nas igrejas de irmandades
de negros se sepultavam além dos corpos de seus afiliados, os daqueles que pertenciam a
outras associações que não possuíssem seus próprios templos. Os que não tinham nenhuma
ligação com estas organizações religiosas e não haviam conseguido dinheiro em vida,
dependiam da ajuda de amigos e parentes ou quando estes também não possuíam bens,
recorriam aos pedidos de esmolas. Em alguns casos, o cadáver era abandonado na porta de
uma igreja na esperança de que este fosse sepultado “pelo amor de Deus”; ou seja, seu enterro
dependeria da caridade do pároco ou de algum irmão religioso. (RODRIGUES, 2005, 222-
223)
Os mais privilegiados socialmente tinham um tipo de enterro que era almejado pelos
indivíduos com menos posses; vimos alguns dos principais meios de conseguir este tipo de
sepultamento. Porém, cabe aqui questionar o que aconteceria com aqueles que não
conseguiam este tipo de enterro; para onde iam os corpos dos menos privilegiados
socialmente?
O sepultamento fora dos templos era sinal de grande infortúnio e nem todos os
indivíduos possuíam o privilégio de ter seu cadáver encomendado e enterrado ad
sanctos/apud ecclesiam. Podemos agrupar estes indivíduos em dois grandes segmentos: os
que seriam proibidos pela Igreja de ter sepultura dentro dos templos por terem sido
excomungados ou não se enquadrarem no seio católico. O outro grupo era formado por
aqueles que não possuíam condições socioeconômicas para tal.
No primeiro caso, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia ameaçavam de
excomunhão os senhores que enterravam seus escravos em condições indignas, porém, isto
não significava que todos os mortos tinham direito à sepultura eclesiástica. Eram
impossibilitados de receberem tal benefício: judeus, heréticos, cismáticos, apóstatas,
blasfemos, suicidas (exceto quando o indivíduo era considerado louco), duelistas, usurários,
ladrões de bens da Igreja, excomungados, religiosos enriquecidos (se tinham profissão de
pobreza), aos refratários à confissão e à extrema-unção, infiéis, crianças e adultos pagãos.
Estas pessoas poderiam conseguir um enterro eclesiástico caso reparassem suas faltas com a
Igreja e com Deus. (REIS, 1991, p. 172-174)
No segundo caso, chamarei aqui de morte desprivilegiada, aquela que assolou
indivíduos da sociedade brasileira que não tiveram a mesma sorte pós-morte que aqueles
exemplificados anteriormente, tais como: pobres, indigentes, alguns escravos, justiçados e
“pretos novos”. Mesmo recebendo sepultura eclesiástica, muitos mortos tiveram seus corpos
sepultados em cemitérios que considerarei aqui de desprivilegiados – na ausência de termo
melhor –, e alguns nem mesmo tinham um local onde pudessem ser inumados, sendo
sepultados nos matos, terrenos baldios e nas praias. São estes indivíduos, o objeto do presente
estudo.
Na Bahia os suicidas, criminosos, indigentes, rebeldes e escravos eram enterrados no
cemitério do Campo da Pólvora – que era mantido pela Santa Casa da Misericórdia. Não se
sabe com precisão a origem deste cemitério. Com base nas posturas da Câmara de Salvador
desde a primeira década do século XVIII que citavam que o Campo saía do portão da Casa da
Pólvora e era responsável pelo enterro de negros pagãos, João Reis conclui que este local era,
neste período, um lugar interditado ao enterro de cristãos, mesmo quando estes eram escravos.
O autor afirma também, que pelo menos nas duas primeiras décadas do século XVIII, o local
referente ao Cemitério do Campo da Pólvora – a nomenclatura cemitério ainda não era usada
– ainda não se encontrava sob a administração da Santa Casa, e sim, da Câmara. Os
responsáveis pelo enterramento destes africanos pagãos eram os funcionários que realizavam
a limpeza pública; ou seja, ao mesmo tempo em que se cuidava da higiene da cidade,
retiravam-se os corpos abandonados para evitar que cães se alimentassem deles ou que
causassem algum dano à saúde da população. (REIS, 1991, p. 193 - 196)
Tempos depois, em 1844, já sendo transferido para a Santa Casa da Misericórdia em
outra área da cidade, o Campo da Pólvora passa a ser local de sepultamento da maioria dos
cadáveres de escravos – pagãos ou não – na Bahia, e também outros indivíduos menos
privilegiados na sociedade. Este cemitério não era bem visto pela sociedade em geral, era o
destino dos infortunados. Além de grande parte dos sepultados neste terreno terem sido
corpos de negros novos que não sobreviviam à quarentena anterior ao desembarque dos
tumbeiros, a forca estava erguida dentro de seus limites para facilitar o enterro dos justiçados
– evitando o transporte dos cadáveres (REIS, 1991, p. 196-197). Em A morte é uma festa,
Reis descreve as condições em que o Campo da Pólvora se apresentava:
O cemitério possuía valas comuns e superficiais, ficando os cadáveres à mercê de
animais famintos. [...] O cemitério, [...], era cuidado por negros que ‘não somente
deixam os cadáveres na flor da terra por preguiça de afundar as sepulturas, como
por dias deixam alguns por sepultar, além de ser ele tão pequeno, que impossível é
não estarem em pilha os cadáveres’. Ao que tudo indica, como no cemitério da
Misericórdia do Rio, nenhuma cerimônia religiosa precedia o enterramento.
Nenhum documento menciona a existência de capela. (REIS, 1991, p. 196)
A citação acima explica o motivo pelo qual – além da questão religiosa, que prezava a
necessidade de um enterro ad sanctos apud ecclesiam – o cemitério do Campo da Pólvora não
fosse um dos destinos procurados pela população pra inumação de seus defuntos: sendo
destino apenas dos mais desprivilegiados socialmente. Ele servia também como um meio de
evitar que os cadáveres destas pessoas fossem abandonados em terrenos baldios, no mato ou
na praia e fossem profanados e/ou ameaçassem a salubridade da cidade.
Esta situação não era exclusividade da realidade mortuária baiana.
Em relação a São Paulo, o local de inumação sobre o qual existem mais referências é o
Cemitério dos Aflitos, que estava localizado na região correspondente ao atual bairro da
Liberdade, e era administrado pela Santa Casa da Misericórdia. Em 1774, a Diocese definiu o
terreno onde se fixaria o cemitério e, em 1775, este foi inaugurado. Acredita-se que este local
foi escolhido devido à sua proximidade com a Santa Casa. (PAGOTO, 2004, p. 62)
Já que a Misericórdia era a instituição responsável pelo sepultamento de grande parte
dos excluídos socialmente, no Cemitério dos Aflitos – nome este que pode nos sugerir o tipo
de cadáver e de enterramento presentes neste local – eram inumados escravos, indigentes e
sentenciados. Os que faleciam na cadeia também eram lá sepultados. (CYMBALISTA, 2002,
p. 39 / PAGOTO, 2004, p. 62-63)
Como citado anteriormente, em Salvador, a forca foi erguida dentro do Campo da
Pólvora. Em São Paulo, medida parecida foi tomada, estando a forca próxima ao cemitério
para facilitar o transporte e enterro dos corpos dos justiçados. Embora houvesse sido
construída uma capela neste cemitério, com o passar do tempo, o seu estado de abandono era
tamanho que não se sabia ao certo qual autoridade era responsável pela sua manutenção.
(PAGOTO, 2004, p. 62)
No Rio de Janeiro, o tratamento que era destinado aos defuntos desprivilegiados não
diferia muito do que ocorria nas demais cidades. O destino dos corpos dos recém-chegados da
África – conhecidos como “pretos novos” – quase sempre era o cemitério administrado pela
Santa Casa da Misericórdia, que ficava localizado atrás do hospital da Misericórdia, junto ao
Morro do Castelo e foi ampliado em 1827 e transferido em 1838 para os arredores do Caju. O
fato de o Campo da Pólvora, o Cemitério dos Aflitos e o da Misericórdia, no Rio de Janeiro
serem administrados pela Santa Casa não era mera coincidência, isto se deve ao fato de
tradicionalmente, esta ter possuído o monopólio do serviço funerário, do sepultamento e do
transporte de cadáveres, como contrapartida da assistência que prestava aos pobres e
escravos. (RODRIGUES, 2003, p. 144)
Além dos demais desprivilegiados, indigentes e pacientes pobres que morriam no
Hospital da Misericórdia também eram enterrados em seu cemitério. Embora fosse
considerado um campo santo, o tipo de sepultamento oferecido era daqueles em relação ao
qual, muitos indivíduos buscavam fugir. O viajante John Luccock conta que aqueles que iam
até o Campo Santo da Misericórdia assistiam a “cenas repugnantes”, e lembra que o “cheiro”
que os cadáveres exalavam era fortíssimo (LUCCOCK, 1973, p.37). Robert Walsh, um
capelão inglês que esteve no Rio de Janeiro entre os anos de 1828 e 1829, também relatou
algumas práticas realizadas no cemitério da Santa Casa da Misericórdia. A citação abaixo
descreve o momento que precedia a inumação neste cemitério:
[...] Antes de serem enterradas aí, são depositados sobre um estrado numa casinha
que fica no meio do cemitério, até que haja um número suficiente de corpos. Então é
realizada a cerimônia fúnebre para todos eles, que são colocados na cova sem os
caixões. Algumas vezes nus, mas normalmente envoltos em lona. São colocados de
lado, geralmente com a cabeça virada para os pés do outro. Nunca estive nesse
lugar sem que houvesse menos de quatro ou cinco corpos esperando para serem
enterrados e ao sair sempre me encontrava com outros chegando... (WALSH, 1985,
p. 170)
Reforçando tais descrições, o viajante alemão Carl Seidler também cita as condições
deste cemitério, no Rio de Janeiro, do qual ele dizia ter lembranças que o arrepiavam.
Segundo ele, o corpo era atirado no buraco como um cão morto e como se colocava pouca
terra sobre ele, por vezes alguma parte ficava para o lado de fora. Além disso, socavam-no
com pesados tocos de madeira, formando assim o que o viajante chamou de horrível mingau
de terra, sangue e excrementos. Em seu relato, também consta que caso houvesse uma forte
chuva, era possível que alguma pessoa se deparasse dentro dos limites do cemitério com um
pedaço de braço ou perna esmagado. (apud PAGOTO, 2004, p. 63)
No século XVIII, com o aumento do tráfico africano já não havia mais espaço para
tantos mortos e a solução encontrada pelo governador foi a criação de um cemitério destinado
aos “pretos novos”, que foi erigido em 1722, no Largo de Santa Rita – para simplificar o
translado dos escravos mortos no mercado, que estava situado nesta localidade – e mais tarde
transferido para a região do Valongo devido à mudança, em 1769, do mercado de escravos
para esta região. Fato este que causou enorme mudança na dinâmica comercial e portuária da
cidade. O objetivo da aproximação do cemitério do mercado de escravos era facilitar a
remoção dos corpos dos pretos que morriam antes de serem vendidos. O viajante G.W.
Freireyss descreve este segundo cemitério da seguinte forma:
Na entrada daquele espaço, cercado por um muro de cerca de 50 braças em
quadra, estava assentado um velho com vestes de padre, lendo um livro de rezas
pelas almas dos infelizes que tinham sido arrancados pela sua pátria por homens
desalmados, e a uns 20 passos dele alguns pretos estavam ocupados em cobrir de
terra seus patrícios mortos e, sem se darem ao trabalho de fazer uma cova, jogam
apenas um pouco de terra sobre o cadáver, passando em seguida a sepultar outro.
No meio deste espaço havia um monte de terra na qual, aqui e acolá, saíam restos
de cadáveres descobertos pelas chuvas que tinham carregado a terra e ainda havia
muitos cadáveres no chão que não tinham sido enterrados. Nus estavam apenas
envoltos numa esteira, amarrada por cima da cabeça e por baixo dos pés.
Provavelmente procede-se ao enterramento apenas uma vez por semana e como os
cadáveres facilmente se decompõem, o mau cheiro é insuportável. Finalmente
chegou-se à melhor compreensão, queimando de vez em quando um monte de
cadáveres semidecompostos. (FREIREYSS, 1982, p. 132- 134)
O relato deste viajante nos leva a crer na existência de algum tipo de cerimônia
religiosa no Cemitério dos Pretos Novos – mesmo que esta fosse bem simples. Esta hipótese
pode ser levantada ao analisarmos o trecho em que ele afirma que havia um velho com roupa
de padre lendo um livro de rezas pelas almas dos mortos que estavam sepultados naquele
local. Mesmo que este indivíduo não fosse um padre, não podemos negar que algum tipo de
sufrágio parecia ser oferecido a estes mortos, ainda que fossem as orações de um leigo. Isto
mostra que, embora ainda não estivessem inseridos no seio da sociedade, os “pretos novos”
podiam ser agrupados juntamente com os outros tipos de indivíduos que estamos estudando.
Estes negros “possuíam um cemitério exclusivo” por questões sociais e não, religiosas.
Além disso, note-se que a imagem do descaso para com estes mortos era tão grande,
que até mesmo um costume não permitido pela Igreja era praticado algumas vezes: a
cremação. Segundo o ideal de morte cristã, a incineração de um cadáver impediria o
reencontro da alma com o corpo após a ressurreição.
Retornemos à questão da localização do Cemitério dos Pretos Novos. Quando o
mercado foi transferido para a área do Valongo, em 1769, esta não era muito povoada, porém,
com esta mudança, aumentou o comércio na região e consequentemente, a população cresceu.
O cemitério que no momento de sua transferência localizava-se fora do perímetro da cidade,
por volta de 1821 encontra-se em meio ao movimento urbano que se estabelecera no local.
Neste ano, os moradores da região enviam dois requerimentos ao príncipe regente solicitando
que o mesmo retirasse o Cemitério dos Pretos Novos da cidade e o transferisse para um lugar
distante devido às ameaças causadas por ele. Alegavam que os corpos não eram bem
enterrados e que o cheiro era insuportável. José de Sousa Vasconcelos, o juiz do Crime do
bairro de Santa Rita encarregado de averiguar a procedência das reclamações da população,
concluiu que o cemitério era muito pequeno em relação ao número de corpos que eram
enterrados lá. Afirmou também, que realmente ele estava rodeado de casas, o que seria muito
prejudicial à saúde da vizinhança. Um detalhe importante deste caso é o fato de que parte dos
moradores do Valongo que reclamaram sobre o cemitério, eram indivíduos brancos,
portugueses e quase todos comerciantes e que a insatisfação deles poderia ser proveniente da
necessidade de deixar seus comércios fechados, o que lhes traria prejuízo. (RODRIGUES,
1997, p. 71-75)
Segundo dados de Júlio César Pereira onde o mesmo analisa a relação entre o volume
de tráfico negreiro e a quantidade de escravos sepultados em seus limites de 1824 a 1830,
pode-se concluir que nos períodos onde havia mais entrada de cativos no porto do Rio de
Janeiro o número de sepultamentos no referido cemitério aumentava. Isto nos mostra que os
enterros realizados neste local estavam diretamente ligados ao tráfico. (PEREIRA, 2007, p.
122) No dia 04 de março de 1830 foi realizado o último sepultamento no Cemitério dos
“Pretos Novos” e este foi fechado. Neste ano apenas 17 cadáveres foram enterrados neste
terreno. Este dado merece uma atenção especial e pode ser relacionado com a situação política
do período. (PEREIRA, 2007, p. 96)
Em 1825, o Brasil foi reconhecido pela Inglaterra como uma nação independente e no
seguinte firmou o tratado anglo-brasileiro que previa que o tráfico fosse extinto no prazo de
três anos. Este tratado foi ratificado em 1827 e ficou definido que em 13 de março de 1830 o
tráfico negreiro deveria acabar definitivamente. No período entre a criação da lei e seu
previsto cumprimento houve um aumento considerável na compra de africanos e
consequentemente, no número de sepultamentos. Para que não ficasse tão visível que estas
transações continuavam acontecendo, os compradores viram a necessidade de buscar um novo
local de inumação para estes defuntos. E mesmo depois de saberem que a “lei para inglês ver”
não conseguiria acabar com o comércio através do Atlântico, passaram a inumar os “pretos
novos” em outro cemitério – o da Misericórdia –, já que continuação dos sepultamentos no
terreno destinado a estes cadáveres anteriormente seria uma prova de que a lei não estava
sendo de fato cumprida (PEREIRA, 2007, p. 124-129).
Este cemitério da Misericórdia é o mesmo que já mencionamos, localizado atrás do
hospital da Misericórdia. Lá não eram enterrados apenas “pretos novos” e segundo Júlio
Pereira, a superlotação era um problema constante e recorrente; e também, que ser sepultado
sem os paramentos fúnebres não foi um ‘privilégio’ do Cemitério dos Pretos Novos.
(PEREIRA, 2007, p. 130)
Analisando todos estes cemitérios e as práticas fúnebres adotadas por eles, é possível
observar que praticamente não havia diferença entre um e outro no modo como os cadáveres
eram tratados: os relatos afirmam que eram poucos – ou nenhum – os cuidados destinados a
eles, o que feria os conceitos e crenças do bem-morrer e facilitava a exposição dos corpos a
profanações e ao ataque de animais.
Antes de concluir este artigo, devo explicar que estamos tratando do período anterior a
1850. Após esta data, principalmente por questões de saúde pública, os cadáveres deixaram de
ser levados para o interior dos templos e passaram a existir cemitérios públicos onde todos os
indivíduos – católicos – deveriam ser enterrados. Sendo assim, só é possível analisar este tipo
de enterramento se delimitarmos este recorte temporal, pois após ele, os estudos de hierarquia
fúnebre deverão ser realizados a partir de outras perspectivas.
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