morte no pagode do imbuÍ e outras mentiras m o r t e n … · precisam chorar antes de rir. fiquei...
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MORTE NO PAGODE DO IMBUÍ
E OUTRAS MENTIRAS
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PRECISAMOS FALAR SOBRE O AUTOR?
“Dormiu bem esta noite? Sonhou coisas boas? ”
Acho que sonhei com flores - já não sei bem... - acho que fui um beija-flor... me lembro
dos cheiros. Lembro-me da sensação de ser livre. Parecia que não tinha pernas porque
na verdade não havia chão. Apenas nuvens! E voávamos por entre os anjos e nos
beijávamos e nos dávamos às mãos.
Sonhei que era Deus e que as pessoas eram bonecos de argila e eu queria fazer com que
todos sorrissem ao mesmo tempo... Mas descobri que não dá. Que alguns deles
precisam chorar antes de rir. Fiquei confuso e tenso e não quis mais ser Deus.
Dormiu bem esta noite? Sonhou coisas boas?
Acho que sonhei com filhos, mães, pais, irmãos, avós, tios e amigos em volta de uma
fogueira... e essa fogueira era o amor.
CAPITULO UM
I
A CASA ROSA – PARTE 1
ENTERRO EM JAUÁ
Carlos Nery vinha dirigindo em baixa velocidade como sempre fazia. Maritza fazia
charme, dizendo que estava morrendo de calor e não aguentava mais tanta espera dentro
daquele carro quente. Não tinha ar condicionado... a janela estava aberta, e eles seguiam
para a praia de Jauá, não muito longe de Salvador. Estavam felizes. O charme de
Maritza ia fazendo efeito sobre Nery, que passou de 60 por hora para pouco mais de 90,
o que, para ele, era como estar voando.
Com o vento abanando seus cabelos curtos e coloridos, Maritza fechava os olhos
sorrindo, lembrando se passar por aqueles cães de madame que viajam com as cabeças
pra fora do carro... com suas línguas de fora, fazendo um rastro de saliva em alta
velocidade, e parecendo até sorrir. Maritza parecia um desses cãezinhos naquele
momento, segundos antes do carro subir e descer como se houvesse uma enorme
lombada na estrada de barro. Nery parou o carro, ofegante. Era extremamente cuidadoso
com o carro da mãe. Qualquer arranhão, por menor que fosse, ela notaria... Carlos Nery
ficou apreensivo.
Os dois desceram do carro.
Maritza pôs um ray-ban e acendeu um cigarro eletrônico, sentando-se no meio fio e
fazendo trejeitos hollywoodianos... foi quando olhou pro lado e de súbito pulou em pé
largando os óculos e o cigarro no chão. Um grito fino – como quando pisamos no rabo
de um gato – brotou de sua boca, e o resto foram soluços histéricos, palavras
intraduzíveis e grunhidos de pânico.
Nery correu até ela e a segurou com força, pois pensou se tratar de uma crise de
labirintite (Maritza volta e meia tinha essas crises). Foi quando ele também viu a cena...
Primeiramente o que eles viram foi a bicicleta... pequena e branca, com o pneu da frente
totalmente destruído e uma cestinha presa ao guidom. Poucos metros à frente estava o
corpo da criança que a guiava.
Era uma menina moreninha, com um vestido rosa, agarrada a uma boneca de pano
surrada. Seus cabelos eram trançados e o rosto... estava desfigurado.
- O que faremos... meu DEUS! O QUE FAREMOS!!?? - Berrou Maritza,
totalmente histérica.
Carlos Nery passava por diversas vezes as mãos no rosto molhado de lágrimas, mas
conseguia raciocinar apesar de tudo.
- O jeito é botarmos essa menina no porta-malas... e levarmos o corpo para A
Casa Rosa. A gente enterra ela lá. Não podemos ser presos Mari-Mari... e
ninguém acreditaria se disséssemos que não foi nossa culpa. Você precisa
concordar comigo... precisa me ajudar com isso... OK?!
Maritza buscou no chão o cigarro que tinha caído, e passou a fumar com muita vontade.
Concluiu friamente:
- Vamos dar cabo disso.
Chegaram na grande casa, rodeada por coqueiros e com sua pequena cerca viva com
espinhos extremamente afiados... entraram carregando o defunto. A Casa Rosa era a
única da rua e por isso podiam sair livremente carregando o corpo.
- Não fique olhando pra ela, Mari-Mari... te dará pesadelos. De noite rezaremos
pra que Deus acolha seu espírito... e pra que ele também nos perdoe, pois não
fizemos isso por mal. Não somos assassinos!
Maritza ouvia Carlos Nery falar, mas não conseguia deixar de fitar a face da menina.
Seu rostinho desfigurado, junto ao sangue coagulado e escuro..., mas seus olhos
estavam intactos e eram azuis. Maritza sorriu por alguns instantes...
- Tão difícil de ver, né...? Olhinhos tão azuis!
Seus olhos se encheram de lágrimas, mas Nery a interrompeu tomando o corpo da
menina pra si e correndo em direção ao quintal da Casa Rosa. Maritza tomou fôlego e o
seguiu. Cavaram durante toda a tarde e antes de atirar o corpo que já começava a feder.
Resolveram envolve-la numa rede vermelha. Ao início da noite, às sete horas a menina
já estava enterrada.
Maritza Mendes e Carlos Nery puseram duas cadeiras em frente ao buraco onde a
menina jazia enterrada... eles cavaram fundo e até cimento Nery atirou ali dentro. Os
dois acenderam cigarro, beberam vinho... afim de ficarem entorpecidos, mas não
conseguiram se divertir, tampouco namorar, tampouco sentir a brisa daquela noite
estrelada de verão. Por dentro rezavam apenas.
Na manhã seguinte Maritza acordou Carlos Nery com carinhos em sua orelha. Nery
sorriu.
- Sonhei com a menina de ontem. Ela estava linda, Nery! Mas sabe uma coisa
estranha?
- O que? - Perguntou Carlos Nery ainda bocejando e se esticando na cama.
- Ela segurava uma barata, pelas antenas... uma barata viva e enorme, que batia
as asas tentando voar... ela a segurava e como se fosse um presente, me
entregava. Você faz ideia do que isso pode significar, Nery?
Carlos Nery se sentou na cama, apenas de cueca e meias. Passou quase dois minutos
calado, imaginando a cena... olhando para o nada como se mal tivesse escutado a
história. E apenas alguns minutos depois respondeu após um longo suspiro.
- Não faço a mínima ideia Mari-Mari... não faço ideia do que isso significa.
II
A CASA ROSA – PARTE 2
NUVENS MALDITAS NA PRAIA DE JAUÁ
********************
Foi um convite especial, pois eu estava numa fase triste. Talvez todo mundo tenha essa
fase onde nosso quarto é sempre melhor do que qualquer festa que exista na face da
terra. Maritza me convidou, quase que solenemente - parada na porta de meu
apartamento - pra passar um final de semana em Jauá, na casa de Carlos Nery, seu novo
“amigo” que tocava baixo numa banda de rock.
Lugar ensolarado... com uma belíssima praia... numa casinha com piscina... ou seja,
tudo que eu odeio. Mas resolvi aceitar o convite movido pelo afeto que tinha por ela.
Além do mais, estava há quase cinco meses sem sair de casa.
A casa ficava numa rua escura e vazia, não haviam outras casas ao redor. Coqueiros
enormes rodeavam as cercas de espinhos como se tivessem sido plantados com a
finalidade do isolamento, mas estavam lá há muito mais tempo que a casa, o que só me
fez deduzir que a família de Carlos Nery teve intencionalmente a ideia de construí-la
dentro do círculo de coqueiros, numa rua longe de todo mundo. Algum motivo pra isso?
Vai saber...! A casa era rosa choque, exceto pelo telhado que era cor de telhado
mesmo...
As pequenas cercas eram cheias de espinhos, que - segundo Carlos Nery - evitava a
entrada de bois, gatos, calangos, e outros animais dentro de casa. Chegou até a me
contar de um caso em que acordou e viu um bezerro agonizando entre os espinhos, e
que quanto mais ele tentava sair... seu corpo era ainda mais dilacerado e ele morria
devagar. Uma história adorável. O horror me fascinava. Porque na realidade eu nunca
tinha passado por horror algum... até então.
Por dentro a casa era aconchegante e éramos apenas nós três. Carlos Nery e Maritza
Mendes estavam namorando e eu tinha um quarto só pra mim. A casa era dividida em
dois lados, entre uma sala com apenas um sofá e uma TV.
Um lado era meu e o outro era o lado do casal. Ficaram me perguntando antes se me
incomodava com isso, mas respondi como sempre respondo:
- Me deem comida, um fone de ouvido e um caderninho com uma caneta, que
pra mim fica tudo ótimo.
Meia noite...
Nery deu duas batidas suaves em minha porta e abri rapidamente, pois ainda estava
acordado escrevendo e ouvindo um disco do Pink Floyd.
- Hoje é dia de nuvem. Feche a janela, feche tudo! E é melhor se cobrir também.
É coisa rápida, BEM RÁPIDA..., mas... se proteja! FECHE A JANELA!
Esqueci de lhe perguntar... você não tem medo de barata, tem?!
Acho que senti meus pés gelarem de tal forma no momento que involuntariamente me
agachei e pus a massageá-los com a palma da mão, gargalhando de puro nervosismo e
uma pequena esperança de que ele estivesse de brincadeira. Mas ele continuava com
uma serenidade hippie e continuou me encarando... enquanto eu ria à toa, chorando por
dentro.
- Hoje está quente, Rick... pode ter nuvem de barata. Aí a gente fecha tudo e as
que entram em casa a gente mata... se passarem pelas telas de proteção.
Engasguei com meu próprio cuspe e comecei a tossir compulsivamente. Não tive
coragem de dizer que tinha pavor mortal de barata. Mas a vontade que eu tinha era de
contar... contar tudo! E ainda pedir pra ir embora o mais rápido possível! Como uma
menininha assustada! É ridículo o que fazemos pra provar nossa masculinidade.
- Ok-ok-ok-ok... é... BEM... eu tenho um pouco de AGONIA com barata, mas
não é nada demais. É certo mesmo que elas vão aparecer? - Perguntei. – Nery
me olhava com desconfiança, sorrindo.
Maritza apareceu de súbito, e com um olhar baixo e um sorriso mórbido, disse: “elas
sempre aparecem...”, e então fecharam a porta.
Fiquei parado, sentado na ponta da cama segurando meu caderninho e minha caneta,
escutando seus passos. Primeiro andaram até a cozinha, ouvi o barulho da geladeira se
abrir. Depois os passos se dirigiram para o quarto e a porta se fechou com força.
Nunca me senti tão só.
********************
Acordei com um zumbido. Mas não era um zumbido comum... na verdade eram
milhares de zumbidos que faziam com que o barulho parecesse mais o de uma turbina
de avião, pousando em frente à casa rosa. Do quarto Maritza gritou:
- A NUVEM CHEGOU!! – Havia muito medo em sua voz.
Nossa reação ao medo nunca é a que esperamos. Ou é muito desesperada ou
absurdamente calma, meio entorpecida. Pois medo é sobrevivência. É algo que todos os
animais possuem e quisera eu, ter um casco ou um casulo pra me esconder naquela
hora.
Minha primeira reação foi andar por todos os lados do quarto por tantas vezes que fiquei
tonto e sentei novamente na ponta da cama. Passei a gargalhar e chorar ao mesmo
tempo. Depois disso corri para a única janela do quarto, fechei-a rapidamente com um
ferrolho antigo e enferrujado, que Nery disse durante o dia que era “uma merda pra
fechar”. Corri de volta pra cama e não sei bem porque peguei uma toalha, encharquei-a
com repelente de mosquitos - que hoje eu sei que de nada serviria - e me pus em pé na
cama como um soldado em fim de guerra. Sabendo que vai morrer, mas ainda disposto
a gastar suas últimas balas... e levar o máximo de inimigos junto com ele.
Começaram a bater fortemente no telhado como uma chuva forte, na janela também
houveram várias batidas. O que acontece? Porque estão tão agressivas?! “tem algo de
muito errado com essa casa...”, pensei.
Comecei a gritar como louco quando vi mais ou menos umas seis baratas entrando por
baixo da porta do quarto. Com a toalha pus a bater nas que entravam (dando gritos
histéricos e agudos) e elas morriam facilmente. Isso foi me dando um misto de coragem
junto ao medo que tanto sentia... de repente, fez-se silencio.
- Por isso eles ficam tão calmos... a nuvem passa rápido. - Pensei suspirando.
Eu me sentia exausto.
A porta se abriu devagar... era o casal. Olhei-os com raiva, como se os culpasse pelo
momento de horror. Eu estava num estado quase animalesco. Respirava bufando e
tremia.
- Calma aí rapaz... a gente não sabia que você tinha medo! - Disse Nery
enquanto andava devagar em minha direção, como se eu estivesse armado.
Maritza vinha logo atrás e estava apreensiva. Me olhavam como se eu estivesse
louco.
Anos depois Nery me contou que meus olhos estavam esbugalhados, meus punhos
cerrados e que a medida que eles se aproximavam, eu cerrava os dentes como um
predador pronto para dar o bote. Quisera eu que realmente tivesse terminado ali...
- A nuvem passou! Vamos para o quiosque! Tomar uma água de coco e esquecer
essa loucura. Dias FELIZES, a partir de agora! - Disse Maritza.
Fomos nós três... no quiosque não haviam baratas, mas a piscina estava quase preta de
tantas que caíram e se afogaram ali. Brindando com uma caneca de café, disse que
nunca mais cairia naquela piscina. Maritza e Nery morriam de rir do meu pavor. Na
realidade até eu já estava rindo... é engraçado... quando coisas ruins passam, a gente
lembra das nossas reações e percebemos como estávamos sendo ridículos.
********************
Já passava das 3 da manhã e seguimos conversando animadamente. Más no fundo eu
não conseguia relaxar... não conseguia parar de pensar nas poucas baratas que vi no meu
quarto, nas que jaziam na piscina, e em todas as tantas que imaginei passando pelo céu
de Jauá há horas atrás.
Até que ouvimos o barulho.
Pus meu copo imediatamente na mesa, quase o quebrando e engoli seco. Maritza olhou
pra Nery, que olhou pra Maritza. Pareciam surpresos... e a surpresa deles me apavorou
ainda mais.
- Essa merda passa DUAS VEZES?! - Perguntei, já me levantando e pronto para
correr pro meu quarto.
Maritza olhou novamente para Nery esperando a resposta da minha pergunta. Com seu
velho suspirar antes de dizer algo ruim, Nery disse o que eu mais temia.
- Não! NUNCA VI DISSO... é sempre uma vez no mês... e é rapidinho!
Já perto da porta da casa, com as mãos tremendo gritei, tentando parecer bem
humorado:
- Elas parecem que vêm aqui porque vocês fizeram essa de casa rosa no
território delas!
Mal terminei de dizer essas palavras e uma nuvem negra surgiu... numa rapidez que me
petrificou.
Eram baratas enormes, mas estavam tão unidas que a visão parecia mais de uma grande
nuvem negra de poluição que dançava muito próxima de nós. Maritza começou a gritar
e se debater enlouquecidamente pois algumas pousaram em seu cabelo. Nery se
agachou com as mãos na cabeça.
Se estavam em pânico é porque sabiam de algo. Sabiam que algo estava errado com
aquela rua escura... sabiam porque não existiam outras casas ali e sabiam que havia um
MOTIVO para que as nuvens surgissem.
Mesmo com toda a facilidade que eu tinha em entrar na casa e correr para o quarto e me
trancar como fiz antes... continuei paralisado olhando a cena. A nuvem fez um formato
de uma SETA e APONTOU para Maritza! Seus grandes olhos castanhos olharam pra
mim, totalmente arregalados, e depois olharam pra Nery, que chorava, gritava e
apontava os dois braços pra ela. Foi a última vez que a vimos com vida.
A nuvem tomou todo o seu corpo que inicialmente tentou gritar, mas não pôde pois
quando abria a boca, as baratas entravam por sua garganta e narinas... o barulho vinha
de dentro. Somente numa situação dessas é que percebemos que de fato, todo nosso
corpo é capaz de gritar... numa altura que o mundo inteiro pode escutar.
Com o pouco de coragem que me restou, corri em direção a Nery e o puxei pelo braço
com força, arrastando-o para dentro de casa. Em seguida bati a porta e nos tranquei lá
dentro. O que ouvimos durante os poucos segundos - que pareciam horas - que se
seguiram foram grunhidos de agonia, zumbidos como turbinas de avião e logo depois...
silencio.
Nery estava caído no chão, chorando como um bebê. Eu estava em pé, encostado de
costas na porta, respirando com força. Minhas mandíbulas estavam tão presas que
depois passei semanas sentindo dores no rosto.
Carlos Nery chorou até desmaiar de cansaço e eu continuei na mesma posição até ver os
primeiros raios de sol entrando pelas brechas do telhado. Respirei fundo e resolvi abrir a
porta.
O que vimos foi um chão negro, repleto de baratas mortas... e lá ao longe, sentado no
chão, encostado no portão de entrada... jazia o esqueleto de Maritza, apenas com os
grandes olhos castanhos, ainda intactos e assustados. Nery se pôs ao meu lado, sem
mais forças para chorar. Devagar, andamos de mãos dadas... em direção à saída da casa.
Passando pelo que restou de Maritza, nós dois abaixamos a cabeça como se
estivéssemos num velório. Ganhamos a rua de barro onde o carro de Carlos Nery estava
estacionado. E sem dizer nenhuma palavra fomos embora da casa rosa.
III
A CASA ROSA – PARTE 3
O CHAMADO
Não me importava chegar lá sem Nery...
Provavelmente a porta estaria aberta e o esqueleto ainda estaria lá... fedendo e rodeado
de insetos. Passaram-se dois meses do dia da nuvem. E em vez de entrar num ônibus
diretamente ao meu trabalho, onde eu tinha muito o que fazer... resolvi ir pra Jauá, olhar
o esqueleto de Maritza.
Fui entrando como se a casa fosse minha, sabia que ninguém ia me impedir... não havia
ninguém naquela rua desde o dia da nuvem. O caseiro sumiu misteriosamente. Nery
acredita que as baratas tenham o devorado. Mas pouco me importava em que céu ou
inferno o caseiro estaria. Maritza precisava morrer?! Não era Nery quem dirigia o carro?
E mesmo assim, sem a intenção de atropelar a pobre criança? Em minha cabeça não
havia motivo para tanta punição.
Ao entrar logo vi que o esqueleto não estava mais lá, já era perto de meio dia, porém
uma nuvem enorme de chuva cinza fez o ambiente escurecer como uma tardinha de
domingo num outono. Se o observador não for bem atento, o outono se passa
despercebido em Salvador. A porta principal estava escancarada. O medo se apossou de
mim.
Entrei devagar, tentando logo ligar as luzes, mas não tinha energia na casa. Caminhei
até o banheiro pra lavar o rosto, mas também não tinha água. Eu estava sedento e em
jejum. Não foi uma viagem pensada... foi algo que me guiou hipnotizado até ali. Tinha
pouco dinheiro, fome, medo... e estava completamente sozinho na Casa Rosa.
No chão da sala haviam dezenas de baratas mortas, secas. Sabe-se lá porque, não dei a
mínima pra elas (normalmente também tenho medo de baratas mortas). Algo maior me
incomodava. Do outro lado da casa, onde tinha uma área de serviço com um tanque de
lavar roupa, ouvi uma voz que cantava tristemente... “...se a voz da noite responder...
onde andará o meu amor? ”.
Andei em direção à voz, já a reconhecendo. Minhas pernas tremiam e eu andava
extremamente devagar como se estivesse prestes a levar uma queda ou como se pisasse
em ovos. Podia escutar meu coração bater forte e com tanta rapidez que parecia estar
fora de meu corpo e acoplado às minhas orelhas. Cambaleava, mas ia adiante…
seguindo a voz.
Chegando no lavabo vi Maritza de costas. Vestia uma roupa branca, masculinizada,
calças largas e camisa larga. Na cabeça, o seu chapéu favorito. Na verdade, Maritza
estava parecendo um sambista.
- Mari-Mari... é você?
Ela não respondeu.
- Foi você que me trouxe aqui... não foi? - Minhas pernas balançavam tanto que
começavam a doer.
Ela foi virando o rosto devagar... eu não sei se gritei por dentro ou por fora. Mas sei do
desespero que senti ao ver seu rosto novamente. Quase tudo estava em seu devido lugar,
exceto os seus olhos. No lugar havia apenas escuridão... como num buraco negro.
“...onde estará o meu amor? ” – Me perguntou cantando...
- Se fala de Nery, ou de qualquer outro homem. Só tem eu aqui, más posso lhe
trazer depois, quem você quiser... você é quem manda! - Respondi gaguejando.
Ela soltou uma gargalhada alta e deu dois passos em minha direção, parando
firmemente logo em seguida. Como um moleque que é pego roubando biscoitos no
armário, urinei em minha calça, mas nem vergonha consegui sentir... tamanho o pânico
que me assolava.
- Traga-o pra nós... - Disse a assombração.
- Nós quem?! - Questionei.
Ela se calou, virou-se e continuou lavando roupa e cantando. Eram vestidinhos de
criança. Na verdade, pareciam mais vestidos de boneca, mas tudo ficou claro para mim.
- Eu trago ele aqui, esses dias. Mas... E se ele não quiser vir?
Uma mão pequena e muito gelada arranhou minhas costas me fazendo dar um salto e
indo parar pertinho de Maritza, que no momento se tornou menos medonha do que a
nova visão. Era a menina da bicicleta.
Ela era linda. Mas em seu sorriso, pude sentir algo que arrancava totalmente minhas
forças.
- Tio... - Disse a criança. - Traga ele para nós! Precisamos de um papai...
Precisamos de um papai... precisamos de um papai... precisamos de um papai...
As duas passaram juntas a repetir a frase incessantemente como um mantra, até que
corri como louco, ganhando a rua e correndo mais ainda. Não sei quantos quilômetros
corri até desmaiar.
Acordei numa casa humilde. Uma senhora me ofereceu sopa e miolo de pão. O seu
marido, um barbudo sisudo jogou sobre meu colo um cartão telefônico, para que eu
pudesse pedir ajuda. Sem mais delongas, liguei para Carlos Nery.
- Estou em Jauá. Maritza pede sua presença. - E bati o telefone sem mais nada
dizer.
Voltei andando devagar até a Casa Rosa, mas não ousei entrar lá sem Nery. Deitei na
sombra de um dos coqueiros que a cercava e adormeci.
IV
A CASA ROSA – PARTE 4 (FINAL)
REUNIÃO
- Não fraqueje agora, Carlos Nery... você sempre a amou. - Eu disse, tentando na
verdade me ver livre do problema... sair correndo... e ser feliz longe daquele lar
de mortos vivos... A Casa Rosa de Jauá.
Maritza estava com o rosto virado em direção à Nery, e apesar da ausência dos seus
olhos castanhos, tanto eu como ele sabíamos que ela o encarava, de punhos serrados e
lábios apertados (cheia de rancor) ... em sua roupa de sambista.
A menininha de vestido apareceu novamente, segurando uma bonequinha de pano,
cujos olhos que eram pra ser dois botõezinhos, estavam arrancados e manchados de
vermelho. Eu sei lá se era sangue... espírito não sangra! Eu acho! Ela podia estar apenas
tentando nos assustar... ou nos mostrar a gravidade da situação.
- Eu quero um papai. - Disse a menina num tom de birra, bem infantil, batendo
com força os pés no chão.
- Nery... isso não é um pedido... é uma ordem. – Sussurrei.
- Eu sei.
Me aproximei devagar e me agachei tentando acariciá-la na cabeça. Minhas mãos
passaram direto por algo que me lembrou vapor d’água e a imagem da menina se
distorceu como a imagem de uma TV velha. Carlos Nery me olhou com um rosto de
terror e ao mesmo tempo resignação... pois era muito óbvio que não era a mim que a
menina reivindicava deveres paternos.
- Eu não posso morrer assim Mari-Mari, eu tenho tanta coisa pra fazer...você
mesma sabe! Você era quem mais incentivava! A música, a banda, a faculdade,
meus projetos! Sempre que fraquejava você me fazia dar um passinho à mais!
Eu não posso acabar desse jeito... nesta casa!
Enquanto Maritza encarava Nery atentamente com as duas mãos na cintura, e Nery
tentava explicar seus motivos, a linda garotinha sumiu por alguns segundos.
Eu sentia um sono forte, como se estivesse drogado. Acredito que cochilei alguns
minutos sentado no chão com as costas encostadas na parede. Mas logo ela surgiu
novamente, sempre com aquelas mãozinhas minúsculas e geladas me arranhando.
Segurava um acarajé com vatapá, camarão, caruru, salada e panhado na pimenta.
Erguia-o pra mim.
Tomei-o de sua mão, (o cheiro estava divino!) Atirando-o com força contra um pilar de
madeira que estava próximo. O acarajé se espatifou contra a parede rosa deixando o
dendê e o vatapá escorrendo.
- Vá tentar a puta que te pariu. - Bradei, com os dentes serrados, olhando-a nos
olhos. – VOCÊ NÃO ME COMPRA.
Havia também uma garrafa de Coca-Cola no chão. Agarrei-a enlouquecidamente e
também a atirei contra a parede. O vidro se espatifando causou agonia no espectro que
levou as duas mãos aos ouvidos e sua imagem novamente ficou piscando como uma TV
velha.
- Se vidro quebrando lhe dá gastura... experimente chegar perto de mim de novo
que eu saio quebrando todas as janelas dessa pocilga, nem que eu morra fazendo
isso! Já trouxe teu pai aqui... me deixem sair!!
- Ainda não... - respondeu Maritza..., mas me acalmei com a resposta. O
“AINDA” me animou.
Maritza se aproximou de Carlos Nery, e os dois se beijaram. Eu quis vomitar..., mas o
estomago vazio não permitiu. Apenas fiquei a engulhar com as mãos na barriga,
sentindo fortes dores, levando o dedo até o fundo da garganta pra ver se conseguia pôr
alguma coisa pra fora, mas... nada. Não havia nada em meu estomago cansado.
- Devia ter comido o nosso acarajé! Meu antigo pai comia acarajé todos os dias,
e bebia cachaça também! E depois batia na minha mamãe com o cabo da TV...
acho que por isso que a televisão nunca pegava direito, você entende, moço?
- Você também não pega muito bem, doçura. – Respondi, cheio de sarcasmo,
como sempre faço, mesmo com o pescoço à prêmio.
Eu tentava me levantar em vão, vendo aquela cena bizarra de Nery beijando uma morta
viva, e ao mesmo tempo tentava não ceder a conversa da guria. Ela era bonitinha
demais, ingênua demais. Crianças não são mais assim. A essência do ser humano
mudou. Esse tipo de ternura não existe mais.
- Você sabe que está morta... e sabe que foram eles! Quer ferrar com a vida deles
com esse papo de “preciso de um papai... MI, MI, MI, MI...”. Olha aqui, sua
pentelha! Eu não tenho nada com essa história, viu? Eu fui convidado,
entendeu!? CON-VI-DA-DO. No dia que você chamou suas baratas pra jantar
minha amiga, eu era um CON-VI-DA-DO!
Ela tinha um sorriso malicioso e as vezes olhava pro lado como se visse alguém ou
recebesse instruções antes de responder meus chiliques.
- Tio, porque cê tá nervoso...? – “Não sou seu maldito tio...”, pensei.
- Por nada princesa... só quero ir embora, tomar banho, almoçar... Entende?
Coisa que gente VIVA tem que fazer???
Ela riu, e em sua risada pude perceber várias vozes, adultas, adolescentes e até mesmo
ruídos de animais, como porcos, pássaros e gatos. Seus olhos ficaram escuros como a
noite.
- Você vai trazer a nuvem de novo? - Perguntei trêmulo, com as duas mãos no
rosto.
- Sim..., mas é só pro papai. Você pode ir agora, titio... só precisa nos
prometer uma última coisinha.
Carlos Nery sorria de mãos dadas com Maritza Mendes. Parecia estar hipnotizado. A
menina do vestido rosa saltitou até eles e os três se abraçaram. Pareciam uma família
feliz de propaganda de margarina. Minha ânsia de vomito voltou... e enquanto eu
agonizava, todos os três gargalhavam às minhas custas. Uma nuvem de baratas se
formava por trás de Nery, fazendo uma forma de seta, apontando pra ele.
- Diga logo o que quer!! Me deixem ir embora!
- Ponha isso no papel. - Disse Maritza Mendes. - Faça o que sabe fazer. Conte a
história da Casa Rosa. Conte ao mundo a história do nosso amor!
Arregalei os olhos, tremendo e meio choroso. Mas no fundo senti um alívio imenso.
Pois não era uma tarefa difícil, e no fundo eu sabia que iria acabar fazendo isso mesmo
que não me pedissem.
- Ok. - Respondi ofegante.
Fazendo um gesto com as duas mãos, como se eu fosse um animal sendo posto pra fora
da cozinha, Maritza me mandou embora.
Eu saí correndo e apenas olhei pra trás uma vez... quando ouvi um engasgo. As baratas
tomavam conta do corpo de Nery, vagarosamente. Não foi como com Maritza... elas
pareciam... aproveitar o momento. Estavam se alimentando bem devagar. O sangue
jorrava, enquanto o corpo deitado tremia se debatendo, mas sem lutar contra o próprio
destino. Parecia ser uma dor excruciante e infinita, mas ele não gritava... nem mesmo
resmungava. Maritza mesmo sem olhos, me encarava sorrindo e a menina olhava pro
lado, como se mais alguém estivesse ali. Toda essa visão foi em poucos minutos, que
ficarão guardados em minha memória durante toda minha vida.
Ganhei a rua sem olhar para trás. Corri como um louco, sem sentir cansaço, sem mesmo
sentir minhas pernas... ganhei a estrada e peguei o primeiro ônibus que vi em minha
frente.
E como prometido, ao chegar em casa tomei um banho quente e demorado, comi um
acarajé que comprei no caminho... e comecei a escrever essa história.
CAPITULO DOIS
I
NADINE Nº 26
...desperta numa maca branca, completamente nua.
O quarto é todo branco e nada mais há em sua volta. Apenas uma câmera num ponto do
teto e um alto falante em outro ponto.
- Quem sou eu? – Ela se pergunta fechando os olhos e apertando a mandíbula
com força.
Uma voz surge do alto falante... uma voz robótica e feminina. Algo programado, nada
que se possa interagir.
- Nadine Nº 26, favor sair pela porta à esquerda. A porta será aberta em 5, 4, 3,
2, 1. A porta está aberta. Nadine Nº 26, favor abandonar o leito.
Nadine saiu e viu um grande corredor sem portas. Apenas uma lá no final. Os pisos
eram de azulejo xadrez. As paredes eram brancas e plásticas. O teto também era
totalmente branco, com lâmpadas brancas fluorescentes e os cantos repletos de câmeras
e alto-falantes. Uma parede se fechou atrás de Nadine e ela só se podia ir em frente.
- Nadine Nº 26. Favor tentar alcançar a luz azul. Início do experimento, em 4, 3,
2...
Bem no fim do corredor uma pequena luz azul de um objeto redondo que parecia uma
lanterna, piscava. O corredor era mais longo do que parecia ser... Nadine percebeu isso
na metade do caminho... quando notou o quanto tinha andado e que a luz azul
continuava ainda longe.
- Nadine Nº 26, FALHA FATAL. 30 segundos para a execução: 30, 29, 28, 27...
Nadine estancou, apavorada.
- EXECUÇÃO?!
- 18, 17, 16, 15, 13, 12, 11...
Nadine pôs-se a correr desesperadamente com as mãos apontadas para frente como um
naufrago tentando alcançar um bote salva-vidas.
- 8, 7, 6...
A luz azul se apagou, Nadine ficou parada no breu com a respiração presa e as pupilas
dilatadas. Apertava as mãos fechadas e trêmulas.
- EXECUTAR.
Uma pequena e horizontal abertura surge no lado esquerdo da parede. Nadine encostou-
se no lado direito, bufando pelo nariz. O suor escorrendo de sua testa, queimando seus
olhos... estava num estado quase convulsivo, com os braços abertos roçando-se na
parede... fechando e abrindo os olhos. Tentou gritar, mas ofegava e a voz sumia.
Uma lamina prateada saiu velozmente pelo buraco e atravessou o corredor, executando
a Nadine Nº 26. Caída morta. Quadril e troncos divididos. Olhos mortos assustados...
intrigados.
- Nadine Nº 26, EXECUÇÃO BEM SUCEDIDA. Resultado: NEGATIVO.
- Despertar Nadine em 30 segundos. 29, 28, 27, 26...
II
O GÊNIO REVERSO
Fazia-se de benevolente... o pilantra. Mas brincava com as pessoas. Um gênio da
lâmpada grato e disposto. Era o que parecia ser. E então o desejo de quem esfregasse a
lâmpada seria realizado... e o gênio ficaria livre... e seu libertador... muito feliz.
Mas na verdade era um gênio do mal, que gostava de pregar peças e rir da desgraça dos
homens.
********************
O primeiro homem que o encontrou pediu assim:
- Que haja uma pilha inacabável de ouro em minha casa quando eu regressar!
Uma pilha incontável de riquezas! - E assim o gênio atendeu.
Mas quando o homem chegou em casa, descobriu que embaixo do monte incontável de
ouro, que tanto sonhou – uma quantidade impossível de carregar e contar – jazia morto
esmagado o seu filho mais novo.
Carregado de culpa, o pai viveu até seus últimos dias de vida tentando tirar o ouro dali
para poder enterrar o seu filho, dando paz a sua alma..., mas morreu sem conseguir.
Seus outros herdeiros também tentaram, sem sucesso. O gênio havia enfeitiçado aquele
ouro e todo tanto que tinha sido removido durante o dia era reposto durante a
madrugada E então os restos mortais do menino ficaram ali para sempre.
********************
Um jovem compositor desejou tocar como o mestre Beethoven. O gênio então o deixou
tão talentoso quanto o seu ídolo, mas igualmente SURDO, como o próprio Beethoven
acabou por ficar.
********************
Quase cem anos depois outro homem esfregou a lâmpada, e ao se deparar com o gênio
fez um pedido que pensou ser muito simples:
- Me faça bonito, como o James Dean!
- Quer ter o rosto igual ao do James Dean? – Perguntou o gênio, sorrindo
maliciosamente.
- SIM! É o que quero! – Gritou o homem histérico.
E então o gênio transformou seu rosto numa cópia fiel de sua celebridade preferida. Mas
fez com que seu corpo se tornasse o corpo de um anão. Suas pernas ficaram minúsculas
e seus braços nada podiam alcançar. Tinha o rosto de James Dean, mas estava
desajeitado e feio no resto. Estava muito mais feio do que sempre foi.
Xingando e amaldiçoando o gênio, correu em sua direção para estrangulá-lo, mas suas
pernas minúsculas e tortas se enroscaram e ele caiu com a cara no chão. O gênio então
desapareceu deixando apenas uma gargalhada ecoando no espaço.
********************
Uma mulher bem gorda queria ter um corpo perfeito. Pois queria andar pela praia
usando um biquíni curto e apertado, desfilando seu corpo para o deleite dos homens. E o
gênio atendeu o seu pedido.
Só que quando foi tirar a roupa e conferir seu novo corpo no espelho, viu que ali tinha
duas novas – e imensas - tatuagens. Uma, de uma suástica em sua barriga abaixo dos
seios, e outra, um retrato do próprio Hitler que cobria todas suas costas.
A mulher caiu ajoelhada no chão urrando de desespero.
- Seu corpo é perfeito. Boa sorte na hora de desfilar na praia. – Zombou o gênio,
e sumindo em seguida.
********************
Um ancião, com cem anos de idade, pediu mais outros cem anos de vida. O gênio então
lhe deu cem anos num país desolado pela guerra e pela fome.
********************
Estava tão disposto a desgraçar a vida daquele pobre menino, que esfregara sua lâmpada
que disse:
- Estou TÃO FELIZ por ter me libertado, que lhe concederei DOIS PEDIDOS!
O menino olhou em volta ainda não acreditando no que via.
- Meu senhor... tenho o que preciso! – Respondeu timidamente e sorrindo.
- Sempre existe algo que se possa cobiçar. – Insistiu o gênio. – E você tem duas
oportunidades! APROVEITE-AS!
- Minha mãe diz para não confiar em nada que seja assim, tão fácil. – Retrucou o
menino enquanto já ia dando as costas para o gênio.
O gênio então se prostrou diante dele com um ar ameaçador. Seus olhos ferviam de
indignação.
- Se não pedir pelo menos UMA coisa, ARRUINAREI A SUA VIDA. E de
todos que você ama!
O garoto levou as duas mãos à boca escancarada de susto. Cambaleou para trás e caiu
sentado no chão levantando-se rapidamente como uma aranha numa panela quente.
- Então você é um gênio mal! Você é o Gênio Reverso! – Concluiu, tentando
conter um choro de medo.
- Faça logo seu pedido, MOLEQUE! E receba o seu prêmio!
Então o garotinho deu um pequeno sorriso com o canto dos lábios. Suspirou e se
recompôs. Pôs-se frente a frente com o gênio.
- Só quero uma coisa...
- QUALQUER COISA. Diga, diga, diga! – O gênio estava eufórico.
- Quero te libertar deste fardo. Quero que você deixe de ser gênio e torne-se
humano!
Dando um uivo de dor e desespero o gênio caiu no chão e toda aquela nevoa azul, cheia
de magia e poder, que sempre o cercava, sumiu. Seu corpo ficou seco e fraco como um
recém-nascido. Sua voz não ecoava mais por todos os quatro cantos. Era apenas um
homem faminto... um homem muito fraco e raquítico.
- Agora você vai sentir a dor que nós, homens... passamos... para conseguir
realizar nossos desejos. – Disse o menino deixando o gênio sozinho com seu
pranto.
III
HOTEL ENCHANTÉ
“As pessoas parecem flores, finalmente” (Charles Bukowski)
********************
Jorge parecia calmo agora. Tudo mudou.
Andou de um canto ao outro do quarto e parecia ansioso. Mas na verdade as coisas que
o enlouqueciam tinham morrido ou se tornaram inofensivas para um homem que agora
era um milionário. Desfilava seu roupão semiaberto e deixava o bigode crescer
parecendo um ator de filmes pornô dos anos setenta, cabelos lambidos divididos ao
meio, grandes. Ele achava sempre que estava sorrindo, só que estava na verdade sério e
apático o tempo inteiro. A primeira providencia que teve quando o dinheiro entrou em
sua conta foi:
Estava passando pelas ruas da Pituba onde havia a linda e imponente Igreja Nossa
Senhora da Luz, quando viu aquele pequeno hotel barato, cuja pintura era de um branco
que estava se tornando marrom e preto. Ele sorriu, deu um suspiro e entrou. Algumas
prostitutas habitavam o hall do elevador... mexeram com ele aos risos, mas não se
aproximaram. Comiam sanduiches numa lanchonete perto da recepção. O cheiro não era
bom, mas parece que nada disso afetava o sentimento que Jorge teve pelo lugar.
- Pois não...? – Disse a recepcionista mau humorada.
- Quero passar um tempo aqui... no mínimo um ano, e pago a vista. Mas preciso
ser bem tratado. Espero que mude essa sua atitude, baby.
E assim ganhou a chave e entrou no quarto. Deixando a jovem recepcionista
desconfiada, surpresa, e até mesmo – e por que não? – Atraída por ele. O quarto tinha
uma TV que só captava vídeo clipes, tinha um frigobar cheio de cervejas, amostras de
uísque e latas de coca. A cama era enorme e redonda e havia um vidro no teto.
Jorge se sentou numa pequena escrivaninha que ficava em frente à cama quase
bloqueando a passagem e pôs-se a escrever mais um de seus contos de natal.
********************
Seis meses depois...
A porta bateu ferozmente fazendo Jorge pular da cadeira de susto. Faltavam alguns dias
para o natal e ele já tinha escrito mais de cinco histórias. Todas lindas. Fechou o roupão
cor de rosa e se agachou no lavabo para lavar o enorme bigode preto, passando depois
as mãos molhadas no cabelo que a vaca lambeu. Tudo isso ignorando as batidas cada
vez mais fortes e insistentes. Foi atender assobiando e andando devagar. Parecia saber já
quem era. Ao abrir a porta, lá estava sua amada Luna, ofegante.
“PLAFT!!” - Fez o tapa caprichado no rosto de Jorge. Tentou dar um segundo tapa, mas
ele pegou rapidamente o seu punho - como um ninja - mas logo o soltou.
E então ela se atirou em seus braços e deu um longo beijo, apertando com raiva seus
lábios. No final fez uma pequena gota de sangue pingar no chão. Um oceano vermelho
pra formigas. A moça deu um leve empurrão em Jorge abrindo caminho e foi entrando
no quarto.
- Eu não disse que você podia entrar. – Rosnou Jorge.
- Desculpa baby... posso entrar?
- Pode, claro. Fique à vontade. “Mi casa, su casa”.
Ela entrou tirando seus enormes tamancos e atirando-os no chão. Foi logo jogando as
roupas também.
- O QUE VOCÊ TÁ FAZENDO?!
- Quero ficar à vontade. E pensei que nós fossemos...
- Não... estou curtindo outros baratos agora, sabe...
- HOMENS?!
- Nãããão... Voltei a escrever... voltei a pensar! Ali ó! – E apontou para a
escrivaninha onde tinha uma pilha de papeis e livros.
Luna folheou com desdém um conto escrito à mão, e na verdade nem ao menos deu
uma lida no que tinha escrito.
- Contos de natal, eu presumo...
- É.
Luna deu uma volta pelo quarto - que não era grande coisa - e um breve silencio se fez
no ambiente. Jorge bebia uma água com gás e limão. Parecia desconfortável e
impaciente.
- Você parece mudado. Continua bebendo?
- Nãããããã... nada disso. “Alcarról” distorce minhas ideias. A propósito... posso
tirar umas fotos suas? Assim, desse jeito... pelada? Fotos artísticas. Tenho uma
boa câmera. Mas é analógica e só pega preto e branco.
Luna ignorou a pergunta e veio até Jorge, que estava sentado na cadeira da escrivaninha.
Se sentou na mesa, mas não de modo sensual. Apenas sentada com as pernas bem
juntinhas.
- Não vai perguntar como descobri você aqui? – Indagou, forçando um riso que
não existia.
- Quiii...!
- As pessoas querem saber de você, Jorge. Saber se morreu ou se está vivo.
- HÁ!! PESSOAS?! Diga o nome de todas elas!
- PESSOAS... UÉ! Pessoas...
- Tá bem.
- Seu desgraçado. Eu passei meses chorando como uma viúva. Como é que você
vive aqui? Quem está te bancando?
- Ganhei na loteria. Falo sério... ganhei mesmo.
Luna não pareceu impressionada, coisas assim aconteciam com Jorge o tempo todo. Ele
era o cara mais sortudo do planeta..., mas só ele não notava isso.
Luna era muito bonita e exótica. Poucas são as mulheres que deixam o cabelo bem curto
e continuam lindas. Talvez fosse porque ela estava sempre incrivelmente bem vestida e
na moda. Usava pouca maquiagem, tinha olhos muito verdes e lábios bem vermelhos e
carnudos. Não precisava de exageros... era naturalmente linda. Seu corpo era perfeito,
era alta e tinha pernas grossas e lisas apesar de passar bem longe de academias e comer
demais. Jorge ficou sentado olhando-a de cima abaixo.
Subitamente Luna se levantou e se vestiu.
- Já vou.
- Ahn... Ok. – Jorge parecia infeliz.
- Eu não vou voltar Jorge... se você não disser nada agora, eu não vou mais
voltar... você me entende?
Jorge permaneceu mudo.
A moça calçou os tamancos altos que a faziam ficar mais linda e ainda mais enorme.
Abriu a porta. Olhou pra trás sem esperança de que Jorge tivesse alguma reação. Saiu
então batendo a porta violentamente.
Jorge deu um enorme suspiro. Como se tivesse prendido a respiração desde a hora em
que ela entrou no quarto.
- “Rico, né...? ” - Perguntou em voz baixa.
IV
UM CONTO PARA JOHNNY CASH
Jebb já estava de pé, mastigando fumo na varanda, com um copo de vidro sujo em
mãos. “Começou cedo no uísque, hã? ” – Ele apenas sorriu, calado. Levantou o copo
para mim... como se brindasse a qualquer coisa. Suspirei olhando as montanhas
cercadas de névoa matinal. “Vou andar... posso levar o seu rifle? ”. Jebb deu de
ombros enquanto tomava sua bebida imunda. Sua calma era irritante, às vezes. Um
desconhecido abusado terminaria muito mal se o provocasse. Era um temido pistoleiro,
procurado em quatro cidades. O prêmio por sua cabeça valia mais do que o nosso sítio.
Até hoje não sei dizer porque pedi o rifle emprestado. Subi a colina, de pé... duro...
ereto... decidido. Deixando o sol torrar meus ombros enquanto o rosto se protegia com o
chapéu marrom, velho e desbotado.
Ao longe vinha um cavaleiro solitário, tão longe que mal posso lembrar seu rosto.
Pratiquei nele a minha mira. O disparo quebrou o silencio e foi lindo... e a força do tiro
me fez quase cair sentado. O cavalo branco continuou correndo com vontade e sem
destino, enquanto o homem morto caiu para trás com o rosto enterrado no chão.
Eu abaixei a cabeça...
Corri, corri e corri... tentando acreditar em tudo aquilo como um grande pesadelo.
Larguei o rifle de meu irmão lá, onde meu crime jazia. Corri por vários dias... nas terras
do sul. Mas fui encontrado e quase morri espancado. Era um fora da lei, que matou um
ser amado... era o irmão de Jebb, “O Terrível”... que era também procurado. E eu nunca
mais o vi. Acabei acorrentado.
Eu abaixei a cabeça...
Hoje aqui no tribunal, estou perdido em pensamentos, sem saber mesmo - para quê? -
Me defender. Aceito que sou culpado. Mas o juiz queria saber se eu tinha algo a dizer.
“Explique ao tribunal o que deu em sua cabeça! E nós perguntaremos ao júri... qual
será o veredito! ”.
Aprendi o silencio de Jebb... meu amado irmão. O silencio do culpado inveterado.
Deixando o julgamento nas mãos de um Deus justo. Assombrado pelo homem sem
rosto... pai de filhos, homem de alguma mulher.
Eu abaixei a cabeça...
E o homem sem rosto veio me buscar em minha cela, antes mesmo da forca ficar pronta.
Veio pra me acusar, por toda a eternidade. E cavalgamos juntos em cavalos brancos.
Cavalgamos às pressas até o reino dos céus. E ao ser recebido pelos quatro cavaleiros do
apocalipse... e depois por anjos e trombetas...
Eu abaixei a cabeça.
*Este pequeno conto é uma homenagem a música “I Hung My Head”, do mestre Johnny
Cash. Que Deus o guarde, sempre de cabeça erguida.
CAPITULO TRÊS
I
NADINE Nº 34
Ela se levanta, olha em volta. E tudo é branco. Sacode a cabeça. A gente sacode a
cabeça quando acha que as memórias podem voltar. Elas não voltam. Você é um
experimento, Nadine.
- NADINE Nº 34. Checando sinais vitais. - Disse uma voz feminina e robótica. -
QUEM É?! - Não houve resposta.
Então ela se mexe, sentindo um tremor pelo corpo. Esticando a mão direita para frente
como quem tenta pegar alguma coisa.
- Começando procedimento em 5, 4, 3...
Então ela vê um corredor e sente-se em perigo. Há perigo, o perigo existe. E somente
atravessando o corredor e indo em direção à luz azul, ela estará a salvo.
- Experimento iniciado. Contagem para execução... 20, 19, 18... - Nadine Nº 34
subitamente corre em desespero.
Uma lamina surge do lado direito da parede. Nadine é atingida e grita. Um corte
profundo deixa seu braço quase decepado, mas ela continua correndo e urrando de dor.
Nadine corre com força, e grita alucinada. Não desiste e a porta está próxima. Ela pode
chegar lá.
- 9, 8, 7, 6...
De um buraco no teto caem pingos de um liquido transparente. É ácido. Nadine vê
pedaços de seu corpo derreterem. Urra de dor. Mas não para de correr. Está chegando.
- 3,2,1... Executar.
Uma lamina na horizontal vem com rapidez e com força, dividindo Nadine Nº 34 no
meio. Nos seus olhos, uma grande frustração. Olhos de quem achava que conseguiria se
safar. Olhos de quem achou que iria viver.
- Nadine Nº 36. Despertando em: 10, 9,8...
II
O DIA SEM SOL
Acordei com o corpo dolorido. Acho que dormi mais do que podia. Só conseguia pensar
na cara feia que a minha patroa faria quando me visse entrando na sala e ligando o
computador, completamente suado. Alguns minutos de atraso são suficientes pra ela me
sobrecarregar. Não me queixo... há muito tempo tinha desistido de ser feliz. Meu
esforço era para não ser infeliz ao menos.
- Mas que coisa! Ainda está escuro... e que friiio! - Acendi a luz do abajur e
olhei as horas no relógio-despertador de ponteiro.
11h:35min
- Tem alguma coisa errada com essa porcaria velha.
Saí tateando pela casa envolvido com um cobertor grosso.
- Será que estou mesmo no Brasil?
Acendi a luz da cozinha e olhei o relógio do micro-ondas marcando apenas um minuto à
mais que meu relógio. Corri pra janela e vi que não era o único que achava esta
escuridão esquisita. Todas as janelas do prédio em frente ao meu estavam acesas e as
pessoas olhavam pro céu e assim como eu, não conseguiam acreditar no que viam.
12h:00min
Simplesmente o sol não apareceu.
O céu estava aberto e coberto de estrelas. O frio era descomunal e poucos se arriscavam
a sair de casa. Alguns vizinhos apareciam rapidamente na frente do edifício totalmente
agasalhados, como se nevasse. Mas em poucos minutos retornavam...
- O frio deve estar insuportável lá fora. – Pensei.
Paguei bem mais caro num aparelho que além de ser ar condicionado, podia ser
convertido em aquecedor. Minha ex-mulher provocou como sempre fazia com qualquer
atitude minha. E diante de sua provocação me senti mais inclinado ainda a comprá-lo.
Agora ele estava sendo útil!
De aquecedor ligado e ainda totalmente agasalhado, bebia um chá fervendo tentando
não me desesperar com a situação. Que na verdade, estava até bem conveniente.
15h:40min
Acordei num susto com alguém esmurrando a porta de meu apartamento. Será a louca
da minha patroa? Não duvido... ela não consegue fazer nada sem mim.
- QUEM É?! – Respondi fazendo voz de velha.
- A FADA MADRINHA! Que voz é essa??? Abre a porta antes que eu morra de
frio!
Que maravilha... minha ex-mulher resolveu fazer uma visita. Após quase um ano de
silencio. Abri a porta e a louca correu pra dentro de casa como um cão assustado.
- Aaah... DELÍCIAAA! Você devia cobrar pra que as pessoas fiquem aqui! Você
sabia que tem gente morrendo nas ruas?
Olhei-a nos olhos e logo em seguida da cabeça aos pés. Não pude deixar de notar seu
corpo. É impressionante como as mulheres fazem questão de ficar mais bonitas depois
que se separam... fazem regime, amargam horas e horas em academias, param de comer
bobagens... só pra que a gente sinta, ao menos, um pingo de arrependimento quando as
encontrarmos... e então elas saem desfilando com seus novos namorados enquanto nós...
NÓS?! Continuamos engordando como bois esperando pelo abate.
- O que é que tá me olhando?!
- Estou olhando uma pessoa que não vejo há meses, invadindo a MINHA CASA
e tagarelando sobre o fim dos tempos. – Rebati com sarcasmo.
Como se não tivesse escutado uma palavra do que eu disse, sentou-se no sofá e suspirou
profundamente com um sorriso infantil no rosto.
- Aqui em frente mesmo, quatro moradores de rua morreram de frio. Somente
depois disso que os porteiros dos prédios resolveram deixar que eles se
alojassem nas garagens.
- Parece mentira..., mas o que realmente aconteceu? – Perguntei quebrando o
gelo.
- Ninguém sabe, amor. – (amor?!) - Simplesmente o sol não saiu em lugar
nenhum do planeta! Se você acha que aqui está ruim... imagine então os países
que já eram frios... na certa o mundo está acabando. JÁ DEU. Faz um cafezinho
pra mim, faz?
Ela estava ali, toda linda... e falando comigo como se ainda fossemos namoradinhos.
Me pedindo café e falando do fim do mundo como se fosse um barato! Eu simplesmente
não sabia o que como agir.
Tenho medo de ligar a televisão. E sinceramente, não consigo me desesperar e nem
sentir pelos outros. “Só consigo pensar em como seria legal tirar a roupa dela nesse
momento. A banheira quente seria suficiente pra nós... ”, pensei.
16h:00min
E então, o mundo ia acabar... E daí? Tinha comida suficiente pra me manter por até
umas duas ou três semanas. Acho que nunca estive tão tranquilo em minha vida. Se me
dissessem que apenas eu iria morrer... talvez soasse esquisito. Mas todo mundo estava
no mesmo barco! Eu tinha televisão, DVD, aquecedor e uma mulher bonita em minha
casa. Não era exatamente a mulher que eu sonhei ter ao meu lado no fim dos dias. Mas
pelo menos já tínhamos intimidade suficiente pra ficarmos juntos, sem romantismo
demais... já que não tínhamos tanto tempo pela frente.
- Já sei! NAT KING COLE! – Gritei.
- Há-hááá! Melhor impossível!
Ela se levantou e veio rebolando em minha direção. Tentava parecer sexy, mas estava
ridícula, mas isso me divertia e me encantava ao mesmo tempo. Brindamos o café
fervendo e sorrimos um ao outro como se nossa juventude tivesse sido devolvida.
Sem rodeios, ela me beijou com um selinho, deixando o gosto do seu batom vermelho,
misturado com café, no canto dos meus lábios. E voltou andando pra trás, olhando
diretamente em meus olhos ainda com uma sensualidade digna de um filme de horror de
baixo orçamento.
17h:30min
O frio aumentou. Corremos pro quarto e nos agasalhamos ainda mais. Parecíamos dois
esquiadores em plena Bahia.
- Alfie...
- Diga amor...
- Em pouco tempo..., isso vai deixar de ser divertido.
Com apenas esta frase, Eliza me trouxe de volta à realidade. Senti um princípio de
preocupação. Um frio na barriga terrível.
- Horas amor... horas... – Corrigi desolado.
- A verdade é que eu não quero que mude. Nem para como estava antes e nem
que esfrie mais. Quero continuar assim, com você. - Disse isso do fundo do meu
coração, impressionando até a mim mesmo.
- Um Alfie sentimental... essa é uma boa novidade...
Eliza sorriu como um anjo e encostou sua cabeça em meu ombro. A temperatura caiu
bruscamente em poucos minutos. Liguei a televisão.
19h:25min
Apenas dois canais funcionavam. As outras emissoras já estavam fora do ar. No interior
de São Paulo, uma creche virou um cemitério de crianças. No Rio, moradores de rua
arrombavam casas e lojas para se protegerem do frio. E não tínhamos mais notícias das
cidades frias do sul e dos demais países. Presumíamos que estavam todos mortos.
- E pessoas morrem, morrem, morrem... em todos os quatro cantos do mundo! E
nós aqui...
- Alfie! Desliga isso aí! Vem ver de sua janela o fim do mundo ao vivo e a
cores!! Há-Há!
Engoli seco e fui andando devagar em direção a janela. Realmente aquela situação já
tinha perdido totalmente a graça. Mas, é claro que continuávamos rindo. O que
podíamos fazer?
O que vi não dá pra descrever direito. Eram pessoas. Mais pessoas do que pude contar...
a maioria já estavam mortas e o restante das outras em agonia.
- Fecha essa zorra Eliz... Não há o que fazer. Vamos esperar nossa hora chegar
da melhor forma possível. Com dignidade.
- Tenho uma ideia melhor do que essa sua “dignidade”. – Ela disse, enquanto
tirava a roupa tão rapidamente que mal pude consentir ou não. Seu corpo estava
espetacular (ao contrário do meu). Eu sentia como se nunca o tivesse visto antes.
- Melhor corrermos pro banheiro, antes que eu morra de frio!
Eliza correu em direção ao banheiro como uma criança, gargalhando, sem se importar
com o mundo lá fora ou com sua nudez diante do seu ex-marido que a havia chutado pra
fora de casa. Eram as últimas horas de nossas vidas. E não cabia ao momento, ver a
minha Eliz cuspindo em meu rosto suas mágoas... tampouco eu vomitar em seus pés
meus arrependimentos.
20h:00min
Deitados no chão, ao lado da banheira. Eliza chorava baixinho com sua bochecha
encostada na minha. E eu acho que chorava também. Não dava para saber quem é quem
nesta banheira. Estávamos atracados, unificados.
20h:52min
Não dava mais pra continuar, meus dentes estavam batendo. A pele branca de Eliza
estava áspera e quente. Ardia em febre. O desespero começou a bater em nossa porta.
Deitei meu amor num colchão bem no meio da sala, juntei todos os meus livros velhos e
fiz uma fogueira.
A voz de Nat King Cole, cantava “Sweet Lorraine” numa versão Mono... numa
gravação cheia de chiados. Eu amava aqueles chiados... chiados que se misturavam aos
gritos e gemidos desesperados lá fora. “Ranger de dentes”... Momento bíblico. Sei que é
egoísmo, mas não quero que Eliz morra antes de mim. Não quero viver esta dor.
- fr...frio... – balbuciou.
- Você vai ficar bem amor. – Menti.
Lá estava eu. Mentindo mais uma vez para Eliza. Praticamente deitado em cima dela,
tentando evitar que minhas lágrimas molhassem seu rosto. Vejam só... eu amo a Eliza!
“ÓTIMA” hora pra perceber isso, né?! Leito de morte... apocalipse... DIA SEM SOL.
22h:00min
Fim do mundo ou sei lá o que... até agora estava sendo o dia mais feliz de minha vida.
Eliz estava ficando cada vez mais roxa... exatamente igual às pessoas que eu via
agonizando lá fora e na TV.
Não é só a ausência do sol que está fazendo isso com a gente. Existia algo pior no ar.
Um mal invisível, que está destruindo a humanidade. Não sei como os cientistas
nomearam esse vírus... mas acho que “Deus” seria um nome adequado.
- Amor...
- Diga meu bem...
- Hoje foi um dia maravilhoso, obrigada.
Dito isto, Eliza fechou os olhos e sorriu pela última vez. Tudo foi tão rápido que eu tive
que me sentar no sofá pra pôr as ideias no lugar. Decidir se ia vou chorar ou se
simplesmente fazer qualquer outra coisa pela casa... fingir que nada tinha acontecido.
23h:15mim
Completamente coberto com todo tecido da casa, deitado no chão ao lado do corpo de
Eliz... nossa... ela era tão... branca... seus cabelos eram negros... e do seu corpo nem
quero falar. Não consigo culpar a Deus por tudo isso. A gente planta o que colhe. Não
quero bancar o ambientalista agora que tudo está ferrado, más é óbvio que não
estávamos cuidando direito do planeta. Sabe o que é pior? É que mesmo agora no auge
da tristeza, não conseguia me arrepender de nada que fiz com minha vida.
02h:20min
A febre da morte chegou até mim e me abraçou com força. A casa já não tinha mais luz
e o aquecedor não funcionava. Não tinha mais forças pra lutar... e nem queria mesmo ter
forças. Não queria mais lutar. Meu amor morrera, a humanidade estava sendo varrida do
planeta. Eu nunca fui uma pessoa muito útil, que mais podia fazer?
03h:00min
Não sei se estava morto..., mas estava tão feliz que não fazia diferença. De repente num
salto levantei e agora andava por uma casa. Havia um cheiro de flores no ar e eu não
sabia de onde vinha. Parei na porta da cozinha e sorri... para minha mãe! Que cozinhava
algo delicioso. O cheiro estava maravilhoso. Ela sorriu e acenou sem nada dizer e eu
retribuí o sorriso timidamente, com o canto da boca.
Havia uma mesa grande de madeira com oito lugares. E então ELA surgiu.
- Alfie!
- ELIZAA!!
Como dois adolescentes, nos agarramos e nos beijamos e juramos amor eterno.
- Charuto?!
- Sim, porque não? – Respondi rindo como uma criança.
Meu pai entrou subitamente na sala e vestia um pijama listrado, cafona, mas e daí? Ele
olhava pra cima como se o teto não existisse e pudesse ver o céu estrelado.
- Ééé... Meu filho Alfie...
- Diga pai!
- Todo mundo morreu, sabia?
- Fiquei sabendo... Mas que merda, HEIN? Desliga a TV! Ué? Cadê a TV? Não
têm TV???
Andava pela casa fumando meu charuto, quando um menininho passou por mim
correndo. Ele vestia uma fantasia de anjinho, com aqueles arames na cabeça. Ele olhou
em meus olhos, sorriu, deu de ombros com e continuou correndo e rindo.
- Ué?! Quem é esse molequinho? – Perguntei rindo...
- É nosso filho Alfie! – Respondeu Eliz.
- Ah... ok, ok... sem problemas... ok...ok. Acho que vou precisar de mais um
desses charutos...
O menino passou por diversas vezes no mesmo lugar e repetindo os mesmos gestos.
De repente todos estavam parados, abraçados e me olhando
- Filho, porque ainda escreve nesse bloquinho? – Perguntou minha mãe.
- Sei lá, me acalma... quando o mundo estava acabando e... não sei... eu gosto.
Já não sabia que horas eram. Realmente estávamos todos mortos.
- O que aconteceu com o mundo que era vivo? – Perguntei olhando ao redor. -
Morreram filho, estão todos aqui agora... o sol apagou... e um vírus fez a gente
adoecer e morrer rapidamente. Você foi um dos últimos! Estávamos
impacientes, queríamos que você participasse da ceia!
- Humm... qual o nome da gripe?
- “Deus”. – Disse o meu filho, sorrindo com as mãos na boca, como eu mesmo
faço quando acho muita graça em alguma coisa.
- EI. Eu que dei esse nome!
Andei até a janela. Pessoas flutuavam como pipas em frente às casas, dando voltas em
torno de edifícios e postes, como passarinhos. Eram muitas, todas cantavam uma música
engraçada, numa língua que não consegui entender.
No chão algumas crianças vestiam trajes iguais ao do meu filho e corriam e
movimentavam as mãos como se realmente aquelas pessoas lá em cima fossem suas
pipas e elas pudessem controlá-las. O sol na janela era forte e fazia calor...
“Antes de comer, vou tomar uma ducha. ”, Pensei.
III
NADIDE Nº 104
UMA PUTA CORAGEM
Nadine conseguiu.
A lâmina, na sala de testes no laboratório sem nome, parou. Aquele laboratório plástico
e cercado de vozes que vinham de caixas de som... e suas luzes que piscavam em botões
por toda parte, causando-lhe vertigens... PAROU – simples assim! – E a lâmina estava
tão rente ao seu pescoço que fez apenas uma gota se sangue escorrer.
Mas antes disso a lâmina tentara ainda uma vez. E Nadine se pendurou numa corda até
o máximo que podia. Talvez fosse esse o teste; ficar ali pendurada por um tempo
estabelecido. Mas a lamina veio e fez-lhe um belo corte no braço esquerdo. E quando
Nadine emitiu o grito de dor - alto e agudo - ela mesma se assustou, pois não conhecia a
própria voz (ou não se lembrava). Não sabia o que era um grito e não sabia o que era
dor.
E então, na segunda vez que a lamina surgiu e correu em sua direção até o seu tronco,
naqueles poucos segundos ela soube que tudo ia acabar. “Tudo”, que na verdade não era
absolutamente nada. Mas um milagre aconteceu. E a lâmina, e os botões coloridos e as
luzes, simplesmente emitiram um ruído estranho. Fagulhas, um barulho de coisa
quebrando que vinha das paredes e tudo finalmente parou... RENTE ao pescoço. E
Nadine não sabia o quanto era sortuda, pois não sabia o que era sorte.
Correu até a porta, e não havia dúvidas ou escolha, porque era a única. A outra opção
era o retorno ao pesadelo plástico. E ao abrir havia uma escada muito longa que dava
numa outra porta, pequena, de madeira. Ao sair por aquela porta ela estava numa rua
escura e pouquíssimos carros passavam.
Haviam algumas mulheres ali, elas tinham a aparência diferente de Nadine. Suas vestes
eram extremamente curtas e apertadas, sendo muitas vezes transparentes. E seus corpos
apareciam. E havia mais carne, havia mais curva. Nadine gostou do que viu. Era
diferente da roupa látex branco que revestia todo o corpo magérrimo de Nadine dos pés
até o pescoço.
Algumas das moças começaram a rir e acenar para alguns automóveis que passavam
reduzindo a velocidade. Mas nenhum parou e elas puseram-se a manusear algo com os
dedos e os lábios e aquilo era muito estranho pois soltava fumaça. Nadine sentia que
conhecia tudo, tudo o que via. Mas ao mesmo tempo tudo lhe parecia novo. Chegou a
desejar um cigarro, mesmo sem fazer ideia do que era. E até mesmo sentiu vontade de
tocar os corpos daquelas moças.
De repente uma delas a notou e fez uma cara confusa, sorrindo. Nadine sentiu um medo
terrível de que ela se aproximasse. Mas a mulher apenas passou a encará-la com
curiosidade e um sorriso desconfiado no rosto. De repente um carro chegou. Era um
carro preto e os vidros também eram totalmente negros. As mulheres não gostaram
daquilo e em vez de se aproximarem como abelhas em mel - como normalmente o
faziam - se afastaram e ficaram unidas num beco, encolhidas e preocupadas.
Um dos vidros se abaixou e um homem de óculos escuros e roupas também escuras,
acenou para Nadine. Mas Nadine se encolheu encostada num poste sem mesmo saber de
onde vinha aquele medo feroz que crescia diante daquele homem. O homem então deu
um suspiro entediado. E ao ver que Nadine não se aproximava fechou-se novamente no
carro e começou a cantar os pneus, com fúria. O barulho era ensurdecedor. Neste
momento todas as putas sumiram. Menos uma. Menos aquela que tanto encarava
Nadine.
A fumaça subiu e um cheiro de borracha queimando, junto ao barulho do motor
tomaram conta da rua. Assim como no momento da chegada da primeira lâmina, Nadine
não fazia a menor ideia do que estava por vir. Mas a puta sabia. E então quando
finalmente ele acelerou e voou em cima de sua cobaia, a mulher sem nome atirou-se em
cima do carro, rolando por cima e indo parar bem longe, morta. Nadine gritou pela
segunda vez em sua vida e correu pela segunda vez também. Correu sem parar por
várias horas a se perder de vista.
O homem saiu do carro e andou vagarosamente em direção ao corpo da mulher que
morreu. Parou ao seu lado, tirou os óculos, mostrando olhos que também eram
totalmente negros, e os coçou, novamente suspirando com muita tristeza e um tanto de
tédio.
IV
MORTE NO PAGODE DO IMBUÍ
Quinze para as dez da noite...
Todos dançavam e o som era absurdamente alto, num lugar absurdamente pequeno. Era
quase uma tortura, mas todo mundo estava adorando, menos eu. Adoravam porque era
profano, porque era pagode baiano... eram rebolados, eram pernas, bundas, seios e
coxas... e muita conquista, suor, carne, sexo.
Eu estava sentado tomando um copo de suco e sentindo pena de mim mesmo por não
me adaptar a lugares assim. “Pelo menos a gente pode rir da cara dos outros...”, era o
que um amigo sempre dizia.
Uma loira linda num vestido branco e bem curtinho, dançava me olhando e sorrindo... o
que me deixava muito mais triste. “O que ela está pensando que eu vou fazer? Não vou
entrar na dança, não vou forçar minha natureza por uma mulher qualquer. ”. É o que
eu me dizia, pra me convencer de que não me movia do lugar, apenas por ser um cara de
princípios. Uma puta personalidade... hahaha..., mas, bem que eu queria... desviava o
olhar e bebia mais um gole de suco. Ela parecia se divertir com cada atitude - ou falta de
atitude - minha.
Meia noite...
Meus olhos fechavam sem querer, eu já queria ter ido embora há horas. Mas meus
amigos estavam espalhados pela casa, dançando com desconhecidas. E a loira não me
olhava mais. “Deve ter percebido a espécie de babaca que eu sou e... oxente? Sumiu?
Onde ela foi? ”.
Me levantei e saí para procura-la. Algo me dizia pra fazer isso. Meus amigos
perguntavam aos risos se finalmente eu tinha tomado coragem. Eu ria sem jeito, mas
sabia que quando a encontrasse, minhas mãos iriam gelar, meu rosto ficaria fervendo e
formigando e nem um dedinho de prosa sairia de minha boca.
Fui andando, me esbarrando na multidão, procurando a dama loira. Dei umas três voltas
e não a encontrei... voltei desolado pra minha cadeira.
Cochilei.
Duas e quarenta e dois da manhã, estou sonhando...
Estou parado na frente do estacionamento. Os carros deveriam me atropelar, mas
simplesmente me atravessam como se eu fosse feito de vento ou um espírito errante.
Uma mulher de vestido preto, olhos totalmente vermelhos, como uma coruja, se
aproxima rindo e batendo palmas.
Eu apenas observo sério e calado. Eu não estou afim de me mover, mas acho que se
quisesse não conseguiria (Sempre preferindo pensar que estou no comando). Ela parou
com o rosto colado ao meu, quase me beijando.
- Sua garota está morta.
Três horas em ponto...
Acordei num susto, berrando... meus amigos e vizinhos de mesa se divertiam comigo e
com toda razão. Levantei e fui em direção ao banheiro das mulheres, parecia estar
louco. Corri tentando me desviar o máximo que podia das pessoas. Todos me olhavam
assustados e alguns caras até ameaçaram me bater.
Parei na porta do banheiro feminino, ofegante, e agora duvidava de minha própria
sanidade. Foi então que um grito fino ecoou lá de dentro. Olhei em volta. Ninguém
parecia ter escutado.
- O que faço?! - sem dúvidas, entrei no banheiro.
E lá estava minha dama sem nome. O seu vestido agora estava vermelho de sangue.
Seus olhos tinham sido arrancados... Era grotesco. Um punhal preto atravessara o seu
papo em posição vertical, e terminava pouco acima de sua língua... deixando a sua boca
sem poder fechar... paralisada numa face de grito, digna dos piores pesadelos de
qualquer pessoa.
Nunca senti tanto horror em minha vida. E acredito que nunca corri tanto também. Em
poucos minutos já tinha ganhado uma rua desconhecida e estava bem longe do pagode,
de modo que já não escutava a música. Acho que corri durante uns trinta minutos sem
parar e sem olhar pra trás. Estava sozinho na rua e tinha pouquíssima luz. Um táxi
passou por mim muito lentamente, e foi parando... bem devagar. Exausto, acenei
pedindo socorro. O carro parou encostado ao meu lado e o vidro escuro foi se abrindo
devagar...
ERA ELA! ELA!! A mulher do meu sonho! Dei vários passos para trás totalmente
atordoado e confuso. Acabei caindo sentado no chão. Ela gargalhava e seus olhos
vermelhos me fitavam e pareciam lanternas. O vidro foi se fechando devagar... e o carro
acelerou com força, sumindo numa esquina. Sentei na sarjeta e comecei a chorar sem
parar.
Não sei por quanto tempo fiquei ali, sentado chorando. Meus amigos chegaram
buzinando e gritando... estavam preocupados. Provavelmente já sabiam do acontecido
no banheiro da casa de show. Me puseram no carro, no banco de trás, e me deram água.
Nada foi dito durante todo o caminho de volta, e nada foi dito nos dias seguintes.
FIM