moreira, cláudia. o triunfo de uma ilusão

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5/22/2018 MOREIRA,Cludia.OTriunfodeUmaIluso.-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/moreira-claudia-o-triunfo-de-uma-ilusao 1/5 MOREIRA, Cláudia. O triunfo de uma ilusão. Acessado em: 10 de julho de 2014 Dispon!el em: h""p:##$e!is"acul".uol.com.%$#home#2014#0&#o'"$iun(o'de'uma' ilusao#).*&+Mi-+/A.(ace%oo O RI*O DE *MA I3*5O e le!a$mos em con"a o conjun"o da o%$a ($eudiana (ica$emos su$p$esos em cons"a"a$ -ue a pa$cela dos "e6"os psicanal"icos comumen"e desi7nados como 8sociais9 %as"an"e si7ni(ica"i!a, ocupando um "e$;o ou mais das o%$as di"as comple"as e ul"$apassando a concep;<o co$$en"e -ue iden"i(ica es"es "$a%alhos ao $="ulo a%$an7en"e de 8e6ame ($eudiano da cul"u$a9 como se "ais p$odu;>es pudessem se desconec"a$ da p$á6is clnica ou de ela%o$a;>es me"apsicol=7icas. Ou pio$: como se $eud es"i!esse nes"es "$a%alhos $edu?indo a dimens<o social @ me$a dimens<o psicol=7ica. Em sicolo7ia das massas e análise do Eu B121 !e$i(icamos -ue oposi;<o en"$e a psicolo7ia indi!idual e social n<o $esis"e a uma análise mais acu$ada. As ($on"ei$as en"$e indi!idual e cole"i!o s<o "nues. O (enFmeno $eli7ioso sem dG!ida uma mani(es"a;<o cul"u$al p$i!ile7iada pa$a e6empli(ica$mos isso, pois -uando $eud come;a a -ues"iona$ a $a?<o pela -ual a $eli7i<o man"m seu pode$ e e6e$ce sua (o$;a, a despei"o de -ual-ue$ a$7umen"a;<o $acional, ele, a um s= "empo, p$ocu$a sa%e$ so%$e a (o$ma como os sujei"os mo%ili?am in"e$namen"e seus desejos -ue culminam na ado;<o de de"e$minadas c$en;as, mas, "am%m lan;a lu? so%$e os la;os sociais cons"i"udos a pa$"i$ disso. A $eli7i<o des!ela al7o da sociedade -ue a p$odu? e dos sujei"os -ue comp>em es"a mesma sociedade. <o sem $a?<o -ue $eud a(i$ma emO (u"u$o de uma ilus<o B12& -ue as ideias $eli7iosas podem se$ conside$adas como 8a pa$cela mais si7ni(ica"i!a do in!en"á$io ps-uico de uma cul"u$a9. em po$ isso ele !ai se e6imi$ de -uali(ica'las como ilus>es. O pon"o de pa$"ida ($eudiano no"á!el: a $eli7i<o uma pa$"e conside$á!el da cul"u$a e me$ece nossa a"en;<o. Es"e aspec"o de!e se$ $ecupe$ado nos dias de hoje na medida em -ue !i!emos em um "empo desencan"ado, onde !i7o$am duas "endncias dis"in"as. Em uma !e$"en"e, p$edomina a concep;<o de uma $eli7i<o apa$"ada de -ual-ue$ cul"u$a. ela  podemos si"ua$ "odos os (undamen"alismos -ue p$ocu$am nu"$i$ as almas so($edo$as com um alimen"o espi$i"ual de (ácil acesso, cujos con"eGdos dou"$iná$ios n(imos s<o a!essos a -ual-ue$ "ipo de li%e$dade in"e$p$e"a"i!a, %em como des(a!o$á!eis @ "$adi;<o e @ mode$nidade B!ide (undamen"alismos de "odos os "ipos, inclusi!e neopen"ecos"ais. Do ou"$o lado, uma !e$"en"e cuja "en"a;<o a ideia de uma cul"u$a dissociada de -ual-ue$ $eli7i<o. es"e caso se$iam $echa;adas -uais-ue$ $e(e$ncias his"=$icas, numa espcie de 8ma"e$ialismo hipe$%=lico9: -ues">es de ( e espi$i"ualidade au"oma"icamen"e s<o

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MOREIRA, Cludia. O triunfo de uma iluso.Acessado em: 10 de julho de 2014Disponvel em: http://revistacult.uol.com.br/home/2014/07/o-triunfo-de-uma-ilusao/#.U738Miq3NYA.facebook

O TRIUNFO DE UMA ILUSOSe levarmos em conta o conjunto da obra freudiana ficaremos surpresos em constatar que a parcela dos textos psicanalticos comumente designados como sociais bastante significativa, ocupando um tero ou mais das obras ditas completas e ultrapassando a concepo corrente que identifica estes trabalhos ao rtulo abrangente de exame freudiano da cultura como se tais produes pudessem se desconectar da prxis clnica ou de elaboraes metapsicolgicas. Ou pior: como se Freud estivesse nestes trabalhos reduzindo a dimenso social mera dimenso psicolgica. Em Psicologia das massas e anlise do Eu (1921) verificamos que oposio entre a psicologia individual e social no resiste a uma anlise mais acurada. As fronteiras entre individual e coletivo so tnues.O fenmeno religioso sem dvida uma manifestao cultural privilegiada para exemplificarmos isso, pois quando Freud comea a questionar a razo pela qual a religio mantm seu poder e exerce sua fora, a despeito de qualquer argumentao racional, ele, a um s tempo, procura saber sobre a forma como os sujeitos mobilizam internamente seus desejos que culminam na adoo de determinadas crenas, mas, tambm lana luz sobre os laos sociais constitudos a partir disso. A religio desvela algo da sociedade que a produz e dos sujeitos que compem esta mesma sociedade. No sem razo que Freud afirma emO futuro de uma iluso (1927) que as ideias religiosas podem ser consideradas como a parcela mais significativa do inventrio psquico de uma cultura. Nem por isso ele vai se eximir de qualifica-las como iluses.O ponto de partida freudiano notvel: a religio uma parte considervel da cultura e merece nossa ateno. Este aspecto deve ser recuperado nos dias de hoje na medida em que vivemos em um tempo desencantado, onde vigoram duas tendncias distintas. Em uma vertente, predomina a concepo de uma religio apartada de qualquer cultura. Nela podemos situar todos os fundamentalismos que procuram nutrir as almas sofredoras com um alimento espiritual de fcil acesso, cujos contedos doutrinrios nfimos so avessos a qualquer tipo de liberdade interpretativa, bem como desfavorveis tradio e modernidade (vide fundamentalismos de todos os tipos, inclusive neopentecostais). Do outro lado, uma vertente cuja tentao a ideia de uma cultura dissociada de qualquer religio. Neste caso seriam rechaadas quaisquer referncias histricas, numa espcie de materialismo hiperblico: questes de f e espiritualidade automaticamente so reduzidas e rotuladas como falsas ou desnecessrias. (Deschavanne e Tavoillot, 2011). O problema que tanto em um caso quanto noutro ignora-se por completo que a religio foi por muito tempo parte de nossa cultura e ainda o (mesmo que no saibamos ou no concordemos com isso). Saber o que fazer com esta herana torna-se ento um grande desafio. Parece-nos que tanto em sua crtica endereada religio, quanto na elaborao de sua teoria, Freud apropria-se de maneira mpar dessa herana, nunca desconsiderando o papel do fato religioso na cultura e seus efeitos na subjetividade.Depois de muitos esforos buscando apreender algo a respeito das origens da cultura em O futuro de uma iluso (1927) que Freud lana o questionamento acerca do destino da civilizao e das transformaes pelas quais ela inevitavelmente passaria. Mas, eximindo-se de antemo da dispendiosa tarefa de fazer prognsticos abrangentes sobre o futuro de nossa cultura, ele restringe sua empreitada ao mbito da religio. O futuro de uma iluso certamente o trabalho freudiano mais combativo temtica religiosa. Em muitos aspectos, procede da influncia exercida pelo trabalho de Feuerbach, A essncia do cristianismo (1841). O texto de 1927 pode ser interpretado como um livro que foi concebido na esteira do debate iluminista que contrape cincia versus iluso religiosa. evidente que a oposio cincia versus religio d o tom ao longo de todo o ensaio. Mas ao qualificar as ideias religiosas como iluses e em seguida esclarecer que a principal caracterstica da iluso derivar dos desejos humanos, Freud fornece uma genealogia capaz de explicar as razes psicolgicas que levam os homens a creditarem tanto valor religio. no sentimento de desamparo infantil e no anseio pelo Pai-protetor que encontraremos as motivaes internas que justificariam a adeso e a eficcia das ideias religiosas a despeito de qualquer argumentao racional. Em outros termos, todo o ensaio parece feito para demonstrar a dinmica existente entre o trabalho da pulso que visa satisfao e culmina na propenso das pessoas a acreditarem nas ideias religiosas, mesmo sabendo que essas ideias no so condizentes com a realidade e so por si s indemonstrveis e o empenho da razo em se afirmar a partir daquilo que fruto do livre pensar afastado das tentaes idealizadoras que engendrariam um mundo onde tudo explicado, compreendido e feito para acalentar os homens. Mas no sejamos ingnuos, embora Freud faa votos para que a religio submerja frente aos apelos da razo e da experincia, o pai da psicanlise sabe como ningum que no possvel educar a pulso. Esta tenso que perpassa todo o livro o pano de fundo em que vemos desenrolar o inevitvel questionamento sobre a primazia da religio em fundamentar a moral de nossa cultura. Tambm o modo freudiano de tentar proteger a psicanlise, desvinculando-a inteiramente de qualquer elo com a religio. assim que Freud se expressa em uma carta ao seu amigo OskarPfister: No sei se o senhor adivinhou a ligao secreta entre A questo da anlise leiga e O futuro de uma iluso. Na primeira, quero proteger a psicanlise dos mdicos; na segunda, dos sacerdotes.Freud entende que o homem libertado da religio estaria na mesma posio do filho que abandonou a casa paterna e se viu confrontado com seu desamparo, podendo contar apenas consigo mesmo. O destino de todo infantilismo no ser superado?, indaga. a vertente da responsabilizao frente aos prprios atos, desejos e dificuldades que faz com que a crena religiosa seja to duramente criticada, pois ao enaltecer a figura de um Deus-Pai provedor, a religio antecipa-se ao crente permitindo que o mesmo se acomode na posio pueril do pecador. Sutura-se assim a diviso fundamental que o constitui, delegando ao Outro a tarefa rdua do pensar e do agir. Abandonar a religio seria ento algo inerente ao processo de crescimento dos homens. por esta razo que Freud, um tanto entusiasta quanto ao progresso da cincia, afirma que no futuro a religio ceder terreno racionalidade cientfica. Os homens encontrariam na cincia recursos supostamente capazes de reconcili-los com a cultura e de recompens-los pela parcela de sacrifcios pulsionais exigidos pela vida civilizada, sem, no entanto, exigir a adoo de uma tica calcada na existncia de uma ordem extramundana.Lacan no partilhava do mesmo programa crtico de Freud em relao religio. No se colocava diante do fato religioso de forma incisiva e combatente.A religio no foi pensada por ele como um objeto externo a ser investigado. Na esteira de Koyr e de Kojve, Lacan pensou a religio como uma forma cultural vinculada diretamente ao nascimento da cincia e, consequentemente, ao sujeito da psicanlise. O que no significa dizer que podemos assinalar qualquer continuidade entre o discurso psicanaltico e o discurso religioso. Em O triunfo da religio, comenta que Freud nunca falou da posio do cientista, porque este assunto era um tabu para ele. Longe de chancelar o prognstico freudiano sobre o fim da religio, Lacan vai em direo contrria: prev um retorno do religioso em nosso tempo em estreita conexo com os avanos da cincia e da tcnica. Como entender isso?Em primeiro lugar, necessrio dizer que a aparente contradio entre as perspectivas freudiana e lacaniana quanto ao futuro da religio pode ser matizada se levarmos em considerao que O futuro de uma iluso no foi a ltima palavra de Freud no que tange religio. Em nota inserida em 1935 ao seu Estudo autobiogrfico recolhemos o seguinte fragmento: Em O futuro de uma iluso exprimi uma avaliao essencialmente negativa da religio. Depois encontrei uma frmula que lhe fazia melhor justia: embora admitindo que sua fora reside na verdade que ela contm, mostrei que a verdade no era uma verdade material mas histrica. Poucos meses antes de morrer e j exilado em Londres em funo das perseguies nazistas, Freud publica O homem Moiss e a religio monotesta. Livro fundamental, controverso e pouco compreendido, mas essencial se quisermos entender seu alcance no que tange ao exame do fato religioso. Nesse trabalho, Freud, atravs da histria de Moiss, estabelece as origens do monotesmo judaico. Freud distingue duas modalidades da verdade, que ela chama de verdade material e de verdade histrica. Esta ltima seria uma verdade que carreia a emergncia de Outra cena, atemporal, vivida, esquecida, rechaada, mas que sempre retorna. Mesmo que se faa um enorme esforo para mant-la afastada, essa verdade insiste: o que acontece com o assassinato do pai da horda, verdade histrica fundadora do monotesmo judaico-cristo que surge disfarada na figura de Deus-Pai. por conter esse ncleo de verdade histrica que a religio seria irredutvel. Ora, assassinato do pai o modo freudiano de falar do real que afeta todos ns, invariavelmente. Rigorosamente falando, Freud retoma em seu ltimo texto uma noo de histria bastante diferente daquela apresentada em O futuro de uma iluso. Trata-se agora de um tempo no-linear e descontnuo, que mais se assemelha ao modelo temporal da arqueologia, em que diversas camadas temporais distintas se sobrepem umas s outras, conservando estados anteriores ao lado de estados atuais. Desse modo, a concepo de histria presente em O futuro de uma iluso no traduz, na verdade, a concepo freudiana de tempo. Talvez a rejeio que o prprio Freud manifestou com relao a esse texto esteja relacionada a esse aspecto. Do mesmo modo, Lacan nunca esposou uma viso progressiva e linear da histria.Em segundo lugar, devemos lembrar que, para Lacan, a excluso do sujeito que permite a constituio da cincia como saber esvaziado, meramente formal, algbrico, sem profundeza. Para a cincia moderna, o mundo pode ser pensado matematicamente. Neste campo assim estabelecido tudo o que no for passvel de integralizao no processo de formalizao do real (seja de ordem metafsica, religiosa ou subjetiva) permanecer excludo, como uma espcie de resduo da simbolizao.Mas o alcance dessa operao da cincia que, alm de excluir o sujeito, em sua pretenso de apreenso do real como objeto de conhecimento, ainda maior porque culmina na produo sem fim de objetos e artefatos ofertados ao nosso consumo. Em O avesso da psicanlise, Lacan afirma que a principal caracterstica da cincia no ter introduzido um mundo melhor e mais amplo conhecimento do mundo, mas sim ter feito surgir no mundo coisas que de forma alguma existiam no plano de nossa percepo. E por essa razo que ele se d conta de que a religio iria triunfar: ela a melhor candidata a lidar com esta situao provocada pela cincia. Diante, por um lado, do esvaziamento de sentido do mundo e, por outro lado, da profuso de novidades e de eventos perturbadores, caberia religio a tarefa de apaziguar os coraes. Lacan acertou em cheio, ele foi capaz de antever os desdobramentos da cincia e de reconhecer muito rapidamente os inmeros recursos disponveis religio para lidar com isso que no funciona, justamente na medida em que o que ela tem a oferecer no outra coisa seno doao de sentido para um mundo desencantado. A funo primeira da religio secretar sentido mantendo assim a iluso de que tudo est bem na ordem do mundo. Mas o problema, como diz Lacan, o i-mundo, aquela parte do mundo que no se deixa apreender inteiramente pelo sentido, seja ele dado pela cincia ou pela religio. Isso que se mostra como resduo de toda e qualquer simbolizao e que tem na insistncia da pulso e no real do sexo seu exemplo mais pungente.Psicanlise e religio lidam com este resduo do real formalizado pela cincia. Mas a forma como as duas atuam diante deste resto muito diferente. No existe um af por parte do psicanalista em tentar curar ou resolver o mal-estar constitutivo de todo ser falante. A psicanlise uma prxis calcada no confronto com o real, cuja aposta a emergncia da dimenso desejante do sujeito. A religio oferece consolao. Diante do que no funciona, o psicanalista deve convocar o sujeito. preciso que o sujeito se debata em sua prpria diviso para que a partir do real posto em cena atravs de seu sintoma ele possa inventar uma sada possvel, implicando-se naquilo que o faz sofrer.Claudia Moreira psicanalista, mestre em psicanlise (UFMG) e doutoranda em Teoria psicanaltica (UFRJ).