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Moraes, M. PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual. In: Moraes, M. e Kastrup, V. Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa com pessoas com deficiência visual. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2010. ___________________________________________________________________________ PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual Marcia Moraes PÁGINA 26 A bailarina e o mal entendido promissor O filósofo Gilles Deleuze (1988) afirmava que os homens raramente exercitam o pensamento e quando o fazem, é mais sob um choque, um golpe, do que no elã de um gosto. Pois bem leitor, te digo, se tenho pensado algo, é assim, no golpe, no atrito, no embate com o mundo, com os outros, com o campo de pesquisa. É no estranhamento do encontro com o outro que um pensamento pode advir. O pensamento não se reduz à recognição, ao reconhecimento de si mesmo ou de alguma forma dada e definida de antemão, mas ao invés disso, o pensar envolve outras aventuras, encontros inusitados com o mundo. De minha parte, considero que a vida seria muitíssimo tediosa se o tempo todo estivéssemos às voltas com o já sabido, a encontrar no mundo apenas aquilo que nos é familiar, aquilo que, de algum modo, já estava em nosso pensamento. Faço minhas as palavras do filósofo quando diz que “há no mundo alguma coisa que força a pensar. Este algo é o objeto de um encontro fundamental e não de uma recognição. O que pode ser encontrado pode ser Sócrates, o templo ou o demônio” (Deleuze, 1988, p.231). No caso que ora lhe apresento, o encontro foi com a deficiência visual, ou antes, com a multiplicidade de modos de existir da deficiência visual. Por isso, leitor, convido-te a percorrer essas linhas para que acompanhes os problemas que as agitam, para que faças as suas interpelações, para que sublinhes os limites, contrassensos e disparates que esse texto porventura faça existir. No percurso da pesquisa de campo na área da deficiência visual 1 fui, desde o início, tomada pelo problema de como intervir num certo cenário PÁGINA 27 levando em conta o referencial do outro 2 . Explico-me: em um momento inicial da pesquisa, quando 1 Refiro-me ao Projeto de Pesquisa e Extensão Perceber sem Ver, por mim coordenado, cujo início ocorreu no ano de 2003 e que continua em andamento até os dias de hoje. O projeto é financiado pela Faperj e pelo Cnpq. 2 Na literatura brasileira sobre deficiência visual destaco Masini (1994) e Belarmino (2004) que apontam para este mesmo problema, lançando mão de discussões bastante pertinentes nesta área. Remeto o leitor também aos textos de Kastrup; Pozzana; Tsallis et al. incluídos nesta coletânea.

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Moraes, M. PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual. In: Moraes, M. e

Kastrup, V. Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa com pessoas com deficiência

visual. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2010.

___________________________________________________________________________

PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual

Marcia Moraes

PÁGINA 26

A bailarina e o mal entendido promissor

O filósofo Gilles Deleuze (1988) afirmava que os homens raramente exercitam o

pensamento e quando o fazem, é mais sob um choque, um golpe, do que no elã de um gosto. Pois

bem leitor, te digo, se tenho pensado algo, é assim, no golpe, no atrito, no embate com o mundo,

com os outros, com o campo de pesquisa. É no estranhamento do encontro com o outro que um

pensamento pode advir. O pensamento não se reduz à recognição, ao reconhecimento de si mesmo

ou de alguma forma dada e definida de antemão, mas ao invés disso, o pensar envolve outras

aventuras, encontros inusitados com o mundo. De minha parte, considero que a vida seria

muitíssimo tediosa se o tempo todo estivéssemos às voltas com o já sabido, a encontrar no mundo

apenas aquilo que nos é familiar, aquilo que, de algum modo, já estava em nosso pensamento.

Faço minhas as palavras do filósofo quando diz que “há no mundo alguma coisa que força a

pensar. Este algo é o objeto de um encontro fundamental e não de uma recognição. O que pode ser

encontrado pode ser Sócrates, o templo ou o demônio” (Deleuze, 1988, p.231). No caso que ora lhe

apresento, o encontro foi com a deficiência visual, ou antes, com a multiplicidade de modos de

existir da deficiência visual. Por isso, leitor, convido-te a percorrer essas linhas para que

acompanhes os problemas que as agitam, para que faças as suas interpelações, para que sublinhes os

limites, contrassensos e disparates que esse texto porventura faça existir.

No percurso da pesquisa de campo na área da deficiência visual1 fui, desde o início, tomada

pelo problema de como intervir num certo cenário

PÁGINA 27

levando em conta o referencial do outro2. Explico-me: em um momento inicial da pesquisa, quando

1 Refiro-me ao Projeto de Pesquisa e Extensão Perceber sem Ver, por mim coordenado, cujo início ocorreu no ano de

2003 e que continua em andamento até os dias de hoje. O projeto é financiado pela Faperj e pelo Cnpq. 2 Na literatura brasileira sobre deficiência visual destaco Masini (1994) e Belarmino (2004) que apontam para este

mesmo problema, lançando mão de discussões bastante pertinentes nesta área. Remeto o leitor também aos textos de

Kastrup; Pozzana; Tsallis et al. incluídos nesta coletânea.

fazia observações participantes num grupo de jovens e crianças cegas e com baixa visão, vinculados

a uma Oficina de Teatro, deparei-me com um tipo de intervenção que, centrada no referencial do

vidente , fazia fracassar uma jovem menina cega congênita, que representaria o personagem de

uma bailarina numa peça teatral, naquele momento, ainda em fase de ensaios. A menina não tinha

os mesmos referenciais do que os videntes acerca de uma bailarina e de nada adiantavam as

intervenções meramente verbais e visuocêntricas3 que lhe apontavam as ações de seu personagem:

girar, levantar os braços, agir com leveza. Ela fazia os movimentos na medida em que ouvia o que

lhe era dito, mas logo vinham outras observações: “o braço não deve ser levantado assim, cuide de

encolher a barriga, não, não é assim que a bailarina gira, preste atenção nos pés, bailarina anda na

ponta dos pés...” Ou seja, a bailarina assentada no referencial vidente não era incorporada pela

jovem menina. E, para ela, importava que a sua bailarina fosse bonita para quem enxerga, afinal, na

plateia do teatro haveria pessoas cegas, com baixa visão e videntes. E era ela mesma quem dizia:

“ah, eu não quero pagar mico não, minha mãe vai me assistir e eu quero estar bem bonita no

palco!!” Isso me parecia bastante pertinente, a menina não queria fazer a bailarina de qualquer jeito,

ela queria que a bailarina fizesse sentido para ela e para os videntes. Note, leitor, para ela e os

videntes – este “e” faz toda diferença. Do que se trata?

Bom, se seguirmos pela língua portuguesa, trata-se de uma conjunção aditiva, o “e” indica

uma relação de soma, de inclusão. Não vou me estender pelos meandros desta nossa língua tão

difícil – nem tenho competência para isso! - mas, o que interessa é que a bailarina que a menina

queria encenar devia articular, reunir cegos e videntes. Era, portanto, uma bailarina que estava num

espaço entre cegos e videntes. Logo, com este singelo

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“e” a menina afirmava que a bailarina assentada apenas nos referenciais dos videntes não incluía os

cegos – não permitia, portanto que o “e” entrasse em ação. O que parecia estar ocorrendo, ao

contrário, era a lógica do “ou”, isto é, enquanto a bailarina lhe era apresentada exclusivamente pelo

referencial do vidente, a menina falhava, era ineficiente, deficiente: ou fazia a bailarina tal como

um vidente a faria, ou fracassava. O “ou” é uma conjunção de exclusão, conjunção alternativa,

separa, segrega.

Por que retomo este episódio4 ? Porque foi a partir de encontros como este que comecei a

me perguntar pela possibilidade de uma psicologia cujas intervenções estivessem no espaço do “e”,

isto é, interessava-me interferir naquele cenário, mas construindo uma relação aditiva, que se

produzisse a partir da interseção, levando em conta o referencial do outro, tomando como positiva a

3 Sobre o visuocentrismo, como um modo de agir e conhecer centrado no sentido da visão, veja Belarmino, 2004.

4 Para mais detalhes sobre este caso, ver Moraes (2008, 2007).

pista que a menina dava: uma intervenção que pudesse se fazer no espaço entre cegos e videntes e

não dos videntes para os cegos.

Foi a partir desta, e de outras situações, que comecei a buscar, como Moser (2000), um

outro ponto de partida, a partir do qual fosse possível interferir nas definições do que é o normal e

do que é o humano, do que é eficiente e deficiente. Sim, leitor, não era nada óbvio, nem tampouco

“natural”, menos ainda “uma questão de fato indiscutível” que aquela menina não era eficiente para

encarnar uma bailarina. Na relação entre aquela menina, a personagem da bailarina, o que lhe era

exigido encenar, havia uma distância, um lapso, um mal entendido: a bailarina que ela encenava

aparecia aos outros, aos videntes e àqueles que tinham baixa visão, como um equívoco. Mas tal

equívoco longe de ser algo essencial, natural, auto evidente, era alguma coisa que era ordenada

naquele cenário, naquela articulação singular que reunia cegos, videntes, pessoas com baixa visão,

um personagem em vias de ser encarnado, o palco, o roteiro da peça, a plateia. Era neste arranjo

heterogêneo de coisas e pessoas que a menina fracassava. Ali, naquele arranjo a menina era

deficiente. O mal entendido que este arranjo articulava fazia-se notar já que a menina, quando

interpelada a fazer “direito” a bailarina, dizia não entender o que era este “fazer direi-

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to”. Neste ponto, uma pista se abria. O mal entendido em questão estava em consonância com

aquilo que Despret (1999) denomina mal entendido promissor. Para a autora, o mal entendido

promissor é aquele

que produz novas versões disto que o outro pode fazer existir . O mal

entendido promissor, em outros termos, é uma proposição que, da maneira

pela qual ela se propõe, cria a ocasião para uma nova versão possível do

acontecimento (Despret, 1999, p. 328-330).

O fato de que a menina “não entendesse o que era fazer direito a bailarina”, não é, pois, sem

importância. Tratava-se de um acontecimento relevante na medida em que abria a possibilidade para

que a menina fosse interpelada não como um sujeito dócil, passivo às intervenções. Como Despret

(2009) sinaliza, pesquisar com o outro implica tomá-lo não como “alvo” de nossas intervenções.

Não se trata de tomar o outro como um ser respondente, um sujeito qualquer que responde às

intervenções do pesquisador. Ao contrário, o mal entendido promissor anuncia novas versões do que

o outro pode fazer, isto é, ele anuncia que o outro que interrogamos é um expert, ele pode fazer

existir outras coisas, no caso, outros modos de ordenar a deficiência visual em articulação com a

bailarina, com o palco, com plateia. O mal entendido é promissor justamente porque abre outras

vias de realização para um fenômeno, abre, enfim, uma bifurcação, ali onde parecia haver uma certa

ordenação estável de coisas. O que se abre, portanto, é uma instabilidade, a possibilidade de uma

deriva, de uma variação. Era o que estava em questão no episódio. A menina, de algum modo,

resistia às intervenções, interrogava: “como assim, a bailarina é leve?”, “o que é esta leveza?”,

“ponta do pé?, como é andar na ponta dos pés?”, estas eram algumas das muitas questões que ela

levantava e que colocavam em xeque aquele modo de intervir, do vidente para o cego. Ou seja, o

que estava em ação naquele cenário era uma redistribuição de expertise, já que o saber sobre a

bailarina não estava apenas do lado daquele que propunha as intervenções, mas também do lado

daquela a quem tais intervenções eram dirigidas. A menina ao ser interpelada pelo outro, interpela

este outro de volta. Indica,

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com isso quais são as questões que lhe devem ser formuladas para que ela possa de fato, performar

uma bailarina. Interessante notar que se tomamos o mal entendido promissor como uma

positividade do dispositivo de intervenção, o que ele produz é uma redistribuição das capacidades

de agir: no lugar da distribuição assimétrica que separa o pesquisador do pesquisado, entra em cena

uma outra distribuição da capacidade de agir, isto é, aquele que é interpelado, torna-se ativo no

sentido de participar ativamente do dispositivo de intervenção. Assim, o mal entendido promissor

longe de ser um parasita no dispositivo de intervenção, é aquilo mesmo que o move, é aquilo que

nos coloca diante do fato de que a experiência de interrogar o outro envolve um processo de

transformação que não se passa apenas para o interrogado, senão também para aquele que interroga.

O episódio da bailarina me permite retomar algumas questões presentes no debate acerca

dos modos de intervir que nós, pesquisadores, adotamos. De um lado, uma intervenção que se faz

sobre o outro. Neste tipo de dispositivo, mantemos com o outro uma relação no registro da

docilidade, da passividade, do controle, da “ortopedia” (Despret, 2004a, 2004b, 2009) . Neste

dispositivo, como disse, a capacidade de agir está do lado do pesquisador, já que é ele, em última

instância, quem sabe quais são os fins daquela intervenção. De outro lado, um dispositivo de

intervenção que se faz com o outro na medida em que é construído em articulação com aquilo que

interessa ao outro. O que importa sublinhar, no entanto, é que em ambos os casos a relação

pesquisador / pesquisado implica um processo de transformação. O que diferencia um modo ou

outro de lidar com esta transformação é o que ele inclui e faz valer como positivo, como realidade, e

o que ele exclui como parasita, como erro a corrigir. No primeiro caso, a jovem deve se conformar

a um modelo de bailarina que guia e norteia as intervenções e o que nisso não se encaixa, deve ser

descartado. No segundo caso, a menina é ativa, ela constrói junto com o outro a bailarina, ela dá

pistas daquilo que pode vir a ser uma bailarina que seja construída no espaço do “e”, no espaço que

está entre cegos e videntes.

A história da bailarina – e outras tantas – exigia que, como pesquisadora, eu buscasse táticas

e arranjos teórico-práticos que problematizassem certas distribuições de eficiência e deficiência. O

que quero dizer com “distribuições de eficiência e deficiência”? Quero dizer, leitor, que

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eficiência e deficiência não são duas realidades dadas em si mesmas, já delimitadas de antemão. Ser

deficiente não é algo que uma pessoa é, em si mesma. Mas algo que ela se torna, quando articulada

em certas práticas. Logo, do ponto de vista que adoto neste texto, carece de sentido falar de

deficiência longe das práticas nas quais ela é produzida e articulada. No episódio da bailarina, o que

ocorria era que, naquele tipo de prática, ela era feita deficiente, não eficiente para encarnar aquele

personagem que lhe era designado. Poderia ser diferente? Sim, poderia. Como reencenar esta

distribuição da eficiência e da deficiência? Como interferir para subverter o que conta como

eficiência, como normalidade? Onde, e de que modo, a deficiência é produzida, colocada em ação?

Estas são as questões que orientam a escrita deste artigo.

Penso que a esta altura, você leitor, estará a se perguntar: “que diabos queres dizer com

'distribuição da eficiência e da deficiência'? Uma pessoa deficiente é uma pessoa deficiente, não? E

distribuição: o que é isso? Conheço distribuição de doces em dia de Cosme e Damião, com carros

pelas ruas, crianças correndo, alegres, dentes à mostra, mãozinhas cheinhas de balas e outras

gulodices; distribuição de renda, coisa complicada em nosso país, apesar de nosso atual líder andar

por aí a dizer 'que nunca antes neste país...'; distribuição de senhas, chatice em tudo o que é banco;

mas distribuição de eficiência e deficiência...o que tudo isso significa, afinal?”

Querido leitor, quantas perguntas! Noto que exiges que eu caminhe passo a passo, cobras

explicações cuidadosas, cautelosas. Concordo contigo: a viagem deve ser mais lenta, a fim de

termos tempo para construímos juntos algo a ser por nós partilhado.

Do realismo euro-americano à guinada prática: a política ontológica

A fim de dar conta das questões que levantei no item anterior, faz-se necessário avançar um

pouco mais nas reflexões acerca dos modos de intervir e pesquisar. Law (2003, 2004) aponta que os

métodos de pesquisa em ciências - tanto humanas quanto naturais - têm sido fortemente

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marcados por um certo realismo, que o autor denomina de “realismo euro-americano”. Trata-se,

com esta expressão, de sublinhar alguns princípios gerais que orientam e embasam certos modos de

pesquisar. Seguramente, Law (2003) pretende indicar modos de pesquisar e de lidar com o tema do

conhecimento que se afastam de tal realismo. No entanto, quando aponta para as suposições que

neste último subjazem, o autor sublinha também os pressupostos que se fazem notar tanto em nossa

vida cotidiana, quanto em muitos métodos, projetos e relatos de pesquisa. Se o autor delimita

algumas pressuposições deste realismo, é para colocar em questão o que conta ou não como

realidade. E é justamente este ponto que me interessa na argumentação de Law (2003, 2004),

porque, note leitor, o que este autor sublinha é que o que conta ou não como realidade é variável,

não está dado de antemão. Trata-se, em suma, de um enfoque que aposta numa concepção de

realidade que é construída em certas práticas. Assim, ao descrever as pressuposições do realismo

euro-americano, Law (2003) vai sinalizar que tais pressuposições constroem “uma certa” realidade,

mas não “a” realidade.

De um modo geral, o realismo euro-americano tem como eixo principal a concepção de que

há uma realidade lá fora, independente de nós e de nossas ações. A esta suposição geral,

acrescentam-se outras, como decorrência:

a) a realidade lá fora é anterior à nós, isto é, o real sempre precede a qualquer tentativa de

conhecê-lo;

b) o real é preciso, delimitado e definido;

c) a realidade lá fora é uma só, única. Uma só realidade, passível de ser conhecida de muitas

perspectivas. Estas diferentes perspectivas são, isso é importante, diferentes modos de

conhecer algo que é único. O mundo lá fora permanece o mesmo, a despeito de ser

conhecido de muitos modos.

Assim, para o realismo euro-americano há a possibilidade de que o real seja conhecido,

plenamente conhecido, por um sujeito do conhecimento asséptico, capaz de abordar o real, sem nele

se misturar, garantindo, ao contrário, que o resultado do seu conhecimento será preciso, delimitado,

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definido, independente e anterior à qualquer intervenção. Law (2003, 2004) afirma que os métodos

de pesquisa em ciências sociais, estão, em geral, comprometidos senão com todo o pacote do

realismo euro-americano, pelo menos, com partes dele.

Pois é justamente neste ponto que Law (2003, 2004) pretende fazer diferença e é por isso

que o trabalho do autor me interessa. A questão que ele levanta é: o que fazemos quando em nossas

práticas de pesquisa lidamos com realidades que são múltiplas, heterogêneas, fugidias, complexas?

Como lidamos– metodologicamente – com o que é fugidio, híbrido, isto é, com aquilo que não se

encaixa com o realismo euro-americano5 ?

O que está em jogo? A questão levantada por Law (2003) aponta para o fato de que quando

o conhecimento está centrado nos limites do realismo euro-americano, aquilo que no campo de

5 Neste ponto é importante considerar que as argumentações de Law não seriam possíveis sem a contribuição de

autores como Latour (1987, 1994, 1997, 2001, 2002a, 2002b, 2002c) e Foucault (1984, 2000), os quais, cada um a

seu modo, problematizam e colocam em xeque isso que se definiu como realismo euro-americano.

pesquisa aparece como fugidio é alterizado, é tornado outro por relação ao que se espera do objeto:

que ele seja claro, definido, independente. Ora, dito de outro modo, é o pacote do realismo euro-

americano que faz partes da realidade aparecerem como confusas. Mas há nisso algo mais – e de

suma importância. É que isso que aparece como confuso é permanentemente excluído do campo de

pesquisa: seja porque é atribuído a uma falha no conhecer – isto é, há algo que é híbrido, mas que

não é conhecido por uma falha técnica, porque o método não o alcança-, seja porque o que é híbrido

está no lugar do erro a ser controlado, domesticado com o refinamento do método. Assim, Law

(2003) salienta que quando assumimos o pacote do realismo euro-americano, estamos implicados

numa política que sistematicamente exclui aquilo que escapa aos seus quadros de referência.

Tais discussões sobre método estão intimamente ligadas a formas muito distintas de lidar

com as questões da presença, ausência e alterização. Presença diz respeito ao que comparece em

nossos relatos de pesquisa. Ausência é aquilo que mesmo não estando de fato presente, é um pano

de fundo, uma co-presença. E alteridade ou alterização é o que é tornado outro, excluído, deixado

de fora. O manejo da presença, da ausência e da

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alterização faz toda a diferença. O que deixamos de fora dos nossos relatos? Por que o fazemos? O

que incluímos? Por que incluímos em nossos textos estes e não aqueles outros relatos? Para Law

(2004) tais perguntas são capitais nos debates sobre método.

Mas nesse ponto uma advertência se faz necessária: isto não é uma reclamação, uma queixa.

Aquilo que conhecemos é relacionado com, dependente de e produzido com o que não conhecemos.

Falar em método de pesquisa é, para Law (2003, 2004), implicar-se numa articulação de presença,

ausência e alterização. O problema está quando se pretende que tudo pode se tornar presente e

conhecido. Porque nesse caso, supõe-se, de um lado, a possibilidade de um sujeito do conhecimento

que pode tudo ver, tudo saber, tudo conhecer. E de outro lado, uma realidade que um dia será

totalmente conhecida. Estas duas suposições correlatas estão embutidas no pacote do realismo euro-

americano, que Law (2003, 2004) quer subverter.

Disso o autor retira algumas conclusões:

a) no realismo euro-americano o processo de articular presença, ausência, alterização é sempre

reprimido, numa política de sistemática exclusão.

b) se o conhecer lida com uma realidade que existe lá fora, dada de antemão, então o caráter

produtivo de nossas práticas também desaparece. Isto é, no realismo euro-americano o conhecer é

um processo desinteressado que em nada contribui para a construção da realidade. Mas, se

atentamos para o método como um processo que articula presença, ausência e alterização, diz

Law(2003), há nisso uma performatividade, uma produtividade. Nossas práticas são performativas.

c) logo, como consequência do que foi dito nos itens anteriores, podemos perguntar se as realidades

são construídas, são feitas, então, que realidades estão sendo feitas em nossas práticas de pesquisa?

Fique atento, leitor, porque esta é uma questão eminentemente política.

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Este é um ponto de virada importantíssimo que marca os trabalhos de Law (1997, 1999,

2003, 2004), Moser (2000), Mol (2002, 1999) entre outros autores. As práticas são performativas,

isto é, fazem existir realidades que não estavam dadas antes e que não existem em nenhum outro

lugar senão nestas e por estas práticas. Aqui há uma guinada, uma virada sinalizada por outros

autores como uma virada para a prática6. O que está em jogo é colocar as práticas em primeiro

plano, entendendo que

a prática designa as ciências 'se fazendo', ela engloba o ajuste de

instrumentos, a escritura de artigos, as relações de cada praticante com os

colegas, mas também com tudo isto que e todos aqueles que contam ou

poderiam contar em sua paisagem. Nada está pronto. Tudo está por negociar,

por ajustar, alinhar e o termo prática designa a maneira pela qual tais

negociações, ajustes, alinhamentos constringem e especificam as atividades

individuais sem por isso determiná-las (Stengers, 2006, p. 62-3).

Ora, o que Stengers sinaliza é que nada está pronto, a realidade é construída, é performada

nas e pelas práticas. Há uma subversão do realismo euro-americano. Não há uma realidade lá fora,

dada. O que conta ou não como realidade é produzido, feito. Ou antes, o que está sendo afirmado é

que o próprio realismo euro-americano é construído, performado em certas práticas de pesquisa, e

outras práticas cotidianas, que o fazem existir dia após dia, momento após momento. O termo em

inglês para indicar este caráter performativo das práticas é enact, termo que aponta para dois

sentidos distintos: como encenar, representar um papel; e como fazer existir, promulgar, fazer, no

sentido, por exemplo quando dizemos que “o

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congresso nacional promulgou (fez existir) uma nova lei”7. Nas palavras de Mol: “É possível dizer

que nas práticas os objetos são feitos [enacted] (...) isto sugere também que em ato, e apenas aqui e

acolá, alguma coisa é – sendo feita [being enacted]” (Mol, 2002, p32-33). Então, quando Law

(2003, 2004), Mol (2002) e outros autores sublinham o caráter performativo das práticas é para

6 Stengers comenta sobre a guinada prática: “Após a virada linguística fala-se hoje na América da virada prática (...)

trata-se destacadamente de deixar de lado a relação polêmica organizada em torno das vinhetas epistemológicas

confrontando fatos prontos e as teorias”. Stengers, 2006, p. 61 7 Ver: http://dictionary.reference.com/browse/enact

marcar que a realidade é feita, não está dada. E mais do que isso, o que tais autores colocam em

cena com esta subversão do realismo euro-americano é que há uma dimensão política em tal

subversão. Se dissemos que a realidade é construída, imediatamente outra questão se faz pertinente:

que realidade? Há aí uma implicação recíproca entre o real e o político: uma política ontológica.

Política ontológica é uma expressão utilizada por Mol (1999) e por Law (2003). Nas

palavras de Mol:

a combinação dos termos ontologia e política sugere-nos que as condições

de possibilidade não são dadas à partida. Que a realidade não precede as

práticas banais nas quais interagimos com ela, antes sendo modelada por

estas práticas. O termo política, portanto, permite sublinhar este modo ativo,

este processo de modelação, bem como o seu caráter aberto e contestado

(Mol, 1999, p. 2).

A realidade é, portanto, feita, construída em práticas situadas histórica, cultural e

materialmente. Assim, sublinha Mol, melhor seria falar em ontologias, no plural, para marcar que as

realidades são múltiplas. Não são plurais, são múltiplas. Não é que existam muitas formas de lidar e

de falar sobre a realidade – porque neste caso, haveria, como dissemos acima, uma única realidade,

perspectivada diferentemente. Falar de multiplicidade, implica para Mol, um outro conjunto de

metáforas. É preciso falar em intervenção e fazer existir (enact). Estas duas metáforas permitem

falar de uma realidade que é feita e não observada de longe.

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Permitem ainda falar de intervenção, interferência naquilo que Law indicou quando mencionou o

manejo da presença, da ausência e da alterização. Se interferimos no mundo em que vivemos é para

subverter o que conta como presença e o que é alterizado, tornado Outro. A intervenção nos coloca

diante do fato de que nossas práticas não são neutras, elas são vetores que produzem realidades.

Da cegueira como déficit à multiplicidade das cegueiras

O que tudo isso tem a ver com as pesquisas que realizo no campo da deficiência visual?

Bom, leitor, como se diz no populacho, tem tudo a ver. Nas primeiras linhas deste texto, eu

interrogava a possibilidade de subverter um certo ordenamento que faz existir a deficiência como

falta, como fracasso, como ineficiência. Onde esta realidade da deficiência como fracasso é

produzida? Em que arranjos materiais ela é feita? No caso da bailarina, vimos que uma intervenção

dirigida dos videntes para os cegos produzia a deficiência como ineficiência, ou com outras

palavras, as singularidades, os interesses da menina no fazer a bailarina eram alterizados, deixados

de lado, corrigidos.

Tal concepção de deficiência como déficit é feita em diversas outras práticas cotidianas, em

relatos de pesquisa, em publicações sobre deficiência visual. A fim de seguirmos algumas destas

práticas, destaco o livro de Carroll (1968), intitulado Cegueira. Analisando o sumário, vemos que o

autor define a cegueira através de 20 perdas agrupadas em 6 blocos: perdas básicas em relação à

segurança, perdas nas habilidades básicas, perdas na comunicação, perdas na apreciação, perdas

relacionadas à ocupação e à situação financeira, perdas que implicam a personalidade como um

todo. A segunda parte do livro é dedicada a indicar os modos de reabilitar e restaurar as perdas

vividas pelos cegos. E sobre esta reabilitação da pessoa que adquiriu a cegueira, o autor afirma que

“a esperança de funcionamento normal como ser humano, deve substituir a esperança de visão

normal e a pessoa que ficou cega deverá ser auxiliada a recuperar as habilidades primárias”

(Carroll, 1968, p.84). O que me interessa destacar

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com a citação deste texto é que nele é colocada em ação uma concepção de cegueira que retoma

alguns pontos do pacote do realismo euro-americano. Porque nele a cegueira:

a) tem contornos bem definidos, delimitados através de 20 perdas;

b) está atrelada a uma estratégia de intervenção pautada em princípios de reabilitação e restauração,

tomando como norte o “funcionamento normal como ser humano”(Caroll, 1968, p,84).

Que realidade é produzida aí? Uma realidade da cegueira como algo dado, marcado pela

perda de uma função sensorial e que convoca a uma prática restauradora, orientada por uma

ambição de reconduzir a pessoa cega a uma normalidade perdida. Ora, leitor, parece-me que este

discurso nos conduz a um tipo de prática de intervenção no cenário da deficiência visual que retoma

aquela assimetria de que lhe falava no início do texto. Isto é, aquele que intervem para restaurar as

perdas que marcam a cegueira, está no lugar de quem detém o saber sobre o outro, sobre a pessoa

com deficiência visual. Numa intervenção assim ordenada, acaba-se por produzir uma distribuição

assimétrica de eficiência e deficiência, isto é, aquele que intervem, o faz em nome da eficiência a

ser alcançada; aquele que é “alvo” da intervenção aparece como alguém a quem falta eficiência.

Moser (2000) indica que as práticas de reabilitação das pessoas com deficiência são, muitas

vezes, orientadas por um princípio de normalização, por uma ambição de restituir às pessoas com

deficiência, a normalidade perdida. Orientadas por este parâmetro ideal de normalidade, as práticas

de reabilitação, inseridas no discurso da inclusão, não cessam de produzir, paradoxalmente,

exclusão, marginalização e subalternização das pessoas com deficiência. “Medidas contra esta

norma, as pessoas com deficiência serão sempre constituídas como Outro, como deficiente e

dependente; elas nunca serão eficientes para qualificar-se como pessoas eficientes e competentes”

(Moser, 2000, p.201).

Não se trata com isso de dizer que a reabilitação é nociva ou que toda reabilitação deve ser

descartada. Trata-se sim de indicar que em certas

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práticas orientadas pela ambição de fazer a pessoa com deficiência retornar à norma8, aí, nestas

práticas, a deficiência é alterizada, é produzida como Outro – no sentido também sublinhado por

Law (2003) – frente a uma normalidade a ser alcançada. Nestas práticas, a deficiência é portanto

feita, ordenada, como ineficiência, como falta, déficit. Resgato uma frase que está no início deste

texto e que diz que a deficiência não é algo que uma pessoa é, nela mesma, mas algo em que ela se

torna. Se colocamos as práticas em primeiro plano, é possível seguir os múltiplos arranjos que

fazem existir as cegueiras. Entendendo, leitor, que tal afirmação é ontológica, isto é, as cegueiras

não existem em nenhum outro lugar senão em tais práticas, as cegueiras são feitas, dia após dia,

hora após hora, em cada arranjo, em cada ordenamento que reúne coisas, pessoas, bengalas,

tecnologias assistivas, políticas públicas. Insisto que não se trata de dizer que as cegueiras são

plurais. Porque dizer que são plurais é considerar ainda uma realidade feita de pequenas unidades

separadas, discretas. O que é afirmado, ao contrário, é a multiplicidade das cegueiras. Por que

multiplicidade? Porque tais modos de ordenar, de articular as cegueiras, se conectam, ora

sobrepondo-se um ao outro, ora entrando em tensão, ora se coordenando e se conjugando.

Para esclarecer o que quero dizer, sigo as conexões do texto de Carroll (1968) e noto que ele

é base para outro texto, o Programa de Capacitação de Recursos do Ensino Fundamental:

deficiência visual, documento publicado pelo Ministério da Educação/Secretaria de Educação

Especial ( MEC/SEE, Brasil, 2001), este último, referência necessária no campo da edu-

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cação e da reabilitação da pessoa com deficiência visual no Brasil. Ora, o texto de Carroll (1968)

não é “apenas um texto”. É uma materialidade que produz efeitos, conecta-se, articula-se com

outros textos, com outras práticas, produz enfim, uma certa realidade da cegueira . Isto é, se

8 Martins (2006) retoma Foucault (1984) para traçar a história destas práticas de reabilitação em suas articulações com

a hegemonia da normalidade que, desde o século XVIII, marca as apreensões socioculturais da cegueira como

deficiência visual. Neste sentido, o autor afirma que a partir do século XVIII “identifica-se o nascimento de um

investimento na cegueira marcado claramente pelos discursos e práticas da medicina, vocacionado a negligenciar as

condições sociais mais amplas da vivência da cegueira e a privilegiar os discursos de profissionais em detrimento da

reflexividade das pessoas cegas. Estamos perante uma lógica médica que funda um investimento de saberes sobre a

cegueira que, na impossibilidade da cura, propõe a reabilitação e, na impossibilidade da adesão à norma, propõe a

possível supressão do desvio, com a perene subalternidade que daí advém”. (Martins, 2006, p. 85)

seguimos as conexões do texto citado, vemos que ele é articulado a outras práticas, a outros

cenários e que, por esta via, ele, de algum modo, concorre para estender a concepção de cegueira

como déficit. A cegueira performada no texto de Caroll (1968) não vem sozinha: ela traz consigo

modos e modulações de outros objetos e práticas. É justamente aí que se coloca a questão: há uma

multiplicidade marcada por pontos de conexões, por articulações que alargam, ampliam uma certa

concepção de cegueira . Sem dúvida, tais deslocamentos – traduções, como Latour (2001) os

denomina – implicam derivas, traições, desvios. As conexões do texto de Carroll (1968) com o

documento citado acima, publicado em 2001 pelo MEC/SEE, implicam desvios. Sublinhamos dois

importantes deslocamentos que se fazem notar nas articulações entre estes dois textos. O primeiro

diz respeito à própria concepção de cegueira.

No trabalho de Carroll (1968), a concepção de cegueira está diretamente atrelada a um

discurso biomédico que a circunscreve ao corpo biológico e à falta da visão. Tudo o mais que

caracteriza a cegueira é, em última instância, causado por esta marca corporal, ou seja, é um corpo

“defeituoso” que produz todos os efeitos que o texto mapeia: perda da autoestima, perda da

mobilidade, etc. Já no trabalho produzido pelo MEC/SEE, à esta concepção biomédica de cegueira,

é acrescida outra, social, que se faz notar em certas passagens do texto, como por exemplo, quando

se afirma, a respeito das atividades de Educação Física com pessoas com deficiência visual, que:

podemos querer enquadrar as pessoa em padrões de movimento, mas esse

objetivo, uma vez alcançado, reduzirá o papel da Educação Física frente ao

projeto pedagógico que busca a formação do homem, sua autenticidade,

originalidade, independência, flexibilidade e maneira particular de ser e

estar no mundo .... cabe dar conta do homem intergral (Brasil, 2001, p.160).

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E mais adiante:

... as atividades propostas não devem ser desenvolvidas como treinamento

ou mera instrução. Devem contemplar o nível de desenvolvimento, a

liberdade de ação autoiniciada, privilegiando o movimento criativo. Dessa

forma, elas favorecerão as descobertas e as oportunidades de integração

social (Brasil, 2001,p.164).

Assim, ainda que tomando como base o texto de Carroll (1968), o documento de 2001

produz um importante deslocamento da concepção de cegueira, fazendo-a existir numa versão

biopsicossocial. É precisamente por isso que, num segundo deslocamento em relação ao texto de

Carroll, este documento inclui as narrativas das pessoas com deficiência visual, o que aponta para

um modo de ordenar a questão da deficiência visual levando em conta a participação e a

reflexividade das pessoas que não enxergam. Neste ponto, parece-me que este texto abre a

possibilidade de que a eficiência e a deficiência sejam diferentemente ordenadas e distribuídas já

que há mais atores em cena: o contexto social, as ações autoiniciadas, a criatividade, as narrativas

das pessoas cegas e com baixa visão, são atores importantes nesta novo ordenamento da deficiência

visual. E, mais uma vez, insisto, leitor, que este documento de 2001 é um texto de base para as

práticas de reabilitação com pessoas com deficiência visual. Então, nesse texto, a deficiência já não

é mais circunscrita ao corpo individual, mas é ampliada, envolve outros agentes, outros atores.

No volume que está em suas mãos, você, leitor, encontrará diversos textos que fazem

proliferar outras cegueiras, longe da concepção que a reduz a um deficit ou falta. O que pulsa nos

trabalhos que estão neste livro é a afirmação da multiplicidade das cegueiras, a potência inventiva

das variações dos modos de existir sem ver. O que move as pesquisas realizadas pelos autores que

se reúnem nesta coletânea é afirmar a possibilidade de intervir no cenário da deficiência visual para

subverter o pacote do realismo euro-americano, propondo dispositivos de intervenção que

redistribuam eficiência e deficiência de modo mais simétrico. Intervenções que nos ativem a todos,

que tome as pessoas cegas como experts, como

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parceiras na construção do conhecimento. Trata-se de afirmar a pesquisa como uma prática

performativa que se faz com o outro e não sobre o outro. A expressão “PesquisarCOM”9 tem a

dimensão de um verbo mais do que de um substantivo. Indica que para sabermos o que é cegar é

preciso acompanharmos este processo em ação, se fazendo, na prática cotidiana daquelas pessoas

que o vivenciam. O pesquisar com o outro implica uma concepção de pesquisa que é engajada,

situada. Pesquisar é engajar-se no jogo da política ontológica. Que realidades produzimos com

nossas pesquisas?

Seguir os modos de ordenar a deficiência visual, acompanhar as versões de deficiência que

são feitas (enacted) cotidianamente, seguir as pistas que tais versões abrem, trilhar pelas

bifurcações, pelas variações, eis alguns dos pontos que norteiam o pesquisar com o outro e não

sobre o outro. Interpelar o outro não como sujeito dócil, como um sujeito qualquer, mas antes, como

um expert, como alguém que pode conosco formular as questões que interessam no campo da

deficiência visual. Criar dispositivos de intervenção que ativem os outros, que nos engaje a todos

num processo de transformação. Engajar-se na política ontológica é também tomar uma posição

9 Cf também Moraes, 2008; Alvarez e Passos, 2009; Pozzana e Kastrup, 2009.

epistemológica, porque se trata de afirmar um conhecer situado, performativo, não neutro. Como

subverter a concepção de deficiência como falta? Pelo que dissemos aqui, o que está em jogo não é

o inconformismo. A subversão, a resistência se faz nas práticas: justamente ali onde são tecidas,

encenadas as múltiplas concepções de deficiência. Se a realidade não está dada, se não há uma

realidade da cegueira, única, dada, “lá fora”, onde e como poderia ser diferente? Os textos

reunidos neste volume procuram tecer outras versões de deficiência. E ainda, nas conexões que este

livro fará com outros livros, com outras práticas. Fazer existir a variação é uma questão política,

uma questão de política ontológica. Em que mundo queremos viver? Que realidades queremos

produzir? Fazer existir a diferença, a multiplicidade, neste momento usando computador, internet,

papéis, textos, é um modo de resistir à normalização, aos processos que fazem existir a deficiência

como falta.

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Política ontológica e deficiência visual: por um outro mundo comum

No campo da política ontológica da deficiência, em particular da deficiência visual, não

podemos deixar de reconhecer o importante papel que os Estudos sobre Deficiência (Disability

Studies) (Oliver, 1996) desempenharam a partir dos anos 70 do século XX10

. Trata-se de um

movimento social, político e intelectual que ocorreu primeiramente nos países de língua inglesa e

que consistiu numa insurgência das pessoas com deficiência contra qualquer concepção

individualizante e biologizante da deficiência. A concepção de deficiência proposta por este

movimento é a de um modelo social, isto é, a deficiência longe de ser uma falta ou uma falha

corporal, é o efeito de uma opressão social, de uma sociedade excludente. O que se vê, no século

XX, é uma passagem de uma sintaxe biomédica, para outra, de viés político-emancipatório: a

deficiência passa a ser tematizada no campo dos direitos humanos.

Esse deslocamento de uma concepção de deficiência para outra se faz notar na articulação

entre as publicações da Organização Mundial de Saúde (OMS) a respeito do tema e o movimento

dos Estudos sobre Deficiência. A OMS publicou, nos anos 80 do século XX, um documento

intitulado International Classification of Impairments, Disabilities and Handicaps (ICIDH), que

foi revisto com a publicação, em 2001, de outro texto sobre o assunto, o International Classification

of Functioning, Disability and Health (ICF)11

. Que mudanças existem entre um documento e outro?

E que relevância isso tem para o que discutimos nesse texto?

O ICIDH, de 1980, estabelece uma relação de causalidade entre as perdas ou anormalidades

10

Cf. o capítulo de Bruno Sena Martins. 11

Para a argumentação que se segue foi fundamental a leitura de Diniz, Medeiros e Squinca (2007) e Farias e

Buchalla (2005.

corporais (impairments), as restrições de habilidades provocadas pelas lesões (disabilities) e as

desvantagens sociais que daí resultam (handicaps). Assim, leitor, para resumir, conforme este

documento a deficiência seria entendida no seguinte esquema:

anormalidades corporais (impairment) ⇛ restrições de habilidades (disability) ⇛

desvantagem social (handicap).

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Ora, o que está dito no esquema acima é que um corpo com lesões tem restrições de

habilidades que levam a desvantagens sociais. Mas, observe, leitor, o que move esta cadeia causal é

o corpo com lesão. Neste enfoque, portanto, a deficiência está situada no corpo, marcado pela lesão

ou pela anormalidade. Este é o ponto de origem da deficiência, o que causa, em última instância as

disabilidades e as desvantagens sociais. Os Estudos sobre Deficiência (Oliver, 1996) se insurgem

precisamente contra esta concepção de deficiência e contra a lógica causal que ela coloca em ação:

na perspectiva de tais estudos, as desvantagens sociais não são causadas pelas lesões corporais, mas

antes, por uma opressão social dirigida às pessoas com deficiência. É importante sinalizar que tais

documentos da OMS visam construir uma linguagem universal no que toca ao tema em questão,

permitindo, por exemplo, a comparação entre dados de diferentes países, criando um solo comum

para a concessão de benefícios, para o organização de serviços de saúde e cuidado. Assim, a

revisão da concepção de deficiência presente no ICF é fundamental porque desnaturaliza e politiza a

questão. Sem dúvida, como indicam Diniz, Medeiros e Squinca (2007), o ICF é um dos efeitos da

força política dos Estudos sobre Deficiência: com a revisão do documento da OMS, passou-se de

uma classificação que tinha por base os corpos com lesões, para uma concepção onde o que está

em jogo é a relação entre o individuo e a sociedade. Assim, a deficiência deixa de estar atrelada a

uma tragédia individual que se inscreve no corpo, para ser um efeito das relações entre o individuo

e o seu ambiente social. No enfoque do modelo social, o ICIDH despolitizava a deficiência porque a

reduzia, no final das contas, ao corpo, ao biológico. As desvantagens sociais, tinham, no documento

de 1980, um papel secundário. Assim, no documento de 2001 a revisão de termos ganha relevância

política porque o que está em jogo é refazer as condições a partir das quais a deficiência é feita, é

produzida como realidade. Não mais uma realidade estritamente biológica, mas antes de tudo, uma

realidade complexa, em que o biológico e o social interagem. Diniz, Medeiros e Squinca (2007)

salientam que no novo vocabulário proposto, deficiência12

(disability) passa a ser

12

A tradução destes termos para o português é controvertida. Farias e Buchalla (2005) apresentam uma definição de

termos distinta daquela proposta por Diniz, Medeiros e Squinca (2007). Estes últimos autores criticam a tradução do

ICF para o português, coordenada por Buchalla, na opção que se fez por traduzir disability por incapacidade. Para

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um conceito guarda-chuva porque reúne as lesões corporais, as limitações de atividades e as

restrições na participação. Mas o ponto fundamental é que deficiência (disabiltiy) passa a estar

atrelada a uma experiência sociológica, política, de opressão. Note, então, querido leitor, temos aí

uma mudança de rumo, uma virada: a deficiência é efeito, é o resultado de uma sociedade que

exclui e oprime. Está claro para você, leitor, que essa controvérsia, que envolve também a escolha

de termos, não é arbitrária, não é de modo algum, algo a ser desconsiderado? Na escolha dos

termos, há um jogo político fortíssimo articulado a um embate sobre o que contará ou não como

realidade: política ontológica.

Assim, na língua inglesa a expressão “disabled people” ganha força política porque reforça a

ideia de “pessoas tornadas deficientes” por condições sociais opressoras. Este modelo social coloca

em ação outros atores inserindo no debate político a voz da pessoa com deficiência. Interessante

notar que Oliver (1996) aponta que o modelo biomédico, individualizante da deficiência está

inserido numa certa lógica de cuidado e de assistência que toma a pessoa com deficiência como

objeto passivo, alvo de intervenções cujas autorias tendem a fugir-lhes. Assim, Oliver (1996)

destaca que em muitas das práticas de cuidado vigentes ainda no século XX, as pessoas com

deficiência tomam o lugar do doente/paciente. É neste sentido que ele afirma que a própria noção de

reabilitação está, muitas vezes, imbuída de valores individualizantes e biologizantes fazendo-se

notar nas práticas de psicólogos, médicos, assistentes sociais e outros agentes de cuidado que

tomam o outro como alvos de suas intervenções.

Desse modo, Oliver (1996) e outros autores no campo dos Estudos sobre Deficiência,

entram no jogo da política ontológica para definir uma outra

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realidade da deficiência, de modo a produzir diferentemente as distribuições de eficiência e

deficiência. Não se trata mais de demandar benefícios assistencialistas, mas de lutar por plenos

direitos, por igualdade de oportunidades de trabalho, de educação. Na esteira deste movimento,

produziram-se outras realidades para a deficiência.

No entanto, ainda que considerando a extrema relevância política do modelo social da

deficiência, o que me parece um desafio ainda aberto é lidarmos com este tema não mais buscando

apenas uma identidade, seja ela natural, biológica ou social. Porque se é certo que os Estudos sobre

Diniz, Medeiros e Squinca (2007), o uso termo disability não foi casual, foi uma provocação à tradição biomédica

que durante séculos circunscrevia a deficiência como desvio por relação à norma. Para estes autores, havia um

objetivo político por traz da escolha do termo disability para compor o ICF: a questão era desestabilizar a hegemonia

biomédica. Neste sentido, discordando de Farias e Buchalla (2005), Diniz, Medeiros e Squinca (2007) propõe a

tradução de disability por deficiência. Em nossos trabalhos, optamos também por esta tradução.

Deficiência deslocam a questão da deficiência para outro cenário, também é certo que este

movimento ainda se pauta numa concepção de deficiência cujo norte é uma identidade social: a

sociedade é que é excludente. A pergunta que levantei neste texto consistiu justamente em

interrogar o campo dos estudos e das práticas no campo da deficiência, em particular da deficiência

visual, longe de qualquer princípio identitário, longe de qualquer essencialismo.

A guinada para a prática, de que falei anteriormente, nos coloca diante do desafio

metodológico e político de lidar com a deficiência como multiplicidade, de seguir seus

ordenamentos em ação, ali e acolá, e de fazer existir outras definições de homem e de norma,

definições mais amplas, mais heterogêneas, mais hibridas. Se, neste momento em que me aproximo

da conclusão deste artigo, retomo a pergunta que levantei no início – que realidade fazemos existir

com nossas práticas? - é para afirmar que o que pulsa nas pesquisas que realizo, e naquelas que

estão neste livro, não é a ambição de encontrar uma definição última de deficiência visual, não é o

desejo de demarcar o “universo” da deficiência visual. Mas antes, o que fervilha entre estas linhas é

a afirmação de um multiverso, isto é, um mundo livre das unificações prematuras (Latour, 2002b),

mundo comum porque múltiplo e heterogêneo. A composição deste mundo comum nos engaja na

difícil tarefa de produzi-lo, a cada dia, em nossas práticas de pesquisa, nos momentos em que

decidimos o que conta ou não como “dado” de pesquisa, no momento em que nos engajamos na

prática de relatar aquilo que nós pesquisamos. Pesquisar é, neste sentido, engajar-se numa política

ontológica que, em última instância, produz o mundo em que vivemos.

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Por isso, leitor, o convite que te faço é ambicioso: convido-te a ler os textos que se seguem,

ciente de que eles foram tecidos, amarrados, conectados por um coletivo que se colocou como

desafio refazer as condições de pesquisar no campo da deficiência, entendendo que o que está em

jogo não é tanto observar o objeto de estudo, mas performá-lo, fazê-lo existir.

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