a estrutura ontológica da linguagem e a queda no falatório

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Christiane Costa de Matos Fernandes A estrutura ontológica da linguagem e a queda no falatório em Ser e Tempo Brasil 2016

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Christiane Costa de Matos Fernandes

A estrutura ontoloacutegica da linguagem e a queda no

falatoacuterio em Ser e Tempo

Brasil

2016

2

Christiane Costa de Matos Fernandes

A estrutura ontoloacutegica da linguagem e a queda no

falatoacuterio em Ser e Tempo

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Departamento de

Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciecircncias

Humanas da Universidade Federal Minas Gerais

como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de

Mestre em Filosofia Universidade Federal de

Minas Gerais ndash UFMG Faculdade de Filosofia e

Ciecircncias Humanas Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em

Filosofia

Orientadora

Profa Dra Virginia de Arauacutejo Figueiredo

Brasil

2016

3

100

F363e

2016

Fernandes Christiane Costa de Matos

A estrutura ontoloacutegica da linguagem e a queda no falatoacuterio em Ser e

tempo Christiane Costa de Matos Fernandes - 2016

150 f

Orientadora Virginia Arauacutejo Figueiredo

Coorientador Marco Antonio Casanova

Dissertaccedilatildeo (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas

Inclui bibliografia

1Filosofia ndash Teses 2 Heidegeer Martin 1889-1976 Ser e Tempo I

Figueiredo Virginia ArauacutejoII Casa Nova Marco Antonio dos Santos

IIUniversidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e

Ciecircncias Humanas IIITiacutetulo

4

Banca Avaliadora

_________________________

Profa Dra Virginia de Arauacutejo Figueiredo-UFMG Orientadora

___________________________

Prof Dr Marco Antocircnio Casanova- UERJ Coorientador

___________________________

1ordm Examinador Prof Doutor Eduardo Soares Neves Silva - UFMG

___________________________

2ordmExaminador Prof Doutor Maacutercio Antocircnio de Paiva- PUCMG

5

Agradecimentos

O trabalho que aqui apresento iniciou-se em Fevereiro de 2014 mas originou-se

haacute 12 anos atraacutes em meu primeiro semestre do curso de graduaccedilatildeo em filosofia na

Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas da UFMG Jaacute nas primeiras aulas questionei

a possibilidade de continuar nesse caminho pois ele havia se tornando cada vez mais

exigente e difiacutecil No segundo semestre poreacutem cursei a mateacuteria ministrada pelo professor

Fernando Rey Puente onde ele tentava explicar aos alunos ainda iniciantes como eu As

Categorias de Aristoacuteteles Aquelas aulas foram decisivas para que eu compreendesse trecircs

coisas dedicaccedilatildeo e rigor satildeo o que minimamente podemos oferecer agrave filosofia (ainda

permaneccedilo na busca de realizar tais condiccedilotildees) o pensamento filosoacutefico uma vez

apresentado a noacutes natildeo oferece saiacuteda mas compromisso e ainda aprendi que se a partir

daquele momento eu ficasse imune ao ler um livro de filosofia era melhor deixaacute-la Por

isso meu primeiro agradecimento eacute a esse professor Tambeacutem natildeo poderia deixar de

agradecer ao professor Ernesto Perini Nas mateacuterias ministradas por ele que cursei durante

a graduaccedilatildeo natildeo soacute se revelava para mim a importacircncia da linguagem no interior dos

problemas filosoacuteficos como aprendi que o respeito com os alunos era uma maneira de

ensinaacute-los

Agradeccedilo tambeacutem a todos os funcionaacuterios da FAFICH de forma especial agrave Vilma

bibliotecaacuteria-chefe e ao Andreacute secretaacuterio da poacutes-graduaccedilatildeo Ambos pela solicitude com

que sempre me atenderam em todos os momentos que precisei

Agradeccedilo tambeacutem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e

Tecnoloacutegico (CNPq) pela concessatildeo da bolsa de estudos que permitiu nos uacuteltimos dois

anos minha dedicaccedilatildeo integral agrave pesquisa do mestrado

Agradeccedilo agravequeles que construiacute como amigos o viacutenculo com o mundo Dentre eles

alguns nomes natildeo posso deixar de citar Agradeccedilo agrave Thamara Chain pelos 22 anos de

amizade e compreensatildeo Agradeccedilo agrave Taiacutes Tourinho por ser vigilante acerca de minha

solidatildeo por vezes demasiada Agradeccedilo agrave Nathaacutelia de Aacutevila por me lembrar a natildeo ser tatildeo

seacuteria e que o caminho tambeacutem se faz com leveza Agradeccedilo agrave Carolina Faria pela partilha

do entusiasmo na descoberta promovida pelo estudo Tambeacutem agradeccedilo agrave Ana Godoi

Gustavo Machado e Gabriel Lago Essas pessoas me ensinaram o valor do debate (por

6

vezes infindaacuteveis) e ainda que pensamento e vida satildeo o mesmo A uacutenica maneira que

encontrei para agradececirc-los eacute tornar puacuteblico o fato de que nossas conversas estatildeo em cada

linha dessa dissertaccedilatildeo

Agradeccedilo agrave minha orientadora Virginia Figueiredo pela confianccedila depositada em

mim ao me aceitar como orientanda Tambeacutem por seus comentaacuterios e ensinamentos

imprescindiacuteveis bem como pela leitura e revisatildeo impecaacutevel de meu trabalho Nesse

sentido tambeacutem ao meu coorientador Marco Antocircnio Casanova a quem agradeccedilo tendo

em vista que sem sua presenccedila algumas partes dessa dissertaccedilatildeo natildeo seriam possiacuteveis

Agradeccedilo minhas irmatildes Jana e Nanda por serem minhas primeiras e eternas

melhores amigas E por fim agradeccedilo agravequeles por quem o meu sentimento entre o amor

a gratidatildeo e a admiraccedilatildeo natildeo alcanccedila a palavra aos meus pais Adauto e Delza Esse

trabalho eacute para vocecircs

7

VERBO SER

Carlos Drummond de Andrade

Que vai ser quando crescer

Vivem perguntando em redor Que eacute ser

Eacute ter um corpo um jeito um nome

Tenho os trecircs E sou

Tenho de mudar quando crescer Usar outro nome corpo e jeito

Ou a gente soacute principia a ser quando cresce

Eacute terriacutevel ser Doacutei Eacute bom Eacute triste

Ser pronunciado tatildeo depressa e cabe tantas coisas

Repito Ser Ser Ser Er R

Que vou ser quando crescer

Sou obrigado a Posso escolher

Natildeo daacute para entender Natildeo vou ser

Vou crescer assim mesmo

Sem ser Esquecer

ldquoAdmitamos que natildeo haja essa significaccedilatildeo indeterminada e que natildeo entendemos sempre o que lsquoserrsquo significa O que ocorreria nesse caso Apenas um nome e um verbo de menos em nossa linguagem De forma alguma Jaacute natildeo haveria simplesmente linguagem alguma Natildeo ocorreria que o ente se nos abrisse de modo a poder ser chamado e dito Pois dizer o ente como tal implica compreender de antematildeo o ente como ente isto eacute o seu ser Suposto que noacutes simplesmente natildeo compreendecircssemos o ser suposto que a palavra lsquoserrsquo natildeo tivesse nem mesmo aquela significaccedilatildeo flutuante entatildeo jaacute natildeo haveria absolutamente nenhuma palavra Noacutes mesmos nunca poderiacuteamos ser aqueles que falam Laacute natildeo poderiacuteamos ser o que somos Pois ser homem significa ser um dizenterdquo

Heidegger Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica

8

Resumo

O presente trabalho tenta evidenciar a partir da obra Ser e Tempo de Martin

Heidegger como a linguagem (die Sprache) eacute a manifestaccedilatildeo uacuteltima da historicidade de

todo e qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como esses significados satildeo

sustentados por um campo de sentido tambeacutem histoacuterico A partir dessa primeira descriccedilatildeo

o trabalho visa esclarecer como a linguagem no uso cotidiano ou o falatoacuterio (das Gerede)

obscurece o caraacuteter histoacuterico do fenocircmeno da linguagem e dos significados que a sustenta

Portanto esta Dissertaccedilatildeo caminha em duas vias que se tocam a primeira pretende

descrever o que chamamos de estrutura ontoloacutegica da linguagem a partir do

redimensionamento da pergunta heideggeriana pelo ser a fim de indicar como as palavras

em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da experiecircncia

hermenecircutica ou seja atraveacutes da compreensatildeo ontoloacutegica preacutevia a linguagem a segunda

pretende mostrar o fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana como comunicaccedilatildeo

ou discurso (die Rede) a qual jaacute se expressou e a cada vez se expressa sempre repetida

e difundida no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada

pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte

compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente

9

Abstract

The present thesis focuses on demonstrating in what manner language (die

Sprache) is the lattermost manifestation of the historicity of any meaning that can come

to words as well as through what agency those meanings are upheld by a conjointly

historical field of meaning insofar as stated by Martin Heidegger in his work ldquoBeing and

Timerdquo (Sein und Zeit) As of this writing our work aims at unraveling by what means

language in its trivial use or the talk (das Gerede) overshadows the historical aspect and

the meanings that withstand the phenomenon of language Hence the present work is

developed in two adjoining ways the first one endeavors to describe the ontological

structure of language deriving out of the resizing of Heideggers question of being that

has the aim of indicating how the words in context of enunciation inherit their meaning

from previous structures of the hermeneutic experience that is through the prior

ontological understanding of the language The second one aims at revealing the language

phenomenon in the median everydayness as communication or discourse (die Rede)

which has already been expressed and is still expressed always repeated and spread in

the talk that obliterates the comprehensive horizon by reducing all beings to an

undifferentiated homogenization and making them available to our linguistic resources

since it is the primary opening of the sense of being that any and all entities have

10

Sumaacuterio INTRODUCcedilAtildeO 11

Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na

filosofia 15

Introduccedilatildeo 15

I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do

conhecimento como essencialmente histoacuterico 17

II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em

relaccedilatildeo agraves ciecircncias 22

II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica 29

III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos 33

Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica 42

Introduccedilatildeo 42

I - Os limites da filosofia dos valores 44

II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio 53

II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger 58

III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal 68

III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger 72

Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e

Tempo 80

Introduccedilatildeo 80

I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou

o ldquocomordquo hermenecircutico 88

II A dupla abertura de sentido (Sinn) 88

III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit) 103

II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung) 110

Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede) 122

Introduccedilatildeo 122

I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem 123

II- O Falatoacuterio (das Gerede) 134

Conclusatildeo 143

Bibliografia 146

11

INTRODUCcedilAtildeO

Estamos diante de um livro Ser e Tempo Abrimo-lo Com o que nos confronta

em sua primeira paacutegina Que natildeo temos desde Platatildeo ateacute hoje resposta agrave pergunta sobre

o que queremos dizer com a palavra lsquoentersquo Natildeo haacute como ficar imune diante da

constataccedilatildeo E se ateacute hoje essa palavra natildeo nos eacute transparente eacute porque aqueles que se

propuseram a andar no caminho do pensamento natildeo souberam perguntar sobre o ente e

isso porque natildeo souberam afinal perguntar sobre o ser Heidegger natildeo nos propotildee sair do

caminho mas uma nova maneira de caminhar Ele nos promete uma resposta Natildeo Ele

propotildee uma vez mais a pergunta pelo ser O objetivo do tratado eacute elaborar essa questatildeo

De que modo Ele agora pergunta Qual o sentido de ser

Nossa pesquisa poderia partir daiacute Iniciariacuteamos a exposiccedilatildeo de nosso trabalho

nessa pergunta e prosseguiriacuteamos em Ser e Tempo De modo algum Seria um

contrassenso para algueacutem que queira estudar a linguagem em Heidegger partir de uma

sentenccedila como se ela fosse oacutebvia Afinal por qual motivo Heidegger natildeo pergunta ldquoO

que eacute o serrdquo ou ldquoHaacute o serrdquo Fechamos Ser e Tempo Eacute preciso compreender como essa

pergunta ganhou uma determinada forma Mas para onde ir

Ser e Tempo eacute uma obra do seacuteculo XX uma obra de filosofia portanto jaacute eacute parte

de nossa tradiccedilatildeo jaacute temos uma preacute-compreensatildeo dela Sabemos previamente que ela

transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica e que o nosso autor expotildee seu caminho

em um texto de 1963 chamado ldquoMeu caminho na fenomenologiardquo Parece-nos um bom

iniacutecio e vamos ao texto Heidegger descreve o iniacutecio de seus estudos o contato com a

obra inaugural da fenomenologia de Husserl e com a tese de Brentano sobre Aristoacuteteles

aiacute se vecirc germinar ainda que de maneira imprecisa sua questatildeo central Mas isso se

mostrou insuficiente para compreender a pergunta posta em Ser e Tempo Recorremos

entatildeo aos textos de Husserl Jaacute na introduccedilatildeo do II volume agrave obra citada por Heidegger

ndash Investigaccedilotildees Loacutegicas - Husserl descreve a necessidade de a fenomenologia

posicionando-se contra a psicologia explicativa procurar sua fundamentaccedilatildeo da loacutegica

numa nova teoria do conhecimento objetiva Nossa jaacute citada preacute-compreensatildeo nos levou

a Dilthey ao descobrir que esse autor tambeacutem se opocircs ao meacutetodo da psicologia

explicativa Vamos tambeacutem aos seus textos Mas a pergunta aparece teraacute sido tatildeo grande

12

a influecircncia que a psicologia explicativa exercia naquela eacutepoca a ponto de exigir que

tantos pensadores sentissem a necessidade de se opor a ela e ao seu meacutetodo

Como se isso natildeo bastasse revelou-se que ambos os autores Dilthey e Husserl

travam diaacutelogo nem sempre expresso com o neokantismo Agrave revelia de todos julguei

que natildeo deveria desconsiderar mais essa referecircncia tendo em vista que um dos principais

nomes dessa corrente ndash Rickert- foi citado por Heidegger no importante (para esta

pesquisa) texto de 1963 ao qual me referi haacute pouco Entatildeo me perguntei o que une esses

trecircs nomes Dilthey Husserl e Rickert Estaacute posta a tarefa do primeiro capiacutetulo da

Dissertaccedilatildeo

Nele tentei compreender como a partir do desenvolvimento das ciecircncias positivas

particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma profunda discussatildeo acerca do sentido e

da possibilidade do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo busca uma

filosofia propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana procura a

autonomia da filosofia frente agrave ciecircncia positiva mas que serviria de base a toda e qualquer

ciecircncia Tambeacutem nesse contexto aparece a contribuiccedilatildeo de Dilthey a qual acrescenta o

caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e traz agrave tona o sentido do conhecimento como

essencialmente histoacuterico

Mas natildeo chegamos ao que nos propomos estamos ainda nos prolegocircmenos Por

qual motivo Heidegger pergunta Qual o sentido de ser Ser e Tempo continua fechado

Precisamos entatildeo reavaliar nossa preacute-compreensatildeo Se como dissemos Ser e Tempo

transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica eacute preciso analisar como essas influecircncias

aparecem no pensamento de Heidegger Vamos a algumas preleccedilotildees do autor anteriores

agrave obra central de nosso trabalho Eacute preciso indicar que nossa intenccedilatildeo natildeo eacute abordar as

preleccedilotildees como processos evolutivos como que para esclarecer em termos de causa e

efeito a publicaccedilatildeo posterior lsquomadurarsquo de Ser e Tempo Mas destacar como as questotildees

desses textos acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a

problemaacutetica cujo desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927

Estaacute posta a tarefa de nosso segundo capiacutetulo

Nele trata-se de compreender como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere

Heidegger no interior da referida discussatildeo pelo sentido do conhecimento Mas ao

mesmo tempo tentaremos mostrar como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva

(considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal)

e a introduccedilatildeo do elemento hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com

13

Heidegger a pergunta fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do

conhecimento e passou a ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto

nosso segundo capiacutetulo pretende analisar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger

no interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do

conhecimento ao sentido do ser

Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido

de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a

teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo

pelo sentido do ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir

da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para

uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no

curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER 2006 p122) o elemento

hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave fenomenologia

que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em

seu ser Podemos abrir novamente Ser e Tempo

Esse percurso foi necessaacuterio para que pudeacutessemos conquistar um solo

interpretativo e sobretudo alcanccedilar a pergunta pelo sentido de ser Pois ela a pergunta

estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura de sentido que precisamos explicitar

E assim no terceiro e central capiacutetulo da Dissertaccedilatildeo apresentar como em Ser e Tempo

o fenocircmeno da linguagem (Sprache) aparece no interior dessa compreensatildeo e em que

medida a linguagem eacute possiacutevel por uma estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Dito de

outro modo na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto

ontoloacutegico do conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e

qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido tambeacutem

histoacuterico em que algo pode se manter em seu significado Eacute nessa perspectiva que

procuramos a estrutura ontoloacutegica da linguagem

Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a

ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo

material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos

que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas

que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela

dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se

estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o

14

que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes1rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que

somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em

fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo

Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por

Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um

fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo

incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como

descoberto A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo cotidiano Heidegger chama de

ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio

natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute

encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas tomadas como oacutebvias

Esse eacute o caminho do nosso trabalho mas eacute apenas o iniacutecio Ele natildeo pretende

encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender a

ldquopassagem para o poeacutetico2rdquo na obra de Heidegger como uma tentativa de desvencilhar-se

do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Por enquanto preferimos a tensatildeo

e a suspensatildeo do estado de pergunta Ser e Tempo continuaraacute aberto Tentaremos nos

manter fieis agrave orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica Diante da pergunta de

Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na cidade Soacutecrates responde

ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso irrdquo3

1 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo Wolf

Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249 2 Cf NUNES 2012 3 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9

15

Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo

sentido do conhecimento na filosofia

Chega um tempo em que natildeo se diz mais meu Deus () Chegou um tempo em que natildeo adianta morrer Chegou um tempo em que a vida eacute uma ordem

A vida apenas sem mistificaccedilatildeo (Os Ombros Suportam o Mundo Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

Conforme Merleau Ponty a fenomenologia surge como uma tentativa para

resolver um problema natildeo de uma seita mas talvez o problema do seacuteculo o problema

que se punha desde 1900 para todo o mundo e ainda eacute hoje colocado (PONTY M1973

Pag15) O problema refere-se agrave crise das ciecircncias humanas (Geistenwissenschaften) e agraves

ciecircncias naturais

Se o fundamento dos princiacutepios da geometria e da fiacutesica eram objetos de

investigaccedilatildeo de Husserl e o levou ao caminho da pesquisa de uma filosofia sem

pressupostos- bem como as investigaccedilotildees dos chamados neokantianos da escola de

Marburg que os levaram agrave tentativa de fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas - as

ciecircncias humanas tambeacutem se desenvolviam no auspiacutecio de sua proacutepria ambiguidade

A medida que se desenvolviam as pesquisas psicoloacutegicas socioloacutegicas

histoacutericas tendiam a nos apresentar todo pensamento toda opiniatildeo e em

particular toda filosofia como o resultado da accedilatildeo combinada das condiccedilotildees

psicoloacutegicas sociais histoacutericas anteriores A psicologia tendia para o que Husserl

denomina psicologismo a sociologia o sociologismo histoacuteria para o

historicismo Ora com isto elas acabavam por erradicar seus proacuteprios

fundamentos (PONTY1973 p15)

Na medida em que os princiacutepios orientadores do homem histoacuterico social e

psicoloacutegico satildeo elementos externos e imbricados de certa contingecircncia conforme os

resultados mesmos dessas pesquisas o pesquisador punha suas proacuteprias afirmaccedilotildees em

duacutevida pois o fundamento de todas elas eacute tambeacutem contingente e o valor de verdade de

suas conclusotildees fluido Contudo quando algo faz aparecer opositores observando e

16

diagnosticando seus problemas fundamentais eacute porque encontra-se em evidecircncia e jaacute

atingiu certo grau de adesatildeo sendo necessaacuterio apontar elementos obliterados em sua

suposta evidecircncia

A autonomia das ciecircncias positivas frente aos sistemas filosoacuteficos em meados do

seacuteculo XIX na Alemanha acompanhava um crescente desprestiacutegio da metafiacutesica e da

filosofia da natureza sendo a reflexatildeo metodoloacutegica suplantada por novos procedimentos

-e uma nova visatildeo de mundo- em que vigoravam o conhecimento empiacuterico impessoal e

temporal

Se a filosofia jaacute natildeo parecia ter condiccedilotildees de responder agraves questotildees dessa nova

visatildeo de mundo cientiacutefica com as propostas da psicologia experimental - baseada no

modelo metodoloacutegico das ciecircncias naturais- ela a filosofia parecia estar condenada ao

ostracismo sendo capaz apenas de se colocar como curiosidade histoacuterica A psicologia

experimental ou explicativa considerava que um procedimento verdadeiramente

cientiacutefico deveria ser baseado na observaccedilatildeo empiacuterica ela era a interpretaccedilatildeo da verdade

atraveacutes de causas psiacutequicas responsaacuteveis pela efetuaccedilatildeo do juiacutezo(MACDOWEL 1993

p28)

O ponto crucial dessa posiccedilatildeo eacute o fato de que o estudo da loacutegica enquanto

estrutura do pensamento estaacute condicionado aos meacutetodos e princiacutepios da psicologia e

portanto condicionada a tipos de demonstraccedilotildees empiacutericas Uma investigaccedilatildeo dessa

espeacutecie - a loacutegica condicionada a demonstraccedilotildees empiacutericas - eacute a negaccedilatildeo da tarefa proacutepria

agrave filosofia (mesmo quando um ou outro pensador negue por exemplo a idealidade loacutegica

ainda assim o faz inserido nessa tarefa de investigaccedilatildeo) pois a loacutegica como doutrina

voltada para uma purificaccedilatildeo radical dos elementos materiais da linguagem e para uma

subsequente reconciliaccedilatildeo entre pensamento e verdade se mostra como expressatildeo

maacutexima do projeto originaacuterio da tradiccedilatildeo (CASANOVA Introduccedilatildeo In DILTHEY

2011p8)

Nesse contexto surgem reaccedilotildees ao modelo predominante das ciecircncias naturais

sobretudo em relaccedilatildeo agrave adesatildeo a este modelo pela psicologia e pelas ciecircncias humanas

Dentre essas reaccedilotildees destacamos o projeto da psicologia descritiva e analiacutetica de Dilthey

as contribuiccedilotildees da pesquisa sobre a validade do conhecimento das escolas neokantistas

17

ndash destacando a filosofia dos valores de Windelband e Rickert - e o projeto husserliano de

uma filosofia sem pressupostos que se realizaria atraveacutes do meacutetodo fenomenoloacutegico

Ciente de que natildeo nos eacute possiacutevel aprofundar nessas complexas investigaccedilotildees nossa

intenccedilatildeo nesse primeiro momento de trabalho eacute apenas indicar os elementos

fundamentais de cada posiccedilatildeo e a partir deles compreender no capiacutetulo seguinte em

que medida essas reaccedilotildees se intercruzam e influenciam o autor privilegiado no texto

dessa dissertaccedilatildeo Este eacute o objetivo de nosso primeiro capiacutetulo

Nosso primeiro capiacutetulo eacute a tentativa de compreender como a partir do

desenvolvimento das ciecircncias positivas particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma

profunda discussatildeo acerca do sentido e possibilidade do conhecimento Nesse contexto o

neokantismo busca uma filosofia propriamente cientiacutefica ndash como reflexo da exigecircncia de

sua proacutepria eacutepoca ndash enquanto a fenomenologia husserliana busca a autonomia da filosofia

descontiacutenua agrave ciecircncia positiva mas que seria a base de toda e qualquer ciecircncia Tambeacutem

nesse contexto emerge como elemento fundamental para o desenvolvimento de nosso

trabalho a tarefa geral de Dilthey que mesmo imersa nas exigecircncias positivistas de seu

tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e potildee em tela o sentido

do conhecimento como essencialmente histoacuterico

I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias

do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente

histoacuterico

Dilthey contra a mera transposiccedilatildeo do meacutetodo das ciecircncias naturais agraves ciecircncias

do espiacuterito ldquose deu conta que a pretensatildeo de entender filosoficamente as disciplinas

histoacutericas soacute poderia levar-se a um porto seguro se reflexiona acerca do que eacute o objeto

das ditas ciecircnciasrdquo (HEIDEGGER 2006p33)

As ciecircncias naturais segundo Dilthey se relacionam com os objetos na medida

em que esses satildeo ou fatos simultacircneos ou sucessivos e aparecem agrave consciecircncia sempre

como dados externos assim recorrendo a uma hipoacutetese como recurso explicativo

condicionada agrave verificaccedilatildeo a partir de maior ou menor incidecircncia desses fatos Os

18

resultados das ciecircncias naturais seriam portanto conclusotildees complementares que

tentariam explicar os fenocircmenos externos (observados como fenocircmenos particulares) e

ordenaacute-los pela funccedilatildeo explicativa da ciecircncia que movimenta da parte (fenocircmenos

unitaacuterios) ao todo (explicaccedilatildeo ordenadora)

Poreacutem os fenocircmenos das ciecircncias humanas aparecem internamente agrave consciecircncia

com realidade de uma lsquoconexatildeo vivarsquo sendo essa conexatildeo da vida psiacutequica

originariamente dada compreensivamente a qualquer homem histoacuterico vivente A anaacutelise

ou distinccedilatildeo dos elos particulares dessa conexatildeo eacute posterior pois o que se daacute

imediatamente agrave consciecircncia eacute a conexatildeo constante das proacuteprias vivecircncias e ldquoa vida natildeo

se faz senatildeo como conexatildeordquo (DILTHEY W2011 pag30) natildeo tendo sentido a partir

dessa evidecircncia falar em algo como deduccedilatildeo dos fenocircmenos psiacutequicos

Exige-se portanto agrave psicologia um outro procedimento pois satildeo somente os

dados da psicologia descritiva que poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar

para as ciecircncias humanas O que estaacute em jogo para Dilthey contra a psicologia

explicativa eacute mostrar como a teoria do conhecimento relativa agraves ciecircncias do espiacuterito e

tambeacutem agrave filosofia natildeo pode abrir matildeo da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica Poreacutem em funccedilatildeo

da especificidade de seus objetos reclama outros meacutetodos que natildeo aqueles das ciecircncias

naturais

Dilthey natildeo aceita os pressupostos do retorno agrave filosofia kantiana4 para a

fundamentaccedilatildeo de suas investigaccedilotildees pois a cisatildeo entre mateacuteria e forma proveniente

desse sistema natildeo serve agraves ciecircncias do espiacuterito e natildeo pode ser mais sustentada diante da

evidecircncia da vida conexa e estruturante da vivecircncia da consciecircncia

4 Sobre esse aspecto eacute importante apresentar duas consideraccedilotildees 1) No interior da biografia de

Schleiermacher de 1860 Dilthey destaca a importacircncia de alguns aspectos do texto de Kant ldquoA religiatildeo

nos limites da simples razatildeordquo (1793) para o desenvolvimento da hermenecircutica de Schleiermacher 2)

Contudo talvez sob influecircncia do debate neokantiano agrave eacutepoca Dilthey apresenta o essencial da filosofia

kantiana como sendo a Criacutetica da Razatildeo Pura ou seja a teoria do conhecimento referente agraves ciecircncias

naturais E nesse sentido que a divisatildeo entre mateacuteria e forma como exposta na primeira criacutetica natildeo eacute

suficiente agrave elaboraccedilatildeo da epistemologia das ciecircncias humanas Sobre esse assunto Cf Kant und die

philosophische Hermeneutik in Kant-Studien 66 (1975) pp 395-403 Traduccioacuten de Angela Ackermann

Pilaacuteri en GADAMER H-G Los caminos de Heidegger Herder Barcelona 2002 pp 57-66 Cf

Beckenkamp J Kant e a hermenecircutica moderna in Kriterion vol51 no121 Belo Horizonte Junho 2010 e

tambeacutem Cf REIS JC A ldquocriacutetica histoacuterica da razatildeordquo Dilthey versus Kant In Textos de histoacuteria UNB

vol10 nordm12 v 10 (2002) pp-159-179

19

ldquoA cisatildeo entre mateacuteria e forma do conhecimento que eacute levada a termo no sistema

kantiano tambeacutem natildeo pode ser hoje mantida Muito mais importante do que essa

cisatildeo satildeo as relaccedilotildees internas que subsistem por toda a parte entre a multiplicidade

das sensaccedilotildees como a mateacuteria do nosso conhecimento e a forma na qual

apreendemos a mateacuteriardquo (DILTHEY W2011 p37)

Para REIS (2003)5 Dilthey eacute associado ao historicismo como seu maior teoacuterico

Ainda como aponta REIS nem todos pesquisadores de sua obra concordam com este

veredito alguns ateacute mesmo questionam se Dilthey poderia ser considerado um

historicista pois em seu projeto de construccedilatildeo de uma epistemologia das ciecircncias

humanas ao se opor ao historicismo romacircntico Dilthey recairia em certo positivismo De

todo modo analisar detalhadamente esta discussatildeo natildeo nos eacute possiacutevel o que nos interessa

aqui eacute apontar que apesar de fazer coro com as caracteriacutesticas gerais deste movimento

Dilthey se destaca por sua busca propriamente epistemoloacutegica das ciecircncias humanas a

partir da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos se afastando em diversos pontos

do chamado ldquoirracionalismordquo romacircntico mas sem reduzir o historicismo agrave pura

epistemologia e sobretudo lanccedilando bases teoacutericas com pretensatildeo cientiacutefica para a

abordagem dos fenocircmenos histoacutericos

ldquoO aspecto positivista da sua teoria devia-se agrave atmosfera naturalista em que ele

viveu As ciecircncias naturais impuseram o seu padratildeo de rigor e objetividade No

seacuteculo XIX a morte da filosofia sistemaacutetica cedeu seu lugar a uma ldquofilosofia

cientiacuteficardquo Natildeo era uma filosofia especulativa mas ldquoestudos positivos com

intenccedilatildeo filosoacuteficardquo O filoacutesofo natildeo podia pensar em qualquer objeto sem recorrer

a estudos concretos ao estudo de fontes primaacuterias extraiacutedas do mundo real

Dilthey neste sentido quis que sua filosofia fosse cientiacutefica Eacute uma teoria do

conhecimento das ciecircncias morais que estudam as relaccedilotildees e eventos positivos

do mundo histoacuterico-social () Aiacute reside seu positivismo que segundo Aron ele

nunca superou e que eacute sua originalidade () Sua tese eacute as ciecircncias humanas

existem como lsquociecircncias e eacute vatildeo discutir o seu caraacuteter cientiacutefico em nome de uma

teoria preconcebida da ciecircnciarsquordquo (REIS 2003p32)

Dilthey se destaca no movimento historicista pela sua preocupaccedilatildeo com o meacutetodo para

as ciecircncias humanas consciente de sua especificidade ou da metodologia autocircnoma dessa

disciplina na medida em que histoacuteria e vida se encontram pela compreensatildeo sendo a vida

ao mesmo tempo histoacuterica e psicoloacutegica E o fato de natildeo haver um modelo universal

sistemaacutetico da histoacuteria natildeo reduz sua pesquisa em uma descriccedilatildeo caoacutetica dos eventos

5 Seguindo a interpretaccedilatildeo de Freunde e Ortega y Gasset Cf REIS JC 2003 p31

20

Vivecircncia compreensatildeo e expressatildeo eacute a triacuteade fundamental para o pensamento de

Dilthey e sua ldquocriacutetica da razatildeo histoacutericardquo consiste em delinear como a construccedilatildeo do

mundo histoacuterico no sujeito torna possiacutevel um saber sobre a realidade espiritual

apreendendo aiacute a partir da experiecircncia do mundo histoacuterico o princiacutepio real das ciecircncias

humanas A reconstruccedilatildeo do mundo da vida natildeo pode ser reduzida a uma soma de

elementos que possam descrevecirc-lo Mais do que isso a vida histoacuterica de um determinado

tempo eacute vivenciada por uma ligaccedilatildeo imediata entre o sujeito e seu tempo cada vivecircncia

sinaliza para a concretude objetiva do espiacuterito da eacutepoca O que importa nesta perspectiva

eacute que a realidade objetiva seja garantida pela proacutepria vivecircncia que eacute ldquoerigida agrave condiccedilatildeo

de categoria epistemoloacutegica fundamental em oposiccedilatildeo ao conceito de representaccedilatildeordquo

(AMARAL2004 p53) ou seja a objetividade da vivecircncia lhe eacute imanente A vivecircncia

(Erlebnis) natildeo eacute mera vida orgacircnica (Leben) mas o encontro indissociaacutevel entre a histoacuteria

e a vida dos homens Se por um lado natildeo eacute possiacutevel acompanhar o horizonte de sentido

de uma eacutepoca sem esta primeira experiecircncia viacutevida cujas expressotildees satildeo particulares por

outro lado eacute somente atraveacutes da compreensatildeo que a vivecircncia eacute alargada superando a

unilateralidade da experiecircncia singular

ldquoA compreensatildeo eacute um reencontro do eu no tu o espiacuterito encontra-se em niacuteveis

cada vez mais elevados da conexatildeo essa mesmidade do espiacuterito no eu no tu em

cada sujeito de uma comunidade em todo sistema da cultura por fim na

totalidade do espiacuterito e da histoacuteria universal torna possiacutevel a atuaccedilatildeo conjunta

das diversas capacidades nas ciecircncias humanas O sujeito do saber estaacute assim

unido com o seu objeto e esse objeto eacute o mesmo em todos os niacuteveis de sua

objetivaccedilatildeo Se a objetividade do mundo espiritual criada no sujeito eacute reconhecida

por este procedimento surge a pergunta sobre o quanto isso pode contribuir para

a resoluccedilatildeo do problema do conhecimento em geralrdquo (DILTHEY 2006p168)

A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo eacute ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da

hermenecircutica de Dilthey pois traz em si a categoria do significado como o nexo da

vivecircncia com a realidade concreta sem se apoiar em qualquer elemento transcendente agrave

proacutepria experiecircncia psicoloacutegica vivida

ldquoA categoria do significado designa a relaccedilatildeo entre as partes da vida e o todo

uma relaccedilatildeo que estaacute fundada na essecircncia da vida Soacute possuiacutemos essa conexatildeo

por meio da memoacuteria na qual podemos visualizar o transcurso vital do passado

Na memoacuteria faz-se valer entatildeo o significado como a forma de apreensatildeo da vida

Captamos o significado de um momento passado Ele eacute significativo na medida

em que nele se realiza um viacutenculo com o futuro por meio da accedilatildeo ou por meio de

um acontecimento exterior Ou na medida em que foi concebido o plano de uma

conduccedilatildeo futura da vida Ou na medida em que um plano de sua realizaccedilatildeo foi

21

levado a termo Ou ele eacute significativo para a vida conjunta na medida em que a

intervenccedilatildeo do indiviacuteduo se realiza nessa vida na qual sua essecircncia mais proacutepria

interveio na configuraccedilatildeo da humanidade Em todos esses e em outros casos o

momento particular possui significado por meio de sua conexatildeo com o todo por

meio da ligaccedilatildeo entre passado e futuro entre existecircncia particular e a

humanidaderdquo (DILTHEY 2006p224)

A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo deve ser entendida como ldquoos dois lados

do processo loacutegico dois lados que se interpenetram mutualmenterdquo (DILTHEY

2006p213) sendo a forma de compreender enquanto meacutetodo a ldquoinduccedilatildeo que deduz das

particularidades parcialmente determinadas para noacutes uma conexatildeo que define o todordquo

(DILTHEY 2006p214) Mas isso soacute eacute possiacutevel pelas categorias que residem na essecircncia

da proacutepria vida categorias que natildeo satildeo dadas a priori e nem podem ser formalizadas

logicamente Satildeo categorias preenchidas no interior de certa unidade espaccedilo-temporal

pois ldquoa vida encontra-se em uma relaccedilatildeo maximamente proacutexima com o preenchimento

do tempo() No tempo a vida existe na relaccedilatildeo das partes com uma conexatildeordquo

(DILTHEY 2006p219)

O conjunto das realizaccedilotildees da compreensatildeo enquanto conexotildees estruturais

objetivas ou objetivaccedilatildeo da proacutepria vida no mundo exterior eacute o conceito das ciecircncias

humanas e ldquotudo aquilo em que o homem por sua atuaccedilatildeo imprimiu sua marca constitui

o objeto das ciecircncias humanasrdquo (DILTHEY 2006 p112) Tendo em vista esse objeto a

tarefa do pesquisador ldquoconsiste na apreensatildeo do mundo do espiacuterito como uma conexatildeo

dos efeitos ou como uma conexatildeo contida em seus produtos duradourosrdquo (DILTHEY

2006p118) A conexatildeo dos efeitos dos produtos da ciecircncia histoacuterica natildeo eacute como o nexo

causal da natureza pois diferentemente da natureza as conexotildees da vida objetiva do

espiacuterito geram valores e realizam fins a vida histoacuterica natildeo eacute reproduccedilatildeo ciacuteclica de si

mesma ndash como a vida natural - mas eacute sempre criativa e ativa na produccedilatildeo desses valores

e bens como seu caraacuteter imanente mais proacuteprio

E eacute nessa apreensatildeo do tear da vida histoacuterica na qual o tempo a vivecircncia e

compreensatildeo estatildeo imbricados e se interpelam o significado ldquoeacute a categoria abrangente

sob a qual a vida se torna concebiacutevelrdquo (DILTHEY 2006p222)

ldquoDito de outro modo conceber algo atribuir valor e estabelecer fins para algo

satildeo atitudes vitais inter-dependentes que configuram as vivecircncias e assim sendo

nos ajudam a construir a proacutepria realidade em que vivemos Vivecircncia e realidade

22

satildeo como que tecidas conjuntamente graccedilas ao apoio da ldquocategoria do

significadordquo (AMARAL 2004p55)

As expressotildees da vivecircncia possuem sua objetividade na medida em que os objetos

as pessoas os valores e os juiacutezos apoiados nesta relaccedilatildeo enraiacutezam-se nos significados

comuns do mundo da vida significados esses que satildeo vivenciados e compreendidos

perfazendo a proacutepria construccedilatildeo do mundo histoacuterico ldquoe consequentemente de sua

compreensatildeo como tarefa basilar das ciecircncias do espiacuteritordquo (AMARAL 2004p57)

II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar

proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias6

Ainda na reaccedilatildeo contra o empirismo positivista do final do seacuteculo XIX e

sobretudo ao psicologismo desenvolveram-se as investigaccedilotildees dos chamados

neokantianos um ldquomovimento com profundas raiacutezes no seacuteculo dezenove [que] dominou

a academia filosoacutefica alematilde entre 1890 e 1920rdquo (CROWELL2001 p23)

Seguindo a exposiccedilatildeo de Crowell o movimento neokantiano pode ser dividido em

trecircs momentos profundamente relacionados com os acontecimentos histoacutericos poliacuteticos

e sociais da Alemanha na virada do seacuteculo XIX para XX Natildeo seraacute possiacutevel nos

aprofundarmos muito na especificidade de cada momento desse movimento bem como

nas suas relaccedilotildees com outras mateacuterias Como jaacute foi dito acima nossa proposta nessa

breve introduccedilatildeo eacute apenas mostrar a importacircncia desse movimento na formaccedilatildeo do

pensamento de Heidegger7 e indicar o contexto geral no qual nasce esse pensamento

6 O neokantismo eacute um movimento complexo e com muitas nuances Como nossa intenccedilatildeo eacute apresentar o

contexto no qual surge o pensamento de Heidegger natildeo pretendemos nos aprofundar e muito menos

desdobrar as divergecircncias entre seus representantes principais atraveacutes do acesso direto agraves suas obras

Portanto seguiremos nesse toacutepico a leitura de Crowell (2001) e Joseacute Rezende Juacutenior (2013) recorrendo

quando necessaacuterio a outros comentadores Destacamos os elementos centrais do pensamento de

Windelband e sobretudo de Rickert pois a partir da anaacutelise da preleccedilatildeo de 1919 de nosso autor ldquoA filosofia

e o problema da concepccedilatildeo de mundordquo ndash em que Heidegger investiga a possibilidade da filosofia como

ciecircncia originaacuteria ndash a posiccedilatildeo desses autores eacute decisiva para elaboraccedilatildeo dos problemas do meacutetodo de acesso

a imediatidade da vida e na primeira parte da referida preleccedilatildeo Heidegger expotildee os pressupostos e

problemas do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e sua dependecircncia ao material teoacuterico das ciecircncias particulares 7 Aleacutem do exposto em nota acima (6) seguimos a leitura de Gianni Vattimo em Introduccedilatildeo a Heidegger

No primeiro capiacutetulo Vattimo mostra a importacircncia dos anos de estudos universitaacuterios de Heidegger em

Freiburg sob orientaccedilatildeo de Heinrich Rickert para o desenvolvimento da questatildeo central de seu

pensamento a questatildeo do ser Segundo Vattimo em sua tese de livre docecircncia de 1916 Heidegger jaacute

23

contexto de uma disputa pela ldquoNova Filosofiardquo que dividiu a Fenomenologia de um lado

e os Neokantianos de outro

ldquoAmbos os movimentos reivindicam o tiacutetulo de filosofia cientiacutefica mas o

neokantismo difere da fenomenologia em manter uma continuidade entre a

ciecircncia positiva e filosofia A teoria da ciecircncia a epistemologia neokantiana

deseja fornecer fundamentos para os princiacutepios de base (lsquocientiacuteficosrsquo) da visatildeo de

mundo A Fenomenologia (aqui Husserl e o jovem Heidegger) ao contraacuterio

estabelece a autonomia da filosofia precisamente atraveacutes da descontinuidade com

a ciecircncia positiva e os objetos de formaccedilatildeo da visatildeo de mundordquo (CROWELL

2001p24)8

No primeiro periacuteodo (1871-1878) verifica-se ldquocerta continuidade entre o inqueacuterito

aprioriacutestico e empiacuterico A autonomia da filosofia vis-agrave-vis a ciecircncia positiva ainda natildeo

tornou a questatildeo decisivardquo (CROWELL 2001p26) Os neokantianos ainda estavam

dispostos a aceitar que as estruturas fundamentais da realidade revelavam seu caraacuteter

transcendental pois ainda constatavam a necessidade das formas universais atraveacutes das

quais podemos pensar as coisas singulares No projeto positivista a ciecircncia empiacuterica

estuda apenas o conteuacutedo de fato em uma restriccedilatildeo circunstancial dos fenocircmenos jaacute

compreendidos

ldquoTentando superar as aporias da Criacutetica da Razatildeo Pura o idealismo

transcendental neokantiano rejeitou a distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si Os

objetos satildeo totalmente imanentes agrave consciecircncia natildeo somente quanto a sua forma

mas tambeacutem agrave sua mateacuteria ieacute o seu elemento empiacuterico Destarte as categorias

jaacute natildeo constituem meramente o modo de aparecer da realidade mas o seu modo

de ser pois ela natildeo existe senatildeo enquanto presente agrave consciecircncia () Assim o

loacutegico como estudos das determinaccedilotildees fundamentais de vaacuterias regiotildees dos

objetos imanentes agrave consciecircncia ocupa com razatildeo ainda para Kant o lugar

reservado antigamente agrave metafiacutesica A tarefa proacutepria da filosofia consiste numa

Teoria das Ciecircncias ieacute no exame das estruturas a priori ao passo que estas

estudam o conteuacutedo empiacuterico das vaacuterias regiotildees dos objetosrdquo (MACDOWELL

Jp30)

manifestava elementos que o impulsionariam a ir aleacutem da loacutegica a recusa de considerar as categorias como

meras funccedilotildees do pensamento e ainda a exigecircncia de considerar o problema da historicidade e do tempo

Assim no interior da problemaacutetica neokantiana Heidegger jaacute se preocupava com questotildees que o

neokantismo mostrava-se incapaz de resolver Cf Vattimo G1987 pp 10-22

8 ldquoBoth movements lay claim to the mantle of ldquoscientific philosophyrdquo but neo-Kantianism differs from

phenomenology in maintaining a continuity between positive science and philosophy As theory of science

neo-Kantian epistemology wants to provide grounds for a principled (ldquoscientificrdquo) weltanschauung

Phenomenology (here Husserl and the early Heidegger) on the contrary establishes the autonomy of

philosophy precisely through a discontinuity with positive science and the aims of worldview formationrdquo

op cit p 24

24

Durante o segundo periacuteodo neokantiano entre 1878 e o final da Primeira Guerra

Mundial as escolas originadas desse movimento vatildeo acirrar suas diferenccedilas A escola de

Marburg (Cohen Natorp e Cassirer) se opocircs sobretudo agraves interpretaccedilotildees psicoloacutegicas

da Primeira Criacutetica de Kant O campo de investigaccedilatildeo dessa escola era direcionado agrave

fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas tais como a fiacutesica e a matemaacutetica pois o que

estaacute em jogo nessa obra segundo os pesquisadores de Marburg natildeo eacute qualquer

fundamentaccedilatildeo da estrutura psicoloacutegica do conhecimento nem sua origem mas o valor

loacutegico de sua verdade na medida em que ldquoo nosso conhecimento dos objetos reais conteacutem

um elemento que natildeo pode ser reduzido pura e simplesmente a intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo

(MCDOWELL J p29)

No mesmo sentido mas sobretudo em funccedilatildeo da superaccedilatildeo do psicologismo e do

relativismo histoacuterico a escola neokantista de Baden representada principalmente por

Windelband e seu disciacutepulo Rickert estende o retorno a Kant com o propoacutesito da

elaboraccedilatildeo de uma loacutegica das ciecircncias humanas O desenvolvimento da filosofia dos

valores (Werttheorie) realizado por essa escola reconhecia a necessidade de diferenciar o

conhecimento da natureza do conhecimento da cultura nesse uacuteltimo caso as leis

deveriam ser explicadas a partir dos valores que neles satildeo presentes Aqui sem duacutevida

existe um ponto de contato com o projeto de Dilthey que nos exige um breve excurso para

desenhar com linhas mais precisas a especificidade de cada projeto

A criacutetica agrave metafiacutesica inaugurada pela filosofia criacutetica de Kant (negando ao

conhecimento qualquer acesso a elementos suprassensiacuteveis) eacute absorvida por Dilthey e

pelos neokantianos contudo a epistemologia das ciecircncias histoacutericas como filosofia

criacutetica da histoacuteria ao recorrer a Kant deveria como aponta Reis (2002 p 166) ldquoou

substituir ou completar ou subordinar ou se coordenar agrave [criacutetica] de Kantrdquo e nesse sentido

eacute possiacutevel observar a fissura entre os projetos Poderiacuteamos dizer que para Dilthey eacute

necessaacuterio superar Kant pois as categorias abstratas do conhecimento satildeo tributaacuterias de

relaccedilotildees vitais primaacuterias como pensamento que emerge da proacutepria vida histoacuterica pois eacute

a vida histoacuterica em uacuteltima instacircncia que fornece ao pensamento unidade e sentido Jaacute

para os neokantianos de Baden poder-se-ia dizer que houve uma coordenaccedilatildeo com vistas

agrave complementaccedilatildeo agrave criacutetica kantiana tendo em vista que tanto para Windelband como

para Rickert a diferenccedila entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito era legiacutetima

25

para o primeiro como uma distinccedilatildeo metodoloacutegica para o segundo como distinccedilatildeo

loacutegica No interior dessa diferenccedila entre Dilthey e os neokantianos de Baden eacute possiacutevel

observar um ponto ainda mais fundamental mesmo com exigecircncias epistemoloacutegicas

objetivas em seu trabalho Dilthey natildeo aceita o pressuposto de um sujeito transcendental

e eacute antes a vivecircncia do sujeito particular histoacuterico que lhe fornece a base de sua pesquisa

jaacute para Windelband e Rickert o idealismo transcendental eacute mantido com o propoacutesito de

garantir o estatuto cientiacutefico de suas teses Assim enquanto Dilthey atraveacutes dos meacutetodos

proacuteprios faz emergir uma nova concepccedilatildeo de ciecircncia os representantes de Baden

movimentam-se em uma teoria preconcebida da ciecircncia Dito de outro modo ldquoenquanto

Dilthey buscava uma forma de liberar as ciecircncias do espiacuterito do meacutetodo das ciecircncias

naturais Windelband e Rickert procuravam uma definiccedilatildeo de ciecircncia que reconhecesse a

importacircncia dos valoresrdquo (WUR 2010p175)

De maneira geral retornando ao ponto central de nosso toacutepico poderiacuteamos

apontar que as duas escolas neokantianas se diferenciavam essencialmente acerca do

objeto de investigaccedilatildeo Na escola de Marburg Cohen direcionava suas pesquisas ao

chamado ldquofato da ciecircnciardquo e a filosofia seria uma reflexatildeo sobre o conhecimento

cientiacutefico concentrando-se na busca de uma metodologia capaz de descrever

matematicamente a constituiccedilatildeo seu objeto na medida em que seu valor de verdade

encontra-se sob bases loacutegico-matemaacuteticas Jaacute na escola de Baden influenciado pela

filosofia dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade

dos juiacutezos cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de

conciliar ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) A ciecircncia apenas

lida com questotildees de fato e se for necessaacuterio analisar a ldquovisatildeo de mundordquo seremos

obrigados a lidar com os deveres e sobretudo com valores

ldquoEsse enfoque nos valores por parte de Windelband levaraacute o neokantismo de

Baden ao desenvolvimento de uma teoria geral do juiacutezo segundo a qual os juiacutezos

cientiacuteficos (juiacutezos teoacutericos) constituem apenas um tipo de juiacutezo qual seja os

juiacutezos orientados pelo valor verdade Aleacutem dos juiacutezos teoacutericos haveria tambeacutem

juiacutezos natildeo teoacutericos como os juiacutezos eacuteticos esteacuteticos religiosos etc os quais

seriam orientados por outros tipos de valores como o bem o justo o belo o

sagrado etc e os quais diriam respeito a outras dimensotildees da experiecircncia

humana para aleacutem da ciecircncia como a moral o direito a arte a religiatildeo etc Com

isso Windelband procura reformar e ampliar o projeto de Kant Como na Criacutetica

da Razatildeo Pura Kant reduziu o papel da filosofia agrave anaacutelise do caraacuteter a priori dos

juiacutezos teoacutericos especiacuteficos das ciecircncias da natureza trata-se portanto de

completar a empresa kantiana com a anaacutelise do caraacuteter a priori dos outros tipos

26

de juiacutezos Mesmo dentro das ciecircncias eacute preciso distinguir tipos de juiacutezos o que

Windelband faraacute atraveacutes da distinccedilatildeo entre ciecircncias nomoloacutegicas e ciecircncias

ideograacuteficas e Rickert com a distinccedilatildeo entre ciecircncias naturais e ciecircncias

culturaisrdquo (RESENDE 2013p17)

Contudo se ambas escolas se diferenciam na circunspecccedilatildeo de seu objeto existe

um ponto de partida epistemoloacutegico comum o retorno a Kant que indica o lugar proacuteprio

da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias A investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo deve se voltar agrave pesquisa

cientiacutefica de como se daacute tal ou qual conhecimento mas analisar a validade do

conhecimento ou seja aquilo que torna a verdade do conhecimento possiacutevel e esse

problema eacute de ordem transcendental pois natildeo estaacute interessada nos processos cognitivos

mas na condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer processo de conhecimento

ldquoContemporacircneo de Hermann Cohen da escola de Marburg Windelband

enfatizou como este a primazia da abordagem epistemoloacutegica dando

continuidade ao projeto kantiano de limitaccedilatildeo do conhecimento buscando

assegurar a sua validade rejeitando a contingecircncia do histoacuterico e do psicoloacutegico

em prol de uma validade atemporal puramente loacutegica Cohen procurou assegurar

a validade loacutegica do conhecimento cientiacutefico na matemaacutetica procedimento que

Windelband analisa como deficiente pois embora a primeira Criacutetica possa

fundamentar a interpretaccedilatildeo de Cohen a segunda e a terceira Criacuteticas assim

como os textos sobre antropologia histoacuteria e poliacutetica requerem outra

fundamentaccedilatildeo que natildeo a matemaacuteticardquo (WU R2010p3)

A terceira fase do movimento ainda segundo Crowell inicia-se no fim da

Primeira Guerra Mundial e vai ateacute a intervenccedilatildeo Nacional Socialista no sistema

universitaacuterio alematildeo nos anos 30 ldquoRefletindo o colapso do otimismo cultural este

periacuteodo eacute caracterizado por um ataque ao idealismo acadecircmico em nome de

Lebensphilosophie (um termo geneacuterico invocando as teses filosoacuteficas lsquoagrave margemrsquo como

as de Nietzsche Bergson e Dilthey)rdquo (CROWELL2011p28) E nesse sentido as escolas

neokantianas precisaram enfrentar o conflito entre a realidade muacuteltipla e dispersa que no

mais das vezes escapa a qualquer tentativa de apreensatildeo conceitual e loacutegica e portanto

agrave consciecircncia transcendental como postulado que garante a cientificidade do projeto

filosoacutefico neokantista

ldquoNa escola de Baden Logik der Philosophie (1911) e Die Lehre vom Urteil [A

doutrina do juiacutezo] (1912) de Lask antecipam temas do terceiro periacuteodo

Abandonando a interpretaccedilatildeo imanente de Rickert do esquema forma-mateacuteria (e

tambeacutem a primazia da razatildeo praacutetica) Lask adota o ponto de partida da

transcendecircncia para dar uma interpretaccedilatildeo ontoloacutegica dos objetos como a unidade

da forma categorial e o material natildeo-loacutegico Objetos satildeo verdades em si mesmas

27

unidades de sentido natildeo cogniccedilotildees juiacutezos proposiccedilotildees Em contraste com

Cohen para quem o objeto eacute construiacutedo no juiacutezo cientiacutefico Lask argumenta que

lsquoos mais baacutesicos problemas da loacutegica revela eles mesmos somente se a cogniccedilatildeo

preacute-teoreacutetica estaacute inclusa na investigaccedilatildeorsquo Em Marburg N Hartmann oferece na

Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis [Fundamentacao para uma

Metafiacutesica do Conhecimento] (1921) uma teoria da relaccedilatildeo sujeito-objeto

ldquorealistardquo quase-fenomenoloacutegica intentada por uma justificaccedilatildeo ontoloacutegica para

o que eacute meramente pressuposto no idealismo loacutegico de Natorp a saber a

habilidade do sujeito para ldquotranscenderrdquo a sua proacutepria esfera Na filologia de

Kant H Heimsoeth comeccedila a descobrir os ldquomotivos metafiacutesicosrdquo da filosofia

criacutetica de Kant uma interpretaccedilatildeo perseguida no curso sobre Kant de Heidegger

1927-1928 e em Kant und das Problem der Metaphysikrdquo

(CROWELL2011p28)9

Eacute conhecida a interlocuccedilatildeo entre Rickert e a fenomenologia de Husserl tanto de

um lado pela criacutetica de Rickert agrave intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica e agrave identificaccedilatildeo entre sentido

(Sinn) e Significado (Bedeutung) nas Investigaccedilotildees Loacutegicas10 quanto por outro pela

criacutetica de Husserl a Rickert no que diz respeito agrave via predominantemente subjetiva das

9 ldquoIn the Baden school Laskrsquos Logik der Philosophie (1911) and Die Lehre vom Urteil (1912) anticipate

themes of the third period Abandoning Rickertrsquos immanentist interpretation of the formmaterial schema

(and so also the primacy of practical reason) Lask adopts the ldquostandpoint of transcendencerdquo to give an

ontological interpretation of the object as a unity of categorial form and alogical material Objects are

themselvesldquo truths unities of meaning not cognitions judgments propositionsrdquo Incontrast to Cohen for

whom the object is constructed in the scientific judgment Lask argues that ldquothe most basic problems of

logic reveal themselves only if pretheoretical cognition is included in the investigationrdquo In Marburg N

Hartmann offered the Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis (1921) a quasi-phenomenological

ldquorealisticrdquo theory of the subject-object relation intended to account ontologically for what is merely

presupposed in Natorprsquos logical idealism namely the subjectrsquos ability to ldquotranscendrdquo its own sphere In

Kant philology H Heimsoeth began to uncover the ldquometaphysical motivesrdquo of Kantrsquos critical philosophy

an interpretation pursued in Heideggerrsquos 1927ndash28 lecture course on Kant and in Kant und das Problem der

Metaphysikrdquoop citp28

10 Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas (sect15 da I Investigaccedilatildeo) contra a posiccedilatildeo de Frege Husserl considera os

termos Sentido (Sinn) e Significado (Bedeutung) como sinocircnimos ldquoSignificaccedilatildeo vale para noacutes aleacutem disso

como sinocircnimo de sentidordquo (HUSSERL 2012 p43) Contudo se em Ideias (1913) Husserl passa a assumir

uma camada de sentido preacutevia agrave significaccedilatildeo linguiacutestica - algo que ele natildeo soacute sugere como a ela se refere

explicitamente chamando-a de sentido preacute-expressivo- a significaccedilatildeo (Bedeutung) permanece

intimamente atrelada agrave expressatildeo (Ausdruck) que continua a ter um caraacuteter epistemoloacutegico relevante

(Cfsect124 Ideacuteias para uma fenomenologia pura e para uma fenomenologia fenomenoloacutegica) Apesar da

nova assunccedilatildeo essa camada preacute-expressiva natildeo passa a ter um teor de verdade superior agrave camada

expressiva pelo contraacuterio Husserl vai permanecer sempre comprometido com o status epistemoloacutegico da

consciecircncia e de seu acesso ao fenocircmeno Entatildeo aquilo que a consciecircncia manifesta linguisticamente

continua a ser o meio pelo qual a fenomenologia pode se realizar como ciecircncia rigorosa e somente a partir

da expressatildeo eacute possiacutevel falar em verdade na medida em que apenas a expressatildeo possui intenccedilatildeo de

significaccedilatildeo Isso porque apesar de sugerir esse sentido preacute-linguiacutestico Husserl continua voltando suas

anaacutelises agrave expressatildeo

28

primeiras publicaccedilotildees de Der Gegenstand der Erkentnnis (O objeto do conhecimento)11

Tambeacutem eacute conhecido o debate entre o idealismo criacutetico de Natorp e a fenomenologia de

Husserl

ldquoEm Ideen I (1913) Husserl afirma com um miacutenimo de ironia que ldquonoacutes somos

genuiacutenos positivistasrdquo (Hua III4639) Sob a tutela de Brentano a atitude inicial

de Husserl em direccedilatildeo ao apriorismo kantiano foi totalmente negativa e em

harmonia com o proacuteprio periacuteodo positivista inicial do neokantismo ele em vez

disso propocircs uma consideraccedilatildeo psicoloacutegica do a priori (egin Philosophie der

Arithmetik [1891]) Pelos anos de 1890 esse tipo de continuidade entre filosofia

e ciecircncia positiva foi abandonado em Marburg pelo idealismo transcendental

Husserl portanto permaneceu bem proacuteximo a Natorp que era o instrumental em

direccedilatildeo daquele caminho do psicologismo e mais tarde inspiraria o movimento

de Husserl da estaacutetica para a fenomenologia geneacutetica Pelos anos 1913 Husserl

tinha desenvolvido seu proacuteprio ldquoidealismo transcendentalrdquo fenomenoloacutegico mas

se manteve distinto em princiacutepio do Neokantismo de Marburg Enquanto esse

uacuteltimo definiu o caraacuteter cientiacutefico da filosofia em termos de

uma loacutegica transcendental uma apresentaccedilatildeo sistemaacutetica dos princiacutepios a priori

(ldquomeacutetodordquo) da ciecircncia empiacuterica o primeiro se manteve anti-sistemaacutetico modelo

empiacuterico do primeiro periacuteodo do seu fundador fundando sua teoria do a priori

sobre um recurso filosoacutefico para a intuiccedilatildeoEm seu tratamento da psicologia de

Natorp na primeira ediccedilatildeo das Investigaccedilotildees Loacutegicas(1900-1901) por exemplo

Husserl rejeita a doutrina de Natorp do puro ego da apercepccedilatildeo Na segunda

ediccedilatildeo contudo ele afirma que tem ldquouma vez conseguido encontraacute-lordquo tendo

aprendido ldquoa natildeo ser desviado de uma pura compreensatildeo do dado por meio de

formas corruptas do ego-metafiacutesicordquo (Hua XIX1374549) Se o Husserl mais

idealista natildeo mais associa o ego kantiano com o ldquocorrupto ego-metafiacutesicordquo do

idealismo especulativo sua anotaccedilatildeo ainda avanccedila em direccedilatildeo a uma afirmaccedilatildeo

bem anti-Natorpiana de ter encontrado o puro ego em uma ldquopura compreensatildeo

do dadordquo isto eacute em evidecircncia intuitiva Outra anotaccedilatildeo afirma que o puro ego eacute

ldquoapreendido na efetivaccedilatildeo de um cogito auto-evidenterdquo (Hua XIX1368544)

Natorp negou a fenomenalidade do ego ele nem pode ser objetivado nem

apresentado ele mesmo como um todo sem deixar de ser genuinamente ldquosujeitordquo

Para Husserl poreacutem esse argumento eacute meramente verbal o ego eacute aqui como um

fato um objeto em seu modo apropriado Afirmar o contraacuterio equivaleria

entregar o ego ao reino do mito (Hua XIX1373ndash76549ndash510)rdquo

(CROWELL2011 p31)12

11 Sobre a interlocuccedilatildeo entre Husserl e Rickert e como as criacuteticas e observaccedilotildees provocaram sucessivas

revisotildees dos trabalhos de ambos os autores Cf RESENDE J 2013 Primeira Parte pp 22-89

12ldquoIn Ideen I (1913) Husserl claims with only slight irony that ldquowe are the genuine positivistsrdquo (Hua

III4639) Under Brentanorsquos tutelage Husserlrsquos initial attitude toward Kantian apriorism had been

altogether negative and in harmony with neo-Kantianismrsquos own early positivist period he instead proposed

a psychological account of the a priori (egin Philosophie der Arithmetik [1891]) By the 1890s this kind

of continuitybetween philosophy and positive science had been abandoned in burg for transcendental

idealism Husserl nevertheless established close ties with Natorp who was instrumental in steering him

away from psychologism and would later inspire Husserlrsquos move from static to genetic phenomenology

By 1913 Husserl had developed his own phenomenological ldquotranscendental idealismrdquo but it remained

distinct in principle from Marburg neo-Kantianism While the latter defined the scientific character of

philosophy in terms of a transcendental logic a systematic presentation of the a priori principles (ldquomethodrdquo)

29

Contudo apesar do diaacutelogo entre esses autores o que nos interessa marcar a tiacutetulo

introdutoacuterio eacute a centralidade do debate que orientou a filosofia deste periacuteodo Seja pela

busca de juiacutezos loacutegicos-matemaacuteticos seja pela busca dos juiacutezos de valor a filosofia ainda

estaacute imersa nos problemas e na gramaacutetica da modernidade pois os debates se

movimentam no interior da teoria do conhecimento e cada escola a seu modo recorre ao

sujeito transcendental para assegurar a garantia de objetividade e validade do

conhecimento A discussatildeo inaugurada por Kant acerca da lsquocoisa em sirsquo e de seu acesso

como ideia da razatildeo redirecionam qualquer ontologia dos objetos agrave consciecircncia do

sujeito E em uacuteltima instacircncia a filosofia permanece imersa no pressuposto da existecircncia

de um fundamento uacuteltimo - baseado no sujeito e em suas possibilidades ligadas agrave

representaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos elementos do mundo externo- como condiccedilatildeo de

possibilidade que garante a seguranccedila e objetividade de todo conhecimento

II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica

Para Wilhelm Windelband (1848-1915) a filosofia deve investigar os valores das

representaccedilotildees ou seja em que medida uma representaccedilatildeo se torna uma proposiccedilatildeo

cientiacutefica Contra as teorias representacionistas do juiacutezo aqui jaacute eacute possiacutevel identificar a

clara separaccedilatildeo entre representaccedilatildeo - que seria a mera apariccedilatildeo de um objeto e suas

propriedades- e o juiacutezo ndash que possui valor de verdade e pode ser negado ou afirmado Os

juiacutezos (sejam loacutegicos esteacuteticos ou eacuteticos) natildeo satildeo neutros como a representaccedilatildeo pois

possuem embutido o que Windelband chama de apreciaccedilatildeo

ldquoTrata-se de uma distinccedilatildeo loacutegica que normalmente natildeo aparece no niacutevel da

gramaacutetica A mera conexatildeo neutra de representaccedilotildees (sujeito + predicado) eacute o que

se chama de juiacutezo jaacute o fato dessas representaccedilotildees constituiacuterem uma proposiccedilatildeo

com valor de verdade se deve agrave apreciaccedilatildeo O que Windelband quer mostrar eacute

of empirical science the former retained the antisystematic empirical cast of its founderrsquos early period

grounding its theory of the a priori on a philosophical appeal to intuition In his treatment of Natorprsquos

psychology in the first edition of the Logical Investigations (1900 1901) for example Husserl rejects

Natorprsquos doctrine of the pure ego of apperception In the second edition (1913) however he claims that he

has ldquosince managed to find itrdquo having learned ldquonot to be led astray from a pure grasp of the given through

corrupt forms of ego-metaphysicrdquo (Hua XIX1374549) If the more idealistic Husserl no longer associates

the Kantian ego with the ldquocorrupt ego-metaphysicrdquo of speculative idealism his note also advances the very

un-Natorpian claim to have found the pure ego in a ldquopure grasp of the givenrdquo that is in intuitive evidence

Another note states that the pure ego is ldquoapprehended in carrying out a self-evident cogitordquo (Hua

XIX1368544) Natorp had denied the phenomenality of the ego it can neither be objectified nor present

itself at all without ceasing to be genuinely ldquosubjectrdquo For Husserl however this argument is merely verbal

The ego is there as a fact an object in its own appropriate manner To claim otherwise is tantamount to

consigning the ego to the realm of myth (Hua XIX1373ndash76549ndash51)rdquo Op cit p31 Cf Tambeacutem

HEIDEGGER 2006 p 124

30

que nisso ordinariamente chamado de juiacutezo estaacute embutida uma apreciaccedilatildeo em

funccedilatildeo de um valor a qual natildeo se confunde com o conjunto de formaccedilotildees

conceituaisrdquo (RESENDE 2013p40)

O que estaacute em jogo nessa concepccedilatildeo eacute identificar que a apreciaccedilatildeo inerente a todo

juiacutezo natildeo diz nada acerca dos conteuacutedos representativos mas de sua pretensatildeo a um ideal

ou fim uacuteltimo como um horizonte estaacutevel do que eacute verdadeiro eacutetico ou esteacutetico e que

funcionam como paracircmetros avaliativos na accedilatildeo mesma de julgar O que estaacute implicado

nessa tese eacute a concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo As ciecircncias particulares possuem pretensatildeo de

valor universal mas essa universalidade natildeo eacute faacutetica e ldquosua necessidade natildeo eacute causal mas

apenas lsquodeve-serrsquo (sein-solle)Toda proposiccedilatildeo loacutegica eacutetica ou esteacutetica eacute impelida pelo

dever-ser universalrdquo(RESENDE2013p41) e mesmo que sua manifestaccedilatildeo seja

faticamente histoacuterica esse dever-ser da proposiccedilatildeo loacutegica deve ser reconhecido como

universal e incondicionalmente vaacutelido por qualquer ser racional ndash em uma clara assunccedilatildeo

da universalidade moral kantiana mas que agora permeia todos os juiacutezos e natildeo somente

os eacuteticos

Considerando os juiacutezos em funccedilatildeo de sua apreciaccedilatildeo Windelband descreve trecircs

tipos de juiacutezos Os juiacutezos satildeo teoacutericos (segundo a apreciaccedilatildeo verdadeirofalso) juiacutezos de

gosto (segundo a apreciaccedilatildeo belofeio) e os juiacutezos eacuteticos (segundo a apreciaccedilatildeo

bommau) Os fenocircmenos psiacutequicos satildeo as representaccedilotildees neutras em sua manifestaccedilatildeo

Assim como comportamentos da apreciaccedilatildeo os juiacutezos ganham sua forma loacutegica nas

figuras judicativas juiacutezos afirmativos juiacutezos negativos juiacutezos problemaacuteticos Essa uacuteltima

forma suspende a apreciaccedilatildeo mas pela pergunta ndash que natildeo eacute propriamente um juiacutezo-

condiciona a possibilidade de julgar portanto se refere a uma etapa mesmo que preacutevia

agrave tomada de posiccedilatildeo apreciativa

Aqui reside o ponto decisivo enquanto para Windelband a loacutegica claacutessica (de

Aristoacuteteles a Kant) se ocupou dos elementos meramente gramaticais - sendo os juiacutezos

coincidentes com as representaccedilotildees na medida que bastava afirmaacute-las ou negaacute-las - a

apreciaccedilatildeo por sua vez aparece como constituidora do conceito presente nas formaccedilotildees

gramaticais pois dizer algo eacute antes apreciar a sua posiccedilatildeo existencial (com fim ao ideal

da mateacuteria em questatildeo eacutetico esteacutetico etc) de forma a negaacute-las ou afirmaacute-las Em outras

palavras para que o conhecimento seja possiacutevel natildeo eacute suficiente a recepccedilatildeo passiva das

representaccedilotildees mas eacute fundamental uma atividade valorativa que constitui um conceito

31

no reconhecimento de seu conteuacutedo sentido e validade na sua pretensatildeo de necessidade

e universalidade Algo lsquoeacutersquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento e

ldquoa pesquisa desses valores com pretensotildees universais () eacute o objeto de estudo da

filosofiardquo (RESENDE 2013p41) Essa posiccedilatildeo seraacute retomada e desenvolvida por

Rickert

Assim como Windelband Heinrich Rickert (1863-1936) coloca o problema na

forma metodoloacutegica ou seja a pesquisa dos valores como meacutetodo de base para a filosofia

e busca assim determinar o criteacuterio de validade do conhecimento atraveacutes do elemento que

confere sua objetividade ou o que pode ser identificado como o crucial para a diferenccedila

entre os enunciados arbitraacuterios e as proposiccedilotildees vaacutelidas do conhecimento efetivo

elemento que Rickert denomina ldquoobjeto do conhecimentordquo como o tiacutetulo mesmo de sua

obra principal indica ldquoDie Gegenstand der Erkenntnisrdquo (revista em seis ediccedilotildees

diferentes entre 1892 e 1928)

Aprofundando as investigaccedilotildees de seu mestre Rickert difere conceitos

ontoloacutegicos de conceitos axioloacutegicos diferenccedila oculta na linguagem ordinaacuteria e que se

torna clara na observaccedilatildeo acerca da concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo ldquoEnquanto para Kant o

problema eacute a impossibilidade de explicar o fato de como a razatildeo teoacuterica pode ser praacutetica

para Rickert o problema eacute o fato de que a razatildeo jaacute eacute sempre praacutetica em seu uso teoacuterico

purordquo (RESENDE 2013p45) e isto natildeo pelo fato de juiacutezos teoacutericos dependerem da lei

moral mas pela convicccedilatildeo acerca dos conteuacutedos mesmos do conhecimento Se a

representaccedilatildeo satildeo processos psiacutequicos elementares e neutros a convicccedilatildeo soacute eacute possiacutevel

pela razatildeo praacutetica Para melhor visualizaccedilatildeo do problema quando digo ldquoS eacute Prdquo ou ldquoS eacute

um sujeitordquo (e aiacute estaacute tambeacutem seu conceito por exemplo ldquohomemrdquo) ou ainda ldquoP eacute um

predicadordquo (e tambeacutem utilizo um conceito por exemplo ldquoracionalrdquo) o que me autoriza

dizer ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo Segundo Rickert eacute a convicccedilatildeo praacutetica fundada no

sentimento (Gefuumlhl) de ldquovontade de verdaderdquo (Willen zur Wahrheit) que impele a busca

da verdade Eacute esse sentimento que possibilita a tomada de posiccedilatildeo que aprova ou

desaprova expresso por fim em um juiacutezo Somos impelidos pelo dever na medida em

que somos livres a buscar a verdade Mas eacute importante considerar que

ldquoApesar de o sentimento ser o paracircmetro para a tomada de posiccedilatildeo do juiacutezo o

dever natildeo deriva do sentimento pois isso seria derivar o dever do ser O dever

natildeo pode ser confundido com a necessidade causal do sentimento Na verdade

32

na proacutepria constataccedilatildeo do sentimento jaacute estaacute pressuposto o dever () Essa

verdade buscada natildeo eacute uma instacircncia ideal mas apenas um postulado um

inalcanccedilaacutevel ideal absoluto de verdade que funciona como moacutebil da atividade

cientiacutefica dos seres moraisrdquo (RESENDE 2013p46)

A razatildeo praacutetica busca a verdade como sua atividade mais proacutepria a partir do dever

impresso na sua proacutepria liberdade expresso no ato praacutetico de tomada de decisatildeo que

culmina na expressatildeo dos juiacutezos (na razatildeo teoacuterica) Se para Kant a accedilatildeo humana livre eacute

impelida a agir conforme a lei moral para Rickert a accedilatildeo humana em seu querer livre -

nem mecacircnico nem bioloacutegico - de um ideal de perfeiccedilatildeo da verdade eacute impelida a agir em

funccedilatildeo do conhecimento e da ciecircncia

Na tentativa de afastar as interpretaccedilotildees psicologistas ou idealistas (natildeo

cientiacuteficas) de sua teoria o valor de verdade para Rickert que eacute garantido pelo dever-ser

eacute observado na evidecircncia como manifestaccedilatildeo psiacutequica do dever mas que pelo seu caraacuteter

de necessidade ultrapassa o indiviacuteduo singular O sentimento de prazer ou desprazer dessa

evidecircncia na estrutura psiacutequica que posiciona o ato praacutetico de tomada de posiccedilatildeo eacute

reconhecido pela sua necessidade transcendente e eacute o elemento do esquema cognitivo que

ldquoestabelece a ponte entre os processos psiacutequicos reais em sua singularidade e

contingecircncia com a universalidade e necessidade transcendental do deverrdquo (RESENDE

2013p47) Mesmo com essas colocaccedilotildees e sobretudo com a postulaccedilatildeo que o dever natildeo

pode ser derivado do ser pelo seu caraacuteter mesmo de liberdade Rickert foi aproximado de

um certo ldquopsicologismo voluntaristardquo pois o valor de verdade na realidade soacute poderia ser

derivado dos processos psiacutequicos tendo em vista que ldquoo dever eacute uma norma psicoloacutegica

que soacute tem sentido lsquopararsquo um sujeito empiacutericordquo (RESENDE 2013p47) E ainda por

mais que sua meta fosse buscar a universalidade e necessidade dos valores ainda assim

esses valores estariam reduzidos ldquoagrave contingecircncia e temporalidade dos processos

psiacutequicos ou seja reduzindo o valor ao serrdquo (RESENDE 2013p48)

Mas como a filosofia dos valores desses autores lida com as pesquisas histoacutericas

enquanto criacutetica do historicismo Para Windelband as ciecircncias positivas satildeo ciecircncias

nomoteacuteticas ou seja operam por uma abstraccedilatildeo que busca o conhecimento universal

atraveacutes da estabilidade de suas leis Jaacute as ciecircncias histoacutericas satildeo ideograacuteficas cujo juiacutezos

natildeo descrevem uma coisa ou estados de coisa enquanto aquilo que eacute mas possuem como

objeto valores que possuem (ou natildeo) validade Validade oferecida em uacuteltima instacircncia

33

pelo juiacutezo em sua forma fundamental como juiacutezo apreciativo Analisar esses valores

requer uma metodologia proacutepria baseada na pesquisa da valoraccedilatildeo como forma de

conhecimento

Para Rickert a filosofia dos valores eacute o fundamento universal para os significados

da histoacuteria e aqui reside o ponto crucial a busca de um ideal absoluto (vontade de

verdade) deve atuar como medida para a realidade individual e histoacuterica sem a qual natildeo

podemos significar a interpretaccedilatildeo da vida histoacuterica e cultural na sua singularidade A

distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor

(Wert) segundo Rickert levaria a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo

de conceitos (Begriffsbildung) e que natildeo se trata de um conhecimento no campo

ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto pelo conceito determinado de maneira formal no

espaccedilo loacutegico-axioloacutegico

Um evento histoacuterico natildeo possui relevacircncia por si soacute eacute a partir da valoraccedilatildeo que

um fato histoacuterico se ldquodiferencia substancialmente de outros na heterogeneidade contiacutenua

a partir de sua individualidaderdquo (Wu R 2010p180) Ou seja o que doa sentido a um

fato histoacuterico na sua individualidade ndash que se destaca dos fluxos indistintos e

heterogecircneos dos acontecimentos - eacute uma realizaccedilatildeo teoacuterica que o valoriza e lhe confere

sentido A histoacuteria eacute portanto possiacutevel e existe como objeto capaz de ser analisado como

ciecircncia pelos valores atribuiacutedos teoricamente a seus eventos

III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos

A crise no modelo teoacuterico tradicional no final do seacuteculo XIX (que apontava

qualquer teoria filosoacutefica como uma lsquocrenccedila justificadarsquo) a reconduccedilatildeo pelos

psicologistas agrave articulaccedilatildeo de argumentos logicamente coerentes baseados na consciecircncia

particular - em que ateacute mesmo os princiacutepios loacutegicos seriam expressatildeo da forma de

conhecimento possiacutevel pela particularidade daquele que conhece- culminam no projeto

husserliano de uma filosofia pura e sem pressupostos

Para Husserl a psicologia baseada no modelo cientiacutefico das ciecircncias naturais leva

agrave particularizaccedilatildeo dos conteuacutedos do conhecimento e nesse modelo a psicologia natildeo

consegue lidar com a universalidade do conteuacutedo dos princiacutepios tornando a relaccedilatildeo entre

34

a realidade e o conhecimento incompatiacuteveis Por mais que a experiecircncia seja particular

as investigaccedilotildees de Husserl o levaram a considerar que a existecircncia humana estaacute em

contato com conteuacutedos que natildeo satildeo particularizaacuteveis A psicologia natildeo deixa clara a

transiccedilatildeo das conexotildees psicoloacutegicas do pensar e a unidade loacutegica de seu conteuacutedo O que

estaacute em jogo para Husserl eacute portanto a relaccedilatildeo entre a subjetividade do conhecer e a

objetividade do conteuacutedo de pensamento

A predominacircncia neokantiana no horizonte universitaacuterio alematildeo e sua maacutexima de

retorno a Kant mantecircm no interior da investigaccedilatildeo termos como por exemplo

lsquoapercepccedilatildeorsquo e lsquorepresentaccedilatildeorsquo Se o neokantismo se volta a Kant tambeacutem sucumbe a

seus limites e nesse movimento revela a insuficiecircncia da investigaccedilatildeo filosoacutefica

condicionada aos sistemas anteriores Para Husserl a filosofia como ciecircncia autocircnoma

requer natildeo um retorno a qualquer teoria mas agraves coisas que agora devem orientar o

pensamento

A tradiccedilatildeo filosoacutefica eacute marcada por uma pretensatildeo a busca da verdade para aleacutem

do que acontece na realidade dos fenocircmenos que nos satildeo acessiacuteveis Ao hipostasiar a

realidade do ser atraveacutes de posturas realistas ou idealistas para assim ter acesso aos

fenocircmenos a tradiccedilatildeo sempre considerou o ser do fenocircmeno para aleacutem do proacuteprio

fenocircmeno13 De maneira diversa Husserl busca os objetos nos proacuteprios campos

fenomecircnicos na medida em que aparecem na dimensatildeo do conhecimento a partir da

proacutepria atividade de pensamento ou seja o objeto que aparece na atividade de

pensamento soacute eacute encontrado na proacutepria atividade por isso natildeo haacute busca ou hipoacutestase

exterior agrave consciecircncia Mas isso natildeo se daacute porque a consciecircncia em seus atos produza ou

determine os significados dos objetos mas sim porque os atos das vivecircncias abrem espaccedilo

para que o objeto se determine no ato mesmo a partir de sua autonomia frente a qualquer

subjetividade particular de pensamento Mas o que queremos dizer com lsquoum objeto que

se determina no ato mesmorsquo Aqui eacute importante destacar sempre que possiacutevel um mal-

entendido em constante revisatildeo a filosofia de Husserl natildeo consiste em um sistema

fechado de proposiccedilotildees as quais poderiacuteamos encaminhar de forma retiliacutenea e deduzir suas

conclusotildees Aqui nessa breve introduccedilatildeo agraves intenccedilotildees do pensamento de Husserl

apresentamos em linhas gerais seu projeto e nos movimentamos a partir do segundo

13 Cf CASANOVA 2013 pp-76-80

35

volume das Investigaccedilotildees Loacutegicas de 1901 e das Ideacuteias para uma fenomenologia pura e

para uma filosofia fenomenoloacutegica publicadas em 1913

Depois dessas consideraccedilotildees atraveacutes das quais foi posta em jogo a noccedilatildeo de um objeto

que se determina no ato mesmo conforme jaacute explicitado nas Investigaccedilotildees eacute requerido

passar agrave explicaccedilatildeo da noccedilatildeo conforme elaborada na obra posterior Ideacuteias O

pensamento de Husserl eacute marcado por uma orientaccedilatildeo especiacutefica a fenomenoloacutegica Essa

orientaccedilatildeo natildeo desconsidera as vaacuterias formas pelas quais podemos ter acesso a objetos

seja pela vida corrente e cotidiana seja pela via cientiacutefica pois ambas estatildeo de acordo

com a orientaccedilatildeo natural A orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica por sua vez se deteacutem no objeto

intencional ou seja o objeto que visado se manifesta agrave consciecircncia conforme seu modo

de doaccedilatildeo fenomecircnico14 Natildeo se trata de um idealismo subjetivo conforme por exemplo

Berkeley mas de uma necessidade de acesso agraves coisas mesmas sem qualquer

pressuposiccedilatildeo sem qualquer movimento que ponha o conhecimento fora da realidade e

que ao mesmo tempo natildeo recaia na descriccedilatildeo ingecircnua da realidade como um conjunto de

impressotildees sensiacuteveis O fenocircmeno que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute

sempre uma doaccedilatildeo com sentidosignificado ldquopois se eacute verdade que os fenocircmenos se

datildeo a noacutes por intermeacutedio dos sentidos eles se datildeo sempre como dotados de um sentido

ou de uma essecircncia Eis porque () a intuiccedilatildeo seraacute uma intuiccedilatildeo da essecircncia ou do

sentidordquo (DARTIGUES 1973p21)

Ao contraacuterio dos neokantianos o modo como Husserl tratou a realidade tornou

improacuteprio o retorno agraves concepccedilotildees filosoacuteficas anteriores Elas natildeo forneciam mais um

caminho vaacutelido para o questionamento filosoacutefico Natildeo era mais suficiente o retorno a

qualquer sistema filosoacutefico fosse para renovaacute-lo - sob esse novo horizonte cientiacutefico -

fosse para retomar seus fundamentos com a finalidade de posicionar a filosofia como

braccedilo de apoio da ciecircncia A fenomenologia pura (puramente descritiva) pertence agrave

pesquisa de uma teoria do conhecimento objetiva na medida em que o modo de apariccedilatildeo

dos fenocircmenos nas vivecircncias do pensamento e do conhecimento seraacute sempre o objeto da

fenomenologia

14 Cf Ideacuteias I Capiacutetulo I

36

A concepccedilatildeo de fenocircmeno na modernidade ganhou diversas acepccedilotildees desde Bacon

ateacute Wolff passando por Descartes e Hobbes Segundo uma noccedilatildeo do senso comum

fenocircmeno eacute a experiecircncia pura e simples do fato considerada sobretudo como

manifestaccedilatildeo empiacuterica da realidade que natildeo pode ser equiparada agrave verdade15 Jaacute para Kant

- na delimitaccedilatildeo feita na primeira Criacutetica do espaccedilo do saber cientiacutefico possiacutevel -

fenocircmeno eacute o objeto especiacutefico do conhecimento humano que aparece sob condiccedilotildees

particulares da estrutura cognosciacutevel do homem a saber de um lado o objeto do

conhecimento depende das bases representativas que satildeo organizadas pelas categorias do

entendimento e de outro dos dados fornecidos pela sensibilidade Resumindo o objeto

de conhecimento para Kant estaacute delimitado pela relaccedilatildeo entre intuiccedilatildeo e conceito Kant

distingue o fenocircmeno - aquilo que eacute possiacutevel conhecer - do nocircumeno aquilo que natildeo se

conhece mas que pode ser pensado enquanto ideia da razatildeo como ldquocoisa em sirdquo Sem

jamais ultrapassar os dados da experiecircncia o sentido fenomenoloacutegico de fenocircmeno de

Husserl supera a distinccedilatildeo kantiana entre nocircumeno e fenocircmeno O fenocircmeno eacute algo que

manifesto revela em si mesmo seu conteuacutedo loacutegico ou essencial Mas a manifestaccedilatildeo do

fenocircmeno deve ser ldquodepuradardquo de qualquer psicologismo pois natildeo deve apenas ser

considerada como manifestaccedilatildeo particular A investigaccedilatildeo filosoacutefica ou melhor a

investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica aqui eacute exigida como meacutetodo para lsquopurificarrsquo o conteuacutedo

objetivo do ato subjetivo

ldquoO caminho que Husserl busca e comandaraacute ateacute em suas uacuteltimas obras a sua

concepccedilatildeo de fenomenologia eacute uma via meacutedia entre esses dois escolhos como

pensar segundo a sua natureza e em cada uma de suas nuanccedilas ndash e portanto sem

jamais ultrapassaacute-los ndash os dados da experiecircncia em sua totalidade Todo o

fenocircmeno e nada mais que o fenocircmeno poder-se-ia dizer O postulado que funda

tal empresa eacute que o fenocircmeno estaacute penetrado no pensamento de logos e que por

sua vez o logos se expotildee e soacute se expotildee no fenocircmeno Apenas sob essa condiccedilatildeo

eacute possiacutevel uma fenocircmeno-logiardquo (DARTIGUES 1973p20)

Aluno de Brentano Husserl ainda radicaliza a teoria da intencionalidade de seu

professor e natildeo mais considera que a consciecircncia se dirija pelo ato intencional agraves

representaccedilotildees empiacutericas da consciecircncia mas agrave objetividade das proacuteprias coisas

detectaacutevel no ato expressivo Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas Husserl apresenta a consciecircncia

como sempre ldquovoltada ardquo ou seja como uma consciecircncia intencional superando natildeo soacute

a noccedilatildeo de consciecircncia como o lsquolugarrsquo das representaccedilotildees que devem ser organizadas por

15 Cf AbbagnoN 2003 p436 Nesse sentido tambeacutem Cf Heidegger 2006 pp26-27

37

exemplo por aparatos internos a priori como tambeacutem qualquer orientaccedilatildeo psicologista

do conhecimento Se a fenomenologia recorre agrave psicologia eacute apenas para a investigaccedilatildeo

descritiva das vivecircncias intencionais e a psicologia descritiva na medida em que se

configura como descriccedilatildeo empiacuterica (cientiacutefica-natural) natildeo pode ser confundida com a

fenomenologia Esta ao contraacuterio mesmo repousando sobre a investigaccedilatildeo descritiva das

vivecircncias intencionais estrato mesmo da psicologia ainda assim possui como

particularidade a descriccedilatildeo pura excluindo qualquer concepccedilatildeo naturalista16

Mas afinal do que se trata nesta ldquodescriccedilatildeo purardquo Eacute na atividade compreensiva em

geral (descriccedilatildeo das vivecircncias intencionais) que Husserl buscaraacute a origem do

conhecimento na anaacutelise dos atos de constituiccedilatildeo de conhecimento dos objetos que ele

vai procurar descrever os movimentos ideais implicados em todo movimento intencional

As investigaccedilotildees gnosioloacutegicas da loacutegica pura expostas nas Investigaccedilotildees loacutegicas

querem lanccedilar as bases e fundamentos seguros como alternativas agraves teorias do

conhecimento empiristas ceacuteticas metafiacutesico-realista e psicologista pretendendo

fundamentar uma verdadeira teoria do conhecimento a partir da filosofia puramente

cientiacutefica Essa anaacutelise se realiza a partir das expressotildees levando em consideraccedilatildeo o

aspecto loacutegico da vivecircncia

ldquoA Fenomenologia analiacutetica de que o loacutegico necessita para os seus trabalhos de

preparaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo diz respeito entre outras coisas e desde logo agraves

lsquorepresentaccedilotildeesrsquo e mais precisamente agraves representaccedilotildees que satildeo expressas

Nestas complexotildees poreacutem o seu interesse primaacuterio vai para as vivecircncias que

estatildeo na funccedilatildeo de significaccedilatildeo as quais se pensam agraves lsquosimplesrsquo expressotildees No

entanto natildeo se pode descurar tambeacutem o lado linguiacutestico-sensiacutevel da complexatildeo

(aquilo que nela constitui a lsquosimplesrsquo expressatildeo) e o modo do seu entrelaccedilamento

com o ato de significar que o anima Eacute bem sabido quatildeo facilmente a anaacutelise das

significaccedilotildees costuma deixar-se guiar pela anaacutelise gramatical de um modo

completamente inadvertido Certamente que dada a dificuldade da anaacutelise direta

das significaccedilotildees seraacute bem-vindo todo e qualquer meio mesmo que imperfeito

de antecipar indiretamente os seus resultados [as significaccedilotildees que o anima] mas

mais ainda que por causa dessa ajuda positiva a anaacutelise gramatical torna-se

importante pelos enganos que traz consigo quando se substitui agrave anaacutelise

propriamente ditas das significaccedilotildeesrdquo (HUSSERL 2012p11)

16 Cf HusserlE Investigaccedilotildees Loacutegicas VolII Introduccedilatildeo sect 6- Aditamentos ndash 3ordm Aditamento

38

A anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a complexidade da vida

intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo eacute possiacutevel a partir da anaacutelise das estruturas

ideais que se apresentam nas vivecircncias da consciecircncia na forma das expressotildees

significativas E se ldquoos objetos para os quais a Loacutegica pura estaacute voltada satildeo desde logo

dados sob vestes gramaticaisrdquo (HUSSERL 2012p3) eacute porque esses dados satildeo embutidos

nas vivecircncias psiacutequicas concretas que ldquotanto em funccedilatildeo de intenccedilatildeo de significaccedilatildeo como

na do preenchimento de significaccedilatildeo () correspondem a certas expressotildees linguiacutesticas

e formam com elas uma unidade fenomenoloacutegicardquo (HUSSERL 2012p3)

O que estaacute em jogo como tarefa da fenomenologia eacute - a partir da unidade entre

intuiccedilatildeo (atividade da consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da

consciecircncia e o preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor

a unidade fenomenoloacutegica desses atos apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo

e preenchimento de significaccedilatildeo para assim encontrar suas distinccedilotildees ideais presentes na

significaccedilatildeo

ldquoDe fato sempre que se trata de conceitos juiacutezos raciociacutenios a Loacutegica pura tem

que ver exclusivamente com estas unidades ideais que denominamos aqui

significaccedilotildees e na medida em que nos esforccedilamos por extrair a essecircncia ideal das

significaccedilotildees dos seus viacutenculos psicoloacutegicos e gramaticais na medida em que

para aleacutem disso temos em vista clarificar as relaccedilotildees aprioriacutesticas de adequaccedilatildeo

agrave objetividade significativa fundadas nessa essecircncia estamos jaacute no domiacutenio da

Loacutegica purardquo(HUSSERL 2012p76)

Enquanto as ciecircncias se movem em direccedilatildeo agraves vaacuterias regiotildees de objetos na

tentativa de compreensatildeo da realidade do mundo Husserl compreende a orientaccedilatildeo

filosoacutefica como investigaccedilatildeo da possibilidade do conhecimento objetivo E nesse sentido

a filosofia de Husserl permanece nos limites de uma criacutetica ao conhecimento

transcendental sem que seu meacutetodo se comprometa com qualquer perspectiva ontoloacutegica

Natildeo porque negue a realidade externa mas porque a reflexatildeo fenomenoloacutegica segundo

Husserl deveria estar direcionada agrave anaacutelise das unidades significativas (Investigaccedilotildees

loacutegicas) e agrave descriccedilatildeo eideacutetica da consciecircncia (Ideacuteias) com o compromisso de esclarecer

a vivecircncia intencional de forma que assim fosse possiacutevel esclarecer as operaccedilotildees de toda

e qualquer consciecircncia inclusive nossa orientaccedilatildeo preacute-reflexiva natural

O vigor da ideia filosoacutefica de ciecircncia tal como elaborada por Husserl residia na

restriccedilatildeo da investigaccedilatildeo agrave coisa mesma A fenomenologia husserliana se restringiu agraves

39

coisas enquanto somos conscientes delas Portanto sem remeter-se ao primado da

autoconsciecircncia da filosofia moderna ela rompeu com a ideia de representaccedilatildeo e por

consequecircncia de adequaccedilatildeo Pois a consideraccedilatildeo a priori da consciecircncia de um sujeito no

modo de questionamento epistemoloacutegico moderno tradicional trazia consigo um

problema inerente a esta pressuposiccedilatildeo a saber a representaccedilatildeo dos elementos externos

pelo aparato interno do sujeito devia ser a cada vez avaliada em sua validade

epistemoloacutegica em sua adequaccedilatildeo agrave consciecircncia Esse problema derivado da

representaccedilatildeo eacute consequecircncia do modo de considerar o sujeito como outro frente ao

mundo A consequecircncia dessa cisatildeo eacute que as representaccedilotildees internas natildeo seriam

suficientes para confirmar a existecircncia do mundo exterior e incapazes de fornecer

elementos conclusivos acerca dos modos de acesso a esse mundo

Husserl aprendeu com Brentano a atitude de recusa a todo e qualquer pressuposto

Mesmo Brentano considerando as representaccedilotildees como uma das bases da atuaccedilatildeo

psiacutequica indica que ldquoa estrutura baacutesica do psiacutequico o que a toda vivecircncia seja inerente

algo objetual a denomina Brentano inexistecircncia intencional Intentio eacute uma expressatildeo

da escolaacutestica que significa dirigir-se a Brentano fala da inexistecircncia intencional do

objetordquo (HEIDEGGER 2006 p39) Nesse sentido a intencionalidade na fenomenologia

husserliana voltada agrave anaacutelise expressiva e natildeo agraves representaccedilotildees torna a questatildeo do

mundo interior ou exterior secundaacuteria O que estaacute em jogo eacute a orientaccedilatildeo da pesquisa pela

condiccedilatildeo do conhecimento que natildeo exclui o mundo e as orientaccedilotildees naturais A suspensatildeo

do mundo exterior na orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica deve-se ao fato de que nesse tipo de

investigaccedilatildeo natildeo se tem nada a dizer sobre ele E nesse sentido a fenomenologia

husserliana que oferece um novo vigor a filosofia do final do seacuteculo XIX apresenta

tambeacutem seu proacuteprio limite

ldquoEm verdade aquela ideia do conhecimento da essecircncia que deveria renovar o

campo do filosofar aquela anaacutelise descritiva do acircmbito imenso da lsquoconsciecircnciarsquo

que teria de anteceder todo conhecimento cientiacutefico e conter todos os seus

pressupostos a priori tinha um limite para aleacutem do qual nem mesmo a

fenomenologia poderia ultrapassar Mesmo um conhecimento fenomenoloacutegico

consumado de todas as essencialidades- dentre as quais tambeacutem se encontram no

campo moral o reino dos lsquovalores ndash natildeo poderia atingir a realidade efetiva do ente

efetivamente real a realidade efetiva da consciecircncia pensante tanto quanto a

realidade efetiva da experiecircncia que ela faz Por mais que a distinccedilatildeo entre o fato

e a essecircncia tenha demarcado o grande campo de pesquisa da fenomenologia ante

as ciecircncias particulares e liberado um trabalho metodologicamente

autoconsciente a factualidade do factual a facticidade a existecircncia natildeo se mostra

40

apenas como algo derradeiro tardio contingente determinado em termos de

conteuacutedo pela intelecccedilatildeo da essecircncia e abarcado segundo toda a sua determinaccedilatildeo

por ela Ao contraacuterio elas tambeacutem se mostram como algo primeiro algo que se

acha agrave base que natildeo pode ser alijado pelo pensamento que suporta por sua vez

todas as intelecccedilotildees da essecircnciardquo (GADAMER 2012p148)

A reduccedilatildeo fenomenoloacutegica natildeo visa reconduzir os fenocircmenos agrave unidade de um

elemento comum mas reconduzir a consciecircncia aos fenocircmenos que se datildeo por si mesmos

e na medida que assim o faz reconhece a existecircncia da base factual na qual o fenocircmeno

pode vir agrave consciecircncia e como um elefante na sala de estar natildeo pode mais ser ignorada

Em outras palavras a investigaccedilatildeo loacutegica o acesso agrave idealidade loacutegica de toda

significaccedilatildeo baseada - mas natildeo reduzida ndash nos atos das vivecircncias psiacutequicas concretas

aponta em uacuteltima instacircncia (mesmo na tentativa de desvio dessa situaccedilatildeo) para o caraacuteter

histoacuterico ou ocasional daquele que pode intencionar significaccedilotildees Mas Husserl natildeo havia

reconhecido esse problema ao diferenciar as expressotildees flutuantes das significaccedilotildees

ideais jaacute na primeira investigaccedilatildeo loacutegica17 O problema neste caso como aponta

Gadamer estaacute exatamente no agente do ato de pensamento pois a base que natildeo pode ser

afastada e que suporta as intelecccedilotildees da essecircncia estaacute necessariamente remetida agravequele

que na accedilatildeo do ato de intelecccedilatildeo eacute finito e histoacuterico ou seja a direccedilatildeo puramente teoacuterica

da fenomenologia de Husserl natildeo deixa de apontar a condiccedilatildeo histoacuterica daquele que pode

realizar qualquer teoria elemento que vai se tornar decisivo para a fenomenologia de

Heidegger

ldquoA doutrina do juiacutezo e de sua fundamentaccedilatildeo a anaacutelise claacutessica da percepccedilatildeo a

distinccedilatildeo loacutegica entre expressatildeo e significado mas sobretudo tambeacutem aquela

17 No sect26 da I Investigaccedilatildeo Loacutegica ldquoExpressotildees essencialmente ocasionais e expressotildees objetivasrdquo

Husserl analisa significaccedilotildees que podem variar de caso a caso ou significaccedilotildees variantes Ele diferencia as

ldquoexpressotildees essencialmente subjetivas e ocasionaisrdquo (por exemplo ldquoeu desejo sorte a vocecircrdquo ou ldquoisto [aqui

que vejo agora] eacute um catildeordquo) das ldquoexpressotildees objetivasrdquo nas quais o que estaacute em questatildeo eacute o teor sonoro

significativo sem necessidade de se ter agrave vista a pessoa que expressa ou a circunstacircncia da expressatildeo Desde

os paraacutegrafos iniciais da primeira investigaccedilatildeo Husserl se preocupa em indicar que a palavra possui ldquofunccedilatildeo

de significaccedilatildeordquo isso quer dizer que a significaccedilatildeo natildeo eacute sustentada pela palavra mas que ela remete a

significaccedilatildeo agrave coisa mesma e nesse sentido para Husserl a ocasionalidade da expressatildeo natildeo prejudica a

unidade ideal de cada uma das expressotildees Contudo o autor natildeo deixa de reconhecer a esfera das expressotildees

ocasionais referidas ao sujeito e sua especificidade como falante identificadas por determinaccedilotildees como

aqui laacute ontem amanhatilde e ainda construccedilotildees expressivas com artigos definidos Essas expressotildees trazem a

referecircncia ao proacuteprio falante e agrave sua situaccedilatildeo ldquode tal maneira que a significaccedilatildeo autecircntica da palavra se

constitui pela primeira vez com base na respectiva representaccedilatildeo desse lugar Por um lado a significaccedilatildeo

eacute sem duacutevida genericamente conceitual porquanto aqui denomina em geral um lugar enquanto tal mas

a este geral junta-se a representaccedilatildeo direta do lugar variando de caso para caso que sob dadas

circunstacircncias do discurso eacute apontada atraveacutes desta representaccedilatildeo conceitual indicativa do aqui e lhe estaacute

subordinadardquo (HUSSERL 2012 p71)

41

descriccedilatildeo incomparavelmente exata e penetrante da consciecircncia interna do tempo

na qual precisaria se construir todo sentido de duraccedilatildeo e de validade atemporal ndash

todos esses eram temas fenomenoloacutegicos de Husserl que emergiram de um

intuito fundamental puramente teoacuterico e que estavam cindidos por um hiato

ontoloacutegico do ponto de partida de Heidegger da experiecircncia pragmaacutetica da vida

da percepccedilatildeo dirigida pelo significado praacutetico do ente agrave matildeo da temporalidade

do ser-aiacute a temporalidade essa que se tomava como movimento da

existecircnciardquo(GADAMER 2012 p154)

Desse modo Heidegger busca um acesso agrave mostraccedilatildeo dos fenocircmenos a partir da

temporalidade existencial do homem e assim compreender como a significaccedilatildeo de todo

e qualquer ente estaacute remetida agrave facticidade (Faktizitaumlt) daquele ente em que algo como

um fenocircmeno pode vir ao encontro

A partir desta breve apresentaccedilatildeo vamos investigar no proacuteximo capiacutetulo (1) A

criacutetica feita por Heidegger a essas trecircs tentativas de superaccedilatildeo da crise da filosofia no

seacuteculo XIX a) a posiccedilatildeo essencialmente teoacuterica da filosofia dos valores e sua

impossibilidade de se apresentar como filosofia originaacuteria b) ao primado da consciecircncia

em Husserl c) a determinaccedilatildeo metodoloacutegica (teoacuterica) da hermenecircutica de Dilthey

Tentaremos compreender (2) como essa problemaacutetica da virada do seacuteculo XIX para o

seacuteculo XX forneceu os princiacutepios que motivaram o pensamento heideggeriano agrave busca

da filosofia como ciecircncia originaacuteria e a partir da anaacutelise dos limites das ditas teorias a

questatildeo do sentido do conhecimento se mostra articulada com outra questatildeo ainda mais

fundamental o sentido do ser e (3) como a recepccedilatildeo da fenomenologia de Husserl por

Heidegger - considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio do meacutetodo fenomenoloacutegico

como indicativo-formal - evidencia a imersatildeo de todo significado em um contexto

hermenecircutico historicamente dado

42

Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica

Mas a vida captada em sua forma irredutiacutevel jaacute sem ornato ou comentaacuterio meloacutedico vida a que aspiramos como paz no cansaccedilo (natildeo a morte) vida miacutenima essencial um iniacutecio um sono

menos que terra sem calor sem ciecircncia nem ironia o que se possa desejar de menos cruel a vida em que o ar natildeo respirado mas me envolva () Natildeo o morto nem o eterno ou o divino apenas o vivo o pequenino calado indiferente e solitaacuterio vivo Isso eu procuro (Vida Menor Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

No capiacutetulo anterior indicamos que o desenvolvimento das ciecircncias positivas

particulares no final do seacuteculo XIX emerge a discussatildeo acerca do sentido e possibilidade

do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo buscou uma filosofia

propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana a autonomia da filosofia

frente agrave ciecircncia positiva E a contribuiccedilatildeo de Dilthey cujo pensamento mesmo imerso

nas exigecircncias positivistas de seu tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda

interpretaccedilatildeo e apresenta o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico

Acreditamos que percorrendo esse caminho podemos compreender no presente capiacutetulo

como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere Heidegger no interior da referida

discussatildeo pelo sentido do conhecimento18 Mas ao mesmo tempo tentaremos mostrar

18 A inserccedilatildeo de Heidegger na discussatildeo pelo sentido do conhecimento que apontamos aqui eacute diferente da

proposta de Crowell (2001) Grosso modo o argumento central de Crowell que atravessa todo o livro eacute a

negaccedilatildeo de uma ruptura radical da abordagem hermenecircutica de Heidegger ndash inclusive no projeto da

ontologia fundamental de Ser e Tempo - frente agrave fenomenologia transcendental de Husserl Crowell

reconhece que os dois projetos natildeo satildeo idecircnticos no entanto no interior do desenvolvimento de seu

pensamento Heidegger teria dado certa continuidade ao projeto husserliano na medida em que ainda pensa

no caraacuteter cientiacutefico da filosofia fenomenoloacutegica (ver pp 129-132) Nossa intenccedilatildeo natildeo eacute travar uma

polecircmica com Crowell pois perderiacuteamos a centralidade do tema de nossa dissertaccedilatildeo Sobre aquele tema

mais especiacutefico conferir tambeacutem Gadamer Verdade e Meacutetodo [260] que faz referecircncia a ele dizendo que

a problemaacutetica de Ser e Tempo natildeo escapa por completo agrave reflexatildeo transcendental Natildeo temos duacutevida de

que Heidegger estaacute comprometido com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do sentido do

conhecimento na medida em que teve profundo contato natildeo soacute com o pensamento neokantiano ndash sobretudo

atraveacutes de Rickert - mas tambeacutem com a fenomenologia de Husserl Ora ambas as correntes estavam

43

como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva (considerando o modo de concepccedilatildeo

originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal) e a introduccedilatildeo do elemento

hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com Heidegger a pergunta

fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do conhecimento e passou a

ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto o argumento central de

nosso segundo capiacutetulo eacute que a abordagem hermenecircutica de Heidegger que se daacute no

interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do

conhecimento ao sentido do ser

Aqui nos eacute necessaacuteria uma breve consideraccedilatildeo Eacute puacuteblica a preocupaccedilatildeo filosoacutefica

de Heidegger com a ontologia jaacute desde seu contato com o livro de Brentano Percurso

descrito pelo proacuteprio autor em Meu caminho para a fenomenologia (Mein Weg in die

Phaumlnomenologie 1963)

ldquoA partir de algumas indicaccedilotildees extraiacutedas de revistas filosoacuteficas tinha averiguado

que o modo de pensar de Husserl fora bastante influenciado por Franz Brentano

cuja tese de doutoramento intitulada Da muacuteltipla significaccedilatildeo do ente em

Aristoacuteteles (1862) tinha sido justamente desde 1907 o guia e o criteacuterio das

minhas primeiras e desajeitadas tentativas de penetrar na filosofia De uma forma

bastante imprecisa o que me movia era a seguinte reflexatildeo lsquose o ente se diz com

significados muacuteltiplos qual seraacute entatildeo o significado fundamental e condutor O

que significa serrsquordquo (HEIDEGGER 2009 p3)

Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido

de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a

teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo

do sentido de ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir

da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para

uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no

curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER (GA20) 2006 p122)19

o elemento hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave

profundamente engajadas com o problema do conhecimento Nosso argumento central ndash defendido no

primeiro capiacutetulo ndash eacute o de que acontece uma virada A abordagem hermenecircutica de Heidegger faz mudar

a questatildeo pelo sentido do conhecimento para a questatildeo do sentido do ser dos entes em geral Revelando

assim o caraacuteter derivado (de uma situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento Cf STEIN E

2008 4ed pp21-30 19 ldquoLa pregunta por el ser surge de la criacutetica inmanente al curso da la propia investigacioacuten

fenomenoloacutegicaresponder en parte a ella constituye el verdadeiro assunto de estas leccionesrdquo opcit p122

44

fenomenologia que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos

fenocircmenos em seu ser Seraacute essa a direccedilatildeo de nosso capiacutetulo

Nele ainda natildeo entraremos na obra central de nosso trabalho abordaremos algumas

preleccedilotildees entre os anos de 1919 e 192520 para expor como a partir da discussatildeo acerca

do sentido do conhecimento e do lugar proacuteprio agrave filosofia Heidegger se posiciona frente

agraves tentativas de pensamento dos Neokantianos de Dilthey e de Husserl Nossa intenccedilatildeo

natildeo eacute interpretar as referidas preleccedilotildees como processos evolutivos de pensamento de

nosso autor como que para esclarecer em termos de causa e efeito a publicaccedilatildeo posterior

ldquomais madurardquo de Ser e Tempo Mas antes destacar como as questotildees desses textos

acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a problemaacutetica cujo

desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927

I - Os limites da filosofia dos valores

No primeiro semestre do poacutes-guerra num contexto de recuperaccedilatildeo da

normalidade da vida cotidiana que obviamente se estendia ao ensino universitaacuterio ocorre

a preleccedilatildeo A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo (GA5657) tiacutetulo

uma das primeiras liccedilotildees do jovem professor em Friburgo em 1919 as quais pretendiam

desenvolver e solucionar parcialmente a ideia de ciecircncia que persegue uma posiccedilatildeo

metodoloacutegica genuiacutena natildeo desfigurada ou seja natildeo afetada por nenhuma teoria e livre

dos prejuiacutezos herdados Para tanto exigia-se voltar agrave esfera da simples consciecircncia

imediata da vida

ldquoA ideia cientiacutefica perseguida eacute tal que uma vez alcanccedilada uma posiccedilatildeo

metodoloacutegica verdadeiramente genuiacutena somos forccedilados a sair e dar um passo

aleacutem de noacutes mesmos para voltar metodologicamente naquela esfera que sempre

permanece alheia a problemaacutetica da ciecircncia que se pretende fundarrdquo21

(HEIDEGGER (GA5657) 2005p 3)

20 HEIDEGGER GA17 GA 61 GA63 GA 5657 e GA62 As traduccedilotildees utilizadas encontram-se na

bibliografia ao final do trabalho 21 ldquoLa idea cientiacutefica que se persigue es de tal naturaleza que una vez alcanzamos una posicioacuten

metodoloacutegica realmente genuina nos vemos obligados a salir y dar un paso maacutes allaacute de nosotros mismos

para volver metodoloacutegicamente sobre aquella esfera que siempre permanece extrantildea a la problemaacutetica maacutes

propia de la ciencia que se pretende fundarrdquo Opcitp3

45

Essa transformaccedilatildeo do meacutetodo natildeo eacute algo arbitraacuterio ou advindo de uma posiccedilatildeo

filosoacutefica mas ldquose evidencia como uma necessidade que se funda na natureza objetiva do

problema como tal e que responde agrave especiacutefica constituiccedilatildeo dos problemas da ciecircncia em

geralrdquo22 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p3) A ciecircncia e seus modelos teoacutericos

irrompem na consciecircncia imediata da vida e a transformam na medida em que trazem

uma nova atitude da consciecircncia a qual se desenvolve no caraacuteter dinacircmico e moacutevel da

vida do espiacuterito ldquoContudo essa irrupccedilatildeo da ideia de ciecircncia no contexto da consciecircncia

natural da vida soacute se daacute em um sentido primordial e radical no marco de uma filosofia

entendida nos termos de ciecircncia originaacuteriardquo23 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p4)

Aqui eacute possiacutevel observar natildeo apenas o mesmo vocabulaacuterio husserliano mas

tambeacutem a mesma tarefa reconduzir a filosofia ao seu lugar de ciecircncia originaacuteria

diferenciando-se dos outros tipos de ciecircncias (biologia fiacutesica psicologia histoacuteria

antropologia etc) Como indica Jeacutesus Adriaacuten Escudero em sua nota de apresentaccedilatildeo agrave

traduccedilatildeo no texto de 1919 eacute possiacutevel observar a linguagem filosoacutefica dos Neokantianos

de Baden (Windelband e Rickert) de Natorp a linguagem fenomenoloacutegica de Husserl e

talvez as primeiras formulaccedilotildees de uma linguagem proacutepria por exemplo Welten

(mundiar) ou das Wie (O como) Mas para noacutes o decisivo eacute notar que se os princiacutepios

que motivam essa investigaccedilatildeo inserem Heidegger no debate de sua eacutepoca (no contexto

da busca de uma filosofia propriamente cientiacutefica) poreacutem no curso de seu pensamento e

na anaacutelise das posiccedilotildees filosoacuteficas que intentam o mesmo objetivo a abordagem da

filosofia como ciecircncia originaacuteria recoloca a problemaacutetica no aspecto propriamente

hermenecircutico e natildeo teoacuterico da vida Se a filosofia eacute ciecircncia originaacuteria eacute a partir desse

aspecto primaacuterio que ela deve se movimentar

Em A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo o modo de

reconduccedilatildeo a essa originariedade jaacute natildeo obedeceraacute aos mesmos moldes da fenomenologia

husserliana Jaacute nessa primeira liccedilatildeo Heidegger nos propotildee uma reconduccedilatildeo da filosofia

(ao seu lugar basilar de toda e qualquer ciecircncia teoacuterica e derivada) que eacute a reconduccedilatildeo agrave

22 ldquomaacutes bien se evidenciaraacute como una necesidad que se funda en la naturaleza objetiva del problema como

tal y que responde a la especiacutefica constitucioacuten de los problemas de la ciencia en generalrdquo Op cit p3 23 ldquoSin embargo esta irrupcioacuten de la idea de ciencia en el contexto de la conciencia natural de la vida soacutelo

se da en un sentido primordial y radical en el marco de una filosofiacutea entendida en teacuterminos de ciencia

originariardquo Opcitp4

46

vida humana na sua imediatidade como fenocircmeno primaacuterio e fundamental Mesmo que

natildeo estejam aiacute desenvolvidas eacute claro as posiccedilotildees de Ser e Tempo como por exemplo o

ldquoser-em-o mundo em geral como constituiccedilatildeo fundamental do Daseinrdquo teses expostas e

desenvolvidas principalmente nos sect12 e 13 da obra de 1927 jaacute era possiacutevel encontrar

alguns elementos da hermenecircutica da facticidade Em 1919 a direccedilatildeo dada a uma filosofia

era a de que devia ocupar-se da vida e assim a proacutepria renovaccedilatildeo da universidade naquele

contexto de reconstruccedilatildeo do poacutes-guerra ldquoimplica[va] um renascimento da autecircntica

consciecircncia cientiacutefica e de seus laccedilos com a vidardquo24 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p

5) Indicaccedilatildeo que se articula com as liccedilotildees posteriores do autor mas que ganha seu

esclarecimento radical em 1923 no Relatoacuterio Natorp na medida em que a apropriaccedilatildeo da

filosofia aristoteacutelica por Heidegger mostra que a vivecircncia e sua relaccedilatildeo de sentido com

todo ente ocorre na ocupaccedilatildeo praacutetica como condiccedilatildeo primaacuteria de conhecimento com o

mundo condiccedilatildeo essa que coincide com a situaccedilatildeo hermenecircutica de toda ontologia

Antes de expormos as linhas gerais do desenvolvimento do texto eacute necessaacuterio

tentar esclarecer o que Heidegger quer dizer com a expressatildeo ldquoconcepccedilatildeo de mundordquo

(Weltanschauung) Para a filosofia segundo nosso autor visatildeo de mundo cosmovisatildeo

ou concepccedilatildeo de mundo natildeo satildeo termos que funcionam como uma direccedilatildeo de

comportamento no interior do mundo direccedilatildeo essa justificada desenvolvida e capaz de

orientar os seres humanos Tambeacutem natildeo oferecem uma visatildeo teoacuterica geral da histoacuteria e

da realidade a partir da qual as ciecircncias pudessem desenvolver-se Assumindo uma

perspectiva bem geral esses satildeo os problemas das filosofias de Windelband e Rickert (e

em certa medida tambeacutem os de Dilthey) contra os quais Heidegger vai se opor nessa

liccedilatildeo Pois o que aiacute estaacute em jogo natildeo eacute a postulaccedilatildeo teoacuterica do que eacute a vida histoacuterica mas

a compreensatildeo do acircmbito fundamental da realidade imediata da vida que proporciona

algo como ldquovisatildeo de mundordquo E desse modo a relaccedilatildeo entre ldquofilosofiardquo e o ldquoproblema

da concepccedilatildeo de mundordquo na conjunccedilatildeo expressa ldquoerdquo natildeo significa a relaccedilatildeo de duas

esferas diferentes mas sim o mesmo acircmbito pois a concepccedilatildeo de mundo potildee em

evidecircncia a natureza e a busca da filosofia ldquoconcepccedilatildeo de mundo como tarefa da

24 ldquoLa renovacioacuten de la universidad implica un renacimiento de la auteacutentica conciencia cientiacutefica y de sus

lazos con la vidardquo Opcitp5

47

filosofia quer dizer uma consideraccedilatildeo histoacuterica da maneira em que a filosofia resolveu

em cada caso esta tarefardquo25 (HEIDEGGER (GA5657) 2005p9)

Como sugere a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Heidegger considera que a

fundamentaccedilatildeo sem preconceitos da filosofia como ciecircncia originaacuteria deve desenvolver-

se a partir de um processo metodoloacutegico ldquoA ideia de ciecircncia exige implicitamente um

desenvolvimento metodoloacutegico dos problemas e nos coloca a tarefa da explicaccedilatildeo

preliminar do verdadeiro problema [que nos ocupa]26rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005

p6) Essa explicaccedilatildeo se desenvolve natildeo como hipoacutetese a ser demonstrada mas a partir

da anaacutelise das filosofias precedentes e de suas preconcepccedilotildees que podem distorcer o tema

da investigaccedilatildeo como elas se aproximaram da vida e como se relacionam com a noccedilatildeo

de ciecircncia

Como mostramos anteriormente jaacute na escola de Baden influenciado pela filosofia

dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade dos juiacutezos

cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de conciliar

ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) Para a escola de Baden as

leis naturais levam agrave explicaccedilatildeo mas eacute a norma de um valor ideal a condiccedilatildeo de um

pensamento verdadeiro Rickert retoma as consideraccedilotildees de Windelband e potildee o

problema em uma base filosoacutefica radical como instrumento metodoloacutegico Entre os sectsect

de 6 e 9 do texto A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo jaacute esboccedilando

algumas consequecircncias problemaacuteticas Heidegger expotildee os elementos principais das

teorias desses autores E se pergunta se aquele meacutetodo que tem a pretensatildeo de clarificar

a relaccedilatildeo entre filosofia e visatildeo de mundo poderia se tornar um meacutetodo seguro para a

realizaccedilatildeo da filosofia como ciecircncia originaacuteria A partir do sect 10 Heidegger inicia a criacutetica

propriamente dita ao meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico do Neokantismo de Baden Um dos alvos

de sua investigaccedilatildeo foi como a ldquodoaccedilatildeo idealrdquo elemento central do meacutetodo na medida

em que eacute o conteuacutedo com pretensatildeo de necessidade e universalidade dos juiacutezos acaba por

revelar o desconhecimento da problemaacutetica acerca da ciecircncia originaacuteria por essa escola

Para tanto Heidegger faz ldquoa pergunta decisiva quais satildeo as formas e normas necessaacuterias

25 ldquoConcepcioacuten del mundo como tarea de la filosofiacutea es decir una consideracioacuten histoacuterica de la manera en

que la filosofiacutea ha resuelto en cada caso esta tareardquo Opcitp9 26 ldquoLa idea de ciencia exige impliacutecitamente un desarrollo metodoloacutegico de los problemas y nos plantea la

tarea de una explicacioacuten preliminar del verdadero problema [que nos ocupa]rdquo Opcit p6

48

que permitem ao pensamento alcanccedilar a validez universal e assim cumprir o propoacutesito

da verdade27rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p50)

A anaacutelise eacute feita em dois momentos a) Consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo b)

aplicaccedilatildeo do meacutetodo

Para a consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo o importante eacute delinear o aspecto

fundamental que sustenta seus paracircmetros Heidegger aponta que para a escola de Baden

as determinaccedilotildees necessaacuterias do pensamento satildeo aquelas que configuram o pensamento

agrave finalidade ideal (validez universal) como condiccedilatildeo de verdade pois o pensamento com

valor deve responder a um dever-ser Pois bem de posse desse elemento basilar eacute na

aplicaccedilatildeo do meacutetodo que se revelaratildeo os problemas

A aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico consiste em a partir do material

fornecido pelos processos psiacutequicos dirigir a visatildeo ao aspecto ideal do pensamento e a

partir daiacute determinando o proacuteprio material ordenando seus elementos em funccedilatildeo de seu

aspecto ideal Portanto ldquoO nuacutecleo de todo o meacutetodo baseia-se no ideal do pensamento

mais precisamente em trazer agrave presenccedila a doaccedilatildeo do ideal28rdquo (HEIDEGGER (GA5657)

2005 p51) Em suma o ideal eacute normativo e dirige a consciecircncia agrave finalidade do

pensamento

ldquoEstamos aqui perante o mesmo problema da circularidade O meacutetodo criacutetico-

teleoloacutegico afirmaria poder determinar o ideal do pensamento isto eacute a verdade

a partir dos pensamentos verdadeiros no entanto o que tenho ante mim satildeo

pensamentos verdadeiros (ocorrecircncias factuais no mundo) mas natildeo a verdade

pois esta eacute um ideal Por outro lado para ter pensamentos verdadeiros ante mim

eu preciso selecionar entre os pensamentos aqueles que satildeo verdadeiros o que

novamente eu soacute posso fazer se jaacute tenho de antematildeo o ideal a verdaderdquo

(RABELO 2013 p28)

A partir daiacute em seu estilo muitas vezes categoacuterico Heidegger demonstra ser

supeacuterfluo o sentido do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e o acusa de em uacuteltima instacircncia nem

mesmo conseguir esclarecer seus pressupostos deixando obscuras questotildees como ldquoa

doaccedilatildeo ideal possibilita uma relaccedilatildeo de apreciaccedilatildeo e de seleccedilatildeo com o material dado mas

27 ldquoAhora surge la pregunta decisiva iquestcuaacuteles son las formas y normas necesarias que permiten al

pensamiento alcanzar la validez universal y cumplir asiacute con el fin de la verdadrdquo Opcitp50

28 ldquoEl nuacutecleo de todo el meacutetodo descansa en el ideal del pensamiento con mayor precisioacuten en traer a la

presencia la donacioacuten del idealrdquo Opcitp51

49

como trago agrave minha consciecircncia o ideal de pensamentordquo ldquoo que significa validez

universal para esse pensamentordquo ldquoO que significa ser verdadeiro para o pensamento

para que ele seja universalmente vaacutelidordquo Nas palavras de nosso autor

ldquoA anaacutelise estrutural do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico mostra que este meacutetodo

pressupotildee em seu sentido mais proacuteprio e como condiccedilatildeo de sua proacutepria

possibilidade justamente aquilo que deve alcanccedilar Natildeo pode encontrar em si

mesmo seu proacuteprio fundamento posto que o ideal jaacute tem que estar dado como

criteacuterio de valoraccedilatildeo criacutetica da norma para levar a cabo a tarefa impliacutecita no

meacutetodordquo29 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p52)

Se a anaacutelise da natureza e aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico fizeram

despontar a primeira criacutetica acerca de sua impossibilidade Heidegger aprofunda sua

criacutetica tendo em vista o aspecto central de sua liccedilatildeo E portanto aponta o

desconhecimento acerca da problemaacutetica da ciecircncia originaacuteria por essa escola

ldquoJaacute vimos que o movimento do meacutetodo mais exatamente a implementaccedilatildeo do

mesmo inclui o ter presente o ideal o fim o dever-ser O ideal tem

evidentemente um conteuacutedo umas determinaccedilotildees substantivas Contudo eacute um

ideal natildeo eacute um conteuacutedo real e efetivo senatildeo um modo de dever-ser Frente a

todo ser o caraacuteter de obrigatoriedade [inerente ao dever-ser] encerra o momento

da idealidade e da validez supra-empiacuterica Assim pois o conceito do meacutetodo

teleoloacutegico pressupotildee algo mais essencial e algo essencialmente diferente a

doaccedilatildeo do dever ser e se tratando do dever absoluto entatildeo falariacuteamos da

objetividade originaacuteriardquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p53)30

A partir da constataccedilatildeo dessas implicaccedilotildees do meacutetodo Heidegger pergunta qual

eacute o correlato objetivo do dever-ser Em outras palavras qual sua orientaccedilatildeo vital Isso

permanece obscuro e mais ainda que a inclusatildeo do elemento do dever-ser no meacutetodo

aparentemente natildeo se mostre como um vieacutes meramente teoacuterico (na medida em que se

29 ldquoEl anaacutelisis estructural del meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico muestra que este meacutetodo presupone en su sentido

maacutes propio y como condicioacuten de su propia posibilidad justamente aquello que debe conseguir No puede

encontrar en siacute mismo su propio fundamento puesto que el ideal ya tiene que estar dado como criterio de

valoracioacuten criacutetica de la norma para llevar a cabo la tarea impliacutecita en el meacutetodordquo Opcitp52 30 ldquoYa vimos que la puesta en marcha del meacutetodo maacutes exactamente la implementacioacuten del mismo incluye

el tener presente el ideal el fin el deber-ser El ideal tiene evidentemente un contenido unas

determinaciones sustantivas Sin embargo es un ideal no es un contenido real y efectivo sino un modo del

deber- ser Frente a todo ser el caraacutecter de obligatoriedad [inherente al deber-ser] encierra el momento de

la idealidad y de la validez supraempiacuterica Asiacute pues en el concepto del meacutetodo teleoloacutegico se presupone

algo esencialmente maacutes y algo esencialmente diferente la donacioacuten del deber-ser y si se tratara del deber

absoluto entonces hablariacuteamos de la objetualidad originariardquo Opcitp53

50

trata da razatildeo praacutetica) natildeo eacute possiacutevel responder agrave demanda necessaacuteria de uma ciecircncia

originaacuteria pois eacute inconciliaacutevel com a urgecircncia da vida faacutetica

Nesse sentido nos parece que na filosofia criacutetica-transcendental de Rickert o

acesso aos elementos decisivos do meacutetodo em uacuteltima instacircncia eacute realizado a partir das

teorias das ciecircncias positivas Entatildeo a filosofia estaacute obrigada a se posicionar frente agraves

teorias dessas ciecircncias e natildeo propriamente a partir da orientaccedilatildeo vital O

desconhecimento acerca da filosofia como ciecircncia originaacuteria se torna aqui patente pois

ao se revelar que satildeo as teorias dessas ciecircncias que fornecem os elementos para os juiacutezos

valorativos relacionados ao dever-ser a filosofia se torna delas dependente e parece nelas

encontrar ateacute mesmo sua condiccedilatildeo de possibilidade

Heidegger ainda aponta em sua criacutetica um problema que decorre da tentativa de

estabelecer uma relaccedilatildeo entre valor judicativo e dever-ser Para ele na vivecircncia imediata

da vida as relaccedilotildees valorativas natildeo encontram a menor correspondecircncia com o dever-ser

Ouccedilamos as suas palavras

ldquoPela manhatilde entro em meu estuacutedio o sol banha meus livros etc estou alegre

Esta alegria natildeo responde em nenhum caso a um dever-ser A lsquoalegriarsquo como tal

natildeo se oferece a mim em uma vivecircncia marcada pelo dever-ser Devo trabalhar

devo sair para uma caminhada duas motivaccedilotildees duas possiacuteveis razotildees que em

si mesmas natildeo formam parte de meu sentimento de alegria senatildeo que o

pressupotildee Existe portanto um tipo de vivecircncia em que me sinto alegre em que

me daacute algo que tem valor como talrdquo 31(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)

A experiecircncia do valor eacute intransitiva natildeo um juiacutezo mas em seu sentido imanente

ldquoo meacutetodo teleoloacutegico implica indubitavelmente o momento da vivecircncia do dever-serrdquo

(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)32

Ateacute agora o que foi analisado foi o significado do meacutetodo criacutetico- teleoloacutegico e

suas implicaccedilotildees que apontaram para a existecircncia de fenocircmenos mais originaacuterios que

passam desapercebidos aos defensores desse meacutetodo E se o meacutetodo loacutegico-teleoloacutegico

31 ldquoiquestPero se me da todo valor como un deber-ser Evidentemente no Yo experimento las relaciones

valorati- vas sin que intervenga el maacutes miacutenimo momento del deber-ser Por la mantildeana entro en mi estudio

el sol bantildea mis libros etceacutetera estoy alegre Esta alegriacutea no responde en ninguacuten caso a un deber-ser La

laquoalegriacutearaquo como tal no se me da en una vivencia marcada por el deber- ser Debo trabajar debo salir de

paseo dos motivaciones dos posibles razones que en siacute mismas no forman parte de mi sentimiento de

alegriacutea sino que lo pre-supo- nen Existe por tanto un tipo de vivencia en el que me siento alegre en el

que se me da algo que tiene valor como talrdquo Opcitp55 32 ldquoEl meacutetodo teleoloacutegico implica indudablemente el momento de la vivencia del deber-serrdquo Opcitp55

51

estabelece a relaccedilatildeo necessaacuteria entre valor e dever-ser acarretando todas as possiacuteveis

criacuteticas jaacute expostas Heidegger natildeo deixa de reconhecer

ldquoUma coisa eacute evidente Rickert detectou um fenocircmeno significativo quando

identificou o objeto do conhecimento como um dever-ser e o desvencilhou dos

mecanismos psiacutequicos o fenocircmeno da motivaccedilatildeo um fenocircmeno que encontra

seu significado primaacuterio tanto nos problemas do conhecimento como em outros

acircmbitos Uma coisa eacute declarar-algo-como-valor [Fuumlr-Wert-Erklaumlren] e outra

muito distinta eacute tomar-algo-por-um-valor [Wertnehmen] Este tomar-algo-como-

um-valor se pode caracterizar como um fenocircmeno originaacuterio como uma

constituiccedilatildeo da vida em si e para si no entanto o declarar-algo-como-um valor

foi visto como algo derivado algo fundado na esfera teoreacutetica e esse mesmo

fenocircmeno teoreacutetico eacute um elemento constitutivo da vida vivida em si mesma

Pressupotildee levantar o veacuteu teoreacutetico do caraacuteter valorativo como tal A estratificaccedilatildeo

precisa desse fenocircmeno natildeo nos interessa nesse momentordquo

(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p57)33

O que estaacute em jogo aqui eacute a relaccedilatildeo entre verdade e valor pois para Rickert

ldquodistinto do processo psiacutequico real uma ocorrecircncia natural que poderia ser tratada

causalmente destaca-se a legalidade ideal do pensar verdadeiro que se deve obedecer

uma vez que se queira o ideal da verdaderdquo (RABELO 2013 p26) Desse modo algo eacute

capaz de ser analisado como verdadeiro atraveacutes dos valores atribuiacutedos teoricamente

(atraveacutes da anaacutelise do juiacutezo) ao seu material Ou seja a verdade eacute garantida na anaacutelise

judicativa que declara-algo-como-valor Por exemplo a distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na

realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor (Wert) segundo Rickert levaria

a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo de conceitos (Begriffsbildung)

e que natildeo se trata de um conhecimento no campo ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto

pelo conceito determinado de maneira formal no espaccedilo loacutegico-axioloacutegico Portanto

ldquoUma coisa eacute ldquoexplicar por valorrdquo (fuumlr-Wert-erklaumlren) outra eacute ldquotomar-por-valorrdquo

(wertnehmen) O primeiro eacute uma construccedilatildeo teoreacutetica o segundo uma vivecircncia

Estaacute em jogo aqui uma diferenccedila que se insinua na liacutengua alematilde a partir da

33 ldquoRickert detectoacute un fenoacutemeno significativo cuando identificoacute el objeto del conocimiento como un deber-

ser y lo deslindoacute de los mecanismos psiacutequicos el fenoacutemeno de la motivacioacuten un fenoacutemeno que encuentra

su significado primario tanto en el problema del conocimiento como en otros aacutembitos Una cosa es declarar-

algo-como-un-valor [Fuumlr-Wert- Erklaumlren] y otra muy distinta tomar-algo-por-un-valor [Wertnehmen]

Este tomar-algo-por-un-valor se puede caracterizar como un fenoacutemeno originario como una constitucioacuten

de la vida en y para siacute en cambio el decla- rar-algo-como-un-valor se ha de ver como algo derivado como

algo fundado en la esfera teoreacutetica9 y ese mismo fenoacutemeno teoreacutetico es un elemento constitutivo de la vida

vivida en siacute misma Presupone levantar el velo teoreacutetico del caraacutecter valorativo como tal La estratificacioacuten

precisa de este fenoacutemeno no nos interesa en estos momentosrdquo Opcitp57 Essa estratificaccedilatildeo a qual

Heidegger se refere jaacute indica em suas primeiras liccedilotildees o desdobramento posterior acerca da criacutetica agrave

primazia que a filosofia oferece a teoria em detrimento da compreensatildeo praacutetica

52

expressatildeo perceber wahrnehmen literalmente tomar-por-verdadeiro No mesmo

sentido imediato em que aquilo que me aparece na percepccedilatildeo sensiacutevel eacute tomado

como estando aiacute ele mesmo sem a necessidade de uma reflexatildeo aqui quer-se

saber se algo vivenciado eacute no proacuteprio vivenciar tomado como algo valoroso se

eacute experienciado enquanto valoroso ou se posteriormente lhe eacute adicionada esta

referecircncia a valoresrdquo (RABELO 2013 p27)

Desse modo para Rickert verdade e valor judicativo (teoacuterico) se comungam mas

essa comunhatildeo para Heidegger natildeo passa de uma constituiccedilatildeo metodoloacutegica externa e

derivada de uma filosofia teoacuterica Se para Rickert o tomar-algo-como-um-valor natildeo tem

ldquovalor de verdaderdquo como o declarar-algo-como-valor Para Heidegger a verdade do ser

(ser ndashverdadeiro) ou o ldquotomar-por-verdadeirordquo (a vivecircncia) independe do valor e nada

tem a ver com o dever-ser

ldquoDaacute-se o ser-verdadeiro como um valor De maneira alguma e nem se daacute no

segundo caso do juiacutezo histoacuterico [acerca da morte de Napoleatildeo I na ilha de Santa

Elena] Contudo o conteuacutedo objetivo desse juiacutezo tem a forma de um valor no

sentido de [que remete a algo] lsquohistoricamente significativorsquo um novo fenocircmeno

lsquovalorativorsquo que natildeo afeta o ser-verdadeiro como tal ao lanccedilar um papel

metodoloacutegico na constituiccedilatildeo da verdade histoacuterica O ser-verdadeiro (ἀ-λήθεια)

como tal natildeo lsquovalersquo Na alegria como alegria assumo valores na verdade

simplesmente vivo Natildeo apreendo o ser-verdadeiro na e atraveacutes de uma assunccedilatildeo

de valores34rdquo (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p58)

Essas uacuteltimas consideraccedilotildees revelam para Heidegger que o meacutetodo teleoloacutegico

estaacute impregnado de pressuposiccedilotildees pois a cada vez ldquoos fenocircmenos do dever-ser do valor

da assunccedilatildeo de um valor da pergunta se a verdade eacute um valor que descansa em uma

valoraccedilatildeo originaacuteria se fundam em uma determinaccedilatildeo valorativa que se realiza

subsequentementerdquo35 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p62) E essas pressuposiccedilotildees

trazem agrave vista o privileacutegio teoreacutetico dessa filosofia

34 ldquoiquestSe da el ser-verdadero como un valor De ninguna manera y tampoco se da en el segundo caso del

juicio histoacuterico [acerca de la muerte de Napoleoacuten I en la isla de Santa Elena] Sin embargo el contenido

objetivo de este juicio tiene la forma de un valor en el sentido de [que remite a algo] laquohistoacutericamente

significativoraquo un nuevo fenoacutemeno laquovalorativoraquo que no afecta al ser-verdadero como tal si bien juega un

papel metodoloacutegico en la constitucioacuten de la verdad histoacuterica El ser-verdadero (ἀ-λήθεια) como tal no

laquovaleraquo En la alegriacutea como alegriacutea asumo valores en la verdad como verdad simplemente vivo No

aprehendo el ser-verdadero en y a traveacutes de una asuncioacuten de valoresrdquo Opcitp58

35 ldquoAl ampliar el anaacutelisis salieron a escena nuevos presupuestos y pusieron de relieve que el meacutetodo

teleoloacutegico estaacute cargado de presuposiciones los fenoacutemenos del deber-ser de la donacioacuten del deber-ser del

valor de la asuncioacuten de un valor de la pregunta de si la verdad es un valor que descansa en uma valoracioacuten

originaria o de si se funda en una determinacioacuten valorativa que se realiza con lsquoposterioridadrsquordquo Opcitp62

53

ldquoO privileacutegio outorgado ao teoreacutetico repousa na convicccedilatildeo de que o teoreacutetico

representa o estrato baacutesico e fundamental que de alguma maneira funda todas as

esferas restantes Isso se potildee manifesto quando eacute falado por exemplo da

lsquoverdadersquo eacutetica artiacutestica ou religiosa Se diz que o teoreacutetico tem todos os demais

acircmbitos valorativos e eacute capaz de fazer isso na medida em que o teoreacutetico mesmo

se concebe como um valor Eacute necessaacuterio romper este primado do teoacuterico mas natildeo

com a finalidade de proclamar a primazia da praacutetica ou introduzir um outro

elemento que mostra os problemas a partir de uma nova perspectiva mas porque

o teoreacutetico mesmo enquanto tal remete a algo preacute -teoreacuteticordquo 36(HEIDEGGER

(GA5657) 2005 p70)

Para os neokantianos de Baden o ideal absoluto como medida da realidade

empiacuterica como condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do pensamento verdadeiro e ainda como

condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do significado histoacuterico reveste-se da transcendentalidade em

funccedilatildeo do rigor cientiacutefico Para eles o mundo do ser natildeo pode ser confundido com o

mundo do valor pois satildeo os valores como elementos transcendentais que orientam a

constituiccedilatildeo do indiviacuteduo histoacuterico de modo loacutegico A realidade - o espaccedilo ontoloacutegico ndash

estaacute condicionada agrave teoria e em uacuteltima instacircncia o proacuteprio teoreacutetico eacute concebido como

valor Inversatildeo que Heidegger detecta como propriamente afastada do acircmbito imediato

da vida e que como meacutetodo portanto natildeo pode fundar-se como ciecircncia originaacuteria

II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt37 originaacuterio

Diferentemente de Windelband e Rickert que subordinavam a verdade agrave

valoraccedilatildeo em funccedilatildeo do juiacutezo jaacute em 1919 Heidegger indicava a derivaccedilatildeo do teoreacutetico

de uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Apoacutes a investigaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-

36 ldquoAsimismo el privilegio otorgado a lo teoreacutetico reposa en la conviccioacuten de que lo teoreacutetico representa el

estrato baacutesico y fundamental que de alguna manera funda todas las esferas restantes Esto se pone de

manifiesto cuando uno habla por ejemplo de la laquoverdadraquo eacutetica artiacutestica o religiosa Se dice que lo teoreacutetico

tintildee todos los demaacutes aacutembitos valorativos y es capaz de hacer eso en la medida en que lo teoreacutetico mismo

se concibe como un valor Se ha de romper con esta primaciacutea de lo teoreacutetico pero no con el propoacutesito de

proclamar un primado de lo praacutectico o de introducir otro elemento que muestre los problemas desde una

nueva perspectiva sino porque lo teoreacutetico mismo y en cuanto tal remite a algo pre-teoreacuteticordquo Opcitp70

37 Como o verbo ldquodarrdquo em portuguecircs o ldquogebenrdquo em alematildeo pode ser utilizado como verbo bitransitivo no

sentido de dar algo a algueacutem (Ex ldquoIch gebe dir mein Buchrdquo ldquoEu te dou o meu livrordquo) Mas no caso do ldquoes

gibtrdquo eacute utilizado no sentido do verbo ldquohaverrdquo ou ldquoexistirrdquo como por exemplo ldquoEs gibt viele Woumlrter ldquoHaacute

muitas palavrasrdquo ou ldquoExistem muitas palavras) Portanto pensar num ldquoes gibtrdquo originaacuterio eacute referir-se agrave

existecircncia originaacuteria das coisas em outras palavras no modo de aparecimento do que haacute do existente em

seu sentido primaacuterio preacutevio a toda determinaccedilatildeo transitiva possiacutevel nos moldes gramaticais

54

teleoloacutegico em A ideacuteia da filosofia e o problema da visatildeo de mundo o autor apresenta

essa instacircncia primaacuteria como correlata a um ldquoes gibtrdquo originaacuterio haacute e o que haacute eacute mundo

ou melhor um dar-se mundo

Aqui reside a primeira exposiccedilatildeo de nosso argumento A abordagem hermenecircutica

de Heidegger no interior da fenomenologia foi decisiva para o acesso agrave questatildeo do sentido

do ser e no desenvolvimento da referida preleccedilatildeo esse movimento se torna patente

A criacutetica de Heidegger agrave teoria do conhecimento e agraves implicaccedilotildees dessa postura

propriamente teoacuterica em relaccedilatildeo agrave verdade conduz o autor agrave correlaccedilatildeo entre as vivecircncias

e a significaccedilatildeo fenomecircnica como cooriginaacuterias da imersatildeo num mundo que haacute se daacute

existe como mundo circundante As pressuposiccedilotildees da teoria do conhecimento e suas

postulaccedilotildees acerca do ldquosujeitordquo reverberam em uma seacuterie de problemas derivados que

nada dizem acerca das vivecircncias Assim questotildees Como eacute possiacutevel o acesso agrave realidade

exterior Em que medida minha vivecircncia subjetiva alcanccedila a vivecircncia de outro

sujeito Como passar da esfera subjetiva aos dados sensoriais do mundo Como

passar da esfera subjetiva ao conhecimento objetivo satildeo problematizaccedilotildees derivadas

da primazia teoacuterica dada pela filosofia e pelas ciecircncias que ignoram por completo que o

viver do mundo circundante natildeo eacute uma contingecircncia () somente em ocasiotildees

excepcionais estamos instalados em uma atitude teoreacutetica38 (HEIDEGGER(GA5657)

2005 p106)

Lembremos que o que estaacute em questatildeo nessa preleccedilatildeo eacute em que medida a filosofia

pode ser considerada como ciecircncia originaacuteria e qual eacute o seu modo de relaccedilatildeo com a visatildeo

de mundo Nesse sentido a filosofia se mostra como aquela ciecircncia que deve se afastar de

qualquer posiccedilatildeo preacutevia e assim dizer que o viver do mundo circundante natildeo eacute uma

contingecircncia eacute reconhecer aquilo que todo posicionamento teoacuterico quer a cada vez

afastar mas eacute em uacuteltima medida a condiccedilatildeo de possibilidade de sua proacutepria realizaccedilatildeo

teoacuterica Com outras palavras a possibilidade do conhecimento estaacute imersa em bases que

natildeo satildeo elas proacuteprias teoacutericas E nesse sentido quando uma ou outra teoria filosoacutefica

pretende investigar a possibilidade do conhecimento partindo de pressuposiccedilotildees teoacutericas

38 ldquoEl vivir del mundo circundante no es una contingencia sino que radica en la esencia de la vida en y para

siacute por el contrario soacutelo en ocasiones excepcionales estamos instalados en una actitud teoreacuteticardquo

Opcitp106

55

acaba por afundar-se em falsos problemas como ldquoa realidade do mundordquo e ldquoo acesso a

essa realidaderdquo Discussotildees vazias pois o mundo em sua realidade histoacuterica eacute o dar-se

originaacuterio e prescinde de toda e qualquer teorizaccedilatildeo

Na leitura de Heidegger o neokantismo decompotildee o acircmbito originaacuterio da

vivecircncia em conceitos teoacutericos que natildeo formam mais uma totalidade pois a

desvivifica transformando-a num objeto a-histoacuterico e portanto sem significado

O mundar (welten) soacute eacute apreensiacutevel pela visatildeo fenomenoloacutegica que ainda natildeo estaacute

contaminada pelos pressupostos teoreacuteticos que tornam essa experiecircncia uma

relaccedilatildeo objetificante () Heidegger se contrapotildee agrave metodologia teoreacutetica que

pretende objetificar e descrever as vivecircncias mas compreender e apreender as

conexotildees de significado em que jaacute se estaacute submerso A fenomenologia pretende

manifestar isso que se daacute em um soacute golpe o mundo circundante (Umweltliche)

caracteriacutestico do vivenciar primordial(WU R2010 p185)

Mas se a compartimentaccedilatildeo da realidade realizada pelas teorias filosoacuteficas recai

em discussotildees vazias e a vivecircncia primordial prescinde de conceitos teoacutericos isso natildeo

apontaria para um empirismo ou um realismo como possibilidades da filosofia A

filosofia eacute ainda busca e busca originaacuteria Nesse sentido o acesso fenomenoloacutegico ao

mundo circundante orientado pela proacutepria coisa na intuiccedilatildeo imediata eacute para Heidegger

o modo de abrir ldquocientificamenterdquo a esfera da vivecircncia resguardando a orientaccedilatildeo agrave vida

sem qualquer teoria preacutevia

O rigor da cientificidade cultivada na fenomenologia cobra sentido a partir

dessa atitude fundamental e natildeo se pode comparar com o rigor das ciecircncias

derivadas e natildeo originaacuterias Ao mesmo tempo resulta claro porque o problema do

meacutetodo joga um papel central na fenomenologia como em nenhuma outra ciecircncia

() Para o problema que nos ocupa a atitude fundamental da fenomenologia

aponta em uma direccedilatildeo decisiva natildeo construir um meacutetodo desde fora ou desde

acima natildeo idear um novo caminho teoreacutetico por meio de reflexotildees dialeacuteticasrdquo39

(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p133)

Desde o iniacutecio da preleccedilatildeo Heidegger estaacute em busca de um meacutetodo capaz de

alcanccedilar o primaacuterio que estaria na base de qualquer conhecimento Nesse sentido a

39 ldquoEl laquorigorraquo de la cientificidad cultivada en la fenomenologiacutea cobra sentido a partir de esta actitud

fundamental y no se puede comparar con el laquorigorraquo de las ciencias derivadas y no originarias Al mismo

tiempo resulta claro por queacute el problema del meacutetodo juega un papel tan central en la fenomenologiacutea como

en ninguna otra ciencia (Por esta razoacuten todo este curso gira realmente en torno a un problema

metodoloacutegico) Para el problema que nos ocupa la actitud fundamental de la fenomenologiacutea apunta en una

direccioacuten decisiva no construir un meacutetodo desde fuera o desde arriba no idear un nuevo camino teoreacutetico

por medio de reflexiones dialeacutecticasrdquo Opcit p133

56

fenomenologia como retorno agraves coisas mesmas se volta ao dar-se originaacuterio das coisas e

eacute atraveacutes delas que o meacutetodo pode vir a ser desenvolvido Ainda em 1919 natildeo foi exposta

em linhas precisas a fenomenologia como meacutetodo indicativo-formal elemento decisivo

no interior da fenomenologia-hermenecircutica de Heidegger O que iremos abordar mais

adiante

A tentativa de orientar-se pelo dado na vivecircncia pelo que eacute como eacute no mundo

circundante se afasta portanto de qualquer objetificaccedilatildeo A fenomenologia como

meacutetodo eacute a possibilidade de compreensatildeo dos significados que nos vem ao encontro no

mundo circundante e histoacuterico no qual jaacute se estaacute sempre imerso Mas se Heidegger

apresenta a fenomenologia como o meacutetodo que alcanccedila o que vem ao encontro sem

qualquer preacutevia teoria esse acesso natildeo se daacute segundo os mesmos paracircmetros de seu

mestre Husserl

Como vimos na fenomenologia husserliana o modo de aparecimento do

fenocircmeno eacute sempre uma doaccedilatildeo de significado mas o acesso aos fenocircmenos eacute sempre a

partir da anaacutelise dos atos intencionais das vivecircncias na consciecircncia Heidegger recusa o

pressuposto da consciecircncia e pretende que a doaccedilatildeo significativa seja originaacuteria da

vivecircncia imersa no mundo No uacuteltimo momento da preleccedilatildeo de 1919 o autor apresenta

o que seria cooriginaacuteria de qualquer orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica e base de qualquer

ciecircncia teoacuterica a intuiccedilatildeo hermenecircutica Assim a vivecircncia que se apropria do vivido eacute

a intuiccedilatildeo compreensiva a intuiccedilatildeo hermenecircutica () A universalidade do significado

das palavras assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia

vivida40 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 pp141-142) Ou seja a significaccedilatildeo

gramaticalmente revestida natildeo aponta para algo essencial apreendido no ato de

consciecircncia (como compreende Husserl) mas a significaccedilatildeo vivida no mundo

circundante

O princiacutepio dos princiacutepios husserlianos tudo o que se daacute originariamente na

intuiccedilatildeo [] haacute que tomaacute-lo simplesmente como se daacute (Husserl Ideen apud Heidegger

40 ldquoLa vivencia que se apropia de lo vivido es la intuicioacuten comprensiva la intuicioacuten hermeneacuteutica la

formacioacuten originariamente fenomenoloacutegica que vuelve hacia atraacutes mediante retroconceptos y que se

anticipa con ayuda de preconceptos y de la que queda excluida toda posicioacuten teoreacutetico-objetivante y

trascendente La universalidad del significado de las palabras sentildeala primariamente algo originario el

caraacutecter mundano de la vivencia vividardquo Opcitpp141142

57

(GA5657) 2005 p132) eacute dado no interior das conexotildees de significados no es gibt

originaacuterio no mundo que se daacute cooriginariamente agraves proacuteprias vivecircncias

Para Heidegger o uacutenico modo de apreender essa vivecircncia originaacuteria eacute retroceder

ao preacute-teoacuterico por uma abordagem fenomenoloacutegica que faz com que o mundar

do mundo se manifeste enquanto tal Alguns anos mais tarde isso constituiria o

nuacutecleo da ontologia fundamental na perspectiva da temporalidade cujo objetivo

de criacutetica natildeo seria mais de maneira tatildeo detida o neokantismo de Windelband e

Rickert mas a totalidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica da filosofia(WuR2010 p186)

Tendo em vista o ponto central da preleccedilatildeo aqui examinada eacute imprescindiacutevel

notar que em 1919 Heidegger estava debatendo com os problemas de seu tempo a

possibilidade do conhecimento o lugar da filosofia diante da autonomia das ciecircncias

particulares e a articulaccedilatildeo dessa problemaacutetica com a Lebensphilosophie Se ainda natildeo

haacute explicitamente a questatildeo do sentido de ser em geral a preleccedilatildeo possui elementos

decisivos para o desenvolvimento da ontologia fundamental O que queremos enfatizar eacute

como o modo de apariccedilatildeo dos fenocircmenos em seu significado prescinde de toda e qualquer

teorizaccedilatildeo Essa caracteriacutestica fundamental vai permanecer vigente nos desdobramentos

futuros do pensamento de Heidegger e vai se mostrar a cada vez mais intimamente

relacionada agrave ambiccedilatildeo heideggeriana de superar os pressupostos da tradiccedilatildeo filosoacutefica

moderna

ldquoA pergunta acerca da realidade do mundo externo deriva em parte de uma

compreensatildeo superficial da filosofia kantiana ou de outro modo de reflexotildees

colocadas por Descartes Eacute uma questatildeo que em todo momento de modo mais ou

menos expresso ocupou a teoria do conhecimento da modernidade assegurando-

se sempre contudo que naturalmente ningueacutem duvida da realidade do mundo

externo Pois o que nela sempre se daacute por suposto eacute que essa realidade essa

mundanidade do mundo eacute no fundo algo que talvez possa demonstrar-se ou

mais exatamente no caso de nos encontrarmos em condiccedilotildees ideais ao final

haviacuteamos demostrado [essa realidade] E contudo o ser-real do mundo natildeo soacute

natildeo necessita ser demosntrado nem sequer eacute algo que na falta de provas

rigorosas por isso deva ser unicamente objeto de crenccedilardquo41( HEIDEGGER

(GA20) 2006 p270)

41 ldquoLa pregunta acerca de la realidad del mundo externo se deriva en parte de uma comprensioacuten superficial

de la filosofia kantiana o mejor dicho de reflexiones que Descartes planteoacute Es uma cuestiacuteon que en todo

momento de modo maacutes o menos expreso ha ocupado a la teoriacutea del conocimiento de la modernidad

aseguraacutendose siempre no obstante de que naturalmente nadie dudara de la realidade del mundo externo

Pues lo que em ella se da por supuesto es que esa realidad esa mundanidad del mundo es em fondo algo

que quizaacute pueda demostrarse o maacutes exactamente es en caso de que nos encontraacuteramos em condiciones

ideales al final habriacuteamos demostrado Y sin embargo el ser-real del mundo no soacutelo no necessita ser

demostrado ni siquiera es algo que a falta de pruebas rigorosas por eso deba ser unicamente objeto de

creenciardquo Opcitp270

58

Assim a partir dessas consideraccedilotildees eacute possiacutevel indicar que a questatildeo do sentido

do ser em geral ou numa palavra a ldquoontologiardquo para Heidegger pode vir a ser atingida

quando se revela que a fenomenologia natildeo estaacute fundada na epistemologia (a partir da

consciecircncia) e que a hermenecircutica natildeo eacute apenas um instrumento metodoloacutegico de acesso

agrave histoacuteria em sua objetividade O que Heidegger pretende exprimir com o termo ldquointuiccedilatildeo

hermenecircuticardquo eacute a possibilidade de uma compreensatildeo imediata do mundo a qual natildeo estaacute

fundada nas vivecircncias subjetivas O es gibt originaacuterio eacute o mundo que se daacute como campo

hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Com outras palavras natildeo haacute

significados ideais eles aparecem a partir da situaccedilatildeo hermenecircutica compartilhada entre

os homens campo que chamamos de mundo e a compreensatildeo desse campo natildeo eacute

tributaacuteria das vivecircncias psiacutequicas Para tanto eacute preciso esclarecer como Heidegger supera

a consciecircncia husserliana enquanto lugar de apariccedilatildeo dos fenocircmenos e tambeacutem como a

noccedilatildeo heideggeriana de ldquointuiccedilatildeo hermenecircuticardquo pretende superar a vivecircncia psiacutequica de

Dilthey como categoria epistemoloacutegica fundamental Chegamos ao ponto onde se torna

necessaacuterio compreender mais detidamente a apropriaccedilatildeo de Heidegger da hermenecircutica

diltheyniana e da fenomenologia husserliana

II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger

Seguindo inicialmente as indicaccedilotildees expressas no primeiro curso proferido por

Heidegger em Marburg (inverno de 1923-1924) Introduccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo

fenomenoloacutegica (GA17) eacute possiacutevel observar a tentativa do autor de compreender a

fenomenologia como fenomenologia da existecircncia e assim se apropriar de maneira mais

originaacuteria da investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica

O curso se inicia com a interpretaccedilatildeo - mantida em seus principais elementos no

sect7 de Ser e Tempo - dos conceitos de fenocircmeno (φαινόμενον) e loacutegos (λόγος) em

Aristoacuteteles para assim pocircr em evidecircncia a interpretaccedilatildeo segundo a qual nos escritos do

filoacutesofo grego esses conceitos indicam a direccedilatildeo do pensamento e da investigaccedilatildeo

filosoacutefica para o ser do homem como ser-no-mundo

59

A perceptibilidade das coisas estaacute sob a condiccedilatildeo de um determinado ser deste

mundo mesmo O ser condiccedilatildeo se refere a um modo de ser do mundo mesmo Agrave

existecircncia no mundo pertence o ser subsistente do Sol justamente o que

pensamos quando afirmamos eacute de dia Desta forma falamos de um estado de

coisas que pertence ao ser do mundo mesmo Daiacute se segue que φαινόμενον natildeo

quer dizer em primeiro lugar nada mais que um destacado modo de presenccedila do

enterdquo42 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30)

Ainda seguindo a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles Heidegger diz que o conceito de

fenocircmeno na medida em que designa tudo o que mostra a si mesmo natildeo pode ser

reduzido ao que estaacute na presenccedila do dia ou seja que existem coisas que satildeo visiacuteveis na

obscuridade pois o que se mostra a si mesmo se mostra tanto na claridade como na

obscuridade43 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30) Para explicitar essa posiccedilatildeo o autor

recorre agraves categorias aristoteacutelicas essenciais do ente em ato e do ente em potecircncia (ogravev

ἐντελέχεια ogravev δύναμις) A obscuridade torna-se tambeacutem positiva a partir da

compreensatildeo dessas categorias em relaccedilatildeo ao fenocircmeno pois o ser da obscuridade

consiste em ser claridade possiacutevel44 (HEIDEGGER (GA17)2006 p31)

A originalidade do ver em Aristoacuteteles se mostra em natildeo se deixar enganar pelo

fato de que para as coisas que somente a noite deixa ver natildeo haacute nenhum nome

que as compreenda todas () O que importa eacute somente que essas coisas existam

aiacute elas satildeo vistas e sobre a base de seu conteuacutedo quiditativo tecircm a pretensatildeo de

serem tomadas por existentes Mas que falte um nome para essas coisas mostra

contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia45

(HEIDEGGER (GA17) 2006p31)

42 ldquoLa perceptibilidad de las cosas estaacute bajo la condicioacuten de un determinado ser de este mundo mismo El

ser condicioacuten se refiere a un modo de ser del mundo mismo A la existencia en el mundo pertenece el ser

subsistente del Sol justamente lo que mentamos cuando afirmamos es de diacutea De esta forma hablamos de

un estado de cosas que pertenece al ser del mundo mismo De aquiacute se sigue que φαινόμενον no quiere decir

en primer lugar nada maacutes que un destacado modo de presencia del enterdquo Op cit p30

43 ldquoEl concepto de φαινόμενον no estaacute limitado a la presencia de las cosas durante el diacutea va maacutes allaacute y

designa todo lo que se muestra em siacute mismo tanto se muestra en la claridad como en la oscuridadrdquo Op

citp30

44 ldquoEl ser de la oscuridad consiste en ser claridade posiblerdquo Opcitp31 45 ldquoLa originaridad del ver en Aristoacuteteles se muestra en que no se deja enganatilder por el hecho de que para las

cosas que soacutelo la noche deja ver no hay ninguacuten nombre que las comprenda a todas (por tanto para las

lucieacuternagas etc) () Lo que le importa es soacutelo que esas cosas existen ahiacute se las ve y sobre la base de su

contenido quiditativo tienen la pretensiacuteon de ser tomadas por existentes Pero que falte um nombre para

esas cosas muestra com todo que nuestra lengua (teoria de las categorias) es uma lengua del diacuteardquo

Opcitp32

60

Para compreendermos o que Heidegger trata nessa passagem eacute fundamental

relembrar a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica que indica algo crucial agrave nossa investigaccedilatildeo o

significado natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua

mostraccedilatildeo Para Husserl a anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a

complexidade da vida intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel a partir

da anaacutelise das estruturas ideais que se apresentam na forma das expressotildees significativas

revestidas gramaticalmente Jaacute para Heidegger parece natildeo haver uma estabilidade

significativa ideal Em outras palavras e como vimos no toacutepico anterior as significaccedilotildees

vecircm ao encontro a partir de sua mostraccedilatildeo intencionadas em meio agrave compreensatildeo

hermenecircutica do mundo circundante por isso as estruturas ideais buscadas por Husserl

a partir da atividade intencional da consciecircncia devem ser revistas em funccedilatildeo da

possibilidade hermenecircutica do mundo circundante A veste gramatical das significaccedilotildees

natildeo pode subordinar o que vem ao encontro no dar-se originaacuterio do mundo quer em

funccedilatildeo de uma linguagem que almeja a cada vez fixar categorialmente o que se mostra

quer em funccedilatildeo de qualquer idealidade essencial pressuposta E assim para Heidegger o

conceito de loacutegos em Aristoacuteteles revela um sentido mais originaacuterio

Um λόγος existe pois quando o falar eacute falar com o mundo existente Ao dizer

forno [Ofen] natildeo falo a partir de uma existecircncia [Dasein] senatildeo que mas bem

me ponho fora da existecircncia [Dasein] do mundo concreto penso algo mas para

esse pensar natildeo desempenha nenhum papel que existam fornos [Oumlfen] ou natildeo

Falar eacute um ser com o mundo eacute algo originaacuterio e se daacute antes dos juiacutezos A partir

daqui se torna compreensiacutevel o juiacutezo Na loacutegica eacute comum considerar como juiacutezos

palavras como fogo () De modo algum o λόγος implica uma pluralidade de

palavras A palavra originaacuteria eacute um nomear mas natildeo eacute um nomear de um mero

nome mas bem o dirigir-se com a fala a algo que se encontra no mundo tal como

se encontra46(HEIDEGGER (GA17) 2006 p39)

46 ldquoUn λόγος existe pues cuando el hablar es um hablar con el mundo existente Al decir lsquohornorsquo no hablo

desde una existencia sino que maacutes bien me pongo fuera de la existencia del mundo concreto miento algo

pero para este mentar no desempentildea ninguacuten papel el que haya hornos o no Hablar es un ser con el mundo

es algo originaacuterio y se da antes que los juicios A partir de aquiacute se vuelve compreensible el juicio En la

loacutegica es tradiciacuteon considerar como juicios palabras como lsquofuegorsquo (De ninguna manera se establece con

ello soacutelo la existencia [Dasein] del fuego sino tambiacuteen que la gente debe saltar de la cama) Em modo

algun el λόγος implica una pluralidad de palabras La palabra originaria era un nombrar pero no el nombrar

de un mero nombre maacutes bien el dirigirse con el habla a algo que se encuentra en el mundo tal como se lo

encuentrardquo Op cit p39 A palavra Dasein nesse trecho ainda natildeo parece se referir ao homem como ldquoser-aiacuterdquo mas usada no

significado tradicional da liacutengua alematilde compreendida como ldquoexistecircnciardquo pois Heidegger nos fala da

ldquoexistecircnciardquo do lsquofornorsquordquo existecircnciardquo do lsquofogorsquo

61

O nomear originaacuterio do loacutegos natildeo eacute como a significaccedilatildeo expressa pela linguagem

que recolhe o ente sob determinado aspecto em seu εἶδος (Cf HEIDEGGER (GA17)

2006 p43) Loacutegos eacute loacutegos apofacircntico (λόγος αποφατικός) eacute o mostrar do fenocircmeno a

respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que se mostra como algo de maneira indiferenciada

natildeo determinada Assim o significado mediante o λόγος eacute caracterizado como existindo

O significado mediante o nome eacute um mero mencionar em sentido formal no λόγος o

significado eacute o mostrar o existente como existente47(HEIDEGGER (GA17) 2006p41)

Esse mostrar do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes

sempre em meio a um campo hermenecircutico e assim cada significado proacuteprio ou

determinado do ente que se mostra refere-se ao que significa em relaccedilotildees com os outros

entes relaccedilatildeo anterior a qualquer experiecircncia predicativa

O modelo tradicional da hermenecircutica como meacutetodo interpretativo vinculado agrave

filologia e ao formato da linguagem escrita se altera e torna-se com Heidegger a

investigaccedilatildeo acerca da proacutepria interpretaccedilatildeo da mostraccedilatildeo de todos os entes como uma

praacutetica viva que remete ao ser dos entes em seu aparecer como ente Hermes o

mensageiro dos deuses agora eacute mensageiro da situaccedilatildeo interpretativa na medida em que

o ser dos entes se mostra aos homens no interior de suas vivecircncias imediata A

interpretaccedilatildeo de algo eacute dada mediante a escuta cuidadosa da mensagem dinacircmica que se

realiza no diaacutelogo entre os homens natildeo eacute mais algo inerte fixo a ser encontrado O λόγος

na fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν E assim ao contraacuterio

da tradiccedilatildeo filosoacutefica que identificou o loacutegos como a expressatildeo ajuizante possiacutevel atraveacutes

da ratio (ou o dizer as modalidades dos entes atraveacutes de palavras e sequecircncia de palavras

organizando-as como sujeito e predicado no juiacutezo predicativo) Heidegger interpreta o

sentido originaacuterio de loacutegos apofacircntico como condiccedilatildeo de possibilidade para a

significaccedilatildeo Esse aspecto eacute assim descrito por Gadamer

Heidegger recorreu a uma etimologia para a palavra logos ela designa a seleccedilatildeo

posicionadorardquo () Loacutegos eacute realmente o posicionar seletivo legein significa

seleccedilatildeo selecionar conjuntamente reunir de tal modo que tudo se decirc como

bagos da videira reunidos e protegidos como a colheita O que eacute assim reunido

da seleccedilatildeo natildeo satildeo certamente apenas as palavras que formam a proposiccedilatildeo Cada

palavra ela mesma jaacute eacute de tal modo que nela muitas coisas satildeo reunidas - na

47ldquoLo significado mediante el λόγος es caracterizado como existiendo Lo significado mediante el nombre

es un mero mencionar el sentido formal en el λόγος lo significado es el mostrar lo existente como

existenterdquo Opcitp41

62

unidade do eidos como diraacute Platatildeo quando ele questiona o eidos com vista ao

logos (GADAMER 2012p528)

O sentido originaacuterio de loacutegos como loacutegos apofacircntico estaacute estritamente

relacionado com o sentido originaacuterio de fenocircmeno A tradiccedilatildeo latina traduziu loacutegos

interpretando-o como razatildeo juiacutezo conceito definiccedilatildeo ou proposiccedilatildeo Poreacutem em grego

logos natildeo significa primariamente juiacutezo entendido como modo de uniatildeo ou de tomada

de posiccedilatildeo seja pela aceitaccedilatildeo ou negaccedilatildeo Logos reporta-se agrave palavra legein tornar

manifesto aquilo de que se fala num discurso Por isso deixa que algo seja visto

comunicando a outro o que eacute manifestado e assim ldquoas posiccedilotildees individuais satildeo

penetradas pela tendecircncia a significar de um λέγειν assim que aspira a manifestar uma

determinada situaccedilatildeo objetiva Natildeo se chega ao λόγος se quiser comeccedilar com o mero

nomear A funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar48rdquo (HEIDEGGER (GA17)

2006 p43) Mas o que se manifesta O fenocircmeno (φαινόμενον) aquilo que se mostra a

si mesmo

A interpretaccedilatildeo da palavra φαινόμενον realizada por Heidegger no primeiro curso

proferido em Marburg indica inicialmente a existecircncia do mundo na medida em que ele

se mostrar a si mesmo49 como orientaccedilatildeo do horizonte temaacutetico da fenomenologia Em

1925 no curso Prolegocircmenos para uma histoacuteria ao conceito de tempo (GA20) o

esclarecimento do sentido originaacuterio do conceito de fenocircmeno seraacute elaborado conforme

o sentido encontrado tambeacutem em Ser e Tempo sect7 Φαινόμενον eacute o particiacutepio (forma

nominal do verbo) de φαίνεισθαι que como voz meacutedia50 significa mostrar-se e no

48 ldquoLas posiciones individuales estaacuten penetradas por la tendencia a significar de un λέγειν asiacute que aspira a

manifestar una determinada situacioacuten objetiva No se llega al λόγος si se quisiera comezar com el mero

nombrar La funcioacuten originaria de significaciacuteon es el manifestarrdquo Opcitp43

49 CfHeidegger (GA17) 2006p61

50 Um esclarecimento sobre a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito de

fenocircmeno por conseguinte da noccedilatildeo de fenomenologia Obviamente natildeo podemos aprofundar-nos nesse

complexo recurso gramatical que exigiria anos de estudos e profundo conhecimento da liacutengua helecircnica

Iremos apenas indicar sua especificidade A estrutura das vozes verbais na liacutengua portuguesa eacute constituiacuteda

de 3 possibilidades a ativa a passiva e a reflexiva Algumas Gramaacuteticas sugerem uma proximidade entre

a voz meacutedia grega e a voz reflexiva no portuguecircs contudo a voz meacutedia natildeo se esgota nessa comparaccedilatildeo

Seguimos a orientaccedilatildeo de Caio Vieira Reis de Camargo (2013) que em seu artigo reuacutene definiccedilotildees

importantes para os estudos linguiacutesticos contemporacircneos acerca da voz meacutedia

ldquoa) lsquoA voz meacutedia denota que o sujeito estaacute de alguma maneira especial envolvido ou interessado na accedilatildeo

do verborsquo (GILDERSLEEVE 1900 p64) b) lsquoVerbos () que tecircm posiccedilatildeo na esfera do Sujeito nos quais

o Sujeito todo parece participanteimplicadorsquo (BRUGMANNB 1903 p104) c) lsquoNa voz ativa os verbos

63

particiacutepio o que se mostra O aparecer o mostrar do fenocircmeno estaacute relacionado com a

raiz de φαίνω φῶς em portuguecircs luz claridade Assim ldquoos φαινόμενα configuram a

totalidade do que se mostra o que os gregos simplesmente identificaram tambeacutem com τὰ

ὄντα o ente51rdquo (HEIDEGGER (GA20)2006 p109) Podemos entatildeo dizer a totalidade

do que se mostra satildeo os fenocircmenos e se a funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar

o loacutegos da fenomenologia natildeo eacute o significado de um ou outro ente mas o manifestar do

ente o sentido de ser dos entes Fenomenologia em sentido formal eacute ldquofazer ver a partir

dele mesmo o que se mostra tal como ele por si mesmo se mostrardquo (HEIDEGGER (GA2)

2012 p119) e assim a fenomenologia caminha em direccedilatildeo agrave ontologia

No capiacutetulo anterior pudemos observar que para Husserl o que estava em jogo

como tarefa da fenomenologia era - a partir da unidade entre intuiccedilatildeo (atividade da

consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da consciecircncia e o

preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor a unidade

fenomenoloacutegica desses atos a saber apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo e

preenchimento de significaccedilatildeo Para Heidegger a intencionalidade fenomenoloacutegica agora

voltada para o sentido de ser dos entes revela que o fenocircmeno vem ao encontro natildeo em

funccedilatildeo da intencionalidade da consciecircncia onde poderia ser depurado na sua significaccedilatildeo

denotam um processo que se realiza a partir de um sujeito e sem ele na meacutedia que eacute a diaacutetesis a definir

por oposiccedilatildeo o verbo indica um processo em que o sujeito eacute o foco o sujeito estaacute no interior do processorsquo

(BENVENISTE 1966 p172) d) lsquoEm indo-europeu e em grego as desinecircncias meacutedias indicam que o

sujeito estaacute interessado de uma maneira pessoal no processorsquo (MEILLET 1937 p244) e) lsquoAs implicaccedilotildees

da meacutedia (quando em oposiccedilatildeo com a ativa) satildeo que a accedilatildeo ou estado afeta o sujeito do verbo ou seus

interessesrsquo (LYONS 1969 p373) Nessas definiccedilotildees a princiacutepio haacute dois empregos da meacutedia a meacutedia

reflexiva direta (especialmente a de Gildersleeve e Meillet voltadas para a questatildeo do interesse do sujeito

oracional) e a meacutedia reciacuteproca que envolve mais as construccedilotildees passivas e intransitivas da meacutedia

(ressaltada por Brugmann e Benveniste com a noccedilatildeo de que o sujeito todo participa e que estaacute interno ao

processo) A definiccedilatildeo de Meillet por outro lado eacute a mais comumente utilizada principalmente em

gramaacuteticas e meacutetodos de ensino do grego antigo atribuindo agrave media a noccedilatildeo de interesse por parte do

sujeito sendo que esse traccedilo embora existente em alguns casos natildeo eacute uacutenico e nem sempre tatildeo evidenterdquo

(pp 185-186)

Quando dissemos que entender a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito

de fenocircmeno pensamos nessa especificidade de algo que na accedilatildeo no verbo (existir manifestar) constitui a

si mesmo no interior do processo O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento como fenocircmeno

Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar

por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na

estabilidade de uma esfera para aleacutem do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua

manifestaccedilatildeo o sentido de sua proacutepria existecircncia

51 ldquoLos φαινόμενα configuran la totalidad de lo que se muestra a siacute mismo lo que los griegos simplemente

indetificaban tambieacuten con τὰ ὄντα lo enterdquoOpcit p109

64

Mas o loacutegos como manifestar-se do fenocircmeno em seu sentido originaacuterio como existente

eacute intencionado no es gibt originaacuterio na concretude do mundo que se daacute

Mas como eacute possiacutevel chegar ao acontecimento de ser do fenocircmeno sem a base de

uma consciecircncia em funccedilatildeo da qual o fenocircmeno pode ser depurado Os estudos da Sexta

Investigaccedilatildeo Loacutegica de Husserl ao distinguir intuiccedilatildeo sensiacutevel da categorial ofereceram

a Heidegger um acesso agrave compreensatildeo do sentido muacuteltiplo do ente Nas palavras do autor

ldquoQuando a partir de 1919 eu proacuteprio ensinando e aprendendo proacuteximo de

Husserl me exercitei na visatildeo fenomenoloacutegica e simultaneamente pus agrave prova

nos Seminaacuterios uma leitura de Aristoacuteteles diferente da habitual retomei o meu

interesse pelas Investigaccedilotildees Loacutegicas muito especialmente pela sexta da

primeira ediccedilatildeo A distinccedilatildeo ali elaborada entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial

revelou-se-me em todo o seu alcance como capaz de determinar lsquoo muacuteltiplo

sentido do entersquordquo (HEIDEGGER2009 p8)

Vejamos brevemente o ponto crucial dessa parte da VI investigaccedilatildeo a qual

Heidegger se refere A questatildeo central eacute ldquoTodas as partes e formas da significaccedilatildeo

correspondem tambeacutem partes e formas da percepccedilatildeo52rdquo (HUSSERL 1975 p106) Em

outras palavras nos enunciados da percepccedilatildeo ldquoUm S eacute Prdquo ldquoEste S eacute Prdquo ldquoTodo S eacute Prdquo

etc cada um de seus elementos (ldquoumrdquo ldquoSrdquo ldquoeacuterdquo ldquoPrdquo) possui significaccedilotildees que

preenchem a percepccedilatildeo Husserl responde negativamente somente S e P possuem

significaccedilatildeo que preenchem a percepccedilatildeo pois existe uma diferenccedila categorial absoluta

entre a forma expressiva e o material expresso E os enunciados da percepccedilatildeo chegam

somente aos elementos materiais que estatildeo presentes nos termos do enunciado

ldquoRepete-se a mesma distinccedilatildeo entre lsquomaterialrsquo e lsquoformarsquo naquilo que

consideramos unitariamente como um lsquotermorsquo Mas em todo enunciado de

percepccedilatildeo e tambeacutem naturalmente em todos os enunciados que exprimem uma

intuiccedilatildeo num certo sentido primaacuterio chegamos finalmente aos uacuteltimos elementos

ndash denominamos elementos materiais ndash que estatildeo presentes nos termos e que

preenchem diretamente na intuiccedilatildeo (percepccedilatildeo imaginaccedilatildeo etc) ao passo que

as formas complementares apesar de exigirem preenchimento enquanto formas

de significaccedilatildeo natildeo encontram diretamente na percepccedilatildeo e nos atos a ela

coordenados nada que jamais lhes possa ser conformerdquo(HUSSERL 1975p110)

52 Percepccedilatildeo aqui compreendida natildeo como mera percepccedilatildeo mas como atos fundados na percepccedilatildeo com

possibilidade objetiva

65

Husserl acompanha Kant na determinaccedilatildeo que ldquoser natildeo eacute um predicado realrdquo pois

a flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo -tanto na funccedilatildeo atributiva (sapato preto) quanto na forma

predicativa (Este sapato eacute preto) ndash natildeo se preenche atraveacutes de qualquer percepccedilatildeo Para

Husserl embora a proposiccedilatildeo kantiana ldquose refira ao ser existencial ao ser do

lsquoposicionamento absolutorsquo () eacute sempre possiacutevel entretanto aplicaacute-la ao ser predicativo

e atributivordquo (HUSSERL1975 p111) Se o ser natildeo eacute nada de aderente ao objeto natildeo eacute

uma caracteriacutestica real interna nem externa e ainda se ldquona esfera da percepccedilatildeo sensiacutevel

e assim compreendida e correlativamente na da intuiccedilatildeo sensiacutevel em geral () uma

significaccedilatildeo como a palavra ser natildeo encontra nenhum correlato objetivo possiacutevelrdquo

(HUSSERL1975 p112) entatildeo como ser vem agrave forma enunciativa Para Husserl o ser

soacute pode ser apreendido no julgar natildeo que ele seja obtido internamente a partir da reflexatildeo

mas no ato de julgar que correlato agrave intuiccedilatildeo do juiacutezo forma a unidade do juiacutezo evidente

Em outras palavras se o ldquo ser eacute fenomenologicamente interpretado como um modo

determinado do ser dadordquo ( ZAHAVI2015p47) a descriccedilatildeo de um fenocircmeno ou de um

estado de coisas em sua ligaccedilatildeo e unidade pelo juiacutezo vai aleacutem da intuiccedilatildeo sensiacutevel e eacute

preciso ampliar o conceito de intuiccedilatildeo considerando-a como uma intuiccedilatildeo categorial

pois ldquomesmo uma argumentaccedilatildeo teoacuterica ou uma anaacutelise conceitual pode ser considerada

como intuiccedilatildeo na medida em que ela nos traz agrave daccedilatildeo originaacuteria um estado de coisas um

traccedilo essencial ou uma demonstraccedilatildeo abstratardquo( ZAHAVI2015p55) Contudo esse

deslocamento do lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel o conduz a forma loacutegico sem revelar

de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno53

Portanto com o propoacutesito de elucidar a apariccedilatildeo originaacuteria de qualquer fenocircmeno

e junto com Aristoacuteteles Heidegger conclui que era Aleacutetheia desvelamento aquilo que

segundo Husserl consistia num ato da consciecircncia O ser natildeo eacute um predicado real se

abordado a cada vez como um ente Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar o ser como um

ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel e atributivo Ser

natildeo eacute um ente54 o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo com vistas agrave

53 Cf NUNES Benedito 2013 pp63-67 54 A diferenccedila ontoloacutegica eacute tomada tematicamente ou seja exposta explicitamente em 1927 em Os

problemas fundamentais da fenomenologia (GA24) Parte II Capiacutetulo I Mesmo de um modo natildeo temaacutetico

a diferenccedila entre ser e ente foi decisiva para a compreensatildeo da constituiccedilatildeo existencial do ser-aiacute nos escritos

anteriores sobretudo em Ser e Tempo Seguimos a leitura de LAFONT (1997) ldquoDo factum -central para a

abordagem de Ser e tempo - de que nossa relaccedilatildeo com o mundo estaacute mediada simbolicamente (o fato de

que lsquonos movemos sempre jaacute em uma compreensatildeo de serrsquo e que a realidade soacute eacute possiacutevel em uma

66

forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera para ldquoQual o

sentido de serrdquo E ao sentido do ser temos acesso pelo meacutetodo fenomenoloacutegico a partir

da situaccedilatildeo na qual o desvelamento dos entes acontece isto eacute no fenocircmeno da existecircncia

Como aponta Stein a apresentaccedilatildeo do conceito de fenomenologia em Ser e

Tempo eacute feita de maneira provisoacuteria no sect 7 e soacute ganha sua explicitaccedilatildeo na dinacircmica da

proacutepria anaacutelise do ldquoobjetordquo Mas tambeacutem como jaacute vimos aqui a especificidade e o fator

determinante do meacutetodo fenomenoloacutegico jaacute estatildeo em desenvolvimento na deacutecada de 20

Cito Stein

ldquoa descoberta que Heidegger fez que existe um primado da tendecircncia para o

encobrimento ()Ao inveacutes de pensar como Husserl e outros filoacutesofos que diante

de noacutes a realidade se estende agrave espera da rede de nossos recursos metodoloacutegicos

que a aprisionem Heidegger afirma que o homem e o essencial nas coisas tendem

para o disfarce ou estatildeo efetivamente encobertos Por isso volta-se para o comordquo

(STEIN 1971p16)

E o que se encobre de maneira excepcional natildeo eacute um ou outro ente mas o ser do

ente e ldquoa fenomenologia eacute o modo de acesso ao que deve se tornar tema da ontologia A

ontologia soacute eacute possiacutevel como fenomenologiardquo (HEIDEGGER (GA2) 2012 p 123)

Fenocircmeno loacutegos e aleacutetheia estatildeo numa imbricaccedilatildeo indissociaacutevel Stein (2001

p79) chega a dizer que a aleacutetheia esconde em si o meacutetodo fenomenoloacutegico e que o retorno

originaacuterio agrave palavra grega resume o pensamento de Heidegger Para nosso trabalho o

importante eacute compreender que a fenomenologia como meacutetodo para a ontologia encontra

no sentido originaacuterio de aleacutetheia a possibilidade de trazer agrave luz o que sustenta qualquer

presenccedila dos entes ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o que aponta para o velamento (lethe) que

ficou para traacutes que mostra para aquilo que a sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila

da aleacutetheia que se torna possiacutevel a objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito

pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89) Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em

sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao encontro em seu significado) no desvelamento

originaacuterio de seu ser mas essa mostraccedilatildeo dos fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira

compreensatildeo de serrsquo) deduz Heidegger a universalidade da lsquopreacute-estrutura do compreenderrsquo (Als-Struktur)

que constitui o nuacutecleo fundamental de sua transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia O instrumento

decisivo do ponto de vista metodoloacutegico que o permite obter este ponto de vista eacute a substituiccedilatildeo da

dicotomia empiacutericotranscendental - proacutepria da filosofia transcendental- pela lsquodiferenccedila ontoloacutegicarsquordquo p29

67

dissimulada sempre atraveacutes de uma objetificaccedilatildeo de seu ser como ente determinado pois

ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na medida em que partimos de seu

encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de descoberta perde seu sentido mais

efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Dessa forma ldquoa fenomenologia no sentido heideggeriano

eacute a desconstruccedilatildeo do evidente e em uma tal desconstruccedilatildeo interessa mostrar que o

evidente eacute em verdade uma modificaccedilatildeo do fenocircmeno lsquoserrsquordquo (FIGAL 2005p47) E aqui

a fenomenologia encontra a hermenecircutica em sua relaccedilatildeo mais radical pois essa

desconstruccedilatildeo do evidente parte do proacuteprio evidente a situaccedilatildeo faacutetica Pois ldquoo ser soacute

pode chegar entatildeo a ser visualizado se essas dissimulaccedilotildees forem comprovadas como

dissimulaccedilotildeesrdquo (FIGAL 2005p47) ou seja na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo faacutetica que

compreende previamente todos os entes

A atualizaccedilatildeo da filosofia antiga sob bases fenomenoloacutegicas eacute chamada de

ldquofenomenologia como repeticcedilatildeordquo55 O retorno ao pensamento de Aristoacuteteles e Platatildeo

realizado por Heidegger ldquonatildeo significa simplesmente acolher uma vez mais um

questionamento filosoacutefico herdado a fim de integraacute-lo no discurso de uma filosofia atualrdquo

e tambeacutem natildeo se trata de ldquoinserir uma filosofia atual em uma tradiccedilatildeordquo (FIGAL 2005

p32) Mas eacute consequecircncia da orientaccedilatildeo do trabalho heideggeriano de uma lsquofilosofia

cientiacuteficarsquo sem pressupostos O comeccedilo da filosofia eacute o questionamento em curso vivo

promovido pela proacutepria questatildeo e natildeo por sistemas externos agraves proacuteprias coisas A

pergunta pelo ser em Heidegger se torna temaacutetica na medida em que o desdobramento da

criacutetica imanente ao modelo husserliano conduz agrave pergunta fundamental inaugurada no

iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo

Se por um lado Heidegger pode ser associado agrave tradiccedilatildeo fenomenoloacutegica por

outro natildeo se pode esquecer a criacutetica imanente que ele fez agrave fenomenologia de Husserl e

que o conduziu a pensar a fenomenologia como meacutetodo a indicar o mundo a existecircncia

e a facticidade como campo de aparecimento dos proacuteprios fenocircmenos tornando portanto

a fenomenologia hermenecircutica Eacute nessa compreensatildeo da tarefa fenomenoloacutegica como o

modo de acesso ao que deve ser tornar tema da ontologia que Heidegger rejeita o

pressuposto husserliano da consciecircncia como correlato do aparecimento dos fenocircmenos

55 Cf Figal 2005 pp29-42 e STEIN 2001 p98

68

Ele o recusa natildeo somente pelo fato de as relaccedilotildees intencionais enquanto processos

mentais da consciecircncia se movimentarem pela pesquisa de conteuacutedos quididativos mas

tambeacutem e sobretudo pelo fato de

ldquoa consciecircncia apresentar em si mesma um contexto ontoloacutegico fechado Essa

ponderaccedilatildeo [a de que a consciecircncia parece natildeo precisar de qualquer objeto

exterior para existir] acaba por indicar a consciecircncia eacute absoluta em funccedilatildeo da

qual em geral a realidade pode se anunciarrdquo (HEIDEGGER Prolegomena zur

Geschichte p 144 apud FIGAL2005 p30)

Para Heidegger a fenomenologia transcendental de Husserl permanece ainda no

horizonte da modernidade Ao colocar o ldquomundo entre parecircntesesrdquo privilegiando a

experiecircncia da consciecircncia essa fenomenologia permaneceria incapaz de levar em conta

a realidade sem uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica e em uacuteltima instacircncia levar em conta as

vivecircncias concretas Heidegger natildeo abre matildeo da fenomenologia husserliana mas

radicaliza seu princiacutepio ldquode volta agraves coisas mesmasrdquo acentuando a tarefa pela existecircncia

e a partir da existecircncia dos fenocircmenos e no desvelamento buscar o sentido do ser de

todo e qualquer fenocircmeno

III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal

Falamos haacute pouco de Heidegger repetir a filosofia antiga como um desdobramento

da proacutepria pesquisa filosoacutefica entendida como ciecircncia originaacuteria e como pergunta pelo

sentido de ser Em Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles Introduccedilatildeo agrave pesquisa

fenomenoloacutegica (GA61) Heidegger desenvolve esse aspecto e indica a problemaacutetica

central e radical a ser enfrentada a partir de Aristoacuteteles a saber ldquodesde de Aristoacuteteles se

manteacutem uma influecircncia taacutecita nas vias da visatildeo e da fala lsquoarticulaccedilotildeesrsquo loacutegicardquo

(HEIDEGGGER (GA61) 2011p11) Antes de entrarmos nessa problemaacutetica apontada

por Heidegger tentemos compreender o que o autor quis dizer com aquela afirmaccedilatildeo

Cito Puente (2001)

ldquoPara Aristoacuteteles foi precisamente a negaccedilatildeo do movimento que levou

Parmecircnides ao postulado da univocidade do ente e seraacute portanto a partir da

afirmaccedilatildeo irrestrita do movimento () que o Estagirita procuraraacute expandir os

horizontes do ente para aleacutem da mera dicotomia estabelecida por Parmecircnides

entre Ente e natildeo-enterdquo (p25)

69

Seguindo a leitura de Puente Aristoacuteteles encontrou a plurivocidade ao afirmar o

movimento no acircmbito dos entes Aleacutem disso como veremos nos desdobramentos a

seguir ele o fez submetendo o acircmbito ontoloacutegico ao acircmbito loacutegico Submissatildeo essa que

foi adotada por toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica que passou a entender a loacutegica como uacutenica via

de acesso agrave ontologia Pois a polivocidade categorial inserida no interior da

quadriparticcedilatildeo semacircntico-ontoloacutegica estaacute por sua vez submetida ao princiacutepio loacutegico de

natildeo contradiccedilatildeo Dito de outro modo as categorias aristoteacutelicas substacircncia

(οὐσία substantia) quantidade (ποσόν quantitas) qualidade (ποιόν qualitas) relaccedilatildeo

(πρός τι relatio) lugar (ποῦ ubi) tempo (ποτέ quando) estado (κεῖσθαι situs) haacutebito

(ἔχειν habere) accedilatildeo (ποιεῖν actio) e paixatildeo (πάσχειν passio) satildeo parte das quatro

possibilidades semacircnticas categoria acidente verdade atopotecircncia Reiterando as

possibilidades semacircnticas de dizer o ente estatildeo submetidas a um princiacutepio loacutegico

fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado ao princiacutepio de identidade

Soacute eacute possiacutevel desenvolver uma ontologia acerca dos entes naturais e sair da univocidade

ontoloacutegica de Parmecircnides se a semacircntica respeitar a impossibilidade loacutegica de uma

simultaneidade de atribuiccedilotildees contraacuterias a um ente ao mesmo tempo Os vaacuterios modos de

dizer o ser ldquoa refutaccedilatildeo confutatoacuteria agrave tese parmenidiana pode ser analisada entatildeo como

o desdobramento loacutegico do pressuposto de Parmecircnidesrdquo (PUENTES2001 p25)

Nesse sentido enfrentar a via loacutegica no interior da filosofia eacute enfrentar a tradiccedilatildeo

que compreendeu que a filosofia devia ser definida bem como seus objetos de forma

conceitual sob princiacutepios loacutegicos Em outras palavras superar a tentativa de dizer

previamente tanto o que a filosofia eacute quanto o que eacute seu objeto de investigaccedilatildeo E em

uacuteltima instacircncia superar a concepccedilatildeo tradicional metafiacutesica que compreende toda

ontologia condicionada agrave loacutegica pois ao ter acesso ao ente atraveacutes das categorias

arrasta a compreensatildeo da verdade agrave semacircntica extensional com lugar privilegiado na

proposiccedilatildeo reduzindo a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo56

56 Aqui eacute pertinente destacar uma consideraccedilatildeo de Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro no prefaacutecio agrave traduccedilatildeo do

texto de Aristoacuteteles As categorias (trad Fernando Coelho Florianoacutepolis Ed Da UFSC 2014 p 9-10)

ldquo A grande questatildeo realmente capaz de colocar a tradiccedilatildeo em xeque eacute a de saber se a compreensatildeo do real

pelas categorias ontoloacutegicas de substacircncia qualidade quantidade tempo lugar etc eacute o que eacute porque as

categorias gramaticais de substantivo e sujeito adjetivo e predicadoetcjaacute se instalaram de antematildeo e

predeterminaram o escopo daquela compreensatildeo ndash metafiacutesica como lsquofeacute na gramaacuteticarsquo como aponta

Nietzsche ndash ou se ao contraacuterio o limite da gramaacutetica ocidental para dizer o real eacute que eacute por ser preacute-limitada

por sua compreensatildeo metafiacutesicardquo

70

Para Heidegger a filosofia deve sempre voltar-se para a vida faacutetica e cabe agrave

definiccedilatildeo filosoacutefica tornar expliacutecita a interpelaccedilatildeo A filosofia natildeo eacute portanto um

conjunto de mateacuterias determinadas (loacutegica ontologia poliacutetica esteacutetica etc) No sentido

formal57 da definiccedilatildeo (determinar o objeto em seu ser-o-que-como [ was-wie-sein]) a

filosofia eacute indicativa (anzeigend) cujo princiacutepio possui um caraacuteter bem especiacutefico

identificar a visatildeo preacutevia Mas o que eacute essa visatildeo preacutevia

ldquoNatildeo haacute aqui como contornar a facticidade do mundo que eacute o nosso e isto natildeo

porque ela definiria a nossa postura em relaccedilatildeo agraves coisas e funcionaria como um

matiz de ordem espiritual em nossa ligaccedilatildeo com o todo mas porque ela perpassa

originariamente o horizonte mesmo a partir do qual os entes se mostram como os

entes que satildeo Esse horizonte possui aleacutem disso um caraacuteter histoacuterico

sedimentado Ele natildeo se determina de maneira loacutegico-transcendental () mas se

constroacutei historicamente a partir de decisotildees de pensamento que vatildeo

paulatinamente determinando que se mostra ou natildeo como dotado de sentidordquo

(CASANOVA 2009 p47)

Assim contra o pensamento imperante da tradiccedilatildeo

ldquoO que se denomina filosoacutefico assim como os termos de acordo com os quais

problemas considerados filosoacuteficos satildeo levantados natildeo nasce nunca de uma

anaacutelise puramente loacutegica Ao contraacuterio tanto a designaccedilatildeo de algo como

filosoacutefico quanto o modo de colocaccedilatildeo dos problemas filosoacuteficos em geral

depende de estruturas faacuteticas que foram sendo lentamente decididas no interior

da tradiccedilatildeo Se desconsiderarmos uma tal dependecircncia o que fazemos eacute

simplesmente assumi-las como oacutebvias () que impedem um tratamento

originaacuterio dos fenocircmenosrdquo (CASANOVA 2009 p 47)

Seguindo Escudero no proacutelogo escrito agrave sua traduccedilatildeo do Relatoacuterio Natorp (2002

p11) para atingir a realidade primaacuteria da vida faacutetica Heidegger nos anos 1920 se

movimenta em duas decisotildees A primeira decisatildeo metodoloacutegica eacute desdobrada em dois

momentos a) o primeiro desconstrutivo descerrar o intricado mapa conceitual da

filosofia e voltar-se ao fenocircmeno da vida b) e o segundo construtivo fazer uma anaacutelise

formal dos diversos modos de efetivaccedilatildeo da vida em seu processo de realizaccedilatildeo histoacuterica

E a segunda decisatildeo a anaacutelise das estruturas ontoloacutegicas da vida que corresponde agrave

hermenecircutica fenomenoloacutegica do ser-aiacute precisamente agrave pergunta pelo sentido do ser no

57 A loacutegica para Heidegger eacute formalista natildeo formal Diz-se formal em relaccedilatildeo agrave indicaccedilatildeo formalista em

relaccedilatildeo a operacionalidade dos elementos da loacutegica Cf HEIDEGGER 2011 p28

71

interior mesmo do acontecimento preacute-teoacuterico da cotidianidade do ser-aiacute para assim ter

acesso ao sentido do ser em geral

Portanto o meacutetodo fenomenoloacutegico como indicativo-formal eacute parte do processo

metodoloacutegico construtivo para o acesso agrave vida faacutetica como maneira de fazer vir ao

encontro os fenocircmenos sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica bem como a maneira de

desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos categoriais de definiccedilatildeo

O elemento decisivo eacute a experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica no como do

aparecer de qualquer objeto e na medida em que este possa ser definido ldquodevem ser

hauridas do modo como o objeto se torna acessiacutevel originariamenterdquo (HEIDEGGER

(GA61) 2011 p28) Com outras palavras qualquer significado compreendido como

indicativo-formal e a expressatildeo linguiacutestica desse conceito satildeo proposiccedilotildees caracterizadas

como indicaccedilotildees hermenecircuticas A terminologia filosoacutefica e seu questionar mais

originaacuterio devem a cada vez indicar o campo situacional histoacuterico de onde extraem seus

conceitos Nas palavras de Heidegger (GA61) ldquoo decisivo eacute o desdobramento radical e

claro de uma situaccedilatildeo hermenecircutica como temporalizaccedilatildeo da proacutepria problemaacutetica

filosoacuteficardquo (2011 p11) Portanto a interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do conhecimento58

para Heidegger exige uma modificaccedilatildeo a pergunta se transforma em ldquocomordquo eacute o

conhecimento ldquoComordquo as coisas vecircm ao encontro e natildeo mais uma definiccedilatildeo que

responderia agrave questatildeo com pretensatildeo atemporal ldquoo que eacute o conhecimentordquo ou ldquoo que eacute

este enterdquo

Por conseguinte os indicadores formais tecircm a funccedilatildeo de explicitar e natildeo de

explicar pois seu caraacuteter indicativo formal potildee em tela atraveacutes de um conceito

inicialmente vazio e sem caraacuteter determinador elementos da proacutepria facticidade

(Faktizitaumlt) para que a anaacutelise hermenecircutica possa compreendecirc-los no interior mesmo da

facticidade e dessa forma encontrar o lugar vivo de cada elemento na estrutura

ontoloacutegica da realidade Mas qual a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo

situacional sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica e que revele tanto a situaccedilatildeo

58 Aqui vemos o compromisso de Heidegger com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do

sentido do conhecimento diligecircncia herdada da fenomenologia Poreacutem agora submetida a abordagem

ontoloacutegica E nesse sentido a abordagem hermenecircutica de Heidegger revela o caraacuteter derivado (de uma

situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento

72

compreensiva quanto descontrua a evidecircncia de toda determinaccedilatildeo conceitual dos entes

revelando antes o seu aparecer como ente Eacute o tema de nosso proacuteximo toacutepico

III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger

Segundo Heidegger ldquoo decisivo na investigaccedilatildeo de Dilthey natildeo eacute a teoria da ciecircncia

da histoacuteria senatildeo a tendecircncia em colocar a realidade histoacuterica agrave vista para a partir dela

esclarecer de que modo e maneira eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo59rdquo (HEIDEGGER (GA20)

2006 p34) Contudo Dilthey se movimenta no marco do questionamento de sua eacutepoca

buscando atraveacutes da vivecircncia da consciecircncia trazer agrave vista a realidade e a validade das

ciecircncias histoacutericas pois busca a partir da vida psiacutequica do sujeito histoacuterico o fundamento

para a garantia da objetividade dos elementos histoacutericos

Ao apresentar o imperativo das ciecircncias naturais e sua apropriaccedilatildeo da noccedilatildeo de

fenocircmeno no final do seacuteculo XIX em Ontologia (Hermenecircutica da facticidade) (GA63)

Heidegger apontou que na tentativa de superaccedilatildeo da metodologia cientiacutefica natural

apesar de ter negado sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito Dilthey se movimentou a partir

dessa orientaccedilatildeo pois seu projeto consistiu em lanccedilar as bases teoacutericas em uacuteltima anaacutelise

com pretensatildeo cientiacutefica para a abordagem dos fenocircmenos histoacutericos

ldquoO trabalho da filosofia concentra-se cada vez mais na teoria da ciecircncia na loacutegica

em seu sentido mais amplo e justamente com a loacutegica na psicologia Ambas

tomam a orientaccedilatildeo da ciecircncia natural e em particular da teoria do

conhecimento que vendo-se realizada na ciecircncia natural o conhecimento

verdadeiro busca as condiccedilotildees de tal conhecimento na consciecircncia Pretende-se

fazer o mesmo com a ciecircncia do espiacuterito dando supostamente um passo adiante

na direccedilatildeo que Kant havia delineado Aqui se considera que a tarefa principal

consiste na demarcaccedilatildeo serviram aqui de criteacuterio a ciecircncia natural embora per

negationem [] Ateacute mesmo Dilthey o qual estaacute propriamente arraigado na

histoacuteria e na teologia caracterizava a ciecircncia do espiacuterito como lsquocriacutetica da razatildeo

histoacutericarsquo apoiando-se naturalmente na problemaacutetica kantianardquo (HEIDEGGER

(GA63) 2012 p76)

Como dissemos Dilthey busca uma epistemologia das ciecircncias humanas a partir

da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos E a vivecircncia particular da consciecircncia

59 ldquoLo decisivo em el planteamiento de Dilthey no es la teoriacutea de la ciencia de la historia sino la tendencia

a poner la realidad de lo histoacuterico a la vista para a partir de ello aclarar de queacute modo y manera es posible

la interpretaciacuteonrdquo Opcit p34

73

como vida conexa e estruturante eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu

projeto Mesmo que Dilthey natildeo recorra agrave noccedilatildeo kantiana de sujeito transcendental ainda

estaacute subordinado agrave necessidade de fundamentaccedilatildeo uacuteltima ndash obrigatoriedade do

pensamento cientiacutefico criacutetico - por isso parte dos dados da psicologia descritiva

acreditando que eles poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar para as ciecircncias

humanas Dito de outro modo ainda que Dilthey tenha se negado a aplicar a metodologia

das ciecircncias naturais agraves ciecircncias humanas natildeo escapou ao ideal cientiacutefico de sua eacutepoca e

sucumbiu ao enrijecimento tradicional da estrutura do conhecimento como fundamento

Contudo Dilthey deu uma grande contribuiccedilatildeo agrave filosofia de sua eacutepoca ao pocircr a

realidade histoacuterica agrave vista e ao propocirc-la como ponto de partida para a anaacutelise que visa

esclarecer de que modo eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo Afastado da estrutura do conhecimento

como fundamento Heidegger indica a anaacutelise hermenecircutica como a forma de apreensatildeo

da abertura originaacuteria de sentido na qual se encontra o ser-aiacute enquanto ser-no-mundo e

como a preacute-compreensatildeo de seu ser e de todo e qualquer ente Com poucas palavras a

hermenecircutica fenomenoloacutegica (ou intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica no interior da situaccedilatildeo

hermenecircutica) constitui a condiccedilatildeo de possibilidade de toda investigaccedilatildeo ontoloacutegica

Aqui o termo ldquosentidordquo natildeo significa definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo mas a manifestaccedilatildeo do

ente em seu ser ou seja no modo como aquilo pode vir ao encontro e se manter como

ente e em uacuteltima instacircncia manter-se em seu significado Assim a apreensatildeo filosoacutefica

dessa abertura de sentido primaacuteria deve ser alcanccedilada na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo de

compreensatildeo dos entes no modo como os entes vecircm ao encontro sem qualquer teoria

pela formaccedilatildeo da posiccedilatildeo preacutevia Eacute por isso que ldquoo decisivo para a configuraccedilatildeo de uma

posiccedilatildeo preacutevia eacute ver o ser-aiacute em sua cotidianidade A cotidianidade caracteriza a

temporalidade do ser-aiacute (concepccedilatildeo preacutevia) Eacute inerente agrave cotidianidade certa medianidade

do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER (GA63) 2012 p90)

Indicamos alguns termos que ainda natildeo foram devidamente esclarecidos como

ser-aiacute ser-no-mundo temporalidade Trataremos mais detidamente desses termos baacutesicos

para a compreensatildeo da filosofia de Heidegger no proacuteximo capiacutetulo a partir da obra

principal de nossa dissertaccedilatildeo No momento faremos apenas esclarecimentos breves para

que possamos prosseguir a nossa apresentaccedilatildeo

74

Na tentativa de desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos

categoriais de definiccedilatildeo (gecircnero e diferenccedila especiacutefica) e a fim de acessar a mostraccedilatildeo

originaacuteria do fenocircmeno Heidegger usa a expressatildeo ser-aiacute (Dasein) para caracterizar

aquele ente que noacutes mesmos somos e indicar sua negatividade categorial pois o ser-aiacute soacute

eacute a partir do seu aiacute de sua existecircncia (mundo faacutetico no qual eacute lanccedilado) sem qualquer

categoria preacutevia que o defina Ponderaccedilatildeo apresentada pelo autor

ldquoAo chamar de homem o ser-aiacute que iraacute investigar coloca-se jaacute de antematildeo dentro

de uma determinada concepccedilatildeo categorial visto que o exame eacute levado a cabo

seguindo a direccedilatildeo da definiccedilatildeo tradicional de lsquoanimal racionalersquo () Tendo tal

definiccedilatildeo como direccedilatildeo define-se a descriccedilatildeo numa perspectiva determinada

sem que com ela se recuperem ativamente os motivos originaacuterios de tal maneira

de ver as coisasrdquo (HEIDEGGER(GA63) 2012 p34)

Mas entatildeo o que significa dizer que o ser-aiacute se encontra enquanto ser-no-mundo

Ao indicar o ser-aiacute Heidegger jaacute aponta a sua constituiccedilatildeo fundamental como ser-no-

mundo Mundo natildeo eacute um ente natildeo eacute o conjunto de entes nem eacute qualquer espacialidade

geomeacutetrica Ser-no-mundo eacute o encontro originaacuterio com a proacutepria facticidade (Faktizitaumlt)

e todas as possibilidades lanccediladas nesse encontro primordial ou como jaacute dissemos a

abertura de sentido na qual se encontra o ser-aiacute primariamente em seu mundo circundante

ldquoSer-no-mundo natildeo quer dizer aparecer entre outras coisas significa poreacutem

ocupar-se no circundante do mundo que vem ao encontro demorar-se nele O

modo proacuteprio de ser mesmo num mundo eacute o cuidado (sorge) () A vida se deixa

atingir ou fala consigo mesma mundanamente no e pelo cuidadordquo (HEIDEGGER

(GA63)2012 p107)

Se Dilthey compreende a categoria do significado como mediadora entre a

vivecircncia da consciecircncia e a realidade histoacuterica para Heidegger a significacircncia eacute a

articulaccedilatildeo do proacuteprio mundo que natildeo vem ao encontro a partir da consciecircncia mas da

ocupaccedilatildeo jaacute orientada pela facticidade (Faktizitaumlt) ldquoA significacircncia eacute um como do ser e

nele centra-se precisamente o categorial do mundo do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER(GA63)

2012 p91) E assim a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo situacional

sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica se daacute a partir da ocupaccedilatildeo do ser-aiacute que estaacute no mundo

propriamente como cuidado Cuidado natildeo quer dizer cuidado de si mas a disposiccedilatildeo agraves

coisas e a si em seu ser estar voltado para o ser dos entes E no caso da imediatidade da

vida a intencionalidade praacutetica que orienta a ocupaccedilatildeo

75

Para Heidegger trazer a realidade histoacuterica agrave vista eacute apropriar-se da situaccedilatildeo

hermenecircutica ou seja conquistar o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se

encontra o fenocircmeno da vida considerando que ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto

apropriaccedilatildeo compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo

(HEIDEGGER(GA62) 2002 p30) Em outras palavras o passado se manifesta sob a

interpretaccedilatildeo e abertura compreensiva possiacutevel no presente E portanto a partir da

abertura que dispotildee o presente lanccedilando suas possibilidades a tarefa da filosofia eacute

apropriar-se dessa compreensatildeo tendo em vista que ela atravessa o ser-aiacute em seu caraacuteter

ontoloacutegico que pode abrir-se a compreensatildeo de ser dos entes Eacute a partir daiacute que

ldquoVem agrave tona o papel paradigmaacutetico da filosofia platocircnico-aristoteacutelica para

Heidegger Segundo o filoacutesofo o que tem lugar em Platatildeo e Aristoacuteteles natildeo eacute algo

que diz respeito apenas ao interesse acadecircmico particular de um grupo de eruditos

especializados em suas obras Natildeo eacute filologia que nos fornece uma primeira via

de acesso aos elementos centrais de suas diversas compreensotildees nem tampouco

a filosofia acadecircmica que nos propicia pela primeira vez uma visatildeo clara do perfil

propriamente dito de seus escritos geniais Ao contraacuterio Platatildeo e Aristoacuteteles satildeo

decisivos para a constituiccedilatildeo das estruturas preacutevias de nossa interpretaccedilatildeo dos

entes porque temos neles a origem de boa parte dos horizontes investigativos

posteriormente sedimentadosrdquo (CASANOVA 2009 p59)

Heidegger entatildeo busca em Aristoacuteteles o ponto de partida natildeo soacute para as

interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas enquanto repeticcedilatildeo da pergunta ontoloacutegica fundamental

como tambeacutem para a interpretaccedilatildeo do uacutenico ente capaz de compreender o sentido do ser

dos entes o ser-aiacute Natildeo sem questionar a leitura tradicional da obra de Aristoacuteteles

Heidegger retomou a importante ldquodoutrinardquo do estagirita a qual estabelecia uma relaccedilatildeo

entre a sabedoria praacutetica (φρόνησις) a sabedoria (σοφία) e a vida do homem e seu modo

de existecircncia (βιος) De modo mais claro

ldquoAteacute Heidegger era comum tratar a obra de Aristoacuteteles a partir de um primado

da filosofa teoacuterica em relaccedilatildeo agrave filosofia praacutetica um primado que havia sido

preparado pelo modo tradicional de leitura do estagirita Partindo da concepccedilatildeo

aristoteacutelica da vida teoacuterica (βίος θεωρητικός) como a vida mais plena possiacutevel e

da filosofia como uma ciecircncia que natildeo se ateacutem aos entes em geral nem tampouco

a um ente especiacutefico mas que tem por uacutenico objeto o ser enquanto ser a

interpretaccedilatildeo tradicional do corpus aristoteacutelico cindiu radicalmente o acircmbito

praacutetico do acircmbito teoacuterico definindo o segundo como o uacutenico acircmbito da verdade

propriamente dita Com isso o acircmbito praacutetico foi relegado a um segundo plano

ao plano daquilo que dizia respeito apenas agrave melhor forma mundana de vidardquo

(CASANOVA 2009 p64)

76

O que estaacute em questatildeo para Heidegger natildeo eacute apenas identificar o fato de que nos

encontramos numa determinada tradiccedilatildeo definida por um extrato do conhecimento

historiograacutefico mas compreender radicalmente como nos situamos nessa tradiccedilatildeo No

texto de 1922 Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da

situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) comumente chamado de Natorp-Bericht ou Relatoacuterio-

Natorp Heidegger tenta explicitar a situaccedilatildeo hermenecircutica atraveacutes do como (wie) de todo

aparecer dos entes e das possibilidades do ser-aiacute na vida faacutetica Sendo o ser-aiacute aquele que

compreende a si mesmo e os outros entes sem qualquer preacutevia teorizaccedilatildeo em seu

acontecimento compreensivo Para tanto eacute necessaacuterio esclarecer as condiccedilotildees de

compreensatildeo e interpretaccedilatildeo ou conquistar o horizonte de sentido jaacute aberto no qual jaacute se

encontra o fenocircmeno da vida As condiccedilotildees satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a

direccedilatildeo da visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a

lsquovisibilidadersquo (Sichtweite)60 Satildeo essas condiccedilotildees que compotildeem a compreensatildeo e a

interpretaccedilatildeo ontoloacutegicas-temporais do ser-aiacute em relaccedilatildeo agraves suas possibilidades de ser e

em relaccedilatildeo aos entes que lhe vem ao encontro Essas condiccedilotildees natildeo satildeo lsquobarreirasrsquo para

o entendimento ao contraacuterio satildeo condiccedilotildees de abertura primaacuteria para qualquer

compreensatildeo ontoloacutegica Tentando esclarecer em (1) temos o acircmbito da realidade dada

em uma preacutevia abertura temporal de sentido em (2) a direccedilatildeo que jaacute determinou algo

ldquocomo-algordquo (Als-was) e ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu

lugar significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de

toda possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o

como do aparecer dos entes em seu ser e as possibilidades de comportamentos do ser-aiacute

eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto (1) e jaacute

interpretado (2) e por isso pode mover-se com pretensotildees de objetividade e definiccedilatildeo dos

entes

Eacute a partir dessas consideraccedilotildees que Heidegger desconstroacutei as noccedilotildees de

Aristoacuteteles engessadas pela tradiccedilatildeo de noucircs phroacutenesis e sophiacutea natildeo mais como

conceitos definidos a partir da leitura tematicamente eacutetica do Estagirita mas a partir da

orientaccedilatildeo da biacuteos ou seja da vida do homem e seu modo de existecircncia faacutetica No interior

do Relatoacuterio-Natorp a partir da interpretaccedilatildeo do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco de

60 Cf HEIDEGGER(GA62)2002 p29

77

Aristoacuteteles Heidegger apresenta essas virtudes dianoeacuteticas como ldquodiferentes

modalidades que permitem levar a cabo uma autecircntica custoacutedia do ser na verdade61rdquo

(HEIDEGGER (GA62) 2002 p60) O que quer dizer que se trata dos modos pelos quais

o ser-aiacute protege o ser dos entes enquanto desvelado (ἀλήθεια)

Para Heidegger o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona

um lsquoaquirsquordquo62 (HEIDEGGER(GA62) 2002 p66) essa virtude proacutepria do homem ldquose

realiza como ενέργεια como atividade () ou seja o νους abre um horizonte que sempre

responde a um modo concreto de tratar com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma

execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma determinaccedilatildeo63rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002

p66) O noucircs compreendido tradicionalmente como intelecto racional eacute proacuteprio do

homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica (homem (animal [gecircnero] + racional [diferenccedila

especiacutefica]) mas porque o homem ou melhor o ser-aiacute eacute o ente que pode custodiar abrir-

se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um compreender que jaacute interpreta

os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto na vida faacutetica que acontece

fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da

solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato praacutetico com os entes Essa

orientaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel porque no noucircs ldquoo loacutegos o legein eacute o modo atraveacutes do qual se

realiza o noein e como tal eacute um como tal eacute um διανοείσθαι um inteligir que decompotildee

e que apreende64rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002 p65) Vimos (II) que o λόγος na

fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν de interpretaccedilatildeo e natildeo diz

respeito agrave definiccedilatildeo linguiacutestica de um ou outro ente mas previamente a qualquer

determinaccedilatildeo gramatical ou categorial refere-se ao que manteacutem o ente como existente

portanto desvelado e interpretado em seu lsquocomo-entersquo Assim a relaccedilatildeo fundamental da

phroacutenesis - que prescreve o como o para-que do ente (utensiacutelio) - ao ser-aiacute eacute o

61 ldquoLa interpretacioacuten de este tratado prescindiendo provisionalmiente de la problemaacutetica especiacuteficamente

eacutetica permite comprender que las laquovirtudes dianoeacuteticasraquo son diferentes modalidades que permiten llevar a

cabo uma auteacutentica custodia del ser en la verdaderdquo Opcitp60 62 ldquoEl νους ofrece en general una perspectiva da algoproporciona un lsquoaquiacutersquordquoOp cit p66

63 ldquoEl νοῦς que es ίδιος άνθρωπος se realiza concretamente como ενέργεια como actividad como su

propia actividad es decir el νοῦς abre un horizonte que siempre responde a un modo concreto de tratar

con el mundo a traveacutes de una opercioacuten de una ejecucioacuten de una manipulacioacuten de una determinacioacutenrdquo

Opcitp66

64 ldquoel λόγος el λέγειν es el modo em el que se realiza el νοεῖν y como tal es un διανοείσθαι un inteligir

que decompone lo que apreenderdquo Opcit p65

78

desvelamento do ente no instante do proacuteprio trato da proacutepria atividade praacutetica sem

qualquer mediaccedilatildeo teoacuterica com o ente

Mas as atividades praacuteticas satildeo realizadas natildeo com fim em si mesmas mas com

vistas agrave execuccedilatildeo de um fim mobilizado pelo proacuteprio ser-aiacute em sua vida cotidiana e faacutetica

Assim o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se encontra o fenocircmeno da vida

parte do instante mesmo que potildee ao alcance da vista circunspecta o modo de

comportamento apropriado com o ente com vistas agrave execuccedilatildeo de um fim Desse modo

ldquoO ser da vida eacute considerado como uma atividade que encontra em si mesmo seu

fim o ser da vida se encontra nessa atividade quando a vida humana chegou a

seu fim com respeito a sua possibilidade de movimento mais proacutepria a

possibilidade de inteligir puro Essa atividade eacute proacutepria da εξις [do modo de ser]

que se conhece como σοφία Conforme seu caraacutecter intencional o compreender

puro natildeo custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo

forma parte do horizonte intencional da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso

pode ser de outra maneira O ser da vida humana deve ser considerado

unicamente desde a perspectiva da temporalizaccedilatildeo pura da σοφία como tal e em

razatildeo da autecircntica atividade a sua disposiccedilatildeordquo65 (HEIDEGGER (GA62) 2002

p71)

Assim o sentido do ser soacute pode ser abordado atraveacutes do ser-aiacute pois a pergunta

pelo ser do ser-aiacute possibilita a pergunta pelo sentido do ser em geral natildeo por um

fundamento teoacuterico mas como uma condiccedilatildeo ontoloacutegica O ser-aiacute eacute o ente que pode abrir-

se ao desvelamento dos entes e o faz a partir da proacutepria vida faacutetica sem qualquer

teorizaccedilatildeo preacutevia o ser-aiacute mobiliza o ser dos entes em geral em funccedilatildeo da proacutepria vida

ou seja dos modos possiacuteveis de ser a partir de sua temporalidade

Desde as primeiras investigaccedilotildees de Heidegger na deacutecada de 1920 daacute-se uma

profunda transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia a qual consiste na tentativa de

mostrar como eacute possiacutevel articular filosoficamente uma ciecircncia originaacuteria da vida ou em

mostrar como se daacute a realidade antes de qualquer consideraccedilatildeo cientiacutefica ajuizante isso

65 ldquoEl ser de la vida es considerado como uma actividad que encuentra em siacute mesma su fin el ser da la vida

se encuentra em esta actividad cuando la vida humana haacute llegado a su fin com respecto a su posibilidad de

movimento maacutes propia la posibilidad del inteligir puro Esta actividad es propia de la εξις [del modo de

ser] que se conoce como σοφία Conforme a su caraacutecter intencional el comprender puro no custodia la vida

humana en el modo de su ser faacutectico la vida humana no forma parte del horizonte intencional de la σοφία

ya que es un ente que en cada caso puede ser de otra manera El ser de la vida humana debe considerarse

unicamente desde la perspectiva de la temporalizacioacuten pura de la σοφία como tal y en razoacuten de la auteacutentica

actividad a su disposicioacutenrdquo Opcitp71

79

quer dizer antes de qualquer concepccedilatildeo teoacuterica de mundo Nesse sentido vimos que a

intencionalidade fenomenoloacutegica eacute intuiccedilatildeo compreensiva ou intuiccedilatildeo hermenecircutica em

meio ao mundo circundante que vem ao encontro E as coisas que vecircm ao encontro natildeo

respondem primariamente ao tradicional esquema sujeito-objeto mas resultam

compreensiacuteveis a partir da pertenccedila preacutevia a um mundo jaacute articulado ou a partir de um

estado de coisas preacute-compreendido na vida faacutetica que articula toda e qualquer

compreensatildeo do homem (das coisas e de si mesmo) desde sua existecircncia imediata no

mundo Dito de outro modo revela-se como compreensatildeo ontoloacutegica

Ao decidirmos apresentar as preleccedilotildees de Heidegger que antecederam a obra central

para o nosso trabalho foi nosso intuito elucidar os princiacutepios que provavelmente

motivaram a problemaacutetica exposta em Ser e Tempo A partir de agora nossa tarefa seraacute a

de tentar compreender a partir da obra de 1927 como o fenocircmeno da linguagem aparece

no interior dessa compreensatildeo e em que medida a linguagem eacute possiacutevel por uma

estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Eacute a tentativa de nosso proacuteximo capiacutetulo

80

Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da

linguagem (Sprache) em Ser e Tempo

ldquoa maacutequina do mundo se entreabriu para quem de a romper jaacute se esquivava e soacute de o ter pensado se carpiardquo (A maacutequina do mundo Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

Nos capiacutetulos anteriores descrevemos como do desenvolvimento das ciecircncias

positivas particulares no final do seacuteculo XIX emergiu a discussatildeo acerca do sentido e da

possibilidade do conhecimento No interior desse contexto destacamos o pensamento de

Husserl de Dilthey e as linhas gerais de alguns neokantianos de Baden A partir daiacute

descrevemos como a criacutetica heideggeriana agrave filosofia dos valores dos neokantianos

conduziu-o ao que ele proacuteprio chamou de lsquoes gibtrsquo originaacuterio como o campo

hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Para compreender a questatildeo pelo

sentido do ser em geral ie a proacutepria ontologia para Heidegger era necessaacuterio esclarecer

que a fenomenologia natildeo estava fundada na epistemologia (a partir da consciecircncia) e que

a hermenecircutica natildeo era apenas um instrumento metodoloacutegico capaz de nos dar acesso agrave

histoacuteria em sua objetividade mas muito mais do que isso ela era intuiccedilatildeo compreensiva

e imediata do mundo Assim a partir da criacutetica imanente que Heidegger fez ao meacutetodo

fenomenoloacutegico husserliano foi possiacutevel compreender como ele reconduziu a filosofia agrave

pergunta fundamental inaugurada no iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo a

pergunta pelo ser Aleacutem disso como o pensador desenvolveu a hermenecircutica voltada agrave

facticidade da vida natildeo em funccedilatildeo das vivecircncias da consciecircncia dos sujeitos histoacutericos

mas das vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico Todo esse percurso foi necessaacuterio para que

pudeacutessemos conquistar um solo interpretativo capaz de sustentar a anaacutelise do fenocircmeno

da linguagem tal como aparece em Ser e Tempo E ainda alcanccedilar a pergunta pelo

81

sentido de ser Pois ela a pergunta estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura

de sentido que precisamos explicitar

Contra a tradicional abordagem do problema da linguagem que mais comumente

focalizou as obras de Heidegger apoacutes a viragem (die Kehre)66 ie os escritos a partir

da deacutecada de 1930 neste capiacutetulo defenderemos que o fenocircmeno da linguagem (Sprache)

jaacute desempenha um papel decisivo em Ser e Tempo e que ele soacute se torna possiacutevel a partir

de uma das estruturas preacutevias existenciaacuterias examinadas na citada obra e que eacute a

estrutura de mostraccedilatildeo dos entes Assim embora admitindo que a questatildeo da linguagem

ainda natildeo estivesse posta de modo expliacutecito ou temaacutetico nosso trabalho pretende chamar

atenccedilatildeo para a inegaacutevel funccedilatildeo que a linguagem cumpre jaacute na obra de 1927

No sect 18 de Ser e Tempo Heidegger afirma que a significatividade funda a

possibilidade de significaccedilotildees e estas a possibilidade da linguagem

Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez

familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o

Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como

lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutengua

(HEIDEGGER 2012p261)

66 Apoacutes a Kehre nos anos 1930 a questatildeo do sentido de ser eacute reconduzida agrave histoacuteria e verdade do seer Este

movimento estaacute diretamente relacionado com o limite mesmo da obra de 1927 pois o processo de

singularizaccedilatildeo do ser-aiacute conforme elaborado em Ser e Tempo parece natildeo ser suficiente para a

movimentaccedilatildeo do horizonte histoacuterico e de sua semacircntica fechada Essa insuficiecircncia eacute levada agraves uacuteltimas

consequecircncias a partir dos anos 1930 e radicalizada com uma viragem em direccedilatildeo ao campo dos

acontecimentos histoacutericos Em Ser e tempo a negatividade proacutepria ao ser-aiacute apontava para a possibilidade

de mobilidade histoacuterica a partir da assunccedilatildeo como singularizaccedilatildeo de sua proacutepria negatividade e de sua

responsabilidade mais proacutepria como ser-aiacute de decisatildeo quanto aos caminhos de sua proacutepria existecircncia Jaacute

apoacutes a viragem a negatividade se mostraraacute natildeo somente a partir do ser-aiacute mas tambeacutem no assentamento

de toda abertura histoacuterica compreensiva uma negatividade que se mostraraacute na ausecircncia mesma de

fundamentos absolutos Caberia ademais considerar um aprofundamento das estruturas fenomenoloacutegicas

mais fundamentais no decorrer do pensamento de Heidegger Seraacute que em Ser e Tempo podemos defender

que a abertura que sustenta o sentido de ser do ser-aiacute como cuidado e temporalidade (Zeitlichkeit) estaria

afinal assentada no tempo histoacuterico Questatildeo afinal expressa na uacuteltima linha de Ser e tempo ldquoO tempo

(Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Seria entatildeo possiacutevel

pensar esse aprofundamento do gesto fenomenoloacutegico como a busca do limite de qualquer

intencionalidade Dito de outro modo apoacutes a Kehre o ser enquanto Ereignis (acontecimento apropriador)

poderia ser compreendido como o acircmbito sempre fugidio de toda e qualquer intencionalidade mas ao

mesmo tempo acircmbito no qual unicamente toda e qualquer intencionalidade pode acontecer Revelar-se-ia

o sentido fenomenoloacutegico do que Heidegger chama de clareira (die Lichtung)

82

Na seacutetima ediccedilatildeo de Ser e Tempo publicada em 1953 numa nota muito

esclarecedora acrescentada justamente a esta passagem acima citada Heidegger

evidenciou a diferenccedila entre a sua concepccedilatildeo da linguagem nos anos 20 e aquela apoacutes a

viragem Essa nota apareceu nas obras completas publicadas a partir de 1977 e tambeacutem

na traduccedilatildeo brasileira aqui utilizada Nessa nota muito importante para o objetivo desta

pesquisa o autor corrigiu sua proacutepria afirmaccedilatildeo (1927) de que a linguagem era derivada

Em 1953 ele declarou categoricamente que natildeo era verdadeiro que ldquoDasein-que-entende

[pudessecc] abrir como interpretante algo assim como lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais

[fundariamcc] novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo E que ldquoa liacutengua natildeo eacute

um pavimento sobreposto a outro senatildeo que eacute o desdobrar-se originaacuterio da verdade como

[aiacute] (HEIDEGGER 2012p261 nota c) Essa correccedilatildeo nos daacute uma prova de que a

concepccedilatildeo de linguagem em Ser e Tempo possuiacutea uma estratificaccedilatildeo que natildeo mais eacute aceita

apoacutes os anos 30 Poreacutem como aponta Stein o fenocircmeno da linguagem jaacute desempenhava

um importante e inegaacutevel papel no interior do tratado de 1927

Heidegger liga o questionamento de sua obra prima ao problema da linguagem

Ela assume papel condutor na elaboraccedilatildeo de seu meacutetodo e na realizaccedilatildeo analiacutetica

existencial No meacutetodo fenomenoloacutegico como interpretaccedilatildeo ou hermenecircutica

universal como apossamento de tudo o que foi transmitido pela tradiccedilatildeo atraveacutes

da linguagem como destruiccedilatildeo e revolvimento do chatildeo linguiacutestico da metafiacutesica

ocidental se descobre um imenso projeto de analiacutetica da linguagem Mas como

o meacutetodo fenomenoloacutegico visa o redimensionamento da questatildeo do ser natildeo numa

abstrata teoria do ser nem numa pesquisa historiograacutefica de questotildees ontoloacutegicas

mas numa imediata proximidade com a praacutexis humana como existecircncia e

facticidade a linguagem - o sentido a significaccedilatildeo - natildeo eacute analisada nun sistema

fechado de referecircncias mas ao niacutevel da historicidade Se no meacutetodo dialeacutetico

podemos encontrar uma certa miacutestica teleo-loacutegica (teleacuteo-troacutepica) a palavra no

meacutetodo do positivismo uma certa tecno-loacutegica da linguagem encontramos no

meacutetodo fenomenoloacutegico de Heidegger uma certa onto-loacutegica do dizer isto eacute uma

compreensatildeo da dimensatildeo preacute-ontoloacutegica da linguagem ligada a explicitaccedilatildeo do

mundo como horizonte de transcendecircncia (STEIN1971 p14)

Ser e Tempo possui certo caraacuteter preparatoacuterio pois eacute a tentativa de reformulaccedilatildeo

da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido depende justamente daquela

reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo O objetivo do tratado

eacute nos proacuteprios termos de Ser e Tempo a elaboraccedilatildeo concreta da pergunta pelo sentido

de ldquoserrdquo (Sinn von Sein) (HEIDEGGER2012 p31) No interior da elaboraccedilatildeo da proacutepria

83

pergunta a abordagem fenomenoloacutegica-hermenecircutica como meacutetodo de acesso ao sentido

de ser de todo ente acaba por demonstrar que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as

coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um campo de signos referenciais fechados que

doam significado agraves coisas mas uma manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez

se faz presente na facticidade da existecircncia concreta Nossa tentativa no presente capiacutetulo

eacute compreender como a partir da reelaboraccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ser e de seu

desenvolvimento nessa obra a linguagem se mostra enquanto manifestaccedilatildeo uacuteltima de um

horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo previamente

articulada dos entes e das possibilidades do ser-aiacute E dessa maneira indicar como as

palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da

experiecircncia hermenecircutica Mas antes de iniciarmos nosso capiacutetulo eacute necessaacuterio fazer

algumas consideraccedilotildees que se tornaram agora possiacuteveis apoacutes o desenvolvimento dos

capiacutetulos anteriores e as quais balizam nossa investigaccedilatildeo central

Certamente a fenomenologia husserliana tambeacutem natildeo atribui agrave linguagem um

aspecto referencial de acesso agraves coisas ao contraacuterio a assim chamada visatildeo das essecircncias

eacute a maneira de depurar o conteuacutedo linguiacutestico do conteuacutedo significativo preacute-linguiacutestico

Nas palavras de Gadamer (2010 p8)

A eleiccedilatildeo do modelo da visatildeo como modo do procedimento fenomenoloacutegico

indica que coisa mesma eacute preacute-conceptual e preacute-linguiacutestica A linguagem permite

articular o sentido da coisa mesma que contudo eacute independente da linguagem Eacute

aliaacutes apenas neste quadro que o exerciacutecio da eacutepoche se torna compreensiacutevel A

epocheacute eacute o que torna possiacutevel a reduccedilatildeo ao estado absolutamente desprovido de

preconceitos Mas o que eacute que torna a epocheacute possiacutevel A epocheacute eacute considerada

por Husserl como uma possibilidade de princiacutepio e como uma possibilidade

universal Mas esta possibilidade pressupotildee que se possa passar de uma plano

predicativo ndasho da linguagem ndash para um plano ante-predicativo - o da pura visatildeo

[] Por outro lado aquilo que se daacute de uma forma originaacuteria e na sua pureza daacute-

se como presenccedila absoluta numa figuraccedilatildeo atemporal Os fenoacutemenos no sentido

husserliano caracterizam-se por serem dados agrave consciecircncia de uma forma

absolutamente evidente e uacuteltima o fenoacutemeno eacute absoluta presenccedila a sua doaccedilatildeo

eacute plena

Husserl busca avanccedilar ateacute um plano imediato da experiecircncia que anteceda agrave

interpretaccedilatildeo como experiecircncia preacute-linguiacutestica a partir de intenccedilotildees linguiacutesticas Assim

busca na intencionalidade do fenocircmeno um estado desprovido de preconceito (epocheacute)

Heidegger alia-se a Husserl contra a tese de que o sentido ou o significado sejam

84

linguiacutesticos Contudo para o autor de Ser e Tempo toda experiecircncia jaacute inclui uma

interpretaccedilatildeo certamente natildeo linguiacutestica mas hermenecircutica e fundamentalmente praacutetica

Dessa forma intencionar um fenocircmeno a partir de um horizonte histoacuterico hermenecircutico eacute

considerar e apropriar-se do significado oferecido pelas condiccedilotildees preacutevias e em uacuteltima

anaacutelise por uma semacircntica sedimentada Dito de outro modo para Husserl a expressatildeo

linguiacutestica eacute a maneira de o pensamento intencionar significaccedilatildeo e a orientaccedilatildeo da

pesquisa pela condiccedilatildeo e possibilidade do conhecimento suspende todo posicionamento

ontoloacutegico da coisa mesma em prol do acesso epistemoloacutegico objetivo aos fenocircmenos Jaacute

na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto ontoloacutegico do

conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e qualquer significado

que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido que eacute tambeacutem histoacuterico e no qual

algo pode manter-se em seu significado Eacute nessa perspectiva que nos colocamos em busca

da estrutura ontoloacutegica da linguagem

Portanto eacute importante ter em vista que para Heidegger

(1) a experiecircncia hermenecircutica traz a significatividade (Bedeutsamkeit) que potildee a

descoberto todo e qualquer ente E na medida em que essa experiecircncia orienta o ponto

de partida da intencionalidade67 ela desvela o ente em seu ser o qual (ente) aparece

como algo No entanto essa significatividade se manteacutem em virtude de uma dupla

67 O termo ldquoDaseinrdquo eacute utilizado por Heidegger para afastar qualquer compreensatildeo de homem como

ldquosujeitordquo ldquoconsciecircnciardquo ldquoanimal racionalrdquo etc Desse modo poder-se-ia pensar que uma vez afastadas

essas interpretaccedilotildees tambeacutem o termo lsquointencionalidadersquo deveria ser desconsiderado pois a fenomenologia

husserliana o utiliza como ato de consciecircncia Natildeo eacute o caso Heidegger ainda manteacutem a orientaccedilatildeo

fenomenoloacutegica poreacutem a desloca da consciecircncia para a abertura compreensiva sendo ser-aiacutemundo a

relaccedilatildeo intencional primaacuteria e ainda essa compreensatildeo eacute fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo

circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser Ou sejavisatildeo natildeo teoacuterica

sem a primazia da consciecircncia A intencionalidade eacute pensada portanto natildeo como ato de consciecircncia mas

abertura compreensiva mobilizada por toda e qualquer performatizaccedilatildeo existencial Em Ser e Tempo o

termo lsquointencionalidadersquo e seus derivados aparecem apenas 4 vezes em 2 momentos 1) No sect10 ldquoAgrave essecircncia

da pessoa pertence o existir somente na execuccedilatildeo dos atos intencionais [intentionalen] e assim ela por

essecircncia natildeo eacute objeto () Em todo caso a pessoa eacute dada enquanto executora de atos intencionais

[intentionaler]ligados pela unidade de um sentidordquo (2012 p155) 2) No sect69 nota 10 ldquoA anaacutelise

intencional [intentionalen] da percepccedilatildeo e da intuiccedilatildeo em geral deveria sugerir essa caracterizaccedilatildeo

lsquotemporalrsquo do fenocircmeno Que e como a intencionalidade [Intentionalitaumlt] da lsquoconsciecircnciarsquo se funda na

temporalidade estaacutetica do Dasein ()rdquo Essa uacuteltima passagem eacute decisiva A intencionalidade eacute portanto

mantida por Heidegger mas deve ser compreendida em funccedilatildeo do sentido de ser do ser-aiacute a temporalidade

que abre compreensivamente o ser dos entes em geral Cf tambeacutem nota 70

85

abertura de sentido (Sinn) a abertura de mundo em funccedilatildeo do ser-aiacute e o sentido de ser

do ser-aiacute em funccedilatildeo da temporalidade de sua existecircncia

(2) a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados

(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Entatildeo o significado pode

vir a ganhar sua expressatildeo e forma predicativas a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo

(Aussage) em sua ligaccedilatildeo derivativa da interpretaccedilatildeo (Auslegung) Apresentando dessa

maneira o caraacuteter originaacuterio da verdade enquanto desvelamento (Aleacutetheia) e natildeo como

aderente ao juiacutezo proposicional como compreendeu a tradiccedilatildeo Eacute assim que se daacute

primariamente o acesso ao fenocircmeno da linguagem em seu sentido ontoloacutegico

Podemos antecipar aqui o que seraacute desenvolvido nesse capiacutetulo a linguagem estaacute

assentada em duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado68 que

revelam a diferenccedila entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm

articulados pela imbricaccedilatildeo radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno

Finalmente pedindo a paciecircncia do nosso leitor antes de comeccedilarmos o capiacutetulo

III vamos repetir um pouco o que jaacute foi adquirido nos dois primeiros capiacutetulos da

Dissertaccedilatildeo quando tentamos mostrar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger no

interior da fenomenologia (a partir de sua criacutetica imanente e radicalizaccedilatildeo do gesto

fenomenoloacutegico) foi decisiva para a virada da questatildeo compreendida como possibilidade

de acesso pelo sentido do conhecimento ao sentido do ser Agora a partir de Ser e Tempo

eacute possiacutevel considerar que houve um aprofundamento desse gesto fenomenoloacutegico Por

outra teria ocorrido um aprofundamento ou uma radicalizaccedilatildeo das estruturas

fenomenoloacutegicas De modo mais claro eacute possiacutevel compreender o percurso heideggeriano

como uma tentativa de lanccedilar a intencionalidade enquanto essecircncia mesma da

68 Diferentemente de VIGO (2012 p71) que considera 3 estruturas compreensatildeo (Verstehen) -

interpretaccedilatildeo (Auslegung) e enunciado (Aussage) noacutes consideraremos apenas duas tendo em vista que

julgamos natildeo ser a compreensatildeo uma estrutura autocircnoma e que portanto ela natildeo deve ser separada da

interpretaccedilatildeo Seguimos a letra do sect32 de Ser e Tempo ldquoNa interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo

diverso mas torna-se ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p421) Pensamos que conceder autonomia agrave

compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido primaacuterio ao natildeo remetecirc-la ao Dasein quem

compreendendo jaacute interpreta e custodia o sentido de ser dos entes jaacute estariacuteamos no campo dos

acontecimentos histoacutericos Portanto estariacuteamos ultrapassando os limites de Ser e Tempo ou mais

especificamente falando os limites da ldquoAnaliacutetica Existencialrdquo

86

fenomenologia num acircmbito fundamental que se abriria a toda e qualquer possibilidade

de intencionalidade Vejamos essas questotildees mais detidamente

Como jaacute indicado tanto em Heidegger como em Husserl existe um primado da

experiecircncia antepredicativa em detrimento da predicaccedilatildeo ou da experiecircncia

predicativamente articulada69 Jaacute na preleccedilatildeo de 1919 Heidegger apontava o lsquoes gibtrsquo

originaacuterio ou a concretude do mundo que se daacute como acircmbito fundamental no qual se abre

a possibilidade de intencionalidade Depois dela as preleccedilotildees dos anos 1920 passaram a

descrever a intencionalidade como uma noccedilatildeo praacutetica orientada pela ocupaccedilatildeo e com base

nisso descreveram a experiecircncia antepredicativa e histoacuterica do significado Mas foi

somente em Ser e Tempo que Heidegger elaborou uma ontologia fundamental a partir da

analiacutetica existenciaacuteria70 do ser-aiacute A ontologia fundamental eacute descrita como a necessidade

de pocircr em questatildeo o ente em que a compreensatildeo de ser enquanto questatildeo eacute possiacutevel ou

como expresso no Relatoacuterio Natorp o ente que pode custodiar abrir-se ao desvelamento

do ser dos entes Mas o que isso significa sob uma perspectiva fenomenoloacutegica

A descriccedilatildeo do ser-aiacute como existecircncia projetiva assentada em sua negatividade

proacutepria (negatividade entendida pelo fato de que o ser-aiacute soacute eacute a partir do seu aiacute de sua

69 Nesse sentido conferir tambeacutem VIGO 2012 p75 70 Na traduccedilatildeo de Ser e Tempo utilizada os termos Existenzial e Existenzielle satildeo traduzidos por

ldquoexistenciaacuteriordquo e ldquoexistencialrdquo respectivamente A diferenccedila foi estabelecida por Heidegger para marcar a

determinaccedilatildeo constitutiva da existecircncia (ou sua estrutura) cuja determinaccedilatildeo cabe agrave ontologia

(existenciaacuterio) da determinaccedilatildeo existencial (existencial) que trata de um assunto ocircntico do Dasein ou de

um conhecimento que conduz a si mesmo (HEIDEGGER 2012 sect4-9)

Apesar da consulta a outras traduccedilotildees (francesa de Emmanuel Martineau e espanhola de Jorge Rivera)

usaremos os termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho Em alguns momentos aleacutem da

traduccedilatildeo de Castilho que eacute bastante recente (2012) tambeacutem citaremos as palavras da traduccedilatildeo brasileira

anterior (com exceccedilatildeo da traduccedilatildeo de lsquoDaseinrsquo como lsquopresenccedilarsquo que natildeo seraacute utilizada nesse trabalho)

Acerca dos termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho haveraacute apenas duas exceccedilotildees a

primeira refere-se ao uso da palavra lsquoDaseinrsquo a qual Castilho Rivera e Martineau mantiveram no original

alematildeo obedecendo uma sugestatildeo do proacuteprio Heidegger Ser-aiacute eacute a traduccedilatildeo portuguesa do termo alematildeo

Dasein que no uso comum na liacutengua alematilde eacute usado como sinocircnimo para existecircncia mas que no texto

heideggeriano tem um significado peculiar tornando a traduccedilatildeo do termo problemaacutetica Em uma carta de

Heidegger a Jean Beaufret datada de 23 de Novembro de 1945 o autor daacute a seguinte informaccedilatildeo ldquolsquoDa-

sein eacute uma palavra-chave do meu pensar por isso ela eacute causa de graves erros de interpretaccedilatildeo natildeo significa

para mim exatamente eis-me mas se eacute que me posso exprimir num francecircs sem duacutevida impossiacutevel ser-

o-aiacute e o-laacute significa exatamente Aleacutetheia desvelamento-aberturardquo (Carta sobre o humanismo Martin

Heidegger - 2 ed rev Traduccedilatildeo de Rubens Eduardo Frias Satildeo Paulo Centauro ndash 2005 p 89) Algumas

vezes infieacuteis a Castilho e ao proacuteprio Heidegger utilizaremos tambeacutem a sua traduccedilatildeo ldquoser-aiacuterdquo para maior

fluidez do texto A segunda exceccedilatildeo refere-se agraves citaccedilotildees cuja opccedilatildeo por traduccedilotildees tradicionais resolvemos

natildeo alterar

87

existecircncia) sem qualquer categoria preacutevia que o defina potildee em tela que esse ente eacute

marcado pelo caraacuteter de poder-ser orientando-se segundo possibilidades existenciais que

natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas somente na morte como fim de todas as

possibilidades Isso se daacute porque o ser-aiacute eacute o limite fundamental no qual se abre a

possibilidade de intencionalidade ou o sentido do experimentado enquanto

experimentado71 ldquoSoacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a abertura do ser-no-

mundo lsquopode ser preenchidarsquo pelo ente que nele pode ser descobertordquo (HEIDEGGER

2012 p429) De outro modo se para Husserl a noccedilatildeo de intencionalidade faz com que a

cada vez que o pensamento se volte agrave consciecircncia ela descortina sua direccedilatildeo em relaccedilatildeo

ao fenocircmeno Para Heidegger poreacutem uma vez superada a primazia da consciecircncia a

cada vez que o pensamento se volta ao Dasein ele descortina sua direccedilatildeo ao mundo

fenocircmeno originaacuterio em que os entes podem vir ao encontro em seu ser bem como as

possibilidades de ser do proacuteprio Dasein

A ontologia fundamental aparece em sua necessidade porque o ser-aiacute mesmo natildeo

pode ser intencionado significativamente natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente

e por isso seu caraacuteter de poder-ser por isso ele poder mobilizar sentidos e atualizar

significaccedilotildees Assim o ser-aiacute eacute o ente que custodia e compreende o ser do ente jaacute em suas

atividades praacuteticas ou seja ele mobiliza a intencionalidade mas eacute o ente que a

intencionalidade natildeo pode alcanccedilar Na tentativa de apreendecirc-lo em seu ser a anaacutelise

conduz para fora para seu ldquoaiacuterdquo Assim Dasein eacute ser-aiacute eacute existecircncia que se projeta

lanccedilada no ldquoaiacuterdquo histoacuterico O Dasein como apresentado por Heidegger ldquoenvolve uma

dimensatildeo de ser (-sein) e por outro uma dimensatildeo locativa um aiacute (Da-)rdquo (CASANOVA

2006 p12) e isto deve-se ao fato que ldquoapenas ele [Dasein] se acha no ponto de

imbricaccedilatildeo de ser e mundordquo (CASANOVA 2006 p12)

71 Cf HEIDEGGER (GA62) 2002 p 71 ldquoConforme seu caraacutecter intencional o compreender puro natildeo

custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo forma parte do horizonte intencional

da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso pode ser de outra maneirardquo ldquoDas reine Verstehen bringt

nicht etwa nach seinem intentionalen Charakter das menschliche Leben im Wie seines faktischen Seins in

Verwahrung die σοφία hat es uumlberhaupt nicht zu ihrem intentionalen Worauf es ist ja ein Seiendes das ist

gerade dadurch daszlig es je anders sein kannrdquo (HEIDEGGER GA62 [pp385-386] grifo nosso)

88

Dessa forma a pergunta pelo sentido do ser seraacute elaborada conforme os trecircs

momentos constitutivos da questatildeo descritos no sect2 de Ser e Tempo

1- O perguntando ou aquilo de que se pergunta ser do ente

2- O interrogado ou aquilo a quequem se pergunta Dasein

3- O perguntado ou aquilo que se pergunta sentido do ser em geral

A pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2) perguntando

sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma ontologia

fundamental Isso esclarecido podemos iniciar propriamente nosso capiacutetulo e tema

central de nosso trabalho

I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado)

Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico

II A dupla abertura de sentido (Sinn)

Conforme descrito no sect9 de Ser e Tempo o ser-aiacute eacute o ente que a cada vez somos

(eu tu etc) ou seja a particular existecircncia finita e histoacuterica natildeo um conceito geneacuterico

em que as diferenccedilas especiacuteficas apareceriam na experiecircncia sensiacutevel Para esse ente ldquoo

ser ele mesmo eacute o que estaacute a cada vez em jogordquo (HEIDEGGER 2012 p139) Existir e

ser responsaacutevel pelo seu ser eacute o mesmo No que existe o ser-aiacute tem-que-ser (Zu-sein) a

ele natildeo eacute facultado a escolha de haver ou natildeo com seu ser uma vez sendo ele eacute e sendo

ele ldquose comporta em relaccedilatildeo ao seu ser como em realizaccedilatildeo de sua possibilidade mais

proacutepria O Dasein eacute cada vez sua possibilidade (Moglichkeit)rdquo (HEIDEGGER 2012

p141)

Por meio de toda e qualquer performatizaccedilatildeo (com relaccedilatildeo a si mesmo em relaccedilatildeo

aos outros e em relaccedilatildeo aos entes) o ser-aiacute enssencializa a si mesmo como existecircncia E

89

no que se enssencia (como existecircncia e natildeo categorialmente) o seu ser mesmo estaacute em

jogo pois eacute por essa determinaccedilatildeo ontoloacutegica negativa que o ser-aiacute pode conquistar seu

poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees cotidianas

Assim o desenvolvimento da analiacutetica existenciaacuteria aponta para a compreensatildeo do

sentido formal72 da constituiccedilatildeo da existecircncia do ser-aiacute ldquoO Dasein se determina cada vez

como ente a partir de uma possibilidade que ele eacute e que ao mesmo tempo e de alguma

maneira ele entende em seu serrdquo (HEIDEGGER 2012 p 143)

As orientaccedilotildees cotidianas ou a cotidianidade mediana ndash em que o ser-aiacute pode

perder-se no poder-ser improacuteprio - natildeo deve ser considerada pejorativamente como algo

a ser extirpado da existecircncia e da analiacutetica Ao contraacuterio em realidade natildeo pode A

impropriedade oferecida por essas orientaccedilotildees eacute em suma a maneira inicial em que o ser-

aiacute - como ser-no-mundo como ente lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ndash estaacute aberto para seus

possiacuteveis modos de ser Dessa forma a anaacutelise da cotidianidade tem um caraacuteter

fenomecircnico positivo para a analiacutetica existenciaacuteria pois eacute a partir desse modo de ser

improacuteprio que o ser-aiacute eacute lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria

das vezes Portanto natildeo eacute apenas lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade

A analiacutetica existenciaacuteria inicia entatildeo sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio E se

dissemos haacute pouco eacute que por meio da performatizaccedilatildeo que o ser-aiacute enssencia a si mesmo

como existecircncia e essa orientaccedilatildeo para qualquer performance natildeo eacute ilimitada Como as

possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha para um ato de vontade

do ser-aiacute mas satildeo mobilizadas na e pela existecircncia radicalmente histoacuterica o ser-aiacute pela

abertura primaacuteria remetido ao mundo eacute marcado pelo caraacuteter de poder-ser (Seinkonnen)

mas em funccedilatildeo de sua realizaccedilatildeo como possibilidade (Moglichkeit) De modo mais claro

ldquopor natildeo possuir nenhuma quididade [o ser-aiacute cc] eacute a realidade da possibilidade para a

possibilidade () Natildeo podendo ser puro poder-ser pois se assim o fosse o ser-aiacute jaacute seria

algo positivamente definidordquo (CABRAL 2015 p79) Dessa forma o ser-aiacute que a cada

vez deve conquistar o seu ser na radicalidade de sua finitude e historicidade eacute o ente que

pode pela sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica mobilizar sentido E por isso mobilizar na

72 Quando nos referirmos a ldquosentido formalrdquo no decorrer de nosso trabalho Cf Capiacutetulo II- Item III-

Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal

90

concretude da vida faacutetica o sentido de ser dos entes os sentidos das relaccedilatildeo aos outros e

sentido de seu ser

ldquoO desvelamento do ser exige sempre um ponto de partida ocircntico Mas o ser-aiacute

eacute privilegiado e ontologicamente ocircntico por causa de sua preacutevia compreensatildeo de

ser Entatildeo o desvelamento do ser deveraacute ser tentado primordialmente a partir do

ser-aiacute mediante uma analiacutetica existencial de suas estruturas O sentido do ser

(preocupaccedilatildeo) dessas estruturas do ser-aiacute eacute a temporalidade Assim a analiacutetica das

estruturas deveraacute ser refeita no homem na temporalidaderdquo (STEIN 2001 p204)

A preacutevia compreensatildeo de ser do ser-aiacute sua negatividade quiditativa seu caraacuteter

de poder-ser e sua constituiccedilatildeo aberta lanccedilada e remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo eacute dada

como acontecimento compreensivo A compreensatildeo ou o entender (Verstehen) eacute uma

das estruturas existenciaacuterias desse ente ocircntico-ontoloacutegico73 e ldquoao interpretaacute-lo como

existenciaacuterio fundamental mostra-se que esse fenocircmeno eacute assim concebido como modus

fundamental do ser do Daseinrdquo (HEIDEGGER 2012 p407) Esse existenciaacuterio

fundamental natildeo refere a uma capacidade entre outras do ser-aiacute de apropriar-se de algo

pelo entendimento intelectivo natildeo eacute uma relaccedilatildeo entre sujeito-objeto mas a constituiccedilatildeo

fundamental do ser-aiacute como ser-no-mundo como relaccedilatildeo intencional primaacuteria e desse

modo o horizonte compreensivo do ser-aiacute com seu ser ldquoO ser-aiacute possui uma relaccedilatildeo

compreensiva com o seu ser porque eacute somente por meio da compreensatildeo que ele encontra

o campo de jogo no interior do qual pode conquistar esse seu serrdquo(CASANOVA 2006

p 13) O ldquoDardquo ou ldquoaiacuterdquo do Dasein e sua estrutura fundamental ser-no-mundo podem ser

esclarecidos em contraponto a concepccedilatildeo paradigmaacutetica da epistemologia moderna de

Kant por exemplo O entender (Verstehen) tal como Heidegger o apresenta natildeo se baseia

na associaccedilatildeo psicoloacutegica das representaccedilotildees ou ainda a abertura primaacuteria que conduz o

ser-aiacute agraves suas possibilidades em que seu ser estaacute em jogo natildeo eacute algo como apercepccedilatildeo

No paradigma epistemoloacutegico da modernidade em uacuteltima instacircncia o entendimento eacute

uma reconstruccedilatildeo interna dos elementos externos do mundo reconstruccedilatildeo essa que

depende das faculdades cognitivas do sujeito capazes de unificar o agregado de

experiecircncias externas O entendimento em Heidegger eacute a abertura primaacuteria uma relaccedilatildeo

intencional estruturante ser-aiacute eacute ser-no-mundo portanto o Dasein eacute sempre remetido ao

73 Ocircntico pelo fato de ser ainda um ente ontoloacutegico pelo fato de ser o ente que pode e sempre abre a

compreensatildeo de ser (Cf HEIDEGGER 2012 sect4-9)

91

ldquomundordquo projetado para ldquoforardquo e esse ldquoforardquo eacute sempre abertura compreensiva ao mundo

faacutetico como horizonte hermenecircutico de sentido

Essa abertura compreensiva fundamental descerra o poder-ser do ser-aiacute como

projeto O fato de o ser-aiacute ser lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ao seu poder -ser em um

campo de jogo para seus possiacuteveis modos de ser natildeo conduz a um determinismo

circunstancial o qual o ser-aiacute estaria fadado a reproduzir maquinalmente e atualizar

incessantemente Tambeacutem ldquoo projetar nada tem a ver com um comportar-se em relaccedilatildeo a

um plano ideado de acordo com o qual o Dasein organizaria o seu serrdquo (HEIDEGGER

2012 p413) mas originariamente ldquoele sempre jaacute se projetou e se projeta enquanto eacuterdquo

(HEIDEGGER 2012 p413) A noccedilatildeo de projeto repousa na abertura compreensiva do

ser-aiacute e na sua ligaccedilatildeo radical com suas possibilidades Logo no iniacutecio do sect32 essa noccedilatildeo

eacute explicitada

ldquoO Dasein como entender projeta seu ser em possibilidades Esse entendedor ser

para possibilidades eacute ele mesmo um poder-ser pelo efeito contraacuterio que as

possibilidades como abertas tecircm sobre o Dasein O projetar do entender tem uma

possibilidade proacutepria de desenvolvimento Chamamos interpretaccedilatildeo o

desenvolvimento do entender Na interpretaccedilatildeo o entender entendendo

apropria-se do seu entendido Na interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo

diverso mas torna-se ele mesmo () A interpretaccedilatildeo natildeo consiste em tomar

conhecimento do entendido mas em elaborar possibilidades projetadas no

entenderrdquo (HEIDEGGER 2012 p421)

Dissemos haacute pouco que as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como

disponiacuteveis agrave escolha e agrave espera de um ato de vontade do ser-aiacute (natildeo estatildeo suspensas como

que dadas a cada ser-aiacute ao nascer como gocircndolas de projetos de ser) mas satildeo mobilizadas

na e pela existecircncia E ainda que essa existecircncia seja sempre projetiva em um mundo

histoacuterico Desse modo o entender (Verstehen) acontece sempre como interpretaccedilatildeo

(Auslegung) a abertura ao mundo eacute um projeto de sentido do ser-aiacute que jaacute interpreta que

jaacute potildee em visatildeo o que entende Mas o que isso quer dizer Como Heidegger chega a esses

existenciaacuterios

Vimos no capiacutetulo anterior a partir da leitura do texto de 1922 Interpretaccedilotildees

fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) ou

Relatoacuterio-Natorp que o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona

92

um lsquoaquirsquordquo essa virtude proacutepria do homem ldquose realiza como ενέργεια como atividade

() ou seja o νους abre um horizonte que sempre responde a um modo concreto de tratar

com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma

determinaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2002 p66) Compreendido tradicionalmente como

intelecto propriamente racional o noucircs eacute proacuteprio do homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica

[homem (animal (gecircnero) + racional (diferenccedila especiacutefica)] mas porque o ser-aiacute eacute o ente

que pode custodiar abrir-se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um

compreender que jaacute interpreta os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto

na vida faacutetica que acontece fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis

enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato

praacutetico com os entes

Em Ser e Tempo Heidegger descreve as vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico e

tambeacutem como o fenocircmeno do mundo se mostra atraveacutes dos entes intramundanos A forma

imediata de esses entes se mostrarem daacute-se na lida praacutetica que o ser-aiacute trava com eles em

um mundo circundante ou em um mundo-ambiente (Umwelt) Eacute atraveacutes da ocupaccedilatildeo

com os entes que o ser-aiacute se movimenta inicialmente na compreensatildeo faacutetica de mundo eacute

aiacute que o Dasein visualiza os entes em sua serventia especiacutefica no quadro de um horizonte

ocupacional Esse horizonte possui certa anterioridade em relaccedilatildeo ao proacuteprio uso do

instrumento ou utensiacutelio (Zeug) particular e isto fica claro no sect 15 quando Heidegger

potildee em relevo o modo de ser dos utensiacutelios na delimitaccedilatildeo preacutevia do que seja sua

instrumentalidade ldquoEm termos rigorosos um instrumento nunca lsquoeacutersquo isolado Ao ser de

instrumento pertence sempre cada vez um todo-instrumental no qual esse instrumento

pode ser o que ele eacute Instrumento eacute por essecircncia lsquoalgo pararsquo (HEIDEGGER 2012

p211) Na essecircncia do instrumento estaacute sempre a referecircncia de algo para algo O ser do

utensiacutelio e seu significado que aparece no instante do trato portanto jaacute interpretado a

partir do uso nascem da totalidade utensiliar (Zeugganzheit) que o atravessa Mas esta

totalidade utensiliar se assenta num contexto ainda mais complexo Se o utensiacutelio eacute

confeccionado de acordo com a sua finalidade especiacutefica como ldquoalgo parardquo seu uso o

liga a outros utensiacutelios por exemplo o pincel que uso para pintar remete-se agrave tela que

uso para suporte da tinta Assim como a tela remete-se natildeo soacute a sua finalidade mas

tambeacutem aos materiais atraveacutes dos quais ela foi produzida madeira tecido e gesso E

ainda remete-se ao produtor da tela ou seja aos outros entes no modo de ser do ser-aiacute

93

Poreacutem essa descriccedilatildeo do instrumento em um mundo-ambiente (Umwelt) ainda eacute

insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica de todo ente em geral

Assim conforme o sect 17 Heidegger aponta que a estrutura do sinal (Zeichen) ldquofornece

um fio condutor ontoloacutegico para uma lsquocaracterizaccedilatildeorsquo de todo ente em geralrdquo

(HEIDEGGER2012 p 233) O sinal enquanto utensiacutelio tem em sua serventia especiacutefica

o mostrar e ao mostrar fornece o fenocircmeno da referecircncia natildeo somente de sua referecircncia

mas de todo e qualquer ente uma vez que a relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia explicita o

fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua finalidade

na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal enquanto

instrumento nos mostra o mundo circundante e potildee em relevo o caraacuteter da referecircncia

que natildeo deve ser confundida com o proacuteprio sinal pois natildeo eacute determinaccedilatildeo ocircntica de um

ou outro manual especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica do manual e fundamento

constitutivo da mundidade como rede referencial na qual o Dasein jaacute se encontra inserido

na abertura ao mundo Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo

circundante o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a

complexa rede de remissotildees referenciais e atraveacutes dela a totalidade conjuntural ou

conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)

ldquoO termo conjuntura tem como correlato na liacutengua alematilde a palavra Bewandtins

que designa primariamente a propriedade ou a constituiccedilatildeo de uma coisa e em

um segundo momento a circunstacircncia em que algo se mostra essencialmente

como algo Neste segundo caso o termo se mostra em sintonia com a expressatildeo

Bewendenlassen como o deixar (lassen) algo se conformar (bewenden) a uma

certa estrutura e se mostrar como o que eacute em meio a essa conformidaderdquo

(CASANOVA 2006 p37)

A noccedilatildeo de conjuntura no sect 18 eacute um dos momentos mais decisivos da primeira

parte de Ser e Tempo pois revela que a totalidade conjuntural eacute anterior a qualquer

determinaccedilatildeo particular dos entes intramundanos Eacute essa conjuntura que determina os

usos possiacuteveis a partir da conformidade dos entes nela inseridos revelando que o

utensiacutelio em si mesmo natildeo possui qualquer determinaccedilatildeo essencial mas a recebe do

campo de uso da conjuntura na qual estaacute inserido Mas natildeo eacute soacute isso a determinaccedilatildeo

essencial de um ente intramundando acontece tambeacutem em funccedilatildeo do ser-aiacute cujo lsquoem

vista dersquo ao final da remissatildeo natildeo mais remonta a um lsquopara quecircrsquo mas mobiliza e em

uacuteltima instacircncia determina as conformaccedilotildees dos entes intramundanos Isso revela que o

que estaacute em jogo natildeo eacute o que eacute algo mas antes em virtude de que se faz algo O ser-aiacute

94

pode agir relacionar-se com os outros e consigo mesmo pois sabe comportar-se no

campo fenomecircnico aberto que arrasta consigo sua possibilidade de ser De outra forma

toda e qualquer performatizaccedilatildeo do ser-aiacute em relaccedilatildeo aos entes remete em uacuteltima medida

agravequele que pode voltar-se aos entes e mobilizaacute-los

O que a conjuntura indica previamente eacute ldquoa articulaccedilatildeo originaacuteria com certas

possibilidades essenciais do ser-aiacute que permitem ao ser-aiacute projetar efetivamente o campo

de sua realizaccedilatildeo como poder-serrdquo (CASANOVA 2006 p36) Essa realizaccedilatildeo do poder-

ser do ser-aiacute mobiliza a conformaccedilatildeo dos entes em funccedilatildeo do sentido existencial do ser-

aiacute pois uma atividade qualquer natildeo eacute feita por ela mesma mas soacute tem sentido na intenccedilatildeo

de um ente que estaacute aberto agrave apreensatildeo do ser dos entes em geral Desse modo a primaacuteria

abertura compreensiva do ser-aiacute ao mundo eacute um projeto de sentido que jaacute interpreta e ao

fazecirc-lo realiza a cada vez a cada ato de sua existecircncia a cada performatizaccedilatildeo a

possibilidade de seu ser pondo em liberdade os entes no interior do mundo e as relaccedilotildees

com os outros no projeto lanccedilado (faacutetico) na e pela sua existecircncia E isso porque

ldquoQuando o ente do-interior-do-mundo eacute descoberto com o ser do Dasein isto eacute

quando veio ao entendimento dizemos que ele tem sentido Mas tomado

rigorosamente o que eacute entendido natildeo eacute o sentido mas o ente ou o ser Sentido eacute

aquilo em que a entendibilidade de algo se manteacutem () Sentido eacute aquilo-em-

relaccedilatildeo-a-quecirc do projeto estruturado pelo ter-preacutevio pelo ver-preacutevio e pelo

conceito preacutevio a partir de que algo pode ser entendido como algo Na medida

em que entender e interpretaccedilatildeo constituem a constituiccedilatildeo existenciaacuteria do lsquoaiacutersquo o

sentido deve ser concebido como arcabouccedilo existenciaacuterio-formal da abertura

pertencente ao entender O sentido eacute um existenciaacuterio do Dasein natildeo uma

propriedade presa ao ente que reside lsquoatraacutesrsquo dele ou flutua em algum lugar como

em um lsquoreino intermediaacuteriorsquo Soacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a

abertura do ser-no-mundo lsquopode ser preenchidarsquo () E quando perguntamos

pelo sentido de ser a investigaccedilatildeo natildeo se torna entatildeo profunda e natildeo excogita

nada que esteja atraacutes do ser mas pergunta por ele mesmo na medida em que ele

estaacute na entendibilidade do Dasein O sentido de ser nunca pode ser contraposto

ao ente ou ao ser como lsquofundorsquo que sustenta o ente porque o lsquofundamentorsquo soacute eacute

acessiacutevel como sentido mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta- de-

sentidordquo (HEIDEGGER 2012 pp 429-431)

Apelamos para essa longa citaccedilatildeo a fim de explicitar o que dissemos

anteriormente acerca da mobilizaccedilatildeo dos entes em seu ser em funccedilatildeo dos focos

existenciais do ser-aiacute Os entes somente vecircm ao encontro como entes que satildeo a partir da

intenccedilatildeo de um ente que estaacute aberto a compreensatildeo do ser dos entes em geral Com a

95

citaccedilatildeo pretendemos tambeacutem apontar para algo importante acerca do fundamento

histoacuterico dessa abertura O sentido de ser natildeo eacute algo a ser alcanccedilado teoricamente pois

natildeo eacute algo estaacutevel e fundante da realidade que responde ao esquema causa-efeito ele eacute

essencialmente histoacuterico e eacute trazido pela experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica

da existecircncia mesma do ser-aiacute Natildeo se pode ter lsquoserrsquo sem a compreensatildeo do sentido de

ser vinculando portanto lsquoserrsquo ao ser-aiacute ente cuja estrutura pertence agrave compreensatildeo de

ser Como nos adverte o autor de Ser e Tempo o Dasein eacute um ente certamente diferente

dos outros entes no interior do mundo e eacute o lsquoabismo da falta de sentidorsquo que remete agrave

totalidade do fenocircmeno do ser-aiacute como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge) a qual acontece

em funccedilatildeo do sentido da temporalidade (Zeitlichkeit) Eacute essa ldquosegundardquo abertura de

sentido que devemos explicitar a partir de agora

Indicamos acima que a indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica do ser-aiacute o conduz a conquistar

seu poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees

cotidianas Poreacutem ser-proacuteprio ou ser-improacuteprio natildeo satildeo categorias operacionalizaacuteveis em

funccedilatildeo de um ideal de vida Essas possibilidades repousam na existecircncia e revelam a

tensatildeo da condiccedilatildeo primaacuteria da abertura ao mundo do ser-aiacute como projeto- jogado e

ldquodessa tensatildeo eacute possiacutevel deduzir o modo como o ser-aiacute faticamente existe() o caraacuteter

mesmo do jogado do ser-aiacute implica a absorccedilatildeo imediata no mundo sedimentado ele

encontra a si mesmo na medida em que se perderdquo (CASANOVA 2009 p123) E por

isso quando a analiacutetica existenciaacuteria inicia sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio no qual

o ser-aiacute eacute lanccedilado ldquoisso natildeo significa por sua vez outra coisa senatildeo que ele [o ser-aiacute]

concretiza o poder ser que ele eacute a partir das possibilidades faacuteticas disponibilizadas pelo

mundordquo (CASANOVA 2009 p123)

A abertura compreensiva eacute uma compreensatildeo da proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica na qual

nos orientamos inicialmente e na qual satildeo dadas nossas possibilidades de ser natildeo de

maneira teoacuterica mas absorvidas nas praacuteticas nos projetos de sentido relaccedilatildeo com os

outros e lida com os entes Abertura essa que um passado tornou possiacutevel e se faz

radicalmente imperativa no presente atraveacutes da cotidianidade orientando o ser-aiacute e

fazendo emergir algo assim como um mundo Por exemplo a realizaccedilatildeo deste trabalho

como dissertaccedilatildeo acadecircmica apareceu como possibilidade para o projeto de sentido de

sua autora porque escrever sobre filosofia faz sentido este projeto de sentido veio ao

96

encontro de seu poder-ser natildeo meramente por um ato de escolha mas inicialmente porque

filosofia dissertaccedilatildeo e universidade satildeo elementos mantidos em seu significado oriundo

da tradiccedilatildeo ocidental natildeo por uma linha histoacuterica que a autora recupera e quer trazer ao

presente mas porque mais uma vez ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto apropriaccedilatildeo

compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo

(HEIDEGGER2002 p30)

E uma vez remetida ao mundo pela orientaccedilatildeo cotidiana a autora pode

estabelecer relaccedilotildees com os entes (livros computador papel etc) consigo mesmo (como

autora) e com os outros (leitores desse trabalho) que partilham essas possibilidades

sedimentadas Dessa forma a orientaccedilatildeo cotidiana primaacuteria revela ldquoexistir () eacute de iniacutecio

o mesmo que perder-se de sirdquo (CASANOVA 2009 p123) pois ldquoo ser-aiacute suspende a

irrealidade originaacuteria que eacute a sua e adquire ao mesmo tempo um modo de ser marcado

por uma aparecircncia de consistecircnciardquo (CASANOVA 2009 p123) Em outras palavras a

absorccedilatildeo na cotidianidade (o caraacuteter de jogado do projeto) oferece uma familiaridade ao

ser-aiacute na qual ele pode se movimentar pois oferece a confiabilidade ocircntica ao projeto de

sentido mas tambeacutem estabelece

ldquoUma relaccedilatildeo com o seu poder-ser que pode ser denominado como fuga uma vez

que a suspensatildeo [de sua irrealidade originaacuteria] promove exatamente uma

tranquilizaccedilatildeo em meio agrave supressatildeo de nadidade constitutiva de um ente marcado

pelo caraacuteter de poder-ser e o ocultamento de um tal caraacuteterrdquo (CASANOVA

2009 p123)

Em meio agrave familiaridade em que o ser-aiacute eacute jogado sua negatividade quiditativa e

seu traccedilo ontoloacutegico essencial como poder-ser satildeo obstruiacutedos agrave compreensatildeo do Dasein

em relaccedilatildeo ao seu ser Voltemos ao nosso exemplo as relaccedilotildees que a autora deste trabalho

pode exercer a partir de suas possibilidades a orientam como ser autora deste trabalho

como aquela que escreve ou ainda como aquela vinculada agrave universidade e assim por

diante Poreacutem nada poderia definir nossa existecircncia como fazem as orientaccedilotildees

cotidianas pois o Dasein que cada um de noacutes somos eacute marcado pela negatividade radical

frente a qualquer definiccedilatildeo ocircntica Como entatildeo essa fuga natildeo nos condena a reproduzir

maquinalmente e atualizar incessantemente as orientaccedilotildees cotidianas - Porque o ser-aiacute

97

mesmo jogado eacute ainda projeto e no limite de seu projeto ele pode se encontrar com seu

poder-ser mais proacuteprio como ser para a morte (das Sein zum Tod)74

Tal como as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha agrave

espera de um ato de vontade do ser-aiacute a conquista de seu ser-proacuteprio ou sua

singularizaccedilatildeo tambeacutem natildeo eacute produto de sua vontade A dinacircmica de singularizaccedilatildeo do

ser-aiacute eacute possiacutevel pela tonalidade afetiva ou o modo de encontrar-se (Befindlicheit)

fundamental da anguacutestia (Angst)

O entender (Verstehen) ou abertura compreensiva eacute sempre dispositiva na medida

em que a compreensatildeo natildeo se refere agrave capacidade ou agraves faculdades cognitivas do homem

ldquoO termo disposiccedilatildeo aponta diretamente para o modo como o ser-aiacute a cada vez se

descobre em meio a uma tal abertura Na medida em que o ser-aiacute eacute um ente

marcado essencialmente por seu caraacuteter existencial e natildeo se mostra senatildeo como

um poder ser ele natildeo pode aprender a abertura do ente na totalidade por meio de

alguma faculdade cognitiva de sua subjetividade () Befindlichkeit diz o

encontrar-se de uma certa maneirardquo (CASANOVA 2006p50)

Encontrar-se de certa maneira natildeo eacute uma espeacutecie de afeto psicoloacutegico que o ser-

aiacute projeta de dentro para fora nem uma relaccedilatildeo de fora para dentro que afeta o ser-aiacute Natildeo

eacute uma relaccedilatildeo causal Eacute uma afinaccedilatildeo (ajuste do tom) que deve ser compreendida

repousando na intenccedilatildeo primaacuteria do ser-aiacute como ser-no-mundo Como o autor explicita

ainda no sect29 ldquoO ser do estado-de-acircnimo do encontrar-se constitui existenciariamente a

abertura do Dasein para o mundordquo (HEIDEGGER 2012 p393) Eacute propositadamente que

se apela para a metaacutefora musical (ldquoafinaccedilatildeordquo) para tentar compreender esse ldquoestado de

acircnimo do encontrar-serdquo como por exemplo acontece quando uma muacutesica eacute tocada ela

afina a abertura compreensiva do ser-aiacute a um estado de acircnimo que noacutes poderiacuteamos chamar

de melancoacutelico A melancolia natildeo estaacute na muacutesica (natildeo haacute como pensar que as tonalidades

afetivas sejam propriedades de um ou outro ente na medida em que o ser de todo e

74 Aqui eacute importante considerar as palavras de Juliaacuten Mariacuteas na Conferecircncia do curso ldquoLos estilos de la

Filosofiacuteardquo Madrid 19992000 Ediccedilatildeo Jean Lauand Traduccedilatildeo Sylvio Horta ldquoa preposiccedilatildeo zu natildeo quer

dizer para mas a Isto eacute a expressatildeo sein zum Tod poderia ser traduzida por estar agrave morte (estar a

la muerte) Qual eacute a condiccedilatildeo dos homens - e das mulheres evidentemente - natildeo somente quando nos

atropela um caminhatildeo ou quando temos pneumonia dupla O homem estaacute agrave morte sempre estaacute na

possibilidade de morrer estaacute em potecircncia proacutexima de morrer estaacute exposto agrave morte e eacute isso justamente o

que quer dizer sein zum Tod estar aberto agrave morte estar nessa possibilidade proacutexima real eficazrdquo

98

qualquer ente eacute aberto em funccedilatildeo do ser-aiacute que os potildee em liberdade no interior do mundo)

como tambeacutem natildeo estaacute no Dasein (natildeo haacute nada de aderente a esse ente que venha agrave tona

sua abertura eacute sempre remetida ao mundo e ao encontro com os entes) Portanto a

melancolia como no exemplo eacute a modificaccedilatildeo da atmosfera promovida pelo proacuteprio

encontrar-se do ser-aiacute em meio aos entes

Mas por qual motivo a anguacutestia aparece em Ser e Tempo como a tonalidade afetiva

ou o modo fundamental de encontrar-se Enquanto os estados de acircnimo natildeo conforme agrave

anguacutestia constituem a abertura compreensiva do ser-aiacute para a lida e para as relaccedilotildees que

podem ser realizadas no interior do mundo em meio aos entes ldquoo diante-de-quecirc da

anguacutestia eacute o ser-no-mundo como talrdquo (HEIDEGGER 2012 p521) Na anguacutestia natildeo haacute

ente que venha ao encontro no qual o ser-aiacute possa se reportar e refugiar-se mas a si mesmo

em sua indeterminaccedilatildeo

ldquoNa anguacutestia o utilizaacutevel do mundo-ambiente e em geral o ente do-interior-do-

mundo se afundam O lsquomundorsquo jaacute nada pode oferecer nem tambeacutem o Dasein-

com com os outros A anguacutestia retira assim do Dasein a possibilidade de no

decair entender-se a partir do lsquomundorsquo e do puacuteblico ser-do-interpretado Ela

projeta o Dasein de volta naquilo por que ele se angustia seu proacuteprio poder ndashser-

no-mundo () Com o porquecirc do se angustiar a anguacutestia abre portanto o Dasein

como ser possiacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012 p525)

Na anguacutestia natildeo haacute a ldquosuspensatildeo de mundordquo como se o Dasein se retirasse dele

O que haacute eacute a suspensatildeo das orientaccedilotildees cotidianas que obliteram sua constituiccedilatildeo

primaacuteria Portanto ainda e agora radicalmente transparente como ser-no-mundo o

Dasein suspende a familiaridade em meio ao ente voltando-se a si mesmo como ser-

possiacutevel que mobiliza sentido e ldquotem mundordquo Lembremos que a necessidade da ontologia

fundamental como radicalizaccedilatildeo do gesto fenomenoloacutegico indica que o ser-aiacute mesmo

natildeo pode ser intencionado natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente e por isso seu

caraacuteter de poder-ser E se pela anguacutestia o ser-aiacute volta-se a si mesmo o que vem eacute essa

indeterminaccedilatildeo radical revelando em uacuteltima medida o ldquoabismo da falta de sentidordquo Esse

abismo natildeo leva a qualquer espeacutecie de niilismo natildeo eacute o que estaacute em jogo aqui ao

contraacuterio pois o ldquoo ser-aiacute se vecirc confrontado com o seu caraacuteter como poder-ser Dessa

confrontaccedilatildeo nasce ao mesmo tempo a possibilidade de assunccedilatildeo de si mesmo como

cuidado (Sorge)rdquo (CASANOVA 2009 p128)

99

Recuperemos por um instante os trecircs momentos constitutivos da questatildeo descritos

no sect2 de Ser e Tempo a pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2)

perguntando sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma

ontologia fundamental A ontologia fundamental como analiacutetica existenciaacuteria em seu

primeiro momento descreve as estruturas fundamentais do ser-aiacute com o propoacutesito de

chegar ao ser desse ente que compreende o sentido de ser (sect12 ao sect38) Contudo eacute

importante considerar que existe certa lsquoartificialidadersquo nesse processo de explicitaccedilatildeo das

estruturas do ser-aiacute Eacute importante manter o sentido de ldquoanaliacuteticardquo Pois o fenocircmeno

mesmo deve ser compreendido como um todo natildeo em funccedilatildeo das partes mas a partir de

sua proacutepria mostraccedilatildeo Em outras palavras a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein deve agora

ser recuperada e este ente deve ser assinalado de maneira propriamente fenomenoloacutegica

ou seja em sua totalidade enquanto fenocircmeno Eacute o que a segunda parte da analiacutetica deve

recuperar ldquoabrangendo os componentes que se interligam ndash a existencialidade a

facticidade e a quedardquo (NUNES 2012 p116)

A partir desses componentes Heidegger apresenta o sentido formal da

preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-em (-o-mundo)

como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo (HEIDEGGER

2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser (existencialidade ou

existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que foi

lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio aos

entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)

Poreacutem natildeo dissemos que o ser-aiacute eacute marcado pela negatividade quiditativa e que

existe segundo possibilidades as quais natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas na morte

como fim de todas as possibilidades Ou nas palavras de nosso autor ldquoE se a existecircncia

determina o ser do Dasein e sua essecircncia eacute constituiacuteda pelo poder-ser entatildeo o Dasein

podendo ser enquanto existir deve-ser cada vez algo de ainda natildeo sendordquo

(HEIDEGGER 2012 p645) Entatildeo essa interpretaccedilatildeo do ser do Dasein como um

fenocircmeno unitaacuterio como Sorge natildeo contradiz tal afirmaccedilatildeo Natildeo haacute qualquer

contradiccedilatildeo pois eacute exatamente

ldquoO cuidado como manifestaccedilatildeo da finitude que permite a Heidegger identificar

a morte como o chegar do Dasein ao fim () e ver nesse ente em sua totalidade

o ser para a morte() O Dasein chega pois a um fim mas que o determina desde

100

o princiacutepio como possibilidade do que viraacute a ser A morte natildeo eacute para ele portanto

o puro aniquilamento representaacutevel conforme a experiecircncia da caducidade ()

impessoal e necessaacuterio na seacuterie de causas naturais () Ontologicamente falando

o homem deixa de viver porque morre e morre porque lhe eacute inerente o morrer

enquanto poder-ser de cada qual () intrasferiacutevel e irrepresentaacutevel na relaccedilatildeo

com o ser a que a existecircncia estaacute concernidardquo (NUNES 2012 pp 117-119)

Como poder-ser (existenciariedade) o ser-aiacute adianta-se em relaccedilatildeo agrave sua

possibilidade mais proacutepria Seu ser-proacuteprio insuperaacutevel como ser-para-a-morte (porque

intransferiacutevel a qualquer outro) revela-se como a possibilidade para a impossibilidade

ou seja impossibilidade de sua existecircncia lanccedilada (facticidade) de ter um lsquoaiacutersquo sendo o

lsquoaiacutersquo a compreensatildeo dos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)

Mas eacute importante considerar que a preocupaccedilatildeo ou o cuidado natildeo eacute a totalidade alcanccedilada

por aquele que chegou agrave singularizaccedilatildeo pela tonalidade fundamental da anguacutestia ela eacute a

constituiccedilatildeo ontoloacutegica de todo e qualquer Dasein O que a singularizaccedilatildeo promove

como possibilidade aberta pela anguacutestia eacute a transparecircncia desse ser-proacuteprio cada vez

obliterado na cotidianidade Na cotidianidade a morte eacute vista como um ldquomero deixar de

viverrdquo transferido a cada vez ao outro que morreu ldquodessa vezrdquo75 em um tratamento

radicalmente impessoal pela indiferenccedila frente a esse poder-ser proacuteprio e irrevogaacutevel

A morte como fim de todas as possibilidades enquanto poder-ser extremo eacute

indeterminada mesmo que seja a certeza mais proacutepria Pois natildeo se chega agrave morte

pensando nela o que estaacute em jogo eacute a responsabilidade do ser-aiacute frente a essa

transparecircncia a assunccedilatildeo pelo ser-aiacute de sua nulidade que atravessando-o (sem qualquer

conteuacutedo prescritivo do que deve-se ou natildeo fazer) pode orientar o caminho de sua

existecircncia Existecircncia ainda faacutetica ainda em meio aos entes de um mundo sedimentado

Em outras palavras caminho que reconduz o ser-aiacute ao ldquoaiacuterdquo que ele tem que ser e que ele

radicalmente eacute O que a singularizaccedilatildeo aponta eacute ldquoLeben ist Tod und Tod ist auch ein

75 Heidegger indica a novela de LN Tolstoacutei ldquoA morte de Ivan Ilitchrdquo para ilustrar o fenocircmeno da morte

tratada impessoalmente e o abalo dessa impessoalidade (Cf HEIDEGGER 2012 p699) Poderiacuteamos

tambeacutem indicar a partir de nossa cotidianidade exemplos do tratamento impessoal acerca da morte as

estatiacutesticas dos ldquomortos nas estradasrdquo a notiacutecia da morte de alguma personalidade puacuteblica e ainda - para

natildeo confundirmos esse fenocircmeno com um mero ldquonoticiarrdquorsquo a morte - a maneira mesma que tratamos a

morte de algueacutem proacuteximo pois mesmo tomados pelo pesar o que constatamos eacute a ldquoperdardquo do outro Seria

possiacutevel restaurar a ponte mesmo que indicativa que Heidegger natildeo admite entre o fenocircmeno impessoal

da morte e nosso ser-proacuteprio como ser-para-a-morte Talvez algo acessiacutevel pela linguagem poeacutetica Aqui

eacute oportuno considerar os belos versos do poema Na morte de Henriqueta Lisboa ldquoNa morte nos

encontramos Sim na morte Tempo de consoacutercio e de viacutenculordquo In Flor da Morte Belo Horizonte Ed

UFMG 2004

101

Leben76rdquo Nessa indicaccedilatildeo ldquoO si-mesmo que como tal tem de pocircr o fundamento de si

mesmo nunca pode se assenhorar desse fundamento e tem de existindo assumir no

entanto o ser-fundamento Ser o proacuteprio fundamento dejectado eacute o poder-ser em jogo na

preocupaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p779) Eacute pela assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo

(Sorge) que o ser-aiacute pode compreender que os sentidos mobilizados em sua existecircncia satildeo

existenciariamente remetidos ao seu ser mesmo ente histoacuterico e finito radicalmente

marcado pela nulidade essencial Isso posto recuperamos uma vez mais agora com toda

a importacircncia as palavras de nosso autor ldquoo lsquofundamentorsquo soacute eacute acessiacutevel como sentido

mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta-de-sentidordquo (HEIDEGGER 2012 p431)

A transparecircncia de seu ser-proacuteprio ao ser-aiacute eacute assumir ldquoser como fundamento

dejectado da nulidade Mas a assunccedilatildeo da dejecccedilatildeo significa para o Dasein ser

propriamente como ele a cada vez jaacute erardquo (HEIDEGGGER 2012 p887) Em outras

palavras a assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute para o ser-aiacute reconhecer que ele

eacute existecircncia radicalmente faacutetica (Faktizitaumlt) ainda em meio aos entes de um mundo

sedimentado Desse modo ldquoentender o seu ser ainda e sempre ldquoem seu essencial ser-

culpadordquo (HEIDEGGER 2012 p887) A singularizaccedilatildeo do ser-aiacute natildeo promove um

distanciamento da vida cotidiana natildeo faz com que ele se retire da queda mas que a

assuma e assim assuma ldquoa responsabilidade pela necessidade de pagar uma diacutevida que

cada ser-aiacute tem para consigo mesmordquo (CASANOVA 2009 p136) Diacutevida de assumir

seu ser como existecircncia como projeto-jogado e como poder-ser proacuteprio marcado pela

possibilidade extrema da morte Essa culpa do ser-aiacute eacute a assunccedilatildeo de que ele jaacute sempre

desonerou seu ser ele jaacute sempre deixou seu ser sob tutela do mundo e das orientaccedilotildees

cotidianas - por sua condiccedilatildeo de soacute poder-ser a partir da absorccedilatildeo imediata no mundo

Essa culpa natildeo eacute a mesma das concepccedilotildees cristatildes Em Pascal por exemplo a culpa eacute

consequecircncia da perda de nossa primeira natureza em funccedilatildeo do pecado original77 Para

Heidegger a culpa eacute consequecircncia do fato de natildeo termos qualquer natureza Natildeo haacute como

se retirar dessa condiccedilatildeo eis nossa culpa essencial e nossa queda irremediaacutevel

76 ldquoA vida eacute morte e a morte eacute tambeacutem uma vidardquo HOumlLDERLIN Friedrich In lieblicher Blaumlue - Disponiacutevel

em httpswwwhsaugsburgde~harschgermanicaChronologie19JhHoelderlinhoe_0801html Acesso

em 21 marccedilo 2016 77 Cf por exemplo os aforismos 131 e 616 de Pascal nos Penseacutees Ediccedilatildeo e organizaccedilatildeo Lafumaacute

102

Mas se chegamos agrave totalidade originaacuteria do todo-estrutural do ser-aiacute ou em outras

palavras agrave assinalado constituiccedilatildeo propriamente fenomenoloacutegica do ser-aiacute como

preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute necessaacuterio considerar o sentido ontoloacutegico desse fenocircmeno

Lembramos mais uma vez o que eacute ldquosentidordquo para Heidegger ldquoSentido eacute aquilo em que a

entendibilidade de algo se manteacutemrdquo (2012 p429) Se o ser-aiacute pode ser indicado em sua

totalidade fenomecircnica (ainda que radicalmente diverso dos entes do interior do mundo)

eacute necessaacuterio como expresso no sect65 perguntar ldquoQue possibilita o ser do Dasein e assim

sua existecircncia factual (faktische)

O sentido de ser do Dasein como Sorge a compreensatildeo de sua nulidade essencial

a partir do fenocircmeno unitaacuterio de seu ser aponta para aquilo que pode sustentaacute-lo ldquoA

temporalidade descobre-se como o sentido da preocupaccedilatildeo proacutepriardquo (HEIDEGGER

2012 p889)

Na continuaccedilatildeo do sect65 o autor descreve como a preocupaccedilatildeo reside na

temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-

em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo

(HEIDEGGER 2012 p891) Futuro (poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente

(presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees temporais como as que tomamos diariamente mas

o caraacuteter essencial da existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre

adiantado (futuro) em relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza

as possibilidades na facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva da

proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica a cada vez presente na qual nos orientamos inicialmente em

nossos comportamentos) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no

presente esse passado em seus comportamentos e projetos E como adverte o autor

ldquoOs momentos da preocupaccedilatildeo natildeo se amontoam como a temporalidade ela

mesma natildeo vai tambeacutem lsquocom o temporsquo se compondo de futuro ser-do-sido e

presente A temporalidade natildeo lsquoeacutersquo em geral nenhum ente Ela natildeo eacute mas se

temporalizardquo (HEIDEGGER 2012 p893)

Ou seja a temporalidade acontece na existecircncia do ser-aiacute na unidade do

fenocircmeno que se mostrou como preocupaccedilatildeo ou cuidado (Sorge) E ainda acontece jaacute no

que o ser-aiacute entende (Verstehen) como o sentido ontoloacutegico desse acontecimento mesmo

da compreensatildeo Por isso ainda no iniacutecio desse toacutepico dissemos que a constituiccedilatildeo aberta

103

e remetida ao mundo (ao seu ldquoaiacuterdquo) do ser-aiacute eacute dada como acontecimento compreensivo

pois em seu sentido ontoloacutegico eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) que se temporaliza78

Assim finalmente chegamos agrave dupla abertura de sentido em Ser e Tempo a que

chamamos de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo a abertura compreensiva do ser-aiacute

remetida ao mundo e o sentido de ser do ser-aiacute a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) O

caraacuteter fundamental dessa estrutura se daacute pelo fato que eacute a partir dela que o ser-aiacute pode

conceder significaccedilotildees e por isso a primeira estrutura do que pode tornar manifesto o

fenocircmeno da linguagem Agora eacute necessaacuterio descrever a relaccedilatildeo entre mundo e

significatividade ainda como parte dessa primeira estrutura para que alcancemos a

segunda estrutura o fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) e a partir dele agrave linguagem

III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)

No toacutepico anterior apresentamos a constituiccedilatildeo aberta do ser-aiacute lanccedilada e

remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo Mas o que constitui algo assim como mundo O que

afinal quer dizer ldquomundordquo (Welt) Nesse sentido precisamos retomar a descriccedilatildeo

realizada anteriormente acerca da referecircncia e da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) Essa

retomada natildeo significa prolixidade mas consequecircncia inevitaacutevel da ligaccedilatildeo essencial

entre ser-aiacute e mundo E se antes a descriccedilatildeo foi explicitada para compreendermos a

abertura de sentido em funccedilatildeo do ser-aiacute agora seraacute exposta para compreendermos o

proacuteprio ldquoaiacuterdquo

Sem pressupor mundo como ente ou como espaccedilo a pesquisa fenomenoloacutegica

aproximou-se dos campos de mostraccedilatildeo de algo como lsquomundorsquo escapando de qualquer

preacutevia teorizaccedilatildeo Nessa direccedilatildeo vimos que algo como lsquomundorsquo se daacute inicialmente a

partir da abertura primaacuteria de sentido promovida pelo entender ou compreensatildeo

78 Como indicamos (nota 66) haacute uma questatildeo natildeo respondida em Ser e Tempo a temporalidade (Zeitlichkeit)

estaria afinal assentada no tempo histoacuterico da abertura Questatildeo expressa na uacuteltima linha daquela obra ldquoO

tempo (Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Essa questatildeo

aponta para o limite da obra de 1927 na medida em que o sentido de ser remetido e em funccedilatildeo de um ente

especiacutefico mesmo que privilegiado apresenta seus limites Natildeo aprofundaremos esse problema Nesse

sentido conferir inicialmente HEIDEGGER M Os problemas fundamentais da fenomenologia Trad

Marco Antocircnio Casanova Petroacutepolis RJ Vozes 2012 ndash Parte II (pp331-478) Conferir tambeacutem

CASANOVA (2009 pp 140-145) NUNES (2012 pp200-220) e STEIN (2001 pp297-309)

104

(Verstehen) Esse existenciaacuterio primaacuterio acontece sempre como interpretaccedilatildeo

(Auslegung) que jaacute potildee em visatildeo o que entende

A partir da lida praacutetica e natildeo teoacuterica que o ser-aiacute trava inicialmente com os entes

intramundanos (sect15) Heidegger chega a noccedilatildeo de mundo circundante ou mundo-

ambiente (Umwelt) Poreacutem a descriccedilatildeo do uso dos utensiacutelios (Zeug) em um mundo-

ambiente (Umwelt) eacute insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica

de todo ente em geral Assim conforme o sect 17 Heidegger descreve o fenocircmeno da

referecircncia a partir da descriccedilatildeo do sinal enquanto utensiacutelio que tem em sua serventia

especiacutefica o mostrar e ao fazecirc-lo conduz a compreensatildeo da instrumentalidade ou

utilizabilidade (Zuhandenheit) de todo e qualquer ente A relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia

explicita o fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua

finalidade na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal

enquanto instrumento nos mostra o mundo-circundante (Umwelt) e potildee em relevo o

caraacuteter da referecircncia que natildeo deve ser confundido com o proacuteprio sinal pois eacute a estrutura

ontoloacutegica do manual e fundamento constitutivo da mundidade como rede referencial na

qual o Dasein jaacute se encontra inserido na abertura primaacuteria remetida ao mundo na lida

praacutetica

O ldquomostrarrdquo do sinal tal como o ldquomartelarrdquo do martelo ou a emprego de todo e

qualquer ente natildeo satildeo propriedades essenciais presentes nos lsquoobjetosrsquo apreendidas pelo

ser-aiacute mas satildeo trazidas agrave luz na e pela estrutura da remissatildeo a partir do trato praacutetico E

ldquoser-remetido-ardquo como constituiccedilatildeo do utilizaacutevel eacute em uacuteltima medida ldquoconjuntar-se agraverdquo

nas palavras de Heidegger

ldquoConjuntaccedilatildeo eacute o ser do interior-do-mundo em relaccedilatildeo ao qual esse ente jaacute eacute e

de pronto cada vez posto-em-liberdade () Isto de que ele tenha uma

conjuntaccedilatildeo comjunto eacute a determinaccedilatildeo ontoloacutegica do ser desse ente e natildeo um

enunciado ocircntico sobre o enterdquo (HEIDEGGER 2012 p251)

Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo circundante (Umwelt)

o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a complexa rede de

remissotildees referenciais e revelando a totalidade conjuntural ou conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)

A totalidade conjuntural se mostra anterior a qualquer determinaccedilatildeo particular dos entes

intramundanos - uma vez que eacute a conjuntura mesma que determinaraacute os usos possiacuteveis a

partir da conformidade dos entes nela inseridos- revelando que o utensiacutelio em si mesmo

105

e em uacuteltima medida todo e qualquer ente no interior do mundo natildeo possui qualquer

determinaccedilatildeo essencial mas a recebe a partir do campo de uso da conjuntura na qual estaacute

inserido Como a partir daiacute se chega entatildeo agrave noccedilatildeo de algo como ldquomundordquo A conjuntura

como conformaccedilatildeo de todo e qualquer ente eacute dada em funccedilatildeo do que Heidegger chama

de significatividade (Bedeutsamkeit)

ldquoAo se manter na familiaridade com a abertura das relaccedilotildees o entender as potildee

diante de si como aquilo em que seu remeter se move O entender deixa-se

remeter nestas relaccedilotildees e por elas mesmas O caraacuteter relacional dessas relaccedilotildees

do remeter noacutes o aprendemos como significar Na familiaridade com essas

relaccedilotildees o Dasein lsquosignificarsquo a si mesmo daacute-se a entender originariamente seu

ser e poder-ser relativamente a seu ser-no-mundo [] O todo relacional desse

significar noacutes o denominamos significatividade Ela eacute o que constitui a estrutura

do mundordquo (HEIDEGGER2012p261)

Essa passagem traz o elemento crucial agrave nossa investigaccedilatildeo a significatividade

como a condiccedilatildeo mesma ou melhor a proacutepria lsquointeligibilidadersquo do mundo natildeo como

arcabouccedilo teoacuterico mas como acircmbito da interpretaccedilatildeo anterior a qualquer definiccedilatildeo

predicativa do ente A totalidade conjuntural que conforma os entes intramundanos

determina-os significativamente em seu ldquocomordquo ou seja os faz ver e aparecer como ente

como algo no interior da abertura de sentido do proacuteprio mundo Isto quer dizer que a

conjuntaccedilatildeo deixa ver o ente em seu ldquoser enterdquo como algo que lsquoeacutersquo a partir de um horizonte

ldquode tal maneira que ele se torna primeiramente acessiacutevel como ente do-interior-do-

mundordquo (HEIDEGGER 2012p255)

A abertura ou entendimento preacutevio no qual o ser-aiacute histoacuterico e finito faz o ente

vir ao encontro na conjuntura e o mobiliza conforme seu foco existencial mostra o

fenocircmeno do mundo e isso como jaacute apresentamos a partir da familiaridade em que o

Dasein se movimenta pelo seu caraacuteter de jogado O fenocircmeno do mundo eacute explicitado

por Heidegger na seguinte passagem

ldquoO Dasein se remete jaacute cada vez e sempre a partir de um em-vista-de-quecirc ao

com-quecirc de uma conjutaccedilatildeo isto eacute na medida em que eacute ele deixa jaacute cada vez e

sempre o ente vir-de-encontro como utilizaacutevel Aquilo-em-que o Dasein

previamente se entende no modus do remeter-se eacute aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do

preacutevio fazer o ente vir-de-encontro O em-quecirc do entender que se-remete como

aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do fazer o ente vir-de-encontro no modo-de-ser da

conjuntaccedilatildeo eacute o fenocircmeno do mundo E a estrutura daquilo a que o Dasein se

remete eacute o que constitui a mundidade do mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 257)

106

Mas essa passagem tambeacutem mostra uma diferenccedila que natildeo pode ser ignorada o

fenocircmeno do mundo e a mundidade (Weltlichkeit) do mundo O primeiro diz respeito agrave

mobilizaccedilatildeo de uma determinada conjuntura jaacute familiar a partir dos focos existenciais do

ser-aiacute possiacuteveis em um horizonte descerrado (aspecto ocircntico) a segunda indica o aspecto

estrutural ontoloacutegico do mundo Por isto a significatividade explicitada inicialmente

pelo fenocircmeno da referecircncia e trazida agrave tona pela noccedilatildeo de conjuntaccedilatildeo eacute chamada de

estrutura formal da mundidade pois natildeo diz respeito a uma estrutura deste ou daquele

ldquomundordquo especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica de algo como ldquomundordquo

A significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados

(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Quando um ente se mostra

na e pela ocupaccedilatildeo (Besorgen) vem agrave conjuntaccedilatildeo no momento mesmo do trato manual

e assim ele eacute posto em liberdade em seu ser como utilizaacutevel (Zuhandenes) e natildeo eacute- como

compreendeu a tradiccedilatildeo assentada na noccedilatildeo sujeito-objeto ndash uma lsquoresrsquo uma coisa um

ldquomaterial disponiacutevel no mundordquo Ou seja ele natildeo se mostra primariamente como um

subsistente (Vorhandener) jaacute que ldquofamiliaridade com o mundo natildeo exige

necessariamente uma transparecircncia teoacuterica das relaccedilotildees do mundo que constituem o

mundo como mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 259)

Para Heidegger (ao menos em Ser e Tempo) os entes no interior do mundo (entes

intramundanos) natildeo conforme ao modo de ser do Dasein satildeo de dois modos ou como

duas categorias como Zuhanden (agrave matildeo) que se mostra de modo originaacuterio no trato

praacutetico e como Vorhanden (ente simplesmente dado ou subsistente) que aparece de

modo derivado agrave mostraccedilatildeo praacutetica Trazendo agrave tona a gecircnese praacutetica do significado

Vigo (2012) chama a atenccedilatildeo acerca do tratamento pouco extensivo agraves categorias que

Heidegger oferece em 1927

ldquoHeidegger oferece tatildeo somente um tratamento muito fragmentaacuterio desses

aspectos que jaacute foi explicado pelo fato expressamente declarado do caraacuteter

preparatoacuterio em SZ Ela natildeo conteacutem mesmo remotamente a totalidade do que

deveria conter um modelo ontoloacutegico de aspiraccedilatildeo integral que abarca as

diferentes ontologias regionais e apresentar o repertoacuterio das categorias mais

relevantes para cada uma delas mostrando aleacutem disso as correspondentes

relaccedilotildees de dependecircncia etcrdquo (p113)

O caraacuteter preparatoacuterio e ainda formal de Ser e Tempo o qual apenas estabelece a

diferenccedila categorial entre Zuhanden e Vorhanden parece querer marcar uma diferenccedila

107

mais fundamental ainda vinculada agraves primeiras preleccedilotildees da deacutecada de 1920 nas quais a

derivaccedilatildeo do teoreacutetico era atribuiacuteda a uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Em Ser e

Tempo ldquoa diferenccedila entre o conhecimento matemaacutetico e o conhecimento filosoacuteficordquo ganha

um contorno definitivo como diferenccedila ldquoentre uma concepccedilatildeo de loacutegos provinda da loacutegica

e outra que adveacutem do conceito de aleacutetheiardquo (STEFANI 2009 p51)

Dessa forma qualquer ente tomado de forma teoacuterica com um significado

determinado eacute um modo de acesso ou um visar o ente de modo derivado pelo ser-aiacute (natildeo

podemos esquecer que a mobilizaccedilatildeo dos entes eacute realizada em funccedilatildeo dos focos

existenciais do Dasein o que foi chamado de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo) Em

outras palavras como a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que significado

(Bedeutung) mas sua condiccedilatildeo de possibilidade qualquer teoria ou modo de tratamento

teoacuterico de um ente subsistente (Vorhandenes) eacute tributaacuterio da sedimentaccedilatildeo de um mundo

da sedimentaccedilatildeo de uma totalidade conjuntural que vem ao encontro do ser-aiacute

originariamente na ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhandenes) Assim ldquoo mundo faacutetico

onde se desdobra a existecircncia do ser-aiacute eacute constituiacutedo pela solidificaccedilatildeo dos significados

dos entes intramundanos e pela sedimentaccedilatildeo dos sentidos em virtude dos quais o ser-aiacute

desdobra o poder-ser que ele eacuterdquo (CABRAL 2015 p94) O ser-aiacute como projeto jogado

mobiliza sentidos e atualiza essas significaccedilotildees calcificadas de um mundo histoacuterico Algo

como um conceito uma definiccedilatildeo ou um significado do ente eacute possiacutevel por essa abertura

de sentido interpretativa preacutevia e sedimentada articulada pela significatividade e dada de

maneira preacute-linguiacutestica

Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez

familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o

Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como

lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo

(HEIDEGGER 2012p261 grifo nosso)

Prestemos atenccedilatildeo agrave uacuteltima consideraccedilatildeo dessa passagem significaccedilotildees natildeo satildeo

palavras elas fundam palavras Lembremos a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica o significado

natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua mostraccedilatildeo

Vimos no capiacutetulo anterior que o loacutegos do fenocircmeno para Heidegger eacute loacutegos apofacircntico

(λόγος αποφατικός) o mostrar do fenocircmeno a respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que

se mostra como algo de maneira indiferenciada natildeo determinada E ainda esse mostrar

do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes sempre em meio a

108

um campo interpretativo Ou seja agora podemos dizer eacute o mostrar o ente como ente

(algo como algo) no interior do mundo Na abertura que entende (Verstehen) remetida ao

mundo originariamente na lida praacutetica algo vem ao encontro e na medida que se mostra

jaacute se mostra interpretado (Auslegung) como algo do interior do mundo Mundo

compreendido em seu aspecto ontoloacutegico natildeo como ente espaccedilo ou soma de coisas (res)

disponiacuteveis agrave nossa apreensatildeo Mas abertura compreensiva-interpretativa do ser-aiacute

estruturalmente articulada em sua totalidade- enquanto ldquomundordquo - pela significatividade

E eacute dessa articulaccedilatildeo que podem vir significados e dos significados palavras assim

ldquoPodemos dizer que o que estaacute em jogo na discussatildeo de Heidegger com a

concepccedilatildeo husserliana natildeo eacute outra coisa em definitivo que a questatildeo relativa ao

modo fenomenoloacutegico adequado de considerar a experiecircncia antepredicativa

como tal Trata-se de uma questatildeo metodicamente fundamental justamente na

medida em que concerne de modo direto a adequada determinaccedilatildeo do terminus a

quo79 para uma possiacutevel explicaccedilatildeo da origem do enunciado predicativo como

modo derivado e fundado da interpretaccedilatildeo Atado aos preconceitod da ontologia

tradicional que se orienta a partir da estrutura do loacutegos apofatikoacutes considerando

o mesmo como algo dado lsquopresente agrave vistarsquo (Vorhandener) Husserl faz

basicamente o mesmo que jaacute havia feito a teoria tradicional das categorias desde

Aristoacuteteles em diante a saber retroprojetar a estrutura do enunciado da forma S-

P para o acircmbito dos lsquoobjetosrsquo que natildeo eacute outro que dos entes intramundanos

considerados como dados meramente lsquopresente agrave vistarsquo (VIGO 2012 p96)

Se a discussatildeo de Heidegger com a concepccedilatildeo husserliana se torna patente eacute

importante destacar tambeacutem a discussatildeo com a concepccedilatildeo diltheyniana - tendo em vista

o esclarecimento da noccedilatildeo de ldquosignificatividaderdquo Vimos que a categoria do significado

como apresentada por Dilthey possui um aspecto decisivo a relaccedilatildeo entre vivecircncia e

compreensatildeo eacute o ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da hermenecircutica pois traz em si a

categoria do significado como o nexo da vivecircncia com a realidade concreta sem se

apoiar em qualquer elemento transcendente agrave proacutepria experiecircncia vivida Contudo como

observa Heidegger no sect43 de Ser e Tempo o viacutenculo de Dilthey agrave teoria do conhecimento

da eacutepoca compreendendo a vivecircncia como vivecircncia de consciecircncia ou ldquoa relaccedilatildeo-de-ser

da consciecircncia com o real ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p583) faz com que a lsquovidarsquo

seja apresentada de modo indiferenciado sem a compreensatildeo de sua sustentaccedilatildeo

ontoloacutegica jaacute que a vivecircncia particular da consciecircncia como vida conexa e estruturante

79Termo a partir do qual Ponto de partida

109

eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu projeto hermenecircutico Mas Heidegger

reconhece ldquoDilthey natildeo soacute acentua que a realidade nunca eacute dada de modo primaacuterio no

pensamento e na apreensatildeo mas indica sobretudo que o conhecer ele mesmo natildeo

consiste em julgar e que saber eacute uma lsquorelaccedilatildeo de serrsquordquo (HEIDEGGER 2012 p583)

Tentando tornar mais claro mesmo que para Dilthey o mundo natildeo apareccedila como um

conjunto de coisas prontas agrave apreensatildeo da razatildeo humana mais ainda que as coisas

enquanto res natildeo sejam tomadas como a realidade (Realitaumlt) o fato de o pressuposto da

vivecircncia provir da consciecircncia obscurece o fundamento ontoloacutegico de algo como ldquovidardquo

Por isso escapou a Dilthey a relaccedilatildeo primaacuteria entre ser-aiacute como ser-no-mundo em sua

radicalidade ontoloacutegica como relaccedilatildeo fundante de toda e qualquer compreensatildeo de ser

Talvez por esse motivo como observa DASTUR (2007)

ldquoNo trabalho publicado em 1927 Heidegger natildeo usa frequentemente termo

hermenecircutica que aparece apenas trecircs ou quatro vezes () - no paraacutegrafo 7 da

introduccedilatildeo quando eacute para definir a fenomenologia no paraacutegrafo 33 que trata da

enunciaccedilatildeo e no paraacutegrafo 45 que define o iniacutecio da segunda parte da tarefa de

uma interpretaccedilatildeo do Dasein - enquanto o termo Auslegung que significa tanto

interpretaccedilatildeo e explicaccedilatildeo eacute muito mais frequentemente utilizadordquo (p74)

E quando Heidegger retoma o termo ldquohermenecircuticardquo no sect33 ele ressalta o caraacuteter

existenciaacuterio de tal interpretaccedilatildeo

ldquoA enunciaccedilatildeo natildeo pode negar sua origem ontoloacutegica a partir da interpretaccedilatildeo

que-entende O ldquocomordquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor entendedor

(ἑρμηνεία) noacutes os chamamos lsquocomorsquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio para

diferenciaacute-lo do ldquocomordquo apofacircntico da enunciaccedilatildeo (Aussage)rdquo (HEIDEGGER

2012 p 447)

O que eacute essa diferenccedila entre o ldquocomordquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio e o ldquocomordquo

apofacircntico da enunciaccedilatildeo Eacute a diferenccedila entre Auslegung (interpretaccedilatildeo) e Aussage

(enunciado) A diferenccedila consiste no fato de que a originariedade da mostraccedilatildeo dos entes

em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) - pela

significatividade (Bedeutsamkeit) que a articula - e sua derivaccedilatildeo como ente

simplesmente dado (Vorhanden) ndash fazendo emergir algo como significado (Bedeutung)-

ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) em sua ligaccedilatildeo

derivativa agrave interpretaccedilatildeo (Auslegung) De outra maneira como a estrutura interpretativa

aberta pela compreensatildeo ou entendimento (Verstehen) transforma-se em proposiccedilatildeo

Na introduccedilatildeo desse capiacutetulo escrevemos que na fenomenologia heideggeriana veio agrave

110

tona o aspecto ontoloacutegico do conteuacutedo significativo Essa fenomenologia como ontologia

acabou por revelar de um lado a historicidade de todo e qualquer significado que pudesse

vir agrave palavra por outro que o campo de sentido no qual algo pode manter-se em seu

significado tambeacutem era histoacuterico Eacute necessaacuterio portanto a partir de agora mostrar como

o significado aberto pela compressatildeo-interpretativa (algo como algo) ganha sua forma

expressa inicialmente a partir do fenocircmeno da proposiccedilatildeo e a partir dessa derivaccedilatildeo

podemos ter acesso ao fenocircmeno da linguagem

II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da

interpretaccedilatildeo (Auslegung)

A anaacutelise da enunciaccedilatildeo (Aussage) conforme apresenta por Heidegger no sect33 de

Ser e Tempo constitui a segunda estrutura descrita na obra a qual nos permite

compreender o fenocircmeno da linguagem (Sprache) como a manifestaccedilatildeo uacuteltima de um

horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo dos entes previamente

articulada O fenocircmeno da linguagem aparece como resultado dos trecircs objetivos de sua

investigaccedilatildeo neste momento do tratado os quais listamos a seguir

1) Como a estrutura compreensiva-interpretativa (apresentada no toacutepico anterior)

sofre uma modificaccedilatildeo

2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos

3) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade

Como antecipamos e a partir da finalidade da anaacutelise acima apresentada

podemos dizer que o que estaacute em jogo nesse momento da analiacutetica eacute compreender que ldquoa

siacutentese predicativa fundamenta-se numa daccedilatildeo originaacuteria e eacute em funccedilatildeo da experiecircncia

antepredicativa que se opera a atribuiccedilatildeo do predicado ao sujeitordquo (NUNES 2012 p165)

Em outras palavras como a estrutura interpretativa aberta pela compressatildeo (algo como

algo) transforma-se em proposiccedilatildeo (Sujeito-predicado) E essa derivaccedilatildeo eacute elencada nas

trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo (Aussage)

1) Mostraccedilatildeo (Aufzeigung)

2) Predicaccedilatildeo (Praumldikation)

111

3) Comunicaccedilatildeo (Mitteilung)

Essas significaccedilotildees do termo Aussage ainda segundo Heidegger possuem caraacuteter

analiacutetico pois satildeo ldquotiradas do fenocircmeno que ela designa as quais delimitam em sua

conexatildeo e unidade a completa estrutura da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p437)

Essa unidade estaacute assentada nas condiccedilotildees preacutevias tendo em vista que ldquoa enunciaccedilatildeo natildeo

eacute um comportamento-que-flutua-no-ar e que possa por si mesmo abrir o ente

primariamente mas se comporta jaacute sempre sobre a base de ser-no-mundordquo

(HEIDEGGER 2012 p443)

Como vimos no capiacutetulo anterior as condiccedilotildees preacutevias conforme apresentadas no

Relatoacuterio Natorp satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a direccedilatildeo da

visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a ldquovisibilidaderdquo (Sichtweite) De

modo mais claro em (1) temos o acircmbito da realidade dada em uma preacutevia abertura

temporal de sentido em (2) temos a direccedilatildeo que jaacute determinou algo ldquocomo-algordquo (Als-

was) e jaacute ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu lugar

significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de toda

possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o como

do aparecer dos entes em seu ser seu significado e as possibilidades de comportamentos

do ser-aiacute eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto

(1) e jaacute interpretado (2) e por isso pode mover-se em pretensotildees de objetividade e

definiccedilatildeo Essas condiccedilotildees estatildeo articuladas com a interpretaccedilatildeo de Heidegger dos termos

respectivamente noucircs phroacutenesis e sophiacutea e assentadas na noccedilatildeo de verdade como

desvelamento (ἀλήθεια) Em Ser e Tempo Heidegger reelabora essas interpretaccedilotildees com

uma terminologia proacutepria respectivamente Vorhabe (ter-preacutevio) Vorsicht (ver-preacutevio)

e Vorgriff (conceito-preacutevio) e esse tripeacute

ldquoForma o arcabouccedilo projetivo do compreender que nos abre os entes ao sabor

dos nexos da referecircncia na conduta do trato atraveacutes dos quais se estende a rede

de significatividade () Eacute nessa conduta e portanto na experiecircncia

antepredicativa como a praacutexis maciccedila do mundo-da-vida em seu imediato e

frequente transcorrer cotidiano que Heidegger coloca a nascente do sentidordquo

(NUNES 2012 p168)

Como essas condiccedilotildees preacutevias devem ser compreendidas em vista do caraacuteter de

projeto-jogado do ser-aiacute natildeo eacute gratuita a designaccedilatildeo da abertura do ser-aiacute ao mundo como

112

ldquoabertura de sentido fundamentalrdquo A abertura compreensiva fundamental descerra o

poder-ser do ser-aiacute como projeto mas ao projetar-se ele eacute lanccedilado num ldquoaiacuterdquo histoacuterico O

seu poder-ser se lanccedila num campo de jogo jaacute descerrado interpretado e articulado por

essas condiccedilotildees E assim essas condiccedilotildees preacutevias ldquoreconduz[emcc]-nos ao ciacuterculo

hermenecircutico ontoloacutegico-histoacuterico que circunscreve por forccedila da finitude que faz do

homem um Daseinrdquo (NUNES 2012 p168) No que me lanccedilo ao mundo sou e o mundo

eacute como ele eacute como escreve Fernando Pessoa (2006 p177)

ldquoCreio no mundo como um malmequer

Porque o vejo Mas natildeo penso nele

Porque pensar eacute natildeo compreender

O Mundo natildeo se faz para pensarmos nele

(Pensar eacute estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordordquo

Talvez esses versos possam iluminar o que estaacute em questatildeo nesse paraacutegrafo

Poderiacuteamos nos questionar por qual motivo Heidegger natildeo passa da interpretaccedilatildeo

(Auslegung) ao discurso (Rede) pois este como veremos no proacuteximo capiacutetulo remete agrave

fala como fundamento ontoloacutegico da linguagem O sect 33 se refere a uma discussatildeo muito

especiacutefica mas que tem um lugar privilegiado na ontologia fundamental e estaacute

diretamente relacionada ao sect44 da mesma obra A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo de verdade

da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca que era a dos

neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa concepccedilatildeo

tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da verdade em

direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave proposiccedilatildeo Com

isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa medida

condicionando a ontologia agrave loacutegica

Courtine (1996) elabora essa problemaacutetica com clareza A partir de trecircs etapas

ele nos apresenta o caminho que conduz nosso autor da loacutegica agrave liacutengua A primeira etapa

diz respeito aos trabalhos de juventude de Heidegger ldquoainda marcados pela problemaacutetica

da validade como primeira elucidaccedilatildeo do ser no juiacutezordquo (COURTINE 1996 p14) Jaacute a

segunda etapa que Courtine denomina destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica consiste em regressar

da interpretaccedilatildeo ldquoescolarrdquo da loacutegica aristoteacutelica a uma problematizaccedilatildeo mais original do

loacutegos compreendido como modo de desvelamento Eacute nessa segunda etapa que estaacute

113

inserido o trabalho de Ser e Tempo sendo a passagem da primeira agrave segunda etapa

marcada pelo curso de 1925-1926 Logik die Frage nach der Wahrheit (GA21) A

terceira seria ainda uma etapa de destruiccedilatildeo mas de modo diferente marcada pelo que

Courtine denomina desorientaccedilatildeo ou ldquoabalordquo (erschuumlttern) e encontra sua imagem

expliacutecita no texto de 1935 ldquoIntroduccedilatildeo agrave metafiacutesicardquo

Portanto na primeira etapa a loacutegica para o jovem Heidegger eacute ainda apreendida

como loacutegica do ldquosentidordquo ou da ldquovalidaderdquo

ldquoA ideacuteia segundo a qual a Geltung a validade define o modo de ser proacuteprio das

proposiccedilotildees e das verdades vem como se sabe da loacutegica de Lotze Numa nota

das Neuere Forschungen uumlber Logik (GA I p23) Heidegger indicava a respeito

da Loacutegica de Lotze que acabava de ser reeditada sua loacutegica deve sempre ser

considerada como a obra fundamental da loacutegica moderna () E Heidegger que

ateacute aqui se exprimia como disciacutepulo fiel de Husserl terminava por acrescentar

esta questatildeo rica em posteridade para seu proacuteprio pensamento ldquoMas logo se

coloca a questatildeo o que eacute ndash sentidordquo (GA I p170)rdquo (COURTINE 1996 pp16-

17)

Vimos como o sentido (Sinn) em Ser e Tempo eacute apresentado sob uma perspectiva

radical relacionado agrave problematizaccedilatildeo mais original do lsquoloacutegosrsquo como mostraccedilatildeo do

fenocircmeno em seu ser e agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento Essa mudanccedila criacutetica

resulta da aparentemente simples interrogaccedilatildeo de Heidegger acerca da identificaccedilatildeo

ldquoWahrheit = wahrer Satz = Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade)rdquo

(COURTINE 1996 p 19) A criacutetica eacute assim expressa em Logik die Frage nach der

Wahrheit (GA21)

ldquoLotze que introduziu o conceito de lsquoGeltungrsquoem loacutegica emprega a expressatildeo

lsquoserrsquo no sentido estrito segundo o qual ser quer dizer a mesma coisa que

efetividade das coisas ser = lsquorealidadersquo (Vorhandenheit) [] Lotze natildeo conseguiu

superar o naturalismo na medida em que restringiu o significado do termo

veneraacutevel lsquoserrsquo ao ser real agrave realidade [] Na nossa terminologia utilizamos

inversamente ser no sentido amplo inserindo-nos na autecircntica tradiccedilatildeo da

filosofia grega de tal maneira que ser designa tanto a realidade quanto a

idealidade ou outras maneiras possiacuteveis de serrdquo (HEIDEGGER GA21 p62

apud COUTRINE 1996 p19)

Nesse sentido lembremos tambeacutem que para os neokantianos influenciados pela

filosofia dos valores de Lotze o conhecimento eacute possiacutevel como uma atividade valorativa

do juiacutezo (na forma ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo) Ou seja eacute o juiacutezo que reconhece o

conteuacutedo o sentido e a validade da verdade na sua pretensatildeo de necessidade e

114

universalidade algo ldquoeacuterdquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento Ora

o que a leitura de Ser e Tempo ateacute aqui jaacute demonstrou eacute que algo eacute natildeo porque um juiacutezo

loacutegico definiu seu conteuacutedo ontoloacutegico mas porque o ser-aiacute aquele que vai atribuir

sentido jaacute sempre se move numa preacute-compreensatildeo de ser a qual eacute fundamentalmente

praacutetica na visatildeo circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram

em seu ser Ora estabelecendo uma possiacutevel analogia parece que Heidegger desconfia

tanto do conhecimento teoacuterico-proposicional quanto Fernando Pessoa do ldquopensamentordquo

Assim reduzir qualquer ontologia agrave loacutegica atraveacutes do juiacutezo proposicional eacute como ldquoestar

doente dos olhosrdquo

No nosso entender o que Heidegger desenvolve no sect 33 soacute seraacute totalmente

elucidado se o relacionarmos com o sect 44 No sect 33 jaacute se anuncia que a forma fundamental

da predicaccedilatildeo (Praumldikation) sujeito e predicado (ldquoS eacute Prdquo) eacute derivada da mostraccedilatildeo

(Aufzeigung) originaacuteria compreensivo-interpretativa (algo como algo) e soacute por isso a

comunicaccedilatildeo (Mitteilung) uns com os outros na vida cotidiana pode expressar profericcedilotildees

como ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo ldquoHoje eacute um belo diardquo etc Antes de

entramos na apresentaccedilatildeo pormenorizada do sect33 e assim a relacionarmos ao sect44 eacute

necessaacuterio fazermos duas consideraccedilotildees

Essas camadas de derivaccedilatildeo evitam qualquer interpretaccedilatildeo relativista da noccedilatildeo de

linguagem em Heidegger Tentando escapar de uma leitura apressada devemos pensar

no acontecimento da verdade como um acontecimento compreensivo a partir de um ente

finito e histoacuterico o que eacute diferente de reduzi-lo a uma perspectiva historicista O que estaacute

em questatildeo por exemplo natildeo eacute se ldquocasardquo poderia se chamar ldquomesardquo (esse eacute um aspecto

ocircntico da linguagem) ou ainda que o fato de o enunciado possuir um fundamento

contingente ele seria menos verdadeiro Aleacutem disso haacute o fato de que o ente e as

possibilidades de ser do ser-aiacute vecircm agrave palavra por uma mostraccedilatildeo preacutevia de seu ser eacute o

ente que se mostra E na medida em que eacute mobilizado pelo ser-aiacute na interpretaccedilatildeo sua

mostraccedilatildeo pode ser modificada pela expressatildeo na forma predicativa A loacutegica deriva do

loacutegos a loacutegica natildeo eacute o lugar do loacutegos E o loacutegos eacute a maneira mesma de o ente se mostrar

e se ele se mostra para o ser-aiacute isso natildeo quer dizer que eacute o ser-aiacute que o determina Natildeo

Eacute o ser-aiacute que o potildee em liberdade O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento

como fenocircmeno Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a

115

expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional

compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na estabilidade de uma esfera para aleacutem

do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua manifestaccedilatildeo o sentido

de sua proacutepria existecircncia

Caberia ademais em uma pesquisa posterior investigar se a interpretaccedilatildeo do

loacutegos como loacutegos apofacircntico derivada da noccedilatildeo de intencionalidade essecircncia mesma da

fenomenologia ainda reconduz Heidegger a certo viacutenculo com a concepccedilatildeo tradicional

da linguagem na medida em que dizer eacute ainda dizer que algo eacute de tal ou qual maneira ou

seja ainda dizer na forma predicativa Dito de outra forma mesmo que Heidegger

demonstre o caraacuteter derivado da loacutegica ela continua a ser uma purificaccedilatildeo dos elementos

materiais da linguagem Isso significaria dizer que o problema heideggeriano da

linguagem ainda estava inserido no projeto da tradiccedilatildeo da filosofia ocidental 80

Retomemos agora as trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo

(Aussage) Na mostraccedilatildeo (Aufzeigung) como primeiro significado Heidegger reteacutem o

sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Essa forma do enunciado estaacute diretamente

relacionada ao ente que vem ao encontro no Vorhabe (ter-preacutevio) ou noucircs em que o ser-

aiacute originariamente pela ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhanden) movimenta-se e abre a

compreensatildeo em um mundo-ambiente (Umwelt) Mas toda compreensatildeo (Verstehen) jaacute

interpreta (Auslegung) o que entende e assim no trato praacutetico ou no ldquocomordquo

hermenecircutico-existenciaacuterio

ldquoA execuccedilatildeo originaacuteria da interpretaccedilatildeo natildeo consiste em uma proposiccedilatildeo-

enunciativa teoacuterica mas no fato de que no-ver-ao-redor da ocupaccedilatildeo se potildee de

lado ou se troca a ferramenta improacutepria lsquosem perder nisso uma soacute palavrarsquo Da

falta de palavras natildeo se deve concluir a falta de interpretaccedilatildeordquo (HEIDEGGER

2012 P445)

Na predicaccedilatildeo (Praumldikation) segundo significado da enunciaccedilatildeo fundado no

primeiro haacute a determinaccedilatildeo de um ente que modifica e restringe a mostraccedilatildeo de algo

como algo na forma sujeito-predicado Esse segundo significado estaacute diretamente

80 Cf Capiacutetulo I- Introduccedilatildeo

116

relacionado ao Vorsicht (ver-preacutevio) cuja base encontra-se no Vorhabe (ter-preacutevio) No

que o ser-aiacute vecirc algo e o determina ele restringe o utilizaacutevel (Zuhandenes) a um subsistente

(Vorhandener) com isso ele ldquovisa a um subsistente no utilizaacutevel Pelo olhar

contemplativo e para ele o utilizaacutevel se oculta como utilizaacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012

p445) Esse segundo momento da enunciaccedilatildeo estaacute ligado ao significado (Bedeutung) que

emerge a partir da significatividade (Bedeutsamkeit) e nesse sentido ldquoposiccedilatildeo-de-sujeito

posiccedilatildeo-de-predicado em unidade com o-pocircr satildeo inteiramente lsquoapofacircnticosrsquo no sentido

rigoroso da palavrardquo (HEIDEGGER 2012 p439) Aqui Heidegger ainda se refere a uma

categoria do ente que se mostra no interior do mundo Mas entatildeo como ocorre a

modificaccedilatildeo de algo como algo tomado como categoria subsistente (Vorhanden) na forma

loacutegica sujeito-predicado

ldquoAgora pela primeira vez se franqueia o acesso a algo assim como propriedades

O lsquoquecircrsquo da enunciaccedilatildeo determinante do subsistente eacute extraiacutedo do subsistente

como tal () A estrutura-de-como da interpretaccedilatildeo experimenta uma

modificaccedilatildeo O lsquocomorsquo em funccedilatildeo de apropriaccedilatildeo do entendido jaacute natildeo chega ateacute

uma totalidade-de-conjuntaccedilatildeo Ele foi separado de suas possibilidades de

articular as relaccedilotildees-de-remissatildeo da significatividade que constitui o ser-do-

mundo-ambiente O lsquocomorsquo eacute reprimido no plano uniforme do soacute subsistente ()

Esse nivelamento do lsquocomorsquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor em como

da determinaccedilatildeo-da-subsistecircncia eacute a prerrogativa da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER

2012 p447)

O ente tomado como subsistente (Vorhanden) eacute prerrogativa da predicaccedilatildeo Seu

recorte como algo que possui essa ou aquela propriedade torna possiacutevel algo como a

forma predicativa (ldquoS eacute Prdquo) O que estaacute em jogo poreacutem pois tornou-se paradigma da

tradiccedilatildeo eacute o nivelamento de todo e qualquer ente como algo sempre presente dotado de

propriedades e desse modo disponiacuteveis agrave apreensatildeo na forma predicativa Nesse

nivelamento todo ente eacute posto sob o domiacutenio da loacutegica que obscurece sua derivaccedilatildeo

essencial agrave mostraccedilatildeo do ente em seu ser em funccedilatildeo da relaccedilatildeo primaacuteria ser-aiacute como ser-

no-mundo e assim da verdade como desvelamento (ἀλήθεια)

A terceira forma do enunciado derivado do primeiro e do segundo significados eacute

apresentada por Heidegger como comunicaccedilatildeo (Mitteilung) A palavra alematilde jaacute indica o

caraacuteter puacuteblico do que inicialmente foi mostrado e pela predicaccedilatildeo foi determinado

teilung (partilha) mit (com) O enunciado como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se puder ser

partilhado com outrem ldquover juntordquo o mostrado jaacute determinado ldquolsquoCompartilhadorsquo eacute o

comum e transparente ser para o mostrado lsquoser pararsquo que deve ser firmemente mantido

117

como ser-no-mundo [] Agrave enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo entendida assim sentido

existenciaacuterio pertence o ser expressordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Essa terceira forma

estaacute relacionada ao Vorgriff (conceito-preacutevio) ou a significaccedilotildees calcificadas de um

mundo histoacuterico faacutetico

Natildeo podemos esquecer que a anaacutelise dos existenciaacuterios (entender interpretaccedilatildeo e

disposiccedilatildeo) estatildeo na anaacutelise do ldquoser-em como talrdquo (quinto capiacutetulo) antecedida pelo

capiacutetulo intitulado ldquoo ser-no-mundo como ser-com e como ser-si-mesmo lsquoA gentersquordquo

Nesse sentido e pelo caraacuteter programaacutetico de Ser e Tempo a anaacutelise da enunciaccedilatildeo ou

proposiccedilatildeo (Aussage) jaacute pressupotildee que ser-no-mundo eacute sempre ser-com-os-outros Desse

modo ser expresso na comunicaccedilatildeo eacute a primeira manifestaccedilatildeo acerca do fenocircmeno da

linguagem que Heidegger apresenta em Ser e Tempo Poreacutem no sect34 o autor indica que

a comunicaccedilatildeo enunciativa ou informativa (ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo

ldquoHoje eacute um belo diardquo etc) assentada na predicaccedilatildeo eacute um caso particular de comunicaccedilatildeo

(Cf HEIDEGGER 2012 p457) Mas aqui chegamos ao intuito principal de nosso

capiacutetulo descrever como a ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo fundada na predicaccedilatildeo que por

sua vez soacute eacute possiacutevel pela interpretaccedilatildeo apresenta o caraacuteter derivativo do enunciado

expresso em uacuteltima medida pela linguagem que comunica

A partir dessa apresentaccedilatildeo dos trecircs significados do enunciado (Aussage)

compreendemos sua definiccedilatildeo ldquoenunciaccedilatildeo eacute uma mostraccedilatildeo determinante que

comunicardquo (HEIDEGGER 2012 p443) Portanto chegamos agrave estrutura ontoloacutegica da

linguagem (Sprache) ou ao dizer puacuteblico acerca das coisas e do estado de coisas em um

mundo Ter chegado ao objetivo central de nosso capiacutetulo natildeo quer dizer que nossa tarefa

se encerra aqui Uma obra como Ser e Tempo nos exige mais A finalidade da investigaccedilatildeo

desse paraacutegrafo ainda natildeo foi esclarecida em seus dois uacuteltimos pontos

1) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos

2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade

Se Heidegger indica que no mostrar mesmo do fenocircmeno em seu loacutegos (algo como

algo) pode surgir a forma predicativa eacute necessaacuterio explicar como no proacuteprio loacutegos a

flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo eacute possiacutevel Nas palavras de nosso autor

118

ldquoQue funda a unidade desse juntar Ele reside como Platatildeo reconheceu em que o

λόγος eacute sempre um λόγος tivoacuteς Na perspectiva do ente manifesto no λόγος as

palavras satildeo reunidas em um todo verbal Aristoacuteteles viu mais radicalmente todo

λόγος eacute ao mesmo tempo σύνθεσis e διαίρεσηs A mostraccedilatildeo eacute um reunir e separar

Entretanto Aristoacuteteles natildeo desenvolveu a questatildeo ateacute perguntar Que fenocircmeno eacute

o que no interior da estrutura do λόγος possibilita e ao mesmo tempo exige a

caracterizaccedilatildeo de toda enunciaccedilatildeo como siacutentese e dieacuterese () O que com as

estruturas formais do lsquoligarrsquo e lsquosepararrsquo ou mais exatamente com a unidade de

ambos devia ser fenomenicamente encontrado eacute o fenocircmeno do lsquoalgo como algorsquordquo

(HEIDEGGER 2012 p449)

A criacutetica expliacutecita se volta contra Aristoacuteteles mas tambeacutem contra toda tradiccedilatildeo

que absorveu esse pressuposto E como natildeo podemos deixar de observar ateacute seu proacuteprio

mestre Husserl quando este estabeleceu a diferenccedila entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial

Essa distinccedilatildeo desalojou o lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel e o conduziu ao uso loacutegico

sem revelar de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno ou o desvelamento dos

entes em seu ser O fenocircmeno da linguagem enunciativa (Mitteilung) em funccedilatildeo de sua

derivaccedilatildeo da predicaccedilatildeo (Praumldikation) e essa por sua vez derivada da mostraccedilatildeo

(Aufzeigung) possui uma ligaccedilatildeo com os entes na medida em que diz o que de algum

modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que lsquoalgo eacute xrsquo ou que lsquoalgo natildeo eacute xrsquo eacute possiacutevel primariamente

pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com

No interior da estrutura do proacuteprio λόγος ao indicar-se que algo eacute diz-se tambeacutem como

ele eacute ou como ele natildeo eacute [esse traccedilo estaacute relacionado ao caraacuteter intencional do discurso

(die Rede) que examinaremos no proacuteximo capiacutetulo] Contudo a linguagem habitual que

manteacutem vigente os significados calcificados natildeo reconhece esse traccedilo para aleacutem da

gramaacutetica Aleacutem disso a proposiccedilatildeo loacutegica obscurece a estrutura do loacutegos que a

condiciona pelo fato de usurpar a verdade para o juiacutezo natildeo reconhecendo o lugar

originaacuterio da verdade Originariedade somente possiacutevel pela compreensatildeo da verdade

como Aleacutetheia O que nos conduz agrave segunda finalidade da investigaccedilatildeo do sect 33

Para explicarmos esse conceito originaacuterio de verdade eacute necessaacuterio que nos

reportemos ao sect44 Quando se diz ldquooriginariedaderdquo do fenocircmeno da verdade natildeo se diz

algo como lsquocausarsquo da verdade antes se refere agrave sua origem sem sentido objetivo

lsquoObjetividadersquo eacute um conceito derivado da verdade reportada ao juiacutezo Aqui a verdade

tambeacutem natildeo deve ser considerada para aleacutem de sua compreensatildeo histoacuterica Lembremos

de que natildeo haacute ldquoserrdquo sem a compreensatildeo do sentido de ser portanto eacute necessaacuterio vincular

119

sempre ldquoserrdquo ao ser-aiacute ente finito e histoacuterico Por conseguinte compreensatildeo de ser em

Ser e Tempo estaacute como a origem mesma da verdade compreendida como desvelamento

Como jaacute apontamos antes a enunciaccedilatildeo (Aussage) enquanto mostraccedilatildeo

(Aufzeigung) eacute a forma fundante dos modos possiacuteveis de enunciaccedilatildeo e nela Heidegger

reteacutem o sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Na mostraccedilatildeo nada se funda em

representaccedilotildees que se adequam a objetos como compreendeu a tradiccedilatildeo Para serem

verdadeiros e garantirem seu estatuto ontoloacutegico os entes natildeo precisam estar de em

acordo nem se submeterem agrave adequaccedilatildeo dos juiacutezos ou proposiccedilotildees dos homens A

derivaccedilatildeo da verdade como objetividade na ciecircncia ou em todo comportamento teoacuterico

natildeo pode negar a maneira pela qual o ente eacute posto em liberdade Conhecer

originariamente eacute deixar que o ente se mostre em seu ser dessa forma

ldquoSuponha-se que algueacutem de costas para a parede profira a seguinte enunciaccedilatildeo

verdadeira lsquoO quadro pendurado na parede estaacute tortorsquo Essa enunciaccedilatildeo se

comprova quando quem a enuncia se volta para a parede e percebe o quadro torto

ali dependurado Que eacute comprovado nessa comprovaccedilatildeo Eacute constatado algo

como uma concordacircncia do lsquoconhecimentorsquo ou do conhecido com a coisa

lsquocolocadarsquo na parede Sim e natildeo conforme se faccedila cada vez uma adequada

interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do que a expressatildeo lsquoo conhecidorsquo significa A que

se refere quem enuncia se natildeo julga o quadro na percepccedilatildeo mas soacute o representa

A algo como representaccedilotildees Certamente que natildeo se representaccedilatildeo deve aqui

significar representar como processo psiacutequico Tambeacutem natildeo se representaccedilotildees

tecircm o sentido do representado na medida em que visada uma imagem da coisa

real na parede Ao contraacuterio a enunciaccedilatildeo que soacute representa refere-se segundo

seu sentido mais proacuteprio ao quadro real na parede Soacute ele eacute visado e nada que

dele difira () O enunciar eacute um ser voltado para a coisa sendo ela mesma E que

eacute comprovado pela percepccedilatildeo Nada senatildeo que o percebido eacute o mesmo ente

visado na enunciaccedilatildeoConfirma-se que o ser enunciante para o enunciado eacute um

mostrar o ente que ele descobre o ente para o qual se volta Eacute comprovado o ser-

descobridor da enunciaccedilatildeo () o conhecer permanece referido unicamente ao

ente ele mesmo Eacute neste mesmo que se joga por assim dizer a confirmaccedilatildeo O

ente visado se mostra ele mesmo assim como ele eacute em si mesmo () A

enunciaccedilatildeo eacute verdadeira significa que ela descobre o ente em si mesmo Ela

enuncia mostra lsquofaz verrdquo (αποφανσις) o ente em seu ser-descoberto O ser

verdadeiro (verdade) da enunciaccedilatildeo se deve entender como um ser-descobridorrdquo

(Heidegger 2012 pp603-605)

O termo grego ldquoapophantikoacutesrdquo pela junccedilatildeo entre ldquoapordquo [ldquopara forardquo ldquomostrarrdquo

ldquotornar conhecidordquo] e ldquophaineinrdquo [ldquoexibir mostrarrdquo (derivado de lsquophosrsquo ldquoluzrdquo - mesma

raiz da palavra phainoacutemenon)] manteacutem sua forccedila quando articulado com as palavras

120

ldquoAuslegungrdquo e ldquoAussagerdquo Pois tal como ldquoapordquo ldquoausrdquo eacute o prefixo de liacutengua alematilde usado

nessas palavras com o sentido da preposiccedilatildeo aus que significa ldquopara forardquo ldquoderdquo Assim

uma vez interpretado (Auslegung) o ente enunciado (Aussage) jaacute mostrou jaacute trouxe a si

mesmo a conhecimento e desvelou-se como ente e nisso consiste sua verdade originaacuteria

(Aleacutetheia)

O retorno de Heidegger agrave ldquoforccedila das palavras mais elementaresrdquo ou agraves palavras

gregas como loacutegos dikeacute physis teacutechne e aleacutetheia eacute a tentativa de ir aleacutem da

sedimentaccedilatildeo histoacuterica das palavras Dito de outra forma voltar agrave origem dos termos

atraveacutes dos quais o pensamento filosoacutefico teria alcanccedilado lsquoas coisas mesmasrsquo coisas essas

que agora no presente permanecem veladas por camadas interpretativas cotidianas e

teoacutericas Sendo a concepccedilatildeo de que a proposiccedilatildeo eacute o lugar privilegiado da verdade uma

das maiores expressotildees da tradiccedilatildeo metafiacutesica Portanto eacute tarefa a que Ser e Tempo se

propotildee eacute a da descriccedilatildeo desse lugar originaacuterio ndash de mostraccedilatildeo - dos fenocircmenos

Mas se eacute o ser-aiacute na abertura de sentido fundamental que mobiliza os entes em seu

ser qual o papel desse ente marcado pela existecircncia em meio agrave verdade agora

compreendida como Aleacutetheia A compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido

primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode custodiar o sentido

de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento

ldquoO ser-verdadeiro como ser-descobridor soacute eacute de sua parte ontologicamente

possiacutevel sobre o fundmento do ser-no-mundo Este fenocircmeno no qual

reconhecemos uma constituiccedilatildeo fundamental do Dasein eacute o fundamento do

fenocircmeno originaacuterio da verdade () Na medida em que o Dasein eacute

essencialmente sua abertura e aberto abre e descobre ele eacute essencialmente

verdadeiro O Dasein eacute lsquona verdadersquordquo (HEIDEGGER 2012 pp607-611)

O ser-aiacute em sua unidade fenomecircnica como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge)

revelou-se como o fundamento sem fundamento da abertura compreensiva portanto

aquele que como ser-no-mundo pode abrir o sentido de ser de todo ente e de suas

possibilidades Poreacutem como projeto-jogado eacute tambeacutem aquele que pode perder-se e natildeo

tornar transparente essa condiccedilatildeo ontoloacutegica fundamental o que frequentemente jaacute faz

pois sempre jaacute custodiou seu ser no mundo suas orientaccedilotildees cotidianas as sedimentaccedilotildees

121

significativas e as concepccedilotildees de verdade calcificadas Por isso o Dasein eacute o ente que

tambeacutem estaacute na natildeo-verdade (Umwahrheit)81

Recuperemos o sentido efetivo de desvelamento ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o

que aponta para o velamento (lethe) que ficou para traacutes que mostra para aquilo que a

sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila da aleacutetheia que se torna possiacutevel a

objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89)

Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao

encontro em seu significado) no desvelamento originaacuterio de seu ser mas a mostraccedilatildeo dos

fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira dissimulada sempre em uma objetificaccedilatildeo de

seu ser como ente determinado pois ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na

medida em que partimos de seu encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de

descoberta perde seu sentido mais efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Entatildeo ldquodizer que o

Dasein estaacute e natildeo estaacute na verdade eacute compreender que o encobrimento (Verschlossenheit)

eacute [] a contraparte da aberturardquo (NUNES 2012 p197)

Depois dessa exposiccedilatildeo eacute necessaacuterio apresentar como a linguagem estaacute assentada

na constituiccedilatildeo proacutepria ao ser-aiacute em relaccedilatildeo agrave verdade Tentaremos mostrar como o

discurso (Rede) eacute para Heidegger o fundamento ontoloacutegico da linguagem mas ao

mesmo tempo como o proacuteprio fenocircmeno da linguagem jaacute sempre se apresenta como

falatoacuterio (Gerede) Essa eacute a tarefa do proacuteximo e uacuteltimo capiacutetulo de nosso trabalho

81 Cf HEIDEGGER 2012 sect44 p615

122

Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)

Em vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdos Sob a pele das palavras haacute cifras e coacutedigos O sol consola os doentes e natildeo os renova

As coisas Que tristes satildeo as coisas consideradas sem ecircnfase (A flor e a naacuteusea Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

No capiacutetulo anterior descrevemos de que modo o fenocircmeno da linguagem eacute

apresentado pela primeira vez em Ser e Tempo como ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo e ainda

como a linguagem eacute derivada da mostraccedilatildeo preacutevia dos entes em seu ser a partir da relaccedilatildeo

primaacuteria ser-aiacute como ser-no-mundo O Dasein como ente privilegiado estaacute remetido ao

mundo e sempre jaacute possui uma compreensatildeo preacutevia do ser A compreensatildeo ou

entendimento (Verstehen) de ser eacute o fundamento originaacuterio da verdade agora

compreendida como desvelamento aleacutetheia Poreacutem desvelar eacute apontar para o que

permanece velado ou seja a contraparte da abertura eacute o velamento

Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a

ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo

material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos

que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas

que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela

dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se

estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o

123

que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes82rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que

somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em

fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo

Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por

Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um

fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo

incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como

descoberto e os entes sempre disponiacuteveis A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo

cotidiano Heidegger chama de ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou

ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que

esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas

tomadas como oacutebvias e sempre disponiacuteveis pelos nossos recursos linguiacutesticos

I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem

A anaacutelise do discurso (Rede) por Heidegger eacute apresentada no sect34 de Ser e Tempo e

eacute assim descrita

ldquoCom a enunciaccedilatildeo ficou visiacutevel um derivado extremo da interpretaccedilatildeo A

elucidaccedilatildeo da terceira significaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo (ou

manifestaccedilatildeo verbal) conduziu ao conceito de dizer e falar que intencionalmente

sem duacutevida natildeo fora considerado ateacute aquele momento O fato de que a linguagem

seja tematizada somente agora deve servir de indicaccedilatildeo de que esse fenocircmeno

tem suas raiacutezes na constituiccedilatildeo existenciaacuteria da abertura do Dasein O fundamento

ontoloacutegico-existenciaacuterio da linguagem eacute o discurso () O discurso eacute

existenciariamente de igual originariedade que o entenderrdquo (HEIDEGGER

2012 p453)

Esse trecho nos coloca diante de uma constataccedilatildeo reveladora Afinal o que

fundamenta a linguagem estaacute remetido a abertura primaacuteria de sentido Mas isso jaacute natildeo

estaacute claro a partir da descriccedilatildeo da enunciaccedilatildeo De certa forma sim contudo de maneira

indireta pois a enunciaccedilatildeo (Aussage) comunicativa estaacute remetida aos significados ou

seja ao entendimento jaacute articulado e interpretado Agora poreacutem o que Heidegger nos

82 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo

Wolf Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249

124

apresenta eacute o discurso como fundamento da interpretaccedilatildeo e da enunciaccedilatildeo De outra

forma o fundamento da linguagem na proacutepria abertura de sentido (Sinn) de maneira que

o discurso eacute o proacuteprio entendimento articulado que pode interpretar

ldquoO discurso eacute a articulaccedilatildeo da entendibilidade Por isso o discurso fundamenta a

interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo Ao que pode ser articulado na interpretaccedilatildeo e

mesmo mais originariamente jaacute no discurso demos o nome de sentido O

articulado na articulaccedilatildeo discursiva como tal denominamos de o-todo-da-

significaccedilatildeo e este pode ser decomposto em significaccedilotildees As significaccedilotildees como

o articulado do articulaacutevel satildeo sempre providas de sentido () A entendibilidade

do encontrar-se do ser-no-mundo exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER

2012 p455)

O tratamento sobre o discurso (Rede) em Ser e Tempo eacute pouco extensivo mas

cabe a noacutes tentar compreendecirc-lo em todo sua radicalidade O iniacutecio da filosofia grega

denominado como ldquofilosofia da naturezardquo eacute marcado pela tentativa de encontrar a ordem

imanente agrave totalidade substancial do mundo material Essa totalidade estaacute expressa na

palavra physis que nada tem a ver com a natureza empiacuterica e manipulaacutevel que

conhecemos hoje pelas ciecircncias naturais83 Essa totalidade soacute pode ser vista como tal em

sua constituiccedilatildeo una se suas partes estiverem organicamente reunidas sem as quais natildeo

haacute totalidade mas eacute a partir da totalidade que as partes ganham sentido Mesmo que

Heidegger natildeo trate o discurso nesses termos e ainda mesmo que o termo physis apoacutes a

viragem ganhe uma conotaccedilatildeo toda especiacutefica nos valemos dessa explicaccedilatildeo para tentar

compreender a especificidade do discurso Desse modo podemos observar o que estaacute em

jogo no trecho acima O discurso eacute a articulaccedilatildeo da abertura de sentido sem ele o todo

natildeo poderia ser decomposto e a totalidade seria apenas um todo indistinto Nesse sentido

que o discurso fundamenta a interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo E isso nos revela um pouco

mais

ldquoA tatildeo comum definiccedilatildeo do iniacutecio da filosofia como a substituiccedilatildeo da explicaccedilatildeo

miacutetica ou (como eacute o recorte nos manuais de histoacuteria da filosofia) a passagem do

mito ao logos eacute por demais simplista para descrever o que representou a histoacuteria

e filosoficamente essa origem Compreender a filosofia antiga a partir da relaccedilatildeo

entre logos e physis eacute de fato compreender que o iniacutecio da especulaccedilatildeo filosoacutefica

sobre o mundo eacute em grande parte acompanhado pela tradiccedilatildeo miacutetica grega de

unidade entre espiacuterito e natureza e ao mesmo tempo pelo iniacutecio de um certo

83 Cf GONCcedilALVES M 2006 pp7-11

125

estranhamento entre o ser humano pensante e o ser natural ou () a natureza em

sua totalidaderdquo (GONCcedilALVES 2006 p12)

Como vimos o loacutegos para Heidegger natildeo eacute algo que estaacute no Dasein e por isso ele

pode pensar a totalidade Loacutegos segundo Heidegger em seu sentido originaacuterio grego natildeo

eacute ratio Ao contraacuterio o loacutegos estaacute na totalidade ele eacute a articulaccedilatildeo da totalidade que se

mostra ao mostrar os entes ou os fenocircmenos (loacutegos eacute loacutegos apofacircntico) E por isso o ser-

aiacute o acessa inicialmente de modo praacutetico pois natildeo se separa dessa totalidade (por isso a

originariedade da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da

conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) significativamente articulada) Na realidade o ser-aiacute soacute se

afasta dessa totalidade quando natildeo acessa mais o loacutegos de maneira originaacuteria relativo agrave

derivaccedilatildeo como ente simplesmente dado (Vorhanden) fazendo emergir algo como

significado (Bedeutung) que ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da

enunciaccedilatildeo (Aussage)

Mas qual a relaccedilatildeo entre loacutegos e discurso (Rede) Precisamos ir ao sect7 de Ser e

Tempo ldquoQuando dizemos que o significado-fundamental de λόγος eacute discurso essa

traduccedilatildeo literal soacute eacute plenamente validada a partir da determinaccedilatildeo do que o discurso ele

mesmo significardquo (HEIDEGGER 2012 p113) Loacutegos e discurso satildeo portanto o mesmo

Mas isso soacute torna a questatildeo ainda mais difiacutecil Afinal o loacutegos como loacutegos apofacircntico natildeo

eacute o mostrar do ente em seu ser Como mostrar e dizer podem ser o mesmo

ldquoλόγος como discurso significa () algo assim como δηλοῦν tornar manifesto

aquilo de que lsquose discorrersquo no discurso Aristoacuteteles explicitou mais nitidamente

essa funccedilatildeo do discurso como αποφανέσται O λόγος faz ver algo (φαίνεισθαι) a

saber aquilo sobre o que se discorre e faz ver a quem discorre (voz media) e aos

que discorrem uns com os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p113)

Discurso eacute a mostraccedilatildeo (ἀπόφανσις) que torna-se clara (δηλοῦν) Lembremos que

a plurivocidade do ente na tradiccedilatildeo loacutegica estaacute assentada nas possibilidades semacircnticas

submetidas a um princiacutepio loacutegico fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado

ao princiacutepio de identidade Pensamos que o que Heidegger potildee em tela eacute que a

ldquoidentidaderdquo e a ldquonatildeo-contradiccedilatildeordquo natildeo satildeo princiacutepios loacutegicos mas o mostrar e o torna-

se claro dos fenocircmenos em seu ser na totalidade articulada Ou seja o sentido de ser dos

126

fenocircmenos o mostrar o existente como existente eacute o loacutegos que manifesta e diz a si

mesmo pois reporta-se a palavra legein tornar manifesto aquilo de que se fala num

discurso deixar que algo seja visto manifesto porque posicionado em relaccedilatildeo uns com

os outros Tentemos esboccedilar um exemplo mas natildeo esqueccedilamos a fragilidade das palavras

sedimentas e o obscurecimento que elas oferecem a problemaacutetica ontoloacutegica Quando no

nosso cotidiano uma mesa ldquode trabalhordquo sem os livros sem a cadeira sem as canetas e

sobretudo sem a intenccedilatildeo de ser usada para o trabalho natildeo possui qualquer sentido Ela

eacute apenas um pedaccedilo de madeira ou mesmo passa obtusa aos nossos olhos Do mesmo

modo os livros as canetas e a cadeira A articulaccedilatildeo preacutevia desses objetos ou em seu

sentido ontoloacutegico a articulaccedilatildeo desses fenocircmenos eacute o que faz com que cada um deles

possa ser visto como um ldquoistordquo Notemos como o exemplo nos reporta exatamente a noccedilatildeo

de Umwelt descrita por Heidegger O que o discurso indica eacute a articulaccedilatildeo preacutevia para

que as coisas apareccedilam como tais jaacute no mundo circundante Articulaccedilatildeo anterior a

qualquer interpretaccedilatildeo de um ldquoistordquo ou de algo como algo e consequentemente anterior

ao enunciado (Aussage) Assim o caraacuteter ontoloacutegico dessa articulaccedilatildeo sempre dada a

noacutes em um mundo jaacute descerrado em que pode-se travar atividades praacuteticas com os entes

e em uacuteltima instacircncia falar de ldquomesardquo ldquocadeirardquo ldquocanetardquo etc eacute dado pelo discurso (die

Rede) compreendido como sendo o significado fundamental de λόγος

Nesse sentido podemos ver tambeacutem o caraacuteter intencional do discurso Como

indicamos no capiacutetulo anterior loacutegos como loacutegos apofacircntico possui uma ligaccedilatildeo com os

entes na medida que diz o que de algum modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que ldquoalgo eacute xrdquo ou

que ldquoalgo natildeo eacute xrdquo eacute possiacutevel primariamente pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da

mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com No interior da estrutura do proacuteprio λόγος

ao mostrar que algo eacute diz tambeacutem como ele eacute ou como ele natildeo eacute

ldquoPara tanto tomar-se-aacute uma sentenccedila elementar como exemplo de realizaccedilatildeo do

discurso (λόγος) ldquoa caneta eacute azulrdquo Acabou-se de dizer que um dos elementos

constitutivos do falar (λέγειν) eacute o sobre-o-quecirc Este sobre-o-quecirc em direccedilatildeo ao

qual se realiza o movimento intencional de desvelamento se encontra

simplesmente dado como um todo discreto e a interpelaccedilatildeo discursiva destaca

dele certos elementos O que ocorre ao se proferir o enunciado do tipo ldquoa caneta

eacute azulrdquo eacute uma cisatildeo de um todo subsistente o discurso opera no uno indistinto a

fixaccedilatildeo de limite de certas determinaccedilotildees particulares de modo a destacar

componentes pertencentes a esse elemento temaacutetico da fala () Assim natildeo se

tem uma mostraccedilatildeo da totalidade do sobre-o-quecirc mas apenas de determinados

aspectos seus Juntamente com este movimento de distinccedilatildeo do discurso

denominado de cisatildeo (διαίρεσις) ocorre outro a siacutentese (σύνθεσις) Dissociando-

127

se do todo indistinto certos elementos a ele pertencentes estes natildeo satildeo

simplesmente colocados uns ao lado dos outros Ao fixar os limites das

determinaccedilotildees pertencentes ao uno discreto o discurso reuacutene os elementos que

foram por ele destacados posicionando-os uns com os outros Assim a

interpelaccedilatildeo discursiva que demarca um elemento temaacutetico como sendo caneta e

azul atribui a cor azul ao ente utilizaacutevel caneta sendo esses elementos

visualizados conjuntamente como um no enunciado ldquoa caneta eacute azulrdquo Atraveacutes da

siacutentese o que se dava como um todo indistinto eacute visualizado em sua unidade

destacada por determinados aspectos seus Com base nesses dois momentos a

siacutentese (σύνθεσις) e a cisatildeo (διαίρεσις) vecirc-se que o desencobrimento realizado

pelo discurso eacute uma articulaccedilatildeo delimitadora do quecirc para o qual ele se dirigerdquo

(SALGADO 2015 p145)

Contudo o discurso natildeo eacute apenas o ldquosobre-quecircrdquo a ele tambeacutem pertencem ldquoo dito

discursivamente como tal a comunicaccedilatildeo e o anuacutenciordquo (HEIDEGGER 2012 p459) Isto

porque ldquoo discurso eacute a articulaccedilatildeo significacional da entendibilidade [ou da compreensatildeo

(Verstehen)] do encontrar-se (befindlichen) no ser-no-mundordquo (HEIDEGGER 2012

p459) Ou seja natildeo eacute apenas aos entes e a um estado de coisas natildeo conforme ao ser-aiacute

que o discurso se reporta Mas a proacutepria abertura que possui sentido sendo o sentido

ldquoaquilo que a entendibilidade de algo se manteacutem Denominamos sentido o que eacute

articulaacutevel no abrir que entenderdquo (HEIDEGGER 2012 p429) O discurso como o

significado originaacuterio de loacutegos eacute o proacuteprio ser-no-mundo Pois na medida em que a

proacutepria abertura compreensiva se manteacutem por estar articulada pode sustentar em seu

acircmbito o que quer que seja entes sensaccedilotildees projetos etc E para fora dela bem natildeo haacute

nem mesmo fora Nesse sentido que ldquoa entendibilidade do encontrar-se do ser-no-mundo

exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER 2012 p455) e ldquoo todo-de-significaccedilatildeo da

entendibilidade acede agrave palavra Das significaccedilotildees nascem as palavras e natildeo satildeo as

palavras que entendidas como coisas se proveem de significaccedilotildeesrdquo (HEIDEGGER

2012 p455) A situaccedilatildeo insustentaacutevel de considerar as palavras como as portadoras

originaacuterias de significados pode ser exemplificada por um trecho da obra Cem anos de

solidatildeo de Gabriel Garciacutea Maacuterquez no momento em que Joseacute Arcadio Buendiacutea previu

que as inscriccedilotildees graacuteficas poderiam natildeo mais reportar agrave utilidade das coisas

ldquoFue Aureliano quien concibioacute la foacutermula que habiacutea de defenderlos durante varias

meses de las evasiones de la memoria La descubrioacute por casualidad Insomne

experto por haber sido uno de las primeros habiacutea aprendido a la perfeccioacuten el

arte de la plateriacutea Un diacutea estaba buscando el pequentildeo yunque que utilizaba para

laminar los metales y no recordoacute su nombre Su padre se lo dijo laquotasraquo Aureliano

128

escribioacute el nombre en un papel que pegoacute con goma en la base del yunquecito tas

Asiacute estuvo seguro de no olvidarlo en el futuro No se le ocurrioacute que fuera aquella

la primera manifestacioacuten del olvido porque el objeto teniacutea un nombre difiacutecil de

recordar Pero pocos diacuteas despueacutes descubrioacute que teniacutea dificultades para recordar

casi todas las cosas del laboratorio Entonces las marcoacute con el nombre respectivo

de modo que le bastaba con leer la inscripcioacuten para identificarlas Cuando su

padre le comunicoacute su alarma por haber olvidado hasta los hechos maacutes

impresionantes de su nintildeez Aureliano le explicoacute su meacutetodo y Joseacute Arcadio

Buendiacutea lo puso en praacutectica en toda la casa y maacutes tarde la impuso a todo el pueblo

Con un hisopo entintado marcoacute cada cosa con su nombre mesa silla reloj

puerta pared cama cacerola Fue al corral y marcoacute los animales y las plantas

vaca chivo puerca gallina yuca malanga guineo Paca a poca estudiando las

infinitas posibilidades del olvido se dio cuenta de que podiacutea llegar un diacutea en que

se reconocieran las cosas por sus inscripciones pero no se recordara su utilidad

Entonces fue maacutes expliacutecito El letrero que colgoacute en la cerviz de la vaca era una

muestra ejemplar de la forma en que los habitantes de Macondo estaban

dispuestas a luchar contra el olvido Eacutesta es la vaca hay que ordentildearla todas las

mantildeanas para que produzca leche y a la leche hay que herviriacutea para mezclarla

con el cafeacute y hacer cafeacute con lecherdquo (MAacuteRQUEZ 1999 p102)

A doenccedila da insocircnia em Macondo na obra de Maacuterquez e o esquecimento como

sua consequecircncia eacute ndash se nos permitem uma comparaccedilatildeo livre ndash como na cotidianidade

consideramos os entes disponiacuteveis e sempre presentes Partimos sempre desse

encobrimento oferecido pela liacutengua que a cada vez quer fixar os entes e assim as palavras

satildeo instrumentalizadas pois definem afinal nessa insocircnia o que cada coisa eacute O

esquecimento eacute portanto o desligamento da mostraccedilatildeo originaacuteria dos entes em seu ser

E em uacuteltima medida o esquecimento da verdade como desvelamento (Aleacutetheia) Dito de

outro modo aquilo que Heidegger jaacute havia indicado em 1923-1924 ldquoO que importa eacute

somente que essas coisas existem aiacute () Mas que falte um nome para essas coisas mostra

contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia84(HEIDEGGER

2006p31)

Mas o que consiste esse dizer falar do discurso Se ele eacute o fundamento ontoloacutegico

da linguagem certamente natildeo eacute o mesmo que profericcedilotildees verbais e nominais e sobretudo

natildeo diz respeito a natureza fiacutesica da produccedilatildeo e da percepccedilatildeo dos sons da fala humana

como compreende o estudo da foneacutetica Heidegger nos apresenta entatildeo como o dizer do

discurso pode ser visualizado de forma clara pelo ouvir

84 Cf Nota 45

129

ldquoA conexatildeo do discurso com o entender e com a entendibilidade se torna clara a

partir de uma possibilidade existenciaacuteria do discurso ele mesmo a saber a partir

do ouvir Natildeo eacute por acaso que ao natildeo ouvir lsquodireitorsquo dizemos natildeo lsquoter entendidorsquo

Para o discurso o ouvir eacute constitutivo E assim como a prolaccedilatildeo verbal se funda

no discurso a percepccedilatildeo acuacutestica tambeacutem se funda no ouvir () O Dasein ouve

porque entende Como entendedor ser-no-mundo com os outros ele eacute no seu

ouvir lsquoobedientersquo ao Dasein-com e a si mesmo e nessa audiecircncia obediente ele

se torna dependenterdquo (HEIDEGGER 2012 p461)

Essa dependecircncia diz respeito agrave articulaccedilatildeo jaacute aberta de um mundo descerrado O

discurso articula um mundo esse que sempre nos movimentamos e nos orientamos Sem

essa obediecircncia natildeo haveria qualquer possibilidade de accedilotildees e projetos do ser-aiacute E o

ouvir como possibilidade existenciaacuteria do discurso eacute a manifestaccedilatildeo de seu traccedilo

intencional que ilumina sua presenccedila na abertura de sentido Pois o ouvir eacute o fundamento

ontoloacutegico do escutar ldquofenomenicamente mais originaacuterio do que se determina lsquode

imediatorsquo em psicologia como ouvir ter sensaccedilotildees de sons e perceber ruiacutedosrdquo

(HEIDEGGER 2012 p461) De modo mais claro o fenocircmeno desde Husserl indica

aquilo que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute sempre uma doaccedilatildeo com

significado Assim a intencionalidade fenomenoloacutegica para Heidegger agora voltada ao

mundo e a facticidade como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em seu ser acontece

na e pela articulaccedilatildeo discursiva que ouve porque jaacute articulou a totalidade e por isso

entende tendo em vista que essa totalidade natildeo se apresenta como um todo indistinto Ou

seja o ser-aiacute em sua constituiccedilatildeo primaacuteria voltado agrave abertura compreensiva articulada

pelo discurso pode escutar a doaccedilatildeo fenomecircnica

ldquolsquoDe imediatorsquo nunca ouvimos barulhos e o conjunto de ruiacutedos mas o carro que

range a motocicleta O que se ouve eacute a coluna em marcha o vento norte o pica-

pau bicando o fogo crepitando Eacute preciso uma atitude muito artificial e

complicada para lsquoouviursquo um lsquobarulho purorsquo Que em primeiro lugar ouccedilamos

motocicletas e carros eacute a prova fenomecircnica de que o Dasein como ser-no-mundo

manteacutem-se cada vez junto ao utilizaacutevel do interior-do-mundo e de modo algum

imediatamente junto a lsquosensaccedilotildeesrsquo cuja concatenaccedilatildeo tivesse primeiramente de

ser formada para que se proporcionasse o trampolim a partir do qual o sujeito

saltaria para alcanccedilar finalmente um lsquomundorsquo O Dasein como essencialmente

entendedor eacute de pronto junto ao entendidordquo (HEIDEGGER 2012 p461)

A doaccedilatildeo fenomecircnica possibilitada pelo traccedilo intencional do discurso se estende

agrave escuta e ao calar de um outro ser-aiacute pois como ser-no-mundo que eacute sempre ser-com-

os-outros o Dasein jaacute estaacute ldquode antematildeo com o outro junto ao ente sobre o qual discorrerdquo

130

(HEIDEGGER 2012 p463) Por isso quando outra pessoa nos fala algo natildeo ouvimos

primeiramente os sons para depois agregaacute-los e formarmos palavras compreensiacuteveis Ou

ainda quando o outro silencia ainda expressa algo e tambeacutem pode lsquodar a entenderrsquo

ldquoOuvindo compreendemos o que o interlocutor diz E o dizer nos coloca de

imediato com o interlocutor junto ao ente a respeito do qual o discurso se

pronuncia O genuiacuteno silecircncio tambeacutem modo de ouvir e de dizer calando Essa

preeminecircncia do dizer se reflete nos componentes dos do discurso que se

estruturam a partir daquilo que acede agrave palavra do ente que ela torna manifesto

Dizer algo de certa maneira para algueacutem numa tonalidade ou disposiccedilatildeo de

acircnimo nisso consiste o fenocircmeno do discurso em sua completa estrutura

comunicativa-expressivardquo (NUNES 2012 p 170)

Poderiacuteamos dizer que a articulaccedilatildeo da compreensatildeo (Verstehen) pelo discurso

(Rede) na reuniatildeo dos elementos que foram por ele destacados posicionando-os

discursivamente opera como a harmonia de uma muacutesica que daacute aos fenocircmenos seu lugar

na melodia em funccedilatildeo do ritmo Sendo o ritmo o ldquomundordquo como abertura histoacuterica que

sustenta o sentido de ser de cada parte da melodia que continuaraacute agrave tona ou que teraacute

sentido

Portanto para o ser-aiacute estar lanccedilado em um mundo como projeto-jogado eacute estar

familiarizado atraveacutes da abertura que entende dispositivamente o horizonte de sentido E

esse horizonte eacute compartilhado por todos que convivem em um mesmo mundo faacutetico e eacute

neste sentido que a comunicaccedilatildeo o terceiro significado de enunciaccedilatildeo como vimos no

capiacutetulo anterior ldquoefetua lsquoa partilharsquo do co-encontrar-se e do entendimento do ser-comrdquo

(HEIDEGGER 2012 p457) O que eacute compartilhado natildeo eacute meramente um conteuacutedo

significativo de um lsquopacto-linguiacutesticorsquo assim como comunicar natildeo eacute trazer um desejo

uma expressatildeo uma afirmaccedilatildeo de lsquoforarsquo de um sujeito para o lsquointeriorrsquo de outro mas ldquosua

tendecircncia-de-ser consiste em pretender que o ouvinte participe do ser aberto por aquilo-

sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012 p 473) ou seja a partilha da

experiecircncia da abertura compreensiva jaacute articulada como horizonte de possibilidades que

vem agrave linguagem De outro modo

ldquoDado que o fundamento ontoloacutegico natildeo possui existecircncia agrave parte daquilo que

funda o discurso que eacute a condiccedilatildeo transcendental da linguagem relevando-se da

abertura do Dasein de seu ser-no-mundo tambeacutem eacute lsquolinguagem extensivarsquo (SZ

p61) Inversamente a linguagem como totalidade de palavras (Wortganzheit) de

uma liacutengua eacute o discurso pronunciado De onde se conclui que a primeira eacute a forma

131

estabilizada do segundo na perspectiva do ser-no-mundo da existecircncia cotidiana

que lhe impotildee a condiccedilatildeo de ente intramundano como utensiacutelio As palavras que

podem espedaccedilar-se e coisificar-se seriam o veiacuteculo dessa condiccedilatildeo instrumental

() E que eacute aceder agrave palavra senatildeo falar e que eacute falar senatildeo usar a linguagem

Satildeo pois equivalentes as duas afirmaccedilotildees de Heidegger- que ser no-mundo eacute

falante e que ele tem linguagem (Sprache)() Ambas concernem a um soacute

fenocircmeno captado no conceito aristoteacutelico de homem como ser capaz de falar ndash

zoacuteon loacutegon eacutechon- complemento agrave tese do zoacuteon politikoacuten (animal poliacutetico) - que

revela a interlocuccedilatildeo o lsquofalar uns com os outrosrsquo em que o cotidiano grego estava

politicamente enraizadordquo (NUNES 2012 p170)

Eacute um tanto embaraccediloso os caminhos conceituais que levam o discurso (die Rede)

agrave linguagem (die Sprache) e ainda como essa se apresenta sempre como falatoacuterio (das

Gerede) pela essecircncia mesma da comunicaccedilatildeo (Mitteilung) Pois a linguagem cotidiana

- o dizer uns com os outros em um mundo faacutetico - eacute um discurso que jaacute se expressou ou

seja o acontecimento da linguagem jaacute eacute articulado por um discurso preacutevio e o discurso

jaacute expresso eacute comunicaccedilatildeo Mesmo que a analiacutetica indique uma estratificaccedilatildeo e ainda a

fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da linguagem pelo discurso haacute um caraacuteter ciacuteclico

consequecircncia mesma do ciacuterculo hermenecircutico Se as palavras natildeo tecircm significados fixos

mas histoacutericos provenientes de uma abertura de sentido articulada que sustenta esses

significados Ainda assim os significados acumulam-se nas palavras e essas satildeo afinal a

maneira pela qual o mundo eacute dito nas relaccedilotildees interpessoais e nas relaccedilotildees das pessoas

com as coisas Desse modo se os significados acumulam-se nas palavras o discurso (die

Rede) sempre se manifesta na linguagem cotidiana E eacute na cotidianidade que a absorccedilatildeo

da linguagem eacute imediatamente tomada pela impessoalidade atraveacutes do uso instrumental

das palavras na tendecircncia de oferecer um mundo sempre estaacutevel Eacute essa uacuteltima descriccedilatildeo

que Heidegger chama de falatoacuterio (Gerede) Pois

ldquoO substantivo alematildeo Rede deriva-se diretamente do verbo reden que significa

falar O particiacutepio dos verbos em alematildeo eacute feito na maior parte das vezes por meio

da inserccedilatildeo da partiacutecula lsquogersquo() O que temos na cotidianidade mediana do ser-

aiacute eacute falatoacuterio natildeo porque podemos constatar empiricamente um esvaziamento da

linguagem impessoal e porque sempre eacute possiacutevel acompanhar a falta de

profundidade desses discursos Ao contraacuterio eacute falatoacuterio porque natildeo se realiza

senatildeo a partir de um ato jaacute concluiacutedordquo (CASANOVA 2006 p63)

Mas antes de passarmos agrave descriccedilatildeo do falatoacuterio eacute preciso indicar como esses

ldquoembaraccedilos conceituaisrdquo em torno do discurso indicam a ldquotransiccedilatildeo do pensamento

132

heideggeriano ndash em sua segunda fase nucleado em torno da linguagem- ldquo(NUNES 2012

p169) pois ldquoestampam-se na proacutepria equivocidade do termo designativo die Rede que

significa aleacutem de discurso conversaccedilatildeo e pronunciamentordquo (NUNES 2012 p169)

Essa equivocidade torna-se clara no fato que o discurso (die Rede) natildeo se funda em

qualquer ekstase determinada ou seja natildeo eacute possiacutevel encontrar na temporalidade do ser-

aiacute um momento constitutivo no qual ele emerge Dando assim em Ser e Tempo um

caraacuteter transcendental ao discurso

ldquoconotando o loacutegos grego retraduzido o discurso que nos daria a plena abertura

do Dasein em seu aiacute eacute incluindo portanto a disposiccedilatildeo de acircnimo eacute como modo

eminente de temporalizaccedilatildeo a que natildeo cabe o predomiacutenio de um ecircxtase

determinado o existentivo da linguagem o seu fundamento ontoloacutegicordquo

(NUNES 2012 p169)

Apresentamos no capiacutetulo anterior que no sect65 de Ser e Tempo o autor apresenta

o sentido ontoloacutegico da preocupaccedilatildeo (Sorge) na temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-

se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O

ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Futuro

(poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente (presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees

temporais como as que tomamos diariamente mas o caraacuteter essencial da

existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre adiantado (futuro) em

relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza as possibilidades na

facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva oferecida pela tradiccedilatildeo

histoacuterica ) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no presente esse

passado em seus comportamentos e projetos

No Quarto Capiacutetulo da Segunda Seccedilatildeo denominado Temporalidade e

cotidianidade Heidegger retoma a multiplicidade dos fenocircmenos da anaacutelise preparatoacuteria

da primeira seccedilatildeo para compreendecirc-los em sua unidade em funccedilatildeo da totalidade estrutural

fundante da Sorge E se a analiacutetica existenciaacuteria do ser-aiacute inicia sua investigaccedilatildeo a partir

da cotidianidade mediana tendo em vista que a impropriedade oferecida por suas

orientaccedilotildees eacute em suma a orientaccedilatildeo inicial do ser-aiacute para seus possiacuteveis modos de ser Eacute

necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos na cotidianidade a partir da

temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico

133

Nesse sentido no sect 68 item d de Ser e Tempo intitulado ldquoA temporalidade do

discursordquo Heidegger diz A plena abertura do aiacute constituiacuteda pelo entender o encontrar-

se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) recebe a articulaccedilatildeo pelo discurso

(Rede) Por isso o discurso natildeo se temporaliza primariamente numa ekstase determinada

(HEIDEGGER 2012 p949) e ainda o discurso eacute temporal em si mesmordquo

(HEIDEGGER2012 p949) Na continuidade do paraacutegrafo o autor prossegue dizendo

que natildeo obstante o discurso seja expresso na facticidade na linguagem e deste modo o

presente (Gegenwaumlrtige) desempenha uma funccedilatildeo constitutiva ainda assim

Mas porque o discurso cada vez discorre sobre o ente se bem que natildeo primaacuteria

e principalmente no sentido da enunciaccedilatildeo teoacuterica a anaacutelise da constituiccedilatildeo

temporal do discurso e a explicaccedilatildeo dos caracteres temporais das formaccedilotildees da

liacutengua soacute podem ser levados a cabo quando se tenha resolvido o problema da

conexatildeo de princiacutepio de ser e verdade a partir da problemaacutetica da

temporalidade Poder-se-ia delimitar entatildeo o sentido ontoloacutegico do lsquoeacutersquo que uma

superficial teoria da proposiccedilatildeo e do juiacutezo deformou em lsquocoacutepularsquo Soacute a partir da

temporalidade do discurso isto eacute a partir da temporalidade do Dasein em geral

pode-se elucidar a lsquoorigemrsquo e pode-se entender ontologicamente a possibilidade

de uma formaccedilatildeo-do-conceito (HEIDEGGER2012 p949 grifo nosso)

O problema reside no fato de que o Dasein em Ser e Tempo eacute apresentado como

o fundamento sem fundamento de outra forma a compreensatildeo enquanto acontecimento

de sentido primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode

custodiar o sentido de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento

Entatildeo na medida em que a temporalidade (Zeitlichkeit) eacute o sentido ontoloacutegico desse ente

privilegiado qualquer fenocircmeno exposto na analiacutetica preparatoacuteria precisaria encontrar

seu fundamento ontoloacutegico em alguma ekstase determinada futuro o ser-do-sido ou

presencizar Por exemplo o presente desempenha a funccedilatildeo constitutiva da linguagem

(Sprache) na medida em que o ser-aiacute lanccedilado em um mundo encontra-se em meio aos

entes e jaacute junto aos outros atualizando os significados sedimentados pela linguagem (pela

liacutengua) oferecidos no presente Isso poreacutem natildeo ocorre com o discurso (die Rede) que eacute

ldquotemporal em si mesmordquo Desse modo seu sentido ontoloacutegico ou aquilo que sustenta sua

origem compreendida como seu sentido de ser a partir do desvelamento natildeo eacute elucidado

em Ser e Tempo Pensamos que a partir dessa constataccedilatildeo pelo comprometimento

fenomenoloacutegico de Heidegger a estratificaccedilatildeo da linguagem presente em Ser e Tempo

natildeo pode mais manter-se apoacutes a viragem Pois o fenocircmeno da linguagem precisa ser

134

reconsiderado a partir de si mesmo para que seja possiacutevel encontrar seu fundamento

ontoloacutegico85

Esse breve momento da obra de 1927 acerca da temporalidade do discurso em

Ser e Tempo eacute de extrema importacircncia para pensarmos como o fenocircmeno da linguagem

possui jaacute um importante e amplo papel no interior do tratado Pois ele estaacute intimamente

ligado agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento (Aleacutetheia) revelando natildeo soacute um impasse

acerca da estratificaccedilatildeo da linguagem na obra bem como traz agrave tona que o encobrimento

como contraparte da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser ganha uma imagem peculiar

exatamente na manifestaccedilatildeo da linguagem E desse modo apesar da apresentaccedilatildeo do

discurso e de sua especificidade em Ser e Tempo encontramos apenas a descriccedilatildeo da

linguagem (Sprache) que chamamos de ldquonegativardquo como sedimentaccedilatildeo interpretativa

pelo falatoacuterio (Gerede) Eacute o que vamos expor a seguir

II- O Falatoacuterio (das Gerede)

Ainda no sect34 Heidegger alerta que a anaacutelise do discurso (Rede) perdeu de vista a

cotidianidade do ser-aiacute solo fenomecircnico que a analiacutetica se guia naquele momento Pois

as estruturas existenciaacuterias da abertura do ser-no-mundo entender (Verstehen) encontrar

(Befindlichkeit) discurso (Rede) e interpretar (Auslegen) na medida em que se manteacutem

pela abertura primaacuteria do ser-aiacute remetido ao mundo inicialmente no modo de ser de ldquoa-

genterdquo (das Man) devem ser compreendidas em seu modo especiacutefico na cotidianidade

mediana Como o ser-aiacute eacute de iniacutecio lanccedilado nas possibilidades faacuteticas de um mundo

sedimentado a anaacutelise propriamente fenomenoloacutegica deve se orientar pelos fenocircmenos

expressos nesse horizonte

ldquoDe imediato eacute preciso que fique visiacutevel a partir de alguns fenocircmenos

determinados a abertura de a-gente isto eacute pela elucidaccedilatildeo do modo-de-ser-

cotidiano de discurso visatildeo e interpretaccedilatildeo No relativo a esses fenocircmenos natildeo

eacute supeacuterfluo observar que a interpretaccedilatildeo tem um propoacutesito puramente ontoloacutegico

estando muito longe de uma criacutetica moralizante do Dasein cotidiano e estaacute muito

longe de qualquer aspiraccedilatildeo de lsquofilosofia da culturarsquordquo (HEIDEGGER 2012

p471)

85 Nesse sentido Cf LAFONT 1997 pp46-52

135

A anaacutelise do que Heidegger denomina ldquoA-genterdquo (das Man) eacute apresentada no

quarto capiacutetulo da primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo e tem em vista elucidar o ldquoser-no-mundo

como ser-comrdquo e ldquocomo ser-si-mesmordquo Essa descriccedilatildeo estaacute diretamente relacionada ao

conceito de queda ou decair (Verfallen) pois eacute esse solo imediato que o ser-aiacute se

movimenta e terceiriza seu ser agraves orientaccedilotildees cotidianas cada vez em fuga de seu ser-

proacuteprio mas condiccedilatildeo inexoraacutevel para que possa conquistaacute-lo E ainda como expresso

no trecho acima esses conceitos nada tem a ver com uma criacutetica moral como que uma

criacutetica agrave sociedade de massa A anaacutelise eacute uma elucidaccedilatildeo fenomenoloacutegica e por isso

ontoloacutegica O que estaacute em jogo nessa descriccedilatildeo eacute o acesso aos fenocircmenos como eles se

mostram para entatildeo chegar ao fundamento ontoloacutegico que sustenta seu sentido de ser

Desse modo a facticidade ou o mundo cotidiano eacute o maneira pela qual os fenocircmenos e

as possibilidades do ser-aiacute vecircm ao encontro O que anaacutelise sobre ldquoA-genterdquo (das Man)

realizada no sect25 ao sect27 potildee em tela eacute 1) o esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein 2) o

Dasein-com dos outros e o cotidiano ser-com 3) o cotidiano ser-si-mesmo e a-gente

Se no sect9 Heidegger expotildee o sentido formal do ser-aiacute como esse ente que a cada

vez noacutes mesmos somos e ainda como a essecircncia desse ente reside em sua existecircncia o

esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein deve agora voltar-se ao campo situacional histoacuterico

que extraiu esse conceito

ldquoNo presente contexto de uma analiacutetica existenciaacuteria do Dasein factual surge a

pergunta sobre se o referido modo de o eu se dar abre o Dasein em sua

cotidianidade supondo-se que em geral o abra () Pode-se sempre muito bem

dizer sobre esse ente em termos onticamente justificaacuteveis que lsquoeursquo o sou

Contudo a analiacutetica ontoloacutegica ao empregar essas proposiccedilotildees deve fazecirc-lo com

reservas de princiacutepio O lsquoeursquo somente deve ser entendido no sentido de um como

indicador formal e indiferente de algo que em sua concreta conexatildeo-de-ser

fenomecircnica talvez se desvende como o lsquoopostorsquo do que parecia lsquoNatildeo eursquo de

modo algum significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo [privado de

lsquoegoidadersquo] mas significa um determinado modo-de-ser do lsquoeursquo ele mesmo por

exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p337)

A interpretaccedilatildeo moderna da essecircncia do ser humano baseada na egoidade em um

ldquoeurdquo que se reconhece como tal e em uacuteltima medida fundamenta toda e qualquer

descriccedilatildeo dos entes obscurece o solo em que esse conceito aparece Referir-se ao ldquoeurdquo eacute

possiacutevel no trato diaacuterio e comum da existecircncia cotidiana (onticamente) na medida em que

136

o ldquoaiacuterdquo existe cooriginariamente Natildeo haacute sujeito sem mundo por esse motivo a

ldquolsquosubstacircnciarsquo do homem natildeo eacute o espiacuterito como a siacutentese de alma e corpo mas a

existecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p341) E desse modo se a existecircncia acontece em um

mundo ela natildeo se reconhece primariamente para depois reconhecer ldquomundordquo e os

ldquooutrosrdquo mas existindo o ser humano eacute as possibilidades disponiacuteveis em seu ldquoaiacuterdquo

compartilhando com os outros pois ldquonatildeo haacute afinal de pronto um eu isolado que se decirc sem

os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p337)

A abertura primaacuteria de sentido ou a abertura compreensiva-interpretativa sempre

disposta do ser-aiacute o remete ao mundo junto aos entes e aos outros que partilham a mesma

abertura compreensiva-interpretativa e assim noacutes temos mundo De outro modo

ningueacutem tem lsquoseu mundorsquo particular emergente da consciecircncia que se auto reconhece a

partir da qual lsquoenxergarsquo o mundo puacuteblico Tudo que algueacutem possa vir a pensar sentir

compor dizer etc eacute primariamente aquilo que o mundo puacuteblico compartilhado sustenta

como algo que tem sentido Natildeo sou porque penso antes penso porque sou Quando

tentamos pensar em qualquer significado que natildeo seja sustentado pelo sentido do mundo

puacuteblico natildeo encontramos o que possa ser dito ou pensado

Mas o que o autor quer dizer quando indica que o ldquonatildeo eursquo de modo algum

significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo mas significa um determinado modo-de-

ser do lsquoeursquo ele mesmo por exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012

p337) Imersos nas ocupaccedilotildees diaacuterias empreendidas com os outros o ser-aiacute ldquocomo

cotidiano ser-um-com-o-outro estaacute na sujeiccedilatildeo aos outros Ele natildeo eacute si-mesmo os outros

lhe retiram o ser () Nisso os outros natildeo satildeo determinadosrdquo (HEIDEGGER 2012

p363) Na liacutengua portuguesa essa indeterminaccedilatildeo eacute ilustrada pela partiacutecula ldquoserdquo como

iacutendice de indeterminaccedilatildeo do sujeito Por exemplo Necessita-se de empregados Nesse

lugar se eacute tratado muito bem etc O ldquosujeitordquo o ldquoeurdquo do ser-aiacute na cotidianidade natildeo eacute seu

ser-proacuteprio mas a perda de si pois compreende seu ser inicialmente pela imposiccedilatildeo

impessoal indeterminada de suas possibilidades e as realiza sob o domiacutenio dessa

orientaccedilatildeo estuda-se casa-se tem-se filhos etc Nas palavras do autor

ldquoO Dasein cotidiano tira a interpretaccedilatildeo preacute-ontoloacutegica de seu ser do imediato

modo-de-ser de a-gente A interpretaccedilatildeo ontoloacutegica segue de imediato essa

tendecircncia interpretativa e entende o Dasein a partir do mundo e o encontra como

ente do-interior-do-mundo E natildeo somente isso mas a ontologia lsquoimediatarsquo do

137

Dasein faz que se lhe decirc a partir do lsquomundorsquo o sentido de ser em relaccedilatildeo ao qual

esses entes lsquosujeitosrsquo satildeo entendidos Mas porque nessa absorccedilatildeo no mundo

passa-se por cima do fenocircmeno do mundo ele mesmo em seu lugar se introduz o

subsistente do-interior-do-mundo as coisas O ser do ente que eacute -lsquoaiacutersquo-com eacute

concebido como subsistecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p 373)

Como vimos esse modo de ser do ser-aiacute eacute consequecircncia do fato de natildeo termos

qualquer natureza Natildeo haacute como se retirar dessa condiccedilatildeo ontoloacutegica mesmo que

onticamente somos impelidos a cada vez determinarmos nosso ser de alguma forma

indicando noacutes mesmos e os outros como meros subsistentes por exemplo em expressotildees

como ldquoEu sou professorardquo ldquoEle eacute pairdquo ldquoNoacutes somos brasileirosrdquo etc E por isso ldquoo ser-

si-mesmo proacuteprio natildeo repousa sobre um estado-de-exceccedilatildeo de um sujeito desprendido de

a-gente mas eacute uma modificaccedilatildeo existencial de a-gente como um existenciaacuterio essencialrdquo

(HEIDEGGER 2012 p373) ou seja ser-si-mesmo-proacuteprio natildeo eacute se retirar dessa

indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica mas ter transparecircncia dessa condiccedilatildeo irremediaacutevel

A partir dessa explicaccedilatildeo retomemos a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein a partir do

sentido formal da preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-

em (-o-mundo) como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo

(HEIDEGGER 2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser

(existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que

foi lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio

aos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda) O que sustenta o

sentido de ser desse ente eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) pois a temporalidade descobre-

se como o sentido da preocupaccedilatildeo (Sorge) proacutepria ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-

se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute

possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Contudo a preocupaccedilatildeo

proacutepria natildeo eacute a noacutes de pronto transparente e natildeo eacute o modo que inicialmente e na maioria

das vezes estamos e nos orientamos no mundo Ser-no-mundo eacute a abertura compreensiva

disposta jaacute em meio ao mundo articulado e sedimentado portanto eacute constituiacuteda pelo

entender o encontrar-se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) (Cf

HEIDEGGER 2012 p949) Eacute necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos

nessa abertura primaacuteria ao mundo a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal

compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico O autor entatildeo nos apresenta que ldquoo

138

entender funda-se no futuro (adiantar-se ou aguardar) O encontrar-se temporaliza-se

primariamente no ser-do-sido (repeticcedilatildeo ou esquecimento) O decair tem raiz temporal

primariamente no presente (presencizar ou instante)rdquo (HEIDEGGER 2012 p951)

Aguardar (Gewaumlrtigen) esquecimento (Vergessenheit) e instante (Augenblck) satildeo

os modos impessoais de realizaccedilatildeo do ser do ser-aiacute na cotidianidade a partir de seu sentido

ontoloacutegico (Sorge) fundado na temporalidade (Zeitlichkeit) O futuro aparece como

espera na cotidianidade na medida em que estaacute submerso na familiaridade de um mundo

descerrado em que o ser-aiacute pode ocupar-se com os entes e travar relaccedilotildees com os outros

na normalidade da vida cotidiana Na familiaridade o ser-aiacute sabe o que esperar O passado

ou o ser-do-sido nada tem a ver com ldquofalta de lembranccedilardquo mas refere-se a imersatildeo na

dejecccedilatildeo ou no modo de ser-jogado do ser-aiacute Nesse sentido o ser-aiacute sempre ocupado abre-

se ao mundo mas fecha-se ao seu ser-proacuteprio esquecendo de si e de sua indeterminaccedilatildeo

em funccedilatildeo do que jaacute estaacute a cada de vez posto como possiacutevel no mundo O decair no modo

proacuteprio refere-se ao presente ou presencizar ou seja a transparecircncia ao ser-aiacute de sua

condiccedilatildeo de jogado em um presente aberto que a vida e a compreensatildeo de ser decorrem

Na cotidianidade poreacutem o decair como instante refere-se a incessante fala apariccedilatildeo e

apropriaccedilatildeo (natildeo como de si mesmo como ser-proacuteprio mas das possibilidades disponiacuteveis

publicamente) das coisas e de um estado de coisas Incessante porque atualiza as

possibilidades postas descerradas e sedimentadas no mundo movimentando a existecircncia

pela retroalimentaccedilatildeo daquilo que jaacute foi e eacute a cada vez compreendido sem pocircr em questatildeo

afinal aquilo que se compreende e o ente que pode compreender ou seja ente que noacutes

somos

Na anaacutelise preparatoacuteria ou na primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo o decair foi descrito

na ldquointerpretaccedilatildeo do falatoacuterio da curiosidade e da ambiguidaderdquo (HEIDDEGGER 2012

p941) Desse modo esclarecido como a queda ou o decair funda-se na temporalidade do

ser-aiacute portanto esclarecido seu fundamento ontoloacutegico a partir do ente que abre a

compreensatildeo de ser Podemos a partir de agora entender o fenocircmeno da linguagem na

cotidianidade do ser-aiacute e em seu modo de ser improacuteprio De outro modo compreender o

falatoacuterio como queda

A anaacutelise do falatoacuterio (das Gerede) eacute realizada no sect35 precedida exatamente pela

exposiccedilatildeo do discurso como fundamento ontoloacutegico da linguagem Essa linha de

139

apresentaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria antes revela que tambeacutem o fenocircmeno da linguagem parte

de seu encobrimento E revela que seu fundamento eacute a cada vez obliterado no uso comum

das liacutenguas e das palavras no cotidiano poreacutem

ldquoA expressatildeo lsquofalatoacuteriorsquo natildeo deve ser aqui empregada numa acepccedilatildeo pejorativa

Ela significa terminologicamente um fenocircmeno positivo que constitui o modo-

de-ser do entender e interpretar do Dasein cotidiano No mais das vezes o

discurso se expressa e jaacute se expressou em palavras O discurso eacute linguagemrdquo

(HEIDEGGER 2012 p471)

A anaacutelise da cotidianidade eacute um caraacuteter fenomecircnico positivo para a analiacutetica

existenciaacuteria pois eacute a partir dele a partir de um modo de ser improacuteprio que o ser-aiacute eacute

lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria das vezes Natildeo eacute apenas

lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade mas seu modo de ser

ontologicamente irremediaacutevel Nesse sentido apresentar a linguagem como manifestaccedilatildeo

uacuteltima da abertura histoacuterica remetida ao mundo que jaacute compreendeu jaacute articulou e jaacute

interpretou eacute apresentar um caminho agrave pergunta Como a linguagem que eacute essencialmente

generalizante pode afinal ser histoacuterica Questatildeo jaacute exposta nos primeiros escritos de

Heidegger que acaba por expor a origem dessa problemaacutetica em Ser e Tempo como por

exemplo essa passagem do texto de 1919

ldquoA objeccedilatildeo mais elementar mas carregada de suficiente perigosidade tinha a ver

com a linguagem Toda descriccedilatildeo eacute um lsquoconceber-em-palavrasrsquo - a lsquoexpressatildeo

verbalrsquo eacute generalizante Essa objeccedilatildeo eacute baseada na crenccedila de que toda linguagem

eacute jaacute em si mesma objetiva isto eacute viver em um significado implica eo ipso uma

concepccedilatildeo teoacuterica do que se entende que a realizaccedilatildeo do significado natildeo eacute mais

do que a exibiccedilatildeo do objeto () A universalidade do significado das palavras

assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia vividardquo86

(HEIDEGGER (GA5657) 2005 pp134-142)

Esse eacute tambeacutem o risco do uso das palavras e da linguagem na cotidianidade ou

do falatoacuterio A manifestaccedilatildeo da linguagem na expressatildeo eacute comunicaccedilatildeo e o enunciado

86 ldquoLa objecioacuten maacutes elemental pero cargada de suficiente peligrosidad teniacutea que ver con el lenguaje Toda

descripcioacuten es un laquoconcebir-en-palabrasraquo -la laquoexpresioacuten verbalraquo es generalizante Esta objecioacuten descansa

en la creencia de que todo lenguaje es ya en siacute mismo objetivante es decir que vivir en un significado

implica eo ipso una concepcioacuten teoreacutetica de lo que es significado que la plenificacioacuten del significado es

sin maacutes soacutelo una exhibicioacuten del objeto() La universalidad del significado de las palabras sentildeala

primariamente algo originario el caraacutecter mundano de la vivencia vivida rdquo Opcit pp134-142

140

como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se pode partilhar com outrem lsquover juntorsquo o mostrado no

modo do determinar Nesse sentido ldquoo discurso (Rede) que-se-expressa eacute comunicaccedilatildeordquo

(HEIDEGGER 2012 p473) E os conceitos-preacutevios oferecidos na comunicaccedilatildeo acabam

por determinar objetivamente as coisas e o estado de coisas ldquosem que tenham perto de si

tangiacutevel e visiacutevel o ente mostrado e determinadordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Dessa

forma ldquoo acircmbito dessa visatildeo compartilhada amplia-se Mas ao mesmo tempo na

repeticcedilatildeo o mostrado pode precisamente vir a se encobrir de novo () O ouvir-dizer eacute

tambeacutem um ser-no-mundo e ser em relaccedilatildeo ao que eacute ouvidordquo (HEIDEGGER 2012

p439)

A essecircncia do falatoacuterio eacute esse ouvir-dizer comunicado que pode ser repetido E

conforme a compreensatildeo mediana orienta-se pela expressatildeo da linguagem expressa ldquoo

discurso comunicado pode ser entendido amplamente sem que o ouvinte tenha de se pocircr

originariamente entendedor daquilo sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012

p473) A relaccedilatildeo com a linguagem torna-se nesse sentido meramente instrumental Um

exemplo paradigmaacutetico eacute a linguagem jornaliacutestica pois em seu traccedilo essencialmente

comunicativo e divulgador pode a cada vez informar sobre as coisas e um estado de

coisas sem que o leitor ou o ouvinte tenha de fato clareza acerca da compreensatildeo de tais

coisas mas pode repetir o que leu e o que ouviu com os outros e ser entendido A ldquofalta

de clarezardquo nesse exemplo natildeo diz respeito a algo como falta de ldquoacesso agraves fontesrdquo mas

deve ser compreendido em seu caraacuteter ontoloacutegico ou seja o que estaacute em jogo eacute o fato

que a linguagem repetida natildeo coloca em questatildeo seu proacuteprio fundamento A relaccedilatildeo entre

a cotidianidade impessoal e o uso da linguagem eacute algo tatildeo intriacutenseco que Heidegger em

1946 no texto Carta sobre o Humanismo diz

ldquoO que foi dito sobre o lsquoimpessoalrsquo em Ser e Tempo (1927) nos paraacutegrafos 27 e

35 de modo algum deve ser reduzido a um contributo secundaacuterio agrave sociologia

Mas o lsquoimpessoalrsquo tampouco se refere apenas agrave imagem oposto compreendida

de maneira eacutetico-existenciaacuteria do ser proacuteprio da pessoa Ao contraacuterio o que disse

ali conteacutem a indicaccedilatildeo agrave pertinecircncia inicial da palavra com o ser e essa

indicaccedilatildeo eacute pensada segundo a verdade do ser Essa relaccedilatildeo permanece oculta

sob o predomiacutenio da subjetividade que se apresenta como opiniatildeo puacuteblicardquo

(HEIDEGGER 2008 p330 grifo nosso)

141

A linguagem eacute portanto submetida ao que eacute compreensiacutevel na opiniatildeo puacuteblica e

aquilo que a cotidianidade mediana natildeo compreende eacute simplesmente descartado como

incompreensiacutevel Ou seja a proacutepria compreensatildeo (Verstehen) estaacute irremediavelmente

orientada agrave queda e essa mantecircm-se como tal no falatoacuterio Na tentativa de objetivar o

que as coisas satildeo e como elas satildeo tudo que eacute compreendido obscurece seu ldquocomordquo ou

seu mostrar que vem ao encontro no mundo histoacuterico pois ldquosoacute se procura ouvir o

discorrido como talrdquo (HEIDEGGER p473)

ldquoEm meio a essa dinacircmica retoma-se incessantemente uma atitude ontoloacutegica em

relaccedilatildeo aos entes intramundanos em geral e ao ser-aiacute em especiacutefico uma atitude

marcada fundamentalmente por uma opacidade primordial Todos satildeo a

princiacutepio homogeneizados a partir da noccedilatildeo de uma subsistecircncia por si todos

passam a ser desde o princiacutepio considerados como entes simplesmente dados e

detentores ao mesmo tempo de propriedades igualmente dadas() O falatoacuterio

tende entatildeo a coibir o aparecimento de uma outra forma discursiva que se

perfaccedila por meio de um real questionamento do ser do ente e de uma apropriaccedilatildeo

originaacuteria do ente consideradordquo (CASANOVA2006 p70)

O falatoacuterio como linguagem sedimentada e repetida eacute o que inicialmente orienta

o ser-aiacute em seu ldquoairdquo A cotidianidade mediana na qual estamos sempre imersos abre

inicialmente a compreensatildeo do mundo ao ser-aiacute mas ao abri-la acaba por fechaacute-la pois

desenraiza o ser-aiacute do solo originaacuterio dessa compreensatildeo de ser dos entes De outro modo

o loacutegos como discurso articula mundo e o abre agrave compreensatildeo o falatoacuterio como

linguagem sedimentada encobre esse mostrar originaacuterio O falatoacuterio diz e indica as coisas

e o estado de coisas mas natildeo os coloca em sua mostraccedilatildeo a partir de seu ser ou como

nos diz Carlos Drummond ldquoO sol consola os doentes e natildeo os renovardquo Nesse sentido

que a repeticcedilatildeo e a difusatildeo satildeo traccedilos essenciais do falatoacuterio pois movimentam a

existecircncia baseada na estabilidade do compreendido previamente articulado e

compartilhado na vida comum manifesto em uacuteltima medida pela linguagem e pelos

conceitos herdados

ldquoA falta-de-solo natildeo o impede de ingressar no que eacute puacuteblico mas favorece seu

ingresso O falatoacuterio eacute a possibilidade de tudo entender sem uma preacutevia

apropriaccedilatildeo da coisa O falatoacuterio jaacute protege por antecipaccedilatildeo contra o perigo de

malograr em tal apropriaccedilatildeo O falatoacuterio que qualquer um pode obter natildeo soacute

dispensa da tarefa de um entendimento autecircntico mas desenvolve uma

entendibilidade indiferente para a qual nada estaacute fechadordquo (HEDEGGER 2012

p475)

142

A objetividade promovida pelo falatoacuterio ou esse jaacute ser-interpretado natildeo eacute algo

que podemos negar e suspender A queda ou decair (Verfallen) constitui ldquoa plena abertura

do aiacuterdquo e o ldquoDasein nunca eacute capaz de rejeitar esse cotidiano ser-do-interpretado no qual

de imediato cresceurdquo (HEIDEGGER 2012 p477) Ele nos constitui porque eacute

inicialmente nosso ldquoaiacuterdquo e ldquotodo entendimento interpretaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo genuiacutenos

toda redescoberta se efetuam nele a partir dele e contrariamente a elerdquo (HEIDEGGER

2012 p477) ldquoTer mundordquo (abertura compreensiva) para o ser-aiacute que o constitui como

ente privilegiado eacute tambeacutem ser absorvido pelo mundo (queda) A verdade (Aleacutetheia)

como desvelamento eacute tambeacutem encobrimento Ser na verdade eacute tambeacutem estaacute na natildeo-

verdade Ouvir o loacutegos eacute tambeacutem se perder na linguagem

ldquoEacute soacute por isso que (sect34) Ser e Tempo conteacutem uma indicaccedilatildeo essencial da

linguagem tocando na questatildeo simples que pergunta em que modo do ser a

linguagem eacute sempre linguagem como tal O esvaziamento da linguagem que

avanccedila violentamente e se estende com rapidez por toda parte natildeo corroacutei apenas

a responsabilidade esteacutetica e moral em todos os usos da linguagem Proveacutem de

uma ameaccedila da essecircncia do ser humanordquo (HEIDEGGER 2008 p331)

Mas entatildeo qual o caminho Como ir agrave linguagem como tal Heidegger nos

adverte ldquoUm mero uso cuidado da linguagem ainda natildeo demonstra que escapamos desse

perigo essencialrdquo (HEIDEGGER 2008 p331) Na realidade reduzir o problema agrave essa

soluccedilatildeo poderia indicar que nem sequer vemos o perigo pois o esconderia sob agraves vestes

de usos como lsquosabedoriarsquo lsquoculturarsquo lsquoconhecimentorsquo etc ou seja a ldquosoluccedilatildeordquo ainda

estaria submetida ao domiacutenio puacuteblico do que eacute compreensiacutevel

Portanto se ldquoa linguagem ainda nos nega sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2008

p331) entatildeo ainda eacute necessaacuterio seguir a orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica

Diante da pergunta de Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na

cidade Soacutecrates responde ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso

irrdquo87 Para que afinal busquemos a relaccedilatildeo entre loacutegos e ser

87 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9

143

Conclusatildeo

O que vem agrave palavra Essa foi a questatildeo que nos guiou nesse trabalho Ela

atravessa outras perguntas por que falamos de uma determinada forma por exemplo

com sujeito e predicado Como eacute possiacutevel nossa comunicaccedilatildeo Como eacute possiacutevel falar que

algo eacute de tal e qual maneira

Fomos ao livro Ser e Tempo natildeo para dizer sobre o que um autor pensou fomos

ao Ser e Tempo para encontrar elementos que poderiam nos guiar nessas questotildees Entatildeo

a tarefa desse tratado revelou-se tambeacutem como um problema de linguagem Pois eacute a

tentativa de reformulaccedilatildeo da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido

depende justamente daquela reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido do

ser Vimos aiacute uma imbricada problemaacutetica a pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo (Sinn von

Sein) eacute tambeacutem a pergunta sobre o que pode sustentar sentido e significados e por isso

o que pode sustentar a linguagem Se natildeo nos incomodasse a tautologia poderiacuteamos

perguntar qual o sentido do sentido

A necessidade de recolocaccedilatildeo da pergunta estaacute diretamente relacionada agrave criacutetica

imanente de Heidegger agrave fenomenologia de Husserl Abordado sempre e a cada vez como

um ente o ser natildeo eacute no entanto um predicado real Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar

o ser como um ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel

e atributivo Ser natildeo eacute um ente o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo

com vistas agrave forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera

para ldquoQual o sentido de serrdquo Atraveacutes da apropriaccedilatildeo da hermenecircutica Heidegger potildee

em tela o caraacuteter histoacuterico do sentido de ser dos entes E dessa maneira indica como as

palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da

experiecircncia hermenecircutica Contudo diferentemente de como a concebeu Dilthey a

experiecircncia revelou-se natildeo como um meacutetodo de acesso ao caraacuteter histoacuterico do sentido e

144

dos significados mas compreensatildeo fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo circunspecta de

nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser

Poreacutem um problema central deveria ser abordado ldquocomo eacute possiacutevel a forma

loacutegicardquo ou ldquoPor que seguimos a foacutermula lsquosujeito e predicadorsquordquo Essa questatildeo nos levou

ateacute a maneira pela qual essa problemaacutetica foi abordada pelos neokantianos mais

especificamente agravequeles representantes da escola de Baden Esses reduziam a

possibilidade de verdade agrave forma do juiacutezo agrave identificaccedilatildeo entre ldquoWahrheit = wahrer Satz

= Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade) A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo

de verdade da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca

que era a dos neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa

concepccedilatildeo tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da

verdade em direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave

proposiccedilatildeo Com isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa

medida condicionando a ontologia agrave loacutegica

Foi esse mapa complexo dos problemas que foi desenhado nos dois primeiros

capiacutetulos os quais consideramos imprescindiacuteveis para uma exposiccedilatildeo completa da

estrutura ontoloacutegica da linguagem em Ser e Tempo Expondo o contexto das filosofias de

Dilthey Husserl e dos neokantianos de Baden bem como o posicionamento de Heidegger

frente a essas teorias a abordagem fenomenoloacutegico-hermenecircutica revelou-se como o

meacutetodo de acesso ao sentido de ser de todo ente Esse meacutetodo acaba ainda por demonstrar

que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um

campo de signos referenciais fechados que doam significado agraves coisas mas uma

manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez se faz presente na facticidade da

existecircncia concreta Last but not least revelou-se a diferenccedila entre uma concepccedilatildeo de

loacutegos proveniente da loacutegica e outra advinda do conceito de aleacutetheia

Foi a partir daiacute que ficaram claros os contornos dos dois uacuteltimos capiacutetulos desta

Dissertaccedilatildeo Tentamos mostrar como em Ser e Tempo a linguagem estaacute assentada em

duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado revelando a diferenccedila

entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm articulados pela imbricaccedilatildeo

radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno Poreacutem natildeo poderiacuteamos nos sentir satisfeitos

nessa descriccedilatildeo Heidegger nos adverte que estamos em fuga do solo em que o loacutegos se

145

mostra Pois o desvelamento enquanto Aleacutetheia eacute tambeacutem encobrimento por isso o

fenocircmeno sempre se nos mostra de maneira dissimulada Tambeacutem a partir de Ser e Tempo

tentamos evidenciar como a linguagem depende da constituiccedilatildeo proacutepria da verdade Ou

seja como o discurso (Rede) eacute apresentado como fundamento ontoloacutegico da linguagem

mas como o fenocircmeno mesmo da linguagem jaacute sempre se apresenta como falatoacuterio

(Gerede) O fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana enquanto comunicaccedilatildeo

ou seja discurso (die Rede) que jaacute se expressou e a cada vez se expressa eacute repetido e

difundido no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada

pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte

compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente Mas

como entes sem qualquer essecircncia preacutevia sem qualquer natureza definida somos a

proacutepria compreensatildeo (Verstehen) irremediavelmente orientada agrave queda sendo o falatoacuterio

a manifestaccedilatildeo uacuteltima dessa condiccedilatildeo

Esse foi o caminho do nosso trabalho que eacute apenas um iniacutecio Ele natildeo pretende

encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender o papel

da poesia na obra de Heidegger apoacutes os anos 1930 como uma tentativa de desvencilhar-

se do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Ou ainda se a estratificaccedilatildeo

da linguagem segundo a formulaccedilatildeo de Ser e Tempo precisou ser revista apoacutes a viragem

tendo em vista que em 1927 natildeo foi possiacutevel encontrar seu fundamento ontoloacutegico a partir

do Dasein

Por enquanto preferimos a tensatildeo e a suspensatildeo do estado de pergunta Preferimos

o pensar como caminho agraves respostas como soluccedilotildees afinal

ldquoCom seu dizer o pensar abre sulcos imperceptiacuteveis na linguagem Esses satildeo

ainda mais imperceptiacuteveis que os sulcos que a passos lentos o camponecircs abre pelo

campo aforardquo (HEIDEGGER 2008 p376)

146

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COURTINE JF As investigaccedilotildees loacutegicas de Martin Heidegger da Teoria do Juiacutezo agrave

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CROWELL GS Husserl Heidegger and the Space of Meaning Paths Toward

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DASTUR F Heidegger la question du logos Paris Librairie Philosophique J Vrin

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Casanova Satildeo PauloEdUNESP2010

148

___________ Ideias sobre uma psicologia descritiva e analiacuteticaTradMarco Casanova

Rio de Janeiro Ed Via Verita2011

FIGAL G Martin Heidegger fenomenologia da liberdade Trad Marco Antocircnio

Casanova1 ed Rio de Janeiro Forense 2005

GADAMERHG Hegel Husserl HeideggerTrad Marco Casanova PetropolisRJ

Vozes2012

______________ Fenomenologia Metafiacutesica e Hermenecircutica Trad Rui Alexandre

Graacutecio Covilhatilde Luso Sofia 2010

GADAMER H-G Kant und die philosophische Hermeneutik in Kant-Studien 66 (1975)

pp 395-403 Traduccioacuten de Angela Ackermann Pilaacuteri in Los caminos de Heidegger

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GONCcedilALVES M Filosofia da Natureza Rio de Janeiro Jorge Zahar ed 2006

HUSSERL E Investigaccedilotildees Loacutegicas - Vol 2 Parte 1 Trad Pedro Alves e Carlos

Morujatildeo Adap para a liacutengua portuguesa falada no Brasil por Marco Antocircnio Casanova

Rio de JaneiroForense Universitaacuteria 2012

_________________Investigaccedilotildees loacutegicas - sexta investigaccedilatildeo Traduccedilatildeo de Zeljko

Loparic e Andreacutea Loparic Satildeo Paulo Ed Nova Cultural 2000 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

_______ _________Ideacuteias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia

fenomenoloacutegica Introduccedilatildeo geral agrave fenomenologia pura Traduccedilatildeo de Marcio Suzuki

Satildeo Paulo Ed Ideacuteias e Letras 2006

LAFONT C Lenguaje y apertura del mundo El giro linguumliacutestico de la hermeneacuteutica de

Heidegger Trad Pere Fabra i Abat Madri Alianza Editorial 1997

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MAacuteRQUEZ GG Cien anotildes de soledad Coleccioacuten Austral Madrid EdEspada 1999

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NUNES B Passagem para o poeacutetico Filosofia e poesia em Heidegger Satildeo Paulo

Loyola2012

PESSOA F O eu profundo e os outros eus Seleccedilatildeo Afracircnio Coutinho 1ordf Ediccedilatildeo Rio de

Janeiro Nova Fronteira 2006

PONTY M Ciecircncia do Homem e Fenomenologia Satildeo Paulo Saraiva 1973

PUENTE FR Os Sentidos do Tempo em Aristoacuteteles Satildeo Paulo LoyolaFapesp 2001

RABELO KB Indicaccedilatildeo Formal Dos conceitos na ciecircncia originaacuteria do jovem

Heidegger Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) Universidade de Brasiacutelia Brasiacutelia 2013

Disponiacutevel em httprepositoriounbbrhandle1048214800

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heideggeriana In Ekstasis revista de hermenecircutica e fenomenologia V4 | N1 2015 pp

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Heideggeriana Ijuiacute UNIJU2001

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Cidades Satildeo Paulo- SP1971

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pp 174 ndash 186

ZAHAVI D A fenomenologia de Husserl Trad Marco Casanova Rio de Janeiro RJ

ViaVerita 2015

  • INTRODUCcedilAtildeO
  • Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na filosofia
  • Introduccedilatildeo
  • I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico
  • II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias
  • II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica
  • III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos
  • Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica
  • Introduccedilatildeo
  • I - Os limites da filosofia dos valores
  • II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio
  • II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger
  • III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
  • III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger
  • Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e Tempo
  • Introduccedilatildeo
  • I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico
  • II A dupla abertura de sentido (Sinn)
  • III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)
  • II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung)
  • Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)
  • Introduccedilatildeo
  • I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem
  • II- O Falatoacuterio (das Gerede)
  • Conclusatildeo
  • Bibliografia

2

Christiane Costa de Matos Fernandes

A estrutura ontoloacutegica da linguagem e a queda no

falatoacuterio em Ser e Tempo

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Departamento de

Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciecircncias

Humanas da Universidade Federal Minas Gerais

como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de

Mestre em Filosofia Universidade Federal de

Minas Gerais ndash UFMG Faculdade de Filosofia e

Ciecircncias Humanas Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em

Filosofia

Orientadora

Profa Dra Virginia de Arauacutejo Figueiredo

Brasil

2016

3

100

F363e

2016

Fernandes Christiane Costa de Matos

A estrutura ontoloacutegica da linguagem e a queda no falatoacuterio em Ser e

tempo Christiane Costa de Matos Fernandes - 2016

150 f

Orientadora Virginia Arauacutejo Figueiredo

Coorientador Marco Antonio Casanova

Dissertaccedilatildeo (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas

Inclui bibliografia

1Filosofia ndash Teses 2 Heidegeer Martin 1889-1976 Ser e Tempo I

Figueiredo Virginia ArauacutejoII Casa Nova Marco Antonio dos Santos

IIUniversidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e

Ciecircncias Humanas IIITiacutetulo

4

Banca Avaliadora

_________________________

Profa Dra Virginia de Arauacutejo Figueiredo-UFMG Orientadora

___________________________

Prof Dr Marco Antocircnio Casanova- UERJ Coorientador

___________________________

1ordm Examinador Prof Doutor Eduardo Soares Neves Silva - UFMG

___________________________

2ordmExaminador Prof Doutor Maacutercio Antocircnio de Paiva- PUCMG

5

Agradecimentos

O trabalho que aqui apresento iniciou-se em Fevereiro de 2014 mas originou-se

haacute 12 anos atraacutes em meu primeiro semestre do curso de graduaccedilatildeo em filosofia na

Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas da UFMG Jaacute nas primeiras aulas questionei

a possibilidade de continuar nesse caminho pois ele havia se tornando cada vez mais

exigente e difiacutecil No segundo semestre poreacutem cursei a mateacuteria ministrada pelo professor

Fernando Rey Puente onde ele tentava explicar aos alunos ainda iniciantes como eu As

Categorias de Aristoacuteteles Aquelas aulas foram decisivas para que eu compreendesse trecircs

coisas dedicaccedilatildeo e rigor satildeo o que minimamente podemos oferecer agrave filosofia (ainda

permaneccedilo na busca de realizar tais condiccedilotildees) o pensamento filosoacutefico uma vez

apresentado a noacutes natildeo oferece saiacuteda mas compromisso e ainda aprendi que se a partir

daquele momento eu ficasse imune ao ler um livro de filosofia era melhor deixaacute-la Por

isso meu primeiro agradecimento eacute a esse professor Tambeacutem natildeo poderia deixar de

agradecer ao professor Ernesto Perini Nas mateacuterias ministradas por ele que cursei durante

a graduaccedilatildeo natildeo soacute se revelava para mim a importacircncia da linguagem no interior dos

problemas filosoacuteficos como aprendi que o respeito com os alunos era uma maneira de

ensinaacute-los

Agradeccedilo tambeacutem a todos os funcionaacuterios da FAFICH de forma especial agrave Vilma

bibliotecaacuteria-chefe e ao Andreacute secretaacuterio da poacutes-graduaccedilatildeo Ambos pela solicitude com

que sempre me atenderam em todos os momentos que precisei

Agradeccedilo tambeacutem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e

Tecnoloacutegico (CNPq) pela concessatildeo da bolsa de estudos que permitiu nos uacuteltimos dois

anos minha dedicaccedilatildeo integral agrave pesquisa do mestrado

Agradeccedilo agravequeles que construiacute como amigos o viacutenculo com o mundo Dentre eles

alguns nomes natildeo posso deixar de citar Agradeccedilo agrave Thamara Chain pelos 22 anos de

amizade e compreensatildeo Agradeccedilo agrave Taiacutes Tourinho por ser vigilante acerca de minha

solidatildeo por vezes demasiada Agradeccedilo agrave Nathaacutelia de Aacutevila por me lembrar a natildeo ser tatildeo

seacuteria e que o caminho tambeacutem se faz com leveza Agradeccedilo agrave Carolina Faria pela partilha

do entusiasmo na descoberta promovida pelo estudo Tambeacutem agradeccedilo agrave Ana Godoi

Gustavo Machado e Gabriel Lago Essas pessoas me ensinaram o valor do debate (por

6

vezes infindaacuteveis) e ainda que pensamento e vida satildeo o mesmo A uacutenica maneira que

encontrei para agradececirc-los eacute tornar puacuteblico o fato de que nossas conversas estatildeo em cada

linha dessa dissertaccedilatildeo

Agradeccedilo agrave minha orientadora Virginia Figueiredo pela confianccedila depositada em

mim ao me aceitar como orientanda Tambeacutem por seus comentaacuterios e ensinamentos

imprescindiacuteveis bem como pela leitura e revisatildeo impecaacutevel de meu trabalho Nesse

sentido tambeacutem ao meu coorientador Marco Antocircnio Casanova a quem agradeccedilo tendo

em vista que sem sua presenccedila algumas partes dessa dissertaccedilatildeo natildeo seriam possiacuteveis

Agradeccedilo minhas irmatildes Jana e Nanda por serem minhas primeiras e eternas

melhores amigas E por fim agradeccedilo agravequeles por quem o meu sentimento entre o amor

a gratidatildeo e a admiraccedilatildeo natildeo alcanccedila a palavra aos meus pais Adauto e Delza Esse

trabalho eacute para vocecircs

7

VERBO SER

Carlos Drummond de Andrade

Que vai ser quando crescer

Vivem perguntando em redor Que eacute ser

Eacute ter um corpo um jeito um nome

Tenho os trecircs E sou

Tenho de mudar quando crescer Usar outro nome corpo e jeito

Ou a gente soacute principia a ser quando cresce

Eacute terriacutevel ser Doacutei Eacute bom Eacute triste

Ser pronunciado tatildeo depressa e cabe tantas coisas

Repito Ser Ser Ser Er R

Que vou ser quando crescer

Sou obrigado a Posso escolher

Natildeo daacute para entender Natildeo vou ser

Vou crescer assim mesmo

Sem ser Esquecer

ldquoAdmitamos que natildeo haja essa significaccedilatildeo indeterminada e que natildeo entendemos sempre o que lsquoserrsquo significa O que ocorreria nesse caso Apenas um nome e um verbo de menos em nossa linguagem De forma alguma Jaacute natildeo haveria simplesmente linguagem alguma Natildeo ocorreria que o ente se nos abrisse de modo a poder ser chamado e dito Pois dizer o ente como tal implica compreender de antematildeo o ente como ente isto eacute o seu ser Suposto que noacutes simplesmente natildeo compreendecircssemos o ser suposto que a palavra lsquoserrsquo natildeo tivesse nem mesmo aquela significaccedilatildeo flutuante entatildeo jaacute natildeo haveria absolutamente nenhuma palavra Noacutes mesmos nunca poderiacuteamos ser aqueles que falam Laacute natildeo poderiacuteamos ser o que somos Pois ser homem significa ser um dizenterdquo

Heidegger Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica

8

Resumo

O presente trabalho tenta evidenciar a partir da obra Ser e Tempo de Martin

Heidegger como a linguagem (die Sprache) eacute a manifestaccedilatildeo uacuteltima da historicidade de

todo e qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como esses significados satildeo

sustentados por um campo de sentido tambeacutem histoacuterico A partir dessa primeira descriccedilatildeo

o trabalho visa esclarecer como a linguagem no uso cotidiano ou o falatoacuterio (das Gerede)

obscurece o caraacuteter histoacuterico do fenocircmeno da linguagem e dos significados que a sustenta

Portanto esta Dissertaccedilatildeo caminha em duas vias que se tocam a primeira pretende

descrever o que chamamos de estrutura ontoloacutegica da linguagem a partir do

redimensionamento da pergunta heideggeriana pelo ser a fim de indicar como as palavras

em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da experiecircncia

hermenecircutica ou seja atraveacutes da compreensatildeo ontoloacutegica preacutevia a linguagem a segunda

pretende mostrar o fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana como comunicaccedilatildeo

ou discurso (die Rede) a qual jaacute se expressou e a cada vez se expressa sempre repetida

e difundida no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada

pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte

compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente

9

Abstract

The present thesis focuses on demonstrating in what manner language (die

Sprache) is the lattermost manifestation of the historicity of any meaning that can come

to words as well as through what agency those meanings are upheld by a conjointly

historical field of meaning insofar as stated by Martin Heidegger in his work ldquoBeing and

Timerdquo (Sein und Zeit) As of this writing our work aims at unraveling by what means

language in its trivial use or the talk (das Gerede) overshadows the historical aspect and

the meanings that withstand the phenomenon of language Hence the present work is

developed in two adjoining ways the first one endeavors to describe the ontological

structure of language deriving out of the resizing of Heideggers question of being that

has the aim of indicating how the words in context of enunciation inherit their meaning

from previous structures of the hermeneutic experience that is through the prior

ontological understanding of the language The second one aims at revealing the language

phenomenon in the median everydayness as communication or discourse (die Rede)

which has already been expressed and is still expressed always repeated and spread in

the talk that obliterates the comprehensive horizon by reducing all beings to an

undifferentiated homogenization and making them available to our linguistic resources

since it is the primary opening of the sense of being that any and all entities have

10

Sumaacuterio INTRODUCcedilAtildeO 11

Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na

filosofia 15

Introduccedilatildeo 15

I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do

conhecimento como essencialmente histoacuterico 17

II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em

relaccedilatildeo agraves ciecircncias 22

II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica 29

III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos 33

Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica 42

Introduccedilatildeo 42

I - Os limites da filosofia dos valores 44

II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio 53

II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger 58

III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal 68

III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger 72

Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e

Tempo 80

Introduccedilatildeo 80

I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou

o ldquocomordquo hermenecircutico 88

II A dupla abertura de sentido (Sinn) 88

III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit) 103

II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung) 110

Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede) 122

Introduccedilatildeo 122

I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem 123

II- O Falatoacuterio (das Gerede) 134

Conclusatildeo 143

Bibliografia 146

11

INTRODUCcedilAtildeO

Estamos diante de um livro Ser e Tempo Abrimo-lo Com o que nos confronta

em sua primeira paacutegina Que natildeo temos desde Platatildeo ateacute hoje resposta agrave pergunta sobre

o que queremos dizer com a palavra lsquoentersquo Natildeo haacute como ficar imune diante da

constataccedilatildeo E se ateacute hoje essa palavra natildeo nos eacute transparente eacute porque aqueles que se

propuseram a andar no caminho do pensamento natildeo souberam perguntar sobre o ente e

isso porque natildeo souberam afinal perguntar sobre o ser Heidegger natildeo nos propotildee sair do

caminho mas uma nova maneira de caminhar Ele nos promete uma resposta Natildeo Ele

propotildee uma vez mais a pergunta pelo ser O objetivo do tratado eacute elaborar essa questatildeo

De que modo Ele agora pergunta Qual o sentido de ser

Nossa pesquisa poderia partir daiacute Iniciariacuteamos a exposiccedilatildeo de nosso trabalho

nessa pergunta e prosseguiriacuteamos em Ser e Tempo De modo algum Seria um

contrassenso para algueacutem que queira estudar a linguagem em Heidegger partir de uma

sentenccedila como se ela fosse oacutebvia Afinal por qual motivo Heidegger natildeo pergunta ldquoO

que eacute o serrdquo ou ldquoHaacute o serrdquo Fechamos Ser e Tempo Eacute preciso compreender como essa

pergunta ganhou uma determinada forma Mas para onde ir

Ser e Tempo eacute uma obra do seacuteculo XX uma obra de filosofia portanto jaacute eacute parte

de nossa tradiccedilatildeo jaacute temos uma preacute-compreensatildeo dela Sabemos previamente que ela

transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica e que o nosso autor expotildee seu caminho

em um texto de 1963 chamado ldquoMeu caminho na fenomenologiardquo Parece-nos um bom

iniacutecio e vamos ao texto Heidegger descreve o iniacutecio de seus estudos o contato com a

obra inaugural da fenomenologia de Husserl e com a tese de Brentano sobre Aristoacuteteles

aiacute se vecirc germinar ainda que de maneira imprecisa sua questatildeo central Mas isso se

mostrou insuficiente para compreender a pergunta posta em Ser e Tempo Recorremos

entatildeo aos textos de Husserl Jaacute na introduccedilatildeo do II volume agrave obra citada por Heidegger

ndash Investigaccedilotildees Loacutegicas - Husserl descreve a necessidade de a fenomenologia

posicionando-se contra a psicologia explicativa procurar sua fundamentaccedilatildeo da loacutegica

numa nova teoria do conhecimento objetiva Nossa jaacute citada preacute-compreensatildeo nos levou

a Dilthey ao descobrir que esse autor tambeacutem se opocircs ao meacutetodo da psicologia

explicativa Vamos tambeacutem aos seus textos Mas a pergunta aparece teraacute sido tatildeo grande

12

a influecircncia que a psicologia explicativa exercia naquela eacutepoca a ponto de exigir que

tantos pensadores sentissem a necessidade de se opor a ela e ao seu meacutetodo

Como se isso natildeo bastasse revelou-se que ambos os autores Dilthey e Husserl

travam diaacutelogo nem sempre expresso com o neokantismo Agrave revelia de todos julguei

que natildeo deveria desconsiderar mais essa referecircncia tendo em vista que um dos principais

nomes dessa corrente ndash Rickert- foi citado por Heidegger no importante (para esta

pesquisa) texto de 1963 ao qual me referi haacute pouco Entatildeo me perguntei o que une esses

trecircs nomes Dilthey Husserl e Rickert Estaacute posta a tarefa do primeiro capiacutetulo da

Dissertaccedilatildeo

Nele tentei compreender como a partir do desenvolvimento das ciecircncias positivas

particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma profunda discussatildeo acerca do sentido e

da possibilidade do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo busca uma

filosofia propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana procura a

autonomia da filosofia frente agrave ciecircncia positiva mas que serviria de base a toda e qualquer

ciecircncia Tambeacutem nesse contexto aparece a contribuiccedilatildeo de Dilthey a qual acrescenta o

caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e traz agrave tona o sentido do conhecimento como

essencialmente histoacuterico

Mas natildeo chegamos ao que nos propomos estamos ainda nos prolegocircmenos Por

qual motivo Heidegger pergunta Qual o sentido de ser Ser e Tempo continua fechado

Precisamos entatildeo reavaliar nossa preacute-compreensatildeo Se como dissemos Ser e Tempo

transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica eacute preciso analisar como essas influecircncias

aparecem no pensamento de Heidegger Vamos a algumas preleccedilotildees do autor anteriores

agrave obra central de nosso trabalho Eacute preciso indicar que nossa intenccedilatildeo natildeo eacute abordar as

preleccedilotildees como processos evolutivos como que para esclarecer em termos de causa e

efeito a publicaccedilatildeo posterior lsquomadurarsquo de Ser e Tempo Mas destacar como as questotildees

desses textos acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a

problemaacutetica cujo desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927

Estaacute posta a tarefa de nosso segundo capiacutetulo

Nele trata-se de compreender como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere

Heidegger no interior da referida discussatildeo pelo sentido do conhecimento Mas ao

mesmo tempo tentaremos mostrar como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva

(considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal)

e a introduccedilatildeo do elemento hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com

13

Heidegger a pergunta fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do

conhecimento e passou a ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto

nosso segundo capiacutetulo pretende analisar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger

no interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do

conhecimento ao sentido do ser

Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido

de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a

teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo

pelo sentido do ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir

da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para

uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no

curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER 2006 p122) o elemento

hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave fenomenologia

que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em

seu ser Podemos abrir novamente Ser e Tempo

Esse percurso foi necessaacuterio para que pudeacutessemos conquistar um solo

interpretativo e sobretudo alcanccedilar a pergunta pelo sentido de ser Pois ela a pergunta

estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura de sentido que precisamos explicitar

E assim no terceiro e central capiacutetulo da Dissertaccedilatildeo apresentar como em Ser e Tempo

o fenocircmeno da linguagem (Sprache) aparece no interior dessa compreensatildeo e em que

medida a linguagem eacute possiacutevel por uma estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Dito de

outro modo na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto

ontoloacutegico do conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e

qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido tambeacutem

histoacuterico em que algo pode se manter em seu significado Eacute nessa perspectiva que

procuramos a estrutura ontoloacutegica da linguagem

Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a

ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo

material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos

que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas

que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela

dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se

estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o

14

que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes1rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que

somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em

fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo

Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por

Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um

fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo

incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como

descoberto A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo cotidiano Heidegger chama de

ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio

natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute

encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas tomadas como oacutebvias

Esse eacute o caminho do nosso trabalho mas eacute apenas o iniacutecio Ele natildeo pretende

encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender a

ldquopassagem para o poeacutetico2rdquo na obra de Heidegger como uma tentativa de desvencilhar-se

do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Por enquanto preferimos a tensatildeo

e a suspensatildeo do estado de pergunta Ser e Tempo continuaraacute aberto Tentaremos nos

manter fieis agrave orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica Diante da pergunta de

Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na cidade Soacutecrates responde

ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso irrdquo3

1 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo Wolf

Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249 2 Cf NUNES 2012 3 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9

15

Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo

sentido do conhecimento na filosofia

Chega um tempo em que natildeo se diz mais meu Deus () Chegou um tempo em que natildeo adianta morrer Chegou um tempo em que a vida eacute uma ordem

A vida apenas sem mistificaccedilatildeo (Os Ombros Suportam o Mundo Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

Conforme Merleau Ponty a fenomenologia surge como uma tentativa para

resolver um problema natildeo de uma seita mas talvez o problema do seacuteculo o problema

que se punha desde 1900 para todo o mundo e ainda eacute hoje colocado (PONTY M1973

Pag15) O problema refere-se agrave crise das ciecircncias humanas (Geistenwissenschaften) e agraves

ciecircncias naturais

Se o fundamento dos princiacutepios da geometria e da fiacutesica eram objetos de

investigaccedilatildeo de Husserl e o levou ao caminho da pesquisa de uma filosofia sem

pressupostos- bem como as investigaccedilotildees dos chamados neokantianos da escola de

Marburg que os levaram agrave tentativa de fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas - as

ciecircncias humanas tambeacutem se desenvolviam no auspiacutecio de sua proacutepria ambiguidade

A medida que se desenvolviam as pesquisas psicoloacutegicas socioloacutegicas

histoacutericas tendiam a nos apresentar todo pensamento toda opiniatildeo e em

particular toda filosofia como o resultado da accedilatildeo combinada das condiccedilotildees

psicoloacutegicas sociais histoacutericas anteriores A psicologia tendia para o que Husserl

denomina psicologismo a sociologia o sociologismo histoacuteria para o

historicismo Ora com isto elas acabavam por erradicar seus proacuteprios

fundamentos (PONTY1973 p15)

Na medida em que os princiacutepios orientadores do homem histoacuterico social e

psicoloacutegico satildeo elementos externos e imbricados de certa contingecircncia conforme os

resultados mesmos dessas pesquisas o pesquisador punha suas proacuteprias afirmaccedilotildees em

duacutevida pois o fundamento de todas elas eacute tambeacutem contingente e o valor de verdade de

suas conclusotildees fluido Contudo quando algo faz aparecer opositores observando e

16

diagnosticando seus problemas fundamentais eacute porque encontra-se em evidecircncia e jaacute

atingiu certo grau de adesatildeo sendo necessaacuterio apontar elementos obliterados em sua

suposta evidecircncia

A autonomia das ciecircncias positivas frente aos sistemas filosoacuteficos em meados do

seacuteculo XIX na Alemanha acompanhava um crescente desprestiacutegio da metafiacutesica e da

filosofia da natureza sendo a reflexatildeo metodoloacutegica suplantada por novos procedimentos

-e uma nova visatildeo de mundo- em que vigoravam o conhecimento empiacuterico impessoal e

temporal

Se a filosofia jaacute natildeo parecia ter condiccedilotildees de responder agraves questotildees dessa nova

visatildeo de mundo cientiacutefica com as propostas da psicologia experimental - baseada no

modelo metodoloacutegico das ciecircncias naturais- ela a filosofia parecia estar condenada ao

ostracismo sendo capaz apenas de se colocar como curiosidade histoacuterica A psicologia

experimental ou explicativa considerava que um procedimento verdadeiramente

cientiacutefico deveria ser baseado na observaccedilatildeo empiacuterica ela era a interpretaccedilatildeo da verdade

atraveacutes de causas psiacutequicas responsaacuteveis pela efetuaccedilatildeo do juiacutezo(MACDOWEL 1993

p28)

O ponto crucial dessa posiccedilatildeo eacute o fato de que o estudo da loacutegica enquanto

estrutura do pensamento estaacute condicionado aos meacutetodos e princiacutepios da psicologia e

portanto condicionada a tipos de demonstraccedilotildees empiacutericas Uma investigaccedilatildeo dessa

espeacutecie - a loacutegica condicionada a demonstraccedilotildees empiacutericas - eacute a negaccedilatildeo da tarefa proacutepria

agrave filosofia (mesmo quando um ou outro pensador negue por exemplo a idealidade loacutegica

ainda assim o faz inserido nessa tarefa de investigaccedilatildeo) pois a loacutegica como doutrina

voltada para uma purificaccedilatildeo radical dos elementos materiais da linguagem e para uma

subsequente reconciliaccedilatildeo entre pensamento e verdade se mostra como expressatildeo

maacutexima do projeto originaacuterio da tradiccedilatildeo (CASANOVA Introduccedilatildeo In DILTHEY

2011p8)

Nesse contexto surgem reaccedilotildees ao modelo predominante das ciecircncias naturais

sobretudo em relaccedilatildeo agrave adesatildeo a este modelo pela psicologia e pelas ciecircncias humanas

Dentre essas reaccedilotildees destacamos o projeto da psicologia descritiva e analiacutetica de Dilthey

as contribuiccedilotildees da pesquisa sobre a validade do conhecimento das escolas neokantistas

17

ndash destacando a filosofia dos valores de Windelband e Rickert - e o projeto husserliano de

uma filosofia sem pressupostos que se realizaria atraveacutes do meacutetodo fenomenoloacutegico

Ciente de que natildeo nos eacute possiacutevel aprofundar nessas complexas investigaccedilotildees nossa

intenccedilatildeo nesse primeiro momento de trabalho eacute apenas indicar os elementos

fundamentais de cada posiccedilatildeo e a partir deles compreender no capiacutetulo seguinte em

que medida essas reaccedilotildees se intercruzam e influenciam o autor privilegiado no texto

dessa dissertaccedilatildeo Este eacute o objetivo de nosso primeiro capiacutetulo

Nosso primeiro capiacutetulo eacute a tentativa de compreender como a partir do

desenvolvimento das ciecircncias positivas particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma

profunda discussatildeo acerca do sentido e possibilidade do conhecimento Nesse contexto o

neokantismo busca uma filosofia propriamente cientiacutefica ndash como reflexo da exigecircncia de

sua proacutepria eacutepoca ndash enquanto a fenomenologia husserliana busca a autonomia da filosofia

descontiacutenua agrave ciecircncia positiva mas que seria a base de toda e qualquer ciecircncia Tambeacutem

nesse contexto emerge como elemento fundamental para o desenvolvimento de nosso

trabalho a tarefa geral de Dilthey que mesmo imersa nas exigecircncias positivistas de seu

tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e potildee em tela o sentido

do conhecimento como essencialmente histoacuterico

I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias

do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente

histoacuterico

Dilthey contra a mera transposiccedilatildeo do meacutetodo das ciecircncias naturais agraves ciecircncias

do espiacuterito ldquose deu conta que a pretensatildeo de entender filosoficamente as disciplinas

histoacutericas soacute poderia levar-se a um porto seguro se reflexiona acerca do que eacute o objeto

das ditas ciecircnciasrdquo (HEIDEGGER 2006p33)

As ciecircncias naturais segundo Dilthey se relacionam com os objetos na medida

em que esses satildeo ou fatos simultacircneos ou sucessivos e aparecem agrave consciecircncia sempre

como dados externos assim recorrendo a uma hipoacutetese como recurso explicativo

condicionada agrave verificaccedilatildeo a partir de maior ou menor incidecircncia desses fatos Os

18

resultados das ciecircncias naturais seriam portanto conclusotildees complementares que

tentariam explicar os fenocircmenos externos (observados como fenocircmenos particulares) e

ordenaacute-los pela funccedilatildeo explicativa da ciecircncia que movimenta da parte (fenocircmenos

unitaacuterios) ao todo (explicaccedilatildeo ordenadora)

Poreacutem os fenocircmenos das ciecircncias humanas aparecem internamente agrave consciecircncia

com realidade de uma lsquoconexatildeo vivarsquo sendo essa conexatildeo da vida psiacutequica

originariamente dada compreensivamente a qualquer homem histoacuterico vivente A anaacutelise

ou distinccedilatildeo dos elos particulares dessa conexatildeo eacute posterior pois o que se daacute

imediatamente agrave consciecircncia eacute a conexatildeo constante das proacuteprias vivecircncias e ldquoa vida natildeo

se faz senatildeo como conexatildeordquo (DILTHEY W2011 pag30) natildeo tendo sentido a partir

dessa evidecircncia falar em algo como deduccedilatildeo dos fenocircmenos psiacutequicos

Exige-se portanto agrave psicologia um outro procedimento pois satildeo somente os

dados da psicologia descritiva que poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar

para as ciecircncias humanas O que estaacute em jogo para Dilthey contra a psicologia

explicativa eacute mostrar como a teoria do conhecimento relativa agraves ciecircncias do espiacuterito e

tambeacutem agrave filosofia natildeo pode abrir matildeo da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica Poreacutem em funccedilatildeo

da especificidade de seus objetos reclama outros meacutetodos que natildeo aqueles das ciecircncias

naturais

Dilthey natildeo aceita os pressupostos do retorno agrave filosofia kantiana4 para a

fundamentaccedilatildeo de suas investigaccedilotildees pois a cisatildeo entre mateacuteria e forma proveniente

desse sistema natildeo serve agraves ciecircncias do espiacuterito e natildeo pode ser mais sustentada diante da

evidecircncia da vida conexa e estruturante da vivecircncia da consciecircncia

4 Sobre esse aspecto eacute importante apresentar duas consideraccedilotildees 1) No interior da biografia de

Schleiermacher de 1860 Dilthey destaca a importacircncia de alguns aspectos do texto de Kant ldquoA religiatildeo

nos limites da simples razatildeordquo (1793) para o desenvolvimento da hermenecircutica de Schleiermacher 2)

Contudo talvez sob influecircncia do debate neokantiano agrave eacutepoca Dilthey apresenta o essencial da filosofia

kantiana como sendo a Criacutetica da Razatildeo Pura ou seja a teoria do conhecimento referente agraves ciecircncias

naturais E nesse sentido que a divisatildeo entre mateacuteria e forma como exposta na primeira criacutetica natildeo eacute

suficiente agrave elaboraccedilatildeo da epistemologia das ciecircncias humanas Sobre esse assunto Cf Kant und die

philosophische Hermeneutik in Kant-Studien 66 (1975) pp 395-403 Traduccioacuten de Angela Ackermann

Pilaacuteri en GADAMER H-G Los caminos de Heidegger Herder Barcelona 2002 pp 57-66 Cf

Beckenkamp J Kant e a hermenecircutica moderna in Kriterion vol51 no121 Belo Horizonte Junho 2010 e

tambeacutem Cf REIS JC A ldquocriacutetica histoacuterica da razatildeordquo Dilthey versus Kant In Textos de histoacuteria UNB

vol10 nordm12 v 10 (2002) pp-159-179

19

ldquoA cisatildeo entre mateacuteria e forma do conhecimento que eacute levada a termo no sistema

kantiano tambeacutem natildeo pode ser hoje mantida Muito mais importante do que essa

cisatildeo satildeo as relaccedilotildees internas que subsistem por toda a parte entre a multiplicidade

das sensaccedilotildees como a mateacuteria do nosso conhecimento e a forma na qual

apreendemos a mateacuteriardquo (DILTHEY W2011 p37)

Para REIS (2003)5 Dilthey eacute associado ao historicismo como seu maior teoacuterico

Ainda como aponta REIS nem todos pesquisadores de sua obra concordam com este

veredito alguns ateacute mesmo questionam se Dilthey poderia ser considerado um

historicista pois em seu projeto de construccedilatildeo de uma epistemologia das ciecircncias

humanas ao se opor ao historicismo romacircntico Dilthey recairia em certo positivismo De

todo modo analisar detalhadamente esta discussatildeo natildeo nos eacute possiacutevel o que nos interessa

aqui eacute apontar que apesar de fazer coro com as caracteriacutesticas gerais deste movimento

Dilthey se destaca por sua busca propriamente epistemoloacutegica das ciecircncias humanas a

partir da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos se afastando em diversos pontos

do chamado ldquoirracionalismordquo romacircntico mas sem reduzir o historicismo agrave pura

epistemologia e sobretudo lanccedilando bases teoacutericas com pretensatildeo cientiacutefica para a

abordagem dos fenocircmenos histoacutericos

ldquoO aspecto positivista da sua teoria devia-se agrave atmosfera naturalista em que ele

viveu As ciecircncias naturais impuseram o seu padratildeo de rigor e objetividade No

seacuteculo XIX a morte da filosofia sistemaacutetica cedeu seu lugar a uma ldquofilosofia

cientiacuteficardquo Natildeo era uma filosofia especulativa mas ldquoestudos positivos com

intenccedilatildeo filosoacuteficardquo O filoacutesofo natildeo podia pensar em qualquer objeto sem recorrer

a estudos concretos ao estudo de fontes primaacuterias extraiacutedas do mundo real

Dilthey neste sentido quis que sua filosofia fosse cientiacutefica Eacute uma teoria do

conhecimento das ciecircncias morais que estudam as relaccedilotildees e eventos positivos

do mundo histoacuterico-social () Aiacute reside seu positivismo que segundo Aron ele

nunca superou e que eacute sua originalidade () Sua tese eacute as ciecircncias humanas

existem como lsquociecircncias e eacute vatildeo discutir o seu caraacuteter cientiacutefico em nome de uma

teoria preconcebida da ciecircnciarsquordquo (REIS 2003p32)

Dilthey se destaca no movimento historicista pela sua preocupaccedilatildeo com o meacutetodo para

as ciecircncias humanas consciente de sua especificidade ou da metodologia autocircnoma dessa

disciplina na medida em que histoacuteria e vida se encontram pela compreensatildeo sendo a vida

ao mesmo tempo histoacuterica e psicoloacutegica E o fato de natildeo haver um modelo universal

sistemaacutetico da histoacuteria natildeo reduz sua pesquisa em uma descriccedilatildeo caoacutetica dos eventos

5 Seguindo a interpretaccedilatildeo de Freunde e Ortega y Gasset Cf REIS JC 2003 p31

20

Vivecircncia compreensatildeo e expressatildeo eacute a triacuteade fundamental para o pensamento de

Dilthey e sua ldquocriacutetica da razatildeo histoacutericardquo consiste em delinear como a construccedilatildeo do

mundo histoacuterico no sujeito torna possiacutevel um saber sobre a realidade espiritual

apreendendo aiacute a partir da experiecircncia do mundo histoacuterico o princiacutepio real das ciecircncias

humanas A reconstruccedilatildeo do mundo da vida natildeo pode ser reduzida a uma soma de

elementos que possam descrevecirc-lo Mais do que isso a vida histoacuterica de um determinado

tempo eacute vivenciada por uma ligaccedilatildeo imediata entre o sujeito e seu tempo cada vivecircncia

sinaliza para a concretude objetiva do espiacuterito da eacutepoca O que importa nesta perspectiva

eacute que a realidade objetiva seja garantida pela proacutepria vivecircncia que eacute ldquoerigida agrave condiccedilatildeo

de categoria epistemoloacutegica fundamental em oposiccedilatildeo ao conceito de representaccedilatildeordquo

(AMARAL2004 p53) ou seja a objetividade da vivecircncia lhe eacute imanente A vivecircncia

(Erlebnis) natildeo eacute mera vida orgacircnica (Leben) mas o encontro indissociaacutevel entre a histoacuteria

e a vida dos homens Se por um lado natildeo eacute possiacutevel acompanhar o horizonte de sentido

de uma eacutepoca sem esta primeira experiecircncia viacutevida cujas expressotildees satildeo particulares por

outro lado eacute somente atraveacutes da compreensatildeo que a vivecircncia eacute alargada superando a

unilateralidade da experiecircncia singular

ldquoA compreensatildeo eacute um reencontro do eu no tu o espiacuterito encontra-se em niacuteveis

cada vez mais elevados da conexatildeo essa mesmidade do espiacuterito no eu no tu em

cada sujeito de uma comunidade em todo sistema da cultura por fim na

totalidade do espiacuterito e da histoacuteria universal torna possiacutevel a atuaccedilatildeo conjunta

das diversas capacidades nas ciecircncias humanas O sujeito do saber estaacute assim

unido com o seu objeto e esse objeto eacute o mesmo em todos os niacuteveis de sua

objetivaccedilatildeo Se a objetividade do mundo espiritual criada no sujeito eacute reconhecida

por este procedimento surge a pergunta sobre o quanto isso pode contribuir para

a resoluccedilatildeo do problema do conhecimento em geralrdquo (DILTHEY 2006p168)

A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo eacute ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da

hermenecircutica de Dilthey pois traz em si a categoria do significado como o nexo da

vivecircncia com a realidade concreta sem se apoiar em qualquer elemento transcendente agrave

proacutepria experiecircncia psicoloacutegica vivida

ldquoA categoria do significado designa a relaccedilatildeo entre as partes da vida e o todo

uma relaccedilatildeo que estaacute fundada na essecircncia da vida Soacute possuiacutemos essa conexatildeo

por meio da memoacuteria na qual podemos visualizar o transcurso vital do passado

Na memoacuteria faz-se valer entatildeo o significado como a forma de apreensatildeo da vida

Captamos o significado de um momento passado Ele eacute significativo na medida

em que nele se realiza um viacutenculo com o futuro por meio da accedilatildeo ou por meio de

um acontecimento exterior Ou na medida em que foi concebido o plano de uma

conduccedilatildeo futura da vida Ou na medida em que um plano de sua realizaccedilatildeo foi

21

levado a termo Ou ele eacute significativo para a vida conjunta na medida em que a

intervenccedilatildeo do indiviacuteduo se realiza nessa vida na qual sua essecircncia mais proacutepria

interveio na configuraccedilatildeo da humanidade Em todos esses e em outros casos o

momento particular possui significado por meio de sua conexatildeo com o todo por

meio da ligaccedilatildeo entre passado e futuro entre existecircncia particular e a

humanidaderdquo (DILTHEY 2006p224)

A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo deve ser entendida como ldquoos dois lados

do processo loacutegico dois lados que se interpenetram mutualmenterdquo (DILTHEY

2006p213) sendo a forma de compreender enquanto meacutetodo a ldquoinduccedilatildeo que deduz das

particularidades parcialmente determinadas para noacutes uma conexatildeo que define o todordquo

(DILTHEY 2006p214) Mas isso soacute eacute possiacutevel pelas categorias que residem na essecircncia

da proacutepria vida categorias que natildeo satildeo dadas a priori e nem podem ser formalizadas

logicamente Satildeo categorias preenchidas no interior de certa unidade espaccedilo-temporal

pois ldquoa vida encontra-se em uma relaccedilatildeo maximamente proacutexima com o preenchimento

do tempo() No tempo a vida existe na relaccedilatildeo das partes com uma conexatildeordquo

(DILTHEY 2006p219)

O conjunto das realizaccedilotildees da compreensatildeo enquanto conexotildees estruturais

objetivas ou objetivaccedilatildeo da proacutepria vida no mundo exterior eacute o conceito das ciecircncias

humanas e ldquotudo aquilo em que o homem por sua atuaccedilatildeo imprimiu sua marca constitui

o objeto das ciecircncias humanasrdquo (DILTHEY 2006 p112) Tendo em vista esse objeto a

tarefa do pesquisador ldquoconsiste na apreensatildeo do mundo do espiacuterito como uma conexatildeo

dos efeitos ou como uma conexatildeo contida em seus produtos duradourosrdquo (DILTHEY

2006p118) A conexatildeo dos efeitos dos produtos da ciecircncia histoacuterica natildeo eacute como o nexo

causal da natureza pois diferentemente da natureza as conexotildees da vida objetiva do

espiacuterito geram valores e realizam fins a vida histoacuterica natildeo eacute reproduccedilatildeo ciacuteclica de si

mesma ndash como a vida natural - mas eacute sempre criativa e ativa na produccedilatildeo desses valores

e bens como seu caraacuteter imanente mais proacuteprio

E eacute nessa apreensatildeo do tear da vida histoacuterica na qual o tempo a vivecircncia e

compreensatildeo estatildeo imbricados e se interpelam o significado ldquoeacute a categoria abrangente

sob a qual a vida se torna concebiacutevelrdquo (DILTHEY 2006p222)

ldquoDito de outro modo conceber algo atribuir valor e estabelecer fins para algo

satildeo atitudes vitais inter-dependentes que configuram as vivecircncias e assim sendo

nos ajudam a construir a proacutepria realidade em que vivemos Vivecircncia e realidade

22

satildeo como que tecidas conjuntamente graccedilas ao apoio da ldquocategoria do

significadordquo (AMARAL 2004p55)

As expressotildees da vivecircncia possuem sua objetividade na medida em que os objetos

as pessoas os valores e os juiacutezos apoiados nesta relaccedilatildeo enraiacutezam-se nos significados

comuns do mundo da vida significados esses que satildeo vivenciados e compreendidos

perfazendo a proacutepria construccedilatildeo do mundo histoacuterico ldquoe consequentemente de sua

compreensatildeo como tarefa basilar das ciecircncias do espiacuteritordquo (AMARAL 2004p57)

II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar

proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias6

Ainda na reaccedilatildeo contra o empirismo positivista do final do seacuteculo XIX e

sobretudo ao psicologismo desenvolveram-se as investigaccedilotildees dos chamados

neokantianos um ldquomovimento com profundas raiacutezes no seacuteculo dezenove [que] dominou

a academia filosoacutefica alematilde entre 1890 e 1920rdquo (CROWELL2001 p23)

Seguindo a exposiccedilatildeo de Crowell o movimento neokantiano pode ser dividido em

trecircs momentos profundamente relacionados com os acontecimentos histoacutericos poliacuteticos

e sociais da Alemanha na virada do seacuteculo XIX para XX Natildeo seraacute possiacutevel nos

aprofundarmos muito na especificidade de cada momento desse movimento bem como

nas suas relaccedilotildees com outras mateacuterias Como jaacute foi dito acima nossa proposta nessa

breve introduccedilatildeo eacute apenas mostrar a importacircncia desse movimento na formaccedilatildeo do

pensamento de Heidegger7 e indicar o contexto geral no qual nasce esse pensamento

6 O neokantismo eacute um movimento complexo e com muitas nuances Como nossa intenccedilatildeo eacute apresentar o

contexto no qual surge o pensamento de Heidegger natildeo pretendemos nos aprofundar e muito menos

desdobrar as divergecircncias entre seus representantes principais atraveacutes do acesso direto agraves suas obras

Portanto seguiremos nesse toacutepico a leitura de Crowell (2001) e Joseacute Rezende Juacutenior (2013) recorrendo

quando necessaacuterio a outros comentadores Destacamos os elementos centrais do pensamento de

Windelband e sobretudo de Rickert pois a partir da anaacutelise da preleccedilatildeo de 1919 de nosso autor ldquoA filosofia

e o problema da concepccedilatildeo de mundordquo ndash em que Heidegger investiga a possibilidade da filosofia como

ciecircncia originaacuteria ndash a posiccedilatildeo desses autores eacute decisiva para elaboraccedilatildeo dos problemas do meacutetodo de acesso

a imediatidade da vida e na primeira parte da referida preleccedilatildeo Heidegger expotildee os pressupostos e

problemas do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e sua dependecircncia ao material teoacuterico das ciecircncias particulares 7 Aleacutem do exposto em nota acima (6) seguimos a leitura de Gianni Vattimo em Introduccedilatildeo a Heidegger

No primeiro capiacutetulo Vattimo mostra a importacircncia dos anos de estudos universitaacuterios de Heidegger em

Freiburg sob orientaccedilatildeo de Heinrich Rickert para o desenvolvimento da questatildeo central de seu

pensamento a questatildeo do ser Segundo Vattimo em sua tese de livre docecircncia de 1916 Heidegger jaacute

23

contexto de uma disputa pela ldquoNova Filosofiardquo que dividiu a Fenomenologia de um lado

e os Neokantianos de outro

ldquoAmbos os movimentos reivindicam o tiacutetulo de filosofia cientiacutefica mas o

neokantismo difere da fenomenologia em manter uma continuidade entre a

ciecircncia positiva e filosofia A teoria da ciecircncia a epistemologia neokantiana

deseja fornecer fundamentos para os princiacutepios de base (lsquocientiacuteficosrsquo) da visatildeo de

mundo A Fenomenologia (aqui Husserl e o jovem Heidegger) ao contraacuterio

estabelece a autonomia da filosofia precisamente atraveacutes da descontinuidade com

a ciecircncia positiva e os objetos de formaccedilatildeo da visatildeo de mundordquo (CROWELL

2001p24)8

No primeiro periacuteodo (1871-1878) verifica-se ldquocerta continuidade entre o inqueacuterito

aprioriacutestico e empiacuterico A autonomia da filosofia vis-agrave-vis a ciecircncia positiva ainda natildeo

tornou a questatildeo decisivardquo (CROWELL 2001p26) Os neokantianos ainda estavam

dispostos a aceitar que as estruturas fundamentais da realidade revelavam seu caraacuteter

transcendental pois ainda constatavam a necessidade das formas universais atraveacutes das

quais podemos pensar as coisas singulares No projeto positivista a ciecircncia empiacuterica

estuda apenas o conteuacutedo de fato em uma restriccedilatildeo circunstancial dos fenocircmenos jaacute

compreendidos

ldquoTentando superar as aporias da Criacutetica da Razatildeo Pura o idealismo

transcendental neokantiano rejeitou a distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si Os

objetos satildeo totalmente imanentes agrave consciecircncia natildeo somente quanto a sua forma

mas tambeacutem agrave sua mateacuteria ieacute o seu elemento empiacuterico Destarte as categorias

jaacute natildeo constituem meramente o modo de aparecer da realidade mas o seu modo

de ser pois ela natildeo existe senatildeo enquanto presente agrave consciecircncia () Assim o

loacutegico como estudos das determinaccedilotildees fundamentais de vaacuterias regiotildees dos

objetos imanentes agrave consciecircncia ocupa com razatildeo ainda para Kant o lugar

reservado antigamente agrave metafiacutesica A tarefa proacutepria da filosofia consiste numa

Teoria das Ciecircncias ieacute no exame das estruturas a priori ao passo que estas

estudam o conteuacutedo empiacuterico das vaacuterias regiotildees dos objetosrdquo (MACDOWELL

Jp30)

manifestava elementos que o impulsionariam a ir aleacutem da loacutegica a recusa de considerar as categorias como

meras funccedilotildees do pensamento e ainda a exigecircncia de considerar o problema da historicidade e do tempo

Assim no interior da problemaacutetica neokantiana Heidegger jaacute se preocupava com questotildees que o

neokantismo mostrava-se incapaz de resolver Cf Vattimo G1987 pp 10-22

8 ldquoBoth movements lay claim to the mantle of ldquoscientific philosophyrdquo but neo-Kantianism differs from

phenomenology in maintaining a continuity between positive science and philosophy As theory of science

neo-Kantian epistemology wants to provide grounds for a principled (ldquoscientificrdquo) weltanschauung

Phenomenology (here Husserl and the early Heidegger) on the contrary establishes the autonomy of

philosophy precisely through a discontinuity with positive science and the aims of worldview formationrdquo

op cit p 24

24

Durante o segundo periacuteodo neokantiano entre 1878 e o final da Primeira Guerra

Mundial as escolas originadas desse movimento vatildeo acirrar suas diferenccedilas A escola de

Marburg (Cohen Natorp e Cassirer) se opocircs sobretudo agraves interpretaccedilotildees psicoloacutegicas

da Primeira Criacutetica de Kant O campo de investigaccedilatildeo dessa escola era direcionado agrave

fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas tais como a fiacutesica e a matemaacutetica pois o que

estaacute em jogo nessa obra segundo os pesquisadores de Marburg natildeo eacute qualquer

fundamentaccedilatildeo da estrutura psicoloacutegica do conhecimento nem sua origem mas o valor

loacutegico de sua verdade na medida em que ldquoo nosso conhecimento dos objetos reais conteacutem

um elemento que natildeo pode ser reduzido pura e simplesmente a intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo

(MCDOWELL J p29)

No mesmo sentido mas sobretudo em funccedilatildeo da superaccedilatildeo do psicologismo e do

relativismo histoacuterico a escola neokantista de Baden representada principalmente por

Windelband e seu disciacutepulo Rickert estende o retorno a Kant com o propoacutesito da

elaboraccedilatildeo de uma loacutegica das ciecircncias humanas O desenvolvimento da filosofia dos

valores (Werttheorie) realizado por essa escola reconhecia a necessidade de diferenciar o

conhecimento da natureza do conhecimento da cultura nesse uacuteltimo caso as leis

deveriam ser explicadas a partir dos valores que neles satildeo presentes Aqui sem duacutevida

existe um ponto de contato com o projeto de Dilthey que nos exige um breve excurso para

desenhar com linhas mais precisas a especificidade de cada projeto

A criacutetica agrave metafiacutesica inaugurada pela filosofia criacutetica de Kant (negando ao

conhecimento qualquer acesso a elementos suprassensiacuteveis) eacute absorvida por Dilthey e

pelos neokantianos contudo a epistemologia das ciecircncias histoacutericas como filosofia

criacutetica da histoacuteria ao recorrer a Kant deveria como aponta Reis (2002 p 166) ldquoou

substituir ou completar ou subordinar ou se coordenar agrave [criacutetica] de Kantrdquo e nesse sentido

eacute possiacutevel observar a fissura entre os projetos Poderiacuteamos dizer que para Dilthey eacute

necessaacuterio superar Kant pois as categorias abstratas do conhecimento satildeo tributaacuterias de

relaccedilotildees vitais primaacuterias como pensamento que emerge da proacutepria vida histoacuterica pois eacute

a vida histoacuterica em uacuteltima instacircncia que fornece ao pensamento unidade e sentido Jaacute

para os neokantianos de Baden poder-se-ia dizer que houve uma coordenaccedilatildeo com vistas

agrave complementaccedilatildeo agrave criacutetica kantiana tendo em vista que tanto para Windelband como

para Rickert a diferenccedila entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito era legiacutetima

25

para o primeiro como uma distinccedilatildeo metodoloacutegica para o segundo como distinccedilatildeo

loacutegica No interior dessa diferenccedila entre Dilthey e os neokantianos de Baden eacute possiacutevel

observar um ponto ainda mais fundamental mesmo com exigecircncias epistemoloacutegicas

objetivas em seu trabalho Dilthey natildeo aceita o pressuposto de um sujeito transcendental

e eacute antes a vivecircncia do sujeito particular histoacuterico que lhe fornece a base de sua pesquisa

jaacute para Windelband e Rickert o idealismo transcendental eacute mantido com o propoacutesito de

garantir o estatuto cientiacutefico de suas teses Assim enquanto Dilthey atraveacutes dos meacutetodos

proacuteprios faz emergir uma nova concepccedilatildeo de ciecircncia os representantes de Baden

movimentam-se em uma teoria preconcebida da ciecircncia Dito de outro modo ldquoenquanto

Dilthey buscava uma forma de liberar as ciecircncias do espiacuterito do meacutetodo das ciecircncias

naturais Windelband e Rickert procuravam uma definiccedilatildeo de ciecircncia que reconhecesse a

importacircncia dos valoresrdquo (WUR 2010p175)

De maneira geral retornando ao ponto central de nosso toacutepico poderiacuteamos

apontar que as duas escolas neokantianas se diferenciavam essencialmente acerca do

objeto de investigaccedilatildeo Na escola de Marburg Cohen direcionava suas pesquisas ao

chamado ldquofato da ciecircnciardquo e a filosofia seria uma reflexatildeo sobre o conhecimento

cientiacutefico concentrando-se na busca de uma metodologia capaz de descrever

matematicamente a constituiccedilatildeo seu objeto na medida em que seu valor de verdade

encontra-se sob bases loacutegico-matemaacuteticas Jaacute na escola de Baden influenciado pela

filosofia dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade

dos juiacutezos cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de

conciliar ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) A ciecircncia apenas

lida com questotildees de fato e se for necessaacuterio analisar a ldquovisatildeo de mundordquo seremos

obrigados a lidar com os deveres e sobretudo com valores

ldquoEsse enfoque nos valores por parte de Windelband levaraacute o neokantismo de

Baden ao desenvolvimento de uma teoria geral do juiacutezo segundo a qual os juiacutezos

cientiacuteficos (juiacutezos teoacutericos) constituem apenas um tipo de juiacutezo qual seja os

juiacutezos orientados pelo valor verdade Aleacutem dos juiacutezos teoacutericos haveria tambeacutem

juiacutezos natildeo teoacutericos como os juiacutezos eacuteticos esteacuteticos religiosos etc os quais

seriam orientados por outros tipos de valores como o bem o justo o belo o

sagrado etc e os quais diriam respeito a outras dimensotildees da experiecircncia

humana para aleacutem da ciecircncia como a moral o direito a arte a religiatildeo etc Com

isso Windelband procura reformar e ampliar o projeto de Kant Como na Criacutetica

da Razatildeo Pura Kant reduziu o papel da filosofia agrave anaacutelise do caraacuteter a priori dos

juiacutezos teoacutericos especiacuteficos das ciecircncias da natureza trata-se portanto de

completar a empresa kantiana com a anaacutelise do caraacuteter a priori dos outros tipos

26

de juiacutezos Mesmo dentro das ciecircncias eacute preciso distinguir tipos de juiacutezos o que

Windelband faraacute atraveacutes da distinccedilatildeo entre ciecircncias nomoloacutegicas e ciecircncias

ideograacuteficas e Rickert com a distinccedilatildeo entre ciecircncias naturais e ciecircncias

culturaisrdquo (RESENDE 2013p17)

Contudo se ambas escolas se diferenciam na circunspecccedilatildeo de seu objeto existe

um ponto de partida epistemoloacutegico comum o retorno a Kant que indica o lugar proacuteprio

da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias A investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo deve se voltar agrave pesquisa

cientiacutefica de como se daacute tal ou qual conhecimento mas analisar a validade do

conhecimento ou seja aquilo que torna a verdade do conhecimento possiacutevel e esse

problema eacute de ordem transcendental pois natildeo estaacute interessada nos processos cognitivos

mas na condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer processo de conhecimento

ldquoContemporacircneo de Hermann Cohen da escola de Marburg Windelband

enfatizou como este a primazia da abordagem epistemoloacutegica dando

continuidade ao projeto kantiano de limitaccedilatildeo do conhecimento buscando

assegurar a sua validade rejeitando a contingecircncia do histoacuterico e do psicoloacutegico

em prol de uma validade atemporal puramente loacutegica Cohen procurou assegurar

a validade loacutegica do conhecimento cientiacutefico na matemaacutetica procedimento que

Windelband analisa como deficiente pois embora a primeira Criacutetica possa

fundamentar a interpretaccedilatildeo de Cohen a segunda e a terceira Criacuteticas assim

como os textos sobre antropologia histoacuteria e poliacutetica requerem outra

fundamentaccedilatildeo que natildeo a matemaacuteticardquo (WU R2010p3)

A terceira fase do movimento ainda segundo Crowell inicia-se no fim da

Primeira Guerra Mundial e vai ateacute a intervenccedilatildeo Nacional Socialista no sistema

universitaacuterio alematildeo nos anos 30 ldquoRefletindo o colapso do otimismo cultural este

periacuteodo eacute caracterizado por um ataque ao idealismo acadecircmico em nome de

Lebensphilosophie (um termo geneacuterico invocando as teses filosoacuteficas lsquoagrave margemrsquo como

as de Nietzsche Bergson e Dilthey)rdquo (CROWELL2011p28) E nesse sentido as escolas

neokantianas precisaram enfrentar o conflito entre a realidade muacuteltipla e dispersa que no

mais das vezes escapa a qualquer tentativa de apreensatildeo conceitual e loacutegica e portanto

agrave consciecircncia transcendental como postulado que garante a cientificidade do projeto

filosoacutefico neokantista

ldquoNa escola de Baden Logik der Philosophie (1911) e Die Lehre vom Urteil [A

doutrina do juiacutezo] (1912) de Lask antecipam temas do terceiro periacuteodo

Abandonando a interpretaccedilatildeo imanente de Rickert do esquema forma-mateacuteria (e

tambeacutem a primazia da razatildeo praacutetica) Lask adota o ponto de partida da

transcendecircncia para dar uma interpretaccedilatildeo ontoloacutegica dos objetos como a unidade

da forma categorial e o material natildeo-loacutegico Objetos satildeo verdades em si mesmas

27

unidades de sentido natildeo cogniccedilotildees juiacutezos proposiccedilotildees Em contraste com

Cohen para quem o objeto eacute construiacutedo no juiacutezo cientiacutefico Lask argumenta que

lsquoos mais baacutesicos problemas da loacutegica revela eles mesmos somente se a cogniccedilatildeo

preacute-teoreacutetica estaacute inclusa na investigaccedilatildeorsquo Em Marburg N Hartmann oferece na

Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis [Fundamentacao para uma

Metafiacutesica do Conhecimento] (1921) uma teoria da relaccedilatildeo sujeito-objeto

ldquorealistardquo quase-fenomenoloacutegica intentada por uma justificaccedilatildeo ontoloacutegica para

o que eacute meramente pressuposto no idealismo loacutegico de Natorp a saber a

habilidade do sujeito para ldquotranscenderrdquo a sua proacutepria esfera Na filologia de

Kant H Heimsoeth comeccedila a descobrir os ldquomotivos metafiacutesicosrdquo da filosofia

criacutetica de Kant uma interpretaccedilatildeo perseguida no curso sobre Kant de Heidegger

1927-1928 e em Kant und das Problem der Metaphysikrdquo

(CROWELL2011p28)9

Eacute conhecida a interlocuccedilatildeo entre Rickert e a fenomenologia de Husserl tanto de

um lado pela criacutetica de Rickert agrave intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica e agrave identificaccedilatildeo entre sentido

(Sinn) e Significado (Bedeutung) nas Investigaccedilotildees Loacutegicas10 quanto por outro pela

criacutetica de Husserl a Rickert no que diz respeito agrave via predominantemente subjetiva das

9 ldquoIn the Baden school Laskrsquos Logik der Philosophie (1911) and Die Lehre vom Urteil (1912) anticipate

themes of the third period Abandoning Rickertrsquos immanentist interpretation of the formmaterial schema

(and so also the primacy of practical reason) Lask adopts the ldquostandpoint of transcendencerdquo to give an

ontological interpretation of the object as a unity of categorial form and alogical material Objects are

themselvesldquo truths unities of meaning not cognitions judgments propositionsrdquo Incontrast to Cohen for

whom the object is constructed in the scientific judgment Lask argues that ldquothe most basic problems of

logic reveal themselves only if pretheoretical cognition is included in the investigationrdquo In Marburg N

Hartmann offered the Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis (1921) a quasi-phenomenological

ldquorealisticrdquo theory of the subject-object relation intended to account ontologically for what is merely

presupposed in Natorprsquos logical idealism namely the subjectrsquos ability to ldquotranscendrdquo its own sphere In

Kant philology H Heimsoeth began to uncover the ldquometaphysical motivesrdquo of Kantrsquos critical philosophy

an interpretation pursued in Heideggerrsquos 1927ndash28 lecture course on Kant and in Kant und das Problem der

Metaphysikrdquoop citp28

10 Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas (sect15 da I Investigaccedilatildeo) contra a posiccedilatildeo de Frege Husserl considera os

termos Sentido (Sinn) e Significado (Bedeutung) como sinocircnimos ldquoSignificaccedilatildeo vale para noacutes aleacutem disso

como sinocircnimo de sentidordquo (HUSSERL 2012 p43) Contudo se em Ideias (1913) Husserl passa a assumir

uma camada de sentido preacutevia agrave significaccedilatildeo linguiacutestica - algo que ele natildeo soacute sugere como a ela se refere

explicitamente chamando-a de sentido preacute-expressivo- a significaccedilatildeo (Bedeutung) permanece

intimamente atrelada agrave expressatildeo (Ausdruck) que continua a ter um caraacuteter epistemoloacutegico relevante

(Cfsect124 Ideacuteias para uma fenomenologia pura e para uma fenomenologia fenomenoloacutegica) Apesar da

nova assunccedilatildeo essa camada preacute-expressiva natildeo passa a ter um teor de verdade superior agrave camada

expressiva pelo contraacuterio Husserl vai permanecer sempre comprometido com o status epistemoloacutegico da

consciecircncia e de seu acesso ao fenocircmeno Entatildeo aquilo que a consciecircncia manifesta linguisticamente

continua a ser o meio pelo qual a fenomenologia pode se realizar como ciecircncia rigorosa e somente a partir

da expressatildeo eacute possiacutevel falar em verdade na medida em que apenas a expressatildeo possui intenccedilatildeo de

significaccedilatildeo Isso porque apesar de sugerir esse sentido preacute-linguiacutestico Husserl continua voltando suas

anaacutelises agrave expressatildeo

28

primeiras publicaccedilotildees de Der Gegenstand der Erkentnnis (O objeto do conhecimento)11

Tambeacutem eacute conhecido o debate entre o idealismo criacutetico de Natorp e a fenomenologia de

Husserl

ldquoEm Ideen I (1913) Husserl afirma com um miacutenimo de ironia que ldquonoacutes somos

genuiacutenos positivistasrdquo (Hua III4639) Sob a tutela de Brentano a atitude inicial

de Husserl em direccedilatildeo ao apriorismo kantiano foi totalmente negativa e em

harmonia com o proacuteprio periacuteodo positivista inicial do neokantismo ele em vez

disso propocircs uma consideraccedilatildeo psicoloacutegica do a priori (egin Philosophie der

Arithmetik [1891]) Pelos anos de 1890 esse tipo de continuidade entre filosofia

e ciecircncia positiva foi abandonado em Marburg pelo idealismo transcendental

Husserl portanto permaneceu bem proacuteximo a Natorp que era o instrumental em

direccedilatildeo daquele caminho do psicologismo e mais tarde inspiraria o movimento

de Husserl da estaacutetica para a fenomenologia geneacutetica Pelos anos 1913 Husserl

tinha desenvolvido seu proacuteprio ldquoidealismo transcendentalrdquo fenomenoloacutegico mas

se manteve distinto em princiacutepio do Neokantismo de Marburg Enquanto esse

uacuteltimo definiu o caraacuteter cientiacutefico da filosofia em termos de

uma loacutegica transcendental uma apresentaccedilatildeo sistemaacutetica dos princiacutepios a priori

(ldquomeacutetodordquo) da ciecircncia empiacuterica o primeiro se manteve anti-sistemaacutetico modelo

empiacuterico do primeiro periacuteodo do seu fundador fundando sua teoria do a priori

sobre um recurso filosoacutefico para a intuiccedilatildeoEm seu tratamento da psicologia de

Natorp na primeira ediccedilatildeo das Investigaccedilotildees Loacutegicas(1900-1901) por exemplo

Husserl rejeita a doutrina de Natorp do puro ego da apercepccedilatildeo Na segunda

ediccedilatildeo contudo ele afirma que tem ldquouma vez conseguido encontraacute-lordquo tendo

aprendido ldquoa natildeo ser desviado de uma pura compreensatildeo do dado por meio de

formas corruptas do ego-metafiacutesicordquo (Hua XIX1374549) Se o Husserl mais

idealista natildeo mais associa o ego kantiano com o ldquocorrupto ego-metafiacutesicordquo do

idealismo especulativo sua anotaccedilatildeo ainda avanccedila em direccedilatildeo a uma afirmaccedilatildeo

bem anti-Natorpiana de ter encontrado o puro ego em uma ldquopura compreensatildeo

do dadordquo isto eacute em evidecircncia intuitiva Outra anotaccedilatildeo afirma que o puro ego eacute

ldquoapreendido na efetivaccedilatildeo de um cogito auto-evidenterdquo (Hua XIX1368544)

Natorp negou a fenomenalidade do ego ele nem pode ser objetivado nem

apresentado ele mesmo como um todo sem deixar de ser genuinamente ldquosujeitordquo

Para Husserl poreacutem esse argumento eacute meramente verbal o ego eacute aqui como um

fato um objeto em seu modo apropriado Afirmar o contraacuterio equivaleria

entregar o ego ao reino do mito (Hua XIX1373ndash76549ndash510)rdquo

(CROWELL2011 p31)12

11 Sobre a interlocuccedilatildeo entre Husserl e Rickert e como as criacuteticas e observaccedilotildees provocaram sucessivas

revisotildees dos trabalhos de ambos os autores Cf RESENDE J 2013 Primeira Parte pp 22-89

12ldquoIn Ideen I (1913) Husserl claims with only slight irony that ldquowe are the genuine positivistsrdquo (Hua

III4639) Under Brentanorsquos tutelage Husserlrsquos initial attitude toward Kantian apriorism had been

altogether negative and in harmony with neo-Kantianismrsquos own early positivist period he instead proposed

a psychological account of the a priori (egin Philosophie der Arithmetik [1891]) By the 1890s this kind

of continuitybetween philosophy and positive science had been abandoned in burg for transcendental

idealism Husserl nevertheless established close ties with Natorp who was instrumental in steering him

away from psychologism and would later inspire Husserlrsquos move from static to genetic phenomenology

By 1913 Husserl had developed his own phenomenological ldquotranscendental idealismrdquo but it remained

distinct in principle from Marburg neo-Kantianism While the latter defined the scientific character of

philosophy in terms of a transcendental logic a systematic presentation of the a priori principles (ldquomethodrdquo)

29

Contudo apesar do diaacutelogo entre esses autores o que nos interessa marcar a tiacutetulo

introdutoacuterio eacute a centralidade do debate que orientou a filosofia deste periacuteodo Seja pela

busca de juiacutezos loacutegicos-matemaacuteticos seja pela busca dos juiacutezos de valor a filosofia ainda

estaacute imersa nos problemas e na gramaacutetica da modernidade pois os debates se

movimentam no interior da teoria do conhecimento e cada escola a seu modo recorre ao

sujeito transcendental para assegurar a garantia de objetividade e validade do

conhecimento A discussatildeo inaugurada por Kant acerca da lsquocoisa em sirsquo e de seu acesso

como ideia da razatildeo redirecionam qualquer ontologia dos objetos agrave consciecircncia do

sujeito E em uacuteltima instacircncia a filosofia permanece imersa no pressuposto da existecircncia

de um fundamento uacuteltimo - baseado no sujeito e em suas possibilidades ligadas agrave

representaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos elementos do mundo externo- como condiccedilatildeo de

possibilidade que garante a seguranccedila e objetividade de todo conhecimento

II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica

Para Wilhelm Windelband (1848-1915) a filosofia deve investigar os valores das

representaccedilotildees ou seja em que medida uma representaccedilatildeo se torna uma proposiccedilatildeo

cientiacutefica Contra as teorias representacionistas do juiacutezo aqui jaacute eacute possiacutevel identificar a

clara separaccedilatildeo entre representaccedilatildeo - que seria a mera apariccedilatildeo de um objeto e suas

propriedades- e o juiacutezo ndash que possui valor de verdade e pode ser negado ou afirmado Os

juiacutezos (sejam loacutegicos esteacuteticos ou eacuteticos) natildeo satildeo neutros como a representaccedilatildeo pois

possuem embutido o que Windelband chama de apreciaccedilatildeo

ldquoTrata-se de uma distinccedilatildeo loacutegica que normalmente natildeo aparece no niacutevel da

gramaacutetica A mera conexatildeo neutra de representaccedilotildees (sujeito + predicado) eacute o que

se chama de juiacutezo jaacute o fato dessas representaccedilotildees constituiacuterem uma proposiccedilatildeo

com valor de verdade se deve agrave apreciaccedilatildeo O que Windelband quer mostrar eacute

of empirical science the former retained the antisystematic empirical cast of its founderrsquos early period

grounding its theory of the a priori on a philosophical appeal to intuition In his treatment of Natorprsquos

psychology in the first edition of the Logical Investigations (1900 1901) for example Husserl rejects

Natorprsquos doctrine of the pure ego of apperception In the second edition (1913) however he claims that he

has ldquosince managed to find itrdquo having learned ldquonot to be led astray from a pure grasp of the given through

corrupt forms of ego-metaphysicrdquo (Hua XIX1374549) If the more idealistic Husserl no longer associates

the Kantian ego with the ldquocorrupt ego-metaphysicrdquo of speculative idealism his note also advances the very

un-Natorpian claim to have found the pure ego in a ldquopure grasp of the givenrdquo that is in intuitive evidence

Another note states that the pure ego is ldquoapprehended in carrying out a self-evident cogitordquo (Hua

XIX1368544) Natorp had denied the phenomenality of the ego it can neither be objectified nor present

itself at all without ceasing to be genuinely ldquosubjectrdquo For Husserl however this argument is merely verbal

The ego is there as a fact an object in its own appropriate manner To claim otherwise is tantamount to

consigning the ego to the realm of myth (Hua XIX1373ndash76549ndash51)rdquo Op cit p31 Cf Tambeacutem

HEIDEGGER 2006 p 124

30

que nisso ordinariamente chamado de juiacutezo estaacute embutida uma apreciaccedilatildeo em

funccedilatildeo de um valor a qual natildeo se confunde com o conjunto de formaccedilotildees

conceituaisrdquo (RESENDE 2013p40)

O que estaacute em jogo nessa concepccedilatildeo eacute identificar que a apreciaccedilatildeo inerente a todo

juiacutezo natildeo diz nada acerca dos conteuacutedos representativos mas de sua pretensatildeo a um ideal

ou fim uacuteltimo como um horizonte estaacutevel do que eacute verdadeiro eacutetico ou esteacutetico e que

funcionam como paracircmetros avaliativos na accedilatildeo mesma de julgar O que estaacute implicado

nessa tese eacute a concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo As ciecircncias particulares possuem pretensatildeo de

valor universal mas essa universalidade natildeo eacute faacutetica e ldquosua necessidade natildeo eacute causal mas

apenas lsquodeve-serrsquo (sein-solle)Toda proposiccedilatildeo loacutegica eacutetica ou esteacutetica eacute impelida pelo

dever-ser universalrdquo(RESENDE2013p41) e mesmo que sua manifestaccedilatildeo seja

faticamente histoacuterica esse dever-ser da proposiccedilatildeo loacutegica deve ser reconhecido como

universal e incondicionalmente vaacutelido por qualquer ser racional ndash em uma clara assunccedilatildeo

da universalidade moral kantiana mas que agora permeia todos os juiacutezos e natildeo somente

os eacuteticos

Considerando os juiacutezos em funccedilatildeo de sua apreciaccedilatildeo Windelband descreve trecircs

tipos de juiacutezos Os juiacutezos satildeo teoacutericos (segundo a apreciaccedilatildeo verdadeirofalso) juiacutezos de

gosto (segundo a apreciaccedilatildeo belofeio) e os juiacutezos eacuteticos (segundo a apreciaccedilatildeo

bommau) Os fenocircmenos psiacutequicos satildeo as representaccedilotildees neutras em sua manifestaccedilatildeo

Assim como comportamentos da apreciaccedilatildeo os juiacutezos ganham sua forma loacutegica nas

figuras judicativas juiacutezos afirmativos juiacutezos negativos juiacutezos problemaacuteticos Essa uacuteltima

forma suspende a apreciaccedilatildeo mas pela pergunta ndash que natildeo eacute propriamente um juiacutezo-

condiciona a possibilidade de julgar portanto se refere a uma etapa mesmo que preacutevia

agrave tomada de posiccedilatildeo apreciativa

Aqui reside o ponto decisivo enquanto para Windelband a loacutegica claacutessica (de

Aristoacuteteles a Kant) se ocupou dos elementos meramente gramaticais - sendo os juiacutezos

coincidentes com as representaccedilotildees na medida que bastava afirmaacute-las ou negaacute-las - a

apreciaccedilatildeo por sua vez aparece como constituidora do conceito presente nas formaccedilotildees

gramaticais pois dizer algo eacute antes apreciar a sua posiccedilatildeo existencial (com fim ao ideal

da mateacuteria em questatildeo eacutetico esteacutetico etc) de forma a negaacute-las ou afirmaacute-las Em outras

palavras para que o conhecimento seja possiacutevel natildeo eacute suficiente a recepccedilatildeo passiva das

representaccedilotildees mas eacute fundamental uma atividade valorativa que constitui um conceito

31

no reconhecimento de seu conteuacutedo sentido e validade na sua pretensatildeo de necessidade

e universalidade Algo lsquoeacutersquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento e

ldquoa pesquisa desses valores com pretensotildees universais () eacute o objeto de estudo da

filosofiardquo (RESENDE 2013p41) Essa posiccedilatildeo seraacute retomada e desenvolvida por

Rickert

Assim como Windelband Heinrich Rickert (1863-1936) coloca o problema na

forma metodoloacutegica ou seja a pesquisa dos valores como meacutetodo de base para a filosofia

e busca assim determinar o criteacuterio de validade do conhecimento atraveacutes do elemento que

confere sua objetividade ou o que pode ser identificado como o crucial para a diferenccedila

entre os enunciados arbitraacuterios e as proposiccedilotildees vaacutelidas do conhecimento efetivo

elemento que Rickert denomina ldquoobjeto do conhecimentordquo como o tiacutetulo mesmo de sua

obra principal indica ldquoDie Gegenstand der Erkenntnisrdquo (revista em seis ediccedilotildees

diferentes entre 1892 e 1928)

Aprofundando as investigaccedilotildees de seu mestre Rickert difere conceitos

ontoloacutegicos de conceitos axioloacutegicos diferenccedila oculta na linguagem ordinaacuteria e que se

torna clara na observaccedilatildeo acerca da concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo ldquoEnquanto para Kant o

problema eacute a impossibilidade de explicar o fato de como a razatildeo teoacuterica pode ser praacutetica

para Rickert o problema eacute o fato de que a razatildeo jaacute eacute sempre praacutetica em seu uso teoacuterico

purordquo (RESENDE 2013p45) e isto natildeo pelo fato de juiacutezos teoacutericos dependerem da lei

moral mas pela convicccedilatildeo acerca dos conteuacutedos mesmos do conhecimento Se a

representaccedilatildeo satildeo processos psiacutequicos elementares e neutros a convicccedilatildeo soacute eacute possiacutevel

pela razatildeo praacutetica Para melhor visualizaccedilatildeo do problema quando digo ldquoS eacute Prdquo ou ldquoS eacute

um sujeitordquo (e aiacute estaacute tambeacutem seu conceito por exemplo ldquohomemrdquo) ou ainda ldquoP eacute um

predicadordquo (e tambeacutem utilizo um conceito por exemplo ldquoracionalrdquo) o que me autoriza

dizer ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo Segundo Rickert eacute a convicccedilatildeo praacutetica fundada no

sentimento (Gefuumlhl) de ldquovontade de verdaderdquo (Willen zur Wahrheit) que impele a busca

da verdade Eacute esse sentimento que possibilita a tomada de posiccedilatildeo que aprova ou

desaprova expresso por fim em um juiacutezo Somos impelidos pelo dever na medida em

que somos livres a buscar a verdade Mas eacute importante considerar que

ldquoApesar de o sentimento ser o paracircmetro para a tomada de posiccedilatildeo do juiacutezo o

dever natildeo deriva do sentimento pois isso seria derivar o dever do ser O dever

natildeo pode ser confundido com a necessidade causal do sentimento Na verdade

32

na proacutepria constataccedilatildeo do sentimento jaacute estaacute pressuposto o dever () Essa

verdade buscada natildeo eacute uma instacircncia ideal mas apenas um postulado um

inalcanccedilaacutevel ideal absoluto de verdade que funciona como moacutebil da atividade

cientiacutefica dos seres moraisrdquo (RESENDE 2013p46)

A razatildeo praacutetica busca a verdade como sua atividade mais proacutepria a partir do dever

impresso na sua proacutepria liberdade expresso no ato praacutetico de tomada de decisatildeo que

culmina na expressatildeo dos juiacutezos (na razatildeo teoacuterica) Se para Kant a accedilatildeo humana livre eacute

impelida a agir conforme a lei moral para Rickert a accedilatildeo humana em seu querer livre -

nem mecacircnico nem bioloacutegico - de um ideal de perfeiccedilatildeo da verdade eacute impelida a agir em

funccedilatildeo do conhecimento e da ciecircncia

Na tentativa de afastar as interpretaccedilotildees psicologistas ou idealistas (natildeo

cientiacuteficas) de sua teoria o valor de verdade para Rickert que eacute garantido pelo dever-ser

eacute observado na evidecircncia como manifestaccedilatildeo psiacutequica do dever mas que pelo seu caraacuteter

de necessidade ultrapassa o indiviacuteduo singular O sentimento de prazer ou desprazer dessa

evidecircncia na estrutura psiacutequica que posiciona o ato praacutetico de tomada de posiccedilatildeo eacute

reconhecido pela sua necessidade transcendente e eacute o elemento do esquema cognitivo que

ldquoestabelece a ponte entre os processos psiacutequicos reais em sua singularidade e

contingecircncia com a universalidade e necessidade transcendental do deverrdquo (RESENDE

2013p47) Mesmo com essas colocaccedilotildees e sobretudo com a postulaccedilatildeo que o dever natildeo

pode ser derivado do ser pelo seu caraacuteter mesmo de liberdade Rickert foi aproximado de

um certo ldquopsicologismo voluntaristardquo pois o valor de verdade na realidade soacute poderia ser

derivado dos processos psiacutequicos tendo em vista que ldquoo dever eacute uma norma psicoloacutegica

que soacute tem sentido lsquopararsquo um sujeito empiacutericordquo (RESENDE 2013p47) E ainda por

mais que sua meta fosse buscar a universalidade e necessidade dos valores ainda assim

esses valores estariam reduzidos ldquoagrave contingecircncia e temporalidade dos processos

psiacutequicos ou seja reduzindo o valor ao serrdquo (RESENDE 2013p48)

Mas como a filosofia dos valores desses autores lida com as pesquisas histoacutericas

enquanto criacutetica do historicismo Para Windelband as ciecircncias positivas satildeo ciecircncias

nomoteacuteticas ou seja operam por uma abstraccedilatildeo que busca o conhecimento universal

atraveacutes da estabilidade de suas leis Jaacute as ciecircncias histoacutericas satildeo ideograacuteficas cujo juiacutezos

natildeo descrevem uma coisa ou estados de coisa enquanto aquilo que eacute mas possuem como

objeto valores que possuem (ou natildeo) validade Validade oferecida em uacuteltima instacircncia

33

pelo juiacutezo em sua forma fundamental como juiacutezo apreciativo Analisar esses valores

requer uma metodologia proacutepria baseada na pesquisa da valoraccedilatildeo como forma de

conhecimento

Para Rickert a filosofia dos valores eacute o fundamento universal para os significados

da histoacuteria e aqui reside o ponto crucial a busca de um ideal absoluto (vontade de

verdade) deve atuar como medida para a realidade individual e histoacuterica sem a qual natildeo

podemos significar a interpretaccedilatildeo da vida histoacuterica e cultural na sua singularidade A

distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor

(Wert) segundo Rickert levaria a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo

de conceitos (Begriffsbildung) e que natildeo se trata de um conhecimento no campo

ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto pelo conceito determinado de maneira formal no

espaccedilo loacutegico-axioloacutegico

Um evento histoacuterico natildeo possui relevacircncia por si soacute eacute a partir da valoraccedilatildeo que

um fato histoacuterico se ldquodiferencia substancialmente de outros na heterogeneidade contiacutenua

a partir de sua individualidaderdquo (Wu R 2010p180) Ou seja o que doa sentido a um

fato histoacuterico na sua individualidade ndash que se destaca dos fluxos indistintos e

heterogecircneos dos acontecimentos - eacute uma realizaccedilatildeo teoacuterica que o valoriza e lhe confere

sentido A histoacuteria eacute portanto possiacutevel e existe como objeto capaz de ser analisado como

ciecircncia pelos valores atribuiacutedos teoricamente a seus eventos

III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos

A crise no modelo teoacuterico tradicional no final do seacuteculo XIX (que apontava

qualquer teoria filosoacutefica como uma lsquocrenccedila justificadarsquo) a reconduccedilatildeo pelos

psicologistas agrave articulaccedilatildeo de argumentos logicamente coerentes baseados na consciecircncia

particular - em que ateacute mesmo os princiacutepios loacutegicos seriam expressatildeo da forma de

conhecimento possiacutevel pela particularidade daquele que conhece- culminam no projeto

husserliano de uma filosofia pura e sem pressupostos

Para Husserl a psicologia baseada no modelo cientiacutefico das ciecircncias naturais leva

agrave particularizaccedilatildeo dos conteuacutedos do conhecimento e nesse modelo a psicologia natildeo

consegue lidar com a universalidade do conteuacutedo dos princiacutepios tornando a relaccedilatildeo entre

34

a realidade e o conhecimento incompatiacuteveis Por mais que a experiecircncia seja particular

as investigaccedilotildees de Husserl o levaram a considerar que a existecircncia humana estaacute em

contato com conteuacutedos que natildeo satildeo particularizaacuteveis A psicologia natildeo deixa clara a

transiccedilatildeo das conexotildees psicoloacutegicas do pensar e a unidade loacutegica de seu conteuacutedo O que

estaacute em jogo para Husserl eacute portanto a relaccedilatildeo entre a subjetividade do conhecer e a

objetividade do conteuacutedo de pensamento

A predominacircncia neokantiana no horizonte universitaacuterio alematildeo e sua maacutexima de

retorno a Kant mantecircm no interior da investigaccedilatildeo termos como por exemplo

lsquoapercepccedilatildeorsquo e lsquorepresentaccedilatildeorsquo Se o neokantismo se volta a Kant tambeacutem sucumbe a

seus limites e nesse movimento revela a insuficiecircncia da investigaccedilatildeo filosoacutefica

condicionada aos sistemas anteriores Para Husserl a filosofia como ciecircncia autocircnoma

requer natildeo um retorno a qualquer teoria mas agraves coisas que agora devem orientar o

pensamento

A tradiccedilatildeo filosoacutefica eacute marcada por uma pretensatildeo a busca da verdade para aleacutem

do que acontece na realidade dos fenocircmenos que nos satildeo acessiacuteveis Ao hipostasiar a

realidade do ser atraveacutes de posturas realistas ou idealistas para assim ter acesso aos

fenocircmenos a tradiccedilatildeo sempre considerou o ser do fenocircmeno para aleacutem do proacuteprio

fenocircmeno13 De maneira diversa Husserl busca os objetos nos proacuteprios campos

fenomecircnicos na medida em que aparecem na dimensatildeo do conhecimento a partir da

proacutepria atividade de pensamento ou seja o objeto que aparece na atividade de

pensamento soacute eacute encontrado na proacutepria atividade por isso natildeo haacute busca ou hipoacutestase

exterior agrave consciecircncia Mas isso natildeo se daacute porque a consciecircncia em seus atos produza ou

determine os significados dos objetos mas sim porque os atos das vivecircncias abrem espaccedilo

para que o objeto se determine no ato mesmo a partir de sua autonomia frente a qualquer

subjetividade particular de pensamento Mas o que queremos dizer com lsquoum objeto que

se determina no ato mesmorsquo Aqui eacute importante destacar sempre que possiacutevel um mal-

entendido em constante revisatildeo a filosofia de Husserl natildeo consiste em um sistema

fechado de proposiccedilotildees as quais poderiacuteamos encaminhar de forma retiliacutenea e deduzir suas

conclusotildees Aqui nessa breve introduccedilatildeo agraves intenccedilotildees do pensamento de Husserl

apresentamos em linhas gerais seu projeto e nos movimentamos a partir do segundo

13 Cf CASANOVA 2013 pp-76-80

35

volume das Investigaccedilotildees Loacutegicas de 1901 e das Ideacuteias para uma fenomenologia pura e

para uma filosofia fenomenoloacutegica publicadas em 1913

Depois dessas consideraccedilotildees atraveacutes das quais foi posta em jogo a noccedilatildeo de um objeto

que se determina no ato mesmo conforme jaacute explicitado nas Investigaccedilotildees eacute requerido

passar agrave explicaccedilatildeo da noccedilatildeo conforme elaborada na obra posterior Ideacuteias O

pensamento de Husserl eacute marcado por uma orientaccedilatildeo especiacutefica a fenomenoloacutegica Essa

orientaccedilatildeo natildeo desconsidera as vaacuterias formas pelas quais podemos ter acesso a objetos

seja pela vida corrente e cotidiana seja pela via cientiacutefica pois ambas estatildeo de acordo

com a orientaccedilatildeo natural A orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica por sua vez se deteacutem no objeto

intencional ou seja o objeto que visado se manifesta agrave consciecircncia conforme seu modo

de doaccedilatildeo fenomecircnico14 Natildeo se trata de um idealismo subjetivo conforme por exemplo

Berkeley mas de uma necessidade de acesso agraves coisas mesmas sem qualquer

pressuposiccedilatildeo sem qualquer movimento que ponha o conhecimento fora da realidade e

que ao mesmo tempo natildeo recaia na descriccedilatildeo ingecircnua da realidade como um conjunto de

impressotildees sensiacuteveis O fenocircmeno que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute

sempre uma doaccedilatildeo com sentidosignificado ldquopois se eacute verdade que os fenocircmenos se

datildeo a noacutes por intermeacutedio dos sentidos eles se datildeo sempre como dotados de um sentido

ou de uma essecircncia Eis porque () a intuiccedilatildeo seraacute uma intuiccedilatildeo da essecircncia ou do

sentidordquo (DARTIGUES 1973p21)

Ao contraacuterio dos neokantianos o modo como Husserl tratou a realidade tornou

improacuteprio o retorno agraves concepccedilotildees filosoacuteficas anteriores Elas natildeo forneciam mais um

caminho vaacutelido para o questionamento filosoacutefico Natildeo era mais suficiente o retorno a

qualquer sistema filosoacutefico fosse para renovaacute-lo - sob esse novo horizonte cientiacutefico -

fosse para retomar seus fundamentos com a finalidade de posicionar a filosofia como

braccedilo de apoio da ciecircncia A fenomenologia pura (puramente descritiva) pertence agrave

pesquisa de uma teoria do conhecimento objetiva na medida em que o modo de apariccedilatildeo

dos fenocircmenos nas vivecircncias do pensamento e do conhecimento seraacute sempre o objeto da

fenomenologia

14 Cf Ideacuteias I Capiacutetulo I

36

A concepccedilatildeo de fenocircmeno na modernidade ganhou diversas acepccedilotildees desde Bacon

ateacute Wolff passando por Descartes e Hobbes Segundo uma noccedilatildeo do senso comum

fenocircmeno eacute a experiecircncia pura e simples do fato considerada sobretudo como

manifestaccedilatildeo empiacuterica da realidade que natildeo pode ser equiparada agrave verdade15 Jaacute para Kant

- na delimitaccedilatildeo feita na primeira Criacutetica do espaccedilo do saber cientiacutefico possiacutevel -

fenocircmeno eacute o objeto especiacutefico do conhecimento humano que aparece sob condiccedilotildees

particulares da estrutura cognosciacutevel do homem a saber de um lado o objeto do

conhecimento depende das bases representativas que satildeo organizadas pelas categorias do

entendimento e de outro dos dados fornecidos pela sensibilidade Resumindo o objeto

de conhecimento para Kant estaacute delimitado pela relaccedilatildeo entre intuiccedilatildeo e conceito Kant

distingue o fenocircmeno - aquilo que eacute possiacutevel conhecer - do nocircumeno aquilo que natildeo se

conhece mas que pode ser pensado enquanto ideia da razatildeo como ldquocoisa em sirdquo Sem

jamais ultrapassar os dados da experiecircncia o sentido fenomenoloacutegico de fenocircmeno de

Husserl supera a distinccedilatildeo kantiana entre nocircumeno e fenocircmeno O fenocircmeno eacute algo que

manifesto revela em si mesmo seu conteuacutedo loacutegico ou essencial Mas a manifestaccedilatildeo do

fenocircmeno deve ser ldquodepuradardquo de qualquer psicologismo pois natildeo deve apenas ser

considerada como manifestaccedilatildeo particular A investigaccedilatildeo filosoacutefica ou melhor a

investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica aqui eacute exigida como meacutetodo para lsquopurificarrsquo o conteuacutedo

objetivo do ato subjetivo

ldquoO caminho que Husserl busca e comandaraacute ateacute em suas uacuteltimas obras a sua

concepccedilatildeo de fenomenologia eacute uma via meacutedia entre esses dois escolhos como

pensar segundo a sua natureza e em cada uma de suas nuanccedilas ndash e portanto sem

jamais ultrapassaacute-los ndash os dados da experiecircncia em sua totalidade Todo o

fenocircmeno e nada mais que o fenocircmeno poder-se-ia dizer O postulado que funda

tal empresa eacute que o fenocircmeno estaacute penetrado no pensamento de logos e que por

sua vez o logos se expotildee e soacute se expotildee no fenocircmeno Apenas sob essa condiccedilatildeo

eacute possiacutevel uma fenocircmeno-logiardquo (DARTIGUES 1973p20)

Aluno de Brentano Husserl ainda radicaliza a teoria da intencionalidade de seu

professor e natildeo mais considera que a consciecircncia se dirija pelo ato intencional agraves

representaccedilotildees empiacutericas da consciecircncia mas agrave objetividade das proacuteprias coisas

detectaacutevel no ato expressivo Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas Husserl apresenta a consciecircncia

como sempre ldquovoltada ardquo ou seja como uma consciecircncia intencional superando natildeo soacute

a noccedilatildeo de consciecircncia como o lsquolugarrsquo das representaccedilotildees que devem ser organizadas por

15 Cf AbbagnoN 2003 p436 Nesse sentido tambeacutem Cf Heidegger 2006 pp26-27

37

exemplo por aparatos internos a priori como tambeacutem qualquer orientaccedilatildeo psicologista

do conhecimento Se a fenomenologia recorre agrave psicologia eacute apenas para a investigaccedilatildeo

descritiva das vivecircncias intencionais e a psicologia descritiva na medida em que se

configura como descriccedilatildeo empiacuterica (cientiacutefica-natural) natildeo pode ser confundida com a

fenomenologia Esta ao contraacuterio mesmo repousando sobre a investigaccedilatildeo descritiva das

vivecircncias intencionais estrato mesmo da psicologia ainda assim possui como

particularidade a descriccedilatildeo pura excluindo qualquer concepccedilatildeo naturalista16

Mas afinal do que se trata nesta ldquodescriccedilatildeo purardquo Eacute na atividade compreensiva em

geral (descriccedilatildeo das vivecircncias intencionais) que Husserl buscaraacute a origem do

conhecimento na anaacutelise dos atos de constituiccedilatildeo de conhecimento dos objetos que ele

vai procurar descrever os movimentos ideais implicados em todo movimento intencional

As investigaccedilotildees gnosioloacutegicas da loacutegica pura expostas nas Investigaccedilotildees loacutegicas

querem lanccedilar as bases e fundamentos seguros como alternativas agraves teorias do

conhecimento empiristas ceacuteticas metafiacutesico-realista e psicologista pretendendo

fundamentar uma verdadeira teoria do conhecimento a partir da filosofia puramente

cientiacutefica Essa anaacutelise se realiza a partir das expressotildees levando em consideraccedilatildeo o

aspecto loacutegico da vivecircncia

ldquoA Fenomenologia analiacutetica de que o loacutegico necessita para os seus trabalhos de

preparaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo diz respeito entre outras coisas e desde logo agraves

lsquorepresentaccedilotildeesrsquo e mais precisamente agraves representaccedilotildees que satildeo expressas

Nestas complexotildees poreacutem o seu interesse primaacuterio vai para as vivecircncias que

estatildeo na funccedilatildeo de significaccedilatildeo as quais se pensam agraves lsquosimplesrsquo expressotildees No

entanto natildeo se pode descurar tambeacutem o lado linguiacutestico-sensiacutevel da complexatildeo

(aquilo que nela constitui a lsquosimplesrsquo expressatildeo) e o modo do seu entrelaccedilamento

com o ato de significar que o anima Eacute bem sabido quatildeo facilmente a anaacutelise das

significaccedilotildees costuma deixar-se guiar pela anaacutelise gramatical de um modo

completamente inadvertido Certamente que dada a dificuldade da anaacutelise direta

das significaccedilotildees seraacute bem-vindo todo e qualquer meio mesmo que imperfeito

de antecipar indiretamente os seus resultados [as significaccedilotildees que o anima] mas

mais ainda que por causa dessa ajuda positiva a anaacutelise gramatical torna-se

importante pelos enganos que traz consigo quando se substitui agrave anaacutelise

propriamente ditas das significaccedilotildeesrdquo (HUSSERL 2012p11)

16 Cf HusserlE Investigaccedilotildees Loacutegicas VolII Introduccedilatildeo sect 6- Aditamentos ndash 3ordm Aditamento

38

A anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a complexidade da vida

intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo eacute possiacutevel a partir da anaacutelise das estruturas

ideais que se apresentam nas vivecircncias da consciecircncia na forma das expressotildees

significativas E se ldquoos objetos para os quais a Loacutegica pura estaacute voltada satildeo desde logo

dados sob vestes gramaticaisrdquo (HUSSERL 2012p3) eacute porque esses dados satildeo embutidos

nas vivecircncias psiacutequicas concretas que ldquotanto em funccedilatildeo de intenccedilatildeo de significaccedilatildeo como

na do preenchimento de significaccedilatildeo () correspondem a certas expressotildees linguiacutesticas

e formam com elas uma unidade fenomenoloacutegicardquo (HUSSERL 2012p3)

O que estaacute em jogo como tarefa da fenomenologia eacute - a partir da unidade entre

intuiccedilatildeo (atividade da consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da

consciecircncia e o preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor

a unidade fenomenoloacutegica desses atos apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo

e preenchimento de significaccedilatildeo para assim encontrar suas distinccedilotildees ideais presentes na

significaccedilatildeo

ldquoDe fato sempre que se trata de conceitos juiacutezos raciociacutenios a Loacutegica pura tem

que ver exclusivamente com estas unidades ideais que denominamos aqui

significaccedilotildees e na medida em que nos esforccedilamos por extrair a essecircncia ideal das

significaccedilotildees dos seus viacutenculos psicoloacutegicos e gramaticais na medida em que

para aleacutem disso temos em vista clarificar as relaccedilotildees aprioriacutesticas de adequaccedilatildeo

agrave objetividade significativa fundadas nessa essecircncia estamos jaacute no domiacutenio da

Loacutegica purardquo(HUSSERL 2012p76)

Enquanto as ciecircncias se movem em direccedilatildeo agraves vaacuterias regiotildees de objetos na

tentativa de compreensatildeo da realidade do mundo Husserl compreende a orientaccedilatildeo

filosoacutefica como investigaccedilatildeo da possibilidade do conhecimento objetivo E nesse sentido

a filosofia de Husserl permanece nos limites de uma criacutetica ao conhecimento

transcendental sem que seu meacutetodo se comprometa com qualquer perspectiva ontoloacutegica

Natildeo porque negue a realidade externa mas porque a reflexatildeo fenomenoloacutegica segundo

Husserl deveria estar direcionada agrave anaacutelise das unidades significativas (Investigaccedilotildees

loacutegicas) e agrave descriccedilatildeo eideacutetica da consciecircncia (Ideacuteias) com o compromisso de esclarecer

a vivecircncia intencional de forma que assim fosse possiacutevel esclarecer as operaccedilotildees de toda

e qualquer consciecircncia inclusive nossa orientaccedilatildeo preacute-reflexiva natural

O vigor da ideia filosoacutefica de ciecircncia tal como elaborada por Husserl residia na

restriccedilatildeo da investigaccedilatildeo agrave coisa mesma A fenomenologia husserliana se restringiu agraves

39

coisas enquanto somos conscientes delas Portanto sem remeter-se ao primado da

autoconsciecircncia da filosofia moderna ela rompeu com a ideia de representaccedilatildeo e por

consequecircncia de adequaccedilatildeo Pois a consideraccedilatildeo a priori da consciecircncia de um sujeito no

modo de questionamento epistemoloacutegico moderno tradicional trazia consigo um

problema inerente a esta pressuposiccedilatildeo a saber a representaccedilatildeo dos elementos externos

pelo aparato interno do sujeito devia ser a cada vez avaliada em sua validade

epistemoloacutegica em sua adequaccedilatildeo agrave consciecircncia Esse problema derivado da

representaccedilatildeo eacute consequecircncia do modo de considerar o sujeito como outro frente ao

mundo A consequecircncia dessa cisatildeo eacute que as representaccedilotildees internas natildeo seriam

suficientes para confirmar a existecircncia do mundo exterior e incapazes de fornecer

elementos conclusivos acerca dos modos de acesso a esse mundo

Husserl aprendeu com Brentano a atitude de recusa a todo e qualquer pressuposto

Mesmo Brentano considerando as representaccedilotildees como uma das bases da atuaccedilatildeo

psiacutequica indica que ldquoa estrutura baacutesica do psiacutequico o que a toda vivecircncia seja inerente

algo objetual a denomina Brentano inexistecircncia intencional Intentio eacute uma expressatildeo

da escolaacutestica que significa dirigir-se a Brentano fala da inexistecircncia intencional do

objetordquo (HEIDEGGER 2006 p39) Nesse sentido a intencionalidade na fenomenologia

husserliana voltada agrave anaacutelise expressiva e natildeo agraves representaccedilotildees torna a questatildeo do

mundo interior ou exterior secundaacuteria O que estaacute em jogo eacute a orientaccedilatildeo da pesquisa pela

condiccedilatildeo do conhecimento que natildeo exclui o mundo e as orientaccedilotildees naturais A suspensatildeo

do mundo exterior na orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica deve-se ao fato de que nesse tipo de

investigaccedilatildeo natildeo se tem nada a dizer sobre ele E nesse sentido a fenomenologia

husserliana que oferece um novo vigor a filosofia do final do seacuteculo XIX apresenta

tambeacutem seu proacuteprio limite

ldquoEm verdade aquela ideia do conhecimento da essecircncia que deveria renovar o

campo do filosofar aquela anaacutelise descritiva do acircmbito imenso da lsquoconsciecircnciarsquo

que teria de anteceder todo conhecimento cientiacutefico e conter todos os seus

pressupostos a priori tinha um limite para aleacutem do qual nem mesmo a

fenomenologia poderia ultrapassar Mesmo um conhecimento fenomenoloacutegico

consumado de todas as essencialidades- dentre as quais tambeacutem se encontram no

campo moral o reino dos lsquovalores ndash natildeo poderia atingir a realidade efetiva do ente

efetivamente real a realidade efetiva da consciecircncia pensante tanto quanto a

realidade efetiva da experiecircncia que ela faz Por mais que a distinccedilatildeo entre o fato

e a essecircncia tenha demarcado o grande campo de pesquisa da fenomenologia ante

as ciecircncias particulares e liberado um trabalho metodologicamente

autoconsciente a factualidade do factual a facticidade a existecircncia natildeo se mostra

40

apenas como algo derradeiro tardio contingente determinado em termos de

conteuacutedo pela intelecccedilatildeo da essecircncia e abarcado segundo toda a sua determinaccedilatildeo

por ela Ao contraacuterio elas tambeacutem se mostram como algo primeiro algo que se

acha agrave base que natildeo pode ser alijado pelo pensamento que suporta por sua vez

todas as intelecccedilotildees da essecircnciardquo (GADAMER 2012p148)

A reduccedilatildeo fenomenoloacutegica natildeo visa reconduzir os fenocircmenos agrave unidade de um

elemento comum mas reconduzir a consciecircncia aos fenocircmenos que se datildeo por si mesmos

e na medida que assim o faz reconhece a existecircncia da base factual na qual o fenocircmeno

pode vir agrave consciecircncia e como um elefante na sala de estar natildeo pode mais ser ignorada

Em outras palavras a investigaccedilatildeo loacutegica o acesso agrave idealidade loacutegica de toda

significaccedilatildeo baseada - mas natildeo reduzida ndash nos atos das vivecircncias psiacutequicas concretas

aponta em uacuteltima instacircncia (mesmo na tentativa de desvio dessa situaccedilatildeo) para o caraacuteter

histoacuterico ou ocasional daquele que pode intencionar significaccedilotildees Mas Husserl natildeo havia

reconhecido esse problema ao diferenciar as expressotildees flutuantes das significaccedilotildees

ideais jaacute na primeira investigaccedilatildeo loacutegica17 O problema neste caso como aponta

Gadamer estaacute exatamente no agente do ato de pensamento pois a base que natildeo pode ser

afastada e que suporta as intelecccedilotildees da essecircncia estaacute necessariamente remetida agravequele

que na accedilatildeo do ato de intelecccedilatildeo eacute finito e histoacuterico ou seja a direccedilatildeo puramente teoacuterica

da fenomenologia de Husserl natildeo deixa de apontar a condiccedilatildeo histoacuterica daquele que pode

realizar qualquer teoria elemento que vai se tornar decisivo para a fenomenologia de

Heidegger

ldquoA doutrina do juiacutezo e de sua fundamentaccedilatildeo a anaacutelise claacutessica da percepccedilatildeo a

distinccedilatildeo loacutegica entre expressatildeo e significado mas sobretudo tambeacutem aquela

17 No sect26 da I Investigaccedilatildeo Loacutegica ldquoExpressotildees essencialmente ocasionais e expressotildees objetivasrdquo

Husserl analisa significaccedilotildees que podem variar de caso a caso ou significaccedilotildees variantes Ele diferencia as

ldquoexpressotildees essencialmente subjetivas e ocasionaisrdquo (por exemplo ldquoeu desejo sorte a vocecircrdquo ou ldquoisto [aqui

que vejo agora] eacute um catildeordquo) das ldquoexpressotildees objetivasrdquo nas quais o que estaacute em questatildeo eacute o teor sonoro

significativo sem necessidade de se ter agrave vista a pessoa que expressa ou a circunstacircncia da expressatildeo Desde

os paraacutegrafos iniciais da primeira investigaccedilatildeo Husserl se preocupa em indicar que a palavra possui ldquofunccedilatildeo

de significaccedilatildeordquo isso quer dizer que a significaccedilatildeo natildeo eacute sustentada pela palavra mas que ela remete a

significaccedilatildeo agrave coisa mesma e nesse sentido para Husserl a ocasionalidade da expressatildeo natildeo prejudica a

unidade ideal de cada uma das expressotildees Contudo o autor natildeo deixa de reconhecer a esfera das expressotildees

ocasionais referidas ao sujeito e sua especificidade como falante identificadas por determinaccedilotildees como

aqui laacute ontem amanhatilde e ainda construccedilotildees expressivas com artigos definidos Essas expressotildees trazem a

referecircncia ao proacuteprio falante e agrave sua situaccedilatildeo ldquode tal maneira que a significaccedilatildeo autecircntica da palavra se

constitui pela primeira vez com base na respectiva representaccedilatildeo desse lugar Por um lado a significaccedilatildeo

eacute sem duacutevida genericamente conceitual porquanto aqui denomina em geral um lugar enquanto tal mas

a este geral junta-se a representaccedilatildeo direta do lugar variando de caso para caso que sob dadas

circunstacircncias do discurso eacute apontada atraveacutes desta representaccedilatildeo conceitual indicativa do aqui e lhe estaacute

subordinadardquo (HUSSERL 2012 p71)

41

descriccedilatildeo incomparavelmente exata e penetrante da consciecircncia interna do tempo

na qual precisaria se construir todo sentido de duraccedilatildeo e de validade atemporal ndash

todos esses eram temas fenomenoloacutegicos de Husserl que emergiram de um

intuito fundamental puramente teoacuterico e que estavam cindidos por um hiato

ontoloacutegico do ponto de partida de Heidegger da experiecircncia pragmaacutetica da vida

da percepccedilatildeo dirigida pelo significado praacutetico do ente agrave matildeo da temporalidade

do ser-aiacute a temporalidade essa que se tomava como movimento da

existecircnciardquo(GADAMER 2012 p154)

Desse modo Heidegger busca um acesso agrave mostraccedilatildeo dos fenocircmenos a partir da

temporalidade existencial do homem e assim compreender como a significaccedilatildeo de todo

e qualquer ente estaacute remetida agrave facticidade (Faktizitaumlt) daquele ente em que algo como

um fenocircmeno pode vir ao encontro

A partir desta breve apresentaccedilatildeo vamos investigar no proacuteximo capiacutetulo (1) A

criacutetica feita por Heidegger a essas trecircs tentativas de superaccedilatildeo da crise da filosofia no

seacuteculo XIX a) a posiccedilatildeo essencialmente teoacuterica da filosofia dos valores e sua

impossibilidade de se apresentar como filosofia originaacuteria b) ao primado da consciecircncia

em Husserl c) a determinaccedilatildeo metodoloacutegica (teoacuterica) da hermenecircutica de Dilthey

Tentaremos compreender (2) como essa problemaacutetica da virada do seacuteculo XIX para o

seacuteculo XX forneceu os princiacutepios que motivaram o pensamento heideggeriano agrave busca

da filosofia como ciecircncia originaacuteria e a partir da anaacutelise dos limites das ditas teorias a

questatildeo do sentido do conhecimento se mostra articulada com outra questatildeo ainda mais

fundamental o sentido do ser e (3) como a recepccedilatildeo da fenomenologia de Husserl por

Heidegger - considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio do meacutetodo fenomenoloacutegico

como indicativo-formal - evidencia a imersatildeo de todo significado em um contexto

hermenecircutico historicamente dado

42

Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica

Mas a vida captada em sua forma irredutiacutevel jaacute sem ornato ou comentaacuterio meloacutedico vida a que aspiramos como paz no cansaccedilo (natildeo a morte) vida miacutenima essencial um iniacutecio um sono

menos que terra sem calor sem ciecircncia nem ironia o que se possa desejar de menos cruel a vida em que o ar natildeo respirado mas me envolva () Natildeo o morto nem o eterno ou o divino apenas o vivo o pequenino calado indiferente e solitaacuterio vivo Isso eu procuro (Vida Menor Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

No capiacutetulo anterior indicamos que o desenvolvimento das ciecircncias positivas

particulares no final do seacuteculo XIX emerge a discussatildeo acerca do sentido e possibilidade

do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo buscou uma filosofia

propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana a autonomia da filosofia

frente agrave ciecircncia positiva E a contribuiccedilatildeo de Dilthey cujo pensamento mesmo imerso

nas exigecircncias positivistas de seu tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda

interpretaccedilatildeo e apresenta o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico

Acreditamos que percorrendo esse caminho podemos compreender no presente capiacutetulo

como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere Heidegger no interior da referida

discussatildeo pelo sentido do conhecimento18 Mas ao mesmo tempo tentaremos mostrar

18 A inserccedilatildeo de Heidegger na discussatildeo pelo sentido do conhecimento que apontamos aqui eacute diferente da

proposta de Crowell (2001) Grosso modo o argumento central de Crowell que atravessa todo o livro eacute a

negaccedilatildeo de uma ruptura radical da abordagem hermenecircutica de Heidegger ndash inclusive no projeto da

ontologia fundamental de Ser e Tempo - frente agrave fenomenologia transcendental de Husserl Crowell

reconhece que os dois projetos natildeo satildeo idecircnticos no entanto no interior do desenvolvimento de seu

pensamento Heidegger teria dado certa continuidade ao projeto husserliano na medida em que ainda pensa

no caraacuteter cientiacutefico da filosofia fenomenoloacutegica (ver pp 129-132) Nossa intenccedilatildeo natildeo eacute travar uma

polecircmica com Crowell pois perderiacuteamos a centralidade do tema de nossa dissertaccedilatildeo Sobre aquele tema

mais especiacutefico conferir tambeacutem Gadamer Verdade e Meacutetodo [260] que faz referecircncia a ele dizendo que

a problemaacutetica de Ser e Tempo natildeo escapa por completo agrave reflexatildeo transcendental Natildeo temos duacutevida de

que Heidegger estaacute comprometido com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do sentido do

conhecimento na medida em que teve profundo contato natildeo soacute com o pensamento neokantiano ndash sobretudo

atraveacutes de Rickert - mas tambeacutem com a fenomenologia de Husserl Ora ambas as correntes estavam

43

como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva (considerando o modo de concepccedilatildeo

originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal) e a introduccedilatildeo do elemento

hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com Heidegger a pergunta

fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do conhecimento e passou a

ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto o argumento central de

nosso segundo capiacutetulo eacute que a abordagem hermenecircutica de Heidegger que se daacute no

interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do

conhecimento ao sentido do ser

Aqui nos eacute necessaacuteria uma breve consideraccedilatildeo Eacute puacuteblica a preocupaccedilatildeo filosoacutefica

de Heidegger com a ontologia jaacute desde seu contato com o livro de Brentano Percurso

descrito pelo proacuteprio autor em Meu caminho para a fenomenologia (Mein Weg in die

Phaumlnomenologie 1963)

ldquoA partir de algumas indicaccedilotildees extraiacutedas de revistas filosoacuteficas tinha averiguado

que o modo de pensar de Husserl fora bastante influenciado por Franz Brentano

cuja tese de doutoramento intitulada Da muacuteltipla significaccedilatildeo do ente em

Aristoacuteteles (1862) tinha sido justamente desde 1907 o guia e o criteacuterio das

minhas primeiras e desajeitadas tentativas de penetrar na filosofia De uma forma

bastante imprecisa o que me movia era a seguinte reflexatildeo lsquose o ente se diz com

significados muacuteltiplos qual seraacute entatildeo o significado fundamental e condutor O

que significa serrsquordquo (HEIDEGGER 2009 p3)

Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido

de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a

teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo

do sentido de ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir

da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para

uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no

curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER (GA20) 2006 p122)19

o elemento hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave

profundamente engajadas com o problema do conhecimento Nosso argumento central ndash defendido no

primeiro capiacutetulo ndash eacute o de que acontece uma virada A abordagem hermenecircutica de Heidegger faz mudar

a questatildeo pelo sentido do conhecimento para a questatildeo do sentido do ser dos entes em geral Revelando

assim o caraacuteter derivado (de uma situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento Cf STEIN E

2008 4ed pp21-30 19 ldquoLa pregunta por el ser surge de la criacutetica inmanente al curso da la propia investigacioacuten

fenomenoloacutegicaresponder en parte a ella constituye el verdadeiro assunto de estas leccionesrdquo opcit p122

44

fenomenologia que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos

fenocircmenos em seu ser Seraacute essa a direccedilatildeo de nosso capiacutetulo

Nele ainda natildeo entraremos na obra central de nosso trabalho abordaremos algumas

preleccedilotildees entre os anos de 1919 e 192520 para expor como a partir da discussatildeo acerca

do sentido do conhecimento e do lugar proacuteprio agrave filosofia Heidegger se posiciona frente

agraves tentativas de pensamento dos Neokantianos de Dilthey e de Husserl Nossa intenccedilatildeo

natildeo eacute interpretar as referidas preleccedilotildees como processos evolutivos de pensamento de

nosso autor como que para esclarecer em termos de causa e efeito a publicaccedilatildeo posterior

ldquomais madurardquo de Ser e Tempo Mas antes destacar como as questotildees desses textos

acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a problemaacutetica cujo

desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927

I - Os limites da filosofia dos valores

No primeiro semestre do poacutes-guerra num contexto de recuperaccedilatildeo da

normalidade da vida cotidiana que obviamente se estendia ao ensino universitaacuterio ocorre

a preleccedilatildeo A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo (GA5657) tiacutetulo

uma das primeiras liccedilotildees do jovem professor em Friburgo em 1919 as quais pretendiam

desenvolver e solucionar parcialmente a ideia de ciecircncia que persegue uma posiccedilatildeo

metodoloacutegica genuiacutena natildeo desfigurada ou seja natildeo afetada por nenhuma teoria e livre

dos prejuiacutezos herdados Para tanto exigia-se voltar agrave esfera da simples consciecircncia

imediata da vida

ldquoA ideia cientiacutefica perseguida eacute tal que uma vez alcanccedilada uma posiccedilatildeo

metodoloacutegica verdadeiramente genuiacutena somos forccedilados a sair e dar um passo

aleacutem de noacutes mesmos para voltar metodologicamente naquela esfera que sempre

permanece alheia a problemaacutetica da ciecircncia que se pretende fundarrdquo21

(HEIDEGGER (GA5657) 2005p 3)

20 HEIDEGGER GA17 GA 61 GA63 GA 5657 e GA62 As traduccedilotildees utilizadas encontram-se na

bibliografia ao final do trabalho 21 ldquoLa idea cientiacutefica que se persigue es de tal naturaleza que una vez alcanzamos una posicioacuten

metodoloacutegica realmente genuina nos vemos obligados a salir y dar un paso maacutes allaacute de nosotros mismos

para volver metodoloacutegicamente sobre aquella esfera que siempre permanece extrantildea a la problemaacutetica maacutes

propia de la ciencia que se pretende fundarrdquo Opcitp3

45

Essa transformaccedilatildeo do meacutetodo natildeo eacute algo arbitraacuterio ou advindo de uma posiccedilatildeo

filosoacutefica mas ldquose evidencia como uma necessidade que se funda na natureza objetiva do

problema como tal e que responde agrave especiacutefica constituiccedilatildeo dos problemas da ciecircncia em

geralrdquo22 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p3) A ciecircncia e seus modelos teoacutericos

irrompem na consciecircncia imediata da vida e a transformam na medida em que trazem

uma nova atitude da consciecircncia a qual se desenvolve no caraacuteter dinacircmico e moacutevel da

vida do espiacuterito ldquoContudo essa irrupccedilatildeo da ideia de ciecircncia no contexto da consciecircncia

natural da vida soacute se daacute em um sentido primordial e radical no marco de uma filosofia

entendida nos termos de ciecircncia originaacuteriardquo23 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p4)

Aqui eacute possiacutevel observar natildeo apenas o mesmo vocabulaacuterio husserliano mas

tambeacutem a mesma tarefa reconduzir a filosofia ao seu lugar de ciecircncia originaacuteria

diferenciando-se dos outros tipos de ciecircncias (biologia fiacutesica psicologia histoacuteria

antropologia etc) Como indica Jeacutesus Adriaacuten Escudero em sua nota de apresentaccedilatildeo agrave

traduccedilatildeo no texto de 1919 eacute possiacutevel observar a linguagem filosoacutefica dos Neokantianos

de Baden (Windelband e Rickert) de Natorp a linguagem fenomenoloacutegica de Husserl e

talvez as primeiras formulaccedilotildees de uma linguagem proacutepria por exemplo Welten

(mundiar) ou das Wie (O como) Mas para noacutes o decisivo eacute notar que se os princiacutepios

que motivam essa investigaccedilatildeo inserem Heidegger no debate de sua eacutepoca (no contexto

da busca de uma filosofia propriamente cientiacutefica) poreacutem no curso de seu pensamento e

na anaacutelise das posiccedilotildees filosoacuteficas que intentam o mesmo objetivo a abordagem da

filosofia como ciecircncia originaacuteria recoloca a problemaacutetica no aspecto propriamente

hermenecircutico e natildeo teoacuterico da vida Se a filosofia eacute ciecircncia originaacuteria eacute a partir desse

aspecto primaacuterio que ela deve se movimentar

Em A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo o modo de

reconduccedilatildeo a essa originariedade jaacute natildeo obedeceraacute aos mesmos moldes da fenomenologia

husserliana Jaacute nessa primeira liccedilatildeo Heidegger nos propotildee uma reconduccedilatildeo da filosofia

(ao seu lugar basilar de toda e qualquer ciecircncia teoacuterica e derivada) que eacute a reconduccedilatildeo agrave

22 ldquomaacutes bien se evidenciaraacute como una necesidad que se funda en la naturaleza objetiva del problema como

tal y que responde a la especiacutefica constitucioacuten de los problemas de la ciencia en generalrdquo Op cit p3 23 ldquoSin embargo esta irrupcioacuten de la idea de ciencia en el contexto de la conciencia natural de la vida soacutelo

se da en un sentido primordial y radical en el marco de una filosofiacutea entendida en teacuterminos de ciencia

originariardquo Opcitp4

46

vida humana na sua imediatidade como fenocircmeno primaacuterio e fundamental Mesmo que

natildeo estejam aiacute desenvolvidas eacute claro as posiccedilotildees de Ser e Tempo como por exemplo o

ldquoser-em-o mundo em geral como constituiccedilatildeo fundamental do Daseinrdquo teses expostas e

desenvolvidas principalmente nos sect12 e 13 da obra de 1927 jaacute era possiacutevel encontrar

alguns elementos da hermenecircutica da facticidade Em 1919 a direccedilatildeo dada a uma filosofia

era a de que devia ocupar-se da vida e assim a proacutepria renovaccedilatildeo da universidade naquele

contexto de reconstruccedilatildeo do poacutes-guerra ldquoimplica[va] um renascimento da autecircntica

consciecircncia cientiacutefica e de seus laccedilos com a vidardquo24 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p

5) Indicaccedilatildeo que se articula com as liccedilotildees posteriores do autor mas que ganha seu

esclarecimento radical em 1923 no Relatoacuterio Natorp na medida em que a apropriaccedilatildeo da

filosofia aristoteacutelica por Heidegger mostra que a vivecircncia e sua relaccedilatildeo de sentido com

todo ente ocorre na ocupaccedilatildeo praacutetica como condiccedilatildeo primaacuteria de conhecimento com o

mundo condiccedilatildeo essa que coincide com a situaccedilatildeo hermenecircutica de toda ontologia

Antes de expormos as linhas gerais do desenvolvimento do texto eacute necessaacuterio

tentar esclarecer o que Heidegger quer dizer com a expressatildeo ldquoconcepccedilatildeo de mundordquo

(Weltanschauung) Para a filosofia segundo nosso autor visatildeo de mundo cosmovisatildeo

ou concepccedilatildeo de mundo natildeo satildeo termos que funcionam como uma direccedilatildeo de

comportamento no interior do mundo direccedilatildeo essa justificada desenvolvida e capaz de

orientar os seres humanos Tambeacutem natildeo oferecem uma visatildeo teoacuterica geral da histoacuteria e

da realidade a partir da qual as ciecircncias pudessem desenvolver-se Assumindo uma

perspectiva bem geral esses satildeo os problemas das filosofias de Windelband e Rickert (e

em certa medida tambeacutem os de Dilthey) contra os quais Heidegger vai se opor nessa

liccedilatildeo Pois o que aiacute estaacute em jogo natildeo eacute a postulaccedilatildeo teoacuterica do que eacute a vida histoacuterica mas

a compreensatildeo do acircmbito fundamental da realidade imediata da vida que proporciona

algo como ldquovisatildeo de mundordquo E desse modo a relaccedilatildeo entre ldquofilosofiardquo e o ldquoproblema

da concepccedilatildeo de mundordquo na conjunccedilatildeo expressa ldquoerdquo natildeo significa a relaccedilatildeo de duas

esferas diferentes mas sim o mesmo acircmbito pois a concepccedilatildeo de mundo potildee em

evidecircncia a natureza e a busca da filosofia ldquoconcepccedilatildeo de mundo como tarefa da

24 ldquoLa renovacioacuten de la universidad implica un renacimiento de la auteacutentica conciencia cientiacutefica y de sus

lazos con la vidardquo Opcitp5

47

filosofia quer dizer uma consideraccedilatildeo histoacuterica da maneira em que a filosofia resolveu

em cada caso esta tarefardquo25 (HEIDEGGER (GA5657) 2005p9)

Como sugere a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Heidegger considera que a

fundamentaccedilatildeo sem preconceitos da filosofia como ciecircncia originaacuteria deve desenvolver-

se a partir de um processo metodoloacutegico ldquoA ideia de ciecircncia exige implicitamente um

desenvolvimento metodoloacutegico dos problemas e nos coloca a tarefa da explicaccedilatildeo

preliminar do verdadeiro problema [que nos ocupa]26rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005

p6) Essa explicaccedilatildeo se desenvolve natildeo como hipoacutetese a ser demonstrada mas a partir

da anaacutelise das filosofias precedentes e de suas preconcepccedilotildees que podem distorcer o tema

da investigaccedilatildeo como elas se aproximaram da vida e como se relacionam com a noccedilatildeo

de ciecircncia

Como mostramos anteriormente jaacute na escola de Baden influenciado pela filosofia

dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade dos juiacutezos

cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de conciliar

ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) Para a escola de Baden as

leis naturais levam agrave explicaccedilatildeo mas eacute a norma de um valor ideal a condiccedilatildeo de um

pensamento verdadeiro Rickert retoma as consideraccedilotildees de Windelband e potildee o

problema em uma base filosoacutefica radical como instrumento metodoloacutegico Entre os sectsect

de 6 e 9 do texto A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo jaacute esboccedilando

algumas consequecircncias problemaacuteticas Heidegger expotildee os elementos principais das

teorias desses autores E se pergunta se aquele meacutetodo que tem a pretensatildeo de clarificar

a relaccedilatildeo entre filosofia e visatildeo de mundo poderia se tornar um meacutetodo seguro para a

realizaccedilatildeo da filosofia como ciecircncia originaacuteria A partir do sect 10 Heidegger inicia a criacutetica

propriamente dita ao meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico do Neokantismo de Baden Um dos alvos

de sua investigaccedilatildeo foi como a ldquodoaccedilatildeo idealrdquo elemento central do meacutetodo na medida

em que eacute o conteuacutedo com pretensatildeo de necessidade e universalidade dos juiacutezos acaba por

revelar o desconhecimento da problemaacutetica acerca da ciecircncia originaacuteria por essa escola

Para tanto Heidegger faz ldquoa pergunta decisiva quais satildeo as formas e normas necessaacuterias

25 ldquoConcepcioacuten del mundo como tarea de la filosofiacutea es decir una consideracioacuten histoacuterica de la manera en

que la filosofiacutea ha resuelto en cada caso esta tareardquo Opcitp9 26 ldquoLa idea de ciencia exige impliacutecitamente un desarrollo metodoloacutegico de los problemas y nos plantea la

tarea de una explicacioacuten preliminar del verdadero problema [que nos ocupa]rdquo Opcit p6

48

que permitem ao pensamento alcanccedilar a validez universal e assim cumprir o propoacutesito

da verdade27rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p50)

A anaacutelise eacute feita em dois momentos a) Consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo b)

aplicaccedilatildeo do meacutetodo

Para a consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo o importante eacute delinear o aspecto

fundamental que sustenta seus paracircmetros Heidegger aponta que para a escola de Baden

as determinaccedilotildees necessaacuterias do pensamento satildeo aquelas que configuram o pensamento

agrave finalidade ideal (validez universal) como condiccedilatildeo de verdade pois o pensamento com

valor deve responder a um dever-ser Pois bem de posse desse elemento basilar eacute na

aplicaccedilatildeo do meacutetodo que se revelaratildeo os problemas

A aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico consiste em a partir do material

fornecido pelos processos psiacutequicos dirigir a visatildeo ao aspecto ideal do pensamento e a

partir daiacute determinando o proacuteprio material ordenando seus elementos em funccedilatildeo de seu

aspecto ideal Portanto ldquoO nuacutecleo de todo o meacutetodo baseia-se no ideal do pensamento

mais precisamente em trazer agrave presenccedila a doaccedilatildeo do ideal28rdquo (HEIDEGGER (GA5657)

2005 p51) Em suma o ideal eacute normativo e dirige a consciecircncia agrave finalidade do

pensamento

ldquoEstamos aqui perante o mesmo problema da circularidade O meacutetodo criacutetico-

teleoloacutegico afirmaria poder determinar o ideal do pensamento isto eacute a verdade

a partir dos pensamentos verdadeiros no entanto o que tenho ante mim satildeo

pensamentos verdadeiros (ocorrecircncias factuais no mundo) mas natildeo a verdade

pois esta eacute um ideal Por outro lado para ter pensamentos verdadeiros ante mim

eu preciso selecionar entre os pensamentos aqueles que satildeo verdadeiros o que

novamente eu soacute posso fazer se jaacute tenho de antematildeo o ideal a verdaderdquo

(RABELO 2013 p28)

A partir daiacute em seu estilo muitas vezes categoacuterico Heidegger demonstra ser

supeacuterfluo o sentido do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e o acusa de em uacuteltima instacircncia nem

mesmo conseguir esclarecer seus pressupostos deixando obscuras questotildees como ldquoa

doaccedilatildeo ideal possibilita uma relaccedilatildeo de apreciaccedilatildeo e de seleccedilatildeo com o material dado mas

27 ldquoAhora surge la pregunta decisiva iquestcuaacuteles son las formas y normas necesarias que permiten al

pensamiento alcanzar la validez universal y cumplir asiacute con el fin de la verdadrdquo Opcitp50

28 ldquoEl nuacutecleo de todo el meacutetodo descansa en el ideal del pensamiento con mayor precisioacuten en traer a la

presencia la donacioacuten del idealrdquo Opcitp51

49

como trago agrave minha consciecircncia o ideal de pensamentordquo ldquoo que significa validez

universal para esse pensamentordquo ldquoO que significa ser verdadeiro para o pensamento

para que ele seja universalmente vaacutelidordquo Nas palavras de nosso autor

ldquoA anaacutelise estrutural do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico mostra que este meacutetodo

pressupotildee em seu sentido mais proacuteprio e como condiccedilatildeo de sua proacutepria

possibilidade justamente aquilo que deve alcanccedilar Natildeo pode encontrar em si

mesmo seu proacuteprio fundamento posto que o ideal jaacute tem que estar dado como

criteacuterio de valoraccedilatildeo criacutetica da norma para levar a cabo a tarefa impliacutecita no

meacutetodordquo29 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p52)

Se a anaacutelise da natureza e aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico fizeram

despontar a primeira criacutetica acerca de sua impossibilidade Heidegger aprofunda sua

criacutetica tendo em vista o aspecto central de sua liccedilatildeo E portanto aponta o

desconhecimento acerca da problemaacutetica da ciecircncia originaacuteria por essa escola

ldquoJaacute vimos que o movimento do meacutetodo mais exatamente a implementaccedilatildeo do

mesmo inclui o ter presente o ideal o fim o dever-ser O ideal tem

evidentemente um conteuacutedo umas determinaccedilotildees substantivas Contudo eacute um

ideal natildeo eacute um conteuacutedo real e efetivo senatildeo um modo de dever-ser Frente a

todo ser o caraacuteter de obrigatoriedade [inerente ao dever-ser] encerra o momento

da idealidade e da validez supra-empiacuterica Assim pois o conceito do meacutetodo

teleoloacutegico pressupotildee algo mais essencial e algo essencialmente diferente a

doaccedilatildeo do dever ser e se tratando do dever absoluto entatildeo falariacuteamos da

objetividade originaacuteriardquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p53)30

A partir da constataccedilatildeo dessas implicaccedilotildees do meacutetodo Heidegger pergunta qual

eacute o correlato objetivo do dever-ser Em outras palavras qual sua orientaccedilatildeo vital Isso

permanece obscuro e mais ainda que a inclusatildeo do elemento do dever-ser no meacutetodo

aparentemente natildeo se mostre como um vieacutes meramente teoacuterico (na medida em que se

29 ldquoEl anaacutelisis estructural del meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico muestra que este meacutetodo presupone en su sentido

maacutes propio y como condicioacuten de su propia posibilidad justamente aquello que debe conseguir No puede

encontrar en siacute mismo su propio fundamento puesto que el ideal ya tiene que estar dado como criterio de

valoracioacuten criacutetica de la norma para llevar a cabo la tarea impliacutecita en el meacutetodordquo Opcitp52 30 ldquoYa vimos que la puesta en marcha del meacutetodo maacutes exactamente la implementacioacuten del mismo incluye

el tener presente el ideal el fin el deber-ser El ideal tiene evidentemente un contenido unas

determinaciones sustantivas Sin embargo es un ideal no es un contenido real y efectivo sino un modo del

deber- ser Frente a todo ser el caraacutecter de obligatoriedad [inherente al deber-ser] encierra el momento de

la idealidad y de la validez supraempiacuterica Asiacute pues en el concepto del meacutetodo teleoloacutegico se presupone

algo esencialmente maacutes y algo esencialmente diferente la donacioacuten del deber-ser y si se tratara del deber

absoluto entonces hablariacuteamos de la objetualidad originariardquo Opcitp53

50

trata da razatildeo praacutetica) natildeo eacute possiacutevel responder agrave demanda necessaacuteria de uma ciecircncia

originaacuteria pois eacute inconciliaacutevel com a urgecircncia da vida faacutetica

Nesse sentido nos parece que na filosofia criacutetica-transcendental de Rickert o

acesso aos elementos decisivos do meacutetodo em uacuteltima instacircncia eacute realizado a partir das

teorias das ciecircncias positivas Entatildeo a filosofia estaacute obrigada a se posicionar frente agraves

teorias dessas ciecircncias e natildeo propriamente a partir da orientaccedilatildeo vital O

desconhecimento acerca da filosofia como ciecircncia originaacuteria se torna aqui patente pois

ao se revelar que satildeo as teorias dessas ciecircncias que fornecem os elementos para os juiacutezos

valorativos relacionados ao dever-ser a filosofia se torna delas dependente e parece nelas

encontrar ateacute mesmo sua condiccedilatildeo de possibilidade

Heidegger ainda aponta em sua criacutetica um problema que decorre da tentativa de

estabelecer uma relaccedilatildeo entre valor judicativo e dever-ser Para ele na vivecircncia imediata

da vida as relaccedilotildees valorativas natildeo encontram a menor correspondecircncia com o dever-ser

Ouccedilamos as suas palavras

ldquoPela manhatilde entro em meu estuacutedio o sol banha meus livros etc estou alegre

Esta alegria natildeo responde em nenhum caso a um dever-ser A lsquoalegriarsquo como tal

natildeo se oferece a mim em uma vivecircncia marcada pelo dever-ser Devo trabalhar

devo sair para uma caminhada duas motivaccedilotildees duas possiacuteveis razotildees que em

si mesmas natildeo formam parte de meu sentimento de alegria senatildeo que o

pressupotildee Existe portanto um tipo de vivecircncia em que me sinto alegre em que

me daacute algo que tem valor como talrdquo 31(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)

A experiecircncia do valor eacute intransitiva natildeo um juiacutezo mas em seu sentido imanente

ldquoo meacutetodo teleoloacutegico implica indubitavelmente o momento da vivecircncia do dever-serrdquo

(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)32

Ateacute agora o que foi analisado foi o significado do meacutetodo criacutetico- teleoloacutegico e

suas implicaccedilotildees que apontaram para a existecircncia de fenocircmenos mais originaacuterios que

passam desapercebidos aos defensores desse meacutetodo E se o meacutetodo loacutegico-teleoloacutegico

31 ldquoiquestPero se me da todo valor como un deber-ser Evidentemente no Yo experimento las relaciones

valorati- vas sin que intervenga el maacutes miacutenimo momento del deber-ser Por la mantildeana entro en mi estudio

el sol bantildea mis libros etceacutetera estoy alegre Esta alegriacutea no responde en ninguacuten caso a un deber-ser La

laquoalegriacutearaquo como tal no se me da en una vivencia marcada por el deber- ser Debo trabajar debo salir de

paseo dos motivaciones dos posibles razones que en siacute mismas no forman parte de mi sentimiento de

alegriacutea sino que lo pre-supo- nen Existe por tanto un tipo de vivencia en el que me siento alegre en el

que se me da algo que tiene valor como talrdquo Opcitp55 32 ldquoEl meacutetodo teleoloacutegico implica indudablemente el momento de la vivencia del deber-serrdquo Opcitp55

51

estabelece a relaccedilatildeo necessaacuteria entre valor e dever-ser acarretando todas as possiacuteveis

criacuteticas jaacute expostas Heidegger natildeo deixa de reconhecer

ldquoUma coisa eacute evidente Rickert detectou um fenocircmeno significativo quando

identificou o objeto do conhecimento como um dever-ser e o desvencilhou dos

mecanismos psiacutequicos o fenocircmeno da motivaccedilatildeo um fenocircmeno que encontra

seu significado primaacuterio tanto nos problemas do conhecimento como em outros

acircmbitos Uma coisa eacute declarar-algo-como-valor [Fuumlr-Wert-Erklaumlren] e outra

muito distinta eacute tomar-algo-por-um-valor [Wertnehmen] Este tomar-algo-como-

um-valor se pode caracterizar como um fenocircmeno originaacuterio como uma

constituiccedilatildeo da vida em si e para si no entanto o declarar-algo-como-um valor

foi visto como algo derivado algo fundado na esfera teoreacutetica e esse mesmo

fenocircmeno teoreacutetico eacute um elemento constitutivo da vida vivida em si mesma

Pressupotildee levantar o veacuteu teoreacutetico do caraacuteter valorativo como tal A estratificaccedilatildeo

precisa desse fenocircmeno natildeo nos interessa nesse momentordquo

(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p57)33

O que estaacute em jogo aqui eacute a relaccedilatildeo entre verdade e valor pois para Rickert

ldquodistinto do processo psiacutequico real uma ocorrecircncia natural que poderia ser tratada

causalmente destaca-se a legalidade ideal do pensar verdadeiro que se deve obedecer

uma vez que se queira o ideal da verdaderdquo (RABELO 2013 p26) Desse modo algo eacute

capaz de ser analisado como verdadeiro atraveacutes dos valores atribuiacutedos teoricamente

(atraveacutes da anaacutelise do juiacutezo) ao seu material Ou seja a verdade eacute garantida na anaacutelise

judicativa que declara-algo-como-valor Por exemplo a distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na

realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor (Wert) segundo Rickert levaria

a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo de conceitos (Begriffsbildung)

e que natildeo se trata de um conhecimento no campo ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto

pelo conceito determinado de maneira formal no espaccedilo loacutegico-axioloacutegico Portanto

ldquoUma coisa eacute ldquoexplicar por valorrdquo (fuumlr-Wert-erklaumlren) outra eacute ldquotomar-por-valorrdquo

(wertnehmen) O primeiro eacute uma construccedilatildeo teoreacutetica o segundo uma vivecircncia

Estaacute em jogo aqui uma diferenccedila que se insinua na liacutengua alematilde a partir da

33 ldquoRickert detectoacute un fenoacutemeno significativo cuando identificoacute el objeto del conocimiento como un deber-

ser y lo deslindoacute de los mecanismos psiacutequicos el fenoacutemeno de la motivacioacuten un fenoacutemeno que encuentra

su significado primario tanto en el problema del conocimiento como en otros aacutembitos Una cosa es declarar-

algo-como-un-valor [Fuumlr-Wert- Erklaumlren] y otra muy distinta tomar-algo-por-un-valor [Wertnehmen]

Este tomar-algo-por-un-valor se puede caracterizar como un fenoacutemeno originario como una constitucioacuten

de la vida en y para siacute en cambio el decla- rar-algo-como-un-valor se ha de ver como algo derivado como

algo fundado en la esfera teoreacutetica9 y ese mismo fenoacutemeno teoreacutetico es un elemento constitutivo de la vida

vivida en siacute misma Presupone levantar el velo teoreacutetico del caraacutecter valorativo como tal La estratificacioacuten

precisa de este fenoacutemeno no nos interesa en estos momentosrdquo Opcitp57 Essa estratificaccedilatildeo a qual

Heidegger se refere jaacute indica em suas primeiras liccedilotildees o desdobramento posterior acerca da criacutetica agrave

primazia que a filosofia oferece a teoria em detrimento da compreensatildeo praacutetica

52

expressatildeo perceber wahrnehmen literalmente tomar-por-verdadeiro No mesmo

sentido imediato em que aquilo que me aparece na percepccedilatildeo sensiacutevel eacute tomado

como estando aiacute ele mesmo sem a necessidade de uma reflexatildeo aqui quer-se

saber se algo vivenciado eacute no proacuteprio vivenciar tomado como algo valoroso se

eacute experienciado enquanto valoroso ou se posteriormente lhe eacute adicionada esta

referecircncia a valoresrdquo (RABELO 2013 p27)

Desse modo para Rickert verdade e valor judicativo (teoacuterico) se comungam mas

essa comunhatildeo para Heidegger natildeo passa de uma constituiccedilatildeo metodoloacutegica externa e

derivada de uma filosofia teoacuterica Se para Rickert o tomar-algo-como-um-valor natildeo tem

ldquovalor de verdaderdquo como o declarar-algo-como-valor Para Heidegger a verdade do ser

(ser ndashverdadeiro) ou o ldquotomar-por-verdadeirordquo (a vivecircncia) independe do valor e nada

tem a ver com o dever-ser

ldquoDaacute-se o ser-verdadeiro como um valor De maneira alguma e nem se daacute no

segundo caso do juiacutezo histoacuterico [acerca da morte de Napoleatildeo I na ilha de Santa

Elena] Contudo o conteuacutedo objetivo desse juiacutezo tem a forma de um valor no

sentido de [que remete a algo] lsquohistoricamente significativorsquo um novo fenocircmeno

lsquovalorativorsquo que natildeo afeta o ser-verdadeiro como tal ao lanccedilar um papel

metodoloacutegico na constituiccedilatildeo da verdade histoacuterica O ser-verdadeiro (ἀ-λήθεια)

como tal natildeo lsquovalersquo Na alegria como alegria assumo valores na verdade

simplesmente vivo Natildeo apreendo o ser-verdadeiro na e atraveacutes de uma assunccedilatildeo

de valores34rdquo (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p58)

Essas uacuteltimas consideraccedilotildees revelam para Heidegger que o meacutetodo teleoloacutegico

estaacute impregnado de pressuposiccedilotildees pois a cada vez ldquoos fenocircmenos do dever-ser do valor

da assunccedilatildeo de um valor da pergunta se a verdade eacute um valor que descansa em uma

valoraccedilatildeo originaacuteria se fundam em uma determinaccedilatildeo valorativa que se realiza

subsequentementerdquo35 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p62) E essas pressuposiccedilotildees

trazem agrave vista o privileacutegio teoreacutetico dessa filosofia

34 ldquoiquestSe da el ser-verdadero como un valor De ninguna manera y tampoco se da en el segundo caso del

juicio histoacuterico [acerca de la muerte de Napoleoacuten I en la isla de Santa Elena] Sin embargo el contenido

objetivo de este juicio tiene la forma de un valor en el sentido de [que remite a algo] laquohistoacutericamente

significativoraquo un nuevo fenoacutemeno laquovalorativoraquo que no afecta al ser-verdadero como tal si bien juega un

papel metodoloacutegico en la constitucioacuten de la verdad histoacuterica El ser-verdadero (ἀ-λήθεια) como tal no

laquovaleraquo En la alegriacutea como alegriacutea asumo valores en la verdad como verdad simplemente vivo No

aprehendo el ser-verdadero en y a traveacutes de una asuncioacuten de valoresrdquo Opcitp58

35 ldquoAl ampliar el anaacutelisis salieron a escena nuevos presupuestos y pusieron de relieve que el meacutetodo

teleoloacutegico estaacute cargado de presuposiciones los fenoacutemenos del deber-ser de la donacioacuten del deber-ser del

valor de la asuncioacuten de un valor de la pregunta de si la verdad es un valor que descansa en uma valoracioacuten

originaria o de si se funda en una determinacioacuten valorativa que se realiza con lsquoposterioridadrsquordquo Opcitp62

53

ldquoO privileacutegio outorgado ao teoreacutetico repousa na convicccedilatildeo de que o teoreacutetico

representa o estrato baacutesico e fundamental que de alguma maneira funda todas as

esferas restantes Isso se potildee manifesto quando eacute falado por exemplo da

lsquoverdadersquo eacutetica artiacutestica ou religiosa Se diz que o teoreacutetico tem todos os demais

acircmbitos valorativos e eacute capaz de fazer isso na medida em que o teoreacutetico mesmo

se concebe como um valor Eacute necessaacuterio romper este primado do teoacuterico mas natildeo

com a finalidade de proclamar a primazia da praacutetica ou introduzir um outro

elemento que mostra os problemas a partir de uma nova perspectiva mas porque

o teoreacutetico mesmo enquanto tal remete a algo preacute -teoreacuteticordquo 36(HEIDEGGER

(GA5657) 2005 p70)

Para os neokantianos de Baden o ideal absoluto como medida da realidade

empiacuterica como condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do pensamento verdadeiro e ainda como

condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do significado histoacuterico reveste-se da transcendentalidade em

funccedilatildeo do rigor cientiacutefico Para eles o mundo do ser natildeo pode ser confundido com o

mundo do valor pois satildeo os valores como elementos transcendentais que orientam a

constituiccedilatildeo do indiviacuteduo histoacuterico de modo loacutegico A realidade - o espaccedilo ontoloacutegico ndash

estaacute condicionada agrave teoria e em uacuteltima instacircncia o proacuteprio teoreacutetico eacute concebido como

valor Inversatildeo que Heidegger detecta como propriamente afastada do acircmbito imediato

da vida e que como meacutetodo portanto natildeo pode fundar-se como ciecircncia originaacuteria

II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt37 originaacuterio

Diferentemente de Windelband e Rickert que subordinavam a verdade agrave

valoraccedilatildeo em funccedilatildeo do juiacutezo jaacute em 1919 Heidegger indicava a derivaccedilatildeo do teoreacutetico

de uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Apoacutes a investigaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-

36 ldquoAsimismo el privilegio otorgado a lo teoreacutetico reposa en la conviccioacuten de que lo teoreacutetico representa el

estrato baacutesico y fundamental que de alguna manera funda todas las esferas restantes Esto se pone de

manifiesto cuando uno habla por ejemplo de la laquoverdadraquo eacutetica artiacutestica o religiosa Se dice que lo teoreacutetico

tintildee todos los demaacutes aacutembitos valorativos y es capaz de hacer eso en la medida en que lo teoreacutetico mismo

se concibe como un valor Se ha de romper con esta primaciacutea de lo teoreacutetico pero no con el propoacutesito de

proclamar un primado de lo praacutectico o de introducir otro elemento que muestre los problemas desde una

nueva perspectiva sino porque lo teoreacutetico mismo y en cuanto tal remite a algo pre-teoreacuteticordquo Opcitp70

37 Como o verbo ldquodarrdquo em portuguecircs o ldquogebenrdquo em alematildeo pode ser utilizado como verbo bitransitivo no

sentido de dar algo a algueacutem (Ex ldquoIch gebe dir mein Buchrdquo ldquoEu te dou o meu livrordquo) Mas no caso do ldquoes

gibtrdquo eacute utilizado no sentido do verbo ldquohaverrdquo ou ldquoexistirrdquo como por exemplo ldquoEs gibt viele Woumlrter ldquoHaacute

muitas palavrasrdquo ou ldquoExistem muitas palavras) Portanto pensar num ldquoes gibtrdquo originaacuterio eacute referir-se agrave

existecircncia originaacuteria das coisas em outras palavras no modo de aparecimento do que haacute do existente em

seu sentido primaacuterio preacutevio a toda determinaccedilatildeo transitiva possiacutevel nos moldes gramaticais

54

teleoloacutegico em A ideacuteia da filosofia e o problema da visatildeo de mundo o autor apresenta

essa instacircncia primaacuteria como correlata a um ldquoes gibtrdquo originaacuterio haacute e o que haacute eacute mundo

ou melhor um dar-se mundo

Aqui reside a primeira exposiccedilatildeo de nosso argumento A abordagem hermenecircutica

de Heidegger no interior da fenomenologia foi decisiva para o acesso agrave questatildeo do sentido

do ser e no desenvolvimento da referida preleccedilatildeo esse movimento se torna patente

A criacutetica de Heidegger agrave teoria do conhecimento e agraves implicaccedilotildees dessa postura

propriamente teoacuterica em relaccedilatildeo agrave verdade conduz o autor agrave correlaccedilatildeo entre as vivecircncias

e a significaccedilatildeo fenomecircnica como cooriginaacuterias da imersatildeo num mundo que haacute se daacute

existe como mundo circundante As pressuposiccedilotildees da teoria do conhecimento e suas

postulaccedilotildees acerca do ldquosujeitordquo reverberam em uma seacuterie de problemas derivados que

nada dizem acerca das vivecircncias Assim questotildees Como eacute possiacutevel o acesso agrave realidade

exterior Em que medida minha vivecircncia subjetiva alcanccedila a vivecircncia de outro

sujeito Como passar da esfera subjetiva aos dados sensoriais do mundo Como

passar da esfera subjetiva ao conhecimento objetivo satildeo problematizaccedilotildees derivadas

da primazia teoacuterica dada pela filosofia e pelas ciecircncias que ignoram por completo que o

viver do mundo circundante natildeo eacute uma contingecircncia () somente em ocasiotildees

excepcionais estamos instalados em uma atitude teoreacutetica38 (HEIDEGGER(GA5657)

2005 p106)

Lembremos que o que estaacute em questatildeo nessa preleccedilatildeo eacute em que medida a filosofia

pode ser considerada como ciecircncia originaacuteria e qual eacute o seu modo de relaccedilatildeo com a visatildeo

de mundo Nesse sentido a filosofia se mostra como aquela ciecircncia que deve se afastar de

qualquer posiccedilatildeo preacutevia e assim dizer que o viver do mundo circundante natildeo eacute uma

contingecircncia eacute reconhecer aquilo que todo posicionamento teoacuterico quer a cada vez

afastar mas eacute em uacuteltima medida a condiccedilatildeo de possibilidade de sua proacutepria realizaccedilatildeo

teoacuterica Com outras palavras a possibilidade do conhecimento estaacute imersa em bases que

natildeo satildeo elas proacuteprias teoacutericas E nesse sentido quando uma ou outra teoria filosoacutefica

pretende investigar a possibilidade do conhecimento partindo de pressuposiccedilotildees teoacutericas

38 ldquoEl vivir del mundo circundante no es una contingencia sino que radica en la esencia de la vida en y para

siacute por el contrario soacutelo en ocasiones excepcionales estamos instalados en una actitud teoreacuteticardquo

Opcitp106

55

acaba por afundar-se em falsos problemas como ldquoa realidade do mundordquo e ldquoo acesso a

essa realidaderdquo Discussotildees vazias pois o mundo em sua realidade histoacuterica eacute o dar-se

originaacuterio e prescinde de toda e qualquer teorizaccedilatildeo

Na leitura de Heidegger o neokantismo decompotildee o acircmbito originaacuterio da

vivecircncia em conceitos teoacutericos que natildeo formam mais uma totalidade pois a

desvivifica transformando-a num objeto a-histoacuterico e portanto sem significado

O mundar (welten) soacute eacute apreensiacutevel pela visatildeo fenomenoloacutegica que ainda natildeo estaacute

contaminada pelos pressupostos teoreacuteticos que tornam essa experiecircncia uma

relaccedilatildeo objetificante () Heidegger se contrapotildee agrave metodologia teoreacutetica que

pretende objetificar e descrever as vivecircncias mas compreender e apreender as

conexotildees de significado em que jaacute se estaacute submerso A fenomenologia pretende

manifestar isso que se daacute em um soacute golpe o mundo circundante (Umweltliche)

caracteriacutestico do vivenciar primordial(WU R2010 p185)

Mas se a compartimentaccedilatildeo da realidade realizada pelas teorias filosoacuteficas recai

em discussotildees vazias e a vivecircncia primordial prescinde de conceitos teoacutericos isso natildeo

apontaria para um empirismo ou um realismo como possibilidades da filosofia A

filosofia eacute ainda busca e busca originaacuteria Nesse sentido o acesso fenomenoloacutegico ao

mundo circundante orientado pela proacutepria coisa na intuiccedilatildeo imediata eacute para Heidegger

o modo de abrir ldquocientificamenterdquo a esfera da vivecircncia resguardando a orientaccedilatildeo agrave vida

sem qualquer teoria preacutevia

O rigor da cientificidade cultivada na fenomenologia cobra sentido a partir

dessa atitude fundamental e natildeo se pode comparar com o rigor das ciecircncias

derivadas e natildeo originaacuterias Ao mesmo tempo resulta claro porque o problema do

meacutetodo joga um papel central na fenomenologia como em nenhuma outra ciecircncia

() Para o problema que nos ocupa a atitude fundamental da fenomenologia

aponta em uma direccedilatildeo decisiva natildeo construir um meacutetodo desde fora ou desde

acima natildeo idear um novo caminho teoreacutetico por meio de reflexotildees dialeacuteticasrdquo39

(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p133)

Desde o iniacutecio da preleccedilatildeo Heidegger estaacute em busca de um meacutetodo capaz de

alcanccedilar o primaacuterio que estaria na base de qualquer conhecimento Nesse sentido a

39 ldquoEl laquorigorraquo de la cientificidad cultivada en la fenomenologiacutea cobra sentido a partir de esta actitud

fundamental y no se puede comparar con el laquorigorraquo de las ciencias derivadas y no originarias Al mismo

tiempo resulta claro por queacute el problema del meacutetodo juega un papel tan central en la fenomenologiacutea como

en ninguna otra ciencia (Por esta razoacuten todo este curso gira realmente en torno a un problema

metodoloacutegico) Para el problema que nos ocupa la actitud fundamental de la fenomenologiacutea apunta en una

direccioacuten decisiva no construir un meacutetodo desde fuera o desde arriba no idear un nuevo camino teoreacutetico

por medio de reflexiones dialeacutecticasrdquo Opcit p133

56

fenomenologia como retorno agraves coisas mesmas se volta ao dar-se originaacuterio das coisas e

eacute atraveacutes delas que o meacutetodo pode vir a ser desenvolvido Ainda em 1919 natildeo foi exposta

em linhas precisas a fenomenologia como meacutetodo indicativo-formal elemento decisivo

no interior da fenomenologia-hermenecircutica de Heidegger O que iremos abordar mais

adiante

A tentativa de orientar-se pelo dado na vivecircncia pelo que eacute como eacute no mundo

circundante se afasta portanto de qualquer objetificaccedilatildeo A fenomenologia como

meacutetodo eacute a possibilidade de compreensatildeo dos significados que nos vem ao encontro no

mundo circundante e histoacuterico no qual jaacute se estaacute sempre imerso Mas se Heidegger

apresenta a fenomenologia como o meacutetodo que alcanccedila o que vem ao encontro sem

qualquer preacutevia teoria esse acesso natildeo se daacute segundo os mesmos paracircmetros de seu

mestre Husserl

Como vimos na fenomenologia husserliana o modo de aparecimento do

fenocircmeno eacute sempre uma doaccedilatildeo de significado mas o acesso aos fenocircmenos eacute sempre a

partir da anaacutelise dos atos intencionais das vivecircncias na consciecircncia Heidegger recusa o

pressuposto da consciecircncia e pretende que a doaccedilatildeo significativa seja originaacuteria da

vivecircncia imersa no mundo No uacuteltimo momento da preleccedilatildeo de 1919 o autor apresenta

o que seria cooriginaacuteria de qualquer orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica e base de qualquer

ciecircncia teoacuterica a intuiccedilatildeo hermenecircutica Assim a vivecircncia que se apropria do vivido eacute

a intuiccedilatildeo compreensiva a intuiccedilatildeo hermenecircutica () A universalidade do significado

das palavras assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia

vivida40 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 pp141-142) Ou seja a significaccedilatildeo

gramaticalmente revestida natildeo aponta para algo essencial apreendido no ato de

consciecircncia (como compreende Husserl) mas a significaccedilatildeo vivida no mundo

circundante

O princiacutepio dos princiacutepios husserlianos tudo o que se daacute originariamente na

intuiccedilatildeo [] haacute que tomaacute-lo simplesmente como se daacute (Husserl Ideen apud Heidegger

40 ldquoLa vivencia que se apropia de lo vivido es la intuicioacuten comprensiva la intuicioacuten hermeneacuteutica la

formacioacuten originariamente fenomenoloacutegica que vuelve hacia atraacutes mediante retroconceptos y que se

anticipa con ayuda de preconceptos y de la que queda excluida toda posicioacuten teoreacutetico-objetivante y

trascendente La universalidad del significado de las palabras sentildeala primariamente algo originario el

caraacutecter mundano de la vivencia vividardquo Opcitpp141142

57

(GA5657) 2005 p132) eacute dado no interior das conexotildees de significados no es gibt

originaacuterio no mundo que se daacute cooriginariamente agraves proacuteprias vivecircncias

Para Heidegger o uacutenico modo de apreender essa vivecircncia originaacuteria eacute retroceder

ao preacute-teoacuterico por uma abordagem fenomenoloacutegica que faz com que o mundar

do mundo se manifeste enquanto tal Alguns anos mais tarde isso constituiria o

nuacutecleo da ontologia fundamental na perspectiva da temporalidade cujo objetivo

de criacutetica natildeo seria mais de maneira tatildeo detida o neokantismo de Windelband e

Rickert mas a totalidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica da filosofia(WuR2010 p186)

Tendo em vista o ponto central da preleccedilatildeo aqui examinada eacute imprescindiacutevel

notar que em 1919 Heidegger estava debatendo com os problemas de seu tempo a

possibilidade do conhecimento o lugar da filosofia diante da autonomia das ciecircncias

particulares e a articulaccedilatildeo dessa problemaacutetica com a Lebensphilosophie Se ainda natildeo

haacute explicitamente a questatildeo do sentido de ser em geral a preleccedilatildeo possui elementos

decisivos para o desenvolvimento da ontologia fundamental O que queremos enfatizar eacute

como o modo de apariccedilatildeo dos fenocircmenos em seu significado prescinde de toda e qualquer

teorizaccedilatildeo Essa caracteriacutestica fundamental vai permanecer vigente nos desdobramentos

futuros do pensamento de Heidegger e vai se mostrar a cada vez mais intimamente

relacionada agrave ambiccedilatildeo heideggeriana de superar os pressupostos da tradiccedilatildeo filosoacutefica

moderna

ldquoA pergunta acerca da realidade do mundo externo deriva em parte de uma

compreensatildeo superficial da filosofia kantiana ou de outro modo de reflexotildees

colocadas por Descartes Eacute uma questatildeo que em todo momento de modo mais ou

menos expresso ocupou a teoria do conhecimento da modernidade assegurando-

se sempre contudo que naturalmente ningueacutem duvida da realidade do mundo

externo Pois o que nela sempre se daacute por suposto eacute que essa realidade essa

mundanidade do mundo eacute no fundo algo que talvez possa demonstrar-se ou

mais exatamente no caso de nos encontrarmos em condiccedilotildees ideais ao final

haviacuteamos demostrado [essa realidade] E contudo o ser-real do mundo natildeo soacute

natildeo necessita ser demosntrado nem sequer eacute algo que na falta de provas

rigorosas por isso deva ser unicamente objeto de crenccedilardquo41( HEIDEGGER

(GA20) 2006 p270)

41 ldquoLa pregunta acerca de la realidad del mundo externo se deriva en parte de uma comprensioacuten superficial

de la filosofia kantiana o mejor dicho de reflexiones que Descartes planteoacute Es uma cuestiacuteon que en todo

momento de modo maacutes o menos expreso ha ocupado a la teoriacutea del conocimiento de la modernidad

aseguraacutendose siempre no obstante de que naturalmente nadie dudara de la realidade del mundo externo

Pues lo que em ella se da por supuesto es que esa realidad esa mundanidad del mundo es em fondo algo

que quizaacute pueda demostrarse o maacutes exactamente es en caso de que nos encontraacuteramos em condiciones

ideales al final habriacuteamos demostrado Y sin embargo el ser-real del mundo no soacutelo no necessita ser

demostrado ni siquiera es algo que a falta de pruebas rigorosas por eso deba ser unicamente objeto de

creenciardquo Opcitp270

58

Assim a partir dessas consideraccedilotildees eacute possiacutevel indicar que a questatildeo do sentido

do ser em geral ou numa palavra a ldquoontologiardquo para Heidegger pode vir a ser atingida

quando se revela que a fenomenologia natildeo estaacute fundada na epistemologia (a partir da

consciecircncia) e que a hermenecircutica natildeo eacute apenas um instrumento metodoloacutegico de acesso

agrave histoacuteria em sua objetividade O que Heidegger pretende exprimir com o termo ldquointuiccedilatildeo

hermenecircuticardquo eacute a possibilidade de uma compreensatildeo imediata do mundo a qual natildeo estaacute

fundada nas vivecircncias subjetivas O es gibt originaacuterio eacute o mundo que se daacute como campo

hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Com outras palavras natildeo haacute

significados ideais eles aparecem a partir da situaccedilatildeo hermenecircutica compartilhada entre

os homens campo que chamamos de mundo e a compreensatildeo desse campo natildeo eacute

tributaacuteria das vivecircncias psiacutequicas Para tanto eacute preciso esclarecer como Heidegger supera

a consciecircncia husserliana enquanto lugar de apariccedilatildeo dos fenocircmenos e tambeacutem como a

noccedilatildeo heideggeriana de ldquointuiccedilatildeo hermenecircuticardquo pretende superar a vivecircncia psiacutequica de

Dilthey como categoria epistemoloacutegica fundamental Chegamos ao ponto onde se torna

necessaacuterio compreender mais detidamente a apropriaccedilatildeo de Heidegger da hermenecircutica

diltheyniana e da fenomenologia husserliana

II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger

Seguindo inicialmente as indicaccedilotildees expressas no primeiro curso proferido por

Heidegger em Marburg (inverno de 1923-1924) Introduccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo

fenomenoloacutegica (GA17) eacute possiacutevel observar a tentativa do autor de compreender a

fenomenologia como fenomenologia da existecircncia e assim se apropriar de maneira mais

originaacuteria da investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica

O curso se inicia com a interpretaccedilatildeo - mantida em seus principais elementos no

sect7 de Ser e Tempo - dos conceitos de fenocircmeno (φαινόμενον) e loacutegos (λόγος) em

Aristoacuteteles para assim pocircr em evidecircncia a interpretaccedilatildeo segundo a qual nos escritos do

filoacutesofo grego esses conceitos indicam a direccedilatildeo do pensamento e da investigaccedilatildeo

filosoacutefica para o ser do homem como ser-no-mundo

59

A perceptibilidade das coisas estaacute sob a condiccedilatildeo de um determinado ser deste

mundo mesmo O ser condiccedilatildeo se refere a um modo de ser do mundo mesmo Agrave

existecircncia no mundo pertence o ser subsistente do Sol justamente o que

pensamos quando afirmamos eacute de dia Desta forma falamos de um estado de

coisas que pertence ao ser do mundo mesmo Daiacute se segue que φαινόμενον natildeo

quer dizer em primeiro lugar nada mais que um destacado modo de presenccedila do

enterdquo42 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30)

Ainda seguindo a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles Heidegger diz que o conceito de

fenocircmeno na medida em que designa tudo o que mostra a si mesmo natildeo pode ser

reduzido ao que estaacute na presenccedila do dia ou seja que existem coisas que satildeo visiacuteveis na

obscuridade pois o que se mostra a si mesmo se mostra tanto na claridade como na

obscuridade43 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30) Para explicitar essa posiccedilatildeo o autor

recorre agraves categorias aristoteacutelicas essenciais do ente em ato e do ente em potecircncia (ogravev

ἐντελέχεια ogravev δύναμις) A obscuridade torna-se tambeacutem positiva a partir da

compreensatildeo dessas categorias em relaccedilatildeo ao fenocircmeno pois o ser da obscuridade

consiste em ser claridade possiacutevel44 (HEIDEGGER (GA17)2006 p31)

A originalidade do ver em Aristoacuteteles se mostra em natildeo se deixar enganar pelo

fato de que para as coisas que somente a noite deixa ver natildeo haacute nenhum nome

que as compreenda todas () O que importa eacute somente que essas coisas existam

aiacute elas satildeo vistas e sobre a base de seu conteuacutedo quiditativo tecircm a pretensatildeo de

serem tomadas por existentes Mas que falte um nome para essas coisas mostra

contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia45

(HEIDEGGER (GA17) 2006p31)

42 ldquoLa perceptibilidad de las cosas estaacute bajo la condicioacuten de un determinado ser de este mundo mismo El

ser condicioacuten se refiere a un modo de ser del mundo mismo A la existencia en el mundo pertenece el ser

subsistente del Sol justamente lo que mentamos cuando afirmamos es de diacutea De esta forma hablamos de

un estado de cosas que pertenece al ser del mundo mismo De aquiacute se sigue que φαινόμενον no quiere decir

en primer lugar nada maacutes que un destacado modo de presencia del enterdquo Op cit p30

43 ldquoEl concepto de φαινόμενον no estaacute limitado a la presencia de las cosas durante el diacutea va maacutes allaacute y

designa todo lo que se muestra em siacute mismo tanto se muestra en la claridad como en la oscuridadrdquo Op

citp30

44 ldquoEl ser de la oscuridad consiste en ser claridade posiblerdquo Opcitp31 45 ldquoLa originaridad del ver en Aristoacuteteles se muestra en que no se deja enganatilder por el hecho de que para las

cosas que soacutelo la noche deja ver no hay ninguacuten nombre que las comprenda a todas (por tanto para las

lucieacuternagas etc) () Lo que le importa es soacutelo que esas cosas existen ahiacute se las ve y sobre la base de su

contenido quiditativo tienen la pretensiacuteon de ser tomadas por existentes Pero que falte um nombre para

esas cosas muestra com todo que nuestra lengua (teoria de las categorias) es uma lengua del diacuteardquo

Opcitp32

60

Para compreendermos o que Heidegger trata nessa passagem eacute fundamental

relembrar a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica que indica algo crucial agrave nossa investigaccedilatildeo o

significado natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua

mostraccedilatildeo Para Husserl a anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a

complexidade da vida intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel a partir

da anaacutelise das estruturas ideais que se apresentam na forma das expressotildees significativas

revestidas gramaticalmente Jaacute para Heidegger parece natildeo haver uma estabilidade

significativa ideal Em outras palavras e como vimos no toacutepico anterior as significaccedilotildees

vecircm ao encontro a partir de sua mostraccedilatildeo intencionadas em meio agrave compreensatildeo

hermenecircutica do mundo circundante por isso as estruturas ideais buscadas por Husserl

a partir da atividade intencional da consciecircncia devem ser revistas em funccedilatildeo da

possibilidade hermenecircutica do mundo circundante A veste gramatical das significaccedilotildees

natildeo pode subordinar o que vem ao encontro no dar-se originaacuterio do mundo quer em

funccedilatildeo de uma linguagem que almeja a cada vez fixar categorialmente o que se mostra

quer em funccedilatildeo de qualquer idealidade essencial pressuposta E assim para Heidegger o

conceito de loacutegos em Aristoacuteteles revela um sentido mais originaacuterio

Um λόγος existe pois quando o falar eacute falar com o mundo existente Ao dizer

forno [Ofen] natildeo falo a partir de uma existecircncia [Dasein] senatildeo que mas bem

me ponho fora da existecircncia [Dasein] do mundo concreto penso algo mas para

esse pensar natildeo desempenha nenhum papel que existam fornos [Oumlfen] ou natildeo

Falar eacute um ser com o mundo eacute algo originaacuterio e se daacute antes dos juiacutezos A partir

daqui se torna compreensiacutevel o juiacutezo Na loacutegica eacute comum considerar como juiacutezos

palavras como fogo () De modo algum o λόγος implica uma pluralidade de

palavras A palavra originaacuteria eacute um nomear mas natildeo eacute um nomear de um mero

nome mas bem o dirigir-se com a fala a algo que se encontra no mundo tal como

se encontra46(HEIDEGGER (GA17) 2006 p39)

46 ldquoUn λόγος existe pues cuando el hablar es um hablar con el mundo existente Al decir lsquohornorsquo no hablo

desde una existencia sino que maacutes bien me pongo fuera de la existencia del mundo concreto miento algo

pero para este mentar no desempentildea ninguacuten papel el que haya hornos o no Hablar es un ser con el mundo

es algo originaacuterio y se da antes que los juicios A partir de aquiacute se vuelve compreensible el juicio En la

loacutegica es tradiciacuteon considerar como juicios palabras como lsquofuegorsquo (De ninguna manera se establece con

ello soacutelo la existencia [Dasein] del fuego sino tambiacuteen que la gente debe saltar de la cama) Em modo

algun el λόγος implica una pluralidad de palabras La palabra originaria era un nombrar pero no el nombrar

de un mero nombre maacutes bien el dirigirse con el habla a algo que se encuentra en el mundo tal como se lo

encuentrardquo Op cit p39 A palavra Dasein nesse trecho ainda natildeo parece se referir ao homem como ldquoser-aiacuterdquo mas usada no

significado tradicional da liacutengua alematilde compreendida como ldquoexistecircnciardquo pois Heidegger nos fala da

ldquoexistecircnciardquo do lsquofornorsquordquo existecircnciardquo do lsquofogorsquo

61

O nomear originaacuterio do loacutegos natildeo eacute como a significaccedilatildeo expressa pela linguagem

que recolhe o ente sob determinado aspecto em seu εἶδος (Cf HEIDEGGER (GA17)

2006 p43) Loacutegos eacute loacutegos apofacircntico (λόγος αποφατικός) eacute o mostrar do fenocircmeno a

respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que se mostra como algo de maneira indiferenciada

natildeo determinada Assim o significado mediante o λόγος eacute caracterizado como existindo

O significado mediante o nome eacute um mero mencionar em sentido formal no λόγος o

significado eacute o mostrar o existente como existente47(HEIDEGGER (GA17) 2006p41)

Esse mostrar do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes

sempre em meio a um campo hermenecircutico e assim cada significado proacuteprio ou

determinado do ente que se mostra refere-se ao que significa em relaccedilotildees com os outros

entes relaccedilatildeo anterior a qualquer experiecircncia predicativa

O modelo tradicional da hermenecircutica como meacutetodo interpretativo vinculado agrave

filologia e ao formato da linguagem escrita se altera e torna-se com Heidegger a

investigaccedilatildeo acerca da proacutepria interpretaccedilatildeo da mostraccedilatildeo de todos os entes como uma

praacutetica viva que remete ao ser dos entes em seu aparecer como ente Hermes o

mensageiro dos deuses agora eacute mensageiro da situaccedilatildeo interpretativa na medida em que

o ser dos entes se mostra aos homens no interior de suas vivecircncias imediata A

interpretaccedilatildeo de algo eacute dada mediante a escuta cuidadosa da mensagem dinacircmica que se

realiza no diaacutelogo entre os homens natildeo eacute mais algo inerte fixo a ser encontrado O λόγος

na fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν E assim ao contraacuterio

da tradiccedilatildeo filosoacutefica que identificou o loacutegos como a expressatildeo ajuizante possiacutevel atraveacutes

da ratio (ou o dizer as modalidades dos entes atraveacutes de palavras e sequecircncia de palavras

organizando-as como sujeito e predicado no juiacutezo predicativo) Heidegger interpreta o

sentido originaacuterio de loacutegos apofacircntico como condiccedilatildeo de possibilidade para a

significaccedilatildeo Esse aspecto eacute assim descrito por Gadamer

Heidegger recorreu a uma etimologia para a palavra logos ela designa a seleccedilatildeo

posicionadorardquo () Loacutegos eacute realmente o posicionar seletivo legein significa

seleccedilatildeo selecionar conjuntamente reunir de tal modo que tudo se decirc como

bagos da videira reunidos e protegidos como a colheita O que eacute assim reunido

da seleccedilatildeo natildeo satildeo certamente apenas as palavras que formam a proposiccedilatildeo Cada

palavra ela mesma jaacute eacute de tal modo que nela muitas coisas satildeo reunidas - na

47ldquoLo significado mediante el λόγος es caracterizado como existiendo Lo significado mediante el nombre

es un mero mencionar el sentido formal en el λόγος lo significado es el mostrar lo existente como

existenterdquo Opcitp41

62

unidade do eidos como diraacute Platatildeo quando ele questiona o eidos com vista ao

logos (GADAMER 2012p528)

O sentido originaacuterio de loacutegos como loacutegos apofacircntico estaacute estritamente

relacionado com o sentido originaacuterio de fenocircmeno A tradiccedilatildeo latina traduziu loacutegos

interpretando-o como razatildeo juiacutezo conceito definiccedilatildeo ou proposiccedilatildeo Poreacutem em grego

logos natildeo significa primariamente juiacutezo entendido como modo de uniatildeo ou de tomada

de posiccedilatildeo seja pela aceitaccedilatildeo ou negaccedilatildeo Logos reporta-se agrave palavra legein tornar

manifesto aquilo de que se fala num discurso Por isso deixa que algo seja visto

comunicando a outro o que eacute manifestado e assim ldquoas posiccedilotildees individuais satildeo

penetradas pela tendecircncia a significar de um λέγειν assim que aspira a manifestar uma

determinada situaccedilatildeo objetiva Natildeo se chega ao λόγος se quiser comeccedilar com o mero

nomear A funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar48rdquo (HEIDEGGER (GA17)

2006 p43) Mas o que se manifesta O fenocircmeno (φαινόμενον) aquilo que se mostra a

si mesmo

A interpretaccedilatildeo da palavra φαινόμενον realizada por Heidegger no primeiro curso

proferido em Marburg indica inicialmente a existecircncia do mundo na medida em que ele

se mostrar a si mesmo49 como orientaccedilatildeo do horizonte temaacutetico da fenomenologia Em

1925 no curso Prolegocircmenos para uma histoacuteria ao conceito de tempo (GA20) o

esclarecimento do sentido originaacuterio do conceito de fenocircmeno seraacute elaborado conforme

o sentido encontrado tambeacutem em Ser e Tempo sect7 Φαινόμενον eacute o particiacutepio (forma

nominal do verbo) de φαίνεισθαι que como voz meacutedia50 significa mostrar-se e no

48 ldquoLas posiciones individuales estaacuten penetradas por la tendencia a significar de un λέγειν asiacute que aspira a

manifestar una determinada situacioacuten objetiva No se llega al λόγος si se quisiera comezar com el mero

nombrar La funcioacuten originaria de significaciacuteon es el manifestarrdquo Opcitp43

49 CfHeidegger (GA17) 2006p61

50 Um esclarecimento sobre a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito de

fenocircmeno por conseguinte da noccedilatildeo de fenomenologia Obviamente natildeo podemos aprofundar-nos nesse

complexo recurso gramatical que exigiria anos de estudos e profundo conhecimento da liacutengua helecircnica

Iremos apenas indicar sua especificidade A estrutura das vozes verbais na liacutengua portuguesa eacute constituiacuteda

de 3 possibilidades a ativa a passiva e a reflexiva Algumas Gramaacuteticas sugerem uma proximidade entre

a voz meacutedia grega e a voz reflexiva no portuguecircs contudo a voz meacutedia natildeo se esgota nessa comparaccedilatildeo

Seguimos a orientaccedilatildeo de Caio Vieira Reis de Camargo (2013) que em seu artigo reuacutene definiccedilotildees

importantes para os estudos linguiacutesticos contemporacircneos acerca da voz meacutedia

ldquoa) lsquoA voz meacutedia denota que o sujeito estaacute de alguma maneira especial envolvido ou interessado na accedilatildeo

do verborsquo (GILDERSLEEVE 1900 p64) b) lsquoVerbos () que tecircm posiccedilatildeo na esfera do Sujeito nos quais

o Sujeito todo parece participanteimplicadorsquo (BRUGMANNB 1903 p104) c) lsquoNa voz ativa os verbos

63

particiacutepio o que se mostra O aparecer o mostrar do fenocircmeno estaacute relacionado com a

raiz de φαίνω φῶς em portuguecircs luz claridade Assim ldquoos φαινόμενα configuram a

totalidade do que se mostra o que os gregos simplesmente identificaram tambeacutem com τὰ

ὄντα o ente51rdquo (HEIDEGGER (GA20)2006 p109) Podemos entatildeo dizer a totalidade

do que se mostra satildeo os fenocircmenos e se a funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar

o loacutegos da fenomenologia natildeo eacute o significado de um ou outro ente mas o manifestar do

ente o sentido de ser dos entes Fenomenologia em sentido formal eacute ldquofazer ver a partir

dele mesmo o que se mostra tal como ele por si mesmo se mostrardquo (HEIDEGGER (GA2)

2012 p119) e assim a fenomenologia caminha em direccedilatildeo agrave ontologia

No capiacutetulo anterior pudemos observar que para Husserl o que estava em jogo

como tarefa da fenomenologia era - a partir da unidade entre intuiccedilatildeo (atividade da

consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da consciecircncia e o

preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor a unidade

fenomenoloacutegica desses atos a saber apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo e

preenchimento de significaccedilatildeo Para Heidegger a intencionalidade fenomenoloacutegica agora

voltada para o sentido de ser dos entes revela que o fenocircmeno vem ao encontro natildeo em

funccedilatildeo da intencionalidade da consciecircncia onde poderia ser depurado na sua significaccedilatildeo

denotam um processo que se realiza a partir de um sujeito e sem ele na meacutedia que eacute a diaacutetesis a definir

por oposiccedilatildeo o verbo indica um processo em que o sujeito eacute o foco o sujeito estaacute no interior do processorsquo

(BENVENISTE 1966 p172) d) lsquoEm indo-europeu e em grego as desinecircncias meacutedias indicam que o

sujeito estaacute interessado de uma maneira pessoal no processorsquo (MEILLET 1937 p244) e) lsquoAs implicaccedilotildees

da meacutedia (quando em oposiccedilatildeo com a ativa) satildeo que a accedilatildeo ou estado afeta o sujeito do verbo ou seus

interessesrsquo (LYONS 1969 p373) Nessas definiccedilotildees a princiacutepio haacute dois empregos da meacutedia a meacutedia

reflexiva direta (especialmente a de Gildersleeve e Meillet voltadas para a questatildeo do interesse do sujeito

oracional) e a meacutedia reciacuteproca que envolve mais as construccedilotildees passivas e intransitivas da meacutedia

(ressaltada por Brugmann e Benveniste com a noccedilatildeo de que o sujeito todo participa e que estaacute interno ao

processo) A definiccedilatildeo de Meillet por outro lado eacute a mais comumente utilizada principalmente em

gramaacuteticas e meacutetodos de ensino do grego antigo atribuindo agrave media a noccedilatildeo de interesse por parte do

sujeito sendo que esse traccedilo embora existente em alguns casos natildeo eacute uacutenico e nem sempre tatildeo evidenterdquo

(pp 185-186)

Quando dissemos que entender a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito

de fenocircmeno pensamos nessa especificidade de algo que na accedilatildeo no verbo (existir manifestar) constitui a

si mesmo no interior do processo O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento como fenocircmeno

Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar

por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na

estabilidade de uma esfera para aleacutem do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua

manifestaccedilatildeo o sentido de sua proacutepria existecircncia

51 ldquoLos φαινόμενα configuran la totalidad de lo que se muestra a siacute mismo lo que los griegos simplemente

indetificaban tambieacuten con τὰ ὄντα lo enterdquoOpcit p109

64

Mas o loacutegos como manifestar-se do fenocircmeno em seu sentido originaacuterio como existente

eacute intencionado no es gibt originaacuterio na concretude do mundo que se daacute

Mas como eacute possiacutevel chegar ao acontecimento de ser do fenocircmeno sem a base de

uma consciecircncia em funccedilatildeo da qual o fenocircmeno pode ser depurado Os estudos da Sexta

Investigaccedilatildeo Loacutegica de Husserl ao distinguir intuiccedilatildeo sensiacutevel da categorial ofereceram

a Heidegger um acesso agrave compreensatildeo do sentido muacuteltiplo do ente Nas palavras do autor

ldquoQuando a partir de 1919 eu proacuteprio ensinando e aprendendo proacuteximo de

Husserl me exercitei na visatildeo fenomenoloacutegica e simultaneamente pus agrave prova

nos Seminaacuterios uma leitura de Aristoacuteteles diferente da habitual retomei o meu

interesse pelas Investigaccedilotildees Loacutegicas muito especialmente pela sexta da

primeira ediccedilatildeo A distinccedilatildeo ali elaborada entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial

revelou-se-me em todo o seu alcance como capaz de determinar lsquoo muacuteltiplo

sentido do entersquordquo (HEIDEGGER2009 p8)

Vejamos brevemente o ponto crucial dessa parte da VI investigaccedilatildeo a qual

Heidegger se refere A questatildeo central eacute ldquoTodas as partes e formas da significaccedilatildeo

correspondem tambeacutem partes e formas da percepccedilatildeo52rdquo (HUSSERL 1975 p106) Em

outras palavras nos enunciados da percepccedilatildeo ldquoUm S eacute Prdquo ldquoEste S eacute Prdquo ldquoTodo S eacute Prdquo

etc cada um de seus elementos (ldquoumrdquo ldquoSrdquo ldquoeacuterdquo ldquoPrdquo) possui significaccedilotildees que

preenchem a percepccedilatildeo Husserl responde negativamente somente S e P possuem

significaccedilatildeo que preenchem a percepccedilatildeo pois existe uma diferenccedila categorial absoluta

entre a forma expressiva e o material expresso E os enunciados da percepccedilatildeo chegam

somente aos elementos materiais que estatildeo presentes nos termos do enunciado

ldquoRepete-se a mesma distinccedilatildeo entre lsquomaterialrsquo e lsquoformarsquo naquilo que

consideramos unitariamente como um lsquotermorsquo Mas em todo enunciado de

percepccedilatildeo e tambeacutem naturalmente em todos os enunciados que exprimem uma

intuiccedilatildeo num certo sentido primaacuterio chegamos finalmente aos uacuteltimos elementos

ndash denominamos elementos materiais ndash que estatildeo presentes nos termos e que

preenchem diretamente na intuiccedilatildeo (percepccedilatildeo imaginaccedilatildeo etc) ao passo que

as formas complementares apesar de exigirem preenchimento enquanto formas

de significaccedilatildeo natildeo encontram diretamente na percepccedilatildeo e nos atos a ela

coordenados nada que jamais lhes possa ser conformerdquo(HUSSERL 1975p110)

52 Percepccedilatildeo aqui compreendida natildeo como mera percepccedilatildeo mas como atos fundados na percepccedilatildeo com

possibilidade objetiva

65

Husserl acompanha Kant na determinaccedilatildeo que ldquoser natildeo eacute um predicado realrdquo pois

a flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo -tanto na funccedilatildeo atributiva (sapato preto) quanto na forma

predicativa (Este sapato eacute preto) ndash natildeo se preenche atraveacutes de qualquer percepccedilatildeo Para

Husserl embora a proposiccedilatildeo kantiana ldquose refira ao ser existencial ao ser do

lsquoposicionamento absolutorsquo () eacute sempre possiacutevel entretanto aplicaacute-la ao ser predicativo

e atributivordquo (HUSSERL1975 p111) Se o ser natildeo eacute nada de aderente ao objeto natildeo eacute

uma caracteriacutestica real interna nem externa e ainda se ldquona esfera da percepccedilatildeo sensiacutevel

e assim compreendida e correlativamente na da intuiccedilatildeo sensiacutevel em geral () uma

significaccedilatildeo como a palavra ser natildeo encontra nenhum correlato objetivo possiacutevelrdquo

(HUSSERL1975 p112) entatildeo como ser vem agrave forma enunciativa Para Husserl o ser

soacute pode ser apreendido no julgar natildeo que ele seja obtido internamente a partir da reflexatildeo

mas no ato de julgar que correlato agrave intuiccedilatildeo do juiacutezo forma a unidade do juiacutezo evidente

Em outras palavras se o ldquo ser eacute fenomenologicamente interpretado como um modo

determinado do ser dadordquo ( ZAHAVI2015p47) a descriccedilatildeo de um fenocircmeno ou de um

estado de coisas em sua ligaccedilatildeo e unidade pelo juiacutezo vai aleacutem da intuiccedilatildeo sensiacutevel e eacute

preciso ampliar o conceito de intuiccedilatildeo considerando-a como uma intuiccedilatildeo categorial

pois ldquomesmo uma argumentaccedilatildeo teoacuterica ou uma anaacutelise conceitual pode ser considerada

como intuiccedilatildeo na medida em que ela nos traz agrave daccedilatildeo originaacuteria um estado de coisas um

traccedilo essencial ou uma demonstraccedilatildeo abstratardquo( ZAHAVI2015p55) Contudo esse

deslocamento do lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel o conduz a forma loacutegico sem revelar

de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno53

Portanto com o propoacutesito de elucidar a apariccedilatildeo originaacuteria de qualquer fenocircmeno

e junto com Aristoacuteteles Heidegger conclui que era Aleacutetheia desvelamento aquilo que

segundo Husserl consistia num ato da consciecircncia O ser natildeo eacute um predicado real se

abordado a cada vez como um ente Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar o ser como um

ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel e atributivo Ser

natildeo eacute um ente54 o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo com vistas agrave

53 Cf NUNES Benedito 2013 pp63-67 54 A diferenccedila ontoloacutegica eacute tomada tematicamente ou seja exposta explicitamente em 1927 em Os

problemas fundamentais da fenomenologia (GA24) Parte II Capiacutetulo I Mesmo de um modo natildeo temaacutetico

a diferenccedila entre ser e ente foi decisiva para a compreensatildeo da constituiccedilatildeo existencial do ser-aiacute nos escritos

anteriores sobretudo em Ser e Tempo Seguimos a leitura de LAFONT (1997) ldquoDo factum -central para a

abordagem de Ser e tempo - de que nossa relaccedilatildeo com o mundo estaacute mediada simbolicamente (o fato de

que lsquonos movemos sempre jaacute em uma compreensatildeo de serrsquo e que a realidade soacute eacute possiacutevel em uma

66

forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera para ldquoQual o

sentido de serrdquo E ao sentido do ser temos acesso pelo meacutetodo fenomenoloacutegico a partir

da situaccedilatildeo na qual o desvelamento dos entes acontece isto eacute no fenocircmeno da existecircncia

Como aponta Stein a apresentaccedilatildeo do conceito de fenomenologia em Ser e

Tempo eacute feita de maneira provisoacuteria no sect 7 e soacute ganha sua explicitaccedilatildeo na dinacircmica da

proacutepria anaacutelise do ldquoobjetordquo Mas tambeacutem como jaacute vimos aqui a especificidade e o fator

determinante do meacutetodo fenomenoloacutegico jaacute estatildeo em desenvolvimento na deacutecada de 20

Cito Stein

ldquoa descoberta que Heidegger fez que existe um primado da tendecircncia para o

encobrimento ()Ao inveacutes de pensar como Husserl e outros filoacutesofos que diante

de noacutes a realidade se estende agrave espera da rede de nossos recursos metodoloacutegicos

que a aprisionem Heidegger afirma que o homem e o essencial nas coisas tendem

para o disfarce ou estatildeo efetivamente encobertos Por isso volta-se para o comordquo

(STEIN 1971p16)

E o que se encobre de maneira excepcional natildeo eacute um ou outro ente mas o ser do

ente e ldquoa fenomenologia eacute o modo de acesso ao que deve se tornar tema da ontologia A

ontologia soacute eacute possiacutevel como fenomenologiardquo (HEIDEGGER (GA2) 2012 p 123)

Fenocircmeno loacutegos e aleacutetheia estatildeo numa imbricaccedilatildeo indissociaacutevel Stein (2001

p79) chega a dizer que a aleacutetheia esconde em si o meacutetodo fenomenoloacutegico e que o retorno

originaacuterio agrave palavra grega resume o pensamento de Heidegger Para nosso trabalho o

importante eacute compreender que a fenomenologia como meacutetodo para a ontologia encontra

no sentido originaacuterio de aleacutetheia a possibilidade de trazer agrave luz o que sustenta qualquer

presenccedila dos entes ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o que aponta para o velamento (lethe) que

ficou para traacutes que mostra para aquilo que a sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila

da aleacutetheia que se torna possiacutevel a objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito

pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89) Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em

sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao encontro em seu significado) no desvelamento

originaacuterio de seu ser mas essa mostraccedilatildeo dos fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira

compreensatildeo de serrsquo) deduz Heidegger a universalidade da lsquopreacute-estrutura do compreenderrsquo (Als-Struktur)

que constitui o nuacutecleo fundamental de sua transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia O instrumento

decisivo do ponto de vista metodoloacutegico que o permite obter este ponto de vista eacute a substituiccedilatildeo da

dicotomia empiacutericotranscendental - proacutepria da filosofia transcendental- pela lsquodiferenccedila ontoloacutegicarsquordquo p29

67

dissimulada sempre atraveacutes de uma objetificaccedilatildeo de seu ser como ente determinado pois

ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na medida em que partimos de seu

encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de descoberta perde seu sentido mais

efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Dessa forma ldquoa fenomenologia no sentido heideggeriano

eacute a desconstruccedilatildeo do evidente e em uma tal desconstruccedilatildeo interessa mostrar que o

evidente eacute em verdade uma modificaccedilatildeo do fenocircmeno lsquoserrsquordquo (FIGAL 2005p47) E aqui

a fenomenologia encontra a hermenecircutica em sua relaccedilatildeo mais radical pois essa

desconstruccedilatildeo do evidente parte do proacuteprio evidente a situaccedilatildeo faacutetica Pois ldquoo ser soacute

pode chegar entatildeo a ser visualizado se essas dissimulaccedilotildees forem comprovadas como

dissimulaccedilotildeesrdquo (FIGAL 2005p47) ou seja na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo faacutetica que

compreende previamente todos os entes

A atualizaccedilatildeo da filosofia antiga sob bases fenomenoloacutegicas eacute chamada de

ldquofenomenologia como repeticcedilatildeordquo55 O retorno ao pensamento de Aristoacuteteles e Platatildeo

realizado por Heidegger ldquonatildeo significa simplesmente acolher uma vez mais um

questionamento filosoacutefico herdado a fim de integraacute-lo no discurso de uma filosofia atualrdquo

e tambeacutem natildeo se trata de ldquoinserir uma filosofia atual em uma tradiccedilatildeordquo (FIGAL 2005

p32) Mas eacute consequecircncia da orientaccedilatildeo do trabalho heideggeriano de uma lsquofilosofia

cientiacuteficarsquo sem pressupostos O comeccedilo da filosofia eacute o questionamento em curso vivo

promovido pela proacutepria questatildeo e natildeo por sistemas externos agraves proacuteprias coisas A

pergunta pelo ser em Heidegger se torna temaacutetica na medida em que o desdobramento da

criacutetica imanente ao modelo husserliano conduz agrave pergunta fundamental inaugurada no

iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo

Se por um lado Heidegger pode ser associado agrave tradiccedilatildeo fenomenoloacutegica por

outro natildeo se pode esquecer a criacutetica imanente que ele fez agrave fenomenologia de Husserl e

que o conduziu a pensar a fenomenologia como meacutetodo a indicar o mundo a existecircncia

e a facticidade como campo de aparecimento dos proacuteprios fenocircmenos tornando portanto

a fenomenologia hermenecircutica Eacute nessa compreensatildeo da tarefa fenomenoloacutegica como o

modo de acesso ao que deve ser tornar tema da ontologia que Heidegger rejeita o

pressuposto husserliano da consciecircncia como correlato do aparecimento dos fenocircmenos

55 Cf Figal 2005 pp29-42 e STEIN 2001 p98

68

Ele o recusa natildeo somente pelo fato de as relaccedilotildees intencionais enquanto processos

mentais da consciecircncia se movimentarem pela pesquisa de conteuacutedos quididativos mas

tambeacutem e sobretudo pelo fato de

ldquoa consciecircncia apresentar em si mesma um contexto ontoloacutegico fechado Essa

ponderaccedilatildeo [a de que a consciecircncia parece natildeo precisar de qualquer objeto

exterior para existir] acaba por indicar a consciecircncia eacute absoluta em funccedilatildeo da

qual em geral a realidade pode se anunciarrdquo (HEIDEGGER Prolegomena zur

Geschichte p 144 apud FIGAL2005 p30)

Para Heidegger a fenomenologia transcendental de Husserl permanece ainda no

horizonte da modernidade Ao colocar o ldquomundo entre parecircntesesrdquo privilegiando a

experiecircncia da consciecircncia essa fenomenologia permaneceria incapaz de levar em conta

a realidade sem uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica e em uacuteltima instacircncia levar em conta as

vivecircncias concretas Heidegger natildeo abre matildeo da fenomenologia husserliana mas

radicaliza seu princiacutepio ldquode volta agraves coisas mesmasrdquo acentuando a tarefa pela existecircncia

e a partir da existecircncia dos fenocircmenos e no desvelamento buscar o sentido do ser de

todo e qualquer fenocircmeno

III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal

Falamos haacute pouco de Heidegger repetir a filosofia antiga como um desdobramento

da proacutepria pesquisa filosoacutefica entendida como ciecircncia originaacuteria e como pergunta pelo

sentido de ser Em Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles Introduccedilatildeo agrave pesquisa

fenomenoloacutegica (GA61) Heidegger desenvolve esse aspecto e indica a problemaacutetica

central e radical a ser enfrentada a partir de Aristoacuteteles a saber ldquodesde de Aristoacuteteles se

manteacutem uma influecircncia taacutecita nas vias da visatildeo e da fala lsquoarticulaccedilotildeesrsquo loacutegicardquo

(HEIDEGGGER (GA61) 2011p11) Antes de entrarmos nessa problemaacutetica apontada

por Heidegger tentemos compreender o que o autor quis dizer com aquela afirmaccedilatildeo

Cito Puente (2001)

ldquoPara Aristoacuteteles foi precisamente a negaccedilatildeo do movimento que levou

Parmecircnides ao postulado da univocidade do ente e seraacute portanto a partir da

afirmaccedilatildeo irrestrita do movimento () que o Estagirita procuraraacute expandir os

horizontes do ente para aleacutem da mera dicotomia estabelecida por Parmecircnides

entre Ente e natildeo-enterdquo (p25)

69

Seguindo a leitura de Puente Aristoacuteteles encontrou a plurivocidade ao afirmar o

movimento no acircmbito dos entes Aleacutem disso como veremos nos desdobramentos a

seguir ele o fez submetendo o acircmbito ontoloacutegico ao acircmbito loacutegico Submissatildeo essa que

foi adotada por toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica que passou a entender a loacutegica como uacutenica via

de acesso agrave ontologia Pois a polivocidade categorial inserida no interior da

quadriparticcedilatildeo semacircntico-ontoloacutegica estaacute por sua vez submetida ao princiacutepio loacutegico de

natildeo contradiccedilatildeo Dito de outro modo as categorias aristoteacutelicas substacircncia

(οὐσία substantia) quantidade (ποσόν quantitas) qualidade (ποιόν qualitas) relaccedilatildeo

(πρός τι relatio) lugar (ποῦ ubi) tempo (ποτέ quando) estado (κεῖσθαι situs) haacutebito

(ἔχειν habere) accedilatildeo (ποιεῖν actio) e paixatildeo (πάσχειν passio) satildeo parte das quatro

possibilidades semacircnticas categoria acidente verdade atopotecircncia Reiterando as

possibilidades semacircnticas de dizer o ente estatildeo submetidas a um princiacutepio loacutegico

fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado ao princiacutepio de identidade

Soacute eacute possiacutevel desenvolver uma ontologia acerca dos entes naturais e sair da univocidade

ontoloacutegica de Parmecircnides se a semacircntica respeitar a impossibilidade loacutegica de uma

simultaneidade de atribuiccedilotildees contraacuterias a um ente ao mesmo tempo Os vaacuterios modos de

dizer o ser ldquoa refutaccedilatildeo confutatoacuteria agrave tese parmenidiana pode ser analisada entatildeo como

o desdobramento loacutegico do pressuposto de Parmecircnidesrdquo (PUENTES2001 p25)

Nesse sentido enfrentar a via loacutegica no interior da filosofia eacute enfrentar a tradiccedilatildeo

que compreendeu que a filosofia devia ser definida bem como seus objetos de forma

conceitual sob princiacutepios loacutegicos Em outras palavras superar a tentativa de dizer

previamente tanto o que a filosofia eacute quanto o que eacute seu objeto de investigaccedilatildeo E em

uacuteltima instacircncia superar a concepccedilatildeo tradicional metafiacutesica que compreende toda

ontologia condicionada agrave loacutegica pois ao ter acesso ao ente atraveacutes das categorias

arrasta a compreensatildeo da verdade agrave semacircntica extensional com lugar privilegiado na

proposiccedilatildeo reduzindo a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo56

56 Aqui eacute pertinente destacar uma consideraccedilatildeo de Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro no prefaacutecio agrave traduccedilatildeo do

texto de Aristoacuteteles As categorias (trad Fernando Coelho Florianoacutepolis Ed Da UFSC 2014 p 9-10)

ldquo A grande questatildeo realmente capaz de colocar a tradiccedilatildeo em xeque eacute a de saber se a compreensatildeo do real

pelas categorias ontoloacutegicas de substacircncia qualidade quantidade tempo lugar etc eacute o que eacute porque as

categorias gramaticais de substantivo e sujeito adjetivo e predicadoetcjaacute se instalaram de antematildeo e

predeterminaram o escopo daquela compreensatildeo ndash metafiacutesica como lsquofeacute na gramaacuteticarsquo como aponta

Nietzsche ndash ou se ao contraacuterio o limite da gramaacutetica ocidental para dizer o real eacute que eacute por ser preacute-limitada

por sua compreensatildeo metafiacutesicardquo

70

Para Heidegger a filosofia deve sempre voltar-se para a vida faacutetica e cabe agrave

definiccedilatildeo filosoacutefica tornar expliacutecita a interpelaccedilatildeo A filosofia natildeo eacute portanto um

conjunto de mateacuterias determinadas (loacutegica ontologia poliacutetica esteacutetica etc) No sentido

formal57 da definiccedilatildeo (determinar o objeto em seu ser-o-que-como [ was-wie-sein]) a

filosofia eacute indicativa (anzeigend) cujo princiacutepio possui um caraacuteter bem especiacutefico

identificar a visatildeo preacutevia Mas o que eacute essa visatildeo preacutevia

ldquoNatildeo haacute aqui como contornar a facticidade do mundo que eacute o nosso e isto natildeo

porque ela definiria a nossa postura em relaccedilatildeo agraves coisas e funcionaria como um

matiz de ordem espiritual em nossa ligaccedilatildeo com o todo mas porque ela perpassa

originariamente o horizonte mesmo a partir do qual os entes se mostram como os

entes que satildeo Esse horizonte possui aleacutem disso um caraacuteter histoacuterico

sedimentado Ele natildeo se determina de maneira loacutegico-transcendental () mas se

constroacutei historicamente a partir de decisotildees de pensamento que vatildeo

paulatinamente determinando que se mostra ou natildeo como dotado de sentidordquo

(CASANOVA 2009 p47)

Assim contra o pensamento imperante da tradiccedilatildeo

ldquoO que se denomina filosoacutefico assim como os termos de acordo com os quais

problemas considerados filosoacuteficos satildeo levantados natildeo nasce nunca de uma

anaacutelise puramente loacutegica Ao contraacuterio tanto a designaccedilatildeo de algo como

filosoacutefico quanto o modo de colocaccedilatildeo dos problemas filosoacuteficos em geral

depende de estruturas faacuteticas que foram sendo lentamente decididas no interior

da tradiccedilatildeo Se desconsiderarmos uma tal dependecircncia o que fazemos eacute

simplesmente assumi-las como oacutebvias () que impedem um tratamento

originaacuterio dos fenocircmenosrdquo (CASANOVA 2009 p 47)

Seguindo Escudero no proacutelogo escrito agrave sua traduccedilatildeo do Relatoacuterio Natorp (2002

p11) para atingir a realidade primaacuteria da vida faacutetica Heidegger nos anos 1920 se

movimenta em duas decisotildees A primeira decisatildeo metodoloacutegica eacute desdobrada em dois

momentos a) o primeiro desconstrutivo descerrar o intricado mapa conceitual da

filosofia e voltar-se ao fenocircmeno da vida b) e o segundo construtivo fazer uma anaacutelise

formal dos diversos modos de efetivaccedilatildeo da vida em seu processo de realizaccedilatildeo histoacuterica

E a segunda decisatildeo a anaacutelise das estruturas ontoloacutegicas da vida que corresponde agrave

hermenecircutica fenomenoloacutegica do ser-aiacute precisamente agrave pergunta pelo sentido do ser no

57 A loacutegica para Heidegger eacute formalista natildeo formal Diz-se formal em relaccedilatildeo agrave indicaccedilatildeo formalista em

relaccedilatildeo a operacionalidade dos elementos da loacutegica Cf HEIDEGGER 2011 p28

71

interior mesmo do acontecimento preacute-teoacuterico da cotidianidade do ser-aiacute para assim ter

acesso ao sentido do ser em geral

Portanto o meacutetodo fenomenoloacutegico como indicativo-formal eacute parte do processo

metodoloacutegico construtivo para o acesso agrave vida faacutetica como maneira de fazer vir ao

encontro os fenocircmenos sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica bem como a maneira de

desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos categoriais de definiccedilatildeo

O elemento decisivo eacute a experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica no como do

aparecer de qualquer objeto e na medida em que este possa ser definido ldquodevem ser

hauridas do modo como o objeto se torna acessiacutevel originariamenterdquo (HEIDEGGER

(GA61) 2011 p28) Com outras palavras qualquer significado compreendido como

indicativo-formal e a expressatildeo linguiacutestica desse conceito satildeo proposiccedilotildees caracterizadas

como indicaccedilotildees hermenecircuticas A terminologia filosoacutefica e seu questionar mais

originaacuterio devem a cada vez indicar o campo situacional histoacuterico de onde extraem seus

conceitos Nas palavras de Heidegger (GA61) ldquoo decisivo eacute o desdobramento radical e

claro de uma situaccedilatildeo hermenecircutica como temporalizaccedilatildeo da proacutepria problemaacutetica

filosoacuteficardquo (2011 p11) Portanto a interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do conhecimento58

para Heidegger exige uma modificaccedilatildeo a pergunta se transforma em ldquocomordquo eacute o

conhecimento ldquoComordquo as coisas vecircm ao encontro e natildeo mais uma definiccedilatildeo que

responderia agrave questatildeo com pretensatildeo atemporal ldquoo que eacute o conhecimentordquo ou ldquoo que eacute

este enterdquo

Por conseguinte os indicadores formais tecircm a funccedilatildeo de explicitar e natildeo de

explicar pois seu caraacuteter indicativo formal potildee em tela atraveacutes de um conceito

inicialmente vazio e sem caraacuteter determinador elementos da proacutepria facticidade

(Faktizitaumlt) para que a anaacutelise hermenecircutica possa compreendecirc-los no interior mesmo da

facticidade e dessa forma encontrar o lugar vivo de cada elemento na estrutura

ontoloacutegica da realidade Mas qual a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo

situacional sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica e que revele tanto a situaccedilatildeo

58 Aqui vemos o compromisso de Heidegger com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do

sentido do conhecimento diligecircncia herdada da fenomenologia Poreacutem agora submetida a abordagem

ontoloacutegica E nesse sentido a abordagem hermenecircutica de Heidegger revela o caraacuteter derivado (de uma

situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento

72

compreensiva quanto descontrua a evidecircncia de toda determinaccedilatildeo conceitual dos entes

revelando antes o seu aparecer como ente Eacute o tema de nosso proacuteximo toacutepico

III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger

Segundo Heidegger ldquoo decisivo na investigaccedilatildeo de Dilthey natildeo eacute a teoria da ciecircncia

da histoacuteria senatildeo a tendecircncia em colocar a realidade histoacuterica agrave vista para a partir dela

esclarecer de que modo e maneira eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo59rdquo (HEIDEGGER (GA20)

2006 p34) Contudo Dilthey se movimenta no marco do questionamento de sua eacutepoca

buscando atraveacutes da vivecircncia da consciecircncia trazer agrave vista a realidade e a validade das

ciecircncias histoacutericas pois busca a partir da vida psiacutequica do sujeito histoacuterico o fundamento

para a garantia da objetividade dos elementos histoacutericos

Ao apresentar o imperativo das ciecircncias naturais e sua apropriaccedilatildeo da noccedilatildeo de

fenocircmeno no final do seacuteculo XIX em Ontologia (Hermenecircutica da facticidade) (GA63)

Heidegger apontou que na tentativa de superaccedilatildeo da metodologia cientiacutefica natural

apesar de ter negado sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito Dilthey se movimentou a partir

dessa orientaccedilatildeo pois seu projeto consistiu em lanccedilar as bases teoacutericas em uacuteltima anaacutelise

com pretensatildeo cientiacutefica para a abordagem dos fenocircmenos histoacutericos

ldquoO trabalho da filosofia concentra-se cada vez mais na teoria da ciecircncia na loacutegica

em seu sentido mais amplo e justamente com a loacutegica na psicologia Ambas

tomam a orientaccedilatildeo da ciecircncia natural e em particular da teoria do

conhecimento que vendo-se realizada na ciecircncia natural o conhecimento

verdadeiro busca as condiccedilotildees de tal conhecimento na consciecircncia Pretende-se

fazer o mesmo com a ciecircncia do espiacuterito dando supostamente um passo adiante

na direccedilatildeo que Kant havia delineado Aqui se considera que a tarefa principal

consiste na demarcaccedilatildeo serviram aqui de criteacuterio a ciecircncia natural embora per

negationem [] Ateacute mesmo Dilthey o qual estaacute propriamente arraigado na

histoacuteria e na teologia caracterizava a ciecircncia do espiacuterito como lsquocriacutetica da razatildeo

histoacutericarsquo apoiando-se naturalmente na problemaacutetica kantianardquo (HEIDEGGER

(GA63) 2012 p76)

Como dissemos Dilthey busca uma epistemologia das ciecircncias humanas a partir

da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos E a vivecircncia particular da consciecircncia

59 ldquoLo decisivo em el planteamiento de Dilthey no es la teoriacutea de la ciencia de la historia sino la tendencia

a poner la realidad de lo histoacuterico a la vista para a partir de ello aclarar de queacute modo y manera es posible

la interpretaciacuteonrdquo Opcit p34

73

como vida conexa e estruturante eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu

projeto Mesmo que Dilthey natildeo recorra agrave noccedilatildeo kantiana de sujeito transcendental ainda

estaacute subordinado agrave necessidade de fundamentaccedilatildeo uacuteltima ndash obrigatoriedade do

pensamento cientiacutefico criacutetico - por isso parte dos dados da psicologia descritiva

acreditando que eles poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar para as ciecircncias

humanas Dito de outro modo ainda que Dilthey tenha se negado a aplicar a metodologia

das ciecircncias naturais agraves ciecircncias humanas natildeo escapou ao ideal cientiacutefico de sua eacutepoca e

sucumbiu ao enrijecimento tradicional da estrutura do conhecimento como fundamento

Contudo Dilthey deu uma grande contribuiccedilatildeo agrave filosofia de sua eacutepoca ao pocircr a

realidade histoacuterica agrave vista e ao propocirc-la como ponto de partida para a anaacutelise que visa

esclarecer de que modo eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo Afastado da estrutura do conhecimento

como fundamento Heidegger indica a anaacutelise hermenecircutica como a forma de apreensatildeo

da abertura originaacuteria de sentido na qual se encontra o ser-aiacute enquanto ser-no-mundo e

como a preacute-compreensatildeo de seu ser e de todo e qualquer ente Com poucas palavras a

hermenecircutica fenomenoloacutegica (ou intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica no interior da situaccedilatildeo

hermenecircutica) constitui a condiccedilatildeo de possibilidade de toda investigaccedilatildeo ontoloacutegica

Aqui o termo ldquosentidordquo natildeo significa definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo mas a manifestaccedilatildeo do

ente em seu ser ou seja no modo como aquilo pode vir ao encontro e se manter como

ente e em uacuteltima instacircncia manter-se em seu significado Assim a apreensatildeo filosoacutefica

dessa abertura de sentido primaacuteria deve ser alcanccedilada na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo de

compreensatildeo dos entes no modo como os entes vecircm ao encontro sem qualquer teoria

pela formaccedilatildeo da posiccedilatildeo preacutevia Eacute por isso que ldquoo decisivo para a configuraccedilatildeo de uma

posiccedilatildeo preacutevia eacute ver o ser-aiacute em sua cotidianidade A cotidianidade caracteriza a

temporalidade do ser-aiacute (concepccedilatildeo preacutevia) Eacute inerente agrave cotidianidade certa medianidade

do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER (GA63) 2012 p90)

Indicamos alguns termos que ainda natildeo foram devidamente esclarecidos como

ser-aiacute ser-no-mundo temporalidade Trataremos mais detidamente desses termos baacutesicos

para a compreensatildeo da filosofia de Heidegger no proacuteximo capiacutetulo a partir da obra

principal de nossa dissertaccedilatildeo No momento faremos apenas esclarecimentos breves para

que possamos prosseguir a nossa apresentaccedilatildeo

74

Na tentativa de desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos

categoriais de definiccedilatildeo (gecircnero e diferenccedila especiacutefica) e a fim de acessar a mostraccedilatildeo

originaacuteria do fenocircmeno Heidegger usa a expressatildeo ser-aiacute (Dasein) para caracterizar

aquele ente que noacutes mesmos somos e indicar sua negatividade categorial pois o ser-aiacute soacute

eacute a partir do seu aiacute de sua existecircncia (mundo faacutetico no qual eacute lanccedilado) sem qualquer

categoria preacutevia que o defina Ponderaccedilatildeo apresentada pelo autor

ldquoAo chamar de homem o ser-aiacute que iraacute investigar coloca-se jaacute de antematildeo dentro

de uma determinada concepccedilatildeo categorial visto que o exame eacute levado a cabo

seguindo a direccedilatildeo da definiccedilatildeo tradicional de lsquoanimal racionalersquo () Tendo tal

definiccedilatildeo como direccedilatildeo define-se a descriccedilatildeo numa perspectiva determinada

sem que com ela se recuperem ativamente os motivos originaacuterios de tal maneira

de ver as coisasrdquo (HEIDEGGER(GA63) 2012 p34)

Mas entatildeo o que significa dizer que o ser-aiacute se encontra enquanto ser-no-mundo

Ao indicar o ser-aiacute Heidegger jaacute aponta a sua constituiccedilatildeo fundamental como ser-no-

mundo Mundo natildeo eacute um ente natildeo eacute o conjunto de entes nem eacute qualquer espacialidade

geomeacutetrica Ser-no-mundo eacute o encontro originaacuterio com a proacutepria facticidade (Faktizitaumlt)

e todas as possibilidades lanccediladas nesse encontro primordial ou como jaacute dissemos a

abertura de sentido na qual se encontra o ser-aiacute primariamente em seu mundo circundante

ldquoSer-no-mundo natildeo quer dizer aparecer entre outras coisas significa poreacutem

ocupar-se no circundante do mundo que vem ao encontro demorar-se nele O

modo proacuteprio de ser mesmo num mundo eacute o cuidado (sorge) () A vida se deixa

atingir ou fala consigo mesma mundanamente no e pelo cuidadordquo (HEIDEGGER

(GA63)2012 p107)

Se Dilthey compreende a categoria do significado como mediadora entre a

vivecircncia da consciecircncia e a realidade histoacuterica para Heidegger a significacircncia eacute a

articulaccedilatildeo do proacuteprio mundo que natildeo vem ao encontro a partir da consciecircncia mas da

ocupaccedilatildeo jaacute orientada pela facticidade (Faktizitaumlt) ldquoA significacircncia eacute um como do ser e

nele centra-se precisamente o categorial do mundo do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER(GA63)

2012 p91) E assim a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo situacional

sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica se daacute a partir da ocupaccedilatildeo do ser-aiacute que estaacute no mundo

propriamente como cuidado Cuidado natildeo quer dizer cuidado de si mas a disposiccedilatildeo agraves

coisas e a si em seu ser estar voltado para o ser dos entes E no caso da imediatidade da

vida a intencionalidade praacutetica que orienta a ocupaccedilatildeo

75

Para Heidegger trazer a realidade histoacuterica agrave vista eacute apropriar-se da situaccedilatildeo

hermenecircutica ou seja conquistar o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se

encontra o fenocircmeno da vida considerando que ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto

apropriaccedilatildeo compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo

(HEIDEGGER(GA62) 2002 p30) Em outras palavras o passado se manifesta sob a

interpretaccedilatildeo e abertura compreensiva possiacutevel no presente E portanto a partir da

abertura que dispotildee o presente lanccedilando suas possibilidades a tarefa da filosofia eacute

apropriar-se dessa compreensatildeo tendo em vista que ela atravessa o ser-aiacute em seu caraacuteter

ontoloacutegico que pode abrir-se a compreensatildeo de ser dos entes Eacute a partir daiacute que

ldquoVem agrave tona o papel paradigmaacutetico da filosofia platocircnico-aristoteacutelica para

Heidegger Segundo o filoacutesofo o que tem lugar em Platatildeo e Aristoacuteteles natildeo eacute algo

que diz respeito apenas ao interesse acadecircmico particular de um grupo de eruditos

especializados em suas obras Natildeo eacute filologia que nos fornece uma primeira via

de acesso aos elementos centrais de suas diversas compreensotildees nem tampouco

a filosofia acadecircmica que nos propicia pela primeira vez uma visatildeo clara do perfil

propriamente dito de seus escritos geniais Ao contraacuterio Platatildeo e Aristoacuteteles satildeo

decisivos para a constituiccedilatildeo das estruturas preacutevias de nossa interpretaccedilatildeo dos

entes porque temos neles a origem de boa parte dos horizontes investigativos

posteriormente sedimentadosrdquo (CASANOVA 2009 p59)

Heidegger entatildeo busca em Aristoacuteteles o ponto de partida natildeo soacute para as

interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas enquanto repeticcedilatildeo da pergunta ontoloacutegica fundamental

como tambeacutem para a interpretaccedilatildeo do uacutenico ente capaz de compreender o sentido do ser

dos entes o ser-aiacute Natildeo sem questionar a leitura tradicional da obra de Aristoacuteteles

Heidegger retomou a importante ldquodoutrinardquo do estagirita a qual estabelecia uma relaccedilatildeo

entre a sabedoria praacutetica (φρόνησις) a sabedoria (σοφία) e a vida do homem e seu modo

de existecircncia (βιος) De modo mais claro

ldquoAteacute Heidegger era comum tratar a obra de Aristoacuteteles a partir de um primado

da filosofa teoacuterica em relaccedilatildeo agrave filosofia praacutetica um primado que havia sido

preparado pelo modo tradicional de leitura do estagirita Partindo da concepccedilatildeo

aristoteacutelica da vida teoacuterica (βίος θεωρητικός) como a vida mais plena possiacutevel e

da filosofia como uma ciecircncia que natildeo se ateacutem aos entes em geral nem tampouco

a um ente especiacutefico mas que tem por uacutenico objeto o ser enquanto ser a

interpretaccedilatildeo tradicional do corpus aristoteacutelico cindiu radicalmente o acircmbito

praacutetico do acircmbito teoacuterico definindo o segundo como o uacutenico acircmbito da verdade

propriamente dita Com isso o acircmbito praacutetico foi relegado a um segundo plano

ao plano daquilo que dizia respeito apenas agrave melhor forma mundana de vidardquo

(CASANOVA 2009 p64)

76

O que estaacute em questatildeo para Heidegger natildeo eacute apenas identificar o fato de que nos

encontramos numa determinada tradiccedilatildeo definida por um extrato do conhecimento

historiograacutefico mas compreender radicalmente como nos situamos nessa tradiccedilatildeo No

texto de 1922 Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da

situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) comumente chamado de Natorp-Bericht ou Relatoacuterio-

Natorp Heidegger tenta explicitar a situaccedilatildeo hermenecircutica atraveacutes do como (wie) de todo

aparecer dos entes e das possibilidades do ser-aiacute na vida faacutetica Sendo o ser-aiacute aquele que

compreende a si mesmo e os outros entes sem qualquer preacutevia teorizaccedilatildeo em seu

acontecimento compreensivo Para tanto eacute necessaacuterio esclarecer as condiccedilotildees de

compreensatildeo e interpretaccedilatildeo ou conquistar o horizonte de sentido jaacute aberto no qual jaacute se

encontra o fenocircmeno da vida As condiccedilotildees satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a

direccedilatildeo da visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a

lsquovisibilidadersquo (Sichtweite)60 Satildeo essas condiccedilotildees que compotildeem a compreensatildeo e a

interpretaccedilatildeo ontoloacutegicas-temporais do ser-aiacute em relaccedilatildeo agraves suas possibilidades de ser e

em relaccedilatildeo aos entes que lhe vem ao encontro Essas condiccedilotildees natildeo satildeo lsquobarreirasrsquo para

o entendimento ao contraacuterio satildeo condiccedilotildees de abertura primaacuteria para qualquer

compreensatildeo ontoloacutegica Tentando esclarecer em (1) temos o acircmbito da realidade dada

em uma preacutevia abertura temporal de sentido em (2) a direccedilatildeo que jaacute determinou algo

ldquocomo-algordquo (Als-was) e ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu

lugar significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de

toda possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o

como do aparecer dos entes em seu ser e as possibilidades de comportamentos do ser-aiacute

eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto (1) e jaacute

interpretado (2) e por isso pode mover-se com pretensotildees de objetividade e definiccedilatildeo dos

entes

Eacute a partir dessas consideraccedilotildees que Heidegger desconstroacutei as noccedilotildees de

Aristoacuteteles engessadas pela tradiccedilatildeo de noucircs phroacutenesis e sophiacutea natildeo mais como

conceitos definidos a partir da leitura tematicamente eacutetica do Estagirita mas a partir da

orientaccedilatildeo da biacuteos ou seja da vida do homem e seu modo de existecircncia faacutetica No interior

do Relatoacuterio-Natorp a partir da interpretaccedilatildeo do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco de

60 Cf HEIDEGGER(GA62)2002 p29

77

Aristoacuteteles Heidegger apresenta essas virtudes dianoeacuteticas como ldquodiferentes

modalidades que permitem levar a cabo uma autecircntica custoacutedia do ser na verdade61rdquo

(HEIDEGGER (GA62) 2002 p60) O que quer dizer que se trata dos modos pelos quais

o ser-aiacute protege o ser dos entes enquanto desvelado (ἀλήθεια)

Para Heidegger o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona

um lsquoaquirsquordquo62 (HEIDEGGER(GA62) 2002 p66) essa virtude proacutepria do homem ldquose

realiza como ενέργεια como atividade () ou seja o νους abre um horizonte que sempre

responde a um modo concreto de tratar com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma

execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma determinaccedilatildeo63rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002

p66) O noucircs compreendido tradicionalmente como intelecto racional eacute proacuteprio do

homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica (homem (animal [gecircnero] + racional [diferenccedila

especiacutefica]) mas porque o homem ou melhor o ser-aiacute eacute o ente que pode custodiar abrir-

se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um compreender que jaacute interpreta

os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto na vida faacutetica que acontece

fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da

solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato praacutetico com os entes Essa

orientaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel porque no noucircs ldquoo loacutegos o legein eacute o modo atraveacutes do qual se

realiza o noein e como tal eacute um como tal eacute um διανοείσθαι um inteligir que decompotildee

e que apreende64rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002 p65) Vimos (II) que o λόγος na

fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν de interpretaccedilatildeo e natildeo diz

respeito agrave definiccedilatildeo linguiacutestica de um ou outro ente mas previamente a qualquer

determinaccedilatildeo gramatical ou categorial refere-se ao que manteacutem o ente como existente

portanto desvelado e interpretado em seu lsquocomo-entersquo Assim a relaccedilatildeo fundamental da

phroacutenesis - que prescreve o como o para-que do ente (utensiacutelio) - ao ser-aiacute eacute o

61 ldquoLa interpretacioacuten de este tratado prescindiendo provisionalmiente de la problemaacutetica especiacuteficamente

eacutetica permite comprender que las laquovirtudes dianoeacuteticasraquo son diferentes modalidades que permiten llevar a

cabo uma auteacutentica custodia del ser en la verdaderdquo Opcitp60 62 ldquoEl νους ofrece en general una perspectiva da algoproporciona un lsquoaquiacutersquordquoOp cit p66

63 ldquoEl νοῦς que es ίδιος άνθρωπος se realiza concretamente como ενέργεια como actividad como su

propia actividad es decir el νοῦς abre un horizonte que siempre responde a un modo concreto de tratar

con el mundo a traveacutes de una opercioacuten de una ejecucioacuten de una manipulacioacuten de una determinacioacutenrdquo

Opcitp66

64 ldquoel λόγος el λέγειν es el modo em el que se realiza el νοεῖν y como tal es un διανοείσθαι un inteligir

que decompone lo que apreenderdquo Opcit p65

78

desvelamento do ente no instante do proacuteprio trato da proacutepria atividade praacutetica sem

qualquer mediaccedilatildeo teoacuterica com o ente

Mas as atividades praacuteticas satildeo realizadas natildeo com fim em si mesmas mas com

vistas agrave execuccedilatildeo de um fim mobilizado pelo proacuteprio ser-aiacute em sua vida cotidiana e faacutetica

Assim o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se encontra o fenocircmeno da vida

parte do instante mesmo que potildee ao alcance da vista circunspecta o modo de

comportamento apropriado com o ente com vistas agrave execuccedilatildeo de um fim Desse modo

ldquoO ser da vida eacute considerado como uma atividade que encontra em si mesmo seu

fim o ser da vida se encontra nessa atividade quando a vida humana chegou a

seu fim com respeito a sua possibilidade de movimento mais proacutepria a

possibilidade de inteligir puro Essa atividade eacute proacutepria da εξις [do modo de ser]

que se conhece como σοφία Conforme seu caraacutecter intencional o compreender

puro natildeo custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo

forma parte do horizonte intencional da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso

pode ser de outra maneira O ser da vida humana deve ser considerado

unicamente desde a perspectiva da temporalizaccedilatildeo pura da σοφία como tal e em

razatildeo da autecircntica atividade a sua disposiccedilatildeordquo65 (HEIDEGGER (GA62) 2002

p71)

Assim o sentido do ser soacute pode ser abordado atraveacutes do ser-aiacute pois a pergunta

pelo ser do ser-aiacute possibilita a pergunta pelo sentido do ser em geral natildeo por um

fundamento teoacuterico mas como uma condiccedilatildeo ontoloacutegica O ser-aiacute eacute o ente que pode abrir-

se ao desvelamento dos entes e o faz a partir da proacutepria vida faacutetica sem qualquer

teorizaccedilatildeo preacutevia o ser-aiacute mobiliza o ser dos entes em geral em funccedilatildeo da proacutepria vida

ou seja dos modos possiacuteveis de ser a partir de sua temporalidade

Desde as primeiras investigaccedilotildees de Heidegger na deacutecada de 1920 daacute-se uma

profunda transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia a qual consiste na tentativa de

mostrar como eacute possiacutevel articular filosoficamente uma ciecircncia originaacuteria da vida ou em

mostrar como se daacute a realidade antes de qualquer consideraccedilatildeo cientiacutefica ajuizante isso

65 ldquoEl ser de la vida es considerado como uma actividad que encuentra em siacute mesma su fin el ser da la vida

se encuentra em esta actividad cuando la vida humana haacute llegado a su fin com respecto a su posibilidad de

movimento maacutes propia la posibilidad del inteligir puro Esta actividad es propia de la εξις [del modo de

ser] que se conoce como σοφία Conforme a su caraacutecter intencional el comprender puro no custodia la vida

humana en el modo de su ser faacutectico la vida humana no forma parte del horizonte intencional de la σοφία

ya que es un ente que en cada caso puede ser de otra manera El ser de la vida humana debe considerarse

unicamente desde la perspectiva de la temporalizacioacuten pura de la σοφία como tal y en razoacuten de la auteacutentica

actividad a su disposicioacutenrdquo Opcitp71

79

quer dizer antes de qualquer concepccedilatildeo teoacuterica de mundo Nesse sentido vimos que a

intencionalidade fenomenoloacutegica eacute intuiccedilatildeo compreensiva ou intuiccedilatildeo hermenecircutica em

meio ao mundo circundante que vem ao encontro E as coisas que vecircm ao encontro natildeo

respondem primariamente ao tradicional esquema sujeito-objeto mas resultam

compreensiacuteveis a partir da pertenccedila preacutevia a um mundo jaacute articulado ou a partir de um

estado de coisas preacute-compreendido na vida faacutetica que articula toda e qualquer

compreensatildeo do homem (das coisas e de si mesmo) desde sua existecircncia imediata no

mundo Dito de outro modo revela-se como compreensatildeo ontoloacutegica

Ao decidirmos apresentar as preleccedilotildees de Heidegger que antecederam a obra central

para o nosso trabalho foi nosso intuito elucidar os princiacutepios que provavelmente

motivaram a problemaacutetica exposta em Ser e Tempo A partir de agora nossa tarefa seraacute a

de tentar compreender a partir da obra de 1927 como o fenocircmeno da linguagem aparece

no interior dessa compreensatildeo e em que medida a linguagem eacute possiacutevel por uma

estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Eacute a tentativa de nosso proacuteximo capiacutetulo

80

Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da

linguagem (Sprache) em Ser e Tempo

ldquoa maacutequina do mundo se entreabriu para quem de a romper jaacute se esquivava e soacute de o ter pensado se carpiardquo (A maacutequina do mundo Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

Nos capiacutetulos anteriores descrevemos como do desenvolvimento das ciecircncias

positivas particulares no final do seacuteculo XIX emergiu a discussatildeo acerca do sentido e da

possibilidade do conhecimento No interior desse contexto destacamos o pensamento de

Husserl de Dilthey e as linhas gerais de alguns neokantianos de Baden A partir daiacute

descrevemos como a criacutetica heideggeriana agrave filosofia dos valores dos neokantianos

conduziu-o ao que ele proacuteprio chamou de lsquoes gibtrsquo originaacuterio como o campo

hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Para compreender a questatildeo pelo

sentido do ser em geral ie a proacutepria ontologia para Heidegger era necessaacuterio esclarecer

que a fenomenologia natildeo estava fundada na epistemologia (a partir da consciecircncia) e que

a hermenecircutica natildeo era apenas um instrumento metodoloacutegico capaz de nos dar acesso agrave

histoacuteria em sua objetividade mas muito mais do que isso ela era intuiccedilatildeo compreensiva

e imediata do mundo Assim a partir da criacutetica imanente que Heidegger fez ao meacutetodo

fenomenoloacutegico husserliano foi possiacutevel compreender como ele reconduziu a filosofia agrave

pergunta fundamental inaugurada no iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo a

pergunta pelo ser Aleacutem disso como o pensador desenvolveu a hermenecircutica voltada agrave

facticidade da vida natildeo em funccedilatildeo das vivecircncias da consciecircncia dos sujeitos histoacutericos

mas das vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico Todo esse percurso foi necessaacuterio para que

pudeacutessemos conquistar um solo interpretativo capaz de sustentar a anaacutelise do fenocircmeno

da linguagem tal como aparece em Ser e Tempo E ainda alcanccedilar a pergunta pelo

81

sentido de ser Pois ela a pergunta estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura

de sentido que precisamos explicitar

Contra a tradicional abordagem do problema da linguagem que mais comumente

focalizou as obras de Heidegger apoacutes a viragem (die Kehre)66 ie os escritos a partir

da deacutecada de 1930 neste capiacutetulo defenderemos que o fenocircmeno da linguagem (Sprache)

jaacute desempenha um papel decisivo em Ser e Tempo e que ele soacute se torna possiacutevel a partir

de uma das estruturas preacutevias existenciaacuterias examinadas na citada obra e que eacute a

estrutura de mostraccedilatildeo dos entes Assim embora admitindo que a questatildeo da linguagem

ainda natildeo estivesse posta de modo expliacutecito ou temaacutetico nosso trabalho pretende chamar

atenccedilatildeo para a inegaacutevel funccedilatildeo que a linguagem cumpre jaacute na obra de 1927

No sect 18 de Ser e Tempo Heidegger afirma que a significatividade funda a

possibilidade de significaccedilotildees e estas a possibilidade da linguagem

Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez

familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o

Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como

lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutengua

(HEIDEGGER 2012p261)

66 Apoacutes a Kehre nos anos 1930 a questatildeo do sentido de ser eacute reconduzida agrave histoacuteria e verdade do seer Este

movimento estaacute diretamente relacionado com o limite mesmo da obra de 1927 pois o processo de

singularizaccedilatildeo do ser-aiacute conforme elaborado em Ser e Tempo parece natildeo ser suficiente para a

movimentaccedilatildeo do horizonte histoacuterico e de sua semacircntica fechada Essa insuficiecircncia eacute levada agraves uacuteltimas

consequecircncias a partir dos anos 1930 e radicalizada com uma viragem em direccedilatildeo ao campo dos

acontecimentos histoacutericos Em Ser e tempo a negatividade proacutepria ao ser-aiacute apontava para a possibilidade

de mobilidade histoacuterica a partir da assunccedilatildeo como singularizaccedilatildeo de sua proacutepria negatividade e de sua

responsabilidade mais proacutepria como ser-aiacute de decisatildeo quanto aos caminhos de sua proacutepria existecircncia Jaacute

apoacutes a viragem a negatividade se mostraraacute natildeo somente a partir do ser-aiacute mas tambeacutem no assentamento

de toda abertura histoacuterica compreensiva uma negatividade que se mostraraacute na ausecircncia mesma de

fundamentos absolutos Caberia ademais considerar um aprofundamento das estruturas fenomenoloacutegicas

mais fundamentais no decorrer do pensamento de Heidegger Seraacute que em Ser e Tempo podemos defender

que a abertura que sustenta o sentido de ser do ser-aiacute como cuidado e temporalidade (Zeitlichkeit) estaria

afinal assentada no tempo histoacuterico Questatildeo afinal expressa na uacuteltima linha de Ser e tempo ldquoO tempo

(Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Seria entatildeo possiacutevel

pensar esse aprofundamento do gesto fenomenoloacutegico como a busca do limite de qualquer

intencionalidade Dito de outro modo apoacutes a Kehre o ser enquanto Ereignis (acontecimento apropriador)

poderia ser compreendido como o acircmbito sempre fugidio de toda e qualquer intencionalidade mas ao

mesmo tempo acircmbito no qual unicamente toda e qualquer intencionalidade pode acontecer Revelar-se-ia

o sentido fenomenoloacutegico do que Heidegger chama de clareira (die Lichtung)

82

Na seacutetima ediccedilatildeo de Ser e Tempo publicada em 1953 numa nota muito

esclarecedora acrescentada justamente a esta passagem acima citada Heidegger

evidenciou a diferenccedila entre a sua concepccedilatildeo da linguagem nos anos 20 e aquela apoacutes a

viragem Essa nota apareceu nas obras completas publicadas a partir de 1977 e tambeacutem

na traduccedilatildeo brasileira aqui utilizada Nessa nota muito importante para o objetivo desta

pesquisa o autor corrigiu sua proacutepria afirmaccedilatildeo (1927) de que a linguagem era derivada

Em 1953 ele declarou categoricamente que natildeo era verdadeiro que ldquoDasein-que-entende

[pudessecc] abrir como interpretante algo assim como lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais

[fundariamcc] novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo E que ldquoa liacutengua natildeo eacute

um pavimento sobreposto a outro senatildeo que eacute o desdobrar-se originaacuterio da verdade como

[aiacute] (HEIDEGGER 2012p261 nota c) Essa correccedilatildeo nos daacute uma prova de que a

concepccedilatildeo de linguagem em Ser e Tempo possuiacutea uma estratificaccedilatildeo que natildeo mais eacute aceita

apoacutes os anos 30 Poreacutem como aponta Stein o fenocircmeno da linguagem jaacute desempenhava

um importante e inegaacutevel papel no interior do tratado de 1927

Heidegger liga o questionamento de sua obra prima ao problema da linguagem

Ela assume papel condutor na elaboraccedilatildeo de seu meacutetodo e na realizaccedilatildeo analiacutetica

existencial No meacutetodo fenomenoloacutegico como interpretaccedilatildeo ou hermenecircutica

universal como apossamento de tudo o que foi transmitido pela tradiccedilatildeo atraveacutes

da linguagem como destruiccedilatildeo e revolvimento do chatildeo linguiacutestico da metafiacutesica

ocidental se descobre um imenso projeto de analiacutetica da linguagem Mas como

o meacutetodo fenomenoloacutegico visa o redimensionamento da questatildeo do ser natildeo numa

abstrata teoria do ser nem numa pesquisa historiograacutefica de questotildees ontoloacutegicas

mas numa imediata proximidade com a praacutexis humana como existecircncia e

facticidade a linguagem - o sentido a significaccedilatildeo - natildeo eacute analisada nun sistema

fechado de referecircncias mas ao niacutevel da historicidade Se no meacutetodo dialeacutetico

podemos encontrar uma certa miacutestica teleo-loacutegica (teleacuteo-troacutepica) a palavra no

meacutetodo do positivismo uma certa tecno-loacutegica da linguagem encontramos no

meacutetodo fenomenoloacutegico de Heidegger uma certa onto-loacutegica do dizer isto eacute uma

compreensatildeo da dimensatildeo preacute-ontoloacutegica da linguagem ligada a explicitaccedilatildeo do

mundo como horizonte de transcendecircncia (STEIN1971 p14)

Ser e Tempo possui certo caraacuteter preparatoacuterio pois eacute a tentativa de reformulaccedilatildeo

da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido depende justamente daquela

reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo O objetivo do tratado

eacute nos proacuteprios termos de Ser e Tempo a elaboraccedilatildeo concreta da pergunta pelo sentido

de ldquoserrdquo (Sinn von Sein) (HEIDEGGER2012 p31) No interior da elaboraccedilatildeo da proacutepria

83

pergunta a abordagem fenomenoloacutegica-hermenecircutica como meacutetodo de acesso ao sentido

de ser de todo ente acaba por demonstrar que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as

coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um campo de signos referenciais fechados que

doam significado agraves coisas mas uma manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez

se faz presente na facticidade da existecircncia concreta Nossa tentativa no presente capiacutetulo

eacute compreender como a partir da reelaboraccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ser e de seu

desenvolvimento nessa obra a linguagem se mostra enquanto manifestaccedilatildeo uacuteltima de um

horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo previamente

articulada dos entes e das possibilidades do ser-aiacute E dessa maneira indicar como as

palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da

experiecircncia hermenecircutica Mas antes de iniciarmos nosso capiacutetulo eacute necessaacuterio fazer

algumas consideraccedilotildees que se tornaram agora possiacuteveis apoacutes o desenvolvimento dos

capiacutetulos anteriores e as quais balizam nossa investigaccedilatildeo central

Certamente a fenomenologia husserliana tambeacutem natildeo atribui agrave linguagem um

aspecto referencial de acesso agraves coisas ao contraacuterio a assim chamada visatildeo das essecircncias

eacute a maneira de depurar o conteuacutedo linguiacutestico do conteuacutedo significativo preacute-linguiacutestico

Nas palavras de Gadamer (2010 p8)

A eleiccedilatildeo do modelo da visatildeo como modo do procedimento fenomenoloacutegico

indica que coisa mesma eacute preacute-conceptual e preacute-linguiacutestica A linguagem permite

articular o sentido da coisa mesma que contudo eacute independente da linguagem Eacute

aliaacutes apenas neste quadro que o exerciacutecio da eacutepoche se torna compreensiacutevel A

epocheacute eacute o que torna possiacutevel a reduccedilatildeo ao estado absolutamente desprovido de

preconceitos Mas o que eacute que torna a epocheacute possiacutevel A epocheacute eacute considerada

por Husserl como uma possibilidade de princiacutepio e como uma possibilidade

universal Mas esta possibilidade pressupotildee que se possa passar de uma plano

predicativo ndasho da linguagem ndash para um plano ante-predicativo - o da pura visatildeo

[] Por outro lado aquilo que se daacute de uma forma originaacuteria e na sua pureza daacute-

se como presenccedila absoluta numa figuraccedilatildeo atemporal Os fenoacutemenos no sentido

husserliano caracterizam-se por serem dados agrave consciecircncia de uma forma

absolutamente evidente e uacuteltima o fenoacutemeno eacute absoluta presenccedila a sua doaccedilatildeo

eacute plena

Husserl busca avanccedilar ateacute um plano imediato da experiecircncia que anteceda agrave

interpretaccedilatildeo como experiecircncia preacute-linguiacutestica a partir de intenccedilotildees linguiacutesticas Assim

busca na intencionalidade do fenocircmeno um estado desprovido de preconceito (epocheacute)

Heidegger alia-se a Husserl contra a tese de que o sentido ou o significado sejam

84

linguiacutesticos Contudo para o autor de Ser e Tempo toda experiecircncia jaacute inclui uma

interpretaccedilatildeo certamente natildeo linguiacutestica mas hermenecircutica e fundamentalmente praacutetica

Dessa forma intencionar um fenocircmeno a partir de um horizonte histoacuterico hermenecircutico eacute

considerar e apropriar-se do significado oferecido pelas condiccedilotildees preacutevias e em uacuteltima

anaacutelise por uma semacircntica sedimentada Dito de outro modo para Husserl a expressatildeo

linguiacutestica eacute a maneira de o pensamento intencionar significaccedilatildeo e a orientaccedilatildeo da

pesquisa pela condiccedilatildeo e possibilidade do conhecimento suspende todo posicionamento

ontoloacutegico da coisa mesma em prol do acesso epistemoloacutegico objetivo aos fenocircmenos Jaacute

na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto ontoloacutegico do

conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e qualquer significado

que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido que eacute tambeacutem histoacuterico e no qual

algo pode manter-se em seu significado Eacute nessa perspectiva que nos colocamos em busca

da estrutura ontoloacutegica da linguagem

Portanto eacute importante ter em vista que para Heidegger

(1) a experiecircncia hermenecircutica traz a significatividade (Bedeutsamkeit) que potildee a

descoberto todo e qualquer ente E na medida em que essa experiecircncia orienta o ponto

de partida da intencionalidade67 ela desvela o ente em seu ser o qual (ente) aparece

como algo No entanto essa significatividade se manteacutem em virtude de uma dupla

67 O termo ldquoDaseinrdquo eacute utilizado por Heidegger para afastar qualquer compreensatildeo de homem como

ldquosujeitordquo ldquoconsciecircnciardquo ldquoanimal racionalrdquo etc Desse modo poder-se-ia pensar que uma vez afastadas

essas interpretaccedilotildees tambeacutem o termo lsquointencionalidadersquo deveria ser desconsiderado pois a fenomenologia

husserliana o utiliza como ato de consciecircncia Natildeo eacute o caso Heidegger ainda manteacutem a orientaccedilatildeo

fenomenoloacutegica poreacutem a desloca da consciecircncia para a abertura compreensiva sendo ser-aiacutemundo a

relaccedilatildeo intencional primaacuteria e ainda essa compreensatildeo eacute fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo

circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser Ou sejavisatildeo natildeo teoacuterica

sem a primazia da consciecircncia A intencionalidade eacute pensada portanto natildeo como ato de consciecircncia mas

abertura compreensiva mobilizada por toda e qualquer performatizaccedilatildeo existencial Em Ser e Tempo o

termo lsquointencionalidadersquo e seus derivados aparecem apenas 4 vezes em 2 momentos 1) No sect10 ldquoAgrave essecircncia

da pessoa pertence o existir somente na execuccedilatildeo dos atos intencionais [intentionalen] e assim ela por

essecircncia natildeo eacute objeto () Em todo caso a pessoa eacute dada enquanto executora de atos intencionais

[intentionaler]ligados pela unidade de um sentidordquo (2012 p155) 2) No sect69 nota 10 ldquoA anaacutelise

intencional [intentionalen] da percepccedilatildeo e da intuiccedilatildeo em geral deveria sugerir essa caracterizaccedilatildeo

lsquotemporalrsquo do fenocircmeno Que e como a intencionalidade [Intentionalitaumlt] da lsquoconsciecircnciarsquo se funda na

temporalidade estaacutetica do Dasein ()rdquo Essa uacuteltima passagem eacute decisiva A intencionalidade eacute portanto

mantida por Heidegger mas deve ser compreendida em funccedilatildeo do sentido de ser do ser-aiacute a temporalidade

que abre compreensivamente o ser dos entes em geral Cf tambeacutem nota 70

85

abertura de sentido (Sinn) a abertura de mundo em funccedilatildeo do ser-aiacute e o sentido de ser

do ser-aiacute em funccedilatildeo da temporalidade de sua existecircncia

(2) a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados

(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Entatildeo o significado pode

vir a ganhar sua expressatildeo e forma predicativas a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo

(Aussage) em sua ligaccedilatildeo derivativa da interpretaccedilatildeo (Auslegung) Apresentando dessa

maneira o caraacuteter originaacuterio da verdade enquanto desvelamento (Aleacutetheia) e natildeo como

aderente ao juiacutezo proposicional como compreendeu a tradiccedilatildeo Eacute assim que se daacute

primariamente o acesso ao fenocircmeno da linguagem em seu sentido ontoloacutegico

Podemos antecipar aqui o que seraacute desenvolvido nesse capiacutetulo a linguagem estaacute

assentada em duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado68 que

revelam a diferenccedila entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm

articulados pela imbricaccedilatildeo radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno

Finalmente pedindo a paciecircncia do nosso leitor antes de comeccedilarmos o capiacutetulo

III vamos repetir um pouco o que jaacute foi adquirido nos dois primeiros capiacutetulos da

Dissertaccedilatildeo quando tentamos mostrar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger no

interior da fenomenologia (a partir de sua criacutetica imanente e radicalizaccedilatildeo do gesto

fenomenoloacutegico) foi decisiva para a virada da questatildeo compreendida como possibilidade

de acesso pelo sentido do conhecimento ao sentido do ser Agora a partir de Ser e Tempo

eacute possiacutevel considerar que houve um aprofundamento desse gesto fenomenoloacutegico Por

outra teria ocorrido um aprofundamento ou uma radicalizaccedilatildeo das estruturas

fenomenoloacutegicas De modo mais claro eacute possiacutevel compreender o percurso heideggeriano

como uma tentativa de lanccedilar a intencionalidade enquanto essecircncia mesma da

68 Diferentemente de VIGO (2012 p71) que considera 3 estruturas compreensatildeo (Verstehen) -

interpretaccedilatildeo (Auslegung) e enunciado (Aussage) noacutes consideraremos apenas duas tendo em vista que

julgamos natildeo ser a compreensatildeo uma estrutura autocircnoma e que portanto ela natildeo deve ser separada da

interpretaccedilatildeo Seguimos a letra do sect32 de Ser e Tempo ldquoNa interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo

diverso mas torna-se ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p421) Pensamos que conceder autonomia agrave

compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido primaacuterio ao natildeo remetecirc-la ao Dasein quem

compreendendo jaacute interpreta e custodia o sentido de ser dos entes jaacute estariacuteamos no campo dos

acontecimentos histoacutericos Portanto estariacuteamos ultrapassando os limites de Ser e Tempo ou mais

especificamente falando os limites da ldquoAnaliacutetica Existencialrdquo

86

fenomenologia num acircmbito fundamental que se abriria a toda e qualquer possibilidade

de intencionalidade Vejamos essas questotildees mais detidamente

Como jaacute indicado tanto em Heidegger como em Husserl existe um primado da

experiecircncia antepredicativa em detrimento da predicaccedilatildeo ou da experiecircncia

predicativamente articulada69 Jaacute na preleccedilatildeo de 1919 Heidegger apontava o lsquoes gibtrsquo

originaacuterio ou a concretude do mundo que se daacute como acircmbito fundamental no qual se abre

a possibilidade de intencionalidade Depois dela as preleccedilotildees dos anos 1920 passaram a

descrever a intencionalidade como uma noccedilatildeo praacutetica orientada pela ocupaccedilatildeo e com base

nisso descreveram a experiecircncia antepredicativa e histoacuterica do significado Mas foi

somente em Ser e Tempo que Heidegger elaborou uma ontologia fundamental a partir da

analiacutetica existenciaacuteria70 do ser-aiacute A ontologia fundamental eacute descrita como a necessidade

de pocircr em questatildeo o ente em que a compreensatildeo de ser enquanto questatildeo eacute possiacutevel ou

como expresso no Relatoacuterio Natorp o ente que pode custodiar abrir-se ao desvelamento

do ser dos entes Mas o que isso significa sob uma perspectiva fenomenoloacutegica

A descriccedilatildeo do ser-aiacute como existecircncia projetiva assentada em sua negatividade

proacutepria (negatividade entendida pelo fato de que o ser-aiacute soacute eacute a partir do seu aiacute de sua

69 Nesse sentido conferir tambeacutem VIGO 2012 p75 70 Na traduccedilatildeo de Ser e Tempo utilizada os termos Existenzial e Existenzielle satildeo traduzidos por

ldquoexistenciaacuteriordquo e ldquoexistencialrdquo respectivamente A diferenccedila foi estabelecida por Heidegger para marcar a

determinaccedilatildeo constitutiva da existecircncia (ou sua estrutura) cuja determinaccedilatildeo cabe agrave ontologia

(existenciaacuterio) da determinaccedilatildeo existencial (existencial) que trata de um assunto ocircntico do Dasein ou de

um conhecimento que conduz a si mesmo (HEIDEGGER 2012 sect4-9)

Apesar da consulta a outras traduccedilotildees (francesa de Emmanuel Martineau e espanhola de Jorge Rivera)

usaremos os termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho Em alguns momentos aleacutem da

traduccedilatildeo de Castilho que eacute bastante recente (2012) tambeacutem citaremos as palavras da traduccedilatildeo brasileira

anterior (com exceccedilatildeo da traduccedilatildeo de lsquoDaseinrsquo como lsquopresenccedilarsquo que natildeo seraacute utilizada nesse trabalho)

Acerca dos termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho haveraacute apenas duas exceccedilotildees a

primeira refere-se ao uso da palavra lsquoDaseinrsquo a qual Castilho Rivera e Martineau mantiveram no original

alematildeo obedecendo uma sugestatildeo do proacuteprio Heidegger Ser-aiacute eacute a traduccedilatildeo portuguesa do termo alematildeo

Dasein que no uso comum na liacutengua alematilde eacute usado como sinocircnimo para existecircncia mas que no texto

heideggeriano tem um significado peculiar tornando a traduccedilatildeo do termo problemaacutetica Em uma carta de

Heidegger a Jean Beaufret datada de 23 de Novembro de 1945 o autor daacute a seguinte informaccedilatildeo ldquolsquoDa-

sein eacute uma palavra-chave do meu pensar por isso ela eacute causa de graves erros de interpretaccedilatildeo natildeo significa

para mim exatamente eis-me mas se eacute que me posso exprimir num francecircs sem duacutevida impossiacutevel ser-

o-aiacute e o-laacute significa exatamente Aleacutetheia desvelamento-aberturardquo (Carta sobre o humanismo Martin

Heidegger - 2 ed rev Traduccedilatildeo de Rubens Eduardo Frias Satildeo Paulo Centauro ndash 2005 p 89) Algumas

vezes infieacuteis a Castilho e ao proacuteprio Heidegger utilizaremos tambeacutem a sua traduccedilatildeo ldquoser-aiacuterdquo para maior

fluidez do texto A segunda exceccedilatildeo refere-se agraves citaccedilotildees cuja opccedilatildeo por traduccedilotildees tradicionais resolvemos

natildeo alterar

87

existecircncia) sem qualquer categoria preacutevia que o defina potildee em tela que esse ente eacute

marcado pelo caraacuteter de poder-ser orientando-se segundo possibilidades existenciais que

natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas somente na morte como fim de todas as

possibilidades Isso se daacute porque o ser-aiacute eacute o limite fundamental no qual se abre a

possibilidade de intencionalidade ou o sentido do experimentado enquanto

experimentado71 ldquoSoacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a abertura do ser-no-

mundo lsquopode ser preenchidarsquo pelo ente que nele pode ser descobertordquo (HEIDEGGER

2012 p429) De outro modo se para Husserl a noccedilatildeo de intencionalidade faz com que a

cada vez que o pensamento se volte agrave consciecircncia ela descortina sua direccedilatildeo em relaccedilatildeo

ao fenocircmeno Para Heidegger poreacutem uma vez superada a primazia da consciecircncia a

cada vez que o pensamento se volta ao Dasein ele descortina sua direccedilatildeo ao mundo

fenocircmeno originaacuterio em que os entes podem vir ao encontro em seu ser bem como as

possibilidades de ser do proacuteprio Dasein

A ontologia fundamental aparece em sua necessidade porque o ser-aiacute mesmo natildeo

pode ser intencionado significativamente natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente

e por isso seu caraacuteter de poder-ser por isso ele poder mobilizar sentidos e atualizar

significaccedilotildees Assim o ser-aiacute eacute o ente que custodia e compreende o ser do ente jaacute em suas

atividades praacuteticas ou seja ele mobiliza a intencionalidade mas eacute o ente que a

intencionalidade natildeo pode alcanccedilar Na tentativa de apreendecirc-lo em seu ser a anaacutelise

conduz para fora para seu ldquoaiacuterdquo Assim Dasein eacute ser-aiacute eacute existecircncia que se projeta

lanccedilada no ldquoaiacuterdquo histoacuterico O Dasein como apresentado por Heidegger ldquoenvolve uma

dimensatildeo de ser (-sein) e por outro uma dimensatildeo locativa um aiacute (Da-)rdquo (CASANOVA

2006 p12) e isto deve-se ao fato que ldquoapenas ele [Dasein] se acha no ponto de

imbricaccedilatildeo de ser e mundordquo (CASANOVA 2006 p12)

71 Cf HEIDEGGER (GA62) 2002 p 71 ldquoConforme seu caraacutecter intencional o compreender puro natildeo

custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo forma parte do horizonte intencional

da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso pode ser de outra maneirardquo ldquoDas reine Verstehen bringt

nicht etwa nach seinem intentionalen Charakter das menschliche Leben im Wie seines faktischen Seins in

Verwahrung die σοφία hat es uumlberhaupt nicht zu ihrem intentionalen Worauf es ist ja ein Seiendes das ist

gerade dadurch daszlig es je anders sein kannrdquo (HEIDEGGER GA62 [pp385-386] grifo nosso)

88

Dessa forma a pergunta pelo sentido do ser seraacute elaborada conforme os trecircs

momentos constitutivos da questatildeo descritos no sect2 de Ser e Tempo

1- O perguntando ou aquilo de que se pergunta ser do ente

2- O interrogado ou aquilo a quequem se pergunta Dasein

3- O perguntado ou aquilo que se pergunta sentido do ser em geral

A pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2) perguntando

sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma ontologia

fundamental Isso esclarecido podemos iniciar propriamente nosso capiacutetulo e tema

central de nosso trabalho

I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado)

Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico

II A dupla abertura de sentido (Sinn)

Conforme descrito no sect9 de Ser e Tempo o ser-aiacute eacute o ente que a cada vez somos

(eu tu etc) ou seja a particular existecircncia finita e histoacuterica natildeo um conceito geneacuterico

em que as diferenccedilas especiacuteficas apareceriam na experiecircncia sensiacutevel Para esse ente ldquoo

ser ele mesmo eacute o que estaacute a cada vez em jogordquo (HEIDEGGER 2012 p139) Existir e

ser responsaacutevel pelo seu ser eacute o mesmo No que existe o ser-aiacute tem-que-ser (Zu-sein) a

ele natildeo eacute facultado a escolha de haver ou natildeo com seu ser uma vez sendo ele eacute e sendo

ele ldquose comporta em relaccedilatildeo ao seu ser como em realizaccedilatildeo de sua possibilidade mais

proacutepria O Dasein eacute cada vez sua possibilidade (Moglichkeit)rdquo (HEIDEGGER 2012

p141)

Por meio de toda e qualquer performatizaccedilatildeo (com relaccedilatildeo a si mesmo em relaccedilatildeo

aos outros e em relaccedilatildeo aos entes) o ser-aiacute enssencializa a si mesmo como existecircncia E

89

no que se enssencia (como existecircncia e natildeo categorialmente) o seu ser mesmo estaacute em

jogo pois eacute por essa determinaccedilatildeo ontoloacutegica negativa que o ser-aiacute pode conquistar seu

poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees cotidianas

Assim o desenvolvimento da analiacutetica existenciaacuteria aponta para a compreensatildeo do

sentido formal72 da constituiccedilatildeo da existecircncia do ser-aiacute ldquoO Dasein se determina cada vez

como ente a partir de uma possibilidade que ele eacute e que ao mesmo tempo e de alguma

maneira ele entende em seu serrdquo (HEIDEGGER 2012 p 143)

As orientaccedilotildees cotidianas ou a cotidianidade mediana ndash em que o ser-aiacute pode

perder-se no poder-ser improacuteprio - natildeo deve ser considerada pejorativamente como algo

a ser extirpado da existecircncia e da analiacutetica Ao contraacuterio em realidade natildeo pode A

impropriedade oferecida por essas orientaccedilotildees eacute em suma a maneira inicial em que o ser-

aiacute - como ser-no-mundo como ente lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ndash estaacute aberto para seus

possiacuteveis modos de ser Dessa forma a anaacutelise da cotidianidade tem um caraacuteter

fenomecircnico positivo para a analiacutetica existenciaacuteria pois eacute a partir desse modo de ser

improacuteprio que o ser-aiacute eacute lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria

das vezes Portanto natildeo eacute apenas lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade

A analiacutetica existenciaacuteria inicia entatildeo sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio E se

dissemos haacute pouco eacute que por meio da performatizaccedilatildeo que o ser-aiacute enssencia a si mesmo

como existecircncia e essa orientaccedilatildeo para qualquer performance natildeo eacute ilimitada Como as

possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha para um ato de vontade

do ser-aiacute mas satildeo mobilizadas na e pela existecircncia radicalmente histoacuterica o ser-aiacute pela

abertura primaacuteria remetido ao mundo eacute marcado pelo caraacuteter de poder-ser (Seinkonnen)

mas em funccedilatildeo de sua realizaccedilatildeo como possibilidade (Moglichkeit) De modo mais claro

ldquopor natildeo possuir nenhuma quididade [o ser-aiacute cc] eacute a realidade da possibilidade para a

possibilidade () Natildeo podendo ser puro poder-ser pois se assim o fosse o ser-aiacute jaacute seria

algo positivamente definidordquo (CABRAL 2015 p79) Dessa forma o ser-aiacute que a cada

vez deve conquistar o seu ser na radicalidade de sua finitude e historicidade eacute o ente que

pode pela sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica mobilizar sentido E por isso mobilizar na

72 Quando nos referirmos a ldquosentido formalrdquo no decorrer de nosso trabalho Cf Capiacutetulo II- Item III-

Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal

90

concretude da vida faacutetica o sentido de ser dos entes os sentidos das relaccedilatildeo aos outros e

sentido de seu ser

ldquoO desvelamento do ser exige sempre um ponto de partida ocircntico Mas o ser-aiacute

eacute privilegiado e ontologicamente ocircntico por causa de sua preacutevia compreensatildeo de

ser Entatildeo o desvelamento do ser deveraacute ser tentado primordialmente a partir do

ser-aiacute mediante uma analiacutetica existencial de suas estruturas O sentido do ser

(preocupaccedilatildeo) dessas estruturas do ser-aiacute eacute a temporalidade Assim a analiacutetica das

estruturas deveraacute ser refeita no homem na temporalidaderdquo (STEIN 2001 p204)

A preacutevia compreensatildeo de ser do ser-aiacute sua negatividade quiditativa seu caraacuteter

de poder-ser e sua constituiccedilatildeo aberta lanccedilada e remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo eacute dada

como acontecimento compreensivo A compreensatildeo ou o entender (Verstehen) eacute uma

das estruturas existenciaacuterias desse ente ocircntico-ontoloacutegico73 e ldquoao interpretaacute-lo como

existenciaacuterio fundamental mostra-se que esse fenocircmeno eacute assim concebido como modus

fundamental do ser do Daseinrdquo (HEIDEGGER 2012 p407) Esse existenciaacuterio

fundamental natildeo refere a uma capacidade entre outras do ser-aiacute de apropriar-se de algo

pelo entendimento intelectivo natildeo eacute uma relaccedilatildeo entre sujeito-objeto mas a constituiccedilatildeo

fundamental do ser-aiacute como ser-no-mundo como relaccedilatildeo intencional primaacuteria e desse

modo o horizonte compreensivo do ser-aiacute com seu ser ldquoO ser-aiacute possui uma relaccedilatildeo

compreensiva com o seu ser porque eacute somente por meio da compreensatildeo que ele encontra

o campo de jogo no interior do qual pode conquistar esse seu serrdquo(CASANOVA 2006

p 13) O ldquoDardquo ou ldquoaiacuterdquo do Dasein e sua estrutura fundamental ser-no-mundo podem ser

esclarecidos em contraponto a concepccedilatildeo paradigmaacutetica da epistemologia moderna de

Kant por exemplo O entender (Verstehen) tal como Heidegger o apresenta natildeo se baseia

na associaccedilatildeo psicoloacutegica das representaccedilotildees ou ainda a abertura primaacuteria que conduz o

ser-aiacute agraves suas possibilidades em que seu ser estaacute em jogo natildeo eacute algo como apercepccedilatildeo

No paradigma epistemoloacutegico da modernidade em uacuteltima instacircncia o entendimento eacute

uma reconstruccedilatildeo interna dos elementos externos do mundo reconstruccedilatildeo essa que

depende das faculdades cognitivas do sujeito capazes de unificar o agregado de

experiecircncias externas O entendimento em Heidegger eacute a abertura primaacuteria uma relaccedilatildeo

intencional estruturante ser-aiacute eacute ser-no-mundo portanto o Dasein eacute sempre remetido ao

73 Ocircntico pelo fato de ser ainda um ente ontoloacutegico pelo fato de ser o ente que pode e sempre abre a

compreensatildeo de ser (Cf HEIDEGGER 2012 sect4-9)

91

ldquomundordquo projetado para ldquoforardquo e esse ldquoforardquo eacute sempre abertura compreensiva ao mundo

faacutetico como horizonte hermenecircutico de sentido

Essa abertura compreensiva fundamental descerra o poder-ser do ser-aiacute como

projeto O fato de o ser-aiacute ser lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ao seu poder -ser em um

campo de jogo para seus possiacuteveis modos de ser natildeo conduz a um determinismo

circunstancial o qual o ser-aiacute estaria fadado a reproduzir maquinalmente e atualizar

incessantemente Tambeacutem ldquoo projetar nada tem a ver com um comportar-se em relaccedilatildeo a

um plano ideado de acordo com o qual o Dasein organizaria o seu serrdquo (HEIDEGGER

2012 p413) mas originariamente ldquoele sempre jaacute se projetou e se projeta enquanto eacuterdquo

(HEIDEGGER 2012 p413) A noccedilatildeo de projeto repousa na abertura compreensiva do

ser-aiacute e na sua ligaccedilatildeo radical com suas possibilidades Logo no iniacutecio do sect32 essa noccedilatildeo

eacute explicitada

ldquoO Dasein como entender projeta seu ser em possibilidades Esse entendedor ser

para possibilidades eacute ele mesmo um poder-ser pelo efeito contraacuterio que as

possibilidades como abertas tecircm sobre o Dasein O projetar do entender tem uma

possibilidade proacutepria de desenvolvimento Chamamos interpretaccedilatildeo o

desenvolvimento do entender Na interpretaccedilatildeo o entender entendendo

apropria-se do seu entendido Na interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo

diverso mas torna-se ele mesmo () A interpretaccedilatildeo natildeo consiste em tomar

conhecimento do entendido mas em elaborar possibilidades projetadas no

entenderrdquo (HEIDEGGER 2012 p421)

Dissemos haacute pouco que as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como

disponiacuteveis agrave escolha e agrave espera de um ato de vontade do ser-aiacute (natildeo estatildeo suspensas como

que dadas a cada ser-aiacute ao nascer como gocircndolas de projetos de ser) mas satildeo mobilizadas

na e pela existecircncia E ainda que essa existecircncia seja sempre projetiva em um mundo

histoacuterico Desse modo o entender (Verstehen) acontece sempre como interpretaccedilatildeo

(Auslegung) a abertura ao mundo eacute um projeto de sentido do ser-aiacute que jaacute interpreta que

jaacute potildee em visatildeo o que entende Mas o que isso quer dizer Como Heidegger chega a esses

existenciaacuterios

Vimos no capiacutetulo anterior a partir da leitura do texto de 1922 Interpretaccedilotildees

fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) ou

Relatoacuterio-Natorp que o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona

92

um lsquoaquirsquordquo essa virtude proacutepria do homem ldquose realiza como ενέργεια como atividade

() ou seja o νους abre um horizonte que sempre responde a um modo concreto de tratar

com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma

determinaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2002 p66) Compreendido tradicionalmente como

intelecto propriamente racional o noucircs eacute proacuteprio do homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica

[homem (animal (gecircnero) + racional (diferenccedila especiacutefica)] mas porque o ser-aiacute eacute o ente

que pode custodiar abrir-se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um

compreender que jaacute interpreta os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto

na vida faacutetica que acontece fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis

enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato

praacutetico com os entes

Em Ser e Tempo Heidegger descreve as vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico e

tambeacutem como o fenocircmeno do mundo se mostra atraveacutes dos entes intramundanos A forma

imediata de esses entes se mostrarem daacute-se na lida praacutetica que o ser-aiacute trava com eles em

um mundo circundante ou em um mundo-ambiente (Umwelt) Eacute atraveacutes da ocupaccedilatildeo

com os entes que o ser-aiacute se movimenta inicialmente na compreensatildeo faacutetica de mundo eacute

aiacute que o Dasein visualiza os entes em sua serventia especiacutefica no quadro de um horizonte

ocupacional Esse horizonte possui certa anterioridade em relaccedilatildeo ao proacuteprio uso do

instrumento ou utensiacutelio (Zeug) particular e isto fica claro no sect 15 quando Heidegger

potildee em relevo o modo de ser dos utensiacutelios na delimitaccedilatildeo preacutevia do que seja sua

instrumentalidade ldquoEm termos rigorosos um instrumento nunca lsquoeacutersquo isolado Ao ser de

instrumento pertence sempre cada vez um todo-instrumental no qual esse instrumento

pode ser o que ele eacute Instrumento eacute por essecircncia lsquoalgo pararsquo (HEIDEGGER 2012

p211) Na essecircncia do instrumento estaacute sempre a referecircncia de algo para algo O ser do

utensiacutelio e seu significado que aparece no instante do trato portanto jaacute interpretado a

partir do uso nascem da totalidade utensiliar (Zeugganzheit) que o atravessa Mas esta

totalidade utensiliar se assenta num contexto ainda mais complexo Se o utensiacutelio eacute

confeccionado de acordo com a sua finalidade especiacutefica como ldquoalgo parardquo seu uso o

liga a outros utensiacutelios por exemplo o pincel que uso para pintar remete-se agrave tela que

uso para suporte da tinta Assim como a tela remete-se natildeo soacute a sua finalidade mas

tambeacutem aos materiais atraveacutes dos quais ela foi produzida madeira tecido e gesso E

ainda remete-se ao produtor da tela ou seja aos outros entes no modo de ser do ser-aiacute

93

Poreacutem essa descriccedilatildeo do instrumento em um mundo-ambiente (Umwelt) ainda eacute

insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica de todo ente em geral

Assim conforme o sect 17 Heidegger aponta que a estrutura do sinal (Zeichen) ldquofornece

um fio condutor ontoloacutegico para uma lsquocaracterizaccedilatildeorsquo de todo ente em geralrdquo

(HEIDEGGER2012 p 233) O sinal enquanto utensiacutelio tem em sua serventia especiacutefica

o mostrar e ao mostrar fornece o fenocircmeno da referecircncia natildeo somente de sua referecircncia

mas de todo e qualquer ente uma vez que a relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia explicita o

fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua finalidade

na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal enquanto

instrumento nos mostra o mundo circundante e potildee em relevo o caraacuteter da referecircncia

que natildeo deve ser confundida com o proacuteprio sinal pois natildeo eacute determinaccedilatildeo ocircntica de um

ou outro manual especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica do manual e fundamento

constitutivo da mundidade como rede referencial na qual o Dasein jaacute se encontra inserido

na abertura ao mundo Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo

circundante o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a

complexa rede de remissotildees referenciais e atraveacutes dela a totalidade conjuntural ou

conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)

ldquoO termo conjuntura tem como correlato na liacutengua alematilde a palavra Bewandtins

que designa primariamente a propriedade ou a constituiccedilatildeo de uma coisa e em

um segundo momento a circunstacircncia em que algo se mostra essencialmente

como algo Neste segundo caso o termo se mostra em sintonia com a expressatildeo

Bewendenlassen como o deixar (lassen) algo se conformar (bewenden) a uma

certa estrutura e se mostrar como o que eacute em meio a essa conformidaderdquo

(CASANOVA 2006 p37)

A noccedilatildeo de conjuntura no sect 18 eacute um dos momentos mais decisivos da primeira

parte de Ser e Tempo pois revela que a totalidade conjuntural eacute anterior a qualquer

determinaccedilatildeo particular dos entes intramundanos Eacute essa conjuntura que determina os

usos possiacuteveis a partir da conformidade dos entes nela inseridos revelando que o

utensiacutelio em si mesmo natildeo possui qualquer determinaccedilatildeo essencial mas a recebe do

campo de uso da conjuntura na qual estaacute inserido Mas natildeo eacute soacute isso a determinaccedilatildeo

essencial de um ente intramundando acontece tambeacutem em funccedilatildeo do ser-aiacute cujo lsquoem

vista dersquo ao final da remissatildeo natildeo mais remonta a um lsquopara quecircrsquo mas mobiliza e em

uacuteltima instacircncia determina as conformaccedilotildees dos entes intramundanos Isso revela que o

que estaacute em jogo natildeo eacute o que eacute algo mas antes em virtude de que se faz algo O ser-aiacute

94

pode agir relacionar-se com os outros e consigo mesmo pois sabe comportar-se no

campo fenomecircnico aberto que arrasta consigo sua possibilidade de ser De outra forma

toda e qualquer performatizaccedilatildeo do ser-aiacute em relaccedilatildeo aos entes remete em uacuteltima medida

agravequele que pode voltar-se aos entes e mobilizaacute-los

O que a conjuntura indica previamente eacute ldquoa articulaccedilatildeo originaacuteria com certas

possibilidades essenciais do ser-aiacute que permitem ao ser-aiacute projetar efetivamente o campo

de sua realizaccedilatildeo como poder-serrdquo (CASANOVA 2006 p36) Essa realizaccedilatildeo do poder-

ser do ser-aiacute mobiliza a conformaccedilatildeo dos entes em funccedilatildeo do sentido existencial do ser-

aiacute pois uma atividade qualquer natildeo eacute feita por ela mesma mas soacute tem sentido na intenccedilatildeo

de um ente que estaacute aberto agrave apreensatildeo do ser dos entes em geral Desse modo a primaacuteria

abertura compreensiva do ser-aiacute ao mundo eacute um projeto de sentido que jaacute interpreta e ao

fazecirc-lo realiza a cada vez a cada ato de sua existecircncia a cada performatizaccedilatildeo a

possibilidade de seu ser pondo em liberdade os entes no interior do mundo e as relaccedilotildees

com os outros no projeto lanccedilado (faacutetico) na e pela sua existecircncia E isso porque

ldquoQuando o ente do-interior-do-mundo eacute descoberto com o ser do Dasein isto eacute

quando veio ao entendimento dizemos que ele tem sentido Mas tomado

rigorosamente o que eacute entendido natildeo eacute o sentido mas o ente ou o ser Sentido eacute

aquilo em que a entendibilidade de algo se manteacutem () Sentido eacute aquilo-em-

relaccedilatildeo-a-quecirc do projeto estruturado pelo ter-preacutevio pelo ver-preacutevio e pelo

conceito preacutevio a partir de que algo pode ser entendido como algo Na medida

em que entender e interpretaccedilatildeo constituem a constituiccedilatildeo existenciaacuteria do lsquoaiacutersquo o

sentido deve ser concebido como arcabouccedilo existenciaacuterio-formal da abertura

pertencente ao entender O sentido eacute um existenciaacuterio do Dasein natildeo uma

propriedade presa ao ente que reside lsquoatraacutesrsquo dele ou flutua em algum lugar como

em um lsquoreino intermediaacuteriorsquo Soacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a

abertura do ser-no-mundo lsquopode ser preenchidarsquo () E quando perguntamos

pelo sentido de ser a investigaccedilatildeo natildeo se torna entatildeo profunda e natildeo excogita

nada que esteja atraacutes do ser mas pergunta por ele mesmo na medida em que ele

estaacute na entendibilidade do Dasein O sentido de ser nunca pode ser contraposto

ao ente ou ao ser como lsquofundorsquo que sustenta o ente porque o lsquofundamentorsquo soacute eacute

acessiacutevel como sentido mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta- de-

sentidordquo (HEIDEGGER 2012 pp 429-431)

Apelamos para essa longa citaccedilatildeo a fim de explicitar o que dissemos

anteriormente acerca da mobilizaccedilatildeo dos entes em seu ser em funccedilatildeo dos focos

existenciais do ser-aiacute Os entes somente vecircm ao encontro como entes que satildeo a partir da

intenccedilatildeo de um ente que estaacute aberto a compreensatildeo do ser dos entes em geral Com a

95

citaccedilatildeo pretendemos tambeacutem apontar para algo importante acerca do fundamento

histoacuterico dessa abertura O sentido de ser natildeo eacute algo a ser alcanccedilado teoricamente pois

natildeo eacute algo estaacutevel e fundante da realidade que responde ao esquema causa-efeito ele eacute

essencialmente histoacuterico e eacute trazido pela experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica

da existecircncia mesma do ser-aiacute Natildeo se pode ter lsquoserrsquo sem a compreensatildeo do sentido de

ser vinculando portanto lsquoserrsquo ao ser-aiacute ente cuja estrutura pertence agrave compreensatildeo de

ser Como nos adverte o autor de Ser e Tempo o Dasein eacute um ente certamente diferente

dos outros entes no interior do mundo e eacute o lsquoabismo da falta de sentidorsquo que remete agrave

totalidade do fenocircmeno do ser-aiacute como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge) a qual acontece

em funccedilatildeo do sentido da temporalidade (Zeitlichkeit) Eacute essa ldquosegundardquo abertura de

sentido que devemos explicitar a partir de agora

Indicamos acima que a indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica do ser-aiacute o conduz a conquistar

seu poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees

cotidianas Poreacutem ser-proacuteprio ou ser-improacuteprio natildeo satildeo categorias operacionalizaacuteveis em

funccedilatildeo de um ideal de vida Essas possibilidades repousam na existecircncia e revelam a

tensatildeo da condiccedilatildeo primaacuteria da abertura ao mundo do ser-aiacute como projeto- jogado e

ldquodessa tensatildeo eacute possiacutevel deduzir o modo como o ser-aiacute faticamente existe() o caraacuteter

mesmo do jogado do ser-aiacute implica a absorccedilatildeo imediata no mundo sedimentado ele

encontra a si mesmo na medida em que se perderdquo (CASANOVA 2009 p123) E por

isso quando a analiacutetica existenciaacuteria inicia sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio no qual

o ser-aiacute eacute lanccedilado ldquoisso natildeo significa por sua vez outra coisa senatildeo que ele [o ser-aiacute]

concretiza o poder ser que ele eacute a partir das possibilidades faacuteticas disponibilizadas pelo

mundordquo (CASANOVA 2009 p123)

A abertura compreensiva eacute uma compreensatildeo da proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica na qual

nos orientamos inicialmente e na qual satildeo dadas nossas possibilidades de ser natildeo de

maneira teoacuterica mas absorvidas nas praacuteticas nos projetos de sentido relaccedilatildeo com os

outros e lida com os entes Abertura essa que um passado tornou possiacutevel e se faz

radicalmente imperativa no presente atraveacutes da cotidianidade orientando o ser-aiacute e

fazendo emergir algo assim como um mundo Por exemplo a realizaccedilatildeo deste trabalho

como dissertaccedilatildeo acadecircmica apareceu como possibilidade para o projeto de sentido de

sua autora porque escrever sobre filosofia faz sentido este projeto de sentido veio ao

96

encontro de seu poder-ser natildeo meramente por um ato de escolha mas inicialmente porque

filosofia dissertaccedilatildeo e universidade satildeo elementos mantidos em seu significado oriundo

da tradiccedilatildeo ocidental natildeo por uma linha histoacuterica que a autora recupera e quer trazer ao

presente mas porque mais uma vez ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto apropriaccedilatildeo

compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo

(HEIDEGGER2002 p30)

E uma vez remetida ao mundo pela orientaccedilatildeo cotidiana a autora pode

estabelecer relaccedilotildees com os entes (livros computador papel etc) consigo mesmo (como

autora) e com os outros (leitores desse trabalho) que partilham essas possibilidades

sedimentadas Dessa forma a orientaccedilatildeo cotidiana primaacuteria revela ldquoexistir () eacute de iniacutecio

o mesmo que perder-se de sirdquo (CASANOVA 2009 p123) pois ldquoo ser-aiacute suspende a

irrealidade originaacuteria que eacute a sua e adquire ao mesmo tempo um modo de ser marcado

por uma aparecircncia de consistecircnciardquo (CASANOVA 2009 p123) Em outras palavras a

absorccedilatildeo na cotidianidade (o caraacuteter de jogado do projeto) oferece uma familiaridade ao

ser-aiacute na qual ele pode se movimentar pois oferece a confiabilidade ocircntica ao projeto de

sentido mas tambeacutem estabelece

ldquoUma relaccedilatildeo com o seu poder-ser que pode ser denominado como fuga uma vez

que a suspensatildeo [de sua irrealidade originaacuteria] promove exatamente uma

tranquilizaccedilatildeo em meio agrave supressatildeo de nadidade constitutiva de um ente marcado

pelo caraacuteter de poder-ser e o ocultamento de um tal caraacuteterrdquo (CASANOVA

2009 p123)

Em meio agrave familiaridade em que o ser-aiacute eacute jogado sua negatividade quiditativa e

seu traccedilo ontoloacutegico essencial como poder-ser satildeo obstruiacutedos agrave compreensatildeo do Dasein

em relaccedilatildeo ao seu ser Voltemos ao nosso exemplo as relaccedilotildees que a autora deste trabalho

pode exercer a partir de suas possibilidades a orientam como ser autora deste trabalho

como aquela que escreve ou ainda como aquela vinculada agrave universidade e assim por

diante Poreacutem nada poderia definir nossa existecircncia como fazem as orientaccedilotildees

cotidianas pois o Dasein que cada um de noacutes somos eacute marcado pela negatividade radical

frente a qualquer definiccedilatildeo ocircntica Como entatildeo essa fuga natildeo nos condena a reproduzir

maquinalmente e atualizar incessantemente as orientaccedilotildees cotidianas - Porque o ser-aiacute

97

mesmo jogado eacute ainda projeto e no limite de seu projeto ele pode se encontrar com seu

poder-ser mais proacuteprio como ser para a morte (das Sein zum Tod)74

Tal como as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha agrave

espera de um ato de vontade do ser-aiacute a conquista de seu ser-proacuteprio ou sua

singularizaccedilatildeo tambeacutem natildeo eacute produto de sua vontade A dinacircmica de singularizaccedilatildeo do

ser-aiacute eacute possiacutevel pela tonalidade afetiva ou o modo de encontrar-se (Befindlicheit)

fundamental da anguacutestia (Angst)

O entender (Verstehen) ou abertura compreensiva eacute sempre dispositiva na medida

em que a compreensatildeo natildeo se refere agrave capacidade ou agraves faculdades cognitivas do homem

ldquoO termo disposiccedilatildeo aponta diretamente para o modo como o ser-aiacute a cada vez se

descobre em meio a uma tal abertura Na medida em que o ser-aiacute eacute um ente

marcado essencialmente por seu caraacuteter existencial e natildeo se mostra senatildeo como

um poder ser ele natildeo pode aprender a abertura do ente na totalidade por meio de

alguma faculdade cognitiva de sua subjetividade () Befindlichkeit diz o

encontrar-se de uma certa maneirardquo (CASANOVA 2006p50)

Encontrar-se de certa maneira natildeo eacute uma espeacutecie de afeto psicoloacutegico que o ser-

aiacute projeta de dentro para fora nem uma relaccedilatildeo de fora para dentro que afeta o ser-aiacute Natildeo

eacute uma relaccedilatildeo causal Eacute uma afinaccedilatildeo (ajuste do tom) que deve ser compreendida

repousando na intenccedilatildeo primaacuteria do ser-aiacute como ser-no-mundo Como o autor explicita

ainda no sect29 ldquoO ser do estado-de-acircnimo do encontrar-se constitui existenciariamente a

abertura do Dasein para o mundordquo (HEIDEGGER 2012 p393) Eacute propositadamente que

se apela para a metaacutefora musical (ldquoafinaccedilatildeordquo) para tentar compreender esse ldquoestado de

acircnimo do encontrar-serdquo como por exemplo acontece quando uma muacutesica eacute tocada ela

afina a abertura compreensiva do ser-aiacute a um estado de acircnimo que noacutes poderiacuteamos chamar

de melancoacutelico A melancolia natildeo estaacute na muacutesica (natildeo haacute como pensar que as tonalidades

afetivas sejam propriedades de um ou outro ente na medida em que o ser de todo e

74 Aqui eacute importante considerar as palavras de Juliaacuten Mariacuteas na Conferecircncia do curso ldquoLos estilos de la

Filosofiacuteardquo Madrid 19992000 Ediccedilatildeo Jean Lauand Traduccedilatildeo Sylvio Horta ldquoa preposiccedilatildeo zu natildeo quer

dizer para mas a Isto eacute a expressatildeo sein zum Tod poderia ser traduzida por estar agrave morte (estar a

la muerte) Qual eacute a condiccedilatildeo dos homens - e das mulheres evidentemente - natildeo somente quando nos

atropela um caminhatildeo ou quando temos pneumonia dupla O homem estaacute agrave morte sempre estaacute na

possibilidade de morrer estaacute em potecircncia proacutexima de morrer estaacute exposto agrave morte e eacute isso justamente o

que quer dizer sein zum Tod estar aberto agrave morte estar nessa possibilidade proacutexima real eficazrdquo

98

qualquer ente eacute aberto em funccedilatildeo do ser-aiacute que os potildee em liberdade no interior do mundo)

como tambeacutem natildeo estaacute no Dasein (natildeo haacute nada de aderente a esse ente que venha agrave tona

sua abertura eacute sempre remetida ao mundo e ao encontro com os entes) Portanto a

melancolia como no exemplo eacute a modificaccedilatildeo da atmosfera promovida pelo proacuteprio

encontrar-se do ser-aiacute em meio aos entes

Mas por qual motivo a anguacutestia aparece em Ser e Tempo como a tonalidade afetiva

ou o modo fundamental de encontrar-se Enquanto os estados de acircnimo natildeo conforme agrave

anguacutestia constituem a abertura compreensiva do ser-aiacute para a lida e para as relaccedilotildees que

podem ser realizadas no interior do mundo em meio aos entes ldquoo diante-de-quecirc da

anguacutestia eacute o ser-no-mundo como talrdquo (HEIDEGGER 2012 p521) Na anguacutestia natildeo haacute

ente que venha ao encontro no qual o ser-aiacute possa se reportar e refugiar-se mas a si mesmo

em sua indeterminaccedilatildeo

ldquoNa anguacutestia o utilizaacutevel do mundo-ambiente e em geral o ente do-interior-do-

mundo se afundam O lsquomundorsquo jaacute nada pode oferecer nem tambeacutem o Dasein-

com com os outros A anguacutestia retira assim do Dasein a possibilidade de no

decair entender-se a partir do lsquomundorsquo e do puacuteblico ser-do-interpretado Ela

projeta o Dasein de volta naquilo por que ele se angustia seu proacuteprio poder ndashser-

no-mundo () Com o porquecirc do se angustiar a anguacutestia abre portanto o Dasein

como ser possiacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012 p525)

Na anguacutestia natildeo haacute a ldquosuspensatildeo de mundordquo como se o Dasein se retirasse dele

O que haacute eacute a suspensatildeo das orientaccedilotildees cotidianas que obliteram sua constituiccedilatildeo

primaacuteria Portanto ainda e agora radicalmente transparente como ser-no-mundo o

Dasein suspende a familiaridade em meio ao ente voltando-se a si mesmo como ser-

possiacutevel que mobiliza sentido e ldquotem mundordquo Lembremos que a necessidade da ontologia

fundamental como radicalizaccedilatildeo do gesto fenomenoloacutegico indica que o ser-aiacute mesmo

natildeo pode ser intencionado natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente e por isso seu

caraacuteter de poder-ser E se pela anguacutestia o ser-aiacute volta-se a si mesmo o que vem eacute essa

indeterminaccedilatildeo radical revelando em uacuteltima medida o ldquoabismo da falta de sentidordquo Esse

abismo natildeo leva a qualquer espeacutecie de niilismo natildeo eacute o que estaacute em jogo aqui ao

contraacuterio pois o ldquoo ser-aiacute se vecirc confrontado com o seu caraacuteter como poder-ser Dessa

confrontaccedilatildeo nasce ao mesmo tempo a possibilidade de assunccedilatildeo de si mesmo como

cuidado (Sorge)rdquo (CASANOVA 2009 p128)

99

Recuperemos por um instante os trecircs momentos constitutivos da questatildeo descritos

no sect2 de Ser e Tempo a pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2)

perguntando sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma

ontologia fundamental A ontologia fundamental como analiacutetica existenciaacuteria em seu

primeiro momento descreve as estruturas fundamentais do ser-aiacute com o propoacutesito de

chegar ao ser desse ente que compreende o sentido de ser (sect12 ao sect38) Contudo eacute

importante considerar que existe certa lsquoartificialidadersquo nesse processo de explicitaccedilatildeo das

estruturas do ser-aiacute Eacute importante manter o sentido de ldquoanaliacuteticardquo Pois o fenocircmeno

mesmo deve ser compreendido como um todo natildeo em funccedilatildeo das partes mas a partir de

sua proacutepria mostraccedilatildeo Em outras palavras a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein deve agora

ser recuperada e este ente deve ser assinalado de maneira propriamente fenomenoloacutegica

ou seja em sua totalidade enquanto fenocircmeno Eacute o que a segunda parte da analiacutetica deve

recuperar ldquoabrangendo os componentes que se interligam ndash a existencialidade a

facticidade e a quedardquo (NUNES 2012 p116)

A partir desses componentes Heidegger apresenta o sentido formal da

preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-em (-o-mundo)

como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo (HEIDEGGER

2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser (existencialidade ou

existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que foi

lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio aos

entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)

Poreacutem natildeo dissemos que o ser-aiacute eacute marcado pela negatividade quiditativa e que

existe segundo possibilidades as quais natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas na morte

como fim de todas as possibilidades Ou nas palavras de nosso autor ldquoE se a existecircncia

determina o ser do Dasein e sua essecircncia eacute constituiacuteda pelo poder-ser entatildeo o Dasein

podendo ser enquanto existir deve-ser cada vez algo de ainda natildeo sendordquo

(HEIDEGGER 2012 p645) Entatildeo essa interpretaccedilatildeo do ser do Dasein como um

fenocircmeno unitaacuterio como Sorge natildeo contradiz tal afirmaccedilatildeo Natildeo haacute qualquer

contradiccedilatildeo pois eacute exatamente

ldquoO cuidado como manifestaccedilatildeo da finitude que permite a Heidegger identificar

a morte como o chegar do Dasein ao fim () e ver nesse ente em sua totalidade

o ser para a morte() O Dasein chega pois a um fim mas que o determina desde

100

o princiacutepio como possibilidade do que viraacute a ser A morte natildeo eacute para ele portanto

o puro aniquilamento representaacutevel conforme a experiecircncia da caducidade ()

impessoal e necessaacuterio na seacuterie de causas naturais () Ontologicamente falando

o homem deixa de viver porque morre e morre porque lhe eacute inerente o morrer

enquanto poder-ser de cada qual () intrasferiacutevel e irrepresentaacutevel na relaccedilatildeo

com o ser a que a existecircncia estaacute concernidardquo (NUNES 2012 pp 117-119)

Como poder-ser (existenciariedade) o ser-aiacute adianta-se em relaccedilatildeo agrave sua

possibilidade mais proacutepria Seu ser-proacuteprio insuperaacutevel como ser-para-a-morte (porque

intransferiacutevel a qualquer outro) revela-se como a possibilidade para a impossibilidade

ou seja impossibilidade de sua existecircncia lanccedilada (facticidade) de ter um lsquoaiacutersquo sendo o

lsquoaiacutersquo a compreensatildeo dos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)

Mas eacute importante considerar que a preocupaccedilatildeo ou o cuidado natildeo eacute a totalidade alcanccedilada

por aquele que chegou agrave singularizaccedilatildeo pela tonalidade fundamental da anguacutestia ela eacute a

constituiccedilatildeo ontoloacutegica de todo e qualquer Dasein O que a singularizaccedilatildeo promove

como possibilidade aberta pela anguacutestia eacute a transparecircncia desse ser-proacuteprio cada vez

obliterado na cotidianidade Na cotidianidade a morte eacute vista como um ldquomero deixar de

viverrdquo transferido a cada vez ao outro que morreu ldquodessa vezrdquo75 em um tratamento

radicalmente impessoal pela indiferenccedila frente a esse poder-ser proacuteprio e irrevogaacutevel

A morte como fim de todas as possibilidades enquanto poder-ser extremo eacute

indeterminada mesmo que seja a certeza mais proacutepria Pois natildeo se chega agrave morte

pensando nela o que estaacute em jogo eacute a responsabilidade do ser-aiacute frente a essa

transparecircncia a assunccedilatildeo pelo ser-aiacute de sua nulidade que atravessando-o (sem qualquer

conteuacutedo prescritivo do que deve-se ou natildeo fazer) pode orientar o caminho de sua

existecircncia Existecircncia ainda faacutetica ainda em meio aos entes de um mundo sedimentado

Em outras palavras caminho que reconduz o ser-aiacute ao ldquoaiacuterdquo que ele tem que ser e que ele

radicalmente eacute O que a singularizaccedilatildeo aponta eacute ldquoLeben ist Tod und Tod ist auch ein

75 Heidegger indica a novela de LN Tolstoacutei ldquoA morte de Ivan Ilitchrdquo para ilustrar o fenocircmeno da morte

tratada impessoalmente e o abalo dessa impessoalidade (Cf HEIDEGGER 2012 p699) Poderiacuteamos

tambeacutem indicar a partir de nossa cotidianidade exemplos do tratamento impessoal acerca da morte as

estatiacutesticas dos ldquomortos nas estradasrdquo a notiacutecia da morte de alguma personalidade puacuteblica e ainda - para

natildeo confundirmos esse fenocircmeno com um mero ldquonoticiarrdquorsquo a morte - a maneira mesma que tratamos a

morte de algueacutem proacuteximo pois mesmo tomados pelo pesar o que constatamos eacute a ldquoperdardquo do outro Seria

possiacutevel restaurar a ponte mesmo que indicativa que Heidegger natildeo admite entre o fenocircmeno impessoal

da morte e nosso ser-proacuteprio como ser-para-a-morte Talvez algo acessiacutevel pela linguagem poeacutetica Aqui

eacute oportuno considerar os belos versos do poema Na morte de Henriqueta Lisboa ldquoNa morte nos

encontramos Sim na morte Tempo de consoacutercio e de viacutenculordquo In Flor da Morte Belo Horizonte Ed

UFMG 2004

101

Leben76rdquo Nessa indicaccedilatildeo ldquoO si-mesmo que como tal tem de pocircr o fundamento de si

mesmo nunca pode se assenhorar desse fundamento e tem de existindo assumir no

entanto o ser-fundamento Ser o proacuteprio fundamento dejectado eacute o poder-ser em jogo na

preocupaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p779) Eacute pela assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo

(Sorge) que o ser-aiacute pode compreender que os sentidos mobilizados em sua existecircncia satildeo

existenciariamente remetidos ao seu ser mesmo ente histoacuterico e finito radicalmente

marcado pela nulidade essencial Isso posto recuperamos uma vez mais agora com toda

a importacircncia as palavras de nosso autor ldquoo lsquofundamentorsquo soacute eacute acessiacutevel como sentido

mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta-de-sentidordquo (HEIDEGGER 2012 p431)

A transparecircncia de seu ser-proacuteprio ao ser-aiacute eacute assumir ldquoser como fundamento

dejectado da nulidade Mas a assunccedilatildeo da dejecccedilatildeo significa para o Dasein ser

propriamente como ele a cada vez jaacute erardquo (HEIDEGGGER 2012 p887) Em outras

palavras a assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute para o ser-aiacute reconhecer que ele

eacute existecircncia radicalmente faacutetica (Faktizitaumlt) ainda em meio aos entes de um mundo

sedimentado Desse modo ldquoentender o seu ser ainda e sempre ldquoem seu essencial ser-

culpadordquo (HEIDEGGER 2012 p887) A singularizaccedilatildeo do ser-aiacute natildeo promove um

distanciamento da vida cotidiana natildeo faz com que ele se retire da queda mas que a

assuma e assim assuma ldquoa responsabilidade pela necessidade de pagar uma diacutevida que

cada ser-aiacute tem para consigo mesmordquo (CASANOVA 2009 p136) Diacutevida de assumir

seu ser como existecircncia como projeto-jogado e como poder-ser proacuteprio marcado pela

possibilidade extrema da morte Essa culpa do ser-aiacute eacute a assunccedilatildeo de que ele jaacute sempre

desonerou seu ser ele jaacute sempre deixou seu ser sob tutela do mundo e das orientaccedilotildees

cotidianas - por sua condiccedilatildeo de soacute poder-ser a partir da absorccedilatildeo imediata no mundo

Essa culpa natildeo eacute a mesma das concepccedilotildees cristatildes Em Pascal por exemplo a culpa eacute

consequecircncia da perda de nossa primeira natureza em funccedilatildeo do pecado original77 Para

Heidegger a culpa eacute consequecircncia do fato de natildeo termos qualquer natureza Natildeo haacute como

se retirar dessa condiccedilatildeo eis nossa culpa essencial e nossa queda irremediaacutevel

76 ldquoA vida eacute morte e a morte eacute tambeacutem uma vidardquo HOumlLDERLIN Friedrich In lieblicher Blaumlue - Disponiacutevel

em httpswwwhsaugsburgde~harschgermanicaChronologie19JhHoelderlinhoe_0801html Acesso

em 21 marccedilo 2016 77 Cf por exemplo os aforismos 131 e 616 de Pascal nos Penseacutees Ediccedilatildeo e organizaccedilatildeo Lafumaacute

102

Mas se chegamos agrave totalidade originaacuteria do todo-estrutural do ser-aiacute ou em outras

palavras agrave assinalado constituiccedilatildeo propriamente fenomenoloacutegica do ser-aiacute como

preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute necessaacuterio considerar o sentido ontoloacutegico desse fenocircmeno

Lembramos mais uma vez o que eacute ldquosentidordquo para Heidegger ldquoSentido eacute aquilo em que a

entendibilidade de algo se manteacutemrdquo (2012 p429) Se o ser-aiacute pode ser indicado em sua

totalidade fenomecircnica (ainda que radicalmente diverso dos entes do interior do mundo)

eacute necessaacuterio como expresso no sect65 perguntar ldquoQue possibilita o ser do Dasein e assim

sua existecircncia factual (faktische)

O sentido de ser do Dasein como Sorge a compreensatildeo de sua nulidade essencial

a partir do fenocircmeno unitaacuterio de seu ser aponta para aquilo que pode sustentaacute-lo ldquoA

temporalidade descobre-se como o sentido da preocupaccedilatildeo proacutepriardquo (HEIDEGGER

2012 p889)

Na continuaccedilatildeo do sect65 o autor descreve como a preocupaccedilatildeo reside na

temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-

em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo

(HEIDEGGER 2012 p891) Futuro (poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente

(presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees temporais como as que tomamos diariamente mas

o caraacuteter essencial da existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre

adiantado (futuro) em relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza

as possibilidades na facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva da

proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica a cada vez presente na qual nos orientamos inicialmente em

nossos comportamentos) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no

presente esse passado em seus comportamentos e projetos E como adverte o autor

ldquoOs momentos da preocupaccedilatildeo natildeo se amontoam como a temporalidade ela

mesma natildeo vai tambeacutem lsquocom o temporsquo se compondo de futuro ser-do-sido e

presente A temporalidade natildeo lsquoeacutersquo em geral nenhum ente Ela natildeo eacute mas se

temporalizardquo (HEIDEGGER 2012 p893)

Ou seja a temporalidade acontece na existecircncia do ser-aiacute na unidade do

fenocircmeno que se mostrou como preocupaccedilatildeo ou cuidado (Sorge) E ainda acontece jaacute no

que o ser-aiacute entende (Verstehen) como o sentido ontoloacutegico desse acontecimento mesmo

da compreensatildeo Por isso ainda no iniacutecio desse toacutepico dissemos que a constituiccedilatildeo aberta

103

e remetida ao mundo (ao seu ldquoaiacuterdquo) do ser-aiacute eacute dada como acontecimento compreensivo

pois em seu sentido ontoloacutegico eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) que se temporaliza78

Assim finalmente chegamos agrave dupla abertura de sentido em Ser e Tempo a que

chamamos de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo a abertura compreensiva do ser-aiacute

remetida ao mundo e o sentido de ser do ser-aiacute a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) O

caraacuteter fundamental dessa estrutura se daacute pelo fato que eacute a partir dela que o ser-aiacute pode

conceder significaccedilotildees e por isso a primeira estrutura do que pode tornar manifesto o

fenocircmeno da linguagem Agora eacute necessaacuterio descrever a relaccedilatildeo entre mundo e

significatividade ainda como parte dessa primeira estrutura para que alcancemos a

segunda estrutura o fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) e a partir dele agrave linguagem

III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)

No toacutepico anterior apresentamos a constituiccedilatildeo aberta do ser-aiacute lanccedilada e

remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo Mas o que constitui algo assim como mundo O que

afinal quer dizer ldquomundordquo (Welt) Nesse sentido precisamos retomar a descriccedilatildeo

realizada anteriormente acerca da referecircncia e da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) Essa

retomada natildeo significa prolixidade mas consequecircncia inevitaacutevel da ligaccedilatildeo essencial

entre ser-aiacute e mundo E se antes a descriccedilatildeo foi explicitada para compreendermos a

abertura de sentido em funccedilatildeo do ser-aiacute agora seraacute exposta para compreendermos o

proacuteprio ldquoaiacuterdquo

Sem pressupor mundo como ente ou como espaccedilo a pesquisa fenomenoloacutegica

aproximou-se dos campos de mostraccedilatildeo de algo como lsquomundorsquo escapando de qualquer

preacutevia teorizaccedilatildeo Nessa direccedilatildeo vimos que algo como lsquomundorsquo se daacute inicialmente a

partir da abertura primaacuteria de sentido promovida pelo entender ou compreensatildeo

78 Como indicamos (nota 66) haacute uma questatildeo natildeo respondida em Ser e Tempo a temporalidade (Zeitlichkeit)

estaria afinal assentada no tempo histoacuterico da abertura Questatildeo expressa na uacuteltima linha daquela obra ldquoO

tempo (Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Essa questatildeo

aponta para o limite da obra de 1927 na medida em que o sentido de ser remetido e em funccedilatildeo de um ente

especiacutefico mesmo que privilegiado apresenta seus limites Natildeo aprofundaremos esse problema Nesse

sentido conferir inicialmente HEIDEGGER M Os problemas fundamentais da fenomenologia Trad

Marco Antocircnio Casanova Petroacutepolis RJ Vozes 2012 ndash Parte II (pp331-478) Conferir tambeacutem

CASANOVA (2009 pp 140-145) NUNES (2012 pp200-220) e STEIN (2001 pp297-309)

104

(Verstehen) Esse existenciaacuterio primaacuterio acontece sempre como interpretaccedilatildeo

(Auslegung) que jaacute potildee em visatildeo o que entende

A partir da lida praacutetica e natildeo teoacuterica que o ser-aiacute trava inicialmente com os entes

intramundanos (sect15) Heidegger chega a noccedilatildeo de mundo circundante ou mundo-

ambiente (Umwelt) Poreacutem a descriccedilatildeo do uso dos utensiacutelios (Zeug) em um mundo-

ambiente (Umwelt) eacute insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica

de todo ente em geral Assim conforme o sect 17 Heidegger descreve o fenocircmeno da

referecircncia a partir da descriccedilatildeo do sinal enquanto utensiacutelio que tem em sua serventia

especiacutefica o mostrar e ao fazecirc-lo conduz a compreensatildeo da instrumentalidade ou

utilizabilidade (Zuhandenheit) de todo e qualquer ente A relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia

explicita o fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua

finalidade na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal

enquanto instrumento nos mostra o mundo-circundante (Umwelt) e potildee em relevo o

caraacuteter da referecircncia que natildeo deve ser confundido com o proacuteprio sinal pois eacute a estrutura

ontoloacutegica do manual e fundamento constitutivo da mundidade como rede referencial na

qual o Dasein jaacute se encontra inserido na abertura primaacuteria remetida ao mundo na lida

praacutetica

O ldquomostrarrdquo do sinal tal como o ldquomartelarrdquo do martelo ou a emprego de todo e

qualquer ente natildeo satildeo propriedades essenciais presentes nos lsquoobjetosrsquo apreendidas pelo

ser-aiacute mas satildeo trazidas agrave luz na e pela estrutura da remissatildeo a partir do trato praacutetico E

ldquoser-remetido-ardquo como constituiccedilatildeo do utilizaacutevel eacute em uacuteltima medida ldquoconjuntar-se agraverdquo

nas palavras de Heidegger

ldquoConjuntaccedilatildeo eacute o ser do interior-do-mundo em relaccedilatildeo ao qual esse ente jaacute eacute e

de pronto cada vez posto-em-liberdade () Isto de que ele tenha uma

conjuntaccedilatildeo comjunto eacute a determinaccedilatildeo ontoloacutegica do ser desse ente e natildeo um

enunciado ocircntico sobre o enterdquo (HEIDEGGER 2012 p251)

Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo circundante (Umwelt)

o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a complexa rede de

remissotildees referenciais e revelando a totalidade conjuntural ou conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)

A totalidade conjuntural se mostra anterior a qualquer determinaccedilatildeo particular dos entes

intramundanos - uma vez que eacute a conjuntura mesma que determinaraacute os usos possiacuteveis a

partir da conformidade dos entes nela inseridos- revelando que o utensiacutelio em si mesmo

105

e em uacuteltima medida todo e qualquer ente no interior do mundo natildeo possui qualquer

determinaccedilatildeo essencial mas a recebe a partir do campo de uso da conjuntura na qual estaacute

inserido Como a partir daiacute se chega entatildeo agrave noccedilatildeo de algo como ldquomundordquo A conjuntura

como conformaccedilatildeo de todo e qualquer ente eacute dada em funccedilatildeo do que Heidegger chama

de significatividade (Bedeutsamkeit)

ldquoAo se manter na familiaridade com a abertura das relaccedilotildees o entender as potildee

diante de si como aquilo em que seu remeter se move O entender deixa-se

remeter nestas relaccedilotildees e por elas mesmas O caraacuteter relacional dessas relaccedilotildees

do remeter noacutes o aprendemos como significar Na familiaridade com essas

relaccedilotildees o Dasein lsquosignificarsquo a si mesmo daacute-se a entender originariamente seu

ser e poder-ser relativamente a seu ser-no-mundo [] O todo relacional desse

significar noacutes o denominamos significatividade Ela eacute o que constitui a estrutura

do mundordquo (HEIDEGGER2012p261)

Essa passagem traz o elemento crucial agrave nossa investigaccedilatildeo a significatividade

como a condiccedilatildeo mesma ou melhor a proacutepria lsquointeligibilidadersquo do mundo natildeo como

arcabouccedilo teoacuterico mas como acircmbito da interpretaccedilatildeo anterior a qualquer definiccedilatildeo

predicativa do ente A totalidade conjuntural que conforma os entes intramundanos

determina-os significativamente em seu ldquocomordquo ou seja os faz ver e aparecer como ente

como algo no interior da abertura de sentido do proacuteprio mundo Isto quer dizer que a

conjuntaccedilatildeo deixa ver o ente em seu ldquoser enterdquo como algo que lsquoeacutersquo a partir de um horizonte

ldquode tal maneira que ele se torna primeiramente acessiacutevel como ente do-interior-do-

mundordquo (HEIDEGGER 2012p255)

A abertura ou entendimento preacutevio no qual o ser-aiacute histoacuterico e finito faz o ente

vir ao encontro na conjuntura e o mobiliza conforme seu foco existencial mostra o

fenocircmeno do mundo e isso como jaacute apresentamos a partir da familiaridade em que o

Dasein se movimenta pelo seu caraacuteter de jogado O fenocircmeno do mundo eacute explicitado

por Heidegger na seguinte passagem

ldquoO Dasein se remete jaacute cada vez e sempre a partir de um em-vista-de-quecirc ao

com-quecirc de uma conjutaccedilatildeo isto eacute na medida em que eacute ele deixa jaacute cada vez e

sempre o ente vir-de-encontro como utilizaacutevel Aquilo-em-que o Dasein

previamente se entende no modus do remeter-se eacute aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do

preacutevio fazer o ente vir-de-encontro O em-quecirc do entender que se-remete como

aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do fazer o ente vir-de-encontro no modo-de-ser da

conjuntaccedilatildeo eacute o fenocircmeno do mundo E a estrutura daquilo a que o Dasein se

remete eacute o que constitui a mundidade do mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 257)

106

Mas essa passagem tambeacutem mostra uma diferenccedila que natildeo pode ser ignorada o

fenocircmeno do mundo e a mundidade (Weltlichkeit) do mundo O primeiro diz respeito agrave

mobilizaccedilatildeo de uma determinada conjuntura jaacute familiar a partir dos focos existenciais do

ser-aiacute possiacuteveis em um horizonte descerrado (aspecto ocircntico) a segunda indica o aspecto

estrutural ontoloacutegico do mundo Por isto a significatividade explicitada inicialmente

pelo fenocircmeno da referecircncia e trazida agrave tona pela noccedilatildeo de conjuntaccedilatildeo eacute chamada de

estrutura formal da mundidade pois natildeo diz respeito a uma estrutura deste ou daquele

ldquomundordquo especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica de algo como ldquomundordquo

A significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados

(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Quando um ente se mostra

na e pela ocupaccedilatildeo (Besorgen) vem agrave conjuntaccedilatildeo no momento mesmo do trato manual

e assim ele eacute posto em liberdade em seu ser como utilizaacutevel (Zuhandenes) e natildeo eacute- como

compreendeu a tradiccedilatildeo assentada na noccedilatildeo sujeito-objeto ndash uma lsquoresrsquo uma coisa um

ldquomaterial disponiacutevel no mundordquo Ou seja ele natildeo se mostra primariamente como um

subsistente (Vorhandener) jaacute que ldquofamiliaridade com o mundo natildeo exige

necessariamente uma transparecircncia teoacuterica das relaccedilotildees do mundo que constituem o

mundo como mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 259)

Para Heidegger (ao menos em Ser e Tempo) os entes no interior do mundo (entes

intramundanos) natildeo conforme ao modo de ser do Dasein satildeo de dois modos ou como

duas categorias como Zuhanden (agrave matildeo) que se mostra de modo originaacuterio no trato

praacutetico e como Vorhanden (ente simplesmente dado ou subsistente) que aparece de

modo derivado agrave mostraccedilatildeo praacutetica Trazendo agrave tona a gecircnese praacutetica do significado

Vigo (2012) chama a atenccedilatildeo acerca do tratamento pouco extensivo agraves categorias que

Heidegger oferece em 1927

ldquoHeidegger oferece tatildeo somente um tratamento muito fragmentaacuterio desses

aspectos que jaacute foi explicado pelo fato expressamente declarado do caraacuteter

preparatoacuterio em SZ Ela natildeo conteacutem mesmo remotamente a totalidade do que

deveria conter um modelo ontoloacutegico de aspiraccedilatildeo integral que abarca as

diferentes ontologias regionais e apresentar o repertoacuterio das categorias mais

relevantes para cada uma delas mostrando aleacutem disso as correspondentes

relaccedilotildees de dependecircncia etcrdquo (p113)

O caraacuteter preparatoacuterio e ainda formal de Ser e Tempo o qual apenas estabelece a

diferenccedila categorial entre Zuhanden e Vorhanden parece querer marcar uma diferenccedila

107

mais fundamental ainda vinculada agraves primeiras preleccedilotildees da deacutecada de 1920 nas quais a

derivaccedilatildeo do teoreacutetico era atribuiacuteda a uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Em Ser e

Tempo ldquoa diferenccedila entre o conhecimento matemaacutetico e o conhecimento filosoacuteficordquo ganha

um contorno definitivo como diferenccedila ldquoentre uma concepccedilatildeo de loacutegos provinda da loacutegica

e outra que adveacutem do conceito de aleacutetheiardquo (STEFANI 2009 p51)

Dessa forma qualquer ente tomado de forma teoacuterica com um significado

determinado eacute um modo de acesso ou um visar o ente de modo derivado pelo ser-aiacute (natildeo

podemos esquecer que a mobilizaccedilatildeo dos entes eacute realizada em funccedilatildeo dos focos

existenciais do Dasein o que foi chamado de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo) Em

outras palavras como a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que significado

(Bedeutung) mas sua condiccedilatildeo de possibilidade qualquer teoria ou modo de tratamento

teoacuterico de um ente subsistente (Vorhandenes) eacute tributaacuterio da sedimentaccedilatildeo de um mundo

da sedimentaccedilatildeo de uma totalidade conjuntural que vem ao encontro do ser-aiacute

originariamente na ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhandenes) Assim ldquoo mundo faacutetico

onde se desdobra a existecircncia do ser-aiacute eacute constituiacutedo pela solidificaccedilatildeo dos significados

dos entes intramundanos e pela sedimentaccedilatildeo dos sentidos em virtude dos quais o ser-aiacute

desdobra o poder-ser que ele eacuterdquo (CABRAL 2015 p94) O ser-aiacute como projeto jogado

mobiliza sentidos e atualiza essas significaccedilotildees calcificadas de um mundo histoacuterico Algo

como um conceito uma definiccedilatildeo ou um significado do ente eacute possiacutevel por essa abertura

de sentido interpretativa preacutevia e sedimentada articulada pela significatividade e dada de

maneira preacute-linguiacutestica

Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez

familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o

Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como

lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo

(HEIDEGGER 2012p261 grifo nosso)

Prestemos atenccedilatildeo agrave uacuteltima consideraccedilatildeo dessa passagem significaccedilotildees natildeo satildeo

palavras elas fundam palavras Lembremos a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica o significado

natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua mostraccedilatildeo

Vimos no capiacutetulo anterior que o loacutegos do fenocircmeno para Heidegger eacute loacutegos apofacircntico

(λόγος αποφατικός) o mostrar do fenocircmeno a respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que

se mostra como algo de maneira indiferenciada natildeo determinada E ainda esse mostrar

do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes sempre em meio a

108

um campo interpretativo Ou seja agora podemos dizer eacute o mostrar o ente como ente

(algo como algo) no interior do mundo Na abertura que entende (Verstehen) remetida ao

mundo originariamente na lida praacutetica algo vem ao encontro e na medida que se mostra

jaacute se mostra interpretado (Auslegung) como algo do interior do mundo Mundo

compreendido em seu aspecto ontoloacutegico natildeo como ente espaccedilo ou soma de coisas (res)

disponiacuteveis agrave nossa apreensatildeo Mas abertura compreensiva-interpretativa do ser-aiacute

estruturalmente articulada em sua totalidade- enquanto ldquomundordquo - pela significatividade

E eacute dessa articulaccedilatildeo que podem vir significados e dos significados palavras assim

ldquoPodemos dizer que o que estaacute em jogo na discussatildeo de Heidegger com a

concepccedilatildeo husserliana natildeo eacute outra coisa em definitivo que a questatildeo relativa ao

modo fenomenoloacutegico adequado de considerar a experiecircncia antepredicativa

como tal Trata-se de uma questatildeo metodicamente fundamental justamente na

medida em que concerne de modo direto a adequada determinaccedilatildeo do terminus a

quo79 para uma possiacutevel explicaccedilatildeo da origem do enunciado predicativo como

modo derivado e fundado da interpretaccedilatildeo Atado aos preconceitod da ontologia

tradicional que se orienta a partir da estrutura do loacutegos apofatikoacutes considerando

o mesmo como algo dado lsquopresente agrave vistarsquo (Vorhandener) Husserl faz

basicamente o mesmo que jaacute havia feito a teoria tradicional das categorias desde

Aristoacuteteles em diante a saber retroprojetar a estrutura do enunciado da forma S-

P para o acircmbito dos lsquoobjetosrsquo que natildeo eacute outro que dos entes intramundanos

considerados como dados meramente lsquopresente agrave vistarsquo (VIGO 2012 p96)

Se a discussatildeo de Heidegger com a concepccedilatildeo husserliana se torna patente eacute

importante destacar tambeacutem a discussatildeo com a concepccedilatildeo diltheyniana - tendo em vista

o esclarecimento da noccedilatildeo de ldquosignificatividaderdquo Vimos que a categoria do significado

como apresentada por Dilthey possui um aspecto decisivo a relaccedilatildeo entre vivecircncia e

compreensatildeo eacute o ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da hermenecircutica pois traz em si a

categoria do significado como o nexo da vivecircncia com a realidade concreta sem se

apoiar em qualquer elemento transcendente agrave proacutepria experiecircncia vivida Contudo como

observa Heidegger no sect43 de Ser e Tempo o viacutenculo de Dilthey agrave teoria do conhecimento

da eacutepoca compreendendo a vivecircncia como vivecircncia de consciecircncia ou ldquoa relaccedilatildeo-de-ser

da consciecircncia com o real ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p583) faz com que a lsquovidarsquo

seja apresentada de modo indiferenciado sem a compreensatildeo de sua sustentaccedilatildeo

ontoloacutegica jaacute que a vivecircncia particular da consciecircncia como vida conexa e estruturante

79Termo a partir do qual Ponto de partida

109

eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu projeto hermenecircutico Mas Heidegger

reconhece ldquoDilthey natildeo soacute acentua que a realidade nunca eacute dada de modo primaacuterio no

pensamento e na apreensatildeo mas indica sobretudo que o conhecer ele mesmo natildeo

consiste em julgar e que saber eacute uma lsquorelaccedilatildeo de serrsquordquo (HEIDEGGER 2012 p583)

Tentando tornar mais claro mesmo que para Dilthey o mundo natildeo apareccedila como um

conjunto de coisas prontas agrave apreensatildeo da razatildeo humana mais ainda que as coisas

enquanto res natildeo sejam tomadas como a realidade (Realitaumlt) o fato de o pressuposto da

vivecircncia provir da consciecircncia obscurece o fundamento ontoloacutegico de algo como ldquovidardquo

Por isso escapou a Dilthey a relaccedilatildeo primaacuteria entre ser-aiacute como ser-no-mundo em sua

radicalidade ontoloacutegica como relaccedilatildeo fundante de toda e qualquer compreensatildeo de ser

Talvez por esse motivo como observa DASTUR (2007)

ldquoNo trabalho publicado em 1927 Heidegger natildeo usa frequentemente termo

hermenecircutica que aparece apenas trecircs ou quatro vezes () - no paraacutegrafo 7 da

introduccedilatildeo quando eacute para definir a fenomenologia no paraacutegrafo 33 que trata da

enunciaccedilatildeo e no paraacutegrafo 45 que define o iniacutecio da segunda parte da tarefa de

uma interpretaccedilatildeo do Dasein - enquanto o termo Auslegung que significa tanto

interpretaccedilatildeo e explicaccedilatildeo eacute muito mais frequentemente utilizadordquo (p74)

E quando Heidegger retoma o termo ldquohermenecircuticardquo no sect33 ele ressalta o caraacuteter

existenciaacuterio de tal interpretaccedilatildeo

ldquoA enunciaccedilatildeo natildeo pode negar sua origem ontoloacutegica a partir da interpretaccedilatildeo

que-entende O ldquocomordquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor entendedor

(ἑρμηνεία) noacutes os chamamos lsquocomorsquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio para

diferenciaacute-lo do ldquocomordquo apofacircntico da enunciaccedilatildeo (Aussage)rdquo (HEIDEGGER

2012 p 447)

O que eacute essa diferenccedila entre o ldquocomordquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio e o ldquocomordquo

apofacircntico da enunciaccedilatildeo Eacute a diferenccedila entre Auslegung (interpretaccedilatildeo) e Aussage

(enunciado) A diferenccedila consiste no fato de que a originariedade da mostraccedilatildeo dos entes

em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) - pela

significatividade (Bedeutsamkeit) que a articula - e sua derivaccedilatildeo como ente

simplesmente dado (Vorhanden) ndash fazendo emergir algo como significado (Bedeutung)-

ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) em sua ligaccedilatildeo

derivativa agrave interpretaccedilatildeo (Auslegung) De outra maneira como a estrutura interpretativa

aberta pela compreensatildeo ou entendimento (Verstehen) transforma-se em proposiccedilatildeo

Na introduccedilatildeo desse capiacutetulo escrevemos que na fenomenologia heideggeriana veio agrave

110

tona o aspecto ontoloacutegico do conteuacutedo significativo Essa fenomenologia como ontologia

acabou por revelar de um lado a historicidade de todo e qualquer significado que pudesse

vir agrave palavra por outro que o campo de sentido no qual algo pode manter-se em seu

significado tambeacutem era histoacuterico Eacute necessaacuterio portanto a partir de agora mostrar como

o significado aberto pela compressatildeo-interpretativa (algo como algo) ganha sua forma

expressa inicialmente a partir do fenocircmeno da proposiccedilatildeo e a partir dessa derivaccedilatildeo

podemos ter acesso ao fenocircmeno da linguagem

II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da

interpretaccedilatildeo (Auslegung)

A anaacutelise da enunciaccedilatildeo (Aussage) conforme apresenta por Heidegger no sect33 de

Ser e Tempo constitui a segunda estrutura descrita na obra a qual nos permite

compreender o fenocircmeno da linguagem (Sprache) como a manifestaccedilatildeo uacuteltima de um

horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo dos entes previamente

articulada O fenocircmeno da linguagem aparece como resultado dos trecircs objetivos de sua

investigaccedilatildeo neste momento do tratado os quais listamos a seguir

1) Como a estrutura compreensiva-interpretativa (apresentada no toacutepico anterior)

sofre uma modificaccedilatildeo

2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos

3) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade

Como antecipamos e a partir da finalidade da anaacutelise acima apresentada

podemos dizer que o que estaacute em jogo nesse momento da analiacutetica eacute compreender que ldquoa

siacutentese predicativa fundamenta-se numa daccedilatildeo originaacuteria e eacute em funccedilatildeo da experiecircncia

antepredicativa que se opera a atribuiccedilatildeo do predicado ao sujeitordquo (NUNES 2012 p165)

Em outras palavras como a estrutura interpretativa aberta pela compressatildeo (algo como

algo) transforma-se em proposiccedilatildeo (Sujeito-predicado) E essa derivaccedilatildeo eacute elencada nas

trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo (Aussage)

1) Mostraccedilatildeo (Aufzeigung)

2) Predicaccedilatildeo (Praumldikation)

111

3) Comunicaccedilatildeo (Mitteilung)

Essas significaccedilotildees do termo Aussage ainda segundo Heidegger possuem caraacuteter

analiacutetico pois satildeo ldquotiradas do fenocircmeno que ela designa as quais delimitam em sua

conexatildeo e unidade a completa estrutura da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p437)

Essa unidade estaacute assentada nas condiccedilotildees preacutevias tendo em vista que ldquoa enunciaccedilatildeo natildeo

eacute um comportamento-que-flutua-no-ar e que possa por si mesmo abrir o ente

primariamente mas se comporta jaacute sempre sobre a base de ser-no-mundordquo

(HEIDEGGER 2012 p443)

Como vimos no capiacutetulo anterior as condiccedilotildees preacutevias conforme apresentadas no

Relatoacuterio Natorp satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a direccedilatildeo da

visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a ldquovisibilidaderdquo (Sichtweite) De

modo mais claro em (1) temos o acircmbito da realidade dada em uma preacutevia abertura

temporal de sentido em (2) temos a direccedilatildeo que jaacute determinou algo ldquocomo-algordquo (Als-

was) e jaacute ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu lugar

significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de toda

possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o como

do aparecer dos entes em seu ser seu significado e as possibilidades de comportamentos

do ser-aiacute eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto

(1) e jaacute interpretado (2) e por isso pode mover-se em pretensotildees de objetividade e

definiccedilatildeo Essas condiccedilotildees estatildeo articuladas com a interpretaccedilatildeo de Heidegger dos termos

respectivamente noucircs phroacutenesis e sophiacutea e assentadas na noccedilatildeo de verdade como

desvelamento (ἀλήθεια) Em Ser e Tempo Heidegger reelabora essas interpretaccedilotildees com

uma terminologia proacutepria respectivamente Vorhabe (ter-preacutevio) Vorsicht (ver-preacutevio)

e Vorgriff (conceito-preacutevio) e esse tripeacute

ldquoForma o arcabouccedilo projetivo do compreender que nos abre os entes ao sabor

dos nexos da referecircncia na conduta do trato atraveacutes dos quais se estende a rede

de significatividade () Eacute nessa conduta e portanto na experiecircncia

antepredicativa como a praacutexis maciccedila do mundo-da-vida em seu imediato e

frequente transcorrer cotidiano que Heidegger coloca a nascente do sentidordquo

(NUNES 2012 p168)

Como essas condiccedilotildees preacutevias devem ser compreendidas em vista do caraacuteter de

projeto-jogado do ser-aiacute natildeo eacute gratuita a designaccedilatildeo da abertura do ser-aiacute ao mundo como

112

ldquoabertura de sentido fundamentalrdquo A abertura compreensiva fundamental descerra o

poder-ser do ser-aiacute como projeto mas ao projetar-se ele eacute lanccedilado num ldquoaiacuterdquo histoacuterico O

seu poder-ser se lanccedila num campo de jogo jaacute descerrado interpretado e articulado por

essas condiccedilotildees E assim essas condiccedilotildees preacutevias ldquoreconduz[emcc]-nos ao ciacuterculo

hermenecircutico ontoloacutegico-histoacuterico que circunscreve por forccedila da finitude que faz do

homem um Daseinrdquo (NUNES 2012 p168) No que me lanccedilo ao mundo sou e o mundo

eacute como ele eacute como escreve Fernando Pessoa (2006 p177)

ldquoCreio no mundo como um malmequer

Porque o vejo Mas natildeo penso nele

Porque pensar eacute natildeo compreender

O Mundo natildeo se faz para pensarmos nele

(Pensar eacute estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordordquo

Talvez esses versos possam iluminar o que estaacute em questatildeo nesse paraacutegrafo

Poderiacuteamos nos questionar por qual motivo Heidegger natildeo passa da interpretaccedilatildeo

(Auslegung) ao discurso (Rede) pois este como veremos no proacuteximo capiacutetulo remete agrave

fala como fundamento ontoloacutegico da linguagem O sect 33 se refere a uma discussatildeo muito

especiacutefica mas que tem um lugar privilegiado na ontologia fundamental e estaacute

diretamente relacionada ao sect44 da mesma obra A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo de verdade

da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca que era a dos

neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa concepccedilatildeo

tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da verdade em

direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave proposiccedilatildeo Com

isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa medida

condicionando a ontologia agrave loacutegica

Courtine (1996) elabora essa problemaacutetica com clareza A partir de trecircs etapas

ele nos apresenta o caminho que conduz nosso autor da loacutegica agrave liacutengua A primeira etapa

diz respeito aos trabalhos de juventude de Heidegger ldquoainda marcados pela problemaacutetica

da validade como primeira elucidaccedilatildeo do ser no juiacutezordquo (COURTINE 1996 p14) Jaacute a

segunda etapa que Courtine denomina destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica consiste em regressar

da interpretaccedilatildeo ldquoescolarrdquo da loacutegica aristoteacutelica a uma problematizaccedilatildeo mais original do

loacutegos compreendido como modo de desvelamento Eacute nessa segunda etapa que estaacute

113

inserido o trabalho de Ser e Tempo sendo a passagem da primeira agrave segunda etapa

marcada pelo curso de 1925-1926 Logik die Frage nach der Wahrheit (GA21) A

terceira seria ainda uma etapa de destruiccedilatildeo mas de modo diferente marcada pelo que

Courtine denomina desorientaccedilatildeo ou ldquoabalordquo (erschuumlttern) e encontra sua imagem

expliacutecita no texto de 1935 ldquoIntroduccedilatildeo agrave metafiacutesicardquo

Portanto na primeira etapa a loacutegica para o jovem Heidegger eacute ainda apreendida

como loacutegica do ldquosentidordquo ou da ldquovalidaderdquo

ldquoA ideacuteia segundo a qual a Geltung a validade define o modo de ser proacuteprio das

proposiccedilotildees e das verdades vem como se sabe da loacutegica de Lotze Numa nota

das Neuere Forschungen uumlber Logik (GA I p23) Heidegger indicava a respeito

da Loacutegica de Lotze que acabava de ser reeditada sua loacutegica deve sempre ser

considerada como a obra fundamental da loacutegica moderna () E Heidegger que

ateacute aqui se exprimia como disciacutepulo fiel de Husserl terminava por acrescentar

esta questatildeo rica em posteridade para seu proacuteprio pensamento ldquoMas logo se

coloca a questatildeo o que eacute ndash sentidordquo (GA I p170)rdquo (COURTINE 1996 pp16-

17)

Vimos como o sentido (Sinn) em Ser e Tempo eacute apresentado sob uma perspectiva

radical relacionado agrave problematizaccedilatildeo mais original do lsquoloacutegosrsquo como mostraccedilatildeo do

fenocircmeno em seu ser e agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento Essa mudanccedila criacutetica

resulta da aparentemente simples interrogaccedilatildeo de Heidegger acerca da identificaccedilatildeo

ldquoWahrheit = wahrer Satz = Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade)rdquo

(COURTINE 1996 p 19) A criacutetica eacute assim expressa em Logik die Frage nach der

Wahrheit (GA21)

ldquoLotze que introduziu o conceito de lsquoGeltungrsquoem loacutegica emprega a expressatildeo

lsquoserrsquo no sentido estrito segundo o qual ser quer dizer a mesma coisa que

efetividade das coisas ser = lsquorealidadersquo (Vorhandenheit) [] Lotze natildeo conseguiu

superar o naturalismo na medida em que restringiu o significado do termo

veneraacutevel lsquoserrsquo ao ser real agrave realidade [] Na nossa terminologia utilizamos

inversamente ser no sentido amplo inserindo-nos na autecircntica tradiccedilatildeo da

filosofia grega de tal maneira que ser designa tanto a realidade quanto a

idealidade ou outras maneiras possiacuteveis de serrdquo (HEIDEGGER GA21 p62

apud COUTRINE 1996 p19)

Nesse sentido lembremos tambeacutem que para os neokantianos influenciados pela

filosofia dos valores de Lotze o conhecimento eacute possiacutevel como uma atividade valorativa

do juiacutezo (na forma ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo) Ou seja eacute o juiacutezo que reconhece o

conteuacutedo o sentido e a validade da verdade na sua pretensatildeo de necessidade e

114

universalidade algo ldquoeacuterdquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento Ora

o que a leitura de Ser e Tempo ateacute aqui jaacute demonstrou eacute que algo eacute natildeo porque um juiacutezo

loacutegico definiu seu conteuacutedo ontoloacutegico mas porque o ser-aiacute aquele que vai atribuir

sentido jaacute sempre se move numa preacute-compreensatildeo de ser a qual eacute fundamentalmente

praacutetica na visatildeo circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram

em seu ser Ora estabelecendo uma possiacutevel analogia parece que Heidegger desconfia

tanto do conhecimento teoacuterico-proposicional quanto Fernando Pessoa do ldquopensamentordquo

Assim reduzir qualquer ontologia agrave loacutegica atraveacutes do juiacutezo proposicional eacute como ldquoestar

doente dos olhosrdquo

No nosso entender o que Heidegger desenvolve no sect 33 soacute seraacute totalmente

elucidado se o relacionarmos com o sect 44 No sect 33 jaacute se anuncia que a forma fundamental

da predicaccedilatildeo (Praumldikation) sujeito e predicado (ldquoS eacute Prdquo) eacute derivada da mostraccedilatildeo

(Aufzeigung) originaacuteria compreensivo-interpretativa (algo como algo) e soacute por isso a

comunicaccedilatildeo (Mitteilung) uns com os outros na vida cotidiana pode expressar profericcedilotildees

como ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo ldquoHoje eacute um belo diardquo etc Antes de

entramos na apresentaccedilatildeo pormenorizada do sect33 e assim a relacionarmos ao sect44 eacute

necessaacuterio fazermos duas consideraccedilotildees

Essas camadas de derivaccedilatildeo evitam qualquer interpretaccedilatildeo relativista da noccedilatildeo de

linguagem em Heidegger Tentando escapar de uma leitura apressada devemos pensar

no acontecimento da verdade como um acontecimento compreensivo a partir de um ente

finito e histoacuterico o que eacute diferente de reduzi-lo a uma perspectiva historicista O que estaacute

em questatildeo por exemplo natildeo eacute se ldquocasardquo poderia se chamar ldquomesardquo (esse eacute um aspecto

ocircntico da linguagem) ou ainda que o fato de o enunciado possuir um fundamento

contingente ele seria menos verdadeiro Aleacutem disso haacute o fato de que o ente e as

possibilidades de ser do ser-aiacute vecircm agrave palavra por uma mostraccedilatildeo preacutevia de seu ser eacute o

ente que se mostra E na medida em que eacute mobilizado pelo ser-aiacute na interpretaccedilatildeo sua

mostraccedilatildeo pode ser modificada pela expressatildeo na forma predicativa A loacutegica deriva do

loacutegos a loacutegica natildeo eacute o lugar do loacutegos E o loacutegos eacute a maneira mesma de o ente se mostrar

e se ele se mostra para o ser-aiacute isso natildeo quer dizer que eacute o ser-aiacute que o determina Natildeo

Eacute o ser-aiacute que o potildee em liberdade O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento

como fenocircmeno Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a

115

expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional

compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na estabilidade de uma esfera para aleacutem

do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua manifestaccedilatildeo o sentido

de sua proacutepria existecircncia

Caberia ademais em uma pesquisa posterior investigar se a interpretaccedilatildeo do

loacutegos como loacutegos apofacircntico derivada da noccedilatildeo de intencionalidade essecircncia mesma da

fenomenologia ainda reconduz Heidegger a certo viacutenculo com a concepccedilatildeo tradicional

da linguagem na medida em que dizer eacute ainda dizer que algo eacute de tal ou qual maneira ou

seja ainda dizer na forma predicativa Dito de outra forma mesmo que Heidegger

demonstre o caraacuteter derivado da loacutegica ela continua a ser uma purificaccedilatildeo dos elementos

materiais da linguagem Isso significaria dizer que o problema heideggeriano da

linguagem ainda estava inserido no projeto da tradiccedilatildeo da filosofia ocidental 80

Retomemos agora as trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo

(Aussage) Na mostraccedilatildeo (Aufzeigung) como primeiro significado Heidegger reteacutem o

sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Essa forma do enunciado estaacute diretamente

relacionada ao ente que vem ao encontro no Vorhabe (ter-preacutevio) ou noucircs em que o ser-

aiacute originariamente pela ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhanden) movimenta-se e abre a

compreensatildeo em um mundo-ambiente (Umwelt) Mas toda compreensatildeo (Verstehen) jaacute

interpreta (Auslegung) o que entende e assim no trato praacutetico ou no ldquocomordquo

hermenecircutico-existenciaacuterio

ldquoA execuccedilatildeo originaacuteria da interpretaccedilatildeo natildeo consiste em uma proposiccedilatildeo-

enunciativa teoacuterica mas no fato de que no-ver-ao-redor da ocupaccedilatildeo se potildee de

lado ou se troca a ferramenta improacutepria lsquosem perder nisso uma soacute palavrarsquo Da

falta de palavras natildeo se deve concluir a falta de interpretaccedilatildeordquo (HEIDEGGER

2012 P445)

Na predicaccedilatildeo (Praumldikation) segundo significado da enunciaccedilatildeo fundado no

primeiro haacute a determinaccedilatildeo de um ente que modifica e restringe a mostraccedilatildeo de algo

como algo na forma sujeito-predicado Esse segundo significado estaacute diretamente

80 Cf Capiacutetulo I- Introduccedilatildeo

116

relacionado ao Vorsicht (ver-preacutevio) cuja base encontra-se no Vorhabe (ter-preacutevio) No

que o ser-aiacute vecirc algo e o determina ele restringe o utilizaacutevel (Zuhandenes) a um subsistente

(Vorhandener) com isso ele ldquovisa a um subsistente no utilizaacutevel Pelo olhar

contemplativo e para ele o utilizaacutevel se oculta como utilizaacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012

p445) Esse segundo momento da enunciaccedilatildeo estaacute ligado ao significado (Bedeutung) que

emerge a partir da significatividade (Bedeutsamkeit) e nesse sentido ldquoposiccedilatildeo-de-sujeito

posiccedilatildeo-de-predicado em unidade com o-pocircr satildeo inteiramente lsquoapofacircnticosrsquo no sentido

rigoroso da palavrardquo (HEIDEGGER 2012 p439) Aqui Heidegger ainda se refere a uma

categoria do ente que se mostra no interior do mundo Mas entatildeo como ocorre a

modificaccedilatildeo de algo como algo tomado como categoria subsistente (Vorhanden) na forma

loacutegica sujeito-predicado

ldquoAgora pela primeira vez se franqueia o acesso a algo assim como propriedades

O lsquoquecircrsquo da enunciaccedilatildeo determinante do subsistente eacute extraiacutedo do subsistente

como tal () A estrutura-de-como da interpretaccedilatildeo experimenta uma

modificaccedilatildeo O lsquocomorsquo em funccedilatildeo de apropriaccedilatildeo do entendido jaacute natildeo chega ateacute

uma totalidade-de-conjuntaccedilatildeo Ele foi separado de suas possibilidades de

articular as relaccedilotildees-de-remissatildeo da significatividade que constitui o ser-do-

mundo-ambiente O lsquocomorsquo eacute reprimido no plano uniforme do soacute subsistente ()

Esse nivelamento do lsquocomorsquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor em como

da determinaccedilatildeo-da-subsistecircncia eacute a prerrogativa da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER

2012 p447)

O ente tomado como subsistente (Vorhanden) eacute prerrogativa da predicaccedilatildeo Seu

recorte como algo que possui essa ou aquela propriedade torna possiacutevel algo como a

forma predicativa (ldquoS eacute Prdquo) O que estaacute em jogo poreacutem pois tornou-se paradigma da

tradiccedilatildeo eacute o nivelamento de todo e qualquer ente como algo sempre presente dotado de

propriedades e desse modo disponiacuteveis agrave apreensatildeo na forma predicativa Nesse

nivelamento todo ente eacute posto sob o domiacutenio da loacutegica que obscurece sua derivaccedilatildeo

essencial agrave mostraccedilatildeo do ente em seu ser em funccedilatildeo da relaccedilatildeo primaacuteria ser-aiacute como ser-

no-mundo e assim da verdade como desvelamento (ἀλήθεια)

A terceira forma do enunciado derivado do primeiro e do segundo significados eacute

apresentada por Heidegger como comunicaccedilatildeo (Mitteilung) A palavra alematilde jaacute indica o

caraacuteter puacuteblico do que inicialmente foi mostrado e pela predicaccedilatildeo foi determinado

teilung (partilha) mit (com) O enunciado como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se puder ser

partilhado com outrem ldquover juntordquo o mostrado jaacute determinado ldquolsquoCompartilhadorsquo eacute o

comum e transparente ser para o mostrado lsquoser pararsquo que deve ser firmemente mantido

117

como ser-no-mundo [] Agrave enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo entendida assim sentido

existenciaacuterio pertence o ser expressordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Essa terceira forma

estaacute relacionada ao Vorgriff (conceito-preacutevio) ou a significaccedilotildees calcificadas de um

mundo histoacuterico faacutetico

Natildeo podemos esquecer que a anaacutelise dos existenciaacuterios (entender interpretaccedilatildeo e

disposiccedilatildeo) estatildeo na anaacutelise do ldquoser-em como talrdquo (quinto capiacutetulo) antecedida pelo

capiacutetulo intitulado ldquoo ser-no-mundo como ser-com e como ser-si-mesmo lsquoA gentersquordquo

Nesse sentido e pelo caraacuteter programaacutetico de Ser e Tempo a anaacutelise da enunciaccedilatildeo ou

proposiccedilatildeo (Aussage) jaacute pressupotildee que ser-no-mundo eacute sempre ser-com-os-outros Desse

modo ser expresso na comunicaccedilatildeo eacute a primeira manifestaccedilatildeo acerca do fenocircmeno da

linguagem que Heidegger apresenta em Ser e Tempo Poreacutem no sect34 o autor indica que

a comunicaccedilatildeo enunciativa ou informativa (ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo

ldquoHoje eacute um belo diardquo etc) assentada na predicaccedilatildeo eacute um caso particular de comunicaccedilatildeo

(Cf HEIDEGGER 2012 p457) Mas aqui chegamos ao intuito principal de nosso

capiacutetulo descrever como a ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo fundada na predicaccedilatildeo que por

sua vez soacute eacute possiacutevel pela interpretaccedilatildeo apresenta o caraacuteter derivativo do enunciado

expresso em uacuteltima medida pela linguagem que comunica

A partir dessa apresentaccedilatildeo dos trecircs significados do enunciado (Aussage)

compreendemos sua definiccedilatildeo ldquoenunciaccedilatildeo eacute uma mostraccedilatildeo determinante que

comunicardquo (HEIDEGGER 2012 p443) Portanto chegamos agrave estrutura ontoloacutegica da

linguagem (Sprache) ou ao dizer puacuteblico acerca das coisas e do estado de coisas em um

mundo Ter chegado ao objetivo central de nosso capiacutetulo natildeo quer dizer que nossa tarefa

se encerra aqui Uma obra como Ser e Tempo nos exige mais A finalidade da investigaccedilatildeo

desse paraacutegrafo ainda natildeo foi esclarecida em seus dois uacuteltimos pontos

1) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos

2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade

Se Heidegger indica que no mostrar mesmo do fenocircmeno em seu loacutegos (algo como

algo) pode surgir a forma predicativa eacute necessaacuterio explicar como no proacuteprio loacutegos a

flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo eacute possiacutevel Nas palavras de nosso autor

118

ldquoQue funda a unidade desse juntar Ele reside como Platatildeo reconheceu em que o

λόγος eacute sempre um λόγος tivoacuteς Na perspectiva do ente manifesto no λόγος as

palavras satildeo reunidas em um todo verbal Aristoacuteteles viu mais radicalmente todo

λόγος eacute ao mesmo tempo σύνθεσis e διαίρεσηs A mostraccedilatildeo eacute um reunir e separar

Entretanto Aristoacuteteles natildeo desenvolveu a questatildeo ateacute perguntar Que fenocircmeno eacute

o que no interior da estrutura do λόγος possibilita e ao mesmo tempo exige a

caracterizaccedilatildeo de toda enunciaccedilatildeo como siacutentese e dieacuterese () O que com as

estruturas formais do lsquoligarrsquo e lsquosepararrsquo ou mais exatamente com a unidade de

ambos devia ser fenomenicamente encontrado eacute o fenocircmeno do lsquoalgo como algorsquordquo

(HEIDEGGER 2012 p449)

A criacutetica expliacutecita se volta contra Aristoacuteteles mas tambeacutem contra toda tradiccedilatildeo

que absorveu esse pressuposto E como natildeo podemos deixar de observar ateacute seu proacuteprio

mestre Husserl quando este estabeleceu a diferenccedila entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial

Essa distinccedilatildeo desalojou o lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel e o conduziu ao uso loacutegico

sem revelar de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno ou o desvelamento dos

entes em seu ser O fenocircmeno da linguagem enunciativa (Mitteilung) em funccedilatildeo de sua

derivaccedilatildeo da predicaccedilatildeo (Praumldikation) e essa por sua vez derivada da mostraccedilatildeo

(Aufzeigung) possui uma ligaccedilatildeo com os entes na medida em que diz o que de algum

modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que lsquoalgo eacute xrsquo ou que lsquoalgo natildeo eacute xrsquo eacute possiacutevel primariamente

pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com

No interior da estrutura do proacuteprio λόγος ao indicar-se que algo eacute diz-se tambeacutem como

ele eacute ou como ele natildeo eacute [esse traccedilo estaacute relacionado ao caraacuteter intencional do discurso

(die Rede) que examinaremos no proacuteximo capiacutetulo] Contudo a linguagem habitual que

manteacutem vigente os significados calcificados natildeo reconhece esse traccedilo para aleacutem da

gramaacutetica Aleacutem disso a proposiccedilatildeo loacutegica obscurece a estrutura do loacutegos que a

condiciona pelo fato de usurpar a verdade para o juiacutezo natildeo reconhecendo o lugar

originaacuterio da verdade Originariedade somente possiacutevel pela compreensatildeo da verdade

como Aleacutetheia O que nos conduz agrave segunda finalidade da investigaccedilatildeo do sect 33

Para explicarmos esse conceito originaacuterio de verdade eacute necessaacuterio que nos

reportemos ao sect44 Quando se diz ldquooriginariedaderdquo do fenocircmeno da verdade natildeo se diz

algo como lsquocausarsquo da verdade antes se refere agrave sua origem sem sentido objetivo

lsquoObjetividadersquo eacute um conceito derivado da verdade reportada ao juiacutezo Aqui a verdade

tambeacutem natildeo deve ser considerada para aleacutem de sua compreensatildeo histoacuterica Lembremos

de que natildeo haacute ldquoserrdquo sem a compreensatildeo do sentido de ser portanto eacute necessaacuterio vincular

119

sempre ldquoserrdquo ao ser-aiacute ente finito e histoacuterico Por conseguinte compreensatildeo de ser em

Ser e Tempo estaacute como a origem mesma da verdade compreendida como desvelamento

Como jaacute apontamos antes a enunciaccedilatildeo (Aussage) enquanto mostraccedilatildeo

(Aufzeigung) eacute a forma fundante dos modos possiacuteveis de enunciaccedilatildeo e nela Heidegger

reteacutem o sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Na mostraccedilatildeo nada se funda em

representaccedilotildees que se adequam a objetos como compreendeu a tradiccedilatildeo Para serem

verdadeiros e garantirem seu estatuto ontoloacutegico os entes natildeo precisam estar de em

acordo nem se submeterem agrave adequaccedilatildeo dos juiacutezos ou proposiccedilotildees dos homens A

derivaccedilatildeo da verdade como objetividade na ciecircncia ou em todo comportamento teoacuterico

natildeo pode negar a maneira pela qual o ente eacute posto em liberdade Conhecer

originariamente eacute deixar que o ente se mostre em seu ser dessa forma

ldquoSuponha-se que algueacutem de costas para a parede profira a seguinte enunciaccedilatildeo

verdadeira lsquoO quadro pendurado na parede estaacute tortorsquo Essa enunciaccedilatildeo se

comprova quando quem a enuncia se volta para a parede e percebe o quadro torto

ali dependurado Que eacute comprovado nessa comprovaccedilatildeo Eacute constatado algo

como uma concordacircncia do lsquoconhecimentorsquo ou do conhecido com a coisa

lsquocolocadarsquo na parede Sim e natildeo conforme se faccedila cada vez uma adequada

interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do que a expressatildeo lsquoo conhecidorsquo significa A que

se refere quem enuncia se natildeo julga o quadro na percepccedilatildeo mas soacute o representa

A algo como representaccedilotildees Certamente que natildeo se representaccedilatildeo deve aqui

significar representar como processo psiacutequico Tambeacutem natildeo se representaccedilotildees

tecircm o sentido do representado na medida em que visada uma imagem da coisa

real na parede Ao contraacuterio a enunciaccedilatildeo que soacute representa refere-se segundo

seu sentido mais proacuteprio ao quadro real na parede Soacute ele eacute visado e nada que

dele difira () O enunciar eacute um ser voltado para a coisa sendo ela mesma E que

eacute comprovado pela percepccedilatildeo Nada senatildeo que o percebido eacute o mesmo ente

visado na enunciaccedilatildeoConfirma-se que o ser enunciante para o enunciado eacute um

mostrar o ente que ele descobre o ente para o qual se volta Eacute comprovado o ser-

descobridor da enunciaccedilatildeo () o conhecer permanece referido unicamente ao

ente ele mesmo Eacute neste mesmo que se joga por assim dizer a confirmaccedilatildeo O

ente visado se mostra ele mesmo assim como ele eacute em si mesmo () A

enunciaccedilatildeo eacute verdadeira significa que ela descobre o ente em si mesmo Ela

enuncia mostra lsquofaz verrdquo (αποφανσις) o ente em seu ser-descoberto O ser

verdadeiro (verdade) da enunciaccedilatildeo se deve entender como um ser-descobridorrdquo

(Heidegger 2012 pp603-605)

O termo grego ldquoapophantikoacutesrdquo pela junccedilatildeo entre ldquoapordquo [ldquopara forardquo ldquomostrarrdquo

ldquotornar conhecidordquo] e ldquophaineinrdquo [ldquoexibir mostrarrdquo (derivado de lsquophosrsquo ldquoluzrdquo - mesma

raiz da palavra phainoacutemenon)] manteacutem sua forccedila quando articulado com as palavras

120

ldquoAuslegungrdquo e ldquoAussagerdquo Pois tal como ldquoapordquo ldquoausrdquo eacute o prefixo de liacutengua alematilde usado

nessas palavras com o sentido da preposiccedilatildeo aus que significa ldquopara forardquo ldquoderdquo Assim

uma vez interpretado (Auslegung) o ente enunciado (Aussage) jaacute mostrou jaacute trouxe a si

mesmo a conhecimento e desvelou-se como ente e nisso consiste sua verdade originaacuteria

(Aleacutetheia)

O retorno de Heidegger agrave ldquoforccedila das palavras mais elementaresrdquo ou agraves palavras

gregas como loacutegos dikeacute physis teacutechne e aleacutetheia eacute a tentativa de ir aleacutem da

sedimentaccedilatildeo histoacuterica das palavras Dito de outra forma voltar agrave origem dos termos

atraveacutes dos quais o pensamento filosoacutefico teria alcanccedilado lsquoas coisas mesmasrsquo coisas essas

que agora no presente permanecem veladas por camadas interpretativas cotidianas e

teoacutericas Sendo a concepccedilatildeo de que a proposiccedilatildeo eacute o lugar privilegiado da verdade uma

das maiores expressotildees da tradiccedilatildeo metafiacutesica Portanto eacute tarefa a que Ser e Tempo se

propotildee eacute a da descriccedilatildeo desse lugar originaacuterio ndash de mostraccedilatildeo - dos fenocircmenos

Mas se eacute o ser-aiacute na abertura de sentido fundamental que mobiliza os entes em seu

ser qual o papel desse ente marcado pela existecircncia em meio agrave verdade agora

compreendida como Aleacutetheia A compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido

primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode custodiar o sentido

de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento

ldquoO ser-verdadeiro como ser-descobridor soacute eacute de sua parte ontologicamente

possiacutevel sobre o fundmento do ser-no-mundo Este fenocircmeno no qual

reconhecemos uma constituiccedilatildeo fundamental do Dasein eacute o fundamento do

fenocircmeno originaacuterio da verdade () Na medida em que o Dasein eacute

essencialmente sua abertura e aberto abre e descobre ele eacute essencialmente

verdadeiro O Dasein eacute lsquona verdadersquordquo (HEIDEGGER 2012 pp607-611)

O ser-aiacute em sua unidade fenomecircnica como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge)

revelou-se como o fundamento sem fundamento da abertura compreensiva portanto

aquele que como ser-no-mundo pode abrir o sentido de ser de todo ente e de suas

possibilidades Poreacutem como projeto-jogado eacute tambeacutem aquele que pode perder-se e natildeo

tornar transparente essa condiccedilatildeo ontoloacutegica fundamental o que frequentemente jaacute faz

pois sempre jaacute custodiou seu ser no mundo suas orientaccedilotildees cotidianas as sedimentaccedilotildees

121

significativas e as concepccedilotildees de verdade calcificadas Por isso o Dasein eacute o ente que

tambeacutem estaacute na natildeo-verdade (Umwahrheit)81

Recuperemos o sentido efetivo de desvelamento ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o

que aponta para o velamento (lethe) que ficou para traacutes que mostra para aquilo que a

sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila da aleacutetheia que se torna possiacutevel a

objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89)

Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao

encontro em seu significado) no desvelamento originaacuterio de seu ser mas a mostraccedilatildeo dos

fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira dissimulada sempre em uma objetificaccedilatildeo de

seu ser como ente determinado pois ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na

medida em que partimos de seu encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de

descoberta perde seu sentido mais efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Entatildeo ldquodizer que o

Dasein estaacute e natildeo estaacute na verdade eacute compreender que o encobrimento (Verschlossenheit)

eacute [] a contraparte da aberturardquo (NUNES 2012 p197)

Depois dessa exposiccedilatildeo eacute necessaacuterio apresentar como a linguagem estaacute assentada

na constituiccedilatildeo proacutepria ao ser-aiacute em relaccedilatildeo agrave verdade Tentaremos mostrar como o

discurso (Rede) eacute para Heidegger o fundamento ontoloacutegico da linguagem mas ao

mesmo tempo como o proacuteprio fenocircmeno da linguagem jaacute sempre se apresenta como

falatoacuterio (Gerede) Essa eacute a tarefa do proacuteximo e uacuteltimo capiacutetulo de nosso trabalho

81 Cf HEIDEGGER 2012 sect44 p615

122

Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)

Em vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdos Sob a pele das palavras haacute cifras e coacutedigos O sol consola os doentes e natildeo os renova

As coisas Que tristes satildeo as coisas consideradas sem ecircnfase (A flor e a naacuteusea Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

No capiacutetulo anterior descrevemos de que modo o fenocircmeno da linguagem eacute

apresentado pela primeira vez em Ser e Tempo como ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo e ainda

como a linguagem eacute derivada da mostraccedilatildeo preacutevia dos entes em seu ser a partir da relaccedilatildeo

primaacuteria ser-aiacute como ser-no-mundo O Dasein como ente privilegiado estaacute remetido ao

mundo e sempre jaacute possui uma compreensatildeo preacutevia do ser A compreensatildeo ou

entendimento (Verstehen) de ser eacute o fundamento originaacuterio da verdade agora

compreendida como desvelamento aleacutetheia Poreacutem desvelar eacute apontar para o que

permanece velado ou seja a contraparte da abertura eacute o velamento

Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a

ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo

material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos

que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas

que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela

dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se

estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o

123

que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes82rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que

somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em

fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo

Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por

Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um

fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo

incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como

descoberto e os entes sempre disponiacuteveis A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo

cotidiano Heidegger chama de ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou

ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que

esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas

tomadas como oacutebvias e sempre disponiacuteveis pelos nossos recursos linguiacutesticos

I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem

A anaacutelise do discurso (Rede) por Heidegger eacute apresentada no sect34 de Ser e Tempo e

eacute assim descrita

ldquoCom a enunciaccedilatildeo ficou visiacutevel um derivado extremo da interpretaccedilatildeo A

elucidaccedilatildeo da terceira significaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo (ou

manifestaccedilatildeo verbal) conduziu ao conceito de dizer e falar que intencionalmente

sem duacutevida natildeo fora considerado ateacute aquele momento O fato de que a linguagem

seja tematizada somente agora deve servir de indicaccedilatildeo de que esse fenocircmeno

tem suas raiacutezes na constituiccedilatildeo existenciaacuteria da abertura do Dasein O fundamento

ontoloacutegico-existenciaacuterio da linguagem eacute o discurso () O discurso eacute

existenciariamente de igual originariedade que o entenderrdquo (HEIDEGGER

2012 p453)

Esse trecho nos coloca diante de uma constataccedilatildeo reveladora Afinal o que

fundamenta a linguagem estaacute remetido a abertura primaacuteria de sentido Mas isso jaacute natildeo

estaacute claro a partir da descriccedilatildeo da enunciaccedilatildeo De certa forma sim contudo de maneira

indireta pois a enunciaccedilatildeo (Aussage) comunicativa estaacute remetida aos significados ou

seja ao entendimento jaacute articulado e interpretado Agora poreacutem o que Heidegger nos

82 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo

Wolf Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249

124

apresenta eacute o discurso como fundamento da interpretaccedilatildeo e da enunciaccedilatildeo De outra

forma o fundamento da linguagem na proacutepria abertura de sentido (Sinn) de maneira que

o discurso eacute o proacuteprio entendimento articulado que pode interpretar

ldquoO discurso eacute a articulaccedilatildeo da entendibilidade Por isso o discurso fundamenta a

interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo Ao que pode ser articulado na interpretaccedilatildeo e

mesmo mais originariamente jaacute no discurso demos o nome de sentido O

articulado na articulaccedilatildeo discursiva como tal denominamos de o-todo-da-

significaccedilatildeo e este pode ser decomposto em significaccedilotildees As significaccedilotildees como

o articulado do articulaacutevel satildeo sempre providas de sentido () A entendibilidade

do encontrar-se do ser-no-mundo exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER

2012 p455)

O tratamento sobre o discurso (Rede) em Ser e Tempo eacute pouco extensivo mas

cabe a noacutes tentar compreendecirc-lo em todo sua radicalidade O iniacutecio da filosofia grega

denominado como ldquofilosofia da naturezardquo eacute marcado pela tentativa de encontrar a ordem

imanente agrave totalidade substancial do mundo material Essa totalidade estaacute expressa na

palavra physis que nada tem a ver com a natureza empiacuterica e manipulaacutevel que

conhecemos hoje pelas ciecircncias naturais83 Essa totalidade soacute pode ser vista como tal em

sua constituiccedilatildeo una se suas partes estiverem organicamente reunidas sem as quais natildeo

haacute totalidade mas eacute a partir da totalidade que as partes ganham sentido Mesmo que

Heidegger natildeo trate o discurso nesses termos e ainda mesmo que o termo physis apoacutes a

viragem ganhe uma conotaccedilatildeo toda especiacutefica nos valemos dessa explicaccedilatildeo para tentar

compreender a especificidade do discurso Desse modo podemos observar o que estaacute em

jogo no trecho acima O discurso eacute a articulaccedilatildeo da abertura de sentido sem ele o todo

natildeo poderia ser decomposto e a totalidade seria apenas um todo indistinto Nesse sentido

que o discurso fundamenta a interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo E isso nos revela um pouco

mais

ldquoA tatildeo comum definiccedilatildeo do iniacutecio da filosofia como a substituiccedilatildeo da explicaccedilatildeo

miacutetica ou (como eacute o recorte nos manuais de histoacuteria da filosofia) a passagem do

mito ao logos eacute por demais simplista para descrever o que representou a histoacuteria

e filosoficamente essa origem Compreender a filosofia antiga a partir da relaccedilatildeo

entre logos e physis eacute de fato compreender que o iniacutecio da especulaccedilatildeo filosoacutefica

sobre o mundo eacute em grande parte acompanhado pela tradiccedilatildeo miacutetica grega de

unidade entre espiacuterito e natureza e ao mesmo tempo pelo iniacutecio de um certo

83 Cf GONCcedilALVES M 2006 pp7-11

125

estranhamento entre o ser humano pensante e o ser natural ou () a natureza em

sua totalidaderdquo (GONCcedilALVES 2006 p12)

Como vimos o loacutegos para Heidegger natildeo eacute algo que estaacute no Dasein e por isso ele

pode pensar a totalidade Loacutegos segundo Heidegger em seu sentido originaacuterio grego natildeo

eacute ratio Ao contraacuterio o loacutegos estaacute na totalidade ele eacute a articulaccedilatildeo da totalidade que se

mostra ao mostrar os entes ou os fenocircmenos (loacutegos eacute loacutegos apofacircntico) E por isso o ser-

aiacute o acessa inicialmente de modo praacutetico pois natildeo se separa dessa totalidade (por isso a

originariedade da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da

conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) significativamente articulada) Na realidade o ser-aiacute soacute se

afasta dessa totalidade quando natildeo acessa mais o loacutegos de maneira originaacuteria relativo agrave

derivaccedilatildeo como ente simplesmente dado (Vorhanden) fazendo emergir algo como

significado (Bedeutung) que ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da

enunciaccedilatildeo (Aussage)

Mas qual a relaccedilatildeo entre loacutegos e discurso (Rede) Precisamos ir ao sect7 de Ser e

Tempo ldquoQuando dizemos que o significado-fundamental de λόγος eacute discurso essa

traduccedilatildeo literal soacute eacute plenamente validada a partir da determinaccedilatildeo do que o discurso ele

mesmo significardquo (HEIDEGGER 2012 p113) Loacutegos e discurso satildeo portanto o mesmo

Mas isso soacute torna a questatildeo ainda mais difiacutecil Afinal o loacutegos como loacutegos apofacircntico natildeo

eacute o mostrar do ente em seu ser Como mostrar e dizer podem ser o mesmo

ldquoλόγος como discurso significa () algo assim como δηλοῦν tornar manifesto

aquilo de que lsquose discorrersquo no discurso Aristoacuteteles explicitou mais nitidamente

essa funccedilatildeo do discurso como αποφανέσται O λόγος faz ver algo (φαίνεισθαι) a

saber aquilo sobre o que se discorre e faz ver a quem discorre (voz media) e aos

que discorrem uns com os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p113)

Discurso eacute a mostraccedilatildeo (ἀπόφανσις) que torna-se clara (δηλοῦν) Lembremos que

a plurivocidade do ente na tradiccedilatildeo loacutegica estaacute assentada nas possibilidades semacircnticas

submetidas a um princiacutepio loacutegico fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado

ao princiacutepio de identidade Pensamos que o que Heidegger potildee em tela eacute que a

ldquoidentidaderdquo e a ldquonatildeo-contradiccedilatildeordquo natildeo satildeo princiacutepios loacutegicos mas o mostrar e o torna-

se claro dos fenocircmenos em seu ser na totalidade articulada Ou seja o sentido de ser dos

126

fenocircmenos o mostrar o existente como existente eacute o loacutegos que manifesta e diz a si

mesmo pois reporta-se a palavra legein tornar manifesto aquilo de que se fala num

discurso deixar que algo seja visto manifesto porque posicionado em relaccedilatildeo uns com

os outros Tentemos esboccedilar um exemplo mas natildeo esqueccedilamos a fragilidade das palavras

sedimentas e o obscurecimento que elas oferecem a problemaacutetica ontoloacutegica Quando no

nosso cotidiano uma mesa ldquode trabalhordquo sem os livros sem a cadeira sem as canetas e

sobretudo sem a intenccedilatildeo de ser usada para o trabalho natildeo possui qualquer sentido Ela

eacute apenas um pedaccedilo de madeira ou mesmo passa obtusa aos nossos olhos Do mesmo

modo os livros as canetas e a cadeira A articulaccedilatildeo preacutevia desses objetos ou em seu

sentido ontoloacutegico a articulaccedilatildeo desses fenocircmenos eacute o que faz com que cada um deles

possa ser visto como um ldquoistordquo Notemos como o exemplo nos reporta exatamente a noccedilatildeo

de Umwelt descrita por Heidegger O que o discurso indica eacute a articulaccedilatildeo preacutevia para

que as coisas apareccedilam como tais jaacute no mundo circundante Articulaccedilatildeo anterior a

qualquer interpretaccedilatildeo de um ldquoistordquo ou de algo como algo e consequentemente anterior

ao enunciado (Aussage) Assim o caraacuteter ontoloacutegico dessa articulaccedilatildeo sempre dada a

noacutes em um mundo jaacute descerrado em que pode-se travar atividades praacuteticas com os entes

e em uacuteltima instacircncia falar de ldquomesardquo ldquocadeirardquo ldquocanetardquo etc eacute dado pelo discurso (die

Rede) compreendido como sendo o significado fundamental de λόγος

Nesse sentido podemos ver tambeacutem o caraacuteter intencional do discurso Como

indicamos no capiacutetulo anterior loacutegos como loacutegos apofacircntico possui uma ligaccedilatildeo com os

entes na medida que diz o que de algum modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que ldquoalgo eacute xrdquo ou

que ldquoalgo natildeo eacute xrdquo eacute possiacutevel primariamente pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da

mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com No interior da estrutura do proacuteprio λόγος

ao mostrar que algo eacute diz tambeacutem como ele eacute ou como ele natildeo eacute

ldquoPara tanto tomar-se-aacute uma sentenccedila elementar como exemplo de realizaccedilatildeo do

discurso (λόγος) ldquoa caneta eacute azulrdquo Acabou-se de dizer que um dos elementos

constitutivos do falar (λέγειν) eacute o sobre-o-quecirc Este sobre-o-quecirc em direccedilatildeo ao

qual se realiza o movimento intencional de desvelamento se encontra

simplesmente dado como um todo discreto e a interpelaccedilatildeo discursiva destaca

dele certos elementos O que ocorre ao se proferir o enunciado do tipo ldquoa caneta

eacute azulrdquo eacute uma cisatildeo de um todo subsistente o discurso opera no uno indistinto a

fixaccedilatildeo de limite de certas determinaccedilotildees particulares de modo a destacar

componentes pertencentes a esse elemento temaacutetico da fala () Assim natildeo se

tem uma mostraccedilatildeo da totalidade do sobre-o-quecirc mas apenas de determinados

aspectos seus Juntamente com este movimento de distinccedilatildeo do discurso

denominado de cisatildeo (διαίρεσις) ocorre outro a siacutentese (σύνθεσις) Dissociando-

127

se do todo indistinto certos elementos a ele pertencentes estes natildeo satildeo

simplesmente colocados uns ao lado dos outros Ao fixar os limites das

determinaccedilotildees pertencentes ao uno discreto o discurso reuacutene os elementos que

foram por ele destacados posicionando-os uns com os outros Assim a

interpelaccedilatildeo discursiva que demarca um elemento temaacutetico como sendo caneta e

azul atribui a cor azul ao ente utilizaacutevel caneta sendo esses elementos

visualizados conjuntamente como um no enunciado ldquoa caneta eacute azulrdquo Atraveacutes da

siacutentese o que se dava como um todo indistinto eacute visualizado em sua unidade

destacada por determinados aspectos seus Com base nesses dois momentos a

siacutentese (σύνθεσις) e a cisatildeo (διαίρεσις) vecirc-se que o desencobrimento realizado

pelo discurso eacute uma articulaccedilatildeo delimitadora do quecirc para o qual ele se dirigerdquo

(SALGADO 2015 p145)

Contudo o discurso natildeo eacute apenas o ldquosobre-quecircrdquo a ele tambeacutem pertencem ldquoo dito

discursivamente como tal a comunicaccedilatildeo e o anuacutenciordquo (HEIDEGGER 2012 p459) Isto

porque ldquoo discurso eacute a articulaccedilatildeo significacional da entendibilidade [ou da compreensatildeo

(Verstehen)] do encontrar-se (befindlichen) no ser-no-mundordquo (HEIDEGGER 2012

p459) Ou seja natildeo eacute apenas aos entes e a um estado de coisas natildeo conforme ao ser-aiacute

que o discurso se reporta Mas a proacutepria abertura que possui sentido sendo o sentido

ldquoaquilo que a entendibilidade de algo se manteacutem Denominamos sentido o que eacute

articulaacutevel no abrir que entenderdquo (HEIDEGGER 2012 p429) O discurso como o

significado originaacuterio de loacutegos eacute o proacuteprio ser-no-mundo Pois na medida em que a

proacutepria abertura compreensiva se manteacutem por estar articulada pode sustentar em seu

acircmbito o que quer que seja entes sensaccedilotildees projetos etc E para fora dela bem natildeo haacute

nem mesmo fora Nesse sentido que ldquoa entendibilidade do encontrar-se do ser-no-mundo

exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER 2012 p455) e ldquoo todo-de-significaccedilatildeo da

entendibilidade acede agrave palavra Das significaccedilotildees nascem as palavras e natildeo satildeo as

palavras que entendidas como coisas se proveem de significaccedilotildeesrdquo (HEIDEGGER

2012 p455) A situaccedilatildeo insustentaacutevel de considerar as palavras como as portadoras

originaacuterias de significados pode ser exemplificada por um trecho da obra Cem anos de

solidatildeo de Gabriel Garciacutea Maacuterquez no momento em que Joseacute Arcadio Buendiacutea previu

que as inscriccedilotildees graacuteficas poderiam natildeo mais reportar agrave utilidade das coisas

ldquoFue Aureliano quien concibioacute la foacutermula que habiacutea de defenderlos durante varias

meses de las evasiones de la memoria La descubrioacute por casualidad Insomne

experto por haber sido uno de las primeros habiacutea aprendido a la perfeccioacuten el

arte de la plateriacutea Un diacutea estaba buscando el pequentildeo yunque que utilizaba para

laminar los metales y no recordoacute su nombre Su padre se lo dijo laquotasraquo Aureliano

128

escribioacute el nombre en un papel que pegoacute con goma en la base del yunquecito tas

Asiacute estuvo seguro de no olvidarlo en el futuro No se le ocurrioacute que fuera aquella

la primera manifestacioacuten del olvido porque el objeto teniacutea un nombre difiacutecil de

recordar Pero pocos diacuteas despueacutes descubrioacute que teniacutea dificultades para recordar

casi todas las cosas del laboratorio Entonces las marcoacute con el nombre respectivo

de modo que le bastaba con leer la inscripcioacuten para identificarlas Cuando su

padre le comunicoacute su alarma por haber olvidado hasta los hechos maacutes

impresionantes de su nintildeez Aureliano le explicoacute su meacutetodo y Joseacute Arcadio

Buendiacutea lo puso en praacutectica en toda la casa y maacutes tarde la impuso a todo el pueblo

Con un hisopo entintado marcoacute cada cosa con su nombre mesa silla reloj

puerta pared cama cacerola Fue al corral y marcoacute los animales y las plantas

vaca chivo puerca gallina yuca malanga guineo Paca a poca estudiando las

infinitas posibilidades del olvido se dio cuenta de que podiacutea llegar un diacutea en que

se reconocieran las cosas por sus inscripciones pero no se recordara su utilidad

Entonces fue maacutes expliacutecito El letrero que colgoacute en la cerviz de la vaca era una

muestra ejemplar de la forma en que los habitantes de Macondo estaban

dispuestas a luchar contra el olvido Eacutesta es la vaca hay que ordentildearla todas las

mantildeanas para que produzca leche y a la leche hay que herviriacutea para mezclarla

con el cafeacute y hacer cafeacute con lecherdquo (MAacuteRQUEZ 1999 p102)

A doenccedila da insocircnia em Macondo na obra de Maacuterquez e o esquecimento como

sua consequecircncia eacute ndash se nos permitem uma comparaccedilatildeo livre ndash como na cotidianidade

consideramos os entes disponiacuteveis e sempre presentes Partimos sempre desse

encobrimento oferecido pela liacutengua que a cada vez quer fixar os entes e assim as palavras

satildeo instrumentalizadas pois definem afinal nessa insocircnia o que cada coisa eacute O

esquecimento eacute portanto o desligamento da mostraccedilatildeo originaacuteria dos entes em seu ser

E em uacuteltima medida o esquecimento da verdade como desvelamento (Aleacutetheia) Dito de

outro modo aquilo que Heidegger jaacute havia indicado em 1923-1924 ldquoO que importa eacute

somente que essas coisas existem aiacute () Mas que falte um nome para essas coisas mostra

contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia84(HEIDEGGER

2006p31)

Mas o que consiste esse dizer falar do discurso Se ele eacute o fundamento ontoloacutegico

da linguagem certamente natildeo eacute o mesmo que profericcedilotildees verbais e nominais e sobretudo

natildeo diz respeito a natureza fiacutesica da produccedilatildeo e da percepccedilatildeo dos sons da fala humana

como compreende o estudo da foneacutetica Heidegger nos apresenta entatildeo como o dizer do

discurso pode ser visualizado de forma clara pelo ouvir

84 Cf Nota 45

129

ldquoA conexatildeo do discurso com o entender e com a entendibilidade se torna clara a

partir de uma possibilidade existenciaacuteria do discurso ele mesmo a saber a partir

do ouvir Natildeo eacute por acaso que ao natildeo ouvir lsquodireitorsquo dizemos natildeo lsquoter entendidorsquo

Para o discurso o ouvir eacute constitutivo E assim como a prolaccedilatildeo verbal se funda

no discurso a percepccedilatildeo acuacutestica tambeacutem se funda no ouvir () O Dasein ouve

porque entende Como entendedor ser-no-mundo com os outros ele eacute no seu

ouvir lsquoobedientersquo ao Dasein-com e a si mesmo e nessa audiecircncia obediente ele

se torna dependenterdquo (HEIDEGGER 2012 p461)

Essa dependecircncia diz respeito agrave articulaccedilatildeo jaacute aberta de um mundo descerrado O

discurso articula um mundo esse que sempre nos movimentamos e nos orientamos Sem

essa obediecircncia natildeo haveria qualquer possibilidade de accedilotildees e projetos do ser-aiacute E o

ouvir como possibilidade existenciaacuteria do discurso eacute a manifestaccedilatildeo de seu traccedilo

intencional que ilumina sua presenccedila na abertura de sentido Pois o ouvir eacute o fundamento

ontoloacutegico do escutar ldquofenomenicamente mais originaacuterio do que se determina lsquode

imediatorsquo em psicologia como ouvir ter sensaccedilotildees de sons e perceber ruiacutedosrdquo

(HEIDEGGER 2012 p461) De modo mais claro o fenocircmeno desde Husserl indica

aquilo que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute sempre uma doaccedilatildeo com

significado Assim a intencionalidade fenomenoloacutegica para Heidegger agora voltada ao

mundo e a facticidade como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em seu ser acontece

na e pela articulaccedilatildeo discursiva que ouve porque jaacute articulou a totalidade e por isso

entende tendo em vista que essa totalidade natildeo se apresenta como um todo indistinto Ou

seja o ser-aiacute em sua constituiccedilatildeo primaacuteria voltado agrave abertura compreensiva articulada

pelo discurso pode escutar a doaccedilatildeo fenomecircnica

ldquolsquoDe imediatorsquo nunca ouvimos barulhos e o conjunto de ruiacutedos mas o carro que

range a motocicleta O que se ouve eacute a coluna em marcha o vento norte o pica-

pau bicando o fogo crepitando Eacute preciso uma atitude muito artificial e

complicada para lsquoouviursquo um lsquobarulho purorsquo Que em primeiro lugar ouccedilamos

motocicletas e carros eacute a prova fenomecircnica de que o Dasein como ser-no-mundo

manteacutem-se cada vez junto ao utilizaacutevel do interior-do-mundo e de modo algum

imediatamente junto a lsquosensaccedilotildeesrsquo cuja concatenaccedilatildeo tivesse primeiramente de

ser formada para que se proporcionasse o trampolim a partir do qual o sujeito

saltaria para alcanccedilar finalmente um lsquomundorsquo O Dasein como essencialmente

entendedor eacute de pronto junto ao entendidordquo (HEIDEGGER 2012 p461)

A doaccedilatildeo fenomecircnica possibilitada pelo traccedilo intencional do discurso se estende

agrave escuta e ao calar de um outro ser-aiacute pois como ser-no-mundo que eacute sempre ser-com-

os-outros o Dasein jaacute estaacute ldquode antematildeo com o outro junto ao ente sobre o qual discorrerdquo

130

(HEIDEGGER 2012 p463) Por isso quando outra pessoa nos fala algo natildeo ouvimos

primeiramente os sons para depois agregaacute-los e formarmos palavras compreensiacuteveis Ou

ainda quando o outro silencia ainda expressa algo e tambeacutem pode lsquodar a entenderrsquo

ldquoOuvindo compreendemos o que o interlocutor diz E o dizer nos coloca de

imediato com o interlocutor junto ao ente a respeito do qual o discurso se

pronuncia O genuiacuteno silecircncio tambeacutem modo de ouvir e de dizer calando Essa

preeminecircncia do dizer se reflete nos componentes dos do discurso que se

estruturam a partir daquilo que acede agrave palavra do ente que ela torna manifesto

Dizer algo de certa maneira para algueacutem numa tonalidade ou disposiccedilatildeo de

acircnimo nisso consiste o fenocircmeno do discurso em sua completa estrutura

comunicativa-expressivardquo (NUNES 2012 p 170)

Poderiacuteamos dizer que a articulaccedilatildeo da compreensatildeo (Verstehen) pelo discurso

(Rede) na reuniatildeo dos elementos que foram por ele destacados posicionando-os

discursivamente opera como a harmonia de uma muacutesica que daacute aos fenocircmenos seu lugar

na melodia em funccedilatildeo do ritmo Sendo o ritmo o ldquomundordquo como abertura histoacuterica que

sustenta o sentido de ser de cada parte da melodia que continuaraacute agrave tona ou que teraacute

sentido

Portanto para o ser-aiacute estar lanccedilado em um mundo como projeto-jogado eacute estar

familiarizado atraveacutes da abertura que entende dispositivamente o horizonte de sentido E

esse horizonte eacute compartilhado por todos que convivem em um mesmo mundo faacutetico e eacute

neste sentido que a comunicaccedilatildeo o terceiro significado de enunciaccedilatildeo como vimos no

capiacutetulo anterior ldquoefetua lsquoa partilharsquo do co-encontrar-se e do entendimento do ser-comrdquo

(HEIDEGGER 2012 p457) O que eacute compartilhado natildeo eacute meramente um conteuacutedo

significativo de um lsquopacto-linguiacutesticorsquo assim como comunicar natildeo eacute trazer um desejo

uma expressatildeo uma afirmaccedilatildeo de lsquoforarsquo de um sujeito para o lsquointeriorrsquo de outro mas ldquosua

tendecircncia-de-ser consiste em pretender que o ouvinte participe do ser aberto por aquilo-

sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012 p 473) ou seja a partilha da

experiecircncia da abertura compreensiva jaacute articulada como horizonte de possibilidades que

vem agrave linguagem De outro modo

ldquoDado que o fundamento ontoloacutegico natildeo possui existecircncia agrave parte daquilo que

funda o discurso que eacute a condiccedilatildeo transcendental da linguagem relevando-se da

abertura do Dasein de seu ser-no-mundo tambeacutem eacute lsquolinguagem extensivarsquo (SZ

p61) Inversamente a linguagem como totalidade de palavras (Wortganzheit) de

uma liacutengua eacute o discurso pronunciado De onde se conclui que a primeira eacute a forma

131

estabilizada do segundo na perspectiva do ser-no-mundo da existecircncia cotidiana

que lhe impotildee a condiccedilatildeo de ente intramundano como utensiacutelio As palavras que

podem espedaccedilar-se e coisificar-se seriam o veiacuteculo dessa condiccedilatildeo instrumental

() E que eacute aceder agrave palavra senatildeo falar e que eacute falar senatildeo usar a linguagem

Satildeo pois equivalentes as duas afirmaccedilotildees de Heidegger- que ser no-mundo eacute

falante e que ele tem linguagem (Sprache)() Ambas concernem a um soacute

fenocircmeno captado no conceito aristoteacutelico de homem como ser capaz de falar ndash

zoacuteon loacutegon eacutechon- complemento agrave tese do zoacuteon politikoacuten (animal poliacutetico) - que

revela a interlocuccedilatildeo o lsquofalar uns com os outrosrsquo em que o cotidiano grego estava

politicamente enraizadordquo (NUNES 2012 p170)

Eacute um tanto embaraccediloso os caminhos conceituais que levam o discurso (die Rede)

agrave linguagem (die Sprache) e ainda como essa se apresenta sempre como falatoacuterio (das

Gerede) pela essecircncia mesma da comunicaccedilatildeo (Mitteilung) Pois a linguagem cotidiana

- o dizer uns com os outros em um mundo faacutetico - eacute um discurso que jaacute se expressou ou

seja o acontecimento da linguagem jaacute eacute articulado por um discurso preacutevio e o discurso

jaacute expresso eacute comunicaccedilatildeo Mesmo que a analiacutetica indique uma estratificaccedilatildeo e ainda a

fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da linguagem pelo discurso haacute um caraacuteter ciacuteclico

consequecircncia mesma do ciacuterculo hermenecircutico Se as palavras natildeo tecircm significados fixos

mas histoacutericos provenientes de uma abertura de sentido articulada que sustenta esses

significados Ainda assim os significados acumulam-se nas palavras e essas satildeo afinal a

maneira pela qual o mundo eacute dito nas relaccedilotildees interpessoais e nas relaccedilotildees das pessoas

com as coisas Desse modo se os significados acumulam-se nas palavras o discurso (die

Rede) sempre se manifesta na linguagem cotidiana E eacute na cotidianidade que a absorccedilatildeo

da linguagem eacute imediatamente tomada pela impessoalidade atraveacutes do uso instrumental

das palavras na tendecircncia de oferecer um mundo sempre estaacutevel Eacute essa uacuteltima descriccedilatildeo

que Heidegger chama de falatoacuterio (Gerede) Pois

ldquoO substantivo alematildeo Rede deriva-se diretamente do verbo reden que significa

falar O particiacutepio dos verbos em alematildeo eacute feito na maior parte das vezes por meio

da inserccedilatildeo da partiacutecula lsquogersquo() O que temos na cotidianidade mediana do ser-

aiacute eacute falatoacuterio natildeo porque podemos constatar empiricamente um esvaziamento da

linguagem impessoal e porque sempre eacute possiacutevel acompanhar a falta de

profundidade desses discursos Ao contraacuterio eacute falatoacuterio porque natildeo se realiza

senatildeo a partir de um ato jaacute concluiacutedordquo (CASANOVA 2006 p63)

Mas antes de passarmos agrave descriccedilatildeo do falatoacuterio eacute preciso indicar como esses

ldquoembaraccedilos conceituaisrdquo em torno do discurso indicam a ldquotransiccedilatildeo do pensamento

132

heideggeriano ndash em sua segunda fase nucleado em torno da linguagem- ldquo(NUNES 2012

p169) pois ldquoestampam-se na proacutepria equivocidade do termo designativo die Rede que

significa aleacutem de discurso conversaccedilatildeo e pronunciamentordquo (NUNES 2012 p169)

Essa equivocidade torna-se clara no fato que o discurso (die Rede) natildeo se funda em

qualquer ekstase determinada ou seja natildeo eacute possiacutevel encontrar na temporalidade do ser-

aiacute um momento constitutivo no qual ele emerge Dando assim em Ser e Tempo um

caraacuteter transcendental ao discurso

ldquoconotando o loacutegos grego retraduzido o discurso que nos daria a plena abertura

do Dasein em seu aiacute eacute incluindo portanto a disposiccedilatildeo de acircnimo eacute como modo

eminente de temporalizaccedilatildeo a que natildeo cabe o predomiacutenio de um ecircxtase

determinado o existentivo da linguagem o seu fundamento ontoloacutegicordquo

(NUNES 2012 p169)

Apresentamos no capiacutetulo anterior que no sect65 de Ser e Tempo o autor apresenta

o sentido ontoloacutegico da preocupaccedilatildeo (Sorge) na temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-

se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O

ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Futuro

(poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente (presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees

temporais como as que tomamos diariamente mas o caraacuteter essencial da

existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre adiantado (futuro) em

relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza as possibilidades na

facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva oferecida pela tradiccedilatildeo

histoacuterica ) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no presente esse

passado em seus comportamentos e projetos

No Quarto Capiacutetulo da Segunda Seccedilatildeo denominado Temporalidade e

cotidianidade Heidegger retoma a multiplicidade dos fenocircmenos da anaacutelise preparatoacuteria

da primeira seccedilatildeo para compreendecirc-los em sua unidade em funccedilatildeo da totalidade estrutural

fundante da Sorge E se a analiacutetica existenciaacuteria do ser-aiacute inicia sua investigaccedilatildeo a partir

da cotidianidade mediana tendo em vista que a impropriedade oferecida por suas

orientaccedilotildees eacute em suma a orientaccedilatildeo inicial do ser-aiacute para seus possiacuteveis modos de ser Eacute

necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos na cotidianidade a partir da

temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico

133

Nesse sentido no sect 68 item d de Ser e Tempo intitulado ldquoA temporalidade do

discursordquo Heidegger diz A plena abertura do aiacute constituiacuteda pelo entender o encontrar-

se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) recebe a articulaccedilatildeo pelo discurso

(Rede) Por isso o discurso natildeo se temporaliza primariamente numa ekstase determinada

(HEIDEGGER 2012 p949) e ainda o discurso eacute temporal em si mesmordquo

(HEIDEGGER2012 p949) Na continuidade do paraacutegrafo o autor prossegue dizendo

que natildeo obstante o discurso seja expresso na facticidade na linguagem e deste modo o

presente (Gegenwaumlrtige) desempenha uma funccedilatildeo constitutiva ainda assim

Mas porque o discurso cada vez discorre sobre o ente se bem que natildeo primaacuteria

e principalmente no sentido da enunciaccedilatildeo teoacuterica a anaacutelise da constituiccedilatildeo

temporal do discurso e a explicaccedilatildeo dos caracteres temporais das formaccedilotildees da

liacutengua soacute podem ser levados a cabo quando se tenha resolvido o problema da

conexatildeo de princiacutepio de ser e verdade a partir da problemaacutetica da

temporalidade Poder-se-ia delimitar entatildeo o sentido ontoloacutegico do lsquoeacutersquo que uma

superficial teoria da proposiccedilatildeo e do juiacutezo deformou em lsquocoacutepularsquo Soacute a partir da

temporalidade do discurso isto eacute a partir da temporalidade do Dasein em geral

pode-se elucidar a lsquoorigemrsquo e pode-se entender ontologicamente a possibilidade

de uma formaccedilatildeo-do-conceito (HEIDEGGER2012 p949 grifo nosso)

O problema reside no fato de que o Dasein em Ser e Tempo eacute apresentado como

o fundamento sem fundamento de outra forma a compreensatildeo enquanto acontecimento

de sentido primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode

custodiar o sentido de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento

Entatildeo na medida em que a temporalidade (Zeitlichkeit) eacute o sentido ontoloacutegico desse ente

privilegiado qualquer fenocircmeno exposto na analiacutetica preparatoacuteria precisaria encontrar

seu fundamento ontoloacutegico em alguma ekstase determinada futuro o ser-do-sido ou

presencizar Por exemplo o presente desempenha a funccedilatildeo constitutiva da linguagem

(Sprache) na medida em que o ser-aiacute lanccedilado em um mundo encontra-se em meio aos

entes e jaacute junto aos outros atualizando os significados sedimentados pela linguagem (pela

liacutengua) oferecidos no presente Isso poreacutem natildeo ocorre com o discurso (die Rede) que eacute

ldquotemporal em si mesmordquo Desse modo seu sentido ontoloacutegico ou aquilo que sustenta sua

origem compreendida como seu sentido de ser a partir do desvelamento natildeo eacute elucidado

em Ser e Tempo Pensamos que a partir dessa constataccedilatildeo pelo comprometimento

fenomenoloacutegico de Heidegger a estratificaccedilatildeo da linguagem presente em Ser e Tempo

natildeo pode mais manter-se apoacutes a viragem Pois o fenocircmeno da linguagem precisa ser

134

reconsiderado a partir de si mesmo para que seja possiacutevel encontrar seu fundamento

ontoloacutegico85

Esse breve momento da obra de 1927 acerca da temporalidade do discurso em

Ser e Tempo eacute de extrema importacircncia para pensarmos como o fenocircmeno da linguagem

possui jaacute um importante e amplo papel no interior do tratado Pois ele estaacute intimamente

ligado agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento (Aleacutetheia) revelando natildeo soacute um impasse

acerca da estratificaccedilatildeo da linguagem na obra bem como traz agrave tona que o encobrimento

como contraparte da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser ganha uma imagem peculiar

exatamente na manifestaccedilatildeo da linguagem E desse modo apesar da apresentaccedilatildeo do

discurso e de sua especificidade em Ser e Tempo encontramos apenas a descriccedilatildeo da

linguagem (Sprache) que chamamos de ldquonegativardquo como sedimentaccedilatildeo interpretativa

pelo falatoacuterio (Gerede) Eacute o que vamos expor a seguir

II- O Falatoacuterio (das Gerede)

Ainda no sect34 Heidegger alerta que a anaacutelise do discurso (Rede) perdeu de vista a

cotidianidade do ser-aiacute solo fenomecircnico que a analiacutetica se guia naquele momento Pois

as estruturas existenciaacuterias da abertura do ser-no-mundo entender (Verstehen) encontrar

(Befindlichkeit) discurso (Rede) e interpretar (Auslegen) na medida em que se manteacutem

pela abertura primaacuteria do ser-aiacute remetido ao mundo inicialmente no modo de ser de ldquoa-

genterdquo (das Man) devem ser compreendidas em seu modo especiacutefico na cotidianidade

mediana Como o ser-aiacute eacute de iniacutecio lanccedilado nas possibilidades faacuteticas de um mundo

sedimentado a anaacutelise propriamente fenomenoloacutegica deve se orientar pelos fenocircmenos

expressos nesse horizonte

ldquoDe imediato eacute preciso que fique visiacutevel a partir de alguns fenocircmenos

determinados a abertura de a-gente isto eacute pela elucidaccedilatildeo do modo-de-ser-

cotidiano de discurso visatildeo e interpretaccedilatildeo No relativo a esses fenocircmenos natildeo

eacute supeacuterfluo observar que a interpretaccedilatildeo tem um propoacutesito puramente ontoloacutegico

estando muito longe de uma criacutetica moralizante do Dasein cotidiano e estaacute muito

longe de qualquer aspiraccedilatildeo de lsquofilosofia da culturarsquordquo (HEIDEGGER 2012

p471)

85 Nesse sentido Cf LAFONT 1997 pp46-52

135

A anaacutelise do que Heidegger denomina ldquoA-genterdquo (das Man) eacute apresentada no

quarto capiacutetulo da primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo e tem em vista elucidar o ldquoser-no-mundo

como ser-comrdquo e ldquocomo ser-si-mesmordquo Essa descriccedilatildeo estaacute diretamente relacionada ao

conceito de queda ou decair (Verfallen) pois eacute esse solo imediato que o ser-aiacute se

movimenta e terceiriza seu ser agraves orientaccedilotildees cotidianas cada vez em fuga de seu ser-

proacuteprio mas condiccedilatildeo inexoraacutevel para que possa conquistaacute-lo E ainda como expresso

no trecho acima esses conceitos nada tem a ver com uma criacutetica moral como que uma

criacutetica agrave sociedade de massa A anaacutelise eacute uma elucidaccedilatildeo fenomenoloacutegica e por isso

ontoloacutegica O que estaacute em jogo nessa descriccedilatildeo eacute o acesso aos fenocircmenos como eles se

mostram para entatildeo chegar ao fundamento ontoloacutegico que sustenta seu sentido de ser

Desse modo a facticidade ou o mundo cotidiano eacute o maneira pela qual os fenocircmenos e

as possibilidades do ser-aiacute vecircm ao encontro O que anaacutelise sobre ldquoA-genterdquo (das Man)

realizada no sect25 ao sect27 potildee em tela eacute 1) o esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein 2) o

Dasein-com dos outros e o cotidiano ser-com 3) o cotidiano ser-si-mesmo e a-gente

Se no sect9 Heidegger expotildee o sentido formal do ser-aiacute como esse ente que a cada

vez noacutes mesmos somos e ainda como a essecircncia desse ente reside em sua existecircncia o

esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein deve agora voltar-se ao campo situacional histoacuterico

que extraiu esse conceito

ldquoNo presente contexto de uma analiacutetica existenciaacuteria do Dasein factual surge a

pergunta sobre se o referido modo de o eu se dar abre o Dasein em sua

cotidianidade supondo-se que em geral o abra () Pode-se sempre muito bem

dizer sobre esse ente em termos onticamente justificaacuteveis que lsquoeursquo o sou

Contudo a analiacutetica ontoloacutegica ao empregar essas proposiccedilotildees deve fazecirc-lo com

reservas de princiacutepio O lsquoeursquo somente deve ser entendido no sentido de um como

indicador formal e indiferente de algo que em sua concreta conexatildeo-de-ser

fenomecircnica talvez se desvende como o lsquoopostorsquo do que parecia lsquoNatildeo eursquo de

modo algum significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo [privado de

lsquoegoidadersquo] mas significa um determinado modo-de-ser do lsquoeursquo ele mesmo por

exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p337)

A interpretaccedilatildeo moderna da essecircncia do ser humano baseada na egoidade em um

ldquoeurdquo que se reconhece como tal e em uacuteltima medida fundamenta toda e qualquer

descriccedilatildeo dos entes obscurece o solo em que esse conceito aparece Referir-se ao ldquoeurdquo eacute

possiacutevel no trato diaacuterio e comum da existecircncia cotidiana (onticamente) na medida em que

136

o ldquoaiacuterdquo existe cooriginariamente Natildeo haacute sujeito sem mundo por esse motivo a

ldquolsquosubstacircnciarsquo do homem natildeo eacute o espiacuterito como a siacutentese de alma e corpo mas a

existecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p341) E desse modo se a existecircncia acontece em um

mundo ela natildeo se reconhece primariamente para depois reconhecer ldquomundordquo e os

ldquooutrosrdquo mas existindo o ser humano eacute as possibilidades disponiacuteveis em seu ldquoaiacuterdquo

compartilhando com os outros pois ldquonatildeo haacute afinal de pronto um eu isolado que se decirc sem

os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p337)

A abertura primaacuteria de sentido ou a abertura compreensiva-interpretativa sempre

disposta do ser-aiacute o remete ao mundo junto aos entes e aos outros que partilham a mesma

abertura compreensiva-interpretativa e assim noacutes temos mundo De outro modo

ningueacutem tem lsquoseu mundorsquo particular emergente da consciecircncia que se auto reconhece a

partir da qual lsquoenxergarsquo o mundo puacuteblico Tudo que algueacutem possa vir a pensar sentir

compor dizer etc eacute primariamente aquilo que o mundo puacuteblico compartilhado sustenta

como algo que tem sentido Natildeo sou porque penso antes penso porque sou Quando

tentamos pensar em qualquer significado que natildeo seja sustentado pelo sentido do mundo

puacuteblico natildeo encontramos o que possa ser dito ou pensado

Mas o que o autor quer dizer quando indica que o ldquonatildeo eursquo de modo algum

significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo mas significa um determinado modo-de-

ser do lsquoeursquo ele mesmo por exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012

p337) Imersos nas ocupaccedilotildees diaacuterias empreendidas com os outros o ser-aiacute ldquocomo

cotidiano ser-um-com-o-outro estaacute na sujeiccedilatildeo aos outros Ele natildeo eacute si-mesmo os outros

lhe retiram o ser () Nisso os outros natildeo satildeo determinadosrdquo (HEIDEGGER 2012

p363) Na liacutengua portuguesa essa indeterminaccedilatildeo eacute ilustrada pela partiacutecula ldquoserdquo como

iacutendice de indeterminaccedilatildeo do sujeito Por exemplo Necessita-se de empregados Nesse

lugar se eacute tratado muito bem etc O ldquosujeitordquo o ldquoeurdquo do ser-aiacute na cotidianidade natildeo eacute seu

ser-proacuteprio mas a perda de si pois compreende seu ser inicialmente pela imposiccedilatildeo

impessoal indeterminada de suas possibilidades e as realiza sob o domiacutenio dessa

orientaccedilatildeo estuda-se casa-se tem-se filhos etc Nas palavras do autor

ldquoO Dasein cotidiano tira a interpretaccedilatildeo preacute-ontoloacutegica de seu ser do imediato

modo-de-ser de a-gente A interpretaccedilatildeo ontoloacutegica segue de imediato essa

tendecircncia interpretativa e entende o Dasein a partir do mundo e o encontra como

ente do-interior-do-mundo E natildeo somente isso mas a ontologia lsquoimediatarsquo do

137

Dasein faz que se lhe decirc a partir do lsquomundorsquo o sentido de ser em relaccedilatildeo ao qual

esses entes lsquosujeitosrsquo satildeo entendidos Mas porque nessa absorccedilatildeo no mundo

passa-se por cima do fenocircmeno do mundo ele mesmo em seu lugar se introduz o

subsistente do-interior-do-mundo as coisas O ser do ente que eacute -lsquoaiacutersquo-com eacute

concebido como subsistecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p 373)

Como vimos esse modo de ser do ser-aiacute eacute consequecircncia do fato de natildeo termos

qualquer natureza Natildeo haacute como se retirar dessa condiccedilatildeo ontoloacutegica mesmo que

onticamente somos impelidos a cada vez determinarmos nosso ser de alguma forma

indicando noacutes mesmos e os outros como meros subsistentes por exemplo em expressotildees

como ldquoEu sou professorardquo ldquoEle eacute pairdquo ldquoNoacutes somos brasileirosrdquo etc E por isso ldquoo ser-

si-mesmo proacuteprio natildeo repousa sobre um estado-de-exceccedilatildeo de um sujeito desprendido de

a-gente mas eacute uma modificaccedilatildeo existencial de a-gente como um existenciaacuterio essencialrdquo

(HEIDEGGER 2012 p373) ou seja ser-si-mesmo-proacuteprio natildeo eacute se retirar dessa

indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica mas ter transparecircncia dessa condiccedilatildeo irremediaacutevel

A partir dessa explicaccedilatildeo retomemos a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein a partir do

sentido formal da preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-

em (-o-mundo) como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo

(HEIDEGGER 2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser

(existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que

foi lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio

aos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda) O que sustenta o

sentido de ser desse ente eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) pois a temporalidade descobre-

se como o sentido da preocupaccedilatildeo (Sorge) proacutepria ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-

se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute

possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Contudo a preocupaccedilatildeo

proacutepria natildeo eacute a noacutes de pronto transparente e natildeo eacute o modo que inicialmente e na maioria

das vezes estamos e nos orientamos no mundo Ser-no-mundo eacute a abertura compreensiva

disposta jaacute em meio ao mundo articulado e sedimentado portanto eacute constituiacuteda pelo

entender o encontrar-se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) (Cf

HEIDEGGER 2012 p949) Eacute necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos

nessa abertura primaacuteria ao mundo a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal

compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico O autor entatildeo nos apresenta que ldquoo

138

entender funda-se no futuro (adiantar-se ou aguardar) O encontrar-se temporaliza-se

primariamente no ser-do-sido (repeticcedilatildeo ou esquecimento) O decair tem raiz temporal

primariamente no presente (presencizar ou instante)rdquo (HEIDEGGER 2012 p951)

Aguardar (Gewaumlrtigen) esquecimento (Vergessenheit) e instante (Augenblck) satildeo

os modos impessoais de realizaccedilatildeo do ser do ser-aiacute na cotidianidade a partir de seu sentido

ontoloacutegico (Sorge) fundado na temporalidade (Zeitlichkeit) O futuro aparece como

espera na cotidianidade na medida em que estaacute submerso na familiaridade de um mundo

descerrado em que o ser-aiacute pode ocupar-se com os entes e travar relaccedilotildees com os outros

na normalidade da vida cotidiana Na familiaridade o ser-aiacute sabe o que esperar O passado

ou o ser-do-sido nada tem a ver com ldquofalta de lembranccedilardquo mas refere-se a imersatildeo na

dejecccedilatildeo ou no modo de ser-jogado do ser-aiacute Nesse sentido o ser-aiacute sempre ocupado abre-

se ao mundo mas fecha-se ao seu ser-proacuteprio esquecendo de si e de sua indeterminaccedilatildeo

em funccedilatildeo do que jaacute estaacute a cada de vez posto como possiacutevel no mundo O decair no modo

proacuteprio refere-se ao presente ou presencizar ou seja a transparecircncia ao ser-aiacute de sua

condiccedilatildeo de jogado em um presente aberto que a vida e a compreensatildeo de ser decorrem

Na cotidianidade poreacutem o decair como instante refere-se a incessante fala apariccedilatildeo e

apropriaccedilatildeo (natildeo como de si mesmo como ser-proacuteprio mas das possibilidades disponiacuteveis

publicamente) das coisas e de um estado de coisas Incessante porque atualiza as

possibilidades postas descerradas e sedimentadas no mundo movimentando a existecircncia

pela retroalimentaccedilatildeo daquilo que jaacute foi e eacute a cada vez compreendido sem pocircr em questatildeo

afinal aquilo que se compreende e o ente que pode compreender ou seja ente que noacutes

somos

Na anaacutelise preparatoacuteria ou na primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo o decair foi descrito

na ldquointerpretaccedilatildeo do falatoacuterio da curiosidade e da ambiguidaderdquo (HEIDDEGGER 2012

p941) Desse modo esclarecido como a queda ou o decair funda-se na temporalidade do

ser-aiacute portanto esclarecido seu fundamento ontoloacutegico a partir do ente que abre a

compreensatildeo de ser Podemos a partir de agora entender o fenocircmeno da linguagem na

cotidianidade do ser-aiacute e em seu modo de ser improacuteprio De outro modo compreender o

falatoacuterio como queda

A anaacutelise do falatoacuterio (das Gerede) eacute realizada no sect35 precedida exatamente pela

exposiccedilatildeo do discurso como fundamento ontoloacutegico da linguagem Essa linha de

139

apresentaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria antes revela que tambeacutem o fenocircmeno da linguagem parte

de seu encobrimento E revela que seu fundamento eacute a cada vez obliterado no uso comum

das liacutenguas e das palavras no cotidiano poreacutem

ldquoA expressatildeo lsquofalatoacuteriorsquo natildeo deve ser aqui empregada numa acepccedilatildeo pejorativa

Ela significa terminologicamente um fenocircmeno positivo que constitui o modo-

de-ser do entender e interpretar do Dasein cotidiano No mais das vezes o

discurso se expressa e jaacute se expressou em palavras O discurso eacute linguagemrdquo

(HEIDEGGER 2012 p471)

A anaacutelise da cotidianidade eacute um caraacuteter fenomecircnico positivo para a analiacutetica

existenciaacuteria pois eacute a partir dele a partir de um modo de ser improacuteprio que o ser-aiacute eacute

lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria das vezes Natildeo eacute apenas

lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade mas seu modo de ser

ontologicamente irremediaacutevel Nesse sentido apresentar a linguagem como manifestaccedilatildeo

uacuteltima da abertura histoacuterica remetida ao mundo que jaacute compreendeu jaacute articulou e jaacute

interpretou eacute apresentar um caminho agrave pergunta Como a linguagem que eacute essencialmente

generalizante pode afinal ser histoacuterica Questatildeo jaacute exposta nos primeiros escritos de

Heidegger que acaba por expor a origem dessa problemaacutetica em Ser e Tempo como por

exemplo essa passagem do texto de 1919

ldquoA objeccedilatildeo mais elementar mas carregada de suficiente perigosidade tinha a ver

com a linguagem Toda descriccedilatildeo eacute um lsquoconceber-em-palavrasrsquo - a lsquoexpressatildeo

verbalrsquo eacute generalizante Essa objeccedilatildeo eacute baseada na crenccedila de que toda linguagem

eacute jaacute em si mesma objetiva isto eacute viver em um significado implica eo ipso uma

concepccedilatildeo teoacuterica do que se entende que a realizaccedilatildeo do significado natildeo eacute mais

do que a exibiccedilatildeo do objeto () A universalidade do significado das palavras

assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia vividardquo86

(HEIDEGGER (GA5657) 2005 pp134-142)

Esse eacute tambeacutem o risco do uso das palavras e da linguagem na cotidianidade ou

do falatoacuterio A manifestaccedilatildeo da linguagem na expressatildeo eacute comunicaccedilatildeo e o enunciado

86 ldquoLa objecioacuten maacutes elemental pero cargada de suficiente peligrosidad teniacutea que ver con el lenguaje Toda

descripcioacuten es un laquoconcebir-en-palabrasraquo -la laquoexpresioacuten verbalraquo es generalizante Esta objecioacuten descansa

en la creencia de que todo lenguaje es ya en siacute mismo objetivante es decir que vivir en un significado

implica eo ipso una concepcioacuten teoreacutetica de lo que es significado que la plenificacioacuten del significado es

sin maacutes soacutelo una exhibicioacuten del objeto() La universalidad del significado de las palabras sentildeala

primariamente algo originario el caraacutecter mundano de la vivencia vivida rdquo Opcit pp134-142

140

como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se pode partilhar com outrem lsquover juntorsquo o mostrado no

modo do determinar Nesse sentido ldquoo discurso (Rede) que-se-expressa eacute comunicaccedilatildeordquo

(HEIDEGGER 2012 p473) E os conceitos-preacutevios oferecidos na comunicaccedilatildeo acabam

por determinar objetivamente as coisas e o estado de coisas ldquosem que tenham perto de si

tangiacutevel e visiacutevel o ente mostrado e determinadordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Dessa

forma ldquoo acircmbito dessa visatildeo compartilhada amplia-se Mas ao mesmo tempo na

repeticcedilatildeo o mostrado pode precisamente vir a se encobrir de novo () O ouvir-dizer eacute

tambeacutem um ser-no-mundo e ser em relaccedilatildeo ao que eacute ouvidordquo (HEIDEGGER 2012

p439)

A essecircncia do falatoacuterio eacute esse ouvir-dizer comunicado que pode ser repetido E

conforme a compreensatildeo mediana orienta-se pela expressatildeo da linguagem expressa ldquoo

discurso comunicado pode ser entendido amplamente sem que o ouvinte tenha de se pocircr

originariamente entendedor daquilo sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012

p473) A relaccedilatildeo com a linguagem torna-se nesse sentido meramente instrumental Um

exemplo paradigmaacutetico eacute a linguagem jornaliacutestica pois em seu traccedilo essencialmente

comunicativo e divulgador pode a cada vez informar sobre as coisas e um estado de

coisas sem que o leitor ou o ouvinte tenha de fato clareza acerca da compreensatildeo de tais

coisas mas pode repetir o que leu e o que ouviu com os outros e ser entendido A ldquofalta

de clarezardquo nesse exemplo natildeo diz respeito a algo como falta de ldquoacesso agraves fontesrdquo mas

deve ser compreendido em seu caraacuteter ontoloacutegico ou seja o que estaacute em jogo eacute o fato

que a linguagem repetida natildeo coloca em questatildeo seu proacuteprio fundamento A relaccedilatildeo entre

a cotidianidade impessoal e o uso da linguagem eacute algo tatildeo intriacutenseco que Heidegger em

1946 no texto Carta sobre o Humanismo diz

ldquoO que foi dito sobre o lsquoimpessoalrsquo em Ser e Tempo (1927) nos paraacutegrafos 27 e

35 de modo algum deve ser reduzido a um contributo secundaacuterio agrave sociologia

Mas o lsquoimpessoalrsquo tampouco se refere apenas agrave imagem oposto compreendida

de maneira eacutetico-existenciaacuteria do ser proacuteprio da pessoa Ao contraacuterio o que disse

ali conteacutem a indicaccedilatildeo agrave pertinecircncia inicial da palavra com o ser e essa

indicaccedilatildeo eacute pensada segundo a verdade do ser Essa relaccedilatildeo permanece oculta

sob o predomiacutenio da subjetividade que se apresenta como opiniatildeo puacuteblicardquo

(HEIDEGGER 2008 p330 grifo nosso)

141

A linguagem eacute portanto submetida ao que eacute compreensiacutevel na opiniatildeo puacuteblica e

aquilo que a cotidianidade mediana natildeo compreende eacute simplesmente descartado como

incompreensiacutevel Ou seja a proacutepria compreensatildeo (Verstehen) estaacute irremediavelmente

orientada agrave queda e essa mantecircm-se como tal no falatoacuterio Na tentativa de objetivar o

que as coisas satildeo e como elas satildeo tudo que eacute compreendido obscurece seu ldquocomordquo ou

seu mostrar que vem ao encontro no mundo histoacuterico pois ldquosoacute se procura ouvir o

discorrido como talrdquo (HEIDEGGER p473)

ldquoEm meio a essa dinacircmica retoma-se incessantemente uma atitude ontoloacutegica em

relaccedilatildeo aos entes intramundanos em geral e ao ser-aiacute em especiacutefico uma atitude

marcada fundamentalmente por uma opacidade primordial Todos satildeo a

princiacutepio homogeneizados a partir da noccedilatildeo de uma subsistecircncia por si todos

passam a ser desde o princiacutepio considerados como entes simplesmente dados e

detentores ao mesmo tempo de propriedades igualmente dadas() O falatoacuterio

tende entatildeo a coibir o aparecimento de uma outra forma discursiva que se

perfaccedila por meio de um real questionamento do ser do ente e de uma apropriaccedilatildeo

originaacuteria do ente consideradordquo (CASANOVA2006 p70)

O falatoacuterio como linguagem sedimentada e repetida eacute o que inicialmente orienta

o ser-aiacute em seu ldquoairdquo A cotidianidade mediana na qual estamos sempre imersos abre

inicialmente a compreensatildeo do mundo ao ser-aiacute mas ao abri-la acaba por fechaacute-la pois

desenraiza o ser-aiacute do solo originaacuterio dessa compreensatildeo de ser dos entes De outro modo

o loacutegos como discurso articula mundo e o abre agrave compreensatildeo o falatoacuterio como

linguagem sedimentada encobre esse mostrar originaacuterio O falatoacuterio diz e indica as coisas

e o estado de coisas mas natildeo os coloca em sua mostraccedilatildeo a partir de seu ser ou como

nos diz Carlos Drummond ldquoO sol consola os doentes e natildeo os renovardquo Nesse sentido

que a repeticcedilatildeo e a difusatildeo satildeo traccedilos essenciais do falatoacuterio pois movimentam a

existecircncia baseada na estabilidade do compreendido previamente articulado e

compartilhado na vida comum manifesto em uacuteltima medida pela linguagem e pelos

conceitos herdados

ldquoA falta-de-solo natildeo o impede de ingressar no que eacute puacuteblico mas favorece seu

ingresso O falatoacuterio eacute a possibilidade de tudo entender sem uma preacutevia

apropriaccedilatildeo da coisa O falatoacuterio jaacute protege por antecipaccedilatildeo contra o perigo de

malograr em tal apropriaccedilatildeo O falatoacuterio que qualquer um pode obter natildeo soacute

dispensa da tarefa de um entendimento autecircntico mas desenvolve uma

entendibilidade indiferente para a qual nada estaacute fechadordquo (HEDEGGER 2012

p475)

142

A objetividade promovida pelo falatoacuterio ou esse jaacute ser-interpretado natildeo eacute algo

que podemos negar e suspender A queda ou decair (Verfallen) constitui ldquoa plena abertura

do aiacuterdquo e o ldquoDasein nunca eacute capaz de rejeitar esse cotidiano ser-do-interpretado no qual

de imediato cresceurdquo (HEIDEGGER 2012 p477) Ele nos constitui porque eacute

inicialmente nosso ldquoaiacuterdquo e ldquotodo entendimento interpretaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo genuiacutenos

toda redescoberta se efetuam nele a partir dele e contrariamente a elerdquo (HEIDEGGER

2012 p477) ldquoTer mundordquo (abertura compreensiva) para o ser-aiacute que o constitui como

ente privilegiado eacute tambeacutem ser absorvido pelo mundo (queda) A verdade (Aleacutetheia)

como desvelamento eacute tambeacutem encobrimento Ser na verdade eacute tambeacutem estaacute na natildeo-

verdade Ouvir o loacutegos eacute tambeacutem se perder na linguagem

ldquoEacute soacute por isso que (sect34) Ser e Tempo conteacutem uma indicaccedilatildeo essencial da

linguagem tocando na questatildeo simples que pergunta em que modo do ser a

linguagem eacute sempre linguagem como tal O esvaziamento da linguagem que

avanccedila violentamente e se estende com rapidez por toda parte natildeo corroacutei apenas

a responsabilidade esteacutetica e moral em todos os usos da linguagem Proveacutem de

uma ameaccedila da essecircncia do ser humanordquo (HEIDEGGER 2008 p331)

Mas entatildeo qual o caminho Como ir agrave linguagem como tal Heidegger nos

adverte ldquoUm mero uso cuidado da linguagem ainda natildeo demonstra que escapamos desse

perigo essencialrdquo (HEIDEGGER 2008 p331) Na realidade reduzir o problema agrave essa

soluccedilatildeo poderia indicar que nem sequer vemos o perigo pois o esconderia sob agraves vestes

de usos como lsquosabedoriarsquo lsquoculturarsquo lsquoconhecimentorsquo etc ou seja a ldquosoluccedilatildeordquo ainda

estaria submetida ao domiacutenio puacuteblico do que eacute compreensiacutevel

Portanto se ldquoa linguagem ainda nos nega sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2008

p331) entatildeo ainda eacute necessaacuterio seguir a orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica

Diante da pergunta de Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na

cidade Soacutecrates responde ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso

irrdquo87 Para que afinal busquemos a relaccedilatildeo entre loacutegos e ser

87 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9

143

Conclusatildeo

O que vem agrave palavra Essa foi a questatildeo que nos guiou nesse trabalho Ela

atravessa outras perguntas por que falamos de uma determinada forma por exemplo

com sujeito e predicado Como eacute possiacutevel nossa comunicaccedilatildeo Como eacute possiacutevel falar que

algo eacute de tal e qual maneira

Fomos ao livro Ser e Tempo natildeo para dizer sobre o que um autor pensou fomos

ao Ser e Tempo para encontrar elementos que poderiam nos guiar nessas questotildees Entatildeo

a tarefa desse tratado revelou-se tambeacutem como um problema de linguagem Pois eacute a

tentativa de reformulaccedilatildeo da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido

depende justamente daquela reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido do

ser Vimos aiacute uma imbricada problemaacutetica a pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo (Sinn von

Sein) eacute tambeacutem a pergunta sobre o que pode sustentar sentido e significados e por isso

o que pode sustentar a linguagem Se natildeo nos incomodasse a tautologia poderiacuteamos

perguntar qual o sentido do sentido

A necessidade de recolocaccedilatildeo da pergunta estaacute diretamente relacionada agrave criacutetica

imanente de Heidegger agrave fenomenologia de Husserl Abordado sempre e a cada vez como

um ente o ser natildeo eacute no entanto um predicado real Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar

o ser como um ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel

e atributivo Ser natildeo eacute um ente o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo

com vistas agrave forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera

para ldquoQual o sentido de serrdquo Atraveacutes da apropriaccedilatildeo da hermenecircutica Heidegger potildee

em tela o caraacuteter histoacuterico do sentido de ser dos entes E dessa maneira indica como as

palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da

experiecircncia hermenecircutica Contudo diferentemente de como a concebeu Dilthey a

experiecircncia revelou-se natildeo como um meacutetodo de acesso ao caraacuteter histoacuterico do sentido e

144

dos significados mas compreensatildeo fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo circunspecta de

nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser

Poreacutem um problema central deveria ser abordado ldquocomo eacute possiacutevel a forma

loacutegicardquo ou ldquoPor que seguimos a foacutermula lsquosujeito e predicadorsquordquo Essa questatildeo nos levou

ateacute a maneira pela qual essa problemaacutetica foi abordada pelos neokantianos mais

especificamente agravequeles representantes da escola de Baden Esses reduziam a

possibilidade de verdade agrave forma do juiacutezo agrave identificaccedilatildeo entre ldquoWahrheit = wahrer Satz

= Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade) A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo

de verdade da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca

que era a dos neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa

concepccedilatildeo tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da

verdade em direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave

proposiccedilatildeo Com isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa

medida condicionando a ontologia agrave loacutegica

Foi esse mapa complexo dos problemas que foi desenhado nos dois primeiros

capiacutetulos os quais consideramos imprescindiacuteveis para uma exposiccedilatildeo completa da

estrutura ontoloacutegica da linguagem em Ser e Tempo Expondo o contexto das filosofias de

Dilthey Husserl e dos neokantianos de Baden bem como o posicionamento de Heidegger

frente a essas teorias a abordagem fenomenoloacutegico-hermenecircutica revelou-se como o

meacutetodo de acesso ao sentido de ser de todo ente Esse meacutetodo acaba ainda por demonstrar

que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um

campo de signos referenciais fechados que doam significado agraves coisas mas uma

manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez se faz presente na facticidade da

existecircncia concreta Last but not least revelou-se a diferenccedila entre uma concepccedilatildeo de

loacutegos proveniente da loacutegica e outra advinda do conceito de aleacutetheia

Foi a partir daiacute que ficaram claros os contornos dos dois uacuteltimos capiacutetulos desta

Dissertaccedilatildeo Tentamos mostrar como em Ser e Tempo a linguagem estaacute assentada em

duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado revelando a diferenccedila

entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm articulados pela imbricaccedilatildeo

radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno Poreacutem natildeo poderiacuteamos nos sentir satisfeitos

nessa descriccedilatildeo Heidegger nos adverte que estamos em fuga do solo em que o loacutegos se

145

mostra Pois o desvelamento enquanto Aleacutetheia eacute tambeacutem encobrimento por isso o

fenocircmeno sempre se nos mostra de maneira dissimulada Tambeacutem a partir de Ser e Tempo

tentamos evidenciar como a linguagem depende da constituiccedilatildeo proacutepria da verdade Ou

seja como o discurso (Rede) eacute apresentado como fundamento ontoloacutegico da linguagem

mas como o fenocircmeno mesmo da linguagem jaacute sempre se apresenta como falatoacuterio

(Gerede) O fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana enquanto comunicaccedilatildeo

ou seja discurso (die Rede) que jaacute se expressou e a cada vez se expressa eacute repetido e

difundido no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada

pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte

compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente Mas

como entes sem qualquer essecircncia preacutevia sem qualquer natureza definida somos a

proacutepria compreensatildeo (Verstehen) irremediavelmente orientada agrave queda sendo o falatoacuterio

a manifestaccedilatildeo uacuteltima dessa condiccedilatildeo

Esse foi o caminho do nosso trabalho que eacute apenas um iniacutecio Ele natildeo pretende

encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender o papel

da poesia na obra de Heidegger apoacutes os anos 1930 como uma tentativa de desvencilhar-

se do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Ou ainda se a estratificaccedilatildeo

da linguagem segundo a formulaccedilatildeo de Ser e Tempo precisou ser revista apoacutes a viragem

tendo em vista que em 1927 natildeo foi possiacutevel encontrar seu fundamento ontoloacutegico a partir

do Dasein

Por enquanto preferimos a tensatildeo e a suspensatildeo do estado de pergunta Preferimos

o pensar como caminho agraves respostas como soluccedilotildees afinal

ldquoCom seu dizer o pensar abre sulcos imperceptiacuteveis na linguagem Esses satildeo

ainda mais imperceptiacuteveis que os sulcos que a passos lentos o camponecircs abre pelo

campo aforardquo (HEIDEGGER 2008 p376)

146

Bibliografia

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CASANOVA M A Compreender Heidegger Petroacutepolis Vozes 2009

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Loparic e Andreacutea Loparic Satildeo Paulo Ed Nova Cultural 2000 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

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fenomenoloacutegica Introduccedilatildeo geral agrave fenomenologia pura Traduccedilatildeo de Marcio Suzuki

Satildeo Paulo Ed Ideacuteias e Letras 2006

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pp 174 ndash 186

ZAHAVI D A fenomenologia de Husserl Trad Marco Casanova Rio de Janeiro RJ

ViaVerita 2015

  • INTRODUCcedilAtildeO
  • Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na filosofia
  • Introduccedilatildeo
  • I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico
  • II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias
  • II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica
  • III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos
  • Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica
  • Introduccedilatildeo
  • I - Os limites da filosofia dos valores
  • II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio
  • II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger
  • III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
  • III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger
  • Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e Tempo
  • Introduccedilatildeo
  • I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico
  • II A dupla abertura de sentido (Sinn)
  • III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)
  • II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung)
  • Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)
  • Introduccedilatildeo
  • I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem
  • II- O Falatoacuterio (das Gerede)
  • Conclusatildeo
  • Bibliografia

3

100

F363e

2016

Fernandes Christiane Costa de Matos

A estrutura ontoloacutegica da linguagem e a queda no falatoacuterio em Ser e

tempo Christiane Costa de Matos Fernandes - 2016

150 f

Orientadora Virginia Arauacutejo Figueiredo

Coorientador Marco Antonio Casanova

Dissertaccedilatildeo (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas

Inclui bibliografia

1Filosofia ndash Teses 2 Heidegeer Martin 1889-1976 Ser e Tempo I

Figueiredo Virginia ArauacutejoII Casa Nova Marco Antonio dos Santos

IIUniversidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e

Ciecircncias Humanas IIITiacutetulo

4

Banca Avaliadora

_________________________

Profa Dra Virginia de Arauacutejo Figueiredo-UFMG Orientadora

___________________________

Prof Dr Marco Antocircnio Casanova- UERJ Coorientador

___________________________

1ordm Examinador Prof Doutor Eduardo Soares Neves Silva - UFMG

___________________________

2ordmExaminador Prof Doutor Maacutercio Antocircnio de Paiva- PUCMG

5

Agradecimentos

O trabalho que aqui apresento iniciou-se em Fevereiro de 2014 mas originou-se

haacute 12 anos atraacutes em meu primeiro semestre do curso de graduaccedilatildeo em filosofia na

Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas da UFMG Jaacute nas primeiras aulas questionei

a possibilidade de continuar nesse caminho pois ele havia se tornando cada vez mais

exigente e difiacutecil No segundo semestre poreacutem cursei a mateacuteria ministrada pelo professor

Fernando Rey Puente onde ele tentava explicar aos alunos ainda iniciantes como eu As

Categorias de Aristoacuteteles Aquelas aulas foram decisivas para que eu compreendesse trecircs

coisas dedicaccedilatildeo e rigor satildeo o que minimamente podemos oferecer agrave filosofia (ainda

permaneccedilo na busca de realizar tais condiccedilotildees) o pensamento filosoacutefico uma vez

apresentado a noacutes natildeo oferece saiacuteda mas compromisso e ainda aprendi que se a partir

daquele momento eu ficasse imune ao ler um livro de filosofia era melhor deixaacute-la Por

isso meu primeiro agradecimento eacute a esse professor Tambeacutem natildeo poderia deixar de

agradecer ao professor Ernesto Perini Nas mateacuterias ministradas por ele que cursei durante

a graduaccedilatildeo natildeo soacute se revelava para mim a importacircncia da linguagem no interior dos

problemas filosoacuteficos como aprendi que o respeito com os alunos era uma maneira de

ensinaacute-los

Agradeccedilo tambeacutem a todos os funcionaacuterios da FAFICH de forma especial agrave Vilma

bibliotecaacuteria-chefe e ao Andreacute secretaacuterio da poacutes-graduaccedilatildeo Ambos pela solicitude com

que sempre me atenderam em todos os momentos que precisei

Agradeccedilo tambeacutem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e

Tecnoloacutegico (CNPq) pela concessatildeo da bolsa de estudos que permitiu nos uacuteltimos dois

anos minha dedicaccedilatildeo integral agrave pesquisa do mestrado

Agradeccedilo agravequeles que construiacute como amigos o viacutenculo com o mundo Dentre eles

alguns nomes natildeo posso deixar de citar Agradeccedilo agrave Thamara Chain pelos 22 anos de

amizade e compreensatildeo Agradeccedilo agrave Taiacutes Tourinho por ser vigilante acerca de minha

solidatildeo por vezes demasiada Agradeccedilo agrave Nathaacutelia de Aacutevila por me lembrar a natildeo ser tatildeo

seacuteria e que o caminho tambeacutem se faz com leveza Agradeccedilo agrave Carolina Faria pela partilha

do entusiasmo na descoberta promovida pelo estudo Tambeacutem agradeccedilo agrave Ana Godoi

Gustavo Machado e Gabriel Lago Essas pessoas me ensinaram o valor do debate (por

6

vezes infindaacuteveis) e ainda que pensamento e vida satildeo o mesmo A uacutenica maneira que

encontrei para agradececirc-los eacute tornar puacuteblico o fato de que nossas conversas estatildeo em cada

linha dessa dissertaccedilatildeo

Agradeccedilo agrave minha orientadora Virginia Figueiredo pela confianccedila depositada em

mim ao me aceitar como orientanda Tambeacutem por seus comentaacuterios e ensinamentos

imprescindiacuteveis bem como pela leitura e revisatildeo impecaacutevel de meu trabalho Nesse

sentido tambeacutem ao meu coorientador Marco Antocircnio Casanova a quem agradeccedilo tendo

em vista que sem sua presenccedila algumas partes dessa dissertaccedilatildeo natildeo seriam possiacuteveis

Agradeccedilo minhas irmatildes Jana e Nanda por serem minhas primeiras e eternas

melhores amigas E por fim agradeccedilo agravequeles por quem o meu sentimento entre o amor

a gratidatildeo e a admiraccedilatildeo natildeo alcanccedila a palavra aos meus pais Adauto e Delza Esse

trabalho eacute para vocecircs

7

VERBO SER

Carlos Drummond de Andrade

Que vai ser quando crescer

Vivem perguntando em redor Que eacute ser

Eacute ter um corpo um jeito um nome

Tenho os trecircs E sou

Tenho de mudar quando crescer Usar outro nome corpo e jeito

Ou a gente soacute principia a ser quando cresce

Eacute terriacutevel ser Doacutei Eacute bom Eacute triste

Ser pronunciado tatildeo depressa e cabe tantas coisas

Repito Ser Ser Ser Er R

Que vou ser quando crescer

Sou obrigado a Posso escolher

Natildeo daacute para entender Natildeo vou ser

Vou crescer assim mesmo

Sem ser Esquecer

ldquoAdmitamos que natildeo haja essa significaccedilatildeo indeterminada e que natildeo entendemos sempre o que lsquoserrsquo significa O que ocorreria nesse caso Apenas um nome e um verbo de menos em nossa linguagem De forma alguma Jaacute natildeo haveria simplesmente linguagem alguma Natildeo ocorreria que o ente se nos abrisse de modo a poder ser chamado e dito Pois dizer o ente como tal implica compreender de antematildeo o ente como ente isto eacute o seu ser Suposto que noacutes simplesmente natildeo compreendecircssemos o ser suposto que a palavra lsquoserrsquo natildeo tivesse nem mesmo aquela significaccedilatildeo flutuante entatildeo jaacute natildeo haveria absolutamente nenhuma palavra Noacutes mesmos nunca poderiacuteamos ser aqueles que falam Laacute natildeo poderiacuteamos ser o que somos Pois ser homem significa ser um dizenterdquo

Heidegger Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica

8

Resumo

O presente trabalho tenta evidenciar a partir da obra Ser e Tempo de Martin

Heidegger como a linguagem (die Sprache) eacute a manifestaccedilatildeo uacuteltima da historicidade de

todo e qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como esses significados satildeo

sustentados por um campo de sentido tambeacutem histoacuterico A partir dessa primeira descriccedilatildeo

o trabalho visa esclarecer como a linguagem no uso cotidiano ou o falatoacuterio (das Gerede)

obscurece o caraacuteter histoacuterico do fenocircmeno da linguagem e dos significados que a sustenta

Portanto esta Dissertaccedilatildeo caminha em duas vias que se tocam a primeira pretende

descrever o que chamamos de estrutura ontoloacutegica da linguagem a partir do

redimensionamento da pergunta heideggeriana pelo ser a fim de indicar como as palavras

em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da experiecircncia

hermenecircutica ou seja atraveacutes da compreensatildeo ontoloacutegica preacutevia a linguagem a segunda

pretende mostrar o fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana como comunicaccedilatildeo

ou discurso (die Rede) a qual jaacute se expressou e a cada vez se expressa sempre repetida

e difundida no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada

pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte

compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente

9

Abstract

The present thesis focuses on demonstrating in what manner language (die

Sprache) is the lattermost manifestation of the historicity of any meaning that can come

to words as well as through what agency those meanings are upheld by a conjointly

historical field of meaning insofar as stated by Martin Heidegger in his work ldquoBeing and

Timerdquo (Sein und Zeit) As of this writing our work aims at unraveling by what means

language in its trivial use or the talk (das Gerede) overshadows the historical aspect and

the meanings that withstand the phenomenon of language Hence the present work is

developed in two adjoining ways the first one endeavors to describe the ontological

structure of language deriving out of the resizing of Heideggers question of being that

has the aim of indicating how the words in context of enunciation inherit their meaning

from previous structures of the hermeneutic experience that is through the prior

ontological understanding of the language The second one aims at revealing the language

phenomenon in the median everydayness as communication or discourse (die Rede)

which has already been expressed and is still expressed always repeated and spread in

the talk that obliterates the comprehensive horizon by reducing all beings to an

undifferentiated homogenization and making them available to our linguistic resources

since it is the primary opening of the sense of being that any and all entities have

10

Sumaacuterio INTRODUCcedilAtildeO 11

Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na

filosofia 15

Introduccedilatildeo 15

I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do

conhecimento como essencialmente histoacuterico 17

II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em

relaccedilatildeo agraves ciecircncias 22

II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica 29

III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos 33

Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica 42

Introduccedilatildeo 42

I - Os limites da filosofia dos valores 44

II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio 53

II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger 58

III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal 68

III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger 72

Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e

Tempo 80

Introduccedilatildeo 80

I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou

o ldquocomordquo hermenecircutico 88

II A dupla abertura de sentido (Sinn) 88

III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit) 103

II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung) 110

Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede) 122

Introduccedilatildeo 122

I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem 123

II- O Falatoacuterio (das Gerede) 134

Conclusatildeo 143

Bibliografia 146

11

INTRODUCcedilAtildeO

Estamos diante de um livro Ser e Tempo Abrimo-lo Com o que nos confronta

em sua primeira paacutegina Que natildeo temos desde Platatildeo ateacute hoje resposta agrave pergunta sobre

o que queremos dizer com a palavra lsquoentersquo Natildeo haacute como ficar imune diante da

constataccedilatildeo E se ateacute hoje essa palavra natildeo nos eacute transparente eacute porque aqueles que se

propuseram a andar no caminho do pensamento natildeo souberam perguntar sobre o ente e

isso porque natildeo souberam afinal perguntar sobre o ser Heidegger natildeo nos propotildee sair do

caminho mas uma nova maneira de caminhar Ele nos promete uma resposta Natildeo Ele

propotildee uma vez mais a pergunta pelo ser O objetivo do tratado eacute elaborar essa questatildeo

De que modo Ele agora pergunta Qual o sentido de ser

Nossa pesquisa poderia partir daiacute Iniciariacuteamos a exposiccedilatildeo de nosso trabalho

nessa pergunta e prosseguiriacuteamos em Ser e Tempo De modo algum Seria um

contrassenso para algueacutem que queira estudar a linguagem em Heidegger partir de uma

sentenccedila como se ela fosse oacutebvia Afinal por qual motivo Heidegger natildeo pergunta ldquoO

que eacute o serrdquo ou ldquoHaacute o serrdquo Fechamos Ser e Tempo Eacute preciso compreender como essa

pergunta ganhou uma determinada forma Mas para onde ir

Ser e Tempo eacute uma obra do seacuteculo XX uma obra de filosofia portanto jaacute eacute parte

de nossa tradiccedilatildeo jaacute temos uma preacute-compreensatildeo dela Sabemos previamente que ela

transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica e que o nosso autor expotildee seu caminho

em um texto de 1963 chamado ldquoMeu caminho na fenomenologiardquo Parece-nos um bom

iniacutecio e vamos ao texto Heidegger descreve o iniacutecio de seus estudos o contato com a

obra inaugural da fenomenologia de Husserl e com a tese de Brentano sobre Aristoacuteteles

aiacute se vecirc germinar ainda que de maneira imprecisa sua questatildeo central Mas isso se

mostrou insuficiente para compreender a pergunta posta em Ser e Tempo Recorremos

entatildeo aos textos de Husserl Jaacute na introduccedilatildeo do II volume agrave obra citada por Heidegger

ndash Investigaccedilotildees Loacutegicas - Husserl descreve a necessidade de a fenomenologia

posicionando-se contra a psicologia explicativa procurar sua fundamentaccedilatildeo da loacutegica

numa nova teoria do conhecimento objetiva Nossa jaacute citada preacute-compreensatildeo nos levou

a Dilthey ao descobrir que esse autor tambeacutem se opocircs ao meacutetodo da psicologia

explicativa Vamos tambeacutem aos seus textos Mas a pergunta aparece teraacute sido tatildeo grande

12

a influecircncia que a psicologia explicativa exercia naquela eacutepoca a ponto de exigir que

tantos pensadores sentissem a necessidade de se opor a ela e ao seu meacutetodo

Como se isso natildeo bastasse revelou-se que ambos os autores Dilthey e Husserl

travam diaacutelogo nem sempre expresso com o neokantismo Agrave revelia de todos julguei

que natildeo deveria desconsiderar mais essa referecircncia tendo em vista que um dos principais

nomes dessa corrente ndash Rickert- foi citado por Heidegger no importante (para esta

pesquisa) texto de 1963 ao qual me referi haacute pouco Entatildeo me perguntei o que une esses

trecircs nomes Dilthey Husserl e Rickert Estaacute posta a tarefa do primeiro capiacutetulo da

Dissertaccedilatildeo

Nele tentei compreender como a partir do desenvolvimento das ciecircncias positivas

particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma profunda discussatildeo acerca do sentido e

da possibilidade do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo busca uma

filosofia propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana procura a

autonomia da filosofia frente agrave ciecircncia positiva mas que serviria de base a toda e qualquer

ciecircncia Tambeacutem nesse contexto aparece a contribuiccedilatildeo de Dilthey a qual acrescenta o

caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e traz agrave tona o sentido do conhecimento como

essencialmente histoacuterico

Mas natildeo chegamos ao que nos propomos estamos ainda nos prolegocircmenos Por

qual motivo Heidegger pergunta Qual o sentido de ser Ser e Tempo continua fechado

Precisamos entatildeo reavaliar nossa preacute-compreensatildeo Se como dissemos Ser e Tempo

transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica eacute preciso analisar como essas influecircncias

aparecem no pensamento de Heidegger Vamos a algumas preleccedilotildees do autor anteriores

agrave obra central de nosso trabalho Eacute preciso indicar que nossa intenccedilatildeo natildeo eacute abordar as

preleccedilotildees como processos evolutivos como que para esclarecer em termos de causa e

efeito a publicaccedilatildeo posterior lsquomadurarsquo de Ser e Tempo Mas destacar como as questotildees

desses textos acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a

problemaacutetica cujo desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927

Estaacute posta a tarefa de nosso segundo capiacutetulo

Nele trata-se de compreender como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere

Heidegger no interior da referida discussatildeo pelo sentido do conhecimento Mas ao

mesmo tempo tentaremos mostrar como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva

(considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal)

e a introduccedilatildeo do elemento hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com

13

Heidegger a pergunta fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do

conhecimento e passou a ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto

nosso segundo capiacutetulo pretende analisar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger

no interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do

conhecimento ao sentido do ser

Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido

de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a

teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo

pelo sentido do ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir

da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para

uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no

curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER 2006 p122) o elemento

hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave fenomenologia

que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em

seu ser Podemos abrir novamente Ser e Tempo

Esse percurso foi necessaacuterio para que pudeacutessemos conquistar um solo

interpretativo e sobretudo alcanccedilar a pergunta pelo sentido de ser Pois ela a pergunta

estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura de sentido que precisamos explicitar

E assim no terceiro e central capiacutetulo da Dissertaccedilatildeo apresentar como em Ser e Tempo

o fenocircmeno da linguagem (Sprache) aparece no interior dessa compreensatildeo e em que

medida a linguagem eacute possiacutevel por uma estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Dito de

outro modo na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto

ontoloacutegico do conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e

qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido tambeacutem

histoacuterico em que algo pode se manter em seu significado Eacute nessa perspectiva que

procuramos a estrutura ontoloacutegica da linguagem

Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a

ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo

material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos

que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas

que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela

dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se

estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o

14

que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes1rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que

somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em

fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo

Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por

Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um

fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo

incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como

descoberto A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo cotidiano Heidegger chama de

ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio

natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute

encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas tomadas como oacutebvias

Esse eacute o caminho do nosso trabalho mas eacute apenas o iniacutecio Ele natildeo pretende

encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender a

ldquopassagem para o poeacutetico2rdquo na obra de Heidegger como uma tentativa de desvencilhar-se

do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Por enquanto preferimos a tensatildeo

e a suspensatildeo do estado de pergunta Ser e Tempo continuaraacute aberto Tentaremos nos

manter fieis agrave orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica Diante da pergunta de

Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na cidade Soacutecrates responde

ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso irrdquo3

1 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo Wolf

Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249 2 Cf NUNES 2012 3 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9

15

Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo

sentido do conhecimento na filosofia

Chega um tempo em que natildeo se diz mais meu Deus () Chegou um tempo em que natildeo adianta morrer Chegou um tempo em que a vida eacute uma ordem

A vida apenas sem mistificaccedilatildeo (Os Ombros Suportam o Mundo Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

Conforme Merleau Ponty a fenomenologia surge como uma tentativa para

resolver um problema natildeo de uma seita mas talvez o problema do seacuteculo o problema

que se punha desde 1900 para todo o mundo e ainda eacute hoje colocado (PONTY M1973

Pag15) O problema refere-se agrave crise das ciecircncias humanas (Geistenwissenschaften) e agraves

ciecircncias naturais

Se o fundamento dos princiacutepios da geometria e da fiacutesica eram objetos de

investigaccedilatildeo de Husserl e o levou ao caminho da pesquisa de uma filosofia sem

pressupostos- bem como as investigaccedilotildees dos chamados neokantianos da escola de

Marburg que os levaram agrave tentativa de fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas - as

ciecircncias humanas tambeacutem se desenvolviam no auspiacutecio de sua proacutepria ambiguidade

A medida que se desenvolviam as pesquisas psicoloacutegicas socioloacutegicas

histoacutericas tendiam a nos apresentar todo pensamento toda opiniatildeo e em

particular toda filosofia como o resultado da accedilatildeo combinada das condiccedilotildees

psicoloacutegicas sociais histoacutericas anteriores A psicologia tendia para o que Husserl

denomina psicologismo a sociologia o sociologismo histoacuteria para o

historicismo Ora com isto elas acabavam por erradicar seus proacuteprios

fundamentos (PONTY1973 p15)

Na medida em que os princiacutepios orientadores do homem histoacuterico social e

psicoloacutegico satildeo elementos externos e imbricados de certa contingecircncia conforme os

resultados mesmos dessas pesquisas o pesquisador punha suas proacuteprias afirmaccedilotildees em

duacutevida pois o fundamento de todas elas eacute tambeacutem contingente e o valor de verdade de

suas conclusotildees fluido Contudo quando algo faz aparecer opositores observando e

16

diagnosticando seus problemas fundamentais eacute porque encontra-se em evidecircncia e jaacute

atingiu certo grau de adesatildeo sendo necessaacuterio apontar elementos obliterados em sua

suposta evidecircncia

A autonomia das ciecircncias positivas frente aos sistemas filosoacuteficos em meados do

seacuteculo XIX na Alemanha acompanhava um crescente desprestiacutegio da metafiacutesica e da

filosofia da natureza sendo a reflexatildeo metodoloacutegica suplantada por novos procedimentos

-e uma nova visatildeo de mundo- em que vigoravam o conhecimento empiacuterico impessoal e

temporal

Se a filosofia jaacute natildeo parecia ter condiccedilotildees de responder agraves questotildees dessa nova

visatildeo de mundo cientiacutefica com as propostas da psicologia experimental - baseada no

modelo metodoloacutegico das ciecircncias naturais- ela a filosofia parecia estar condenada ao

ostracismo sendo capaz apenas de se colocar como curiosidade histoacuterica A psicologia

experimental ou explicativa considerava que um procedimento verdadeiramente

cientiacutefico deveria ser baseado na observaccedilatildeo empiacuterica ela era a interpretaccedilatildeo da verdade

atraveacutes de causas psiacutequicas responsaacuteveis pela efetuaccedilatildeo do juiacutezo(MACDOWEL 1993

p28)

O ponto crucial dessa posiccedilatildeo eacute o fato de que o estudo da loacutegica enquanto

estrutura do pensamento estaacute condicionado aos meacutetodos e princiacutepios da psicologia e

portanto condicionada a tipos de demonstraccedilotildees empiacutericas Uma investigaccedilatildeo dessa

espeacutecie - a loacutegica condicionada a demonstraccedilotildees empiacutericas - eacute a negaccedilatildeo da tarefa proacutepria

agrave filosofia (mesmo quando um ou outro pensador negue por exemplo a idealidade loacutegica

ainda assim o faz inserido nessa tarefa de investigaccedilatildeo) pois a loacutegica como doutrina

voltada para uma purificaccedilatildeo radical dos elementos materiais da linguagem e para uma

subsequente reconciliaccedilatildeo entre pensamento e verdade se mostra como expressatildeo

maacutexima do projeto originaacuterio da tradiccedilatildeo (CASANOVA Introduccedilatildeo In DILTHEY

2011p8)

Nesse contexto surgem reaccedilotildees ao modelo predominante das ciecircncias naturais

sobretudo em relaccedilatildeo agrave adesatildeo a este modelo pela psicologia e pelas ciecircncias humanas

Dentre essas reaccedilotildees destacamos o projeto da psicologia descritiva e analiacutetica de Dilthey

as contribuiccedilotildees da pesquisa sobre a validade do conhecimento das escolas neokantistas

17

ndash destacando a filosofia dos valores de Windelband e Rickert - e o projeto husserliano de

uma filosofia sem pressupostos que se realizaria atraveacutes do meacutetodo fenomenoloacutegico

Ciente de que natildeo nos eacute possiacutevel aprofundar nessas complexas investigaccedilotildees nossa

intenccedilatildeo nesse primeiro momento de trabalho eacute apenas indicar os elementos

fundamentais de cada posiccedilatildeo e a partir deles compreender no capiacutetulo seguinte em

que medida essas reaccedilotildees se intercruzam e influenciam o autor privilegiado no texto

dessa dissertaccedilatildeo Este eacute o objetivo de nosso primeiro capiacutetulo

Nosso primeiro capiacutetulo eacute a tentativa de compreender como a partir do

desenvolvimento das ciecircncias positivas particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma

profunda discussatildeo acerca do sentido e possibilidade do conhecimento Nesse contexto o

neokantismo busca uma filosofia propriamente cientiacutefica ndash como reflexo da exigecircncia de

sua proacutepria eacutepoca ndash enquanto a fenomenologia husserliana busca a autonomia da filosofia

descontiacutenua agrave ciecircncia positiva mas que seria a base de toda e qualquer ciecircncia Tambeacutem

nesse contexto emerge como elemento fundamental para o desenvolvimento de nosso

trabalho a tarefa geral de Dilthey que mesmo imersa nas exigecircncias positivistas de seu

tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e potildee em tela o sentido

do conhecimento como essencialmente histoacuterico

I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias

do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente

histoacuterico

Dilthey contra a mera transposiccedilatildeo do meacutetodo das ciecircncias naturais agraves ciecircncias

do espiacuterito ldquose deu conta que a pretensatildeo de entender filosoficamente as disciplinas

histoacutericas soacute poderia levar-se a um porto seguro se reflexiona acerca do que eacute o objeto

das ditas ciecircnciasrdquo (HEIDEGGER 2006p33)

As ciecircncias naturais segundo Dilthey se relacionam com os objetos na medida

em que esses satildeo ou fatos simultacircneos ou sucessivos e aparecem agrave consciecircncia sempre

como dados externos assim recorrendo a uma hipoacutetese como recurso explicativo

condicionada agrave verificaccedilatildeo a partir de maior ou menor incidecircncia desses fatos Os

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resultados das ciecircncias naturais seriam portanto conclusotildees complementares que

tentariam explicar os fenocircmenos externos (observados como fenocircmenos particulares) e

ordenaacute-los pela funccedilatildeo explicativa da ciecircncia que movimenta da parte (fenocircmenos

unitaacuterios) ao todo (explicaccedilatildeo ordenadora)

Poreacutem os fenocircmenos das ciecircncias humanas aparecem internamente agrave consciecircncia

com realidade de uma lsquoconexatildeo vivarsquo sendo essa conexatildeo da vida psiacutequica

originariamente dada compreensivamente a qualquer homem histoacuterico vivente A anaacutelise

ou distinccedilatildeo dos elos particulares dessa conexatildeo eacute posterior pois o que se daacute

imediatamente agrave consciecircncia eacute a conexatildeo constante das proacuteprias vivecircncias e ldquoa vida natildeo

se faz senatildeo como conexatildeordquo (DILTHEY W2011 pag30) natildeo tendo sentido a partir

dessa evidecircncia falar em algo como deduccedilatildeo dos fenocircmenos psiacutequicos

Exige-se portanto agrave psicologia um outro procedimento pois satildeo somente os

dados da psicologia descritiva que poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar

para as ciecircncias humanas O que estaacute em jogo para Dilthey contra a psicologia

explicativa eacute mostrar como a teoria do conhecimento relativa agraves ciecircncias do espiacuterito e

tambeacutem agrave filosofia natildeo pode abrir matildeo da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica Poreacutem em funccedilatildeo

da especificidade de seus objetos reclama outros meacutetodos que natildeo aqueles das ciecircncias

naturais

Dilthey natildeo aceita os pressupostos do retorno agrave filosofia kantiana4 para a

fundamentaccedilatildeo de suas investigaccedilotildees pois a cisatildeo entre mateacuteria e forma proveniente

desse sistema natildeo serve agraves ciecircncias do espiacuterito e natildeo pode ser mais sustentada diante da

evidecircncia da vida conexa e estruturante da vivecircncia da consciecircncia

4 Sobre esse aspecto eacute importante apresentar duas consideraccedilotildees 1) No interior da biografia de

Schleiermacher de 1860 Dilthey destaca a importacircncia de alguns aspectos do texto de Kant ldquoA religiatildeo

nos limites da simples razatildeordquo (1793) para o desenvolvimento da hermenecircutica de Schleiermacher 2)

Contudo talvez sob influecircncia do debate neokantiano agrave eacutepoca Dilthey apresenta o essencial da filosofia

kantiana como sendo a Criacutetica da Razatildeo Pura ou seja a teoria do conhecimento referente agraves ciecircncias

naturais E nesse sentido que a divisatildeo entre mateacuteria e forma como exposta na primeira criacutetica natildeo eacute

suficiente agrave elaboraccedilatildeo da epistemologia das ciecircncias humanas Sobre esse assunto Cf Kant und die

philosophische Hermeneutik in Kant-Studien 66 (1975) pp 395-403 Traduccioacuten de Angela Ackermann

Pilaacuteri en GADAMER H-G Los caminos de Heidegger Herder Barcelona 2002 pp 57-66 Cf

Beckenkamp J Kant e a hermenecircutica moderna in Kriterion vol51 no121 Belo Horizonte Junho 2010 e

tambeacutem Cf REIS JC A ldquocriacutetica histoacuterica da razatildeordquo Dilthey versus Kant In Textos de histoacuteria UNB

vol10 nordm12 v 10 (2002) pp-159-179

19

ldquoA cisatildeo entre mateacuteria e forma do conhecimento que eacute levada a termo no sistema

kantiano tambeacutem natildeo pode ser hoje mantida Muito mais importante do que essa

cisatildeo satildeo as relaccedilotildees internas que subsistem por toda a parte entre a multiplicidade

das sensaccedilotildees como a mateacuteria do nosso conhecimento e a forma na qual

apreendemos a mateacuteriardquo (DILTHEY W2011 p37)

Para REIS (2003)5 Dilthey eacute associado ao historicismo como seu maior teoacuterico

Ainda como aponta REIS nem todos pesquisadores de sua obra concordam com este

veredito alguns ateacute mesmo questionam se Dilthey poderia ser considerado um

historicista pois em seu projeto de construccedilatildeo de uma epistemologia das ciecircncias

humanas ao se opor ao historicismo romacircntico Dilthey recairia em certo positivismo De

todo modo analisar detalhadamente esta discussatildeo natildeo nos eacute possiacutevel o que nos interessa

aqui eacute apontar que apesar de fazer coro com as caracteriacutesticas gerais deste movimento

Dilthey se destaca por sua busca propriamente epistemoloacutegica das ciecircncias humanas a

partir da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos se afastando em diversos pontos

do chamado ldquoirracionalismordquo romacircntico mas sem reduzir o historicismo agrave pura

epistemologia e sobretudo lanccedilando bases teoacutericas com pretensatildeo cientiacutefica para a

abordagem dos fenocircmenos histoacutericos

ldquoO aspecto positivista da sua teoria devia-se agrave atmosfera naturalista em que ele

viveu As ciecircncias naturais impuseram o seu padratildeo de rigor e objetividade No

seacuteculo XIX a morte da filosofia sistemaacutetica cedeu seu lugar a uma ldquofilosofia

cientiacuteficardquo Natildeo era uma filosofia especulativa mas ldquoestudos positivos com

intenccedilatildeo filosoacuteficardquo O filoacutesofo natildeo podia pensar em qualquer objeto sem recorrer

a estudos concretos ao estudo de fontes primaacuterias extraiacutedas do mundo real

Dilthey neste sentido quis que sua filosofia fosse cientiacutefica Eacute uma teoria do

conhecimento das ciecircncias morais que estudam as relaccedilotildees e eventos positivos

do mundo histoacuterico-social () Aiacute reside seu positivismo que segundo Aron ele

nunca superou e que eacute sua originalidade () Sua tese eacute as ciecircncias humanas

existem como lsquociecircncias e eacute vatildeo discutir o seu caraacuteter cientiacutefico em nome de uma

teoria preconcebida da ciecircnciarsquordquo (REIS 2003p32)

Dilthey se destaca no movimento historicista pela sua preocupaccedilatildeo com o meacutetodo para

as ciecircncias humanas consciente de sua especificidade ou da metodologia autocircnoma dessa

disciplina na medida em que histoacuteria e vida se encontram pela compreensatildeo sendo a vida

ao mesmo tempo histoacuterica e psicoloacutegica E o fato de natildeo haver um modelo universal

sistemaacutetico da histoacuteria natildeo reduz sua pesquisa em uma descriccedilatildeo caoacutetica dos eventos

5 Seguindo a interpretaccedilatildeo de Freunde e Ortega y Gasset Cf REIS JC 2003 p31

20

Vivecircncia compreensatildeo e expressatildeo eacute a triacuteade fundamental para o pensamento de

Dilthey e sua ldquocriacutetica da razatildeo histoacutericardquo consiste em delinear como a construccedilatildeo do

mundo histoacuterico no sujeito torna possiacutevel um saber sobre a realidade espiritual

apreendendo aiacute a partir da experiecircncia do mundo histoacuterico o princiacutepio real das ciecircncias

humanas A reconstruccedilatildeo do mundo da vida natildeo pode ser reduzida a uma soma de

elementos que possam descrevecirc-lo Mais do que isso a vida histoacuterica de um determinado

tempo eacute vivenciada por uma ligaccedilatildeo imediata entre o sujeito e seu tempo cada vivecircncia

sinaliza para a concretude objetiva do espiacuterito da eacutepoca O que importa nesta perspectiva

eacute que a realidade objetiva seja garantida pela proacutepria vivecircncia que eacute ldquoerigida agrave condiccedilatildeo

de categoria epistemoloacutegica fundamental em oposiccedilatildeo ao conceito de representaccedilatildeordquo

(AMARAL2004 p53) ou seja a objetividade da vivecircncia lhe eacute imanente A vivecircncia

(Erlebnis) natildeo eacute mera vida orgacircnica (Leben) mas o encontro indissociaacutevel entre a histoacuteria

e a vida dos homens Se por um lado natildeo eacute possiacutevel acompanhar o horizonte de sentido

de uma eacutepoca sem esta primeira experiecircncia viacutevida cujas expressotildees satildeo particulares por

outro lado eacute somente atraveacutes da compreensatildeo que a vivecircncia eacute alargada superando a

unilateralidade da experiecircncia singular

ldquoA compreensatildeo eacute um reencontro do eu no tu o espiacuterito encontra-se em niacuteveis

cada vez mais elevados da conexatildeo essa mesmidade do espiacuterito no eu no tu em

cada sujeito de uma comunidade em todo sistema da cultura por fim na

totalidade do espiacuterito e da histoacuteria universal torna possiacutevel a atuaccedilatildeo conjunta

das diversas capacidades nas ciecircncias humanas O sujeito do saber estaacute assim

unido com o seu objeto e esse objeto eacute o mesmo em todos os niacuteveis de sua

objetivaccedilatildeo Se a objetividade do mundo espiritual criada no sujeito eacute reconhecida

por este procedimento surge a pergunta sobre o quanto isso pode contribuir para

a resoluccedilatildeo do problema do conhecimento em geralrdquo (DILTHEY 2006p168)

A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo eacute ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da

hermenecircutica de Dilthey pois traz em si a categoria do significado como o nexo da

vivecircncia com a realidade concreta sem se apoiar em qualquer elemento transcendente agrave

proacutepria experiecircncia psicoloacutegica vivida

ldquoA categoria do significado designa a relaccedilatildeo entre as partes da vida e o todo

uma relaccedilatildeo que estaacute fundada na essecircncia da vida Soacute possuiacutemos essa conexatildeo

por meio da memoacuteria na qual podemos visualizar o transcurso vital do passado

Na memoacuteria faz-se valer entatildeo o significado como a forma de apreensatildeo da vida

Captamos o significado de um momento passado Ele eacute significativo na medida

em que nele se realiza um viacutenculo com o futuro por meio da accedilatildeo ou por meio de

um acontecimento exterior Ou na medida em que foi concebido o plano de uma

conduccedilatildeo futura da vida Ou na medida em que um plano de sua realizaccedilatildeo foi

21

levado a termo Ou ele eacute significativo para a vida conjunta na medida em que a

intervenccedilatildeo do indiviacuteduo se realiza nessa vida na qual sua essecircncia mais proacutepria

interveio na configuraccedilatildeo da humanidade Em todos esses e em outros casos o

momento particular possui significado por meio de sua conexatildeo com o todo por

meio da ligaccedilatildeo entre passado e futuro entre existecircncia particular e a

humanidaderdquo (DILTHEY 2006p224)

A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo deve ser entendida como ldquoos dois lados

do processo loacutegico dois lados que se interpenetram mutualmenterdquo (DILTHEY

2006p213) sendo a forma de compreender enquanto meacutetodo a ldquoinduccedilatildeo que deduz das

particularidades parcialmente determinadas para noacutes uma conexatildeo que define o todordquo

(DILTHEY 2006p214) Mas isso soacute eacute possiacutevel pelas categorias que residem na essecircncia

da proacutepria vida categorias que natildeo satildeo dadas a priori e nem podem ser formalizadas

logicamente Satildeo categorias preenchidas no interior de certa unidade espaccedilo-temporal

pois ldquoa vida encontra-se em uma relaccedilatildeo maximamente proacutexima com o preenchimento

do tempo() No tempo a vida existe na relaccedilatildeo das partes com uma conexatildeordquo

(DILTHEY 2006p219)

O conjunto das realizaccedilotildees da compreensatildeo enquanto conexotildees estruturais

objetivas ou objetivaccedilatildeo da proacutepria vida no mundo exterior eacute o conceito das ciecircncias

humanas e ldquotudo aquilo em que o homem por sua atuaccedilatildeo imprimiu sua marca constitui

o objeto das ciecircncias humanasrdquo (DILTHEY 2006 p112) Tendo em vista esse objeto a

tarefa do pesquisador ldquoconsiste na apreensatildeo do mundo do espiacuterito como uma conexatildeo

dos efeitos ou como uma conexatildeo contida em seus produtos duradourosrdquo (DILTHEY

2006p118) A conexatildeo dos efeitos dos produtos da ciecircncia histoacuterica natildeo eacute como o nexo

causal da natureza pois diferentemente da natureza as conexotildees da vida objetiva do

espiacuterito geram valores e realizam fins a vida histoacuterica natildeo eacute reproduccedilatildeo ciacuteclica de si

mesma ndash como a vida natural - mas eacute sempre criativa e ativa na produccedilatildeo desses valores

e bens como seu caraacuteter imanente mais proacuteprio

E eacute nessa apreensatildeo do tear da vida histoacuterica na qual o tempo a vivecircncia e

compreensatildeo estatildeo imbricados e se interpelam o significado ldquoeacute a categoria abrangente

sob a qual a vida se torna concebiacutevelrdquo (DILTHEY 2006p222)

ldquoDito de outro modo conceber algo atribuir valor e estabelecer fins para algo

satildeo atitudes vitais inter-dependentes que configuram as vivecircncias e assim sendo

nos ajudam a construir a proacutepria realidade em que vivemos Vivecircncia e realidade

22

satildeo como que tecidas conjuntamente graccedilas ao apoio da ldquocategoria do

significadordquo (AMARAL 2004p55)

As expressotildees da vivecircncia possuem sua objetividade na medida em que os objetos

as pessoas os valores e os juiacutezos apoiados nesta relaccedilatildeo enraiacutezam-se nos significados

comuns do mundo da vida significados esses que satildeo vivenciados e compreendidos

perfazendo a proacutepria construccedilatildeo do mundo histoacuterico ldquoe consequentemente de sua

compreensatildeo como tarefa basilar das ciecircncias do espiacuteritordquo (AMARAL 2004p57)

II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar

proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias6

Ainda na reaccedilatildeo contra o empirismo positivista do final do seacuteculo XIX e

sobretudo ao psicologismo desenvolveram-se as investigaccedilotildees dos chamados

neokantianos um ldquomovimento com profundas raiacutezes no seacuteculo dezenove [que] dominou

a academia filosoacutefica alematilde entre 1890 e 1920rdquo (CROWELL2001 p23)

Seguindo a exposiccedilatildeo de Crowell o movimento neokantiano pode ser dividido em

trecircs momentos profundamente relacionados com os acontecimentos histoacutericos poliacuteticos

e sociais da Alemanha na virada do seacuteculo XIX para XX Natildeo seraacute possiacutevel nos

aprofundarmos muito na especificidade de cada momento desse movimento bem como

nas suas relaccedilotildees com outras mateacuterias Como jaacute foi dito acima nossa proposta nessa

breve introduccedilatildeo eacute apenas mostrar a importacircncia desse movimento na formaccedilatildeo do

pensamento de Heidegger7 e indicar o contexto geral no qual nasce esse pensamento

6 O neokantismo eacute um movimento complexo e com muitas nuances Como nossa intenccedilatildeo eacute apresentar o

contexto no qual surge o pensamento de Heidegger natildeo pretendemos nos aprofundar e muito menos

desdobrar as divergecircncias entre seus representantes principais atraveacutes do acesso direto agraves suas obras

Portanto seguiremos nesse toacutepico a leitura de Crowell (2001) e Joseacute Rezende Juacutenior (2013) recorrendo

quando necessaacuterio a outros comentadores Destacamos os elementos centrais do pensamento de

Windelband e sobretudo de Rickert pois a partir da anaacutelise da preleccedilatildeo de 1919 de nosso autor ldquoA filosofia

e o problema da concepccedilatildeo de mundordquo ndash em que Heidegger investiga a possibilidade da filosofia como

ciecircncia originaacuteria ndash a posiccedilatildeo desses autores eacute decisiva para elaboraccedilatildeo dos problemas do meacutetodo de acesso

a imediatidade da vida e na primeira parte da referida preleccedilatildeo Heidegger expotildee os pressupostos e

problemas do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e sua dependecircncia ao material teoacuterico das ciecircncias particulares 7 Aleacutem do exposto em nota acima (6) seguimos a leitura de Gianni Vattimo em Introduccedilatildeo a Heidegger

No primeiro capiacutetulo Vattimo mostra a importacircncia dos anos de estudos universitaacuterios de Heidegger em

Freiburg sob orientaccedilatildeo de Heinrich Rickert para o desenvolvimento da questatildeo central de seu

pensamento a questatildeo do ser Segundo Vattimo em sua tese de livre docecircncia de 1916 Heidegger jaacute

23

contexto de uma disputa pela ldquoNova Filosofiardquo que dividiu a Fenomenologia de um lado

e os Neokantianos de outro

ldquoAmbos os movimentos reivindicam o tiacutetulo de filosofia cientiacutefica mas o

neokantismo difere da fenomenologia em manter uma continuidade entre a

ciecircncia positiva e filosofia A teoria da ciecircncia a epistemologia neokantiana

deseja fornecer fundamentos para os princiacutepios de base (lsquocientiacuteficosrsquo) da visatildeo de

mundo A Fenomenologia (aqui Husserl e o jovem Heidegger) ao contraacuterio

estabelece a autonomia da filosofia precisamente atraveacutes da descontinuidade com

a ciecircncia positiva e os objetos de formaccedilatildeo da visatildeo de mundordquo (CROWELL

2001p24)8

No primeiro periacuteodo (1871-1878) verifica-se ldquocerta continuidade entre o inqueacuterito

aprioriacutestico e empiacuterico A autonomia da filosofia vis-agrave-vis a ciecircncia positiva ainda natildeo

tornou a questatildeo decisivardquo (CROWELL 2001p26) Os neokantianos ainda estavam

dispostos a aceitar que as estruturas fundamentais da realidade revelavam seu caraacuteter

transcendental pois ainda constatavam a necessidade das formas universais atraveacutes das

quais podemos pensar as coisas singulares No projeto positivista a ciecircncia empiacuterica

estuda apenas o conteuacutedo de fato em uma restriccedilatildeo circunstancial dos fenocircmenos jaacute

compreendidos

ldquoTentando superar as aporias da Criacutetica da Razatildeo Pura o idealismo

transcendental neokantiano rejeitou a distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si Os

objetos satildeo totalmente imanentes agrave consciecircncia natildeo somente quanto a sua forma

mas tambeacutem agrave sua mateacuteria ieacute o seu elemento empiacuterico Destarte as categorias

jaacute natildeo constituem meramente o modo de aparecer da realidade mas o seu modo

de ser pois ela natildeo existe senatildeo enquanto presente agrave consciecircncia () Assim o

loacutegico como estudos das determinaccedilotildees fundamentais de vaacuterias regiotildees dos

objetos imanentes agrave consciecircncia ocupa com razatildeo ainda para Kant o lugar

reservado antigamente agrave metafiacutesica A tarefa proacutepria da filosofia consiste numa

Teoria das Ciecircncias ieacute no exame das estruturas a priori ao passo que estas

estudam o conteuacutedo empiacuterico das vaacuterias regiotildees dos objetosrdquo (MACDOWELL

Jp30)

manifestava elementos que o impulsionariam a ir aleacutem da loacutegica a recusa de considerar as categorias como

meras funccedilotildees do pensamento e ainda a exigecircncia de considerar o problema da historicidade e do tempo

Assim no interior da problemaacutetica neokantiana Heidegger jaacute se preocupava com questotildees que o

neokantismo mostrava-se incapaz de resolver Cf Vattimo G1987 pp 10-22

8 ldquoBoth movements lay claim to the mantle of ldquoscientific philosophyrdquo but neo-Kantianism differs from

phenomenology in maintaining a continuity between positive science and philosophy As theory of science

neo-Kantian epistemology wants to provide grounds for a principled (ldquoscientificrdquo) weltanschauung

Phenomenology (here Husserl and the early Heidegger) on the contrary establishes the autonomy of

philosophy precisely through a discontinuity with positive science and the aims of worldview formationrdquo

op cit p 24

24

Durante o segundo periacuteodo neokantiano entre 1878 e o final da Primeira Guerra

Mundial as escolas originadas desse movimento vatildeo acirrar suas diferenccedilas A escola de

Marburg (Cohen Natorp e Cassirer) se opocircs sobretudo agraves interpretaccedilotildees psicoloacutegicas

da Primeira Criacutetica de Kant O campo de investigaccedilatildeo dessa escola era direcionado agrave

fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas tais como a fiacutesica e a matemaacutetica pois o que

estaacute em jogo nessa obra segundo os pesquisadores de Marburg natildeo eacute qualquer

fundamentaccedilatildeo da estrutura psicoloacutegica do conhecimento nem sua origem mas o valor

loacutegico de sua verdade na medida em que ldquoo nosso conhecimento dos objetos reais conteacutem

um elemento que natildeo pode ser reduzido pura e simplesmente a intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo

(MCDOWELL J p29)

No mesmo sentido mas sobretudo em funccedilatildeo da superaccedilatildeo do psicologismo e do

relativismo histoacuterico a escola neokantista de Baden representada principalmente por

Windelband e seu disciacutepulo Rickert estende o retorno a Kant com o propoacutesito da

elaboraccedilatildeo de uma loacutegica das ciecircncias humanas O desenvolvimento da filosofia dos

valores (Werttheorie) realizado por essa escola reconhecia a necessidade de diferenciar o

conhecimento da natureza do conhecimento da cultura nesse uacuteltimo caso as leis

deveriam ser explicadas a partir dos valores que neles satildeo presentes Aqui sem duacutevida

existe um ponto de contato com o projeto de Dilthey que nos exige um breve excurso para

desenhar com linhas mais precisas a especificidade de cada projeto

A criacutetica agrave metafiacutesica inaugurada pela filosofia criacutetica de Kant (negando ao

conhecimento qualquer acesso a elementos suprassensiacuteveis) eacute absorvida por Dilthey e

pelos neokantianos contudo a epistemologia das ciecircncias histoacutericas como filosofia

criacutetica da histoacuteria ao recorrer a Kant deveria como aponta Reis (2002 p 166) ldquoou

substituir ou completar ou subordinar ou se coordenar agrave [criacutetica] de Kantrdquo e nesse sentido

eacute possiacutevel observar a fissura entre os projetos Poderiacuteamos dizer que para Dilthey eacute

necessaacuterio superar Kant pois as categorias abstratas do conhecimento satildeo tributaacuterias de

relaccedilotildees vitais primaacuterias como pensamento que emerge da proacutepria vida histoacuterica pois eacute

a vida histoacuterica em uacuteltima instacircncia que fornece ao pensamento unidade e sentido Jaacute

para os neokantianos de Baden poder-se-ia dizer que houve uma coordenaccedilatildeo com vistas

agrave complementaccedilatildeo agrave criacutetica kantiana tendo em vista que tanto para Windelband como

para Rickert a diferenccedila entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito era legiacutetima

25

para o primeiro como uma distinccedilatildeo metodoloacutegica para o segundo como distinccedilatildeo

loacutegica No interior dessa diferenccedila entre Dilthey e os neokantianos de Baden eacute possiacutevel

observar um ponto ainda mais fundamental mesmo com exigecircncias epistemoloacutegicas

objetivas em seu trabalho Dilthey natildeo aceita o pressuposto de um sujeito transcendental

e eacute antes a vivecircncia do sujeito particular histoacuterico que lhe fornece a base de sua pesquisa

jaacute para Windelband e Rickert o idealismo transcendental eacute mantido com o propoacutesito de

garantir o estatuto cientiacutefico de suas teses Assim enquanto Dilthey atraveacutes dos meacutetodos

proacuteprios faz emergir uma nova concepccedilatildeo de ciecircncia os representantes de Baden

movimentam-se em uma teoria preconcebida da ciecircncia Dito de outro modo ldquoenquanto

Dilthey buscava uma forma de liberar as ciecircncias do espiacuterito do meacutetodo das ciecircncias

naturais Windelband e Rickert procuravam uma definiccedilatildeo de ciecircncia que reconhecesse a

importacircncia dos valoresrdquo (WUR 2010p175)

De maneira geral retornando ao ponto central de nosso toacutepico poderiacuteamos

apontar que as duas escolas neokantianas se diferenciavam essencialmente acerca do

objeto de investigaccedilatildeo Na escola de Marburg Cohen direcionava suas pesquisas ao

chamado ldquofato da ciecircnciardquo e a filosofia seria uma reflexatildeo sobre o conhecimento

cientiacutefico concentrando-se na busca de uma metodologia capaz de descrever

matematicamente a constituiccedilatildeo seu objeto na medida em que seu valor de verdade

encontra-se sob bases loacutegico-matemaacuteticas Jaacute na escola de Baden influenciado pela

filosofia dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade

dos juiacutezos cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de

conciliar ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) A ciecircncia apenas

lida com questotildees de fato e se for necessaacuterio analisar a ldquovisatildeo de mundordquo seremos

obrigados a lidar com os deveres e sobretudo com valores

ldquoEsse enfoque nos valores por parte de Windelband levaraacute o neokantismo de

Baden ao desenvolvimento de uma teoria geral do juiacutezo segundo a qual os juiacutezos

cientiacuteficos (juiacutezos teoacutericos) constituem apenas um tipo de juiacutezo qual seja os

juiacutezos orientados pelo valor verdade Aleacutem dos juiacutezos teoacutericos haveria tambeacutem

juiacutezos natildeo teoacutericos como os juiacutezos eacuteticos esteacuteticos religiosos etc os quais

seriam orientados por outros tipos de valores como o bem o justo o belo o

sagrado etc e os quais diriam respeito a outras dimensotildees da experiecircncia

humana para aleacutem da ciecircncia como a moral o direito a arte a religiatildeo etc Com

isso Windelband procura reformar e ampliar o projeto de Kant Como na Criacutetica

da Razatildeo Pura Kant reduziu o papel da filosofia agrave anaacutelise do caraacuteter a priori dos

juiacutezos teoacutericos especiacuteficos das ciecircncias da natureza trata-se portanto de

completar a empresa kantiana com a anaacutelise do caraacuteter a priori dos outros tipos

26

de juiacutezos Mesmo dentro das ciecircncias eacute preciso distinguir tipos de juiacutezos o que

Windelband faraacute atraveacutes da distinccedilatildeo entre ciecircncias nomoloacutegicas e ciecircncias

ideograacuteficas e Rickert com a distinccedilatildeo entre ciecircncias naturais e ciecircncias

culturaisrdquo (RESENDE 2013p17)

Contudo se ambas escolas se diferenciam na circunspecccedilatildeo de seu objeto existe

um ponto de partida epistemoloacutegico comum o retorno a Kant que indica o lugar proacuteprio

da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias A investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo deve se voltar agrave pesquisa

cientiacutefica de como se daacute tal ou qual conhecimento mas analisar a validade do

conhecimento ou seja aquilo que torna a verdade do conhecimento possiacutevel e esse

problema eacute de ordem transcendental pois natildeo estaacute interessada nos processos cognitivos

mas na condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer processo de conhecimento

ldquoContemporacircneo de Hermann Cohen da escola de Marburg Windelband

enfatizou como este a primazia da abordagem epistemoloacutegica dando

continuidade ao projeto kantiano de limitaccedilatildeo do conhecimento buscando

assegurar a sua validade rejeitando a contingecircncia do histoacuterico e do psicoloacutegico

em prol de uma validade atemporal puramente loacutegica Cohen procurou assegurar

a validade loacutegica do conhecimento cientiacutefico na matemaacutetica procedimento que

Windelband analisa como deficiente pois embora a primeira Criacutetica possa

fundamentar a interpretaccedilatildeo de Cohen a segunda e a terceira Criacuteticas assim

como os textos sobre antropologia histoacuteria e poliacutetica requerem outra

fundamentaccedilatildeo que natildeo a matemaacuteticardquo (WU R2010p3)

A terceira fase do movimento ainda segundo Crowell inicia-se no fim da

Primeira Guerra Mundial e vai ateacute a intervenccedilatildeo Nacional Socialista no sistema

universitaacuterio alematildeo nos anos 30 ldquoRefletindo o colapso do otimismo cultural este

periacuteodo eacute caracterizado por um ataque ao idealismo acadecircmico em nome de

Lebensphilosophie (um termo geneacuterico invocando as teses filosoacuteficas lsquoagrave margemrsquo como

as de Nietzsche Bergson e Dilthey)rdquo (CROWELL2011p28) E nesse sentido as escolas

neokantianas precisaram enfrentar o conflito entre a realidade muacuteltipla e dispersa que no

mais das vezes escapa a qualquer tentativa de apreensatildeo conceitual e loacutegica e portanto

agrave consciecircncia transcendental como postulado que garante a cientificidade do projeto

filosoacutefico neokantista

ldquoNa escola de Baden Logik der Philosophie (1911) e Die Lehre vom Urteil [A

doutrina do juiacutezo] (1912) de Lask antecipam temas do terceiro periacuteodo

Abandonando a interpretaccedilatildeo imanente de Rickert do esquema forma-mateacuteria (e

tambeacutem a primazia da razatildeo praacutetica) Lask adota o ponto de partida da

transcendecircncia para dar uma interpretaccedilatildeo ontoloacutegica dos objetos como a unidade

da forma categorial e o material natildeo-loacutegico Objetos satildeo verdades em si mesmas

27

unidades de sentido natildeo cogniccedilotildees juiacutezos proposiccedilotildees Em contraste com

Cohen para quem o objeto eacute construiacutedo no juiacutezo cientiacutefico Lask argumenta que

lsquoos mais baacutesicos problemas da loacutegica revela eles mesmos somente se a cogniccedilatildeo

preacute-teoreacutetica estaacute inclusa na investigaccedilatildeorsquo Em Marburg N Hartmann oferece na

Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis [Fundamentacao para uma

Metafiacutesica do Conhecimento] (1921) uma teoria da relaccedilatildeo sujeito-objeto

ldquorealistardquo quase-fenomenoloacutegica intentada por uma justificaccedilatildeo ontoloacutegica para

o que eacute meramente pressuposto no idealismo loacutegico de Natorp a saber a

habilidade do sujeito para ldquotranscenderrdquo a sua proacutepria esfera Na filologia de

Kant H Heimsoeth comeccedila a descobrir os ldquomotivos metafiacutesicosrdquo da filosofia

criacutetica de Kant uma interpretaccedilatildeo perseguida no curso sobre Kant de Heidegger

1927-1928 e em Kant und das Problem der Metaphysikrdquo

(CROWELL2011p28)9

Eacute conhecida a interlocuccedilatildeo entre Rickert e a fenomenologia de Husserl tanto de

um lado pela criacutetica de Rickert agrave intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica e agrave identificaccedilatildeo entre sentido

(Sinn) e Significado (Bedeutung) nas Investigaccedilotildees Loacutegicas10 quanto por outro pela

criacutetica de Husserl a Rickert no que diz respeito agrave via predominantemente subjetiva das

9 ldquoIn the Baden school Laskrsquos Logik der Philosophie (1911) and Die Lehre vom Urteil (1912) anticipate

themes of the third period Abandoning Rickertrsquos immanentist interpretation of the formmaterial schema

(and so also the primacy of practical reason) Lask adopts the ldquostandpoint of transcendencerdquo to give an

ontological interpretation of the object as a unity of categorial form and alogical material Objects are

themselvesldquo truths unities of meaning not cognitions judgments propositionsrdquo Incontrast to Cohen for

whom the object is constructed in the scientific judgment Lask argues that ldquothe most basic problems of

logic reveal themselves only if pretheoretical cognition is included in the investigationrdquo In Marburg N

Hartmann offered the Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis (1921) a quasi-phenomenological

ldquorealisticrdquo theory of the subject-object relation intended to account ontologically for what is merely

presupposed in Natorprsquos logical idealism namely the subjectrsquos ability to ldquotranscendrdquo its own sphere In

Kant philology H Heimsoeth began to uncover the ldquometaphysical motivesrdquo of Kantrsquos critical philosophy

an interpretation pursued in Heideggerrsquos 1927ndash28 lecture course on Kant and in Kant und das Problem der

Metaphysikrdquoop citp28

10 Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas (sect15 da I Investigaccedilatildeo) contra a posiccedilatildeo de Frege Husserl considera os

termos Sentido (Sinn) e Significado (Bedeutung) como sinocircnimos ldquoSignificaccedilatildeo vale para noacutes aleacutem disso

como sinocircnimo de sentidordquo (HUSSERL 2012 p43) Contudo se em Ideias (1913) Husserl passa a assumir

uma camada de sentido preacutevia agrave significaccedilatildeo linguiacutestica - algo que ele natildeo soacute sugere como a ela se refere

explicitamente chamando-a de sentido preacute-expressivo- a significaccedilatildeo (Bedeutung) permanece

intimamente atrelada agrave expressatildeo (Ausdruck) que continua a ter um caraacuteter epistemoloacutegico relevante

(Cfsect124 Ideacuteias para uma fenomenologia pura e para uma fenomenologia fenomenoloacutegica) Apesar da

nova assunccedilatildeo essa camada preacute-expressiva natildeo passa a ter um teor de verdade superior agrave camada

expressiva pelo contraacuterio Husserl vai permanecer sempre comprometido com o status epistemoloacutegico da

consciecircncia e de seu acesso ao fenocircmeno Entatildeo aquilo que a consciecircncia manifesta linguisticamente

continua a ser o meio pelo qual a fenomenologia pode se realizar como ciecircncia rigorosa e somente a partir

da expressatildeo eacute possiacutevel falar em verdade na medida em que apenas a expressatildeo possui intenccedilatildeo de

significaccedilatildeo Isso porque apesar de sugerir esse sentido preacute-linguiacutestico Husserl continua voltando suas

anaacutelises agrave expressatildeo

28

primeiras publicaccedilotildees de Der Gegenstand der Erkentnnis (O objeto do conhecimento)11

Tambeacutem eacute conhecido o debate entre o idealismo criacutetico de Natorp e a fenomenologia de

Husserl

ldquoEm Ideen I (1913) Husserl afirma com um miacutenimo de ironia que ldquonoacutes somos

genuiacutenos positivistasrdquo (Hua III4639) Sob a tutela de Brentano a atitude inicial

de Husserl em direccedilatildeo ao apriorismo kantiano foi totalmente negativa e em

harmonia com o proacuteprio periacuteodo positivista inicial do neokantismo ele em vez

disso propocircs uma consideraccedilatildeo psicoloacutegica do a priori (egin Philosophie der

Arithmetik [1891]) Pelos anos de 1890 esse tipo de continuidade entre filosofia

e ciecircncia positiva foi abandonado em Marburg pelo idealismo transcendental

Husserl portanto permaneceu bem proacuteximo a Natorp que era o instrumental em

direccedilatildeo daquele caminho do psicologismo e mais tarde inspiraria o movimento

de Husserl da estaacutetica para a fenomenologia geneacutetica Pelos anos 1913 Husserl

tinha desenvolvido seu proacuteprio ldquoidealismo transcendentalrdquo fenomenoloacutegico mas

se manteve distinto em princiacutepio do Neokantismo de Marburg Enquanto esse

uacuteltimo definiu o caraacuteter cientiacutefico da filosofia em termos de

uma loacutegica transcendental uma apresentaccedilatildeo sistemaacutetica dos princiacutepios a priori

(ldquomeacutetodordquo) da ciecircncia empiacuterica o primeiro se manteve anti-sistemaacutetico modelo

empiacuterico do primeiro periacuteodo do seu fundador fundando sua teoria do a priori

sobre um recurso filosoacutefico para a intuiccedilatildeoEm seu tratamento da psicologia de

Natorp na primeira ediccedilatildeo das Investigaccedilotildees Loacutegicas(1900-1901) por exemplo

Husserl rejeita a doutrina de Natorp do puro ego da apercepccedilatildeo Na segunda

ediccedilatildeo contudo ele afirma que tem ldquouma vez conseguido encontraacute-lordquo tendo

aprendido ldquoa natildeo ser desviado de uma pura compreensatildeo do dado por meio de

formas corruptas do ego-metafiacutesicordquo (Hua XIX1374549) Se o Husserl mais

idealista natildeo mais associa o ego kantiano com o ldquocorrupto ego-metafiacutesicordquo do

idealismo especulativo sua anotaccedilatildeo ainda avanccedila em direccedilatildeo a uma afirmaccedilatildeo

bem anti-Natorpiana de ter encontrado o puro ego em uma ldquopura compreensatildeo

do dadordquo isto eacute em evidecircncia intuitiva Outra anotaccedilatildeo afirma que o puro ego eacute

ldquoapreendido na efetivaccedilatildeo de um cogito auto-evidenterdquo (Hua XIX1368544)

Natorp negou a fenomenalidade do ego ele nem pode ser objetivado nem

apresentado ele mesmo como um todo sem deixar de ser genuinamente ldquosujeitordquo

Para Husserl poreacutem esse argumento eacute meramente verbal o ego eacute aqui como um

fato um objeto em seu modo apropriado Afirmar o contraacuterio equivaleria

entregar o ego ao reino do mito (Hua XIX1373ndash76549ndash510)rdquo

(CROWELL2011 p31)12

11 Sobre a interlocuccedilatildeo entre Husserl e Rickert e como as criacuteticas e observaccedilotildees provocaram sucessivas

revisotildees dos trabalhos de ambos os autores Cf RESENDE J 2013 Primeira Parte pp 22-89

12ldquoIn Ideen I (1913) Husserl claims with only slight irony that ldquowe are the genuine positivistsrdquo (Hua

III4639) Under Brentanorsquos tutelage Husserlrsquos initial attitude toward Kantian apriorism had been

altogether negative and in harmony with neo-Kantianismrsquos own early positivist period he instead proposed

a psychological account of the a priori (egin Philosophie der Arithmetik [1891]) By the 1890s this kind

of continuitybetween philosophy and positive science had been abandoned in burg for transcendental

idealism Husserl nevertheless established close ties with Natorp who was instrumental in steering him

away from psychologism and would later inspire Husserlrsquos move from static to genetic phenomenology

By 1913 Husserl had developed his own phenomenological ldquotranscendental idealismrdquo but it remained

distinct in principle from Marburg neo-Kantianism While the latter defined the scientific character of

philosophy in terms of a transcendental logic a systematic presentation of the a priori principles (ldquomethodrdquo)

29

Contudo apesar do diaacutelogo entre esses autores o que nos interessa marcar a tiacutetulo

introdutoacuterio eacute a centralidade do debate que orientou a filosofia deste periacuteodo Seja pela

busca de juiacutezos loacutegicos-matemaacuteticos seja pela busca dos juiacutezos de valor a filosofia ainda

estaacute imersa nos problemas e na gramaacutetica da modernidade pois os debates se

movimentam no interior da teoria do conhecimento e cada escola a seu modo recorre ao

sujeito transcendental para assegurar a garantia de objetividade e validade do

conhecimento A discussatildeo inaugurada por Kant acerca da lsquocoisa em sirsquo e de seu acesso

como ideia da razatildeo redirecionam qualquer ontologia dos objetos agrave consciecircncia do

sujeito E em uacuteltima instacircncia a filosofia permanece imersa no pressuposto da existecircncia

de um fundamento uacuteltimo - baseado no sujeito e em suas possibilidades ligadas agrave

representaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos elementos do mundo externo- como condiccedilatildeo de

possibilidade que garante a seguranccedila e objetividade de todo conhecimento

II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica

Para Wilhelm Windelband (1848-1915) a filosofia deve investigar os valores das

representaccedilotildees ou seja em que medida uma representaccedilatildeo se torna uma proposiccedilatildeo

cientiacutefica Contra as teorias representacionistas do juiacutezo aqui jaacute eacute possiacutevel identificar a

clara separaccedilatildeo entre representaccedilatildeo - que seria a mera apariccedilatildeo de um objeto e suas

propriedades- e o juiacutezo ndash que possui valor de verdade e pode ser negado ou afirmado Os

juiacutezos (sejam loacutegicos esteacuteticos ou eacuteticos) natildeo satildeo neutros como a representaccedilatildeo pois

possuem embutido o que Windelband chama de apreciaccedilatildeo

ldquoTrata-se de uma distinccedilatildeo loacutegica que normalmente natildeo aparece no niacutevel da

gramaacutetica A mera conexatildeo neutra de representaccedilotildees (sujeito + predicado) eacute o que

se chama de juiacutezo jaacute o fato dessas representaccedilotildees constituiacuterem uma proposiccedilatildeo

com valor de verdade se deve agrave apreciaccedilatildeo O que Windelband quer mostrar eacute

of empirical science the former retained the antisystematic empirical cast of its founderrsquos early period

grounding its theory of the a priori on a philosophical appeal to intuition In his treatment of Natorprsquos

psychology in the first edition of the Logical Investigations (1900 1901) for example Husserl rejects

Natorprsquos doctrine of the pure ego of apperception In the second edition (1913) however he claims that he

has ldquosince managed to find itrdquo having learned ldquonot to be led astray from a pure grasp of the given through

corrupt forms of ego-metaphysicrdquo (Hua XIX1374549) If the more idealistic Husserl no longer associates

the Kantian ego with the ldquocorrupt ego-metaphysicrdquo of speculative idealism his note also advances the very

un-Natorpian claim to have found the pure ego in a ldquopure grasp of the givenrdquo that is in intuitive evidence

Another note states that the pure ego is ldquoapprehended in carrying out a self-evident cogitordquo (Hua

XIX1368544) Natorp had denied the phenomenality of the ego it can neither be objectified nor present

itself at all without ceasing to be genuinely ldquosubjectrdquo For Husserl however this argument is merely verbal

The ego is there as a fact an object in its own appropriate manner To claim otherwise is tantamount to

consigning the ego to the realm of myth (Hua XIX1373ndash76549ndash51)rdquo Op cit p31 Cf Tambeacutem

HEIDEGGER 2006 p 124

30

que nisso ordinariamente chamado de juiacutezo estaacute embutida uma apreciaccedilatildeo em

funccedilatildeo de um valor a qual natildeo se confunde com o conjunto de formaccedilotildees

conceituaisrdquo (RESENDE 2013p40)

O que estaacute em jogo nessa concepccedilatildeo eacute identificar que a apreciaccedilatildeo inerente a todo

juiacutezo natildeo diz nada acerca dos conteuacutedos representativos mas de sua pretensatildeo a um ideal

ou fim uacuteltimo como um horizonte estaacutevel do que eacute verdadeiro eacutetico ou esteacutetico e que

funcionam como paracircmetros avaliativos na accedilatildeo mesma de julgar O que estaacute implicado

nessa tese eacute a concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo As ciecircncias particulares possuem pretensatildeo de

valor universal mas essa universalidade natildeo eacute faacutetica e ldquosua necessidade natildeo eacute causal mas

apenas lsquodeve-serrsquo (sein-solle)Toda proposiccedilatildeo loacutegica eacutetica ou esteacutetica eacute impelida pelo

dever-ser universalrdquo(RESENDE2013p41) e mesmo que sua manifestaccedilatildeo seja

faticamente histoacuterica esse dever-ser da proposiccedilatildeo loacutegica deve ser reconhecido como

universal e incondicionalmente vaacutelido por qualquer ser racional ndash em uma clara assunccedilatildeo

da universalidade moral kantiana mas que agora permeia todos os juiacutezos e natildeo somente

os eacuteticos

Considerando os juiacutezos em funccedilatildeo de sua apreciaccedilatildeo Windelband descreve trecircs

tipos de juiacutezos Os juiacutezos satildeo teoacutericos (segundo a apreciaccedilatildeo verdadeirofalso) juiacutezos de

gosto (segundo a apreciaccedilatildeo belofeio) e os juiacutezos eacuteticos (segundo a apreciaccedilatildeo

bommau) Os fenocircmenos psiacutequicos satildeo as representaccedilotildees neutras em sua manifestaccedilatildeo

Assim como comportamentos da apreciaccedilatildeo os juiacutezos ganham sua forma loacutegica nas

figuras judicativas juiacutezos afirmativos juiacutezos negativos juiacutezos problemaacuteticos Essa uacuteltima

forma suspende a apreciaccedilatildeo mas pela pergunta ndash que natildeo eacute propriamente um juiacutezo-

condiciona a possibilidade de julgar portanto se refere a uma etapa mesmo que preacutevia

agrave tomada de posiccedilatildeo apreciativa

Aqui reside o ponto decisivo enquanto para Windelband a loacutegica claacutessica (de

Aristoacuteteles a Kant) se ocupou dos elementos meramente gramaticais - sendo os juiacutezos

coincidentes com as representaccedilotildees na medida que bastava afirmaacute-las ou negaacute-las - a

apreciaccedilatildeo por sua vez aparece como constituidora do conceito presente nas formaccedilotildees

gramaticais pois dizer algo eacute antes apreciar a sua posiccedilatildeo existencial (com fim ao ideal

da mateacuteria em questatildeo eacutetico esteacutetico etc) de forma a negaacute-las ou afirmaacute-las Em outras

palavras para que o conhecimento seja possiacutevel natildeo eacute suficiente a recepccedilatildeo passiva das

representaccedilotildees mas eacute fundamental uma atividade valorativa que constitui um conceito

31

no reconhecimento de seu conteuacutedo sentido e validade na sua pretensatildeo de necessidade

e universalidade Algo lsquoeacutersquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento e

ldquoa pesquisa desses valores com pretensotildees universais () eacute o objeto de estudo da

filosofiardquo (RESENDE 2013p41) Essa posiccedilatildeo seraacute retomada e desenvolvida por

Rickert

Assim como Windelband Heinrich Rickert (1863-1936) coloca o problema na

forma metodoloacutegica ou seja a pesquisa dos valores como meacutetodo de base para a filosofia

e busca assim determinar o criteacuterio de validade do conhecimento atraveacutes do elemento que

confere sua objetividade ou o que pode ser identificado como o crucial para a diferenccedila

entre os enunciados arbitraacuterios e as proposiccedilotildees vaacutelidas do conhecimento efetivo

elemento que Rickert denomina ldquoobjeto do conhecimentordquo como o tiacutetulo mesmo de sua

obra principal indica ldquoDie Gegenstand der Erkenntnisrdquo (revista em seis ediccedilotildees

diferentes entre 1892 e 1928)

Aprofundando as investigaccedilotildees de seu mestre Rickert difere conceitos

ontoloacutegicos de conceitos axioloacutegicos diferenccedila oculta na linguagem ordinaacuteria e que se

torna clara na observaccedilatildeo acerca da concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo ldquoEnquanto para Kant o

problema eacute a impossibilidade de explicar o fato de como a razatildeo teoacuterica pode ser praacutetica

para Rickert o problema eacute o fato de que a razatildeo jaacute eacute sempre praacutetica em seu uso teoacuterico

purordquo (RESENDE 2013p45) e isto natildeo pelo fato de juiacutezos teoacutericos dependerem da lei

moral mas pela convicccedilatildeo acerca dos conteuacutedos mesmos do conhecimento Se a

representaccedilatildeo satildeo processos psiacutequicos elementares e neutros a convicccedilatildeo soacute eacute possiacutevel

pela razatildeo praacutetica Para melhor visualizaccedilatildeo do problema quando digo ldquoS eacute Prdquo ou ldquoS eacute

um sujeitordquo (e aiacute estaacute tambeacutem seu conceito por exemplo ldquohomemrdquo) ou ainda ldquoP eacute um

predicadordquo (e tambeacutem utilizo um conceito por exemplo ldquoracionalrdquo) o que me autoriza

dizer ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo Segundo Rickert eacute a convicccedilatildeo praacutetica fundada no

sentimento (Gefuumlhl) de ldquovontade de verdaderdquo (Willen zur Wahrheit) que impele a busca

da verdade Eacute esse sentimento que possibilita a tomada de posiccedilatildeo que aprova ou

desaprova expresso por fim em um juiacutezo Somos impelidos pelo dever na medida em

que somos livres a buscar a verdade Mas eacute importante considerar que

ldquoApesar de o sentimento ser o paracircmetro para a tomada de posiccedilatildeo do juiacutezo o

dever natildeo deriva do sentimento pois isso seria derivar o dever do ser O dever

natildeo pode ser confundido com a necessidade causal do sentimento Na verdade

32

na proacutepria constataccedilatildeo do sentimento jaacute estaacute pressuposto o dever () Essa

verdade buscada natildeo eacute uma instacircncia ideal mas apenas um postulado um

inalcanccedilaacutevel ideal absoluto de verdade que funciona como moacutebil da atividade

cientiacutefica dos seres moraisrdquo (RESENDE 2013p46)

A razatildeo praacutetica busca a verdade como sua atividade mais proacutepria a partir do dever

impresso na sua proacutepria liberdade expresso no ato praacutetico de tomada de decisatildeo que

culmina na expressatildeo dos juiacutezos (na razatildeo teoacuterica) Se para Kant a accedilatildeo humana livre eacute

impelida a agir conforme a lei moral para Rickert a accedilatildeo humana em seu querer livre -

nem mecacircnico nem bioloacutegico - de um ideal de perfeiccedilatildeo da verdade eacute impelida a agir em

funccedilatildeo do conhecimento e da ciecircncia

Na tentativa de afastar as interpretaccedilotildees psicologistas ou idealistas (natildeo

cientiacuteficas) de sua teoria o valor de verdade para Rickert que eacute garantido pelo dever-ser

eacute observado na evidecircncia como manifestaccedilatildeo psiacutequica do dever mas que pelo seu caraacuteter

de necessidade ultrapassa o indiviacuteduo singular O sentimento de prazer ou desprazer dessa

evidecircncia na estrutura psiacutequica que posiciona o ato praacutetico de tomada de posiccedilatildeo eacute

reconhecido pela sua necessidade transcendente e eacute o elemento do esquema cognitivo que

ldquoestabelece a ponte entre os processos psiacutequicos reais em sua singularidade e

contingecircncia com a universalidade e necessidade transcendental do deverrdquo (RESENDE

2013p47) Mesmo com essas colocaccedilotildees e sobretudo com a postulaccedilatildeo que o dever natildeo

pode ser derivado do ser pelo seu caraacuteter mesmo de liberdade Rickert foi aproximado de

um certo ldquopsicologismo voluntaristardquo pois o valor de verdade na realidade soacute poderia ser

derivado dos processos psiacutequicos tendo em vista que ldquoo dever eacute uma norma psicoloacutegica

que soacute tem sentido lsquopararsquo um sujeito empiacutericordquo (RESENDE 2013p47) E ainda por

mais que sua meta fosse buscar a universalidade e necessidade dos valores ainda assim

esses valores estariam reduzidos ldquoagrave contingecircncia e temporalidade dos processos

psiacutequicos ou seja reduzindo o valor ao serrdquo (RESENDE 2013p48)

Mas como a filosofia dos valores desses autores lida com as pesquisas histoacutericas

enquanto criacutetica do historicismo Para Windelband as ciecircncias positivas satildeo ciecircncias

nomoteacuteticas ou seja operam por uma abstraccedilatildeo que busca o conhecimento universal

atraveacutes da estabilidade de suas leis Jaacute as ciecircncias histoacutericas satildeo ideograacuteficas cujo juiacutezos

natildeo descrevem uma coisa ou estados de coisa enquanto aquilo que eacute mas possuem como

objeto valores que possuem (ou natildeo) validade Validade oferecida em uacuteltima instacircncia

33

pelo juiacutezo em sua forma fundamental como juiacutezo apreciativo Analisar esses valores

requer uma metodologia proacutepria baseada na pesquisa da valoraccedilatildeo como forma de

conhecimento

Para Rickert a filosofia dos valores eacute o fundamento universal para os significados

da histoacuteria e aqui reside o ponto crucial a busca de um ideal absoluto (vontade de

verdade) deve atuar como medida para a realidade individual e histoacuterica sem a qual natildeo

podemos significar a interpretaccedilatildeo da vida histoacuterica e cultural na sua singularidade A

distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor

(Wert) segundo Rickert levaria a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo

de conceitos (Begriffsbildung) e que natildeo se trata de um conhecimento no campo

ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto pelo conceito determinado de maneira formal no

espaccedilo loacutegico-axioloacutegico

Um evento histoacuterico natildeo possui relevacircncia por si soacute eacute a partir da valoraccedilatildeo que

um fato histoacuterico se ldquodiferencia substancialmente de outros na heterogeneidade contiacutenua

a partir de sua individualidaderdquo (Wu R 2010p180) Ou seja o que doa sentido a um

fato histoacuterico na sua individualidade ndash que se destaca dos fluxos indistintos e

heterogecircneos dos acontecimentos - eacute uma realizaccedilatildeo teoacuterica que o valoriza e lhe confere

sentido A histoacuteria eacute portanto possiacutevel e existe como objeto capaz de ser analisado como

ciecircncia pelos valores atribuiacutedos teoricamente a seus eventos

III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos

A crise no modelo teoacuterico tradicional no final do seacuteculo XIX (que apontava

qualquer teoria filosoacutefica como uma lsquocrenccedila justificadarsquo) a reconduccedilatildeo pelos

psicologistas agrave articulaccedilatildeo de argumentos logicamente coerentes baseados na consciecircncia

particular - em que ateacute mesmo os princiacutepios loacutegicos seriam expressatildeo da forma de

conhecimento possiacutevel pela particularidade daquele que conhece- culminam no projeto

husserliano de uma filosofia pura e sem pressupostos

Para Husserl a psicologia baseada no modelo cientiacutefico das ciecircncias naturais leva

agrave particularizaccedilatildeo dos conteuacutedos do conhecimento e nesse modelo a psicologia natildeo

consegue lidar com a universalidade do conteuacutedo dos princiacutepios tornando a relaccedilatildeo entre

34

a realidade e o conhecimento incompatiacuteveis Por mais que a experiecircncia seja particular

as investigaccedilotildees de Husserl o levaram a considerar que a existecircncia humana estaacute em

contato com conteuacutedos que natildeo satildeo particularizaacuteveis A psicologia natildeo deixa clara a

transiccedilatildeo das conexotildees psicoloacutegicas do pensar e a unidade loacutegica de seu conteuacutedo O que

estaacute em jogo para Husserl eacute portanto a relaccedilatildeo entre a subjetividade do conhecer e a

objetividade do conteuacutedo de pensamento

A predominacircncia neokantiana no horizonte universitaacuterio alematildeo e sua maacutexima de

retorno a Kant mantecircm no interior da investigaccedilatildeo termos como por exemplo

lsquoapercepccedilatildeorsquo e lsquorepresentaccedilatildeorsquo Se o neokantismo se volta a Kant tambeacutem sucumbe a

seus limites e nesse movimento revela a insuficiecircncia da investigaccedilatildeo filosoacutefica

condicionada aos sistemas anteriores Para Husserl a filosofia como ciecircncia autocircnoma

requer natildeo um retorno a qualquer teoria mas agraves coisas que agora devem orientar o

pensamento

A tradiccedilatildeo filosoacutefica eacute marcada por uma pretensatildeo a busca da verdade para aleacutem

do que acontece na realidade dos fenocircmenos que nos satildeo acessiacuteveis Ao hipostasiar a

realidade do ser atraveacutes de posturas realistas ou idealistas para assim ter acesso aos

fenocircmenos a tradiccedilatildeo sempre considerou o ser do fenocircmeno para aleacutem do proacuteprio

fenocircmeno13 De maneira diversa Husserl busca os objetos nos proacuteprios campos

fenomecircnicos na medida em que aparecem na dimensatildeo do conhecimento a partir da

proacutepria atividade de pensamento ou seja o objeto que aparece na atividade de

pensamento soacute eacute encontrado na proacutepria atividade por isso natildeo haacute busca ou hipoacutestase

exterior agrave consciecircncia Mas isso natildeo se daacute porque a consciecircncia em seus atos produza ou

determine os significados dos objetos mas sim porque os atos das vivecircncias abrem espaccedilo

para que o objeto se determine no ato mesmo a partir de sua autonomia frente a qualquer

subjetividade particular de pensamento Mas o que queremos dizer com lsquoum objeto que

se determina no ato mesmorsquo Aqui eacute importante destacar sempre que possiacutevel um mal-

entendido em constante revisatildeo a filosofia de Husserl natildeo consiste em um sistema

fechado de proposiccedilotildees as quais poderiacuteamos encaminhar de forma retiliacutenea e deduzir suas

conclusotildees Aqui nessa breve introduccedilatildeo agraves intenccedilotildees do pensamento de Husserl

apresentamos em linhas gerais seu projeto e nos movimentamos a partir do segundo

13 Cf CASANOVA 2013 pp-76-80

35

volume das Investigaccedilotildees Loacutegicas de 1901 e das Ideacuteias para uma fenomenologia pura e

para uma filosofia fenomenoloacutegica publicadas em 1913

Depois dessas consideraccedilotildees atraveacutes das quais foi posta em jogo a noccedilatildeo de um objeto

que se determina no ato mesmo conforme jaacute explicitado nas Investigaccedilotildees eacute requerido

passar agrave explicaccedilatildeo da noccedilatildeo conforme elaborada na obra posterior Ideacuteias O

pensamento de Husserl eacute marcado por uma orientaccedilatildeo especiacutefica a fenomenoloacutegica Essa

orientaccedilatildeo natildeo desconsidera as vaacuterias formas pelas quais podemos ter acesso a objetos

seja pela vida corrente e cotidiana seja pela via cientiacutefica pois ambas estatildeo de acordo

com a orientaccedilatildeo natural A orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica por sua vez se deteacutem no objeto

intencional ou seja o objeto que visado se manifesta agrave consciecircncia conforme seu modo

de doaccedilatildeo fenomecircnico14 Natildeo se trata de um idealismo subjetivo conforme por exemplo

Berkeley mas de uma necessidade de acesso agraves coisas mesmas sem qualquer

pressuposiccedilatildeo sem qualquer movimento que ponha o conhecimento fora da realidade e

que ao mesmo tempo natildeo recaia na descriccedilatildeo ingecircnua da realidade como um conjunto de

impressotildees sensiacuteveis O fenocircmeno que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute

sempre uma doaccedilatildeo com sentidosignificado ldquopois se eacute verdade que os fenocircmenos se

datildeo a noacutes por intermeacutedio dos sentidos eles se datildeo sempre como dotados de um sentido

ou de uma essecircncia Eis porque () a intuiccedilatildeo seraacute uma intuiccedilatildeo da essecircncia ou do

sentidordquo (DARTIGUES 1973p21)

Ao contraacuterio dos neokantianos o modo como Husserl tratou a realidade tornou

improacuteprio o retorno agraves concepccedilotildees filosoacuteficas anteriores Elas natildeo forneciam mais um

caminho vaacutelido para o questionamento filosoacutefico Natildeo era mais suficiente o retorno a

qualquer sistema filosoacutefico fosse para renovaacute-lo - sob esse novo horizonte cientiacutefico -

fosse para retomar seus fundamentos com a finalidade de posicionar a filosofia como

braccedilo de apoio da ciecircncia A fenomenologia pura (puramente descritiva) pertence agrave

pesquisa de uma teoria do conhecimento objetiva na medida em que o modo de apariccedilatildeo

dos fenocircmenos nas vivecircncias do pensamento e do conhecimento seraacute sempre o objeto da

fenomenologia

14 Cf Ideacuteias I Capiacutetulo I

36

A concepccedilatildeo de fenocircmeno na modernidade ganhou diversas acepccedilotildees desde Bacon

ateacute Wolff passando por Descartes e Hobbes Segundo uma noccedilatildeo do senso comum

fenocircmeno eacute a experiecircncia pura e simples do fato considerada sobretudo como

manifestaccedilatildeo empiacuterica da realidade que natildeo pode ser equiparada agrave verdade15 Jaacute para Kant

- na delimitaccedilatildeo feita na primeira Criacutetica do espaccedilo do saber cientiacutefico possiacutevel -

fenocircmeno eacute o objeto especiacutefico do conhecimento humano que aparece sob condiccedilotildees

particulares da estrutura cognosciacutevel do homem a saber de um lado o objeto do

conhecimento depende das bases representativas que satildeo organizadas pelas categorias do

entendimento e de outro dos dados fornecidos pela sensibilidade Resumindo o objeto

de conhecimento para Kant estaacute delimitado pela relaccedilatildeo entre intuiccedilatildeo e conceito Kant

distingue o fenocircmeno - aquilo que eacute possiacutevel conhecer - do nocircumeno aquilo que natildeo se

conhece mas que pode ser pensado enquanto ideia da razatildeo como ldquocoisa em sirdquo Sem

jamais ultrapassar os dados da experiecircncia o sentido fenomenoloacutegico de fenocircmeno de

Husserl supera a distinccedilatildeo kantiana entre nocircumeno e fenocircmeno O fenocircmeno eacute algo que

manifesto revela em si mesmo seu conteuacutedo loacutegico ou essencial Mas a manifestaccedilatildeo do

fenocircmeno deve ser ldquodepuradardquo de qualquer psicologismo pois natildeo deve apenas ser

considerada como manifestaccedilatildeo particular A investigaccedilatildeo filosoacutefica ou melhor a

investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica aqui eacute exigida como meacutetodo para lsquopurificarrsquo o conteuacutedo

objetivo do ato subjetivo

ldquoO caminho que Husserl busca e comandaraacute ateacute em suas uacuteltimas obras a sua

concepccedilatildeo de fenomenologia eacute uma via meacutedia entre esses dois escolhos como

pensar segundo a sua natureza e em cada uma de suas nuanccedilas ndash e portanto sem

jamais ultrapassaacute-los ndash os dados da experiecircncia em sua totalidade Todo o

fenocircmeno e nada mais que o fenocircmeno poder-se-ia dizer O postulado que funda

tal empresa eacute que o fenocircmeno estaacute penetrado no pensamento de logos e que por

sua vez o logos se expotildee e soacute se expotildee no fenocircmeno Apenas sob essa condiccedilatildeo

eacute possiacutevel uma fenocircmeno-logiardquo (DARTIGUES 1973p20)

Aluno de Brentano Husserl ainda radicaliza a teoria da intencionalidade de seu

professor e natildeo mais considera que a consciecircncia se dirija pelo ato intencional agraves

representaccedilotildees empiacutericas da consciecircncia mas agrave objetividade das proacuteprias coisas

detectaacutevel no ato expressivo Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas Husserl apresenta a consciecircncia

como sempre ldquovoltada ardquo ou seja como uma consciecircncia intencional superando natildeo soacute

a noccedilatildeo de consciecircncia como o lsquolugarrsquo das representaccedilotildees que devem ser organizadas por

15 Cf AbbagnoN 2003 p436 Nesse sentido tambeacutem Cf Heidegger 2006 pp26-27

37

exemplo por aparatos internos a priori como tambeacutem qualquer orientaccedilatildeo psicologista

do conhecimento Se a fenomenologia recorre agrave psicologia eacute apenas para a investigaccedilatildeo

descritiva das vivecircncias intencionais e a psicologia descritiva na medida em que se

configura como descriccedilatildeo empiacuterica (cientiacutefica-natural) natildeo pode ser confundida com a

fenomenologia Esta ao contraacuterio mesmo repousando sobre a investigaccedilatildeo descritiva das

vivecircncias intencionais estrato mesmo da psicologia ainda assim possui como

particularidade a descriccedilatildeo pura excluindo qualquer concepccedilatildeo naturalista16

Mas afinal do que se trata nesta ldquodescriccedilatildeo purardquo Eacute na atividade compreensiva em

geral (descriccedilatildeo das vivecircncias intencionais) que Husserl buscaraacute a origem do

conhecimento na anaacutelise dos atos de constituiccedilatildeo de conhecimento dos objetos que ele

vai procurar descrever os movimentos ideais implicados em todo movimento intencional

As investigaccedilotildees gnosioloacutegicas da loacutegica pura expostas nas Investigaccedilotildees loacutegicas

querem lanccedilar as bases e fundamentos seguros como alternativas agraves teorias do

conhecimento empiristas ceacuteticas metafiacutesico-realista e psicologista pretendendo

fundamentar uma verdadeira teoria do conhecimento a partir da filosofia puramente

cientiacutefica Essa anaacutelise se realiza a partir das expressotildees levando em consideraccedilatildeo o

aspecto loacutegico da vivecircncia

ldquoA Fenomenologia analiacutetica de que o loacutegico necessita para os seus trabalhos de

preparaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo diz respeito entre outras coisas e desde logo agraves

lsquorepresentaccedilotildeesrsquo e mais precisamente agraves representaccedilotildees que satildeo expressas

Nestas complexotildees poreacutem o seu interesse primaacuterio vai para as vivecircncias que

estatildeo na funccedilatildeo de significaccedilatildeo as quais se pensam agraves lsquosimplesrsquo expressotildees No

entanto natildeo se pode descurar tambeacutem o lado linguiacutestico-sensiacutevel da complexatildeo

(aquilo que nela constitui a lsquosimplesrsquo expressatildeo) e o modo do seu entrelaccedilamento

com o ato de significar que o anima Eacute bem sabido quatildeo facilmente a anaacutelise das

significaccedilotildees costuma deixar-se guiar pela anaacutelise gramatical de um modo

completamente inadvertido Certamente que dada a dificuldade da anaacutelise direta

das significaccedilotildees seraacute bem-vindo todo e qualquer meio mesmo que imperfeito

de antecipar indiretamente os seus resultados [as significaccedilotildees que o anima] mas

mais ainda que por causa dessa ajuda positiva a anaacutelise gramatical torna-se

importante pelos enganos que traz consigo quando se substitui agrave anaacutelise

propriamente ditas das significaccedilotildeesrdquo (HUSSERL 2012p11)

16 Cf HusserlE Investigaccedilotildees Loacutegicas VolII Introduccedilatildeo sect 6- Aditamentos ndash 3ordm Aditamento

38

A anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a complexidade da vida

intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo eacute possiacutevel a partir da anaacutelise das estruturas

ideais que se apresentam nas vivecircncias da consciecircncia na forma das expressotildees

significativas E se ldquoos objetos para os quais a Loacutegica pura estaacute voltada satildeo desde logo

dados sob vestes gramaticaisrdquo (HUSSERL 2012p3) eacute porque esses dados satildeo embutidos

nas vivecircncias psiacutequicas concretas que ldquotanto em funccedilatildeo de intenccedilatildeo de significaccedilatildeo como

na do preenchimento de significaccedilatildeo () correspondem a certas expressotildees linguiacutesticas

e formam com elas uma unidade fenomenoloacutegicardquo (HUSSERL 2012p3)

O que estaacute em jogo como tarefa da fenomenologia eacute - a partir da unidade entre

intuiccedilatildeo (atividade da consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da

consciecircncia e o preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor

a unidade fenomenoloacutegica desses atos apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo

e preenchimento de significaccedilatildeo para assim encontrar suas distinccedilotildees ideais presentes na

significaccedilatildeo

ldquoDe fato sempre que se trata de conceitos juiacutezos raciociacutenios a Loacutegica pura tem

que ver exclusivamente com estas unidades ideais que denominamos aqui

significaccedilotildees e na medida em que nos esforccedilamos por extrair a essecircncia ideal das

significaccedilotildees dos seus viacutenculos psicoloacutegicos e gramaticais na medida em que

para aleacutem disso temos em vista clarificar as relaccedilotildees aprioriacutesticas de adequaccedilatildeo

agrave objetividade significativa fundadas nessa essecircncia estamos jaacute no domiacutenio da

Loacutegica purardquo(HUSSERL 2012p76)

Enquanto as ciecircncias se movem em direccedilatildeo agraves vaacuterias regiotildees de objetos na

tentativa de compreensatildeo da realidade do mundo Husserl compreende a orientaccedilatildeo

filosoacutefica como investigaccedilatildeo da possibilidade do conhecimento objetivo E nesse sentido

a filosofia de Husserl permanece nos limites de uma criacutetica ao conhecimento

transcendental sem que seu meacutetodo se comprometa com qualquer perspectiva ontoloacutegica

Natildeo porque negue a realidade externa mas porque a reflexatildeo fenomenoloacutegica segundo

Husserl deveria estar direcionada agrave anaacutelise das unidades significativas (Investigaccedilotildees

loacutegicas) e agrave descriccedilatildeo eideacutetica da consciecircncia (Ideacuteias) com o compromisso de esclarecer

a vivecircncia intencional de forma que assim fosse possiacutevel esclarecer as operaccedilotildees de toda

e qualquer consciecircncia inclusive nossa orientaccedilatildeo preacute-reflexiva natural

O vigor da ideia filosoacutefica de ciecircncia tal como elaborada por Husserl residia na

restriccedilatildeo da investigaccedilatildeo agrave coisa mesma A fenomenologia husserliana se restringiu agraves

39

coisas enquanto somos conscientes delas Portanto sem remeter-se ao primado da

autoconsciecircncia da filosofia moderna ela rompeu com a ideia de representaccedilatildeo e por

consequecircncia de adequaccedilatildeo Pois a consideraccedilatildeo a priori da consciecircncia de um sujeito no

modo de questionamento epistemoloacutegico moderno tradicional trazia consigo um

problema inerente a esta pressuposiccedilatildeo a saber a representaccedilatildeo dos elementos externos

pelo aparato interno do sujeito devia ser a cada vez avaliada em sua validade

epistemoloacutegica em sua adequaccedilatildeo agrave consciecircncia Esse problema derivado da

representaccedilatildeo eacute consequecircncia do modo de considerar o sujeito como outro frente ao

mundo A consequecircncia dessa cisatildeo eacute que as representaccedilotildees internas natildeo seriam

suficientes para confirmar a existecircncia do mundo exterior e incapazes de fornecer

elementos conclusivos acerca dos modos de acesso a esse mundo

Husserl aprendeu com Brentano a atitude de recusa a todo e qualquer pressuposto

Mesmo Brentano considerando as representaccedilotildees como uma das bases da atuaccedilatildeo

psiacutequica indica que ldquoa estrutura baacutesica do psiacutequico o que a toda vivecircncia seja inerente

algo objetual a denomina Brentano inexistecircncia intencional Intentio eacute uma expressatildeo

da escolaacutestica que significa dirigir-se a Brentano fala da inexistecircncia intencional do

objetordquo (HEIDEGGER 2006 p39) Nesse sentido a intencionalidade na fenomenologia

husserliana voltada agrave anaacutelise expressiva e natildeo agraves representaccedilotildees torna a questatildeo do

mundo interior ou exterior secundaacuteria O que estaacute em jogo eacute a orientaccedilatildeo da pesquisa pela

condiccedilatildeo do conhecimento que natildeo exclui o mundo e as orientaccedilotildees naturais A suspensatildeo

do mundo exterior na orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica deve-se ao fato de que nesse tipo de

investigaccedilatildeo natildeo se tem nada a dizer sobre ele E nesse sentido a fenomenologia

husserliana que oferece um novo vigor a filosofia do final do seacuteculo XIX apresenta

tambeacutem seu proacuteprio limite

ldquoEm verdade aquela ideia do conhecimento da essecircncia que deveria renovar o

campo do filosofar aquela anaacutelise descritiva do acircmbito imenso da lsquoconsciecircnciarsquo

que teria de anteceder todo conhecimento cientiacutefico e conter todos os seus

pressupostos a priori tinha um limite para aleacutem do qual nem mesmo a

fenomenologia poderia ultrapassar Mesmo um conhecimento fenomenoloacutegico

consumado de todas as essencialidades- dentre as quais tambeacutem se encontram no

campo moral o reino dos lsquovalores ndash natildeo poderia atingir a realidade efetiva do ente

efetivamente real a realidade efetiva da consciecircncia pensante tanto quanto a

realidade efetiva da experiecircncia que ela faz Por mais que a distinccedilatildeo entre o fato

e a essecircncia tenha demarcado o grande campo de pesquisa da fenomenologia ante

as ciecircncias particulares e liberado um trabalho metodologicamente

autoconsciente a factualidade do factual a facticidade a existecircncia natildeo se mostra

40

apenas como algo derradeiro tardio contingente determinado em termos de

conteuacutedo pela intelecccedilatildeo da essecircncia e abarcado segundo toda a sua determinaccedilatildeo

por ela Ao contraacuterio elas tambeacutem se mostram como algo primeiro algo que se

acha agrave base que natildeo pode ser alijado pelo pensamento que suporta por sua vez

todas as intelecccedilotildees da essecircnciardquo (GADAMER 2012p148)

A reduccedilatildeo fenomenoloacutegica natildeo visa reconduzir os fenocircmenos agrave unidade de um

elemento comum mas reconduzir a consciecircncia aos fenocircmenos que se datildeo por si mesmos

e na medida que assim o faz reconhece a existecircncia da base factual na qual o fenocircmeno

pode vir agrave consciecircncia e como um elefante na sala de estar natildeo pode mais ser ignorada

Em outras palavras a investigaccedilatildeo loacutegica o acesso agrave idealidade loacutegica de toda

significaccedilatildeo baseada - mas natildeo reduzida ndash nos atos das vivecircncias psiacutequicas concretas

aponta em uacuteltima instacircncia (mesmo na tentativa de desvio dessa situaccedilatildeo) para o caraacuteter

histoacuterico ou ocasional daquele que pode intencionar significaccedilotildees Mas Husserl natildeo havia

reconhecido esse problema ao diferenciar as expressotildees flutuantes das significaccedilotildees

ideais jaacute na primeira investigaccedilatildeo loacutegica17 O problema neste caso como aponta

Gadamer estaacute exatamente no agente do ato de pensamento pois a base que natildeo pode ser

afastada e que suporta as intelecccedilotildees da essecircncia estaacute necessariamente remetida agravequele

que na accedilatildeo do ato de intelecccedilatildeo eacute finito e histoacuterico ou seja a direccedilatildeo puramente teoacuterica

da fenomenologia de Husserl natildeo deixa de apontar a condiccedilatildeo histoacuterica daquele que pode

realizar qualquer teoria elemento que vai se tornar decisivo para a fenomenologia de

Heidegger

ldquoA doutrina do juiacutezo e de sua fundamentaccedilatildeo a anaacutelise claacutessica da percepccedilatildeo a

distinccedilatildeo loacutegica entre expressatildeo e significado mas sobretudo tambeacutem aquela

17 No sect26 da I Investigaccedilatildeo Loacutegica ldquoExpressotildees essencialmente ocasionais e expressotildees objetivasrdquo

Husserl analisa significaccedilotildees que podem variar de caso a caso ou significaccedilotildees variantes Ele diferencia as

ldquoexpressotildees essencialmente subjetivas e ocasionaisrdquo (por exemplo ldquoeu desejo sorte a vocecircrdquo ou ldquoisto [aqui

que vejo agora] eacute um catildeordquo) das ldquoexpressotildees objetivasrdquo nas quais o que estaacute em questatildeo eacute o teor sonoro

significativo sem necessidade de se ter agrave vista a pessoa que expressa ou a circunstacircncia da expressatildeo Desde

os paraacutegrafos iniciais da primeira investigaccedilatildeo Husserl se preocupa em indicar que a palavra possui ldquofunccedilatildeo

de significaccedilatildeordquo isso quer dizer que a significaccedilatildeo natildeo eacute sustentada pela palavra mas que ela remete a

significaccedilatildeo agrave coisa mesma e nesse sentido para Husserl a ocasionalidade da expressatildeo natildeo prejudica a

unidade ideal de cada uma das expressotildees Contudo o autor natildeo deixa de reconhecer a esfera das expressotildees

ocasionais referidas ao sujeito e sua especificidade como falante identificadas por determinaccedilotildees como

aqui laacute ontem amanhatilde e ainda construccedilotildees expressivas com artigos definidos Essas expressotildees trazem a

referecircncia ao proacuteprio falante e agrave sua situaccedilatildeo ldquode tal maneira que a significaccedilatildeo autecircntica da palavra se

constitui pela primeira vez com base na respectiva representaccedilatildeo desse lugar Por um lado a significaccedilatildeo

eacute sem duacutevida genericamente conceitual porquanto aqui denomina em geral um lugar enquanto tal mas

a este geral junta-se a representaccedilatildeo direta do lugar variando de caso para caso que sob dadas

circunstacircncias do discurso eacute apontada atraveacutes desta representaccedilatildeo conceitual indicativa do aqui e lhe estaacute

subordinadardquo (HUSSERL 2012 p71)

41

descriccedilatildeo incomparavelmente exata e penetrante da consciecircncia interna do tempo

na qual precisaria se construir todo sentido de duraccedilatildeo e de validade atemporal ndash

todos esses eram temas fenomenoloacutegicos de Husserl que emergiram de um

intuito fundamental puramente teoacuterico e que estavam cindidos por um hiato

ontoloacutegico do ponto de partida de Heidegger da experiecircncia pragmaacutetica da vida

da percepccedilatildeo dirigida pelo significado praacutetico do ente agrave matildeo da temporalidade

do ser-aiacute a temporalidade essa que se tomava como movimento da

existecircnciardquo(GADAMER 2012 p154)

Desse modo Heidegger busca um acesso agrave mostraccedilatildeo dos fenocircmenos a partir da

temporalidade existencial do homem e assim compreender como a significaccedilatildeo de todo

e qualquer ente estaacute remetida agrave facticidade (Faktizitaumlt) daquele ente em que algo como

um fenocircmeno pode vir ao encontro

A partir desta breve apresentaccedilatildeo vamos investigar no proacuteximo capiacutetulo (1) A

criacutetica feita por Heidegger a essas trecircs tentativas de superaccedilatildeo da crise da filosofia no

seacuteculo XIX a) a posiccedilatildeo essencialmente teoacuterica da filosofia dos valores e sua

impossibilidade de se apresentar como filosofia originaacuteria b) ao primado da consciecircncia

em Husserl c) a determinaccedilatildeo metodoloacutegica (teoacuterica) da hermenecircutica de Dilthey

Tentaremos compreender (2) como essa problemaacutetica da virada do seacuteculo XIX para o

seacuteculo XX forneceu os princiacutepios que motivaram o pensamento heideggeriano agrave busca

da filosofia como ciecircncia originaacuteria e a partir da anaacutelise dos limites das ditas teorias a

questatildeo do sentido do conhecimento se mostra articulada com outra questatildeo ainda mais

fundamental o sentido do ser e (3) como a recepccedilatildeo da fenomenologia de Husserl por

Heidegger - considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio do meacutetodo fenomenoloacutegico

como indicativo-formal - evidencia a imersatildeo de todo significado em um contexto

hermenecircutico historicamente dado

42

Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica

Mas a vida captada em sua forma irredutiacutevel jaacute sem ornato ou comentaacuterio meloacutedico vida a que aspiramos como paz no cansaccedilo (natildeo a morte) vida miacutenima essencial um iniacutecio um sono

menos que terra sem calor sem ciecircncia nem ironia o que se possa desejar de menos cruel a vida em que o ar natildeo respirado mas me envolva () Natildeo o morto nem o eterno ou o divino apenas o vivo o pequenino calado indiferente e solitaacuterio vivo Isso eu procuro (Vida Menor Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

No capiacutetulo anterior indicamos que o desenvolvimento das ciecircncias positivas

particulares no final do seacuteculo XIX emerge a discussatildeo acerca do sentido e possibilidade

do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo buscou uma filosofia

propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana a autonomia da filosofia

frente agrave ciecircncia positiva E a contribuiccedilatildeo de Dilthey cujo pensamento mesmo imerso

nas exigecircncias positivistas de seu tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda

interpretaccedilatildeo e apresenta o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico

Acreditamos que percorrendo esse caminho podemos compreender no presente capiacutetulo

como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere Heidegger no interior da referida

discussatildeo pelo sentido do conhecimento18 Mas ao mesmo tempo tentaremos mostrar

18 A inserccedilatildeo de Heidegger na discussatildeo pelo sentido do conhecimento que apontamos aqui eacute diferente da

proposta de Crowell (2001) Grosso modo o argumento central de Crowell que atravessa todo o livro eacute a

negaccedilatildeo de uma ruptura radical da abordagem hermenecircutica de Heidegger ndash inclusive no projeto da

ontologia fundamental de Ser e Tempo - frente agrave fenomenologia transcendental de Husserl Crowell

reconhece que os dois projetos natildeo satildeo idecircnticos no entanto no interior do desenvolvimento de seu

pensamento Heidegger teria dado certa continuidade ao projeto husserliano na medida em que ainda pensa

no caraacuteter cientiacutefico da filosofia fenomenoloacutegica (ver pp 129-132) Nossa intenccedilatildeo natildeo eacute travar uma

polecircmica com Crowell pois perderiacuteamos a centralidade do tema de nossa dissertaccedilatildeo Sobre aquele tema

mais especiacutefico conferir tambeacutem Gadamer Verdade e Meacutetodo [260] que faz referecircncia a ele dizendo que

a problemaacutetica de Ser e Tempo natildeo escapa por completo agrave reflexatildeo transcendental Natildeo temos duacutevida de

que Heidegger estaacute comprometido com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do sentido do

conhecimento na medida em que teve profundo contato natildeo soacute com o pensamento neokantiano ndash sobretudo

atraveacutes de Rickert - mas tambeacutem com a fenomenologia de Husserl Ora ambas as correntes estavam

43

como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva (considerando o modo de concepccedilatildeo

originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal) e a introduccedilatildeo do elemento

hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com Heidegger a pergunta

fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do conhecimento e passou a

ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto o argumento central de

nosso segundo capiacutetulo eacute que a abordagem hermenecircutica de Heidegger que se daacute no

interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do

conhecimento ao sentido do ser

Aqui nos eacute necessaacuteria uma breve consideraccedilatildeo Eacute puacuteblica a preocupaccedilatildeo filosoacutefica

de Heidegger com a ontologia jaacute desde seu contato com o livro de Brentano Percurso

descrito pelo proacuteprio autor em Meu caminho para a fenomenologia (Mein Weg in die

Phaumlnomenologie 1963)

ldquoA partir de algumas indicaccedilotildees extraiacutedas de revistas filosoacuteficas tinha averiguado

que o modo de pensar de Husserl fora bastante influenciado por Franz Brentano

cuja tese de doutoramento intitulada Da muacuteltipla significaccedilatildeo do ente em

Aristoacuteteles (1862) tinha sido justamente desde 1907 o guia e o criteacuterio das

minhas primeiras e desajeitadas tentativas de penetrar na filosofia De uma forma

bastante imprecisa o que me movia era a seguinte reflexatildeo lsquose o ente se diz com

significados muacuteltiplos qual seraacute entatildeo o significado fundamental e condutor O

que significa serrsquordquo (HEIDEGGER 2009 p3)

Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido

de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a

teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo

do sentido de ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir

da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para

uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no

curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER (GA20) 2006 p122)19

o elemento hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave

profundamente engajadas com o problema do conhecimento Nosso argumento central ndash defendido no

primeiro capiacutetulo ndash eacute o de que acontece uma virada A abordagem hermenecircutica de Heidegger faz mudar

a questatildeo pelo sentido do conhecimento para a questatildeo do sentido do ser dos entes em geral Revelando

assim o caraacuteter derivado (de uma situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento Cf STEIN E

2008 4ed pp21-30 19 ldquoLa pregunta por el ser surge de la criacutetica inmanente al curso da la propia investigacioacuten

fenomenoloacutegicaresponder en parte a ella constituye el verdadeiro assunto de estas leccionesrdquo opcit p122

44

fenomenologia que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos

fenocircmenos em seu ser Seraacute essa a direccedilatildeo de nosso capiacutetulo

Nele ainda natildeo entraremos na obra central de nosso trabalho abordaremos algumas

preleccedilotildees entre os anos de 1919 e 192520 para expor como a partir da discussatildeo acerca

do sentido do conhecimento e do lugar proacuteprio agrave filosofia Heidegger se posiciona frente

agraves tentativas de pensamento dos Neokantianos de Dilthey e de Husserl Nossa intenccedilatildeo

natildeo eacute interpretar as referidas preleccedilotildees como processos evolutivos de pensamento de

nosso autor como que para esclarecer em termos de causa e efeito a publicaccedilatildeo posterior

ldquomais madurardquo de Ser e Tempo Mas antes destacar como as questotildees desses textos

acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a problemaacutetica cujo

desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927

I - Os limites da filosofia dos valores

No primeiro semestre do poacutes-guerra num contexto de recuperaccedilatildeo da

normalidade da vida cotidiana que obviamente se estendia ao ensino universitaacuterio ocorre

a preleccedilatildeo A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo (GA5657) tiacutetulo

uma das primeiras liccedilotildees do jovem professor em Friburgo em 1919 as quais pretendiam

desenvolver e solucionar parcialmente a ideia de ciecircncia que persegue uma posiccedilatildeo

metodoloacutegica genuiacutena natildeo desfigurada ou seja natildeo afetada por nenhuma teoria e livre

dos prejuiacutezos herdados Para tanto exigia-se voltar agrave esfera da simples consciecircncia

imediata da vida

ldquoA ideia cientiacutefica perseguida eacute tal que uma vez alcanccedilada uma posiccedilatildeo

metodoloacutegica verdadeiramente genuiacutena somos forccedilados a sair e dar um passo

aleacutem de noacutes mesmos para voltar metodologicamente naquela esfera que sempre

permanece alheia a problemaacutetica da ciecircncia que se pretende fundarrdquo21

(HEIDEGGER (GA5657) 2005p 3)

20 HEIDEGGER GA17 GA 61 GA63 GA 5657 e GA62 As traduccedilotildees utilizadas encontram-se na

bibliografia ao final do trabalho 21 ldquoLa idea cientiacutefica que se persigue es de tal naturaleza que una vez alcanzamos una posicioacuten

metodoloacutegica realmente genuina nos vemos obligados a salir y dar un paso maacutes allaacute de nosotros mismos

para volver metodoloacutegicamente sobre aquella esfera que siempre permanece extrantildea a la problemaacutetica maacutes

propia de la ciencia que se pretende fundarrdquo Opcitp3

45

Essa transformaccedilatildeo do meacutetodo natildeo eacute algo arbitraacuterio ou advindo de uma posiccedilatildeo

filosoacutefica mas ldquose evidencia como uma necessidade que se funda na natureza objetiva do

problema como tal e que responde agrave especiacutefica constituiccedilatildeo dos problemas da ciecircncia em

geralrdquo22 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p3) A ciecircncia e seus modelos teoacutericos

irrompem na consciecircncia imediata da vida e a transformam na medida em que trazem

uma nova atitude da consciecircncia a qual se desenvolve no caraacuteter dinacircmico e moacutevel da

vida do espiacuterito ldquoContudo essa irrupccedilatildeo da ideia de ciecircncia no contexto da consciecircncia

natural da vida soacute se daacute em um sentido primordial e radical no marco de uma filosofia

entendida nos termos de ciecircncia originaacuteriardquo23 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p4)

Aqui eacute possiacutevel observar natildeo apenas o mesmo vocabulaacuterio husserliano mas

tambeacutem a mesma tarefa reconduzir a filosofia ao seu lugar de ciecircncia originaacuteria

diferenciando-se dos outros tipos de ciecircncias (biologia fiacutesica psicologia histoacuteria

antropologia etc) Como indica Jeacutesus Adriaacuten Escudero em sua nota de apresentaccedilatildeo agrave

traduccedilatildeo no texto de 1919 eacute possiacutevel observar a linguagem filosoacutefica dos Neokantianos

de Baden (Windelband e Rickert) de Natorp a linguagem fenomenoloacutegica de Husserl e

talvez as primeiras formulaccedilotildees de uma linguagem proacutepria por exemplo Welten

(mundiar) ou das Wie (O como) Mas para noacutes o decisivo eacute notar que se os princiacutepios

que motivam essa investigaccedilatildeo inserem Heidegger no debate de sua eacutepoca (no contexto

da busca de uma filosofia propriamente cientiacutefica) poreacutem no curso de seu pensamento e

na anaacutelise das posiccedilotildees filosoacuteficas que intentam o mesmo objetivo a abordagem da

filosofia como ciecircncia originaacuteria recoloca a problemaacutetica no aspecto propriamente

hermenecircutico e natildeo teoacuterico da vida Se a filosofia eacute ciecircncia originaacuteria eacute a partir desse

aspecto primaacuterio que ela deve se movimentar

Em A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo o modo de

reconduccedilatildeo a essa originariedade jaacute natildeo obedeceraacute aos mesmos moldes da fenomenologia

husserliana Jaacute nessa primeira liccedilatildeo Heidegger nos propotildee uma reconduccedilatildeo da filosofia

(ao seu lugar basilar de toda e qualquer ciecircncia teoacuterica e derivada) que eacute a reconduccedilatildeo agrave

22 ldquomaacutes bien se evidenciaraacute como una necesidad que se funda en la naturaleza objetiva del problema como

tal y que responde a la especiacutefica constitucioacuten de los problemas de la ciencia en generalrdquo Op cit p3 23 ldquoSin embargo esta irrupcioacuten de la idea de ciencia en el contexto de la conciencia natural de la vida soacutelo

se da en un sentido primordial y radical en el marco de una filosofiacutea entendida en teacuterminos de ciencia

originariardquo Opcitp4

46

vida humana na sua imediatidade como fenocircmeno primaacuterio e fundamental Mesmo que

natildeo estejam aiacute desenvolvidas eacute claro as posiccedilotildees de Ser e Tempo como por exemplo o

ldquoser-em-o mundo em geral como constituiccedilatildeo fundamental do Daseinrdquo teses expostas e

desenvolvidas principalmente nos sect12 e 13 da obra de 1927 jaacute era possiacutevel encontrar

alguns elementos da hermenecircutica da facticidade Em 1919 a direccedilatildeo dada a uma filosofia

era a de que devia ocupar-se da vida e assim a proacutepria renovaccedilatildeo da universidade naquele

contexto de reconstruccedilatildeo do poacutes-guerra ldquoimplica[va] um renascimento da autecircntica

consciecircncia cientiacutefica e de seus laccedilos com a vidardquo24 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p

5) Indicaccedilatildeo que se articula com as liccedilotildees posteriores do autor mas que ganha seu

esclarecimento radical em 1923 no Relatoacuterio Natorp na medida em que a apropriaccedilatildeo da

filosofia aristoteacutelica por Heidegger mostra que a vivecircncia e sua relaccedilatildeo de sentido com

todo ente ocorre na ocupaccedilatildeo praacutetica como condiccedilatildeo primaacuteria de conhecimento com o

mundo condiccedilatildeo essa que coincide com a situaccedilatildeo hermenecircutica de toda ontologia

Antes de expormos as linhas gerais do desenvolvimento do texto eacute necessaacuterio

tentar esclarecer o que Heidegger quer dizer com a expressatildeo ldquoconcepccedilatildeo de mundordquo

(Weltanschauung) Para a filosofia segundo nosso autor visatildeo de mundo cosmovisatildeo

ou concepccedilatildeo de mundo natildeo satildeo termos que funcionam como uma direccedilatildeo de

comportamento no interior do mundo direccedilatildeo essa justificada desenvolvida e capaz de

orientar os seres humanos Tambeacutem natildeo oferecem uma visatildeo teoacuterica geral da histoacuteria e

da realidade a partir da qual as ciecircncias pudessem desenvolver-se Assumindo uma

perspectiva bem geral esses satildeo os problemas das filosofias de Windelband e Rickert (e

em certa medida tambeacutem os de Dilthey) contra os quais Heidegger vai se opor nessa

liccedilatildeo Pois o que aiacute estaacute em jogo natildeo eacute a postulaccedilatildeo teoacuterica do que eacute a vida histoacuterica mas

a compreensatildeo do acircmbito fundamental da realidade imediata da vida que proporciona

algo como ldquovisatildeo de mundordquo E desse modo a relaccedilatildeo entre ldquofilosofiardquo e o ldquoproblema

da concepccedilatildeo de mundordquo na conjunccedilatildeo expressa ldquoerdquo natildeo significa a relaccedilatildeo de duas

esferas diferentes mas sim o mesmo acircmbito pois a concepccedilatildeo de mundo potildee em

evidecircncia a natureza e a busca da filosofia ldquoconcepccedilatildeo de mundo como tarefa da

24 ldquoLa renovacioacuten de la universidad implica un renacimiento de la auteacutentica conciencia cientiacutefica y de sus

lazos con la vidardquo Opcitp5

47

filosofia quer dizer uma consideraccedilatildeo histoacuterica da maneira em que a filosofia resolveu

em cada caso esta tarefardquo25 (HEIDEGGER (GA5657) 2005p9)

Como sugere a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Heidegger considera que a

fundamentaccedilatildeo sem preconceitos da filosofia como ciecircncia originaacuteria deve desenvolver-

se a partir de um processo metodoloacutegico ldquoA ideia de ciecircncia exige implicitamente um

desenvolvimento metodoloacutegico dos problemas e nos coloca a tarefa da explicaccedilatildeo

preliminar do verdadeiro problema [que nos ocupa]26rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005

p6) Essa explicaccedilatildeo se desenvolve natildeo como hipoacutetese a ser demonstrada mas a partir

da anaacutelise das filosofias precedentes e de suas preconcepccedilotildees que podem distorcer o tema

da investigaccedilatildeo como elas se aproximaram da vida e como se relacionam com a noccedilatildeo

de ciecircncia

Como mostramos anteriormente jaacute na escola de Baden influenciado pela filosofia

dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade dos juiacutezos

cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de conciliar

ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) Para a escola de Baden as

leis naturais levam agrave explicaccedilatildeo mas eacute a norma de um valor ideal a condiccedilatildeo de um

pensamento verdadeiro Rickert retoma as consideraccedilotildees de Windelband e potildee o

problema em uma base filosoacutefica radical como instrumento metodoloacutegico Entre os sectsect

de 6 e 9 do texto A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo jaacute esboccedilando

algumas consequecircncias problemaacuteticas Heidegger expotildee os elementos principais das

teorias desses autores E se pergunta se aquele meacutetodo que tem a pretensatildeo de clarificar

a relaccedilatildeo entre filosofia e visatildeo de mundo poderia se tornar um meacutetodo seguro para a

realizaccedilatildeo da filosofia como ciecircncia originaacuteria A partir do sect 10 Heidegger inicia a criacutetica

propriamente dita ao meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico do Neokantismo de Baden Um dos alvos

de sua investigaccedilatildeo foi como a ldquodoaccedilatildeo idealrdquo elemento central do meacutetodo na medida

em que eacute o conteuacutedo com pretensatildeo de necessidade e universalidade dos juiacutezos acaba por

revelar o desconhecimento da problemaacutetica acerca da ciecircncia originaacuteria por essa escola

Para tanto Heidegger faz ldquoa pergunta decisiva quais satildeo as formas e normas necessaacuterias

25 ldquoConcepcioacuten del mundo como tarea de la filosofiacutea es decir una consideracioacuten histoacuterica de la manera en

que la filosofiacutea ha resuelto en cada caso esta tareardquo Opcitp9 26 ldquoLa idea de ciencia exige impliacutecitamente un desarrollo metodoloacutegico de los problemas y nos plantea la

tarea de una explicacioacuten preliminar del verdadero problema [que nos ocupa]rdquo Opcit p6

48

que permitem ao pensamento alcanccedilar a validez universal e assim cumprir o propoacutesito

da verdade27rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p50)

A anaacutelise eacute feita em dois momentos a) Consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo b)

aplicaccedilatildeo do meacutetodo

Para a consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo o importante eacute delinear o aspecto

fundamental que sustenta seus paracircmetros Heidegger aponta que para a escola de Baden

as determinaccedilotildees necessaacuterias do pensamento satildeo aquelas que configuram o pensamento

agrave finalidade ideal (validez universal) como condiccedilatildeo de verdade pois o pensamento com

valor deve responder a um dever-ser Pois bem de posse desse elemento basilar eacute na

aplicaccedilatildeo do meacutetodo que se revelaratildeo os problemas

A aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico consiste em a partir do material

fornecido pelos processos psiacutequicos dirigir a visatildeo ao aspecto ideal do pensamento e a

partir daiacute determinando o proacuteprio material ordenando seus elementos em funccedilatildeo de seu

aspecto ideal Portanto ldquoO nuacutecleo de todo o meacutetodo baseia-se no ideal do pensamento

mais precisamente em trazer agrave presenccedila a doaccedilatildeo do ideal28rdquo (HEIDEGGER (GA5657)

2005 p51) Em suma o ideal eacute normativo e dirige a consciecircncia agrave finalidade do

pensamento

ldquoEstamos aqui perante o mesmo problema da circularidade O meacutetodo criacutetico-

teleoloacutegico afirmaria poder determinar o ideal do pensamento isto eacute a verdade

a partir dos pensamentos verdadeiros no entanto o que tenho ante mim satildeo

pensamentos verdadeiros (ocorrecircncias factuais no mundo) mas natildeo a verdade

pois esta eacute um ideal Por outro lado para ter pensamentos verdadeiros ante mim

eu preciso selecionar entre os pensamentos aqueles que satildeo verdadeiros o que

novamente eu soacute posso fazer se jaacute tenho de antematildeo o ideal a verdaderdquo

(RABELO 2013 p28)

A partir daiacute em seu estilo muitas vezes categoacuterico Heidegger demonstra ser

supeacuterfluo o sentido do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e o acusa de em uacuteltima instacircncia nem

mesmo conseguir esclarecer seus pressupostos deixando obscuras questotildees como ldquoa

doaccedilatildeo ideal possibilita uma relaccedilatildeo de apreciaccedilatildeo e de seleccedilatildeo com o material dado mas

27 ldquoAhora surge la pregunta decisiva iquestcuaacuteles son las formas y normas necesarias que permiten al

pensamiento alcanzar la validez universal y cumplir asiacute con el fin de la verdadrdquo Opcitp50

28 ldquoEl nuacutecleo de todo el meacutetodo descansa en el ideal del pensamiento con mayor precisioacuten en traer a la

presencia la donacioacuten del idealrdquo Opcitp51

49

como trago agrave minha consciecircncia o ideal de pensamentordquo ldquoo que significa validez

universal para esse pensamentordquo ldquoO que significa ser verdadeiro para o pensamento

para que ele seja universalmente vaacutelidordquo Nas palavras de nosso autor

ldquoA anaacutelise estrutural do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico mostra que este meacutetodo

pressupotildee em seu sentido mais proacuteprio e como condiccedilatildeo de sua proacutepria

possibilidade justamente aquilo que deve alcanccedilar Natildeo pode encontrar em si

mesmo seu proacuteprio fundamento posto que o ideal jaacute tem que estar dado como

criteacuterio de valoraccedilatildeo criacutetica da norma para levar a cabo a tarefa impliacutecita no

meacutetodordquo29 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p52)

Se a anaacutelise da natureza e aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico fizeram

despontar a primeira criacutetica acerca de sua impossibilidade Heidegger aprofunda sua

criacutetica tendo em vista o aspecto central de sua liccedilatildeo E portanto aponta o

desconhecimento acerca da problemaacutetica da ciecircncia originaacuteria por essa escola

ldquoJaacute vimos que o movimento do meacutetodo mais exatamente a implementaccedilatildeo do

mesmo inclui o ter presente o ideal o fim o dever-ser O ideal tem

evidentemente um conteuacutedo umas determinaccedilotildees substantivas Contudo eacute um

ideal natildeo eacute um conteuacutedo real e efetivo senatildeo um modo de dever-ser Frente a

todo ser o caraacuteter de obrigatoriedade [inerente ao dever-ser] encerra o momento

da idealidade e da validez supra-empiacuterica Assim pois o conceito do meacutetodo

teleoloacutegico pressupotildee algo mais essencial e algo essencialmente diferente a

doaccedilatildeo do dever ser e se tratando do dever absoluto entatildeo falariacuteamos da

objetividade originaacuteriardquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p53)30

A partir da constataccedilatildeo dessas implicaccedilotildees do meacutetodo Heidegger pergunta qual

eacute o correlato objetivo do dever-ser Em outras palavras qual sua orientaccedilatildeo vital Isso

permanece obscuro e mais ainda que a inclusatildeo do elemento do dever-ser no meacutetodo

aparentemente natildeo se mostre como um vieacutes meramente teoacuterico (na medida em que se

29 ldquoEl anaacutelisis estructural del meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico muestra que este meacutetodo presupone en su sentido

maacutes propio y como condicioacuten de su propia posibilidad justamente aquello que debe conseguir No puede

encontrar en siacute mismo su propio fundamento puesto que el ideal ya tiene que estar dado como criterio de

valoracioacuten criacutetica de la norma para llevar a cabo la tarea impliacutecita en el meacutetodordquo Opcitp52 30 ldquoYa vimos que la puesta en marcha del meacutetodo maacutes exactamente la implementacioacuten del mismo incluye

el tener presente el ideal el fin el deber-ser El ideal tiene evidentemente un contenido unas

determinaciones sustantivas Sin embargo es un ideal no es un contenido real y efectivo sino un modo del

deber- ser Frente a todo ser el caraacutecter de obligatoriedad [inherente al deber-ser] encierra el momento de

la idealidad y de la validez supraempiacuterica Asiacute pues en el concepto del meacutetodo teleoloacutegico se presupone

algo esencialmente maacutes y algo esencialmente diferente la donacioacuten del deber-ser y si se tratara del deber

absoluto entonces hablariacuteamos de la objetualidad originariardquo Opcitp53

50

trata da razatildeo praacutetica) natildeo eacute possiacutevel responder agrave demanda necessaacuteria de uma ciecircncia

originaacuteria pois eacute inconciliaacutevel com a urgecircncia da vida faacutetica

Nesse sentido nos parece que na filosofia criacutetica-transcendental de Rickert o

acesso aos elementos decisivos do meacutetodo em uacuteltima instacircncia eacute realizado a partir das

teorias das ciecircncias positivas Entatildeo a filosofia estaacute obrigada a se posicionar frente agraves

teorias dessas ciecircncias e natildeo propriamente a partir da orientaccedilatildeo vital O

desconhecimento acerca da filosofia como ciecircncia originaacuteria se torna aqui patente pois

ao se revelar que satildeo as teorias dessas ciecircncias que fornecem os elementos para os juiacutezos

valorativos relacionados ao dever-ser a filosofia se torna delas dependente e parece nelas

encontrar ateacute mesmo sua condiccedilatildeo de possibilidade

Heidegger ainda aponta em sua criacutetica um problema que decorre da tentativa de

estabelecer uma relaccedilatildeo entre valor judicativo e dever-ser Para ele na vivecircncia imediata

da vida as relaccedilotildees valorativas natildeo encontram a menor correspondecircncia com o dever-ser

Ouccedilamos as suas palavras

ldquoPela manhatilde entro em meu estuacutedio o sol banha meus livros etc estou alegre

Esta alegria natildeo responde em nenhum caso a um dever-ser A lsquoalegriarsquo como tal

natildeo se oferece a mim em uma vivecircncia marcada pelo dever-ser Devo trabalhar

devo sair para uma caminhada duas motivaccedilotildees duas possiacuteveis razotildees que em

si mesmas natildeo formam parte de meu sentimento de alegria senatildeo que o

pressupotildee Existe portanto um tipo de vivecircncia em que me sinto alegre em que

me daacute algo que tem valor como talrdquo 31(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)

A experiecircncia do valor eacute intransitiva natildeo um juiacutezo mas em seu sentido imanente

ldquoo meacutetodo teleoloacutegico implica indubitavelmente o momento da vivecircncia do dever-serrdquo

(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)32

Ateacute agora o que foi analisado foi o significado do meacutetodo criacutetico- teleoloacutegico e

suas implicaccedilotildees que apontaram para a existecircncia de fenocircmenos mais originaacuterios que

passam desapercebidos aos defensores desse meacutetodo E se o meacutetodo loacutegico-teleoloacutegico

31 ldquoiquestPero se me da todo valor como un deber-ser Evidentemente no Yo experimento las relaciones

valorati- vas sin que intervenga el maacutes miacutenimo momento del deber-ser Por la mantildeana entro en mi estudio

el sol bantildea mis libros etceacutetera estoy alegre Esta alegriacutea no responde en ninguacuten caso a un deber-ser La

laquoalegriacutearaquo como tal no se me da en una vivencia marcada por el deber- ser Debo trabajar debo salir de

paseo dos motivaciones dos posibles razones que en siacute mismas no forman parte de mi sentimiento de

alegriacutea sino que lo pre-supo- nen Existe por tanto un tipo de vivencia en el que me siento alegre en el

que se me da algo que tiene valor como talrdquo Opcitp55 32 ldquoEl meacutetodo teleoloacutegico implica indudablemente el momento de la vivencia del deber-serrdquo Opcitp55

51

estabelece a relaccedilatildeo necessaacuteria entre valor e dever-ser acarretando todas as possiacuteveis

criacuteticas jaacute expostas Heidegger natildeo deixa de reconhecer

ldquoUma coisa eacute evidente Rickert detectou um fenocircmeno significativo quando

identificou o objeto do conhecimento como um dever-ser e o desvencilhou dos

mecanismos psiacutequicos o fenocircmeno da motivaccedilatildeo um fenocircmeno que encontra

seu significado primaacuterio tanto nos problemas do conhecimento como em outros

acircmbitos Uma coisa eacute declarar-algo-como-valor [Fuumlr-Wert-Erklaumlren] e outra

muito distinta eacute tomar-algo-por-um-valor [Wertnehmen] Este tomar-algo-como-

um-valor se pode caracterizar como um fenocircmeno originaacuterio como uma

constituiccedilatildeo da vida em si e para si no entanto o declarar-algo-como-um valor

foi visto como algo derivado algo fundado na esfera teoreacutetica e esse mesmo

fenocircmeno teoreacutetico eacute um elemento constitutivo da vida vivida em si mesma

Pressupotildee levantar o veacuteu teoreacutetico do caraacuteter valorativo como tal A estratificaccedilatildeo

precisa desse fenocircmeno natildeo nos interessa nesse momentordquo

(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p57)33

O que estaacute em jogo aqui eacute a relaccedilatildeo entre verdade e valor pois para Rickert

ldquodistinto do processo psiacutequico real uma ocorrecircncia natural que poderia ser tratada

causalmente destaca-se a legalidade ideal do pensar verdadeiro que se deve obedecer

uma vez que se queira o ideal da verdaderdquo (RABELO 2013 p26) Desse modo algo eacute

capaz de ser analisado como verdadeiro atraveacutes dos valores atribuiacutedos teoricamente

(atraveacutes da anaacutelise do juiacutezo) ao seu material Ou seja a verdade eacute garantida na anaacutelise

judicativa que declara-algo-como-valor Por exemplo a distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na

realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor (Wert) segundo Rickert levaria

a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo de conceitos (Begriffsbildung)

e que natildeo se trata de um conhecimento no campo ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto

pelo conceito determinado de maneira formal no espaccedilo loacutegico-axioloacutegico Portanto

ldquoUma coisa eacute ldquoexplicar por valorrdquo (fuumlr-Wert-erklaumlren) outra eacute ldquotomar-por-valorrdquo

(wertnehmen) O primeiro eacute uma construccedilatildeo teoreacutetica o segundo uma vivecircncia

Estaacute em jogo aqui uma diferenccedila que se insinua na liacutengua alematilde a partir da

33 ldquoRickert detectoacute un fenoacutemeno significativo cuando identificoacute el objeto del conocimiento como un deber-

ser y lo deslindoacute de los mecanismos psiacutequicos el fenoacutemeno de la motivacioacuten un fenoacutemeno que encuentra

su significado primario tanto en el problema del conocimiento como en otros aacutembitos Una cosa es declarar-

algo-como-un-valor [Fuumlr-Wert- Erklaumlren] y otra muy distinta tomar-algo-por-un-valor [Wertnehmen]

Este tomar-algo-por-un-valor se puede caracterizar como un fenoacutemeno originario como una constitucioacuten

de la vida en y para siacute en cambio el decla- rar-algo-como-un-valor se ha de ver como algo derivado como

algo fundado en la esfera teoreacutetica9 y ese mismo fenoacutemeno teoreacutetico es un elemento constitutivo de la vida

vivida en siacute misma Presupone levantar el velo teoreacutetico del caraacutecter valorativo como tal La estratificacioacuten

precisa de este fenoacutemeno no nos interesa en estos momentosrdquo Opcitp57 Essa estratificaccedilatildeo a qual

Heidegger se refere jaacute indica em suas primeiras liccedilotildees o desdobramento posterior acerca da criacutetica agrave

primazia que a filosofia oferece a teoria em detrimento da compreensatildeo praacutetica

52

expressatildeo perceber wahrnehmen literalmente tomar-por-verdadeiro No mesmo

sentido imediato em que aquilo que me aparece na percepccedilatildeo sensiacutevel eacute tomado

como estando aiacute ele mesmo sem a necessidade de uma reflexatildeo aqui quer-se

saber se algo vivenciado eacute no proacuteprio vivenciar tomado como algo valoroso se

eacute experienciado enquanto valoroso ou se posteriormente lhe eacute adicionada esta

referecircncia a valoresrdquo (RABELO 2013 p27)

Desse modo para Rickert verdade e valor judicativo (teoacuterico) se comungam mas

essa comunhatildeo para Heidegger natildeo passa de uma constituiccedilatildeo metodoloacutegica externa e

derivada de uma filosofia teoacuterica Se para Rickert o tomar-algo-como-um-valor natildeo tem

ldquovalor de verdaderdquo como o declarar-algo-como-valor Para Heidegger a verdade do ser

(ser ndashverdadeiro) ou o ldquotomar-por-verdadeirordquo (a vivecircncia) independe do valor e nada

tem a ver com o dever-ser

ldquoDaacute-se o ser-verdadeiro como um valor De maneira alguma e nem se daacute no

segundo caso do juiacutezo histoacuterico [acerca da morte de Napoleatildeo I na ilha de Santa

Elena] Contudo o conteuacutedo objetivo desse juiacutezo tem a forma de um valor no

sentido de [que remete a algo] lsquohistoricamente significativorsquo um novo fenocircmeno

lsquovalorativorsquo que natildeo afeta o ser-verdadeiro como tal ao lanccedilar um papel

metodoloacutegico na constituiccedilatildeo da verdade histoacuterica O ser-verdadeiro (ἀ-λήθεια)

como tal natildeo lsquovalersquo Na alegria como alegria assumo valores na verdade

simplesmente vivo Natildeo apreendo o ser-verdadeiro na e atraveacutes de uma assunccedilatildeo

de valores34rdquo (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p58)

Essas uacuteltimas consideraccedilotildees revelam para Heidegger que o meacutetodo teleoloacutegico

estaacute impregnado de pressuposiccedilotildees pois a cada vez ldquoos fenocircmenos do dever-ser do valor

da assunccedilatildeo de um valor da pergunta se a verdade eacute um valor que descansa em uma

valoraccedilatildeo originaacuteria se fundam em uma determinaccedilatildeo valorativa que se realiza

subsequentementerdquo35 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p62) E essas pressuposiccedilotildees

trazem agrave vista o privileacutegio teoreacutetico dessa filosofia

34 ldquoiquestSe da el ser-verdadero como un valor De ninguna manera y tampoco se da en el segundo caso del

juicio histoacuterico [acerca de la muerte de Napoleoacuten I en la isla de Santa Elena] Sin embargo el contenido

objetivo de este juicio tiene la forma de un valor en el sentido de [que remite a algo] laquohistoacutericamente

significativoraquo un nuevo fenoacutemeno laquovalorativoraquo que no afecta al ser-verdadero como tal si bien juega un

papel metodoloacutegico en la constitucioacuten de la verdad histoacuterica El ser-verdadero (ἀ-λήθεια) como tal no

laquovaleraquo En la alegriacutea como alegriacutea asumo valores en la verdad como verdad simplemente vivo No

aprehendo el ser-verdadero en y a traveacutes de una asuncioacuten de valoresrdquo Opcitp58

35 ldquoAl ampliar el anaacutelisis salieron a escena nuevos presupuestos y pusieron de relieve que el meacutetodo

teleoloacutegico estaacute cargado de presuposiciones los fenoacutemenos del deber-ser de la donacioacuten del deber-ser del

valor de la asuncioacuten de un valor de la pregunta de si la verdad es un valor que descansa en uma valoracioacuten

originaria o de si se funda en una determinacioacuten valorativa que se realiza con lsquoposterioridadrsquordquo Opcitp62

53

ldquoO privileacutegio outorgado ao teoreacutetico repousa na convicccedilatildeo de que o teoreacutetico

representa o estrato baacutesico e fundamental que de alguma maneira funda todas as

esferas restantes Isso se potildee manifesto quando eacute falado por exemplo da

lsquoverdadersquo eacutetica artiacutestica ou religiosa Se diz que o teoreacutetico tem todos os demais

acircmbitos valorativos e eacute capaz de fazer isso na medida em que o teoreacutetico mesmo

se concebe como um valor Eacute necessaacuterio romper este primado do teoacuterico mas natildeo

com a finalidade de proclamar a primazia da praacutetica ou introduzir um outro

elemento que mostra os problemas a partir de uma nova perspectiva mas porque

o teoreacutetico mesmo enquanto tal remete a algo preacute -teoreacuteticordquo 36(HEIDEGGER

(GA5657) 2005 p70)

Para os neokantianos de Baden o ideal absoluto como medida da realidade

empiacuterica como condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do pensamento verdadeiro e ainda como

condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do significado histoacuterico reveste-se da transcendentalidade em

funccedilatildeo do rigor cientiacutefico Para eles o mundo do ser natildeo pode ser confundido com o

mundo do valor pois satildeo os valores como elementos transcendentais que orientam a

constituiccedilatildeo do indiviacuteduo histoacuterico de modo loacutegico A realidade - o espaccedilo ontoloacutegico ndash

estaacute condicionada agrave teoria e em uacuteltima instacircncia o proacuteprio teoreacutetico eacute concebido como

valor Inversatildeo que Heidegger detecta como propriamente afastada do acircmbito imediato

da vida e que como meacutetodo portanto natildeo pode fundar-se como ciecircncia originaacuteria

II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt37 originaacuterio

Diferentemente de Windelband e Rickert que subordinavam a verdade agrave

valoraccedilatildeo em funccedilatildeo do juiacutezo jaacute em 1919 Heidegger indicava a derivaccedilatildeo do teoreacutetico

de uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Apoacutes a investigaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-

36 ldquoAsimismo el privilegio otorgado a lo teoreacutetico reposa en la conviccioacuten de que lo teoreacutetico representa el

estrato baacutesico y fundamental que de alguna manera funda todas las esferas restantes Esto se pone de

manifiesto cuando uno habla por ejemplo de la laquoverdadraquo eacutetica artiacutestica o religiosa Se dice que lo teoreacutetico

tintildee todos los demaacutes aacutembitos valorativos y es capaz de hacer eso en la medida en que lo teoreacutetico mismo

se concibe como un valor Se ha de romper con esta primaciacutea de lo teoreacutetico pero no con el propoacutesito de

proclamar un primado de lo praacutectico o de introducir otro elemento que muestre los problemas desde una

nueva perspectiva sino porque lo teoreacutetico mismo y en cuanto tal remite a algo pre-teoreacuteticordquo Opcitp70

37 Como o verbo ldquodarrdquo em portuguecircs o ldquogebenrdquo em alematildeo pode ser utilizado como verbo bitransitivo no

sentido de dar algo a algueacutem (Ex ldquoIch gebe dir mein Buchrdquo ldquoEu te dou o meu livrordquo) Mas no caso do ldquoes

gibtrdquo eacute utilizado no sentido do verbo ldquohaverrdquo ou ldquoexistirrdquo como por exemplo ldquoEs gibt viele Woumlrter ldquoHaacute

muitas palavrasrdquo ou ldquoExistem muitas palavras) Portanto pensar num ldquoes gibtrdquo originaacuterio eacute referir-se agrave

existecircncia originaacuteria das coisas em outras palavras no modo de aparecimento do que haacute do existente em

seu sentido primaacuterio preacutevio a toda determinaccedilatildeo transitiva possiacutevel nos moldes gramaticais

54

teleoloacutegico em A ideacuteia da filosofia e o problema da visatildeo de mundo o autor apresenta

essa instacircncia primaacuteria como correlata a um ldquoes gibtrdquo originaacuterio haacute e o que haacute eacute mundo

ou melhor um dar-se mundo

Aqui reside a primeira exposiccedilatildeo de nosso argumento A abordagem hermenecircutica

de Heidegger no interior da fenomenologia foi decisiva para o acesso agrave questatildeo do sentido

do ser e no desenvolvimento da referida preleccedilatildeo esse movimento se torna patente

A criacutetica de Heidegger agrave teoria do conhecimento e agraves implicaccedilotildees dessa postura

propriamente teoacuterica em relaccedilatildeo agrave verdade conduz o autor agrave correlaccedilatildeo entre as vivecircncias

e a significaccedilatildeo fenomecircnica como cooriginaacuterias da imersatildeo num mundo que haacute se daacute

existe como mundo circundante As pressuposiccedilotildees da teoria do conhecimento e suas

postulaccedilotildees acerca do ldquosujeitordquo reverberam em uma seacuterie de problemas derivados que

nada dizem acerca das vivecircncias Assim questotildees Como eacute possiacutevel o acesso agrave realidade

exterior Em que medida minha vivecircncia subjetiva alcanccedila a vivecircncia de outro

sujeito Como passar da esfera subjetiva aos dados sensoriais do mundo Como

passar da esfera subjetiva ao conhecimento objetivo satildeo problematizaccedilotildees derivadas

da primazia teoacuterica dada pela filosofia e pelas ciecircncias que ignoram por completo que o

viver do mundo circundante natildeo eacute uma contingecircncia () somente em ocasiotildees

excepcionais estamos instalados em uma atitude teoreacutetica38 (HEIDEGGER(GA5657)

2005 p106)

Lembremos que o que estaacute em questatildeo nessa preleccedilatildeo eacute em que medida a filosofia

pode ser considerada como ciecircncia originaacuteria e qual eacute o seu modo de relaccedilatildeo com a visatildeo

de mundo Nesse sentido a filosofia se mostra como aquela ciecircncia que deve se afastar de

qualquer posiccedilatildeo preacutevia e assim dizer que o viver do mundo circundante natildeo eacute uma

contingecircncia eacute reconhecer aquilo que todo posicionamento teoacuterico quer a cada vez

afastar mas eacute em uacuteltima medida a condiccedilatildeo de possibilidade de sua proacutepria realizaccedilatildeo

teoacuterica Com outras palavras a possibilidade do conhecimento estaacute imersa em bases que

natildeo satildeo elas proacuteprias teoacutericas E nesse sentido quando uma ou outra teoria filosoacutefica

pretende investigar a possibilidade do conhecimento partindo de pressuposiccedilotildees teoacutericas

38 ldquoEl vivir del mundo circundante no es una contingencia sino que radica en la esencia de la vida en y para

siacute por el contrario soacutelo en ocasiones excepcionales estamos instalados en una actitud teoreacuteticardquo

Opcitp106

55

acaba por afundar-se em falsos problemas como ldquoa realidade do mundordquo e ldquoo acesso a

essa realidaderdquo Discussotildees vazias pois o mundo em sua realidade histoacuterica eacute o dar-se

originaacuterio e prescinde de toda e qualquer teorizaccedilatildeo

Na leitura de Heidegger o neokantismo decompotildee o acircmbito originaacuterio da

vivecircncia em conceitos teoacutericos que natildeo formam mais uma totalidade pois a

desvivifica transformando-a num objeto a-histoacuterico e portanto sem significado

O mundar (welten) soacute eacute apreensiacutevel pela visatildeo fenomenoloacutegica que ainda natildeo estaacute

contaminada pelos pressupostos teoreacuteticos que tornam essa experiecircncia uma

relaccedilatildeo objetificante () Heidegger se contrapotildee agrave metodologia teoreacutetica que

pretende objetificar e descrever as vivecircncias mas compreender e apreender as

conexotildees de significado em que jaacute se estaacute submerso A fenomenologia pretende

manifestar isso que se daacute em um soacute golpe o mundo circundante (Umweltliche)

caracteriacutestico do vivenciar primordial(WU R2010 p185)

Mas se a compartimentaccedilatildeo da realidade realizada pelas teorias filosoacuteficas recai

em discussotildees vazias e a vivecircncia primordial prescinde de conceitos teoacutericos isso natildeo

apontaria para um empirismo ou um realismo como possibilidades da filosofia A

filosofia eacute ainda busca e busca originaacuteria Nesse sentido o acesso fenomenoloacutegico ao

mundo circundante orientado pela proacutepria coisa na intuiccedilatildeo imediata eacute para Heidegger

o modo de abrir ldquocientificamenterdquo a esfera da vivecircncia resguardando a orientaccedilatildeo agrave vida

sem qualquer teoria preacutevia

O rigor da cientificidade cultivada na fenomenologia cobra sentido a partir

dessa atitude fundamental e natildeo se pode comparar com o rigor das ciecircncias

derivadas e natildeo originaacuterias Ao mesmo tempo resulta claro porque o problema do

meacutetodo joga um papel central na fenomenologia como em nenhuma outra ciecircncia

() Para o problema que nos ocupa a atitude fundamental da fenomenologia

aponta em uma direccedilatildeo decisiva natildeo construir um meacutetodo desde fora ou desde

acima natildeo idear um novo caminho teoreacutetico por meio de reflexotildees dialeacuteticasrdquo39

(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p133)

Desde o iniacutecio da preleccedilatildeo Heidegger estaacute em busca de um meacutetodo capaz de

alcanccedilar o primaacuterio que estaria na base de qualquer conhecimento Nesse sentido a

39 ldquoEl laquorigorraquo de la cientificidad cultivada en la fenomenologiacutea cobra sentido a partir de esta actitud

fundamental y no se puede comparar con el laquorigorraquo de las ciencias derivadas y no originarias Al mismo

tiempo resulta claro por queacute el problema del meacutetodo juega un papel tan central en la fenomenologiacutea como

en ninguna otra ciencia (Por esta razoacuten todo este curso gira realmente en torno a un problema

metodoloacutegico) Para el problema que nos ocupa la actitud fundamental de la fenomenologiacutea apunta en una

direccioacuten decisiva no construir un meacutetodo desde fuera o desde arriba no idear un nuevo camino teoreacutetico

por medio de reflexiones dialeacutecticasrdquo Opcit p133

56

fenomenologia como retorno agraves coisas mesmas se volta ao dar-se originaacuterio das coisas e

eacute atraveacutes delas que o meacutetodo pode vir a ser desenvolvido Ainda em 1919 natildeo foi exposta

em linhas precisas a fenomenologia como meacutetodo indicativo-formal elemento decisivo

no interior da fenomenologia-hermenecircutica de Heidegger O que iremos abordar mais

adiante

A tentativa de orientar-se pelo dado na vivecircncia pelo que eacute como eacute no mundo

circundante se afasta portanto de qualquer objetificaccedilatildeo A fenomenologia como

meacutetodo eacute a possibilidade de compreensatildeo dos significados que nos vem ao encontro no

mundo circundante e histoacuterico no qual jaacute se estaacute sempre imerso Mas se Heidegger

apresenta a fenomenologia como o meacutetodo que alcanccedila o que vem ao encontro sem

qualquer preacutevia teoria esse acesso natildeo se daacute segundo os mesmos paracircmetros de seu

mestre Husserl

Como vimos na fenomenologia husserliana o modo de aparecimento do

fenocircmeno eacute sempre uma doaccedilatildeo de significado mas o acesso aos fenocircmenos eacute sempre a

partir da anaacutelise dos atos intencionais das vivecircncias na consciecircncia Heidegger recusa o

pressuposto da consciecircncia e pretende que a doaccedilatildeo significativa seja originaacuteria da

vivecircncia imersa no mundo No uacuteltimo momento da preleccedilatildeo de 1919 o autor apresenta

o que seria cooriginaacuteria de qualquer orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica e base de qualquer

ciecircncia teoacuterica a intuiccedilatildeo hermenecircutica Assim a vivecircncia que se apropria do vivido eacute

a intuiccedilatildeo compreensiva a intuiccedilatildeo hermenecircutica () A universalidade do significado

das palavras assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia

vivida40 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 pp141-142) Ou seja a significaccedilatildeo

gramaticalmente revestida natildeo aponta para algo essencial apreendido no ato de

consciecircncia (como compreende Husserl) mas a significaccedilatildeo vivida no mundo

circundante

O princiacutepio dos princiacutepios husserlianos tudo o que se daacute originariamente na

intuiccedilatildeo [] haacute que tomaacute-lo simplesmente como se daacute (Husserl Ideen apud Heidegger

40 ldquoLa vivencia que se apropia de lo vivido es la intuicioacuten comprensiva la intuicioacuten hermeneacuteutica la

formacioacuten originariamente fenomenoloacutegica que vuelve hacia atraacutes mediante retroconceptos y que se

anticipa con ayuda de preconceptos y de la que queda excluida toda posicioacuten teoreacutetico-objetivante y

trascendente La universalidad del significado de las palabras sentildeala primariamente algo originario el

caraacutecter mundano de la vivencia vividardquo Opcitpp141142

57

(GA5657) 2005 p132) eacute dado no interior das conexotildees de significados no es gibt

originaacuterio no mundo que se daacute cooriginariamente agraves proacuteprias vivecircncias

Para Heidegger o uacutenico modo de apreender essa vivecircncia originaacuteria eacute retroceder

ao preacute-teoacuterico por uma abordagem fenomenoloacutegica que faz com que o mundar

do mundo se manifeste enquanto tal Alguns anos mais tarde isso constituiria o

nuacutecleo da ontologia fundamental na perspectiva da temporalidade cujo objetivo

de criacutetica natildeo seria mais de maneira tatildeo detida o neokantismo de Windelband e

Rickert mas a totalidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica da filosofia(WuR2010 p186)

Tendo em vista o ponto central da preleccedilatildeo aqui examinada eacute imprescindiacutevel

notar que em 1919 Heidegger estava debatendo com os problemas de seu tempo a

possibilidade do conhecimento o lugar da filosofia diante da autonomia das ciecircncias

particulares e a articulaccedilatildeo dessa problemaacutetica com a Lebensphilosophie Se ainda natildeo

haacute explicitamente a questatildeo do sentido de ser em geral a preleccedilatildeo possui elementos

decisivos para o desenvolvimento da ontologia fundamental O que queremos enfatizar eacute

como o modo de apariccedilatildeo dos fenocircmenos em seu significado prescinde de toda e qualquer

teorizaccedilatildeo Essa caracteriacutestica fundamental vai permanecer vigente nos desdobramentos

futuros do pensamento de Heidegger e vai se mostrar a cada vez mais intimamente

relacionada agrave ambiccedilatildeo heideggeriana de superar os pressupostos da tradiccedilatildeo filosoacutefica

moderna

ldquoA pergunta acerca da realidade do mundo externo deriva em parte de uma

compreensatildeo superficial da filosofia kantiana ou de outro modo de reflexotildees

colocadas por Descartes Eacute uma questatildeo que em todo momento de modo mais ou

menos expresso ocupou a teoria do conhecimento da modernidade assegurando-

se sempre contudo que naturalmente ningueacutem duvida da realidade do mundo

externo Pois o que nela sempre se daacute por suposto eacute que essa realidade essa

mundanidade do mundo eacute no fundo algo que talvez possa demonstrar-se ou

mais exatamente no caso de nos encontrarmos em condiccedilotildees ideais ao final

haviacuteamos demostrado [essa realidade] E contudo o ser-real do mundo natildeo soacute

natildeo necessita ser demosntrado nem sequer eacute algo que na falta de provas

rigorosas por isso deva ser unicamente objeto de crenccedilardquo41( HEIDEGGER

(GA20) 2006 p270)

41 ldquoLa pregunta acerca de la realidad del mundo externo se deriva en parte de uma comprensioacuten superficial

de la filosofia kantiana o mejor dicho de reflexiones que Descartes planteoacute Es uma cuestiacuteon que en todo

momento de modo maacutes o menos expreso ha ocupado a la teoriacutea del conocimiento de la modernidad

aseguraacutendose siempre no obstante de que naturalmente nadie dudara de la realidade del mundo externo

Pues lo que em ella se da por supuesto es que esa realidad esa mundanidad del mundo es em fondo algo

que quizaacute pueda demostrarse o maacutes exactamente es en caso de que nos encontraacuteramos em condiciones

ideales al final habriacuteamos demostrado Y sin embargo el ser-real del mundo no soacutelo no necessita ser

demostrado ni siquiera es algo que a falta de pruebas rigorosas por eso deba ser unicamente objeto de

creenciardquo Opcitp270

58

Assim a partir dessas consideraccedilotildees eacute possiacutevel indicar que a questatildeo do sentido

do ser em geral ou numa palavra a ldquoontologiardquo para Heidegger pode vir a ser atingida

quando se revela que a fenomenologia natildeo estaacute fundada na epistemologia (a partir da

consciecircncia) e que a hermenecircutica natildeo eacute apenas um instrumento metodoloacutegico de acesso

agrave histoacuteria em sua objetividade O que Heidegger pretende exprimir com o termo ldquointuiccedilatildeo

hermenecircuticardquo eacute a possibilidade de uma compreensatildeo imediata do mundo a qual natildeo estaacute

fundada nas vivecircncias subjetivas O es gibt originaacuterio eacute o mundo que se daacute como campo

hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Com outras palavras natildeo haacute

significados ideais eles aparecem a partir da situaccedilatildeo hermenecircutica compartilhada entre

os homens campo que chamamos de mundo e a compreensatildeo desse campo natildeo eacute

tributaacuteria das vivecircncias psiacutequicas Para tanto eacute preciso esclarecer como Heidegger supera

a consciecircncia husserliana enquanto lugar de apariccedilatildeo dos fenocircmenos e tambeacutem como a

noccedilatildeo heideggeriana de ldquointuiccedilatildeo hermenecircuticardquo pretende superar a vivecircncia psiacutequica de

Dilthey como categoria epistemoloacutegica fundamental Chegamos ao ponto onde se torna

necessaacuterio compreender mais detidamente a apropriaccedilatildeo de Heidegger da hermenecircutica

diltheyniana e da fenomenologia husserliana

II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger

Seguindo inicialmente as indicaccedilotildees expressas no primeiro curso proferido por

Heidegger em Marburg (inverno de 1923-1924) Introduccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo

fenomenoloacutegica (GA17) eacute possiacutevel observar a tentativa do autor de compreender a

fenomenologia como fenomenologia da existecircncia e assim se apropriar de maneira mais

originaacuteria da investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica

O curso se inicia com a interpretaccedilatildeo - mantida em seus principais elementos no

sect7 de Ser e Tempo - dos conceitos de fenocircmeno (φαινόμενον) e loacutegos (λόγος) em

Aristoacuteteles para assim pocircr em evidecircncia a interpretaccedilatildeo segundo a qual nos escritos do

filoacutesofo grego esses conceitos indicam a direccedilatildeo do pensamento e da investigaccedilatildeo

filosoacutefica para o ser do homem como ser-no-mundo

59

A perceptibilidade das coisas estaacute sob a condiccedilatildeo de um determinado ser deste

mundo mesmo O ser condiccedilatildeo se refere a um modo de ser do mundo mesmo Agrave

existecircncia no mundo pertence o ser subsistente do Sol justamente o que

pensamos quando afirmamos eacute de dia Desta forma falamos de um estado de

coisas que pertence ao ser do mundo mesmo Daiacute se segue que φαινόμενον natildeo

quer dizer em primeiro lugar nada mais que um destacado modo de presenccedila do

enterdquo42 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30)

Ainda seguindo a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles Heidegger diz que o conceito de

fenocircmeno na medida em que designa tudo o que mostra a si mesmo natildeo pode ser

reduzido ao que estaacute na presenccedila do dia ou seja que existem coisas que satildeo visiacuteveis na

obscuridade pois o que se mostra a si mesmo se mostra tanto na claridade como na

obscuridade43 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30) Para explicitar essa posiccedilatildeo o autor

recorre agraves categorias aristoteacutelicas essenciais do ente em ato e do ente em potecircncia (ogravev

ἐντελέχεια ogravev δύναμις) A obscuridade torna-se tambeacutem positiva a partir da

compreensatildeo dessas categorias em relaccedilatildeo ao fenocircmeno pois o ser da obscuridade

consiste em ser claridade possiacutevel44 (HEIDEGGER (GA17)2006 p31)

A originalidade do ver em Aristoacuteteles se mostra em natildeo se deixar enganar pelo

fato de que para as coisas que somente a noite deixa ver natildeo haacute nenhum nome

que as compreenda todas () O que importa eacute somente que essas coisas existam

aiacute elas satildeo vistas e sobre a base de seu conteuacutedo quiditativo tecircm a pretensatildeo de

serem tomadas por existentes Mas que falte um nome para essas coisas mostra

contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia45

(HEIDEGGER (GA17) 2006p31)

42 ldquoLa perceptibilidad de las cosas estaacute bajo la condicioacuten de un determinado ser de este mundo mismo El

ser condicioacuten se refiere a un modo de ser del mundo mismo A la existencia en el mundo pertenece el ser

subsistente del Sol justamente lo que mentamos cuando afirmamos es de diacutea De esta forma hablamos de

un estado de cosas que pertenece al ser del mundo mismo De aquiacute se sigue que φαινόμενον no quiere decir

en primer lugar nada maacutes que un destacado modo de presencia del enterdquo Op cit p30

43 ldquoEl concepto de φαινόμενον no estaacute limitado a la presencia de las cosas durante el diacutea va maacutes allaacute y

designa todo lo que se muestra em siacute mismo tanto se muestra en la claridad como en la oscuridadrdquo Op

citp30

44 ldquoEl ser de la oscuridad consiste en ser claridade posiblerdquo Opcitp31 45 ldquoLa originaridad del ver en Aristoacuteteles se muestra en que no se deja enganatilder por el hecho de que para las

cosas que soacutelo la noche deja ver no hay ninguacuten nombre que las comprenda a todas (por tanto para las

lucieacuternagas etc) () Lo que le importa es soacutelo que esas cosas existen ahiacute se las ve y sobre la base de su

contenido quiditativo tienen la pretensiacuteon de ser tomadas por existentes Pero que falte um nombre para

esas cosas muestra com todo que nuestra lengua (teoria de las categorias) es uma lengua del diacuteardquo

Opcitp32

60

Para compreendermos o que Heidegger trata nessa passagem eacute fundamental

relembrar a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica que indica algo crucial agrave nossa investigaccedilatildeo o

significado natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua

mostraccedilatildeo Para Husserl a anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a

complexidade da vida intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel a partir

da anaacutelise das estruturas ideais que se apresentam na forma das expressotildees significativas

revestidas gramaticalmente Jaacute para Heidegger parece natildeo haver uma estabilidade

significativa ideal Em outras palavras e como vimos no toacutepico anterior as significaccedilotildees

vecircm ao encontro a partir de sua mostraccedilatildeo intencionadas em meio agrave compreensatildeo

hermenecircutica do mundo circundante por isso as estruturas ideais buscadas por Husserl

a partir da atividade intencional da consciecircncia devem ser revistas em funccedilatildeo da

possibilidade hermenecircutica do mundo circundante A veste gramatical das significaccedilotildees

natildeo pode subordinar o que vem ao encontro no dar-se originaacuterio do mundo quer em

funccedilatildeo de uma linguagem que almeja a cada vez fixar categorialmente o que se mostra

quer em funccedilatildeo de qualquer idealidade essencial pressuposta E assim para Heidegger o

conceito de loacutegos em Aristoacuteteles revela um sentido mais originaacuterio

Um λόγος existe pois quando o falar eacute falar com o mundo existente Ao dizer

forno [Ofen] natildeo falo a partir de uma existecircncia [Dasein] senatildeo que mas bem

me ponho fora da existecircncia [Dasein] do mundo concreto penso algo mas para

esse pensar natildeo desempenha nenhum papel que existam fornos [Oumlfen] ou natildeo

Falar eacute um ser com o mundo eacute algo originaacuterio e se daacute antes dos juiacutezos A partir

daqui se torna compreensiacutevel o juiacutezo Na loacutegica eacute comum considerar como juiacutezos

palavras como fogo () De modo algum o λόγος implica uma pluralidade de

palavras A palavra originaacuteria eacute um nomear mas natildeo eacute um nomear de um mero

nome mas bem o dirigir-se com a fala a algo que se encontra no mundo tal como

se encontra46(HEIDEGGER (GA17) 2006 p39)

46 ldquoUn λόγος existe pues cuando el hablar es um hablar con el mundo existente Al decir lsquohornorsquo no hablo

desde una existencia sino que maacutes bien me pongo fuera de la existencia del mundo concreto miento algo

pero para este mentar no desempentildea ninguacuten papel el que haya hornos o no Hablar es un ser con el mundo

es algo originaacuterio y se da antes que los juicios A partir de aquiacute se vuelve compreensible el juicio En la

loacutegica es tradiciacuteon considerar como juicios palabras como lsquofuegorsquo (De ninguna manera se establece con

ello soacutelo la existencia [Dasein] del fuego sino tambiacuteen que la gente debe saltar de la cama) Em modo

algun el λόγος implica una pluralidad de palabras La palabra originaria era un nombrar pero no el nombrar

de un mero nombre maacutes bien el dirigirse con el habla a algo que se encuentra en el mundo tal como se lo

encuentrardquo Op cit p39 A palavra Dasein nesse trecho ainda natildeo parece se referir ao homem como ldquoser-aiacuterdquo mas usada no

significado tradicional da liacutengua alematilde compreendida como ldquoexistecircnciardquo pois Heidegger nos fala da

ldquoexistecircnciardquo do lsquofornorsquordquo existecircnciardquo do lsquofogorsquo

61

O nomear originaacuterio do loacutegos natildeo eacute como a significaccedilatildeo expressa pela linguagem

que recolhe o ente sob determinado aspecto em seu εἶδος (Cf HEIDEGGER (GA17)

2006 p43) Loacutegos eacute loacutegos apofacircntico (λόγος αποφατικός) eacute o mostrar do fenocircmeno a

respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que se mostra como algo de maneira indiferenciada

natildeo determinada Assim o significado mediante o λόγος eacute caracterizado como existindo

O significado mediante o nome eacute um mero mencionar em sentido formal no λόγος o

significado eacute o mostrar o existente como existente47(HEIDEGGER (GA17) 2006p41)

Esse mostrar do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes

sempre em meio a um campo hermenecircutico e assim cada significado proacuteprio ou

determinado do ente que se mostra refere-se ao que significa em relaccedilotildees com os outros

entes relaccedilatildeo anterior a qualquer experiecircncia predicativa

O modelo tradicional da hermenecircutica como meacutetodo interpretativo vinculado agrave

filologia e ao formato da linguagem escrita se altera e torna-se com Heidegger a

investigaccedilatildeo acerca da proacutepria interpretaccedilatildeo da mostraccedilatildeo de todos os entes como uma

praacutetica viva que remete ao ser dos entes em seu aparecer como ente Hermes o

mensageiro dos deuses agora eacute mensageiro da situaccedilatildeo interpretativa na medida em que

o ser dos entes se mostra aos homens no interior de suas vivecircncias imediata A

interpretaccedilatildeo de algo eacute dada mediante a escuta cuidadosa da mensagem dinacircmica que se

realiza no diaacutelogo entre os homens natildeo eacute mais algo inerte fixo a ser encontrado O λόγος

na fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν E assim ao contraacuterio

da tradiccedilatildeo filosoacutefica que identificou o loacutegos como a expressatildeo ajuizante possiacutevel atraveacutes

da ratio (ou o dizer as modalidades dos entes atraveacutes de palavras e sequecircncia de palavras

organizando-as como sujeito e predicado no juiacutezo predicativo) Heidegger interpreta o

sentido originaacuterio de loacutegos apofacircntico como condiccedilatildeo de possibilidade para a

significaccedilatildeo Esse aspecto eacute assim descrito por Gadamer

Heidegger recorreu a uma etimologia para a palavra logos ela designa a seleccedilatildeo

posicionadorardquo () Loacutegos eacute realmente o posicionar seletivo legein significa

seleccedilatildeo selecionar conjuntamente reunir de tal modo que tudo se decirc como

bagos da videira reunidos e protegidos como a colheita O que eacute assim reunido

da seleccedilatildeo natildeo satildeo certamente apenas as palavras que formam a proposiccedilatildeo Cada

palavra ela mesma jaacute eacute de tal modo que nela muitas coisas satildeo reunidas - na

47ldquoLo significado mediante el λόγος es caracterizado como existiendo Lo significado mediante el nombre

es un mero mencionar el sentido formal en el λόγος lo significado es el mostrar lo existente como

existenterdquo Opcitp41

62

unidade do eidos como diraacute Platatildeo quando ele questiona o eidos com vista ao

logos (GADAMER 2012p528)

O sentido originaacuterio de loacutegos como loacutegos apofacircntico estaacute estritamente

relacionado com o sentido originaacuterio de fenocircmeno A tradiccedilatildeo latina traduziu loacutegos

interpretando-o como razatildeo juiacutezo conceito definiccedilatildeo ou proposiccedilatildeo Poreacutem em grego

logos natildeo significa primariamente juiacutezo entendido como modo de uniatildeo ou de tomada

de posiccedilatildeo seja pela aceitaccedilatildeo ou negaccedilatildeo Logos reporta-se agrave palavra legein tornar

manifesto aquilo de que se fala num discurso Por isso deixa que algo seja visto

comunicando a outro o que eacute manifestado e assim ldquoas posiccedilotildees individuais satildeo

penetradas pela tendecircncia a significar de um λέγειν assim que aspira a manifestar uma

determinada situaccedilatildeo objetiva Natildeo se chega ao λόγος se quiser comeccedilar com o mero

nomear A funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar48rdquo (HEIDEGGER (GA17)

2006 p43) Mas o que se manifesta O fenocircmeno (φαινόμενον) aquilo que se mostra a

si mesmo

A interpretaccedilatildeo da palavra φαινόμενον realizada por Heidegger no primeiro curso

proferido em Marburg indica inicialmente a existecircncia do mundo na medida em que ele

se mostrar a si mesmo49 como orientaccedilatildeo do horizonte temaacutetico da fenomenologia Em

1925 no curso Prolegocircmenos para uma histoacuteria ao conceito de tempo (GA20) o

esclarecimento do sentido originaacuterio do conceito de fenocircmeno seraacute elaborado conforme

o sentido encontrado tambeacutem em Ser e Tempo sect7 Φαινόμενον eacute o particiacutepio (forma

nominal do verbo) de φαίνεισθαι que como voz meacutedia50 significa mostrar-se e no

48 ldquoLas posiciones individuales estaacuten penetradas por la tendencia a significar de un λέγειν asiacute que aspira a

manifestar una determinada situacioacuten objetiva No se llega al λόγος si se quisiera comezar com el mero

nombrar La funcioacuten originaria de significaciacuteon es el manifestarrdquo Opcitp43

49 CfHeidegger (GA17) 2006p61

50 Um esclarecimento sobre a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito de

fenocircmeno por conseguinte da noccedilatildeo de fenomenologia Obviamente natildeo podemos aprofundar-nos nesse

complexo recurso gramatical que exigiria anos de estudos e profundo conhecimento da liacutengua helecircnica

Iremos apenas indicar sua especificidade A estrutura das vozes verbais na liacutengua portuguesa eacute constituiacuteda

de 3 possibilidades a ativa a passiva e a reflexiva Algumas Gramaacuteticas sugerem uma proximidade entre

a voz meacutedia grega e a voz reflexiva no portuguecircs contudo a voz meacutedia natildeo se esgota nessa comparaccedilatildeo

Seguimos a orientaccedilatildeo de Caio Vieira Reis de Camargo (2013) que em seu artigo reuacutene definiccedilotildees

importantes para os estudos linguiacutesticos contemporacircneos acerca da voz meacutedia

ldquoa) lsquoA voz meacutedia denota que o sujeito estaacute de alguma maneira especial envolvido ou interessado na accedilatildeo

do verborsquo (GILDERSLEEVE 1900 p64) b) lsquoVerbos () que tecircm posiccedilatildeo na esfera do Sujeito nos quais

o Sujeito todo parece participanteimplicadorsquo (BRUGMANNB 1903 p104) c) lsquoNa voz ativa os verbos

63

particiacutepio o que se mostra O aparecer o mostrar do fenocircmeno estaacute relacionado com a

raiz de φαίνω φῶς em portuguecircs luz claridade Assim ldquoos φαινόμενα configuram a

totalidade do que se mostra o que os gregos simplesmente identificaram tambeacutem com τὰ

ὄντα o ente51rdquo (HEIDEGGER (GA20)2006 p109) Podemos entatildeo dizer a totalidade

do que se mostra satildeo os fenocircmenos e se a funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar

o loacutegos da fenomenologia natildeo eacute o significado de um ou outro ente mas o manifestar do

ente o sentido de ser dos entes Fenomenologia em sentido formal eacute ldquofazer ver a partir

dele mesmo o que se mostra tal como ele por si mesmo se mostrardquo (HEIDEGGER (GA2)

2012 p119) e assim a fenomenologia caminha em direccedilatildeo agrave ontologia

No capiacutetulo anterior pudemos observar que para Husserl o que estava em jogo

como tarefa da fenomenologia era - a partir da unidade entre intuiccedilatildeo (atividade da

consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da consciecircncia e o

preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor a unidade

fenomenoloacutegica desses atos a saber apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo e

preenchimento de significaccedilatildeo Para Heidegger a intencionalidade fenomenoloacutegica agora

voltada para o sentido de ser dos entes revela que o fenocircmeno vem ao encontro natildeo em

funccedilatildeo da intencionalidade da consciecircncia onde poderia ser depurado na sua significaccedilatildeo

denotam um processo que se realiza a partir de um sujeito e sem ele na meacutedia que eacute a diaacutetesis a definir

por oposiccedilatildeo o verbo indica um processo em que o sujeito eacute o foco o sujeito estaacute no interior do processorsquo

(BENVENISTE 1966 p172) d) lsquoEm indo-europeu e em grego as desinecircncias meacutedias indicam que o

sujeito estaacute interessado de uma maneira pessoal no processorsquo (MEILLET 1937 p244) e) lsquoAs implicaccedilotildees

da meacutedia (quando em oposiccedilatildeo com a ativa) satildeo que a accedilatildeo ou estado afeta o sujeito do verbo ou seus

interessesrsquo (LYONS 1969 p373) Nessas definiccedilotildees a princiacutepio haacute dois empregos da meacutedia a meacutedia

reflexiva direta (especialmente a de Gildersleeve e Meillet voltadas para a questatildeo do interesse do sujeito

oracional) e a meacutedia reciacuteproca que envolve mais as construccedilotildees passivas e intransitivas da meacutedia

(ressaltada por Brugmann e Benveniste com a noccedilatildeo de que o sujeito todo participa e que estaacute interno ao

processo) A definiccedilatildeo de Meillet por outro lado eacute a mais comumente utilizada principalmente em

gramaacuteticas e meacutetodos de ensino do grego antigo atribuindo agrave media a noccedilatildeo de interesse por parte do

sujeito sendo que esse traccedilo embora existente em alguns casos natildeo eacute uacutenico e nem sempre tatildeo evidenterdquo

(pp 185-186)

Quando dissemos que entender a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito

de fenocircmeno pensamos nessa especificidade de algo que na accedilatildeo no verbo (existir manifestar) constitui a

si mesmo no interior do processo O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento como fenocircmeno

Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar

por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na

estabilidade de uma esfera para aleacutem do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua

manifestaccedilatildeo o sentido de sua proacutepria existecircncia

51 ldquoLos φαινόμενα configuran la totalidad de lo que se muestra a siacute mismo lo que los griegos simplemente

indetificaban tambieacuten con τὰ ὄντα lo enterdquoOpcit p109

64

Mas o loacutegos como manifestar-se do fenocircmeno em seu sentido originaacuterio como existente

eacute intencionado no es gibt originaacuterio na concretude do mundo que se daacute

Mas como eacute possiacutevel chegar ao acontecimento de ser do fenocircmeno sem a base de

uma consciecircncia em funccedilatildeo da qual o fenocircmeno pode ser depurado Os estudos da Sexta

Investigaccedilatildeo Loacutegica de Husserl ao distinguir intuiccedilatildeo sensiacutevel da categorial ofereceram

a Heidegger um acesso agrave compreensatildeo do sentido muacuteltiplo do ente Nas palavras do autor

ldquoQuando a partir de 1919 eu proacuteprio ensinando e aprendendo proacuteximo de

Husserl me exercitei na visatildeo fenomenoloacutegica e simultaneamente pus agrave prova

nos Seminaacuterios uma leitura de Aristoacuteteles diferente da habitual retomei o meu

interesse pelas Investigaccedilotildees Loacutegicas muito especialmente pela sexta da

primeira ediccedilatildeo A distinccedilatildeo ali elaborada entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial

revelou-se-me em todo o seu alcance como capaz de determinar lsquoo muacuteltiplo

sentido do entersquordquo (HEIDEGGER2009 p8)

Vejamos brevemente o ponto crucial dessa parte da VI investigaccedilatildeo a qual

Heidegger se refere A questatildeo central eacute ldquoTodas as partes e formas da significaccedilatildeo

correspondem tambeacutem partes e formas da percepccedilatildeo52rdquo (HUSSERL 1975 p106) Em

outras palavras nos enunciados da percepccedilatildeo ldquoUm S eacute Prdquo ldquoEste S eacute Prdquo ldquoTodo S eacute Prdquo

etc cada um de seus elementos (ldquoumrdquo ldquoSrdquo ldquoeacuterdquo ldquoPrdquo) possui significaccedilotildees que

preenchem a percepccedilatildeo Husserl responde negativamente somente S e P possuem

significaccedilatildeo que preenchem a percepccedilatildeo pois existe uma diferenccedila categorial absoluta

entre a forma expressiva e o material expresso E os enunciados da percepccedilatildeo chegam

somente aos elementos materiais que estatildeo presentes nos termos do enunciado

ldquoRepete-se a mesma distinccedilatildeo entre lsquomaterialrsquo e lsquoformarsquo naquilo que

consideramos unitariamente como um lsquotermorsquo Mas em todo enunciado de

percepccedilatildeo e tambeacutem naturalmente em todos os enunciados que exprimem uma

intuiccedilatildeo num certo sentido primaacuterio chegamos finalmente aos uacuteltimos elementos

ndash denominamos elementos materiais ndash que estatildeo presentes nos termos e que

preenchem diretamente na intuiccedilatildeo (percepccedilatildeo imaginaccedilatildeo etc) ao passo que

as formas complementares apesar de exigirem preenchimento enquanto formas

de significaccedilatildeo natildeo encontram diretamente na percepccedilatildeo e nos atos a ela

coordenados nada que jamais lhes possa ser conformerdquo(HUSSERL 1975p110)

52 Percepccedilatildeo aqui compreendida natildeo como mera percepccedilatildeo mas como atos fundados na percepccedilatildeo com

possibilidade objetiva

65

Husserl acompanha Kant na determinaccedilatildeo que ldquoser natildeo eacute um predicado realrdquo pois

a flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo -tanto na funccedilatildeo atributiva (sapato preto) quanto na forma

predicativa (Este sapato eacute preto) ndash natildeo se preenche atraveacutes de qualquer percepccedilatildeo Para

Husserl embora a proposiccedilatildeo kantiana ldquose refira ao ser existencial ao ser do

lsquoposicionamento absolutorsquo () eacute sempre possiacutevel entretanto aplicaacute-la ao ser predicativo

e atributivordquo (HUSSERL1975 p111) Se o ser natildeo eacute nada de aderente ao objeto natildeo eacute

uma caracteriacutestica real interna nem externa e ainda se ldquona esfera da percepccedilatildeo sensiacutevel

e assim compreendida e correlativamente na da intuiccedilatildeo sensiacutevel em geral () uma

significaccedilatildeo como a palavra ser natildeo encontra nenhum correlato objetivo possiacutevelrdquo

(HUSSERL1975 p112) entatildeo como ser vem agrave forma enunciativa Para Husserl o ser

soacute pode ser apreendido no julgar natildeo que ele seja obtido internamente a partir da reflexatildeo

mas no ato de julgar que correlato agrave intuiccedilatildeo do juiacutezo forma a unidade do juiacutezo evidente

Em outras palavras se o ldquo ser eacute fenomenologicamente interpretado como um modo

determinado do ser dadordquo ( ZAHAVI2015p47) a descriccedilatildeo de um fenocircmeno ou de um

estado de coisas em sua ligaccedilatildeo e unidade pelo juiacutezo vai aleacutem da intuiccedilatildeo sensiacutevel e eacute

preciso ampliar o conceito de intuiccedilatildeo considerando-a como uma intuiccedilatildeo categorial

pois ldquomesmo uma argumentaccedilatildeo teoacuterica ou uma anaacutelise conceitual pode ser considerada

como intuiccedilatildeo na medida em que ela nos traz agrave daccedilatildeo originaacuteria um estado de coisas um

traccedilo essencial ou uma demonstraccedilatildeo abstratardquo( ZAHAVI2015p55) Contudo esse

deslocamento do lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel o conduz a forma loacutegico sem revelar

de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno53

Portanto com o propoacutesito de elucidar a apariccedilatildeo originaacuteria de qualquer fenocircmeno

e junto com Aristoacuteteles Heidegger conclui que era Aleacutetheia desvelamento aquilo que

segundo Husserl consistia num ato da consciecircncia O ser natildeo eacute um predicado real se

abordado a cada vez como um ente Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar o ser como um

ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel e atributivo Ser

natildeo eacute um ente54 o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo com vistas agrave

53 Cf NUNES Benedito 2013 pp63-67 54 A diferenccedila ontoloacutegica eacute tomada tematicamente ou seja exposta explicitamente em 1927 em Os

problemas fundamentais da fenomenologia (GA24) Parte II Capiacutetulo I Mesmo de um modo natildeo temaacutetico

a diferenccedila entre ser e ente foi decisiva para a compreensatildeo da constituiccedilatildeo existencial do ser-aiacute nos escritos

anteriores sobretudo em Ser e Tempo Seguimos a leitura de LAFONT (1997) ldquoDo factum -central para a

abordagem de Ser e tempo - de que nossa relaccedilatildeo com o mundo estaacute mediada simbolicamente (o fato de

que lsquonos movemos sempre jaacute em uma compreensatildeo de serrsquo e que a realidade soacute eacute possiacutevel em uma

66

forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera para ldquoQual o

sentido de serrdquo E ao sentido do ser temos acesso pelo meacutetodo fenomenoloacutegico a partir

da situaccedilatildeo na qual o desvelamento dos entes acontece isto eacute no fenocircmeno da existecircncia

Como aponta Stein a apresentaccedilatildeo do conceito de fenomenologia em Ser e

Tempo eacute feita de maneira provisoacuteria no sect 7 e soacute ganha sua explicitaccedilatildeo na dinacircmica da

proacutepria anaacutelise do ldquoobjetordquo Mas tambeacutem como jaacute vimos aqui a especificidade e o fator

determinante do meacutetodo fenomenoloacutegico jaacute estatildeo em desenvolvimento na deacutecada de 20

Cito Stein

ldquoa descoberta que Heidegger fez que existe um primado da tendecircncia para o

encobrimento ()Ao inveacutes de pensar como Husserl e outros filoacutesofos que diante

de noacutes a realidade se estende agrave espera da rede de nossos recursos metodoloacutegicos

que a aprisionem Heidegger afirma que o homem e o essencial nas coisas tendem

para o disfarce ou estatildeo efetivamente encobertos Por isso volta-se para o comordquo

(STEIN 1971p16)

E o que se encobre de maneira excepcional natildeo eacute um ou outro ente mas o ser do

ente e ldquoa fenomenologia eacute o modo de acesso ao que deve se tornar tema da ontologia A

ontologia soacute eacute possiacutevel como fenomenologiardquo (HEIDEGGER (GA2) 2012 p 123)

Fenocircmeno loacutegos e aleacutetheia estatildeo numa imbricaccedilatildeo indissociaacutevel Stein (2001

p79) chega a dizer que a aleacutetheia esconde em si o meacutetodo fenomenoloacutegico e que o retorno

originaacuterio agrave palavra grega resume o pensamento de Heidegger Para nosso trabalho o

importante eacute compreender que a fenomenologia como meacutetodo para a ontologia encontra

no sentido originaacuterio de aleacutetheia a possibilidade de trazer agrave luz o que sustenta qualquer

presenccedila dos entes ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o que aponta para o velamento (lethe) que

ficou para traacutes que mostra para aquilo que a sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila

da aleacutetheia que se torna possiacutevel a objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito

pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89) Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em

sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao encontro em seu significado) no desvelamento

originaacuterio de seu ser mas essa mostraccedilatildeo dos fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira

compreensatildeo de serrsquo) deduz Heidegger a universalidade da lsquopreacute-estrutura do compreenderrsquo (Als-Struktur)

que constitui o nuacutecleo fundamental de sua transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia O instrumento

decisivo do ponto de vista metodoloacutegico que o permite obter este ponto de vista eacute a substituiccedilatildeo da

dicotomia empiacutericotranscendental - proacutepria da filosofia transcendental- pela lsquodiferenccedila ontoloacutegicarsquordquo p29

67

dissimulada sempre atraveacutes de uma objetificaccedilatildeo de seu ser como ente determinado pois

ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na medida em que partimos de seu

encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de descoberta perde seu sentido mais

efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Dessa forma ldquoa fenomenologia no sentido heideggeriano

eacute a desconstruccedilatildeo do evidente e em uma tal desconstruccedilatildeo interessa mostrar que o

evidente eacute em verdade uma modificaccedilatildeo do fenocircmeno lsquoserrsquordquo (FIGAL 2005p47) E aqui

a fenomenologia encontra a hermenecircutica em sua relaccedilatildeo mais radical pois essa

desconstruccedilatildeo do evidente parte do proacuteprio evidente a situaccedilatildeo faacutetica Pois ldquoo ser soacute

pode chegar entatildeo a ser visualizado se essas dissimulaccedilotildees forem comprovadas como

dissimulaccedilotildeesrdquo (FIGAL 2005p47) ou seja na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo faacutetica que

compreende previamente todos os entes

A atualizaccedilatildeo da filosofia antiga sob bases fenomenoloacutegicas eacute chamada de

ldquofenomenologia como repeticcedilatildeordquo55 O retorno ao pensamento de Aristoacuteteles e Platatildeo

realizado por Heidegger ldquonatildeo significa simplesmente acolher uma vez mais um

questionamento filosoacutefico herdado a fim de integraacute-lo no discurso de uma filosofia atualrdquo

e tambeacutem natildeo se trata de ldquoinserir uma filosofia atual em uma tradiccedilatildeordquo (FIGAL 2005

p32) Mas eacute consequecircncia da orientaccedilatildeo do trabalho heideggeriano de uma lsquofilosofia

cientiacuteficarsquo sem pressupostos O comeccedilo da filosofia eacute o questionamento em curso vivo

promovido pela proacutepria questatildeo e natildeo por sistemas externos agraves proacuteprias coisas A

pergunta pelo ser em Heidegger se torna temaacutetica na medida em que o desdobramento da

criacutetica imanente ao modelo husserliano conduz agrave pergunta fundamental inaugurada no

iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo

Se por um lado Heidegger pode ser associado agrave tradiccedilatildeo fenomenoloacutegica por

outro natildeo se pode esquecer a criacutetica imanente que ele fez agrave fenomenologia de Husserl e

que o conduziu a pensar a fenomenologia como meacutetodo a indicar o mundo a existecircncia

e a facticidade como campo de aparecimento dos proacuteprios fenocircmenos tornando portanto

a fenomenologia hermenecircutica Eacute nessa compreensatildeo da tarefa fenomenoloacutegica como o

modo de acesso ao que deve ser tornar tema da ontologia que Heidegger rejeita o

pressuposto husserliano da consciecircncia como correlato do aparecimento dos fenocircmenos

55 Cf Figal 2005 pp29-42 e STEIN 2001 p98

68

Ele o recusa natildeo somente pelo fato de as relaccedilotildees intencionais enquanto processos

mentais da consciecircncia se movimentarem pela pesquisa de conteuacutedos quididativos mas

tambeacutem e sobretudo pelo fato de

ldquoa consciecircncia apresentar em si mesma um contexto ontoloacutegico fechado Essa

ponderaccedilatildeo [a de que a consciecircncia parece natildeo precisar de qualquer objeto

exterior para existir] acaba por indicar a consciecircncia eacute absoluta em funccedilatildeo da

qual em geral a realidade pode se anunciarrdquo (HEIDEGGER Prolegomena zur

Geschichte p 144 apud FIGAL2005 p30)

Para Heidegger a fenomenologia transcendental de Husserl permanece ainda no

horizonte da modernidade Ao colocar o ldquomundo entre parecircntesesrdquo privilegiando a

experiecircncia da consciecircncia essa fenomenologia permaneceria incapaz de levar em conta

a realidade sem uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica e em uacuteltima instacircncia levar em conta as

vivecircncias concretas Heidegger natildeo abre matildeo da fenomenologia husserliana mas

radicaliza seu princiacutepio ldquode volta agraves coisas mesmasrdquo acentuando a tarefa pela existecircncia

e a partir da existecircncia dos fenocircmenos e no desvelamento buscar o sentido do ser de

todo e qualquer fenocircmeno

III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal

Falamos haacute pouco de Heidegger repetir a filosofia antiga como um desdobramento

da proacutepria pesquisa filosoacutefica entendida como ciecircncia originaacuteria e como pergunta pelo

sentido de ser Em Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles Introduccedilatildeo agrave pesquisa

fenomenoloacutegica (GA61) Heidegger desenvolve esse aspecto e indica a problemaacutetica

central e radical a ser enfrentada a partir de Aristoacuteteles a saber ldquodesde de Aristoacuteteles se

manteacutem uma influecircncia taacutecita nas vias da visatildeo e da fala lsquoarticulaccedilotildeesrsquo loacutegicardquo

(HEIDEGGGER (GA61) 2011p11) Antes de entrarmos nessa problemaacutetica apontada

por Heidegger tentemos compreender o que o autor quis dizer com aquela afirmaccedilatildeo

Cito Puente (2001)

ldquoPara Aristoacuteteles foi precisamente a negaccedilatildeo do movimento que levou

Parmecircnides ao postulado da univocidade do ente e seraacute portanto a partir da

afirmaccedilatildeo irrestrita do movimento () que o Estagirita procuraraacute expandir os

horizontes do ente para aleacutem da mera dicotomia estabelecida por Parmecircnides

entre Ente e natildeo-enterdquo (p25)

69

Seguindo a leitura de Puente Aristoacuteteles encontrou a plurivocidade ao afirmar o

movimento no acircmbito dos entes Aleacutem disso como veremos nos desdobramentos a

seguir ele o fez submetendo o acircmbito ontoloacutegico ao acircmbito loacutegico Submissatildeo essa que

foi adotada por toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica que passou a entender a loacutegica como uacutenica via

de acesso agrave ontologia Pois a polivocidade categorial inserida no interior da

quadriparticcedilatildeo semacircntico-ontoloacutegica estaacute por sua vez submetida ao princiacutepio loacutegico de

natildeo contradiccedilatildeo Dito de outro modo as categorias aristoteacutelicas substacircncia

(οὐσία substantia) quantidade (ποσόν quantitas) qualidade (ποιόν qualitas) relaccedilatildeo

(πρός τι relatio) lugar (ποῦ ubi) tempo (ποτέ quando) estado (κεῖσθαι situs) haacutebito

(ἔχειν habere) accedilatildeo (ποιεῖν actio) e paixatildeo (πάσχειν passio) satildeo parte das quatro

possibilidades semacircnticas categoria acidente verdade atopotecircncia Reiterando as

possibilidades semacircnticas de dizer o ente estatildeo submetidas a um princiacutepio loacutegico

fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado ao princiacutepio de identidade

Soacute eacute possiacutevel desenvolver uma ontologia acerca dos entes naturais e sair da univocidade

ontoloacutegica de Parmecircnides se a semacircntica respeitar a impossibilidade loacutegica de uma

simultaneidade de atribuiccedilotildees contraacuterias a um ente ao mesmo tempo Os vaacuterios modos de

dizer o ser ldquoa refutaccedilatildeo confutatoacuteria agrave tese parmenidiana pode ser analisada entatildeo como

o desdobramento loacutegico do pressuposto de Parmecircnidesrdquo (PUENTES2001 p25)

Nesse sentido enfrentar a via loacutegica no interior da filosofia eacute enfrentar a tradiccedilatildeo

que compreendeu que a filosofia devia ser definida bem como seus objetos de forma

conceitual sob princiacutepios loacutegicos Em outras palavras superar a tentativa de dizer

previamente tanto o que a filosofia eacute quanto o que eacute seu objeto de investigaccedilatildeo E em

uacuteltima instacircncia superar a concepccedilatildeo tradicional metafiacutesica que compreende toda

ontologia condicionada agrave loacutegica pois ao ter acesso ao ente atraveacutes das categorias

arrasta a compreensatildeo da verdade agrave semacircntica extensional com lugar privilegiado na

proposiccedilatildeo reduzindo a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo56

56 Aqui eacute pertinente destacar uma consideraccedilatildeo de Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro no prefaacutecio agrave traduccedilatildeo do

texto de Aristoacuteteles As categorias (trad Fernando Coelho Florianoacutepolis Ed Da UFSC 2014 p 9-10)

ldquo A grande questatildeo realmente capaz de colocar a tradiccedilatildeo em xeque eacute a de saber se a compreensatildeo do real

pelas categorias ontoloacutegicas de substacircncia qualidade quantidade tempo lugar etc eacute o que eacute porque as

categorias gramaticais de substantivo e sujeito adjetivo e predicadoetcjaacute se instalaram de antematildeo e

predeterminaram o escopo daquela compreensatildeo ndash metafiacutesica como lsquofeacute na gramaacuteticarsquo como aponta

Nietzsche ndash ou se ao contraacuterio o limite da gramaacutetica ocidental para dizer o real eacute que eacute por ser preacute-limitada

por sua compreensatildeo metafiacutesicardquo

70

Para Heidegger a filosofia deve sempre voltar-se para a vida faacutetica e cabe agrave

definiccedilatildeo filosoacutefica tornar expliacutecita a interpelaccedilatildeo A filosofia natildeo eacute portanto um

conjunto de mateacuterias determinadas (loacutegica ontologia poliacutetica esteacutetica etc) No sentido

formal57 da definiccedilatildeo (determinar o objeto em seu ser-o-que-como [ was-wie-sein]) a

filosofia eacute indicativa (anzeigend) cujo princiacutepio possui um caraacuteter bem especiacutefico

identificar a visatildeo preacutevia Mas o que eacute essa visatildeo preacutevia

ldquoNatildeo haacute aqui como contornar a facticidade do mundo que eacute o nosso e isto natildeo

porque ela definiria a nossa postura em relaccedilatildeo agraves coisas e funcionaria como um

matiz de ordem espiritual em nossa ligaccedilatildeo com o todo mas porque ela perpassa

originariamente o horizonte mesmo a partir do qual os entes se mostram como os

entes que satildeo Esse horizonte possui aleacutem disso um caraacuteter histoacuterico

sedimentado Ele natildeo se determina de maneira loacutegico-transcendental () mas se

constroacutei historicamente a partir de decisotildees de pensamento que vatildeo

paulatinamente determinando que se mostra ou natildeo como dotado de sentidordquo

(CASANOVA 2009 p47)

Assim contra o pensamento imperante da tradiccedilatildeo

ldquoO que se denomina filosoacutefico assim como os termos de acordo com os quais

problemas considerados filosoacuteficos satildeo levantados natildeo nasce nunca de uma

anaacutelise puramente loacutegica Ao contraacuterio tanto a designaccedilatildeo de algo como

filosoacutefico quanto o modo de colocaccedilatildeo dos problemas filosoacuteficos em geral

depende de estruturas faacuteticas que foram sendo lentamente decididas no interior

da tradiccedilatildeo Se desconsiderarmos uma tal dependecircncia o que fazemos eacute

simplesmente assumi-las como oacutebvias () que impedem um tratamento

originaacuterio dos fenocircmenosrdquo (CASANOVA 2009 p 47)

Seguindo Escudero no proacutelogo escrito agrave sua traduccedilatildeo do Relatoacuterio Natorp (2002

p11) para atingir a realidade primaacuteria da vida faacutetica Heidegger nos anos 1920 se

movimenta em duas decisotildees A primeira decisatildeo metodoloacutegica eacute desdobrada em dois

momentos a) o primeiro desconstrutivo descerrar o intricado mapa conceitual da

filosofia e voltar-se ao fenocircmeno da vida b) e o segundo construtivo fazer uma anaacutelise

formal dos diversos modos de efetivaccedilatildeo da vida em seu processo de realizaccedilatildeo histoacuterica

E a segunda decisatildeo a anaacutelise das estruturas ontoloacutegicas da vida que corresponde agrave

hermenecircutica fenomenoloacutegica do ser-aiacute precisamente agrave pergunta pelo sentido do ser no

57 A loacutegica para Heidegger eacute formalista natildeo formal Diz-se formal em relaccedilatildeo agrave indicaccedilatildeo formalista em

relaccedilatildeo a operacionalidade dos elementos da loacutegica Cf HEIDEGGER 2011 p28

71

interior mesmo do acontecimento preacute-teoacuterico da cotidianidade do ser-aiacute para assim ter

acesso ao sentido do ser em geral

Portanto o meacutetodo fenomenoloacutegico como indicativo-formal eacute parte do processo

metodoloacutegico construtivo para o acesso agrave vida faacutetica como maneira de fazer vir ao

encontro os fenocircmenos sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica bem como a maneira de

desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos categoriais de definiccedilatildeo

O elemento decisivo eacute a experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica no como do

aparecer de qualquer objeto e na medida em que este possa ser definido ldquodevem ser

hauridas do modo como o objeto se torna acessiacutevel originariamenterdquo (HEIDEGGER

(GA61) 2011 p28) Com outras palavras qualquer significado compreendido como

indicativo-formal e a expressatildeo linguiacutestica desse conceito satildeo proposiccedilotildees caracterizadas

como indicaccedilotildees hermenecircuticas A terminologia filosoacutefica e seu questionar mais

originaacuterio devem a cada vez indicar o campo situacional histoacuterico de onde extraem seus

conceitos Nas palavras de Heidegger (GA61) ldquoo decisivo eacute o desdobramento radical e

claro de uma situaccedilatildeo hermenecircutica como temporalizaccedilatildeo da proacutepria problemaacutetica

filosoacuteficardquo (2011 p11) Portanto a interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do conhecimento58

para Heidegger exige uma modificaccedilatildeo a pergunta se transforma em ldquocomordquo eacute o

conhecimento ldquoComordquo as coisas vecircm ao encontro e natildeo mais uma definiccedilatildeo que

responderia agrave questatildeo com pretensatildeo atemporal ldquoo que eacute o conhecimentordquo ou ldquoo que eacute

este enterdquo

Por conseguinte os indicadores formais tecircm a funccedilatildeo de explicitar e natildeo de

explicar pois seu caraacuteter indicativo formal potildee em tela atraveacutes de um conceito

inicialmente vazio e sem caraacuteter determinador elementos da proacutepria facticidade

(Faktizitaumlt) para que a anaacutelise hermenecircutica possa compreendecirc-los no interior mesmo da

facticidade e dessa forma encontrar o lugar vivo de cada elemento na estrutura

ontoloacutegica da realidade Mas qual a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo

situacional sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica e que revele tanto a situaccedilatildeo

58 Aqui vemos o compromisso de Heidegger com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do

sentido do conhecimento diligecircncia herdada da fenomenologia Poreacutem agora submetida a abordagem

ontoloacutegica E nesse sentido a abordagem hermenecircutica de Heidegger revela o caraacuteter derivado (de uma

situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento

72

compreensiva quanto descontrua a evidecircncia de toda determinaccedilatildeo conceitual dos entes

revelando antes o seu aparecer como ente Eacute o tema de nosso proacuteximo toacutepico

III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger

Segundo Heidegger ldquoo decisivo na investigaccedilatildeo de Dilthey natildeo eacute a teoria da ciecircncia

da histoacuteria senatildeo a tendecircncia em colocar a realidade histoacuterica agrave vista para a partir dela

esclarecer de que modo e maneira eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo59rdquo (HEIDEGGER (GA20)

2006 p34) Contudo Dilthey se movimenta no marco do questionamento de sua eacutepoca

buscando atraveacutes da vivecircncia da consciecircncia trazer agrave vista a realidade e a validade das

ciecircncias histoacutericas pois busca a partir da vida psiacutequica do sujeito histoacuterico o fundamento

para a garantia da objetividade dos elementos histoacutericos

Ao apresentar o imperativo das ciecircncias naturais e sua apropriaccedilatildeo da noccedilatildeo de

fenocircmeno no final do seacuteculo XIX em Ontologia (Hermenecircutica da facticidade) (GA63)

Heidegger apontou que na tentativa de superaccedilatildeo da metodologia cientiacutefica natural

apesar de ter negado sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito Dilthey se movimentou a partir

dessa orientaccedilatildeo pois seu projeto consistiu em lanccedilar as bases teoacutericas em uacuteltima anaacutelise

com pretensatildeo cientiacutefica para a abordagem dos fenocircmenos histoacutericos

ldquoO trabalho da filosofia concentra-se cada vez mais na teoria da ciecircncia na loacutegica

em seu sentido mais amplo e justamente com a loacutegica na psicologia Ambas

tomam a orientaccedilatildeo da ciecircncia natural e em particular da teoria do

conhecimento que vendo-se realizada na ciecircncia natural o conhecimento

verdadeiro busca as condiccedilotildees de tal conhecimento na consciecircncia Pretende-se

fazer o mesmo com a ciecircncia do espiacuterito dando supostamente um passo adiante

na direccedilatildeo que Kant havia delineado Aqui se considera que a tarefa principal

consiste na demarcaccedilatildeo serviram aqui de criteacuterio a ciecircncia natural embora per

negationem [] Ateacute mesmo Dilthey o qual estaacute propriamente arraigado na

histoacuteria e na teologia caracterizava a ciecircncia do espiacuterito como lsquocriacutetica da razatildeo

histoacutericarsquo apoiando-se naturalmente na problemaacutetica kantianardquo (HEIDEGGER

(GA63) 2012 p76)

Como dissemos Dilthey busca uma epistemologia das ciecircncias humanas a partir

da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos E a vivecircncia particular da consciecircncia

59 ldquoLo decisivo em el planteamiento de Dilthey no es la teoriacutea de la ciencia de la historia sino la tendencia

a poner la realidad de lo histoacuterico a la vista para a partir de ello aclarar de queacute modo y manera es posible

la interpretaciacuteonrdquo Opcit p34

73

como vida conexa e estruturante eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu

projeto Mesmo que Dilthey natildeo recorra agrave noccedilatildeo kantiana de sujeito transcendental ainda

estaacute subordinado agrave necessidade de fundamentaccedilatildeo uacuteltima ndash obrigatoriedade do

pensamento cientiacutefico criacutetico - por isso parte dos dados da psicologia descritiva

acreditando que eles poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar para as ciecircncias

humanas Dito de outro modo ainda que Dilthey tenha se negado a aplicar a metodologia

das ciecircncias naturais agraves ciecircncias humanas natildeo escapou ao ideal cientiacutefico de sua eacutepoca e

sucumbiu ao enrijecimento tradicional da estrutura do conhecimento como fundamento

Contudo Dilthey deu uma grande contribuiccedilatildeo agrave filosofia de sua eacutepoca ao pocircr a

realidade histoacuterica agrave vista e ao propocirc-la como ponto de partida para a anaacutelise que visa

esclarecer de que modo eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo Afastado da estrutura do conhecimento

como fundamento Heidegger indica a anaacutelise hermenecircutica como a forma de apreensatildeo

da abertura originaacuteria de sentido na qual se encontra o ser-aiacute enquanto ser-no-mundo e

como a preacute-compreensatildeo de seu ser e de todo e qualquer ente Com poucas palavras a

hermenecircutica fenomenoloacutegica (ou intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica no interior da situaccedilatildeo

hermenecircutica) constitui a condiccedilatildeo de possibilidade de toda investigaccedilatildeo ontoloacutegica

Aqui o termo ldquosentidordquo natildeo significa definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo mas a manifestaccedilatildeo do

ente em seu ser ou seja no modo como aquilo pode vir ao encontro e se manter como

ente e em uacuteltima instacircncia manter-se em seu significado Assim a apreensatildeo filosoacutefica

dessa abertura de sentido primaacuteria deve ser alcanccedilada na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo de

compreensatildeo dos entes no modo como os entes vecircm ao encontro sem qualquer teoria

pela formaccedilatildeo da posiccedilatildeo preacutevia Eacute por isso que ldquoo decisivo para a configuraccedilatildeo de uma

posiccedilatildeo preacutevia eacute ver o ser-aiacute em sua cotidianidade A cotidianidade caracteriza a

temporalidade do ser-aiacute (concepccedilatildeo preacutevia) Eacute inerente agrave cotidianidade certa medianidade

do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER (GA63) 2012 p90)

Indicamos alguns termos que ainda natildeo foram devidamente esclarecidos como

ser-aiacute ser-no-mundo temporalidade Trataremos mais detidamente desses termos baacutesicos

para a compreensatildeo da filosofia de Heidegger no proacuteximo capiacutetulo a partir da obra

principal de nossa dissertaccedilatildeo No momento faremos apenas esclarecimentos breves para

que possamos prosseguir a nossa apresentaccedilatildeo

74

Na tentativa de desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos

categoriais de definiccedilatildeo (gecircnero e diferenccedila especiacutefica) e a fim de acessar a mostraccedilatildeo

originaacuteria do fenocircmeno Heidegger usa a expressatildeo ser-aiacute (Dasein) para caracterizar

aquele ente que noacutes mesmos somos e indicar sua negatividade categorial pois o ser-aiacute soacute

eacute a partir do seu aiacute de sua existecircncia (mundo faacutetico no qual eacute lanccedilado) sem qualquer

categoria preacutevia que o defina Ponderaccedilatildeo apresentada pelo autor

ldquoAo chamar de homem o ser-aiacute que iraacute investigar coloca-se jaacute de antematildeo dentro

de uma determinada concepccedilatildeo categorial visto que o exame eacute levado a cabo

seguindo a direccedilatildeo da definiccedilatildeo tradicional de lsquoanimal racionalersquo () Tendo tal

definiccedilatildeo como direccedilatildeo define-se a descriccedilatildeo numa perspectiva determinada

sem que com ela se recuperem ativamente os motivos originaacuterios de tal maneira

de ver as coisasrdquo (HEIDEGGER(GA63) 2012 p34)

Mas entatildeo o que significa dizer que o ser-aiacute se encontra enquanto ser-no-mundo

Ao indicar o ser-aiacute Heidegger jaacute aponta a sua constituiccedilatildeo fundamental como ser-no-

mundo Mundo natildeo eacute um ente natildeo eacute o conjunto de entes nem eacute qualquer espacialidade

geomeacutetrica Ser-no-mundo eacute o encontro originaacuterio com a proacutepria facticidade (Faktizitaumlt)

e todas as possibilidades lanccediladas nesse encontro primordial ou como jaacute dissemos a

abertura de sentido na qual se encontra o ser-aiacute primariamente em seu mundo circundante

ldquoSer-no-mundo natildeo quer dizer aparecer entre outras coisas significa poreacutem

ocupar-se no circundante do mundo que vem ao encontro demorar-se nele O

modo proacuteprio de ser mesmo num mundo eacute o cuidado (sorge) () A vida se deixa

atingir ou fala consigo mesma mundanamente no e pelo cuidadordquo (HEIDEGGER

(GA63)2012 p107)

Se Dilthey compreende a categoria do significado como mediadora entre a

vivecircncia da consciecircncia e a realidade histoacuterica para Heidegger a significacircncia eacute a

articulaccedilatildeo do proacuteprio mundo que natildeo vem ao encontro a partir da consciecircncia mas da

ocupaccedilatildeo jaacute orientada pela facticidade (Faktizitaumlt) ldquoA significacircncia eacute um como do ser e

nele centra-se precisamente o categorial do mundo do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER(GA63)

2012 p91) E assim a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo situacional

sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica se daacute a partir da ocupaccedilatildeo do ser-aiacute que estaacute no mundo

propriamente como cuidado Cuidado natildeo quer dizer cuidado de si mas a disposiccedilatildeo agraves

coisas e a si em seu ser estar voltado para o ser dos entes E no caso da imediatidade da

vida a intencionalidade praacutetica que orienta a ocupaccedilatildeo

75

Para Heidegger trazer a realidade histoacuterica agrave vista eacute apropriar-se da situaccedilatildeo

hermenecircutica ou seja conquistar o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se

encontra o fenocircmeno da vida considerando que ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto

apropriaccedilatildeo compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo

(HEIDEGGER(GA62) 2002 p30) Em outras palavras o passado se manifesta sob a

interpretaccedilatildeo e abertura compreensiva possiacutevel no presente E portanto a partir da

abertura que dispotildee o presente lanccedilando suas possibilidades a tarefa da filosofia eacute

apropriar-se dessa compreensatildeo tendo em vista que ela atravessa o ser-aiacute em seu caraacuteter

ontoloacutegico que pode abrir-se a compreensatildeo de ser dos entes Eacute a partir daiacute que

ldquoVem agrave tona o papel paradigmaacutetico da filosofia platocircnico-aristoteacutelica para

Heidegger Segundo o filoacutesofo o que tem lugar em Platatildeo e Aristoacuteteles natildeo eacute algo

que diz respeito apenas ao interesse acadecircmico particular de um grupo de eruditos

especializados em suas obras Natildeo eacute filologia que nos fornece uma primeira via

de acesso aos elementos centrais de suas diversas compreensotildees nem tampouco

a filosofia acadecircmica que nos propicia pela primeira vez uma visatildeo clara do perfil

propriamente dito de seus escritos geniais Ao contraacuterio Platatildeo e Aristoacuteteles satildeo

decisivos para a constituiccedilatildeo das estruturas preacutevias de nossa interpretaccedilatildeo dos

entes porque temos neles a origem de boa parte dos horizontes investigativos

posteriormente sedimentadosrdquo (CASANOVA 2009 p59)

Heidegger entatildeo busca em Aristoacuteteles o ponto de partida natildeo soacute para as

interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas enquanto repeticcedilatildeo da pergunta ontoloacutegica fundamental

como tambeacutem para a interpretaccedilatildeo do uacutenico ente capaz de compreender o sentido do ser

dos entes o ser-aiacute Natildeo sem questionar a leitura tradicional da obra de Aristoacuteteles

Heidegger retomou a importante ldquodoutrinardquo do estagirita a qual estabelecia uma relaccedilatildeo

entre a sabedoria praacutetica (φρόνησις) a sabedoria (σοφία) e a vida do homem e seu modo

de existecircncia (βιος) De modo mais claro

ldquoAteacute Heidegger era comum tratar a obra de Aristoacuteteles a partir de um primado

da filosofa teoacuterica em relaccedilatildeo agrave filosofia praacutetica um primado que havia sido

preparado pelo modo tradicional de leitura do estagirita Partindo da concepccedilatildeo

aristoteacutelica da vida teoacuterica (βίος θεωρητικός) como a vida mais plena possiacutevel e

da filosofia como uma ciecircncia que natildeo se ateacutem aos entes em geral nem tampouco

a um ente especiacutefico mas que tem por uacutenico objeto o ser enquanto ser a

interpretaccedilatildeo tradicional do corpus aristoteacutelico cindiu radicalmente o acircmbito

praacutetico do acircmbito teoacuterico definindo o segundo como o uacutenico acircmbito da verdade

propriamente dita Com isso o acircmbito praacutetico foi relegado a um segundo plano

ao plano daquilo que dizia respeito apenas agrave melhor forma mundana de vidardquo

(CASANOVA 2009 p64)

76

O que estaacute em questatildeo para Heidegger natildeo eacute apenas identificar o fato de que nos

encontramos numa determinada tradiccedilatildeo definida por um extrato do conhecimento

historiograacutefico mas compreender radicalmente como nos situamos nessa tradiccedilatildeo No

texto de 1922 Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da

situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) comumente chamado de Natorp-Bericht ou Relatoacuterio-

Natorp Heidegger tenta explicitar a situaccedilatildeo hermenecircutica atraveacutes do como (wie) de todo

aparecer dos entes e das possibilidades do ser-aiacute na vida faacutetica Sendo o ser-aiacute aquele que

compreende a si mesmo e os outros entes sem qualquer preacutevia teorizaccedilatildeo em seu

acontecimento compreensivo Para tanto eacute necessaacuterio esclarecer as condiccedilotildees de

compreensatildeo e interpretaccedilatildeo ou conquistar o horizonte de sentido jaacute aberto no qual jaacute se

encontra o fenocircmeno da vida As condiccedilotildees satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a

direccedilatildeo da visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a

lsquovisibilidadersquo (Sichtweite)60 Satildeo essas condiccedilotildees que compotildeem a compreensatildeo e a

interpretaccedilatildeo ontoloacutegicas-temporais do ser-aiacute em relaccedilatildeo agraves suas possibilidades de ser e

em relaccedilatildeo aos entes que lhe vem ao encontro Essas condiccedilotildees natildeo satildeo lsquobarreirasrsquo para

o entendimento ao contraacuterio satildeo condiccedilotildees de abertura primaacuteria para qualquer

compreensatildeo ontoloacutegica Tentando esclarecer em (1) temos o acircmbito da realidade dada

em uma preacutevia abertura temporal de sentido em (2) a direccedilatildeo que jaacute determinou algo

ldquocomo-algordquo (Als-was) e ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu

lugar significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de

toda possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o

como do aparecer dos entes em seu ser e as possibilidades de comportamentos do ser-aiacute

eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto (1) e jaacute

interpretado (2) e por isso pode mover-se com pretensotildees de objetividade e definiccedilatildeo dos

entes

Eacute a partir dessas consideraccedilotildees que Heidegger desconstroacutei as noccedilotildees de

Aristoacuteteles engessadas pela tradiccedilatildeo de noucircs phroacutenesis e sophiacutea natildeo mais como

conceitos definidos a partir da leitura tematicamente eacutetica do Estagirita mas a partir da

orientaccedilatildeo da biacuteos ou seja da vida do homem e seu modo de existecircncia faacutetica No interior

do Relatoacuterio-Natorp a partir da interpretaccedilatildeo do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco de

60 Cf HEIDEGGER(GA62)2002 p29

77

Aristoacuteteles Heidegger apresenta essas virtudes dianoeacuteticas como ldquodiferentes

modalidades que permitem levar a cabo uma autecircntica custoacutedia do ser na verdade61rdquo

(HEIDEGGER (GA62) 2002 p60) O que quer dizer que se trata dos modos pelos quais

o ser-aiacute protege o ser dos entes enquanto desvelado (ἀλήθεια)

Para Heidegger o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona

um lsquoaquirsquordquo62 (HEIDEGGER(GA62) 2002 p66) essa virtude proacutepria do homem ldquose

realiza como ενέργεια como atividade () ou seja o νους abre um horizonte que sempre

responde a um modo concreto de tratar com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma

execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma determinaccedilatildeo63rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002

p66) O noucircs compreendido tradicionalmente como intelecto racional eacute proacuteprio do

homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica (homem (animal [gecircnero] + racional [diferenccedila

especiacutefica]) mas porque o homem ou melhor o ser-aiacute eacute o ente que pode custodiar abrir-

se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um compreender que jaacute interpreta

os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto na vida faacutetica que acontece

fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da

solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato praacutetico com os entes Essa

orientaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel porque no noucircs ldquoo loacutegos o legein eacute o modo atraveacutes do qual se

realiza o noein e como tal eacute um como tal eacute um διανοείσθαι um inteligir que decompotildee

e que apreende64rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002 p65) Vimos (II) que o λόγος na

fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν de interpretaccedilatildeo e natildeo diz

respeito agrave definiccedilatildeo linguiacutestica de um ou outro ente mas previamente a qualquer

determinaccedilatildeo gramatical ou categorial refere-se ao que manteacutem o ente como existente

portanto desvelado e interpretado em seu lsquocomo-entersquo Assim a relaccedilatildeo fundamental da

phroacutenesis - que prescreve o como o para-que do ente (utensiacutelio) - ao ser-aiacute eacute o

61 ldquoLa interpretacioacuten de este tratado prescindiendo provisionalmiente de la problemaacutetica especiacuteficamente

eacutetica permite comprender que las laquovirtudes dianoeacuteticasraquo son diferentes modalidades que permiten llevar a

cabo uma auteacutentica custodia del ser en la verdaderdquo Opcitp60 62 ldquoEl νους ofrece en general una perspectiva da algoproporciona un lsquoaquiacutersquordquoOp cit p66

63 ldquoEl νοῦς que es ίδιος άνθρωπος se realiza concretamente como ενέργεια como actividad como su

propia actividad es decir el νοῦς abre un horizonte que siempre responde a un modo concreto de tratar

con el mundo a traveacutes de una opercioacuten de una ejecucioacuten de una manipulacioacuten de una determinacioacutenrdquo

Opcitp66

64 ldquoel λόγος el λέγειν es el modo em el que se realiza el νοεῖν y como tal es un διανοείσθαι un inteligir

que decompone lo que apreenderdquo Opcit p65

78

desvelamento do ente no instante do proacuteprio trato da proacutepria atividade praacutetica sem

qualquer mediaccedilatildeo teoacuterica com o ente

Mas as atividades praacuteticas satildeo realizadas natildeo com fim em si mesmas mas com

vistas agrave execuccedilatildeo de um fim mobilizado pelo proacuteprio ser-aiacute em sua vida cotidiana e faacutetica

Assim o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se encontra o fenocircmeno da vida

parte do instante mesmo que potildee ao alcance da vista circunspecta o modo de

comportamento apropriado com o ente com vistas agrave execuccedilatildeo de um fim Desse modo

ldquoO ser da vida eacute considerado como uma atividade que encontra em si mesmo seu

fim o ser da vida se encontra nessa atividade quando a vida humana chegou a

seu fim com respeito a sua possibilidade de movimento mais proacutepria a

possibilidade de inteligir puro Essa atividade eacute proacutepria da εξις [do modo de ser]

que se conhece como σοφία Conforme seu caraacutecter intencional o compreender

puro natildeo custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo

forma parte do horizonte intencional da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso

pode ser de outra maneira O ser da vida humana deve ser considerado

unicamente desde a perspectiva da temporalizaccedilatildeo pura da σοφία como tal e em

razatildeo da autecircntica atividade a sua disposiccedilatildeordquo65 (HEIDEGGER (GA62) 2002

p71)

Assim o sentido do ser soacute pode ser abordado atraveacutes do ser-aiacute pois a pergunta

pelo ser do ser-aiacute possibilita a pergunta pelo sentido do ser em geral natildeo por um

fundamento teoacuterico mas como uma condiccedilatildeo ontoloacutegica O ser-aiacute eacute o ente que pode abrir-

se ao desvelamento dos entes e o faz a partir da proacutepria vida faacutetica sem qualquer

teorizaccedilatildeo preacutevia o ser-aiacute mobiliza o ser dos entes em geral em funccedilatildeo da proacutepria vida

ou seja dos modos possiacuteveis de ser a partir de sua temporalidade

Desde as primeiras investigaccedilotildees de Heidegger na deacutecada de 1920 daacute-se uma

profunda transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia a qual consiste na tentativa de

mostrar como eacute possiacutevel articular filosoficamente uma ciecircncia originaacuteria da vida ou em

mostrar como se daacute a realidade antes de qualquer consideraccedilatildeo cientiacutefica ajuizante isso

65 ldquoEl ser de la vida es considerado como uma actividad que encuentra em siacute mesma su fin el ser da la vida

se encuentra em esta actividad cuando la vida humana haacute llegado a su fin com respecto a su posibilidad de

movimento maacutes propia la posibilidad del inteligir puro Esta actividad es propia de la εξις [del modo de

ser] que se conoce como σοφία Conforme a su caraacutecter intencional el comprender puro no custodia la vida

humana en el modo de su ser faacutectico la vida humana no forma parte del horizonte intencional de la σοφία

ya que es un ente que en cada caso puede ser de otra manera El ser de la vida humana debe considerarse

unicamente desde la perspectiva de la temporalizacioacuten pura de la σοφία como tal y en razoacuten de la auteacutentica

actividad a su disposicioacutenrdquo Opcitp71

79

quer dizer antes de qualquer concepccedilatildeo teoacuterica de mundo Nesse sentido vimos que a

intencionalidade fenomenoloacutegica eacute intuiccedilatildeo compreensiva ou intuiccedilatildeo hermenecircutica em

meio ao mundo circundante que vem ao encontro E as coisas que vecircm ao encontro natildeo

respondem primariamente ao tradicional esquema sujeito-objeto mas resultam

compreensiacuteveis a partir da pertenccedila preacutevia a um mundo jaacute articulado ou a partir de um

estado de coisas preacute-compreendido na vida faacutetica que articula toda e qualquer

compreensatildeo do homem (das coisas e de si mesmo) desde sua existecircncia imediata no

mundo Dito de outro modo revela-se como compreensatildeo ontoloacutegica

Ao decidirmos apresentar as preleccedilotildees de Heidegger que antecederam a obra central

para o nosso trabalho foi nosso intuito elucidar os princiacutepios que provavelmente

motivaram a problemaacutetica exposta em Ser e Tempo A partir de agora nossa tarefa seraacute a

de tentar compreender a partir da obra de 1927 como o fenocircmeno da linguagem aparece

no interior dessa compreensatildeo e em que medida a linguagem eacute possiacutevel por uma

estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Eacute a tentativa de nosso proacuteximo capiacutetulo

80

Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da

linguagem (Sprache) em Ser e Tempo

ldquoa maacutequina do mundo se entreabriu para quem de a romper jaacute se esquivava e soacute de o ter pensado se carpiardquo (A maacutequina do mundo Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

Nos capiacutetulos anteriores descrevemos como do desenvolvimento das ciecircncias

positivas particulares no final do seacuteculo XIX emergiu a discussatildeo acerca do sentido e da

possibilidade do conhecimento No interior desse contexto destacamos o pensamento de

Husserl de Dilthey e as linhas gerais de alguns neokantianos de Baden A partir daiacute

descrevemos como a criacutetica heideggeriana agrave filosofia dos valores dos neokantianos

conduziu-o ao que ele proacuteprio chamou de lsquoes gibtrsquo originaacuterio como o campo

hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Para compreender a questatildeo pelo

sentido do ser em geral ie a proacutepria ontologia para Heidegger era necessaacuterio esclarecer

que a fenomenologia natildeo estava fundada na epistemologia (a partir da consciecircncia) e que

a hermenecircutica natildeo era apenas um instrumento metodoloacutegico capaz de nos dar acesso agrave

histoacuteria em sua objetividade mas muito mais do que isso ela era intuiccedilatildeo compreensiva

e imediata do mundo Assim a partir da criacutetica imanente que Heidegger fez ao meacutetodo

fenomenoloacutegico husserliano foi possiacutevel compreender como ele reconduziu a filosofia agrave

pergunta fundamental inaugurada no iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo a

pergunta pelo ser Aleacutem disso como o pensador desenvolveu a hermenecircutica voltada agrave

facticidade da vida natildeo em funccedilatildeo das vivecircncias da consciecircncia dos sujeitos histoacutericos

mas das vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico Todo esse percurso foi necessaacuterio para que

pudeacutessemos conquistar um solo interpretativo capaz de sustentar a anaacutelise do fenocircmeno

da linguagem tal como aparece em Ser e Tempo E ainda alcanccedilar a pergunta pelo

81

sentido de ser Pois ela a pergunta estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura

de sentido que precisamos explicitar

Contra a tradicional abordagem do problema da linguagem que mais comumente

focalizou as obras de Heidegger apoacutes a viragem (die Kehre)66 ie os escritos a partir

da deacutecada de 1930 neste capiacutetulo defenderemos que o fenocircmeno da linguagem (Sprache)

jaacute desempenha um papel decisivo em Ser e Tempo e que ele soacute se torna possiacutevel a partir

de uma das estruturas preacutevias existenciaacuterias examinadas na citada obra e que eacute a

estrutura de mostraccedilatildeo dos entes Assim embora admitindo que a questatildeo da linguagem

ainda natildeo estivesse posta de modo expliacutecito ou temaacutetico nosso trabalho pretende chamar

atenccedilatildeo para a inegaacutevel funccedilatildeo que a linguagem cumpre jaacute na obra de 1927

No sect 18 de Ser e Tempo Heidegger afirma que a significatividade funda a

possibilidade de significaccedilotildees e estas a possibilidade da linguagem

Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez

familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o

Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como

lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutengua

(HEIDEGGER 2012p261)

66 Apoacutes a Kehre nos anos 1930 a questatildeo do sentido de ser eacute reconduzida agrave histoacuteria e verdade do seer Este

movimento estaacute diretamente relacionado com o limite mesmo da obra de 1927 pois o processo de

singularizaccedilatildeo do ser-aiacute conforme elaborado em Ser e Tempo parece natildeo ser suficiente para a

movimentaccedilatildeo do horizonte histoacuterico e de sua semacircntica fechada Essa insuficiecircncia eacute levada agraves uacuteltimas

consequecircncias a partir dos anos 1930 e radicalizada com uma viragem em direccedilatildeo ao campo dos

acontecimentos histoacutericos Em Ser e tempo a negatividade proacutepria ao ser-aiacute apontava para a possibilidade

de mobilidade histoacuterica a partir da assunccedilatildeo como singularizaccedilatildeo de sua proacutepria negatividade e de sua

responsabilidade mais proacutepria como ser-aiacute de decisatildeo quanto aos caminhos de sua proacutepria existecircncia Jaacute

apoacutes a viragem a negatividade se mostraraacute natildeo somente a partir do ser-aiacute mas tambeacutem no assentamento

de toda abertura histoacuterica compreensiva uma negatividade que se mostraraacute na ausecircncia mesma de

fundamentos absolutos Caberia ademais considerar um aprofundamento das estruturas fenomenoloacutegicas

mais fundamentais no decorrer do pensamento de Heidegger Seraacute que em Ser e Tempo podemos defender

que a abertura que sustenta o sentido de ser do ser-aiacute como cuidado e temporalidade (Zeitlichkeit) estaria

afinal assentada no tempo histoacuterico Questatildeo afinal expressa na uacuteltima linha de Ser e tempo ldquoO tempo

(Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Seria entatildeo possiacutevel

pensar esse aprofundamento do gesto fenomenoloacutegico como a busca do limite de qualquer

intencionalidade Dito de outro modo apoacutes a Kehre o ser enquanto Ereignis (acontecimento apropriador)

poderia ser compreendido como o acircmbito sempre fugidio de toda e qualquer intencionalidade mas ao

mesmo tempo acircmbito no qual unicamente toda e qualquer intencionalidade pode acontecer Revelar-se-ia

o sentido fenomenoloacutegico do que Heidegger chama de clareira (die Lichtung)

82

Na seacutetima ediccedilatildeo de Ser e Tempo publicada em 1953 numa nota muito

esclarecedora acrescentada justamente a esta passagem acima citada Heidegger

evidenciou a diferenccedila entre a sua concepccedilatildeo da linguagem nos anos 20 e aquela apoacutes a

viragem Essa nota apareceu nas obras completas publicadas a partir de 1977 e tambeacutem

na traduccedilatildeo brasileira aqui utilizada Nessa nota muito importante para o objetivo desta

pesquisa o autor corrigiu sua proacutepria afirmaccedilatildeo (1927) de que a linguagem era derivada

Em 1953 ele declarou categoricamente que natildeo era verdadeiro que ldquoDasein-que-entende

[pudessecc] abrir como interpretante algo assim como lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais

[fundariamcc] novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo E que ldquoa liacutengua natildeo eacute

um pavimento sobreposto a outro senatildeo que eacute o desdobrar-se originaacuterio da verdade como

[aiacute] (HEIDEGGER 2012p261 nota c) Essa correccedilatildeo nos daacute uma prova de que a

concepccedilatildeo de linguagem em Ser e Tempo possuiacutea uma estratificaccedilatildeo que natildeo mais eacute aceita

apoacutes os anos 30 Poreacutem como aponta Stein o fenocircmeno da linguagem jaacute desempenhava

um importante e inegaacutevel papel no interior do tratado de 1927

Heidegger liga o questionamento de sua obra prima ao problema da linguagem

Ela assume papel condutor na elaboraccedilatildeo de seu meacutetodo e na realizaccedilatildeo analiacutetica

existencial No meacutetodo fenomenoloacutegico como interpretaccedilatildeo ou hermenecircutica

universal como apossamento de tudo o que foi transmitido pela tradiccedilatildeo atraveacutes

da linguagem como destruiccedilatildeo e revolvimento do chatildeo linguiacutestico da metafiacutesica

ocidental se descobre um imenso projeto de analiacutetica da linguagem Mas como

o meacutetodo fenomenoloacutegico visa o redimensionamento da questatildeo do ser natildeo numa

abstrata teoria do ser nem numa pesquisa historiograacutefica de questotildees ontoloacutegicas

mas numa imediata proximidade com a praacutexis humana como existecircncia e

facticidade a linguagem - o sentido a significaccedilatildeo - natildeo eacute analisada nun sistema

fechado de referecircncias mas ao niacutevel da historicidade Se no meacutetodo dialeacutetico

podemos encontrar uma certa miacutestica teleo-loacutegica (teleacuteo-troacutepica) a palavra no

meacutetodo do positivismo uma certa tecno-loacutegica da linguagem encontramos no

meacutetodo fenomenoloacutegico de Heidegger uma certa onto-loacutegica do dizer isto eacute uma

compreensatildeo da dimensatildeo preacute-ontoloacutegica da linguagem ligada a explicitaccedilatildeo do

mundo como horizonte de transcendecircncia (STEIN1971 p14)

Ser e Tempo possui certo caraacuteter preparatoacuterio pois eacute a tentativa de reformulaccedilatildeo

da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido depende justamente daquela

reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo O objetivo do tratado

eacute nos proacuteprios termos de Ser e Tempo a elaboraccedilatildeo concreta da pergunta pelo sentido

de ldquoserrdquo (Sinn von Sein) (HEIDEGGER2012 p31) No interior da elaboraccedilatildeo da proacutepria

83

pergunta a abordagem fenomenoloacutegica-hermenecircutica como meacutetodo de acesso ao sentido

de ser de todo ente acaba por demonstrar que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as

coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um campo de signos referenciais fechados que

doam significado agraves coisas mas uma manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez

se faz presente na facticidade da existecircncia concreta Nossa tentativa no presente capiacutetulo

eacute compreender como a partir da reelaboraccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ser e de seu

desenvolvimento nessa obra a linguagem se mostra enquanto manifestaccedilatildeo uacuteltima de um

horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo previamente

articulada dos entes e das possibilidades do ser-aiacute E dessa maneira indicar como as

palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da

experiecircncia hermenecircutica Mas antes de iniciarmos nosso capiacutetulo eacute necessaacuterio fazer

algumas consideraccedilotildees que se tornaram agora possiacuteveis apoacutes o desenvolvimento dos

capiacutetulos anteriores e as quais balizam nossa investigaccedilatildeo central

Certamente a fenomenologia husserliana tambeacutem natildeo atribui agrave linguagem um

aspecto referencial de acesso agraves coisas ao contraacuterio a assim chamada visatildeo das essecircncias

eacute a maneira de depurar o conteuacutedo linguiacutestico do conteuacutedo significativo preacute-linguiacutestico

Nas palavras de Gadamer (2010 p8)

A eleiccedilatildeo do modelo da visatildeo como modo do procedimento fenomenoloacutegico

indica que coisa mesma eacute preacute-conceptual e preacute-linguiacutestica A linguagem permite

articular o sentido da coisa mesma que contudo eacute independente da linguagem Eacute

aliaacutes apenas neste quadro que o exerciacutecio da eacutepoche se torna compreensiacutevel A

epocheacute eacute o que torna possiacutevel a reduccedilatildeo ao estado absolutamente desprovido de

preconceitos Mas o que eacute que torna a epocheacute possiacutevel A epocheacute eacute considerada

por Husserl como uma possibilidade de princiacutepio e como uma possibilidade

universal Mas esta possibilidade pressupotildee que se possa passar de uma plano

predicativo ndasho da linguagem ndash para um plano ante-predicativo - o da pura visatildeo

[] Por outro lado aquilo que se daacute de uma forma originaacuteria e na sua pureza daacute-

se como presenccedila absoluta numa figuraccedilatildeo atemporal Os fenoacutemenos no sentido

husserliano caracterizam-se por serem dados agrave consciecircncia de uma forma

absolutamente evidente e uacuteltima o fenoacutemeno eacute absoluta presenccedila a sua doaccedilatildeo

eacute plena

Husserl busca avanccedilar ateacute um plano imediato da experiecircncia que anteceda agrave

interpretaccedilatildeo como experiecircncia preacute-linguiacutestica a partir de intenccedilotildees linguiacutesticas Assim

busca na intencionalidade do fenocircmeno um estado desprovido de preconceito (epocheacute)

Heidegger alia-se a Husserl contra a tese de que o sentido ou o significado sejam

84

linguiacutesticos Contudo para o autor de Ser e Tempo toda experiecircncia jaacute inclui uma

interpretaccedilatildeo certamente natildeo linguiacutestica mas hermenecircutica e fundamentalmente praacutetica

Dessa forma intencionar um fenocircmeno a partir de um horizonte histoacuterico hermenecircutico eacute

considerar e apropriar-se do significado oferecido pelas condiccedilotildees preacutevias e em uacuteltima

anaacutelise por uma semacircntica sedimentada Dito de outro modo para Husserl a expressatildeo

linguiacutestica eacute a maneira de o pensamento intencionar significaccedilatildeo e a orientaccedilatildeo da

pesquisa pela condiccedilatildeo e possibilidade do conhecimento suspende todo posicionamento

ontoloacutegico da coisa mesma em prol do acesso epistemoloacutegico objetivo aos fenocircmenos Jaacute

na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto ontoloacutegico do

conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e qualquer significado

que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido que eacute tambeacutem histoacuterico e no qual

algo pode manter-se em seu significado Eacute nessa perspectiva que nos colocamos em busca

da estrutura ontoloacutegica da linguagem

Portanto eacute importante ter em vista que para Heidegger

(1) a experiecircncia hermenecircutica traz a significatividade (Bedeutsamkeit) que potildee a

descoberto todo e qualquer ente E na medida em que essa experiecircncia orienta o ponto

de partida da intencionalidade67 ela desvela o ente em seu ser o qual (ente) aparece

como algo No entanto essa significatividade se manteacutem em virtude de uma dupla

67 O termo ldquoDaseinrdquo eacute utilizado por Heidegger para afastar qualquer compreensatildeo de homem como

ldquosujeitordquo ldquoconsciecircnciardquo ldquoanimal racionalrdquo etc Desse modo poder-se-ia pensar que uma vez afastadas

essas interpretaccedilotildees tambeacutem o termo lsquointencionalidadersquo deveria ser desconsiderado pois a fenomenologia

husserliana o utiliza como ato de consciecircncia Natildeo eacute o caso Heidegger ainda manteacutem a orientaccedilatildeo

fenomenoloacutegica poreacutem a desloca da consciecircncia para a abertura compreensiva sendo ser-aiacutemundo a

relaccedilatildeo intencional primaacuteria e ainda essa compreensatildeo eacute fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo

circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser Ou sejavisatildeo natildeo teoacuterica

sem a primazia da consciecircncia A intencionalidade eacute pensada portanto natildeo como ato de consciecircncia mas

abertura compreensiva mobilizada por toda e qualquer performatizaccedilatildeo existencial Em Ser e Tempo o

termo lsquointencionalidadersquo e seus derivados aparecem apenas 4 vezes em 2 momentos 1) No sect10 ldquoAgrave essecircncia

da pessoa pertence o existir somente na execuccedilatildeo dos atos intencionais [intentionalen] e assim ela por

essecircncia natildeo eacute objeto () Em todo caso a pessoa eacute dada enquanto executora de atos intencionais

[intentionaler]ligados pela unidade de um sentidordquo (2012 p155) 2) No sect69 nota 10 ldquoA anaacutelise

intencional [intentionalen] da percepccedilatildeo e da intuiccedilatildeo em geral deveria sugerir essa caracterizaccedilatildeo

lsquotemporalrsquo do fenocircmeno Que e como a intencionalidade [Intentionalitaumlt] da lsquoconsciecircnciarsquo se funda na

temporalidade estaacutetica do Dasein ()rdquo Essa uacuteltima passagem eacute decisiva A intencionalidade eacute portanto

mantida por Heidegger mas deve ser compreendida em funccedilatildeo do sentido de ser do ser-aiacute a temporalidade

que abre compreensivamente o ser dos entes em geral Cf tambeacutem nota 70

85

abertura de sentido (Sinn) a abertura de mundo em funccedilatildeo do ser-aiacute e o sentido de ser

do ser-aiacute em funccedilatildeo da temporalidade de sua existecircncia

(2) a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados

(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Entatildeo o significado pode

vir a ganhar sua expressatildeo e forma predicativas a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo

(Aussage) em sua ligaccedilatildeo derivativa da interpretaccedilatildeo (Auslegung) Apresentando dessa

maneira o caraacuteter originaacuterio da verdade enquanto desvelamento (Aleacutetheia) e natildeo como

aderente ao juiacutezo proposicional como compreendeu a tradiccedilatildeo Eacute assim que se daacute

primariamente o acesso ao fenocircmeno da linguagem em seu sentido ontoloacutegico

Podemos antecipar aqui o que seraacute desenvolvido nesse capiacutetulo a linguagem estaacute

assentada em duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado68 que

revelam a diferenccedila entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm

articulados pela imbricaccedilatildeo radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno

Finalmente pedindo a paciecircncia do nosso leitor antes de comeccedilarmos o capiacutetulo

III vamos repetir um pouco o que jaacute foi adquirido nos dois primeiros capiacutetulos da

Dissertaccedilatildeo quando tentamos mostrar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger no

interior da fenomenologia (a partir de sua criacutetica imanente e radicalizaccedilatildeo do gesto

fenomenoloacutegico) foi decisiva para a virada da questatildeo compreendida como possibilidade

de acesso pelo sentido do conhecimento ao sentido do ser Agora a partir de Ser e Tempo

eacute possiacutevel considerar que houve um aprofundamento desse gesto fenomenoloacutegico Por

outra teria ocorrido um aprofundamento ou uma radicalizaccedilatildeo das estruturas

fenomenoloacutegicas De modo mais claro eacute possiacutevel compreender o percurso heideggeriano

como uma tentativa de lanccedilar a intencionalidade enquanto essecircncia mesma da

68 Diferentemente de VIGO (2012 p71) que considera 3 estruturas compreensatildeo (Verstehen) -

interpretaccedilatildeo (Auslegung) e enunciado (Aussage) noacutes consideraremos apenas duas tendo em vista que

julgamos natildeo ser a compreensatildeo uma estrutura autocircnoma e que portanto ela natildeo deve ser separada da

interpretaccedilatildeo Seguimos a letra do sect32 de Ser e Tempo ldquoNa interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo

diverso mas torna-se ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p421) Pensamos que conceder autonomia agrave

compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido primaacuterio ao natildeo remetecirc-la ao Dasein quem

compreendendo jaacute interpreta e custodia o sentido de ser dos entes jaacute estariacuteamos no campo dos

acontecimentos histoacutericos Portanto estariacuteamos ultrapassando os limites de Ser e Tempo ou mais

especificamente falando os limites da ldquoAnaliacutetica Existencialrdquo

86

fenomenologia num acircmbito fundamental que se abriria a toda e qualquer possibilidade

de intencionalidade Vejamos essas questotildees mais detidamente

Como jaacute indicado tanto em Heidegger como em Husserl existe um primado da

experiecircncia antepredicativa em detrimento da predicaccedilatildeo ou da experiecircncia

predicativamente articulada69 Jaacute na preleccedilatildeo de 1919 Heidegger apontava o lsquoes gibtrsquo

originaacuterio ou a concretude do mundo que se daacute como acircmbito fundamental no qual se abre

a possibilidade de intencionalidade Depois dela as preleccedilotildees dos anos 1920 passaram a

descrever a intencionalidade como uma noccedilatildeo praacutetica orientada pela ocupaccedilatildeo e com base

nisso descreveram a experiecircncia antepredicativa e histoacuterica do significado Mas foi

somente em Ser e Tempo que Heidegger elaborou uma ontologia fundamental a partir da

analiacutetica existenciaacuteria70 do ser-aiacute A ontologia fundamental eacute descrita como a necessidade

de pocircr em questatildeo o ente em que a compreensatildeo de ser enquanto questatildeo eacute possiacutevel ou

como expresso no Relatoacuterio Natorp o ente que pode custodiar abrir-se ao desvelamento

do ser dos entes Mas o que isso significa sob uma perspectiva fenomenoloacutegica

A descriccedilatildeo do ser-aiacute como existecircncia projetiva assentada em sua negatividade

proacutepria (negatividade entendida pelo fato de que o ser-aiacute soacute eacute a partir do seu aiacute de sua

69 Nesse sentido conferir tambeacutem VIGO 2012 p75 70 Na traduccedilatildeo de Ser e Tempo utilizada os termos Existenzial e Existenzielle satildeo traduzidos por

ldquoexistenciaacuteriordquo e ldquoexistencialrdquo respectivamente A diferenccedila foi estabelecida por Heidegger para marcar a

determinaccedilatildeo constitutiva da existecircncia (ou sua estrutura) cuja determinaccedilatildeo cabe agrave ontologia

(existenciaacuterio) da determinaccedilatildeo existencial (existencial) que trata de um assunto ocircntico do Dasein ou de

um conhecimento que conduz a si mesmo (HEIDEGGER 2012 sect4-9)

Apesar da consulta a outras traduccedilotildees (francesa de Emmanuel Martineau e espanhola de Jorge Rivera)

usaremos os termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho Em alguns momentos aleacutem da

traduccedilatildeo de Castilho que eacute bastante recente (2012) tambeacutem citaremos as palavras da traduccedilatildeo brasileira

anterior (com exceccedilatildeo da traduccedilatildeo de lsquoDaseinrsquo como lsquopresenccedilarsquo que natildeo seraacute utilizada nesse trabalho)

Acerca dos termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho haveraacute apenas duas exceccedilotildees a

primeira refere-se ao uso da palavra lsquoDaseinrsquo a qual Castilho Rivera e Martineau mantiveram no original

alematildeo obedecendo uma sugestatildeo do proacuteprio Heidegger Ser-aiacute eacute a traduccedilatildeo portuguesa do termo alematildeo

Dasein que no uso comum na liacutengua alematilde eacute usado como sinocircnimo para existecircncia mas que no texto

heideggeriano tem um significado peculiar tornando a traduccedilatildeo do termo problemaacutetica Em uma carta de

Heidegger a Jean Beaufret datada de 23 de Novembro de 1945 o autor daacute a seguinte informaccedilatildeo ldquolsquoDa-

sein eacute uma palavra-chave do meu pensar por isso ela eacute causa de graves erros de interpretaccedilatildeo natildeo significa

para mim exatamente eis-me mas se eacute que me posso exprimir num francecircs sem duacutevida impossiacutevel ser-

o-aiacute e o-laacute significa exatamente Aleacutetheia desvelamento-aberturardquo (Carta sobre o humanismo Martin

Heidegger - 2 ed rev Traduccedilatildeo de Rubens Eduardo Frias Satildeo Paulo Centauro ndash 2005 p 89) Algumas

vezes infieacuteis a Castilho e ao proacuteprio Heidegger utilizaremos tambeacutem a sua traduccedilatildeo ldquoser-aiacuterdquo para maior

fluidez do texto A segunda exceccedilatildeo refere-se agraves citaccedilotildees cuja opccedilatildeo por traduccedilotildees tradicionais resolvemos

natildeo alterar

87

existecircncia) sem qualquer categoria preacutevia que o defina potildee em tela que esse ente eacute

marcado pelo caraacuteter de poder-ser orientando-se segundo possibilidades existenciais que

natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas somente na morte como fim de todas as

possibilidades Isso se daacute porque o ser-aiacute eacute o limite fundamental no qual se abre a

possibilidade de intencionalidade ou o sentido do experimentado enquanto

experimentado71 ldquoSoacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a abertura do ser-no-

mundo lsquopode ser preenchidarsquo pelo ente que nele pode ser descobertordquo (HEIDEGGER

2012 p429) De outro modo se para Husserl a noccedilatildeo de intencionalidade faz com que a

cada vez que o pensamento se volte agrave consciecircncia ela descortina sua direccedilatildeo em relaccedilatildeo

ao fenocircmeno Para Heidegger poreacutem uma vez superada a primazia da consciecircncia a

cada vez que o pensamento se volta ao Dasein ele descortina sua direccedilatildeo ao mundo

fenocircmeno originaacuterio em que os entes podem vir ao encontro em seu ser bem como as

possibilidades de ser do proacuteprio Dasein

A ontologia fundamental aparece em sua necessidade porque o ser-aiacute mesmo natildeo

pode ser intencionado significativamente natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente

e por isso seu caraacuteter de poder-ser por isso ele poder mobilizar sentidos e atualizar

significaccedilotildees Assim o ser-aiacute eacute o ente que custodia e compreende o ser do ente jaacute em suas

atividades praacuteticas ou seja ele mobiliza a intencionalidade mas eacute o ente que a

intencionalidade natildeo pode alcanccedilar Na tentativa de apreendecirc-lo em seu ser a anaacutelise

conduz para fora para seu ldquoaiacuterdquo Assim Dasein eacute ser-aiacute eacute existecircncia que se projeta

lanccedilada no ldquoaiacuterdquo histoacuterico O Dasein como apresentado por Heidegger ldquoenvolve uma

dimensatildeo de ser (-sein) e por outro uma dimensatildeo locativa um aiacute (Da-)rdquo (CASANOVA

2006 p12) e isto deve-se ao fato que ldquoapenas ele [Dasein] se acha no ponto de

imbricaccedilatildeo de ser e mundordquo (CASANOVA 2006 p12)

71 Cf HEIDEGGER (GA62) 2002 p 71 ldquoConforme seu caraacutecter intencional o compreender puro natildeo

custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo forma parte do horizonte intencional

da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso pode ser de outra maneirardquo ldquoDas reine Verstehen bringt

nicht etwa nach seinem intentionalen Charakter das menschliche Leben im Wie seines faktischen Seins in

Verwahrung die σοφία hat es uumlberhaupt nicht zu ihrem intentionalen Worauf es ist ja ein Seiendes das ist

gerade dadurch daszlig es je anders sein kannrdquo (HEIDEGGER GA62 [pp385-386] grifo nosso)

88

Dessa forma a pergunta pelo sentido do ser seraacute elaborada conforme os trecircs

momentos constitutivos da questatildeo descritos no sect2 de Ser e Tempo

1- O perguntando ou aquilo de que se pergunta ser do ente

2- O interrogado ou aquilo a quequem se pergunta Dasein

3- O perguntado ou aquilo que se pergunta sentido do ser em geral

A pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2) perguntando

sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma ontologia

fundamental Isso esclarecido podemos iniciar propriamente nosso capiacutetulo e tema

central de nosso trabalho

I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado)

Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico

II A dupla abertura de sentido (Sinn)

Conforme descrito no sect9 de Ser e Tempo o ser-aiacute eacute o ente que a cada vez somos

(eu tu etc) ou seja a particular existecircncia finita e histoacuterica natildeo um conceito geneacuterico

em que as diferenccedilas especiacuteficas apareceriam na experiecircncia sensiacutevel Para esse ente ldquoo

ser ele mesmo eacute o que estaacute a cada vez em jogordquo (HEIDEGGER 2012 p139) Existir e

ser responsaacutevel pelo seu ser eacute o mesmo No que existe o ser-aiacute tem-que-ser (Zu-sein) a

ele natildeo eacute facultado a escolha de haver ou natildeo com seu ser uma vez sendo ele eacute e sendo

ele ldquose comporta em relaccedilatildeo ao seu ser como em realizaccedilatildeo de sua possibilidade mais

proacutepria O Dasein eacute cada vez sua possibilidade (Moglichkeit)rdquo (HEIDEGGER 2012

p141)

Por meio de toda e qualquer performatizaccedilatildeo (com relaccedilatildeo a si mesmo em relaccedilatildeo

aos outros e em relaccedilatildeo aos entes) o ser-aiacute enssencializa a si mesmo como existecircncia E

89

no que se enssencia (como existecircncia e natildeo categorialmente) o seu ser mesmo estaacute em

jogo pois eacute por essa determinaccedilatildeo ontoloacutegica negativa que o ser-aiacute pode conquistar seu

poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees cotidianas

Assim o desenvolvimento da analiacutetica existenciaacuteria aponta para a compreensatildeo do

sentido formal72 da constituiccedilatildeo da existecircncia do ser-aiacute ldquoO Dasein se determina cada vez

como ente a partir de uma possibilidade que ele eacute e que ao mesmo tempo e de alguma

maneira ele entende em seu serrdquo (HEIDEGGER 2012 p 143)

As orientaccedilotildees cotidianas ou a cotidianidade mediana ndash em que o ser-aiacute pode

perder-se no poder-ser improacuteprio - natildeo deve ser considerada pejorativamente como algo

a ser extirpado da existecircncia e da analiacutetica Ao contraacuterio em realidade natildeo pode A

impropriedade oferecida por essas orientaccedilotildees eacute em suma a maneira inicial em que o ser-

aiacute - como ser-no-mundo como ente lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ndash estaacute aberto para seus

possiacuteveis modos de ser Dessa forma a anaacutelise da cotidianidade tem um caraacuteter

fenomecircnico positivo para a analiacutetica existenciaacuteria pois eacute a partir desse modo de ser

improacuteprio que o ser-aiacute eacute lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria

das vezes Portanto natildeo eacute apenas lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade

A analiacutetica existenciaacuteria inicia entatildeo sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio E se

dissemos haacute pouco eacute que por meio da performatizaccedilatildeo que o ser-aiacute enssencia a si mesmo

como existecircncia e essa orientaccedilatildeo para qualquer performance natildeo eacute ilimitada Como as

possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha para um ato de vontade

do ser-aiacute mas satildeo mobilizadas na e pela existecircncia radicalmente histoacuterica o ser-aiacute pela

abertura primaacuteria remetido ao mundo eacute marcado pelo caraacuteter de poder-ser (Seinkonnen)

mas em funccedilatildeo de sua realizaccedilatildeo como possibilidade (Moglichkeit) De modo mais claro

ldquopor natildeo possuir nenhuma quididade [o ser-aiacute cc] eacute a realidade da possibilidade para a

possibilidade () Natildeo podendo ser puro poder-ser pois se assim o fosse o ser-aiacute jaacute seria

algo positivamente definidordquo (CABRAL 2015 p79) Dessa forma o ser-aiacute que a cada

vez deve conquistar o seu ser na radicalidade de sua finitude e historicidade eacute o ente que

pode pela sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica mobilizar sentido E por isso mobilizar na

72 Quando nos referirmos a ldquosentido formalrdquo no decorrer de nosso trabalho Cf Capiacutetulo II- Item III-

Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal

90

concretude da vida faacutetica o sentido de ser dos entes os sentidos das relaccedilatildeo aos outros e

sentido de seu ser

ldquoO desvelamento do ser exige sempre um ponto de partida ocircntico Mas o ser-aiacute

eacute privilegiado e ontologicamente ocircntico por causa de sua preacutevia compreensatildeo de

ser Entatildeo o desvelamento do ser deveraacute ser tentado primordialmente a partir do

ser-aiacute mediante uma analiacutetica existencial de suas estruturas O sentido do ser

(preocupaccedilatildeo) dessas estruturas do ser-aiacute eacute a temporalidade Assim a analiacutetica das

estruturas deveraacute ser refeita no homem na temporalidaderdquo (STEIN 2001 p204)

A preacutevia compreensatildeo de ser do ser-aiacute sua negatividade quiditativa seu caraacuteter

de poder-ser e sua constituiccedilatildeo aberta lanccedilada e remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo eacute dada

como acontecimento compreensivo A compreensatildeo ou o entender (Verstehen) eacute uma

das estruturas existenciaacuterias desse ente ocircntico-ontoloacutegico73 e ldquoao interpretaacute-lo como

existenciaacuterio fundamental mostra-se que esse fenocircmeno eacute assim concebido como modus

fundamental do ser do Daseinrdquo (HEIDEGGER 2012 p407) Esse existenciaacuterio

fundamental natildeo refere a uma capacidade entre outras do ser-aiacute de apropriar-se de algo

pelo entendimento intelectivo natildeo eacute uma relaccedilatildeo entre sujeito-objeto mas a constituiccedilatildeo

fundamental do ser-aiacute como ser-no-mundo como relaccedilatildeo intencional primaacuteria e desse

modo o horizonte compreensivo do ser-aiacute com seu ser ldquoO ser-aiacute possui uma relaccedilatildeo

compreensiva com o seu ser porque eacute somente por meio da compreensatildeo que ele encontra

o campo de jogo no interior do qual pode conquistar esse seu serrdquo(CASANOVA 2006

p 13) O ldquoDardquo ou ldquoaiacuterdquo do Dasein e sua estrutura fundamental ser-no-mundo podem ser

esclarecidos em contraponto a concepccedilatildeo paradigmaacutetica da epistemologia moderna de

Kant por exemplo O entender (Verstehen) tal como Heidegger o apresenta natildeo se baseia

na associaccedilatildeo psicoloacutegica das representaccedilotildees ou ainda a abertura primaacuteria que conduz o

ser-aiacute agraves suas possibilidades em que seu ser estaacute em jogo natildeo eacute algo como apercepccedilatildeo

No paradigma epistemoloacutegico da modernidade em uacuteltima instacircncia o entendimento eacute

uma reconstruccedilatildeo interna dos elementos externos do mundo reconstruccedilatildeo essa que

depende das faculdades cognitivas do sujeito capazes de unificar o agregado de

experiecircncias externas O entendimento em Heidegger eacute a abertura primaacuteria uma relaccedilatildeo

intencional estruturante ser-aiacute eacute ser-no-mundo portanto o Dasein eacute sempre remetido ao

73 Ocircntico pelo fato de ser ainda um ente ontoloacutegico pelo fato de ser o ente que pode e sempre abre a

compreensatildeo de ser (Cf HEIDEGGER 2012 sect4-9)

91

ldquomundordquo projetado para ldquoforardquo e esse ldquoforardquo eacute sempre abertura compreensiva ao mundo

faacutetico como horizonte hermenecircutico de sentido

Essa abertura compreensiva fundamental descerra o poder-ser do ser-aiacute como

projeto O fato de o ser-aiacute ser lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ao seu poder -ser em um

campo de jogo para seus possiacuteveis modos de ser natildeo conduz a um determinismo

circunstancial o qual o ser-aiacute estaria fadado a reproduzir maquinalmente e atualizar

incessantemente Tambeacutem ldquoo projetar nada tem a ver com um comportar-se em relaccedilatildeo a

um plano ideado de acordo com o qual o Dasein organizaria o seu serrdquo (HEIDEGGER

2012 p413) mas originariamente ldquoele sempre jaacute se projetou e se projeta enquanto eacuterdquo

(HEIDEGGER 2012 p413) A noccedilatildeo de projeto repousa na abertura compreensiva do

ser-aiacute e na sua ligaccedilatildeo radical com suas possibilidades Logo no iniacutecio do sect32 essa noccedilatildeo

eacute explicitada

ldquoO Dasein como entender projeta seu ser em possibilidades Esse entendedor ser

para possibilidades eacute ele mesmo um poder-ser pelo efeito contraacuterio que as

possibilidades como abertas tecircm sobre o Dasein O projetar do entender tem uma

possibilidade proacutepria de desenvolvimento Chamamos interpretaccedilatildeo o

desenvolvimento do entender Na interpretaccedilatildeo o entender entendendo

apropria-se do seu entendido Na interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo

diverso mas torna-se ele mesmo () A interpretaccedilatildeo natildeo consiste em tomar

conhecimento do entendido mas em elaborar possibilidades projetadas no

entenderrdquo (HEIDEGGER 2012 p421)

Dissemos haacute pouco que as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como

disponiacuteveis agrave escolha e agrave espera de um ato de vontade do ser-aiacute (natildeo estatildeo suspensas como

que dadas a cada ser-aiacute ao nascer como gocircndolas de projetos de ser) mas satildeo mobilizadas

na e pela existecircncia E ainda que essa existecircncia seja sempre projetiva em um mundo

histoacuterico Desse modo o entender (Verstehen) acontece sempre como interpretaccedilatildeo

(Auslegung) a abertura ao mundo eacute um projeto de sentido do ser-aiacute que jaacute interpreta que

jaacute potildee em visatildeo o que entende Mas o que isso quer dizer Como Heidegger chega a esses

existenciaacuterios

Vimos no capiacutetulo anterior a partir da leitura do texto de 1922 Interpretaccedilotildees

fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) ou

Relatoacuterio-Natorp que o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona

92

um lsquoaquirsquordquo essa virtude proacutepria do homem ldquose realiza como ενέργεια como atividade

() ou seja o νους abre um horizonte que sempre responde a um modo concreto de tratar

com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma

determinaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2002 p66) Compreendido tradicionalmente como

intelecto propriamente racional o noucircs eacute proacuteprio do homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica

[homem (animal (gecircnero) + racional (diferenccedila especiacutefica)] mas porque o ser-aiacute eacute o ente

que pode custodiar abrir-se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um

compreender que jaacute interpreta os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto

na vida faacutetica que acontece fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis

enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato

praacutetico com os entes

Em Ser e Tempo Heidegger descreve as vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico e

tambeacutem como o fenocircmeno do mundo se mostra atraveacutes dos entes intramundanos A forma

imediata de esses entes se mostrarem daacute-se na lida praacutetica que o ser-aiacute trava com eles em

um mundo circundante ou em um mundo-ambiente (Umwelt) Eacute atraveacutes da ocupaccedilatildeo

com os entes que o ser-aiacute se movimenta inicialmente na compreensatildeo faacutetica de mundo eacute

aiacute que o Dasein visualiza os entes em sua serventia especiacutefica no quadro de um horizonte

ocupacional Esse horizonte possui certa anterioridade em relaccedilatildeo ao proacuteprio uso do

instrumento ou utensiacutelio (Zeug) particular e isto fica claro no sect 15 quando Heidegger

potildee em relevo o modo de ser dos utensiacutelios na delimitaccedilatildeo preacutevia do que seja sua

instrumentalidade ldquoEm termos rigorosos um instrumento nunca lsquoeacutersquo isolado Ao ser de

instrumento pertence sempre cada vez um todo-instrumental no qual esse instrumento

pode ser o que ele eacute Instrumento eacute por essecircncia lsquoalgo pararsquo (HEIDEGGER 2012

p211) Na essecircncia do instrumento estaacute sempre a referecircncia de algo para algo O ser do

utensiacutelio e seu significado que aparece no instante do trato portanto jaacute interpretado a

partir do uso nascem da totalidade utensiliar (Zeugganzheit) que o atravessa Mas esta

totalidade utensiliar se assenta num contexto ainda mais complexo Se o utensiacutelio eacute

confeccionado de acordo com a sua finalidade especiacutefica como ldquoalgo parardquo seu uso o

liga a outros utensiacutelios por exemplo o pincel que uso para pintar remete-se agrave tela que

uso para suporte da tinta Assim como a tela remete-se natildeo soacute a sua finalidade mas

tambeacutem aos materiais atraveacutes dos quais ela foi produzida madeira tecido e gesso E

ainda remete-se ao produtor da tela ou seja aos outros entes no modo de ser do ser-aiacute

93

Poreacutem essa descriccedilatildeo do instrumento em um mundo-ambiente (Umwelt) ainda eacute

insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica de todo ente em geral

Assim conforme o sect 17 Heidegger aponta que a estrutura do sinal (Zeichen) ldquofornece

um fio condutor ontoloacutegico para uma lsquocaracterizaccedilatildeorsquo de todo ente em geralrdquo

(HEIDEGGER2012 p 233) O sinal enquanto utensiacutelio tem em sua serventia especiacutefica

o mostrar e ao mostrar fornece o fenocircmeno da referecircncia natildeo somente de sua referecircncia

mas de todo e qualquer ente uma vez que a relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia explicita o

fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua finalidade

na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal enquanto

instrumento nos mostra o mundo circundante e potildee em relevo o caraacuteter da referecircncia

que natildeo deve ser confundida com o proacuteprio sinal pois natildeo eacute determinaccedilatildeo ocircntica de um

ou outro manual especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica do manual e fundamento

constitutivo da mundidade como rede referencial na qual o Dasein jaacute se encontra inserido

na abertura ao mundo Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo

circundante o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a

complexa rede de remissotildees referenciais e atraveacutes dela a totalidade conjuntural ou

conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)

ldquoO termo conjuntura tem como correlato na liacutengua alematilde a palavra Bewandtins

que designa primariamente a propriedade ou a constituiccedilatildeo de uma coisa e em

um segundo momento a circunstacircncia em que algo se mostra essencialmente

como algo Neste segundo caso o termo se mostra em sintonia com a expressatildeo

Bewendenlassen como o deixar (lassen) algo se conformar (bewenden) a uma

certa estrutura e se mostrar como o que eacute em meio a essa conformidaderdquo

(CASANOVA 2006 p37)

A noccedilatildeo de conjuntura no sect 18 eacute um dos momentos mais decisivos da primeira

parte de Ser e Tempo pois revela que a totalidade conjuntural eacute anterior a qualquer

determinaccedilatildeo particular dos entes intramundanos Eacute essa conjuntura que determina os

usos possiacuteveis a partir da conformidade dos entes nela inseridos revelando que o

utensiacutelio em si mesmo natildeo possui qualquer determinaccedilatildeo essencial mas a recebe do

campo de uso da conjuntura na qual estaacute inserido Mas natildeo eacute soacute isso a determinaccedilatildeo

essencial de um ente intramundando acontece tambeacutem em funccedilatildeo do ser-aiacute cujo lsquoem

vista dersquo ao final da remissatildeo natildeo mais remonta a um lsquopara quecircrsquo mas mobiliza e em

uacuteltima instacircncia determina as conformaccedilotildees dos entes intramundanos Isso revela que o

que estaacute em jogo natildeo eacute o que eacute algo mas antes em virtude de que se faz algo O ser-aiacute

94

pode agir relacionar-se com os outros e consigo mesmo pois sabe comportar-se no

campo fenomecircnico aberto que arrasta consigo sua possibilidade de ser De outra forma

toda e qualquer performatizaccedilatildeo do ser-aiacute em relaccedilatildeo aos entes remete em uacuteltima medida

agravequele que pode voltar-se aos entes e mobilizaacute-los

O que a conjuntura indica previamente eacute ldquoa articulaccedilatildeo originaacuteria com certas

possibilidades essenciais do ser-aiacute que permitem ao ser-aiacute projetar efetivamente o campo

de sua realizaccedilatildeo como poder-serrdquo (CASANOVA 2006 p36) Essa realizaccedilatildeo do poder-

ser do ser-aiacute mobiliza a conformaccedilatildeo dos entes em funccedilatildeo do sentido existencial do ser-

aiacute pois uma atividade qualquer natildeo eacute feita por ela mesma mas soacute tem sentido na intenccedilatildeo

de um ente que estaacute aberto agrave apreensatildeo do ser dos entes em geral Desse modo a primaacuteria

abertura compreensiva do ser-aiacute ao mundo eacute um projeto de sentido que jaacute interpreta e ao

fazecirc-lo realiza a cada vez a cada ato de sua existecircncia a cada performatizaccedilatildeo a

possibilidade de seu ser pondo em liberdade os entes no interior do mundo e as relaccedilotildees

com os outros no projeto lanccedilado (faacutetico) na e pela sua existecircncia E isso porque

ldquoQuando o ente do-interior-do-mundo eacute descoberto com o ser do Dasein isto eacute

quando veio ao entendimento dizemos que ele tem sentido Mas tomado

rigorosamente o que eacute entendido natildeo eacute o sentido mas o ente ou o ser Sentido eacute

aquilo em que a entendibilidade de algo se manteacutem () Sentido eacute aquilo-em-

relaccedilatildeo-a-quecirc do projeto estruturado pelo ter-preacutevio pelo ver-preacutevio e pelo

conceito preacutevio a partir de que algo pode ser entendido como algo Na medida

em que entender e interpretaccedilatildeo constituem a constituiccedilatildeo existenciaacuteria do lsquoaiacutersquo o

sentido deve ser concebido como arcabouccedilo existenciaacuterio-formal da abertura

pertencente ao entender O sentido eacute um existenciaacuterio do Dasein natildeo uma

propriedade presa ao ente que reside lsquoatraacutesrsquo dele ou flutua em algum lugar como

em um lsquoreino intermediaacuteriorsquo Soacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a

abertura do ser-no-mundo lsquopode ser preenchidarsquo () E quando perguntamos

pelo sentido de ser a investigaccedilatildeo natildeo se torna entatildeo profunda e natildeo excogita

nada que esteja atraacutes do ser mas pergunta por ele mesmo na medida em que ele

estaacute na entendibilidade do Dasein O sentido de ser nunca pode ser contraposto

ao ente ou ao ser como lsquofundorsquo que sustenta o ente porque o lsquofundamentorsquo soacute eacute

acessiacutevel como sentido mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta- de-

sentidordquo (HEIDEGGER 2012 pp 429-431)

Apelamos para essa longa citaccedilatildeo a fim de explicitar o que dissemos

anteriormente acerca da mobilizaccedilatildeo dos entes em seu ser em funccedilatildeo dos focos

existenciais do ser-aiacute Os entes somente vecircm ao encontro como entes que satildeo a partir da

intenccedilatildeo de um ente que estaacute aberto a compreensatildeo do ser dos entes em geral Com a

95

citaccedilatildeo pretendemos tambeacutem apontar para algo importante acerca do fundamento

histoacuterico dessa abertura O sentido de ser natildeo eacute algo a ser alcanccedilado teoricamente pois

natildeo eacute algo estaacutevel e fundante da realidade que responde ao esquema causa-efeito ele eacute

essencialmente histoacuterico e eacute trazido pela experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica

da existecircncia mesma do ser-aiacute Natildeo se pode ter lsquoserrsquo sem a compreensatildeo do sentido de

ser vinculando portanto lsquoserrsquo ao ser-aiacute ente cuja estrutura pertence agrave compreensatildeo de

ser Como nos adverte o autor de Ser e Tempo o Dasein eacute um ente certamente diferente

dos outros entes no interior do mundo e eacute o lsquoabismo da falta de sentidorsquo que remete agrave

totalidade do fenocircmeno do ser-aiacute como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge) a qual acontece

em funccedilatildeo do sentido da temporalidade (Zeitlichkeit) Eacute essa ldquosegundardquo abertura de

sentido que devemos explicitar a partir de agora

Indicamos acima que a indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica do ser-aiacute o conduz a conquistar

seu poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees

cotidianas Poreacutem ser-proacuteprio ou ser-improacuteprio natildeo satildeo categorias operacionalizaacuteveis em

funccedilatildeo de um ideal de vida Essas possibilidades repousam na existecircncia e revelam a

tensatildeo da condiccedilatildeo primaacuteria da abertura ao mundo do ser-aiacute como projeto- jogado e

ldquodessa tensatildeo eacute possiacutevel deduzir o modo como o ser-aiacute faticamente existe() o caraacuteter

mesmo do jogado do ser-aiacute implica a absorccedilatildeo imediata no mundo sedimentado ele

encontra a si mesmo na medida em que se perderdquo (CASANOVA 2009 p123) E por

isso quando a analiacutetica existenciaacuteria inicia sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio no qual

o ser-aiacute eacute lanccedilado ldquoisso natildeo significa por sua vez outra coisa senatildeo que ele [o ser-aiacute]

concretiza o poder ser que ele eacute a partir das possibilidades faacuteticas disponibilizadas pelo

mundordquo (CASANOVA 2009 p123)

A abertura compreensiva eacute uma compreensatildeo da proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica na qual

nos orientamos inicialmente e na qual satildeo dadas nossas possibilidades de ser natildeo de

maneira teoacuterica mas absorvidas nas praacuteticas nos projetos de sentido relaccedilatildeo com os

outros e lida com os entes Abertura essa que um passado tornou possiacutevel e se faz

radicalmente imperativa no presente atraveacutes da cotidianidade orientando o ser-aiacute e

fazendo emergir algo assim como um mundo Por exemplo a realizaccedilatildeo deste trabalho

como dissertaccedilatildeo acadecircmica apareceu como possibilidade para o projeto de sentido de

sua autora porque escrever sobre filosofia faz sentido este projeto de sentido veio ao

96

encontro de seu poder-ser natildeo meramente por um ato de escolha mas inicialmente porque

filosofia dissertaccedilatildeo e universidade satildeo elementos mantidos em seu significado oriundo

da tradiccedilatildeo ocidental natildeo por uma linha histoacuterica que a autora recupera e quer trazer ao

presente mas porque mais uma vez ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto apropriaccedilatildeo

compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo

(HEIDEGGER2002 p30)

E uma vez remetida ao mundo pela orientaccedilatildeo cotidiana a autora pode

estabelecer relaccedilotildees com os entes (livros computador papel etc) consigo mesmo (como

autora) e com os outros (leitores desse trabalho) que partilham essas possibilidades

sedimentadas Dessa forma a orientaccedilatildeo cotidiana primaacuteria revela ldquoexistir () eacute de iniacutecio

o mesmo que perder-se de sirdquo (CASANOVA 2009 p123) pois ldquoo ser-aiacute suspende a

irrealidade originaacuteria que eacute a sua e adquire ao mesmo tempo um modo de ser marcado

por uma aparecircncia de consistecircnciardquo (CASANOVA 2009 p123) Em outras palavras a

absorccedilatildeo na cotidianidade (o caraacuteter de jogado do projeto) oferece uma familiaridade ao

ser-aiacute na qual ele pode se movimentar pois oferece a confiabilidade ocircntica ao projeto de

sentido mas tambeacutem estabelece

ldquoUma relaccedilatildeo com o seu poder-ser que pode ser denominado como fuga uma vez

que a suspensatildeo [de sua irrealidade originaacuteria] promove exatamente uma

tranquilizaccedilatildeo em meio agrave supressatildeo de nadidade constitutiva de um ente marcado

pelo caraacuteter de poder-ser e o ocultamento de um tal caraacuteterrdquo (CASANOVA

2009 p123)

Em meio agrave familiaridade em que o ser-aiacute eacute jogado sua negatividade quiditativa e

seu traccedilo ontoloacutegico essencial como poder-ser satildeo obstruiacutedos agrave compreensatildeo do Dasein

em relaccedilatildeo ao seu ser Voltemos ao nosso exemplo as relaccedilotildees que a autora deste trabalho

pode exercer a partir de suas possibilidades a orientam como ser autora deste trabalho

como aquela que escreve ou ainda como aquela vinculada agrave universidade e assim por

diante Poreacutem nada poderia definir nossa existecircncia como fazem as orientaccedilotildees

cotidianas pois o Dasein que cada um de noacutes somos eacute marcado pela negatividade radical

frente a qualquer definiccedilatildeo ocircntica Como entatildeo essa fuga natildeo nos condena a reproduzir

maquinalmente e atualizar incessantemente as orientaccedilotildees cotidianas - Porque o ser-aiacute

97

mesmo jogado eacute ainda projeto e no limite de seu projeto ele pode se encontrar com seu

poder-ser mais proacuteprio como ser para a morte (das Sein zum Tod)74

Tal como as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha agrave

espera de um ato de vontade do ser-aiacute a conquista de seu ser-proacuteprio ou sua

singularizaccedilatildeo tambeacutem natildeo eacute produto de sua vontade A dinacircmica de singularizaccedilatildeo do

ser-aiacute eacute possiacutevel pela tonalidade afetiva ou o modo de encontrar-se (Befindlicheit)

fundamental da anguacutestia (Angst)

O entender (Verstehen) ou abertura compreensiva eacute sempre dispositiva na medida

em que a compreensatildeo natildeo se refere agrave capacidade ou agraves faculdades cognitivas do homem

ldquoO termo disposiccedilatildeo aponta diretamente para o modo como o ser-aiacute a cada vez se

descobre em meio a uma tal abertura Na medida em que o ser-aiacute eacute um ente

marcado essencialmente por seu caraacuteter existencial e natildeo se mostra senatildeo como

um poder ser ele natildeo pode aprender a abertura do ente na totalidade por meio de

alguma faculdade cognitiva de sua subjetividade () Befindlichkeit diz o

encontrar-se de uma certa maneirardquo (CASANOVA 2006p50)

Encontrar-se de certa maneira natildeo eacute uma espeacutecie de afeto psicoloacutegico que o ser-

aiacute projeta de dentro para fora nem uma relaccedilatildeo de fora para dentro que afeta o ser-aiacute Natildeo

eacute uma relaccedilatildeo causal Eacute uma afinaccedilatildeo (ajuste do tom) que deve ser compreendida

repousando na intenccedilatildeo primaacuteria do ser-aiacute como ser-no-mundo Como o autor explicita

ainda no sect29 ldquoO ser do estado-de-acircnimo do encontrar-se constitui existenciariamente a

abertura do Dasein para o mundordquo (HEIDEGGER 2012 p393) Eacute propositadamente que

se apela para a metaacutefora musical (ldquoafinaccedilatildeordquo) para tentar compreender esse ldquoestado de

acircnimo do encontrar-serdquo como por exemplo acontece quando uma muacutesica eacute tocada ela

afina a abertura compreensiva do ser-aiacute a um estado de acircnimo que noacutes poderiacuteamos chamar

de melancoacutelico A melancolia natildeo estaacute na muacutesica (natildeo haacute como pensar que as tonalidades

afetivas sejam propriedades de um ou outro ente na medida em que o ser de todo e

74 Aqui eacute importante considerar as palavras de Juliaacuten Mariacuteas na Conferecircncia do curso ldquoLos estilos de la

Filosofiacuteardquo Madrid 19992000 Ediccedilatildeo Jean Lauand Traduccedilatildeo Sylvio Horta ldquoa preposiccedilatildeo zu natildeo quer

dizer para mas a Isto eacute a expressatildeo sein zum Tod poderia ser traduzida por estar agrave morte (estar a

la muerte) Qual eacute a condiccedilatildeo dos homens - e das mulheres evidentemente - natildeo somente quando nos

atropela um caminhatildeo ou quando temos pneumonia dupla O homem estaacute agrave morte sempre estaacute na

possibilidade de morrer estaacute em potecircncia proacutexima de morrer estaacute exposto agrave morte e eacute isso justamente o

que quer dizer sein zum Tod estar aberto agrave morte estar nessa possibilidade proacutexima real eficazrdquo

98

qualquer ente eacute aberto em funccedilatildeo do ser-aiacute que os potildee em liberdade no interior do mundo)

como tambeacutem natildeo estaacute no Dasein (natildeo haacute nada de aderente a esse ente que venha agrave tona

sua abertura eacute sempre remetida ao mundo e ao encontro com os entes) Portanto a

melancolia como no exemplo eacute a modificaccedilatildeo da atmosfera promovida pelo proacuteprio

encontrar-se do ser-aiacute em meio aos entes

Mas por qual motivo a anguacutestia aparece em Ser e Tempo como a tonalidade afetiva

ou o modo fundamental de encontrar-se Enquanto os estados de acircnimo natildeo conforme agrave

anguacutestia constituem a abertura compreensiva do ser-aiacute para a lida e para as relaccedilotildees que

podem ser realizadas no interior do mundo em meio aos entes ldquoo diante-de-quecirc da

anguacutestia eacute o ser-no-mundo como talrdquo (HEIDEGGER 2012 p521) Na anguacutestia natildeo haacute

ente que venha ao encontro no qual o ser-aiacute possa se reportar e refugiar-se mas a si mesmo

em sua indeterminaccedilatildeo

ldquoNa anguacutestia o utilizaacutevel do mundo-ambiente e em geral o ente do-interior-do-

mundo se afundam O lsquomundorsquo jaacute nada pode oferecer nem tambeacutem o Dasein-

com com os outros A anguacutestia retira assim do Dasein a possibilidade de no

decair entender-se a partir do lsquomundorsquo e do puacuteblico ser-do-interpretado Ela

projeta o Dasein de volta naquilo por que ele se angustia seu proacuteprio poder ndashser-

no-mundo () Com o porquecirc do se angustiar a anguacutestia abre portanto o Dasein

como ser possiacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012 p525)

Na anguacutestia natildeo haacute a ldquosuspensatildeo de mundordquo como se o Dasein se retirasse dele

O que haacute eacute a suspensatildeo das orientaccedilotildees cotidianas que obliteram sua constituiccedilatildeo

primaacuteria Portanto ainda e agora radicalmente transparente como ser-no-mundo o

Dasein suspende a familiaridade em meio ao ente voltando-se a si mesmo como ser-

possiacutevel que mobiliza sentido e ldquotem mundordquo Lembremos que a necessidade da ontologia

fundamental como radicalizaccedilatildeo do gesto fenomenoloacutegico indica que o ser-aiacute mesmo

natildeo pode ser intencionado natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente e por isso seu

caraacuteter de poder-ser E se pela anguacutestia o ser-aiacute volta-se a si mesmo o que vem eacute essa

indeterminaccedilatildeo radical revelando em uacuteltima medida o ldquoabismo da falta de sentidordquo Esse

abismo natildeo leva a qualquer espeacutecie de niilismo natildeo eacute o que estaacute em jogo aqui ao

contraacuterio pois o ldquoo ser-aiacute se vecirc confrontado com o seu caraacuteter como poder-ser Dessa

confrontaccedilatildeo nasce ao mesmo tempo a possibilidade de assunccedilatildeo de si mesmo como

cuidado (Sorge)rdquo (CASANOVA 2009 p128)

99

Recuperemos por um instante os trecircs momentos constitutivos da questatildeo descritos

no sect2 de Ser e Tempo a pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2)

perguntando sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma

ontologia fundamental A ontologia fundamental como analiacutetica existenciaacuteria em seu

primeiro momento descreve as estruturas fundamentais do ser-aiacute com o propoacutesito de

chegar ao ser desse ente que compreende o sentido de ser (sect12 ao sect38) Contudo eacute

importante considerar que existe certa lsquoartificialidadersquo nesse processo de explicitaccedilatildeo das

estruturas do ser-aiacute Eacute importante manter o sentido de ldquoanaliacuteticardquo Pois o fenocircmeno

mesmo deve ser compreendido como um todo natildeo em funccedilatildeo das partes mas a partir de

sua proacutepria mostraccedilatildeo Em outras palavras a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein deve agora

ser recuperada e este ente deve ser assinalado de maneira propriamente fenomenoloacutegica

ou seja em sua totalidade enquanto fenocircmeno Eacute o que a segunda parte da analiacutetica deve

recuperar ldquoabrangendo os componentes que se interligam ndash a existencialidade a

facticidade e a quedardquo (NUNES 2012 p116)

A partir desses componentes Heidegger apresenta o sentido formal da

preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-em (-o-mundo)

como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo (HEIDEGGER

2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser (existencialidade ou

existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que foi

lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio aos

entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)

Poreacutem natildeo dissemos que o ser-aiacute eacute marcado pela negatividade quiditativa e que

existe segundo possibilidades as quais natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas na morte

como fim de todas as possibilidades Ou nas palavras de nosso autor ldquoE se a existecircncia

determina o ser do Dasein e sua essecircncia eacute constituiacuteda pelo poder-ser entatildeo o Dasein

podendo ser enquanto existir deve-ser cada vez algo de ainda natildeo sendordquo

(HEIDEGGER 2012 p645) Entatildeo essa interpretaccedilatildeo do ser do Dasein como um

fenocircmeno unitaacuterio como Sorge natildeo contradiz tal afirmaccedilatildeo Natildeo haacute qualquer

contradiccedilatildeo pois eacute exatamente

ldquoO cuidado como manifestaccedilatildeo da finitude que permite a Heidegger identificar

a morte como o chegar do Dasein ao fim () e ver nesse ente em sua totalidade

o ser para a morte() O Dasein chega pois a um fim mas que o determina desde

100

o princiacutepio como possibilidade do que viraacute a ser A morte natildeo eacute para ele portanto

o puro aniquilamento representaacutevel conforme a experiecircncia da caducidade ()

impessoal e necessaacuterio na seacuterie de causas naturais () Ontologicamente falando

o homem deixa de viver porque morre e morre porque lhe eacute inerente o morrer

enquanto poder-ser de cada qual () intrasferiacutevel e irrepresentaacutevel na relaccedilatildeo

com o ser a que a existecircncia estaacute concernidardquo (NUNES 2012 pp 117-119)

Como poder-ser (existenciariedade) o ser-aiacute adianta-se em relaccedilatildeo agrave sua

possibilidade mais proacutepria Seu ser-proacuteprio insuperaacutevel como ser-para-a-morte (porque

intransferiacutevel a qualquer outro) revela-se como a possibilidade para a impossibilidade

ou seja impossibilidade de sua existecircncia lanccedilada (facticidade) de ter um lsquoaiacutersquo sendo o

lsquoaiacutersquo a compreensatildeo dos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)

Mas eacute importante considerar que a preocupaccedilatildeo ou o cuidado natildeo eacute a totalidade alcanccedilada

por aquele que chegou agrave singularizaccedilatildeo pela tonalidade fundamental da anguacutestia ela eacute a

constituiccedilatildeo ontoloacutegica de todo e qualquer Dasein O que a singularizaccedilatildeo promove

como possibilidade aberta pela anguacutestia eacute a transparecircncia desse ser-proacuteprio cada vez

obliterado na cotidianidade Na cotidianidade a morte eacute vista como um ldquomero deixar de

viverrdquo transferido a cada vez ao outro que morreu ldquodessa vezrdquo75 em um tratamento

radicalmente impessoal pela indiferenccedila frente a esse poder-ser proacuteprio e irrevogaacutevel

A morte como fim de todas as possibilidades enquanto poder-ser extremo eacute

indeterminada mesmo que seja a certeza mais proacutepria Pois natildeo se chega agrave morte

pensando nela o que estaacute em jogo eacute a responsabilidade do ser-aiacute frente a essa

transparecircncia a assunccedilatildeo pelo ser-aiacute de sua nulidade que atravessando-o (sem qualquer

conteuacutedo prescritivo do que deve-se ou natildeo fazer) pode orientar o caminho de sua

existecircncia Existecircncia ainda faacutetica ainda em meio aos entes de um mundo sedimentado

Em outras palavras caminho que reconduz o ser-aiacute ao ldquoaiacuterdquo que ele tem que ser e que ele

radicalmente eacute O que a singularizaccedilatildeo aponta eacute ldquoLeben ist Tod und Tod ist auch ein

75 Heidegger indica a novela de LN Tolstoacutei ldquoA morte de Ivan Ilitchrdquo para ilustrar o fenocircmeno da morte

tratada impessoalmente e o abalo dessa impessoalidade (Cf HEIDEGGER 2012 p699) Poderiacuteamos

tambeacutem indicar a partir de nossa cotidianidade exemplos do tratamento impessoal acerca da morte as

estatiacutesticas dos ldquomortos nas estradasrdquo a notiacutecia da morte de alguma personalidade puacuteblica e ainda - para

natildeo confundirmos esse fenocircmeno com um mero ldquonoticiarrdquorsquo a morte - a maneira mesma que tratamos a

morte de algueacutem proacuteximo pois mesmo tomados pelo pesar o que constatamos eacute a ldquoperdardquo do outro Seria

possiacutevel restaurar a ponte mesmo que indicativa que Heidegger natildeo admite entre o fenocircmeno impessoal

da morte e nosso ser-proacuteprio como ser-para-a-morte Talvez algo acessiacutevel pela linguagem poeacutetica Aqui

eacute oportuno considerar os belos versos do poema Na morte de Henriqueta Lisboa ldquoNa morte nos

encontramos Sim na morte Tempo de consoacutercio e de viacutenculordquo In Flor da Morte Belo Horizonte Ed

UFMG 2004

101

Leben76rdquo Nessa indicaccedilatildeo ldquoO si-mesmo que como tal tem de pocircr o fundamento de si

mesmo nunca pode se assenhorar desse fundamento e tem de existindo assumir no

entanto o ser-fundamento Ser o proacuteprio fundamento dejectado eacute o poder-ser em jogo na

preocupaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p779) Eacute pela assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo

(Sorge) que o ser-aiacute pode compreender que os sentidos mobilizados em sua existecircncia satildeo

existenciariamente remetidos ao seu ser mesmo ente histoacuterico e finito radicalmente

marcado pela nulidade essencial Isso posto recuperamos uma vez mais agora com toda

a importacircncia as palavras de nosso autor ldquoo lsquofundamentorsquo soacute eacute acessiacutevel como sentido

mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta-de-sentidordquo (HEIDEGGER 2012 p431)

A transparecircncia de seu ser-proacuteprio ao ser-aiacute eacute assumir ldquoser como fundamento

dejectado da nulidade Mas a assunccedilatildeo da dejecccedilatildeo significa para o Dasein ser

propriamente como ele a cada vez jaacute erardquo (HEIDEGGGER 2012 p887) Em outras

palavras a assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute para o ser-aiacute reconhecer que ele

eacute existecircncia radicalmente faacutetica (Faktizitaumlt) ainda em meio aos entes de um mundo

sedimentado Desse modo ldquoentender o seu ser ainda e sempre ldquoem seu essencial ser-

culpadordquo (HEIDEGGER 2012 p887) A singularizaccedilatildeo do ser-aiacute natildeo promove um

distanciamento da vida cotidiana natildeo faz com que ele se retire da queda mas que a

assuma e assim assuma ldquoa responsabilidade pela necessidade de pagar uma diacutevida que

cada ser-aiacute tem para consigo mesmordquo (CASANOVA 2009 p136) Diacutevida de assumir

seu ser como existecircncia como projeto-jogado e como poder-ser proacuteprio marcado pela

possibilidade extrema da morte Essa culpa do ser-aiacute eacute a assunccedilatildeo de que ele jaacute sempre

desonerou seu ser ele jaacute sempre deixou seu ser sob tutela do mundo e das orientaccedilotildees

cotidianas - por sua condiccedilatildeo de soacute poder-ser a partir da absorccedilatildeo imediata no mundo

Essa culpa natildeo eacute a mesma das concepccedilotildees cristatildes Em Pascal por exemplo a culpa eacute

consequecircncia da perda de nossa primeira natureza em funccedilatildeo do pecado original77 Para

Heidegger a culpa eacute consequecircncia do fato de natildeo termos qualquer natureza Natildeo haacute como

se retirar dessa condiccedilatildeo eis nossa culpa essencial e nossa queda irremediaacutevel

76 ldquoA vida eacute morte e a morte eacute tambeacutem uma vidardquo HOumlLDERLIN Friedrich In lieblicher Blaumlue - Disponiacutevel

em httpswwwhsaugsburgde~harschgermanicaChronologie19JhHoelderlinhoe_0801html Acesso

em 21 marccedilo 2016 77 Cf por exemplo os aforismos 131 e 616 de Pascal nos Penseacutees Ediccedilatildeo e organizaccedilatildeo Lafumaacute

102

Mas se chegamos agrave totalidade originaacuteria do todo-estrutural do ser-aiacute ou em outras

palavras agrave assinalado constituiccedilatildeo propriamente fenomenoloacutegica do ser-aiacute como

preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute necessaacuterio considerar o sentido ontoloacutegico desse fenocircmeno

Lembramos mais uma vez o que eacute ldquosentidordquo para Heidegger ldquoSentido eacute aquilo em que a

entendibilidade de algo se manteacutemrdquo (2012 p429) Se o ser-aiacute pode ser indicado em sua

totalidade fenomecircnica (ainda que radicalmente diverso dos entes do interior do mundo)

eacute necessaacuterio como expresso no sect65 perguntar ldquoQue possibilita o ser do Dasein e assim

sua existecircncia factual (faktische)

O sentido de ser do Dasein como Sorge a compreensatildeo de sua nulidade essencial

a partir do fenocircmeno unitaacuterio de seu ser aponta para aquilo que pode sustentaacute-lo ldquoA

temporalidade descobre-se como o sentido da preocupaccedilatildeo proacutepriardquo (HEIDEGGER

2012 p889)

Na continuaccedilatildeo do sect65 o autor descreve como a preocupaccedilatildeo reside na

temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-

em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo

(HEIDEGGER 2012 p891) Futuro (poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente

(presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees temporais como as que tomamos diariamente mas

o caraacuteter essencial da existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre

adiantado (futuro) em relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza

as possibilidades na facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva da

proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica a cada vez presente na qual nos orientamos inicialmente em

nossos comportamentos) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no

presente esse passado em seus comportamentos e projetos E como adverte o autor

ldquoOs momentos da preocupaccedilatildeo natildeo se amontoam como a temporalidade ela

mesma natildeo vai tambeacutem lsquocom o temporsquo se compondo de futuro ser-do-sido e

presente A temporalidade natildeo lsquoeacutersquo em geral nenhum ente Ela natildeo eacute mas se

temporalizardquo (HEIDEGGER 2012 p893)

Ou seja a temporalidade acontece na existecircncia do ser-aiacute na unidade do

fenocircmeno que se mostrou como preocupaccedilatildeo ou cuidado (Sorge) E ainda acontece jaacute no

que o ser-aiacute entende (Verstehen) como o sentido ontoloacutegico desse acontecimento mesmo

da compreensatildeo Por isso ainda no iniacutecio desse toacutepico dissemos que a constituiccedilatildeo aberta

103

e remetida ao mundo (ao seu ldquoaiacuterdquo) do ser-aiacute eacute dada como acontecimento compreensivo

pois em seu sentido ontoloacutegico eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) que se temporaliza78

Assim finalmente chegamos agrave dupla abertura de sentido em Ser e Tempo a que

chamamos de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo a abertura compreensiva do ser-aiacute

remetida ao mundo e o sentido de ser do ser-aiacute a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) O

caraacuteter fundamental dessa estrutura se daacute pelo fato que eacute a partir dela que o ser-aiacute pode

conceder significaccedilotildees e por isso a primeira estrutura do que pode tornar manifesto o

fenocircmeno da linguagem Agora eacute necessaacuterio descrever a relaccedilatildeo entre mundo e

significatividade ainda como parte dessa primeira estrutura para que alcancemos a

segunda estrutura o fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) e a partir dele agrave linguagem

III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)

No toacutepico anterior apresentamos a constituiccedilatildeo aberta do ser-aiacute lanccedilada e

remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo Mas o que constitui algo assim como mundo O que

afinal quer dizer ldquomundordquo (Welt) Nesse sentido precisamos retomar a descriccedilatildeo

realizada anteriormente acerca da referecircncia e da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) Essa

retomada natildeo significa prolixidade mas consequecircncia inevitaacutevel da ligaccedilatildeo essencial

entre ser-aiacute e mundo E se antes a descriccedilatildeo foi explicitada para compreendermos a

abertura de sentido em funccedilatildeo do ser-aiacute agora seraacute exposta para compreendermos o

proacuteprio ldquoaiacuterdquo

Sem pressupor mundo como ente ou como espaccedilo a pesquisa fenomenoloacutegica

aproximou-se dos campos de mostraccedilatildeo de algo como lsquomundorsquo escapando de qualquer

preacutevia teorizaccedilatildeo Nessa direccedilatildeo vimos que algo como lsquomundorsquo se daacute inicialmente a

partir da abertura primaacuteria de sentido promovida pelo entender ou compreensatildeo

78 Como indicamos (nota 66) haacute uma questatildeo natildeo respondida em Ser e Tempo a temporalidade (Zeitlichkeit)

estaria afinal assentada no tempo histoacuterico da abertura Questatildeo expressa na uacuteltima linha daquela obra ldquoO

tempo (Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Essa questatildeo

aponta para o limite da obra de 1927 na medida em que o sentido de ser remetido e em funccedilatildeo de um ente

especiacutefico mesmo que privilegiado apresenta seus limites Natildeo aprofundaremos esse problema Nesse

sentido conferir inicialmente HEIDEGGER M Os problemas fundamentais da fenomenologia Trad

Marco Antocircnio Casanova Petroacutepolis RJ Vozes 2012 ndash Parte II (pp331-478) Conferir tambeacutem

CASANOVA (2009 pp 140-145) NUNES (2012 pp200-220) e STEIN (2001 pp297-309)

104

(Verstehen) Esse existenciaacuterio primaacuterio acontece sempre como interpretaccedilatildeo

(Auslegung) que jaacute potildee em visatildeo o que entende

A partir da lida praacutetica e natildeo teoacuterica que o ser-aiacute trava inicialmente com os entes

intramundanos (sect15) Heidegger chega a noccedilatildeo de mundo circundante ou mundo-

ambiente (Umwelt) Poreacutem a descriccedilatildeo do uso dos utensiacutelios (Zeug) em um mundo-

ambiente (Umwelt) eacute insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica

de todo ente em geral Assim conforme o sect 17 Heidegger descreve o fenocircmeno da

referecircncia a partir da descriccedilatildeo do sinal enquanto utensiacutelio que tem em sua serventia

especiacutefica o mostrar e ao fazecirc-lo conduz a compreensatildeo da instrumentalidade ou

utilizabilidade (Zuhandenheit) de todo e qualquer ente A relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia

explicita o fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua

finalidade na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal

enquanto instrumento nos mostra o mundo-circundante (Umwelt) e potildee em relevo o

caraacuteter da referecircncia que natildeo deve ser confundido com o proacuteprio sinal pois eacute a estrutura

ontoloacutegica do manual e fundamento constitutivo da mundidade como rede referencial na

qual o Dasein jaacute se encontra inserido na abertura primaacuteria remetida ao mundo na lida

praacutetica

O ldquomostrarrdquo do sinal tal como o ldquomartelarrdquo do martelo ou a emprego de todo e

qualquer ente natildeo satildeo propriedades essenciais presentes nos lsquoobjetosrsquo apreendidas pelo

ser-aiacute mas satildeo trazidas agrave luz na e pela estrutura da remissatildeo a partir do trato praacutetico E

ldquoser-remetido-ardquo como constituiccedilatildeo do utilizaacutevel eacute em uacuteltima medida ldquoconjuntar-se agraverdquo

nas palavras de Heidegger

ldquoConjuntaccedilatildeo eacute o ser do interior-do-mundo em relaccedilatildeo ao qual esse ente jaacute eacute e

de pronto cada vez posto-em-liberdade () Isto de que ele tenha uma

conjuntaccedilatildeo comjunto eacute a determinaccedilatildeo ontoloacutegica do ser desse ente e natildeo um

enunciado ocircntico sobre o enterdquo (HEIDEGGER 2012 p251)

Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo circundante (Umwelt)

o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a complexa rede de

remissotildees referenciais e revelando a totalidade conjuntural ou conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)

A totalidade conjuntural se mostra anterior a qualquer determinaccedilatildeo particular dos entes

intramundanos - uma vez que eacute a conjuntura mesma que determinaraacute os usos possiacuteveis a

partir da conformidade dos entes nela inseridos- revelando que o utensiacutelio em si mesmo

105

e em uacuteltima medida todo e qualquer ente no interior do mundo natildeo possui qualquer

determinaccedilatildeo essencial mas a recebe a partir do campo de uso da conjuntura na qual estaacute

inserido Como a partir daiacute se chega entatildeo agrave noccedilatildeo de algo como ldquomundordquo A conjuntura

como conformaccedilatildeo de todo e qualquer ente eacute dada em funccedilatildeo do que Heidegger chama

de significatividade (Bedeutsamkeit)

ldquoAo se manter na familiaridade com a abertura das relaccedilotildees o entender as potildee

diante de si como aquilo em que seu remeter se move O entender deixa-se

remeter nestas relaccedilotildees e por elas mesmas O caraacuteter relacional dessas relaccedilotildees

do remeter noacutes o aprendemos como significar Na familiaridade com essas

relaccedilotildees o Dasein lsquosignificarsquo a si mesmo daacute-se a entender originariamente seu

ser e poder-ser relativamente a seu ser-no-mundo [] O todo relacional desse

significar noacutes o denominamos significatividade Ela eacute o que constitui a estrutura

do mundordquo (HEIDEGGER2012p261)

Essa passagem traz o elemento crucial agrave nossa investigaccedilatildeo a significatividade

como a condiccedilatildeo mesma ou melhor a proacutepria lsquointeligibilidadersquo do mundo natildeo como

arcabouccedilo teoacuterico mas como acircmbito da interpretaccedilatildeo anterior a qualquer definiccedilatildeo

predicativa do ente A totalidade conjuntural que conforma os entes intramundanos

determina-os significativamente em seu ldquocomordquo ou seja os faz ver e aparecer como ente

como algo no interior da abertura de sentido do proacuteprio mundo Isto quer dizer que a

conjuntaccedilatildeo deixa ver o ente em seu ldquoser enterdquo como algo que lsquoeacutersquo a partir de um horizonte

ldquode tal maneira que ele se torna primeiramente acessiacutevel como ente do-interior-do-

mundordquo (HEIDEGGER 2012p255)

A abertura ou entendimento preacutevio no qual o ser-aiacute histoacuterico e finito faz o ente

vir ao encontro na conjuntura e o mobiliza conforme seu foco existencial mostra o

fenocircmeno do mundo e isso como jaacute apresentamos a partir da familiaridade em que o

Dasein se movimenta pelo seu caraacuteter de jogado O fenocircmeno do mundo eacute explicitado

por Heidegger na seguinte passagem

ldquoO Dasein se remete jaacute cada vez e sempre a partir de um em-vista-de-quecirc ao

com-quecirc de uma conjutaccedilatildeo isto eacute na medida em que eacute ele deixa jaacute cada vez e

sempre o ente vir-de-encontro como utilizaacutevel Aquilo-em-que o Dasein

previamente se entende no modus do remeter-se eacute aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do

preacutevio fazer o ente vir-de-encontro O em-quecirc do entender que se-remete como

aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do fazer o ente vir-de-encontro no modo-de-ser da

conjuntaccedilatildeo eacute o fenocircmeno do mundo E a estrutura daquilo a que o Dasein se

remete eacute o que constitui a mundidade do mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 257)

106

Mas essa passagem tambeacutem mostra uma diferenccedila que natildeo pode ser ignorada o

fenocircmeno do mundo e a mundidade (Weltlichkeit) do mundo O primeiro diz respeito agrave

mobilizaccedilatildeo de uma determinada conjuntura jaacute familiar a partir dos focos existenciais do

ser-aiacute possiacuteveis em um horizonte descerrado (aspecto ocircntico) a segunda indica o aspecto

estrutural ontoloacutegico do mundo Por isto a significatividade explicitada inicialmente

pelo fenocircmeno da referecircncia e trazida agrave tona pela noccedilatildeo de conjuntaccedilatildeo eacute chamada de

estrutura formal da mundidade pois natildeo diz respeito a uma estrutura deste ou daquele

ldquomundordquo especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica de algo como ldquomundordquo

A significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados

(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Quando um ente se mostra

na e pela ocupaccedilatildeo (Besorgen) vem agrave conjuntaccedilatildeo no momento mesmo do trato manual

e assim ele eacute posto em liberdade em seu ser como utilizaacutevel (Zuhandenes) e natildeo eacute- como

compreendeu a tradiccedilatildeo assentada na noccedilatildeo sujeito-objeto ndash uma lsquoresrsquo uma coisa um

ldquomaterial disponiacutevel no mundordquo Ou seja ele natildeo se mostra primariamente como um

subsistente (Vorhandener) jaacute que ldquofamiliaridade com o mundo natildeo exige

necessariamente uma transparecircncia teoacuterica das relaccedilotildees do mundo que constituem o

mundo como mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 259)

Para Heidegger (ao menos em Ser e Tempo) os entes no interior do mundo (entes

intramundanos) natildeo conforme ao modo de ser do Dasein satildeo de dois modos ou como

duas categorias como Zuhanden (agrave matildeo) que se mostra de modo originaacuterio no trato

praacutetico e como Vorhanden (ente simplesmente dado ou subsistente) que aparece de

modo derivado agrave mostraccedilatildeo praacutetica Trazendo agrave tona a gecircnese praacutetica do significado

Vigo (2012) chama a atenccedilatildeo acerca do tratamento pouco extensivo agraves categorias que

Heidegger oferece em 1927

ldquoHeidegger oferece tatildeo somente um tratamento muito fragmentaacuterio desses

aspectos que jaacute foi explicado pelo fato expressamente declarado do caraacuteter

preparatoacuterio em SZ Ela natildeo conteacutem mesmo remotamente a totalidade do que

deveria conter um modelo ontoloacutegico de aspiraccedilatildeo integral que abarca as

diferentes ontologias regionais e apresentar o repertoacuterio das categorias mais

relevantes para cada uma delas mostrando aleacutem disso as correspondentes

relaccedilotildees de dependecircncia etcrdquo (p113)

O caraacuteter preparatoacuterio e ainda formal de Ser e Tempo o qual apenas estabelece a

diferenccedila categorial entre Zuhanden e Vorhanden parece querer marcar uma diferenccedila

107

mais fundamental ainda vinculada agraves primeiras preleccedilotildees da deacutecada de 1920 nas quais a

derivaccedilatildeo do teoreacutetico era atribuiacuteda a uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Em Ser e

Tempo ldquoa diferenccedila entre o conhecimento matemaacutetico e o conhecimento filosoacuteficordquo ganha

um contorno definitivo como diferenccedila ldquoentre uma concepccedilatildeo de loacutegos provinda da loacutegica

e outra que adveacutem do conceito de aleacutetheiardquo (STEFANI 2009 p51)

Dessa forma qualquer ente tomado de forma teoacuterica com um significado

determinado eacute um modo de acesso ou um visar o ente de modo derivado pelo ser-aiacute (natildeo

podemos esquecer que a mobilizaccedilatildeo dos entes eacute realizada em funccedilatildeo dos focos

existenciais do Dasein o que foi chamado de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo) Em

outras palavras como a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que significado

(Bedeutung) mas sua condiccedilatildeo de possibilidade qualquer teoria ou modo de tratamento

teoacuterico de um ente subsistente (Vorhandenes) eacute tributaacuterio da sedimentaccedilatildeo de um mundo

da sedimentaccedilatildeo de uma totalidade conjuntural que vem ao encontro do ser-aiacute

originariamente na ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhandenes) Assim ldquoo mundo faacutetico

onde se desdobra a existecircncia do ser-aiacute eacute constituiacutedo pela solidificaccedilatildeo dos significados

dos entes intramundanos e pela sedimentaccedilatildeo dos sentidos em virtude dos quais o ser-aiacute

desdobra o poder-ser que ele eacuterdquo (CABRAL 2015 p94) O ser-aiacute como projeto jogado

mobiliza sentidos e atualiza essas significaccedilotildees calcificadas de um mundo histoacuterico Algo

como um conceito uma definiccedilatildeo ou um significado do ente eacute possiacutevel por essa abertura

de sentido interpretativa preacutevia e sedimentada articulada pela significatividade e dada de

maneira preacute-linguiacutestica

Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez

familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o

Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como

lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo

(HEIDEGGER 2012p261 grifo nosso)

Prestemos atenccedilatildeo agrave uacuteltima consideraccedilatildeo dessa passagem significaccedilotildees natildeo satildeo

palavras elas fundam palavras Lembremos a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica o significado

natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua mostraccedilatildeo

Vimos no capiacutetulo anterior que o loacutegos do fenocircmeno para Heidegger eacute loacutegos apofacircntico

(λόγος αποφατικός) o mostrar do fenocircmeno a respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que

se mostra como algo de maneira indiferenciada natildeo determinada E ainda esse mostrar

do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes sempre em meio a

108

um campo interpretativo Ou seja agora podemos dizer eacute o mostrar o ente como ente

(algo como algo) no interior do mundo Na abertura que entende (Verstehen) remetida ao

mundo originariamente na lida praacutetica algo vem ao encontro e na medida que se mostra

jaacute se mostra interpretado (Auslegung) como algo do interior do mundo Mundo

compreendido em seu aspecto ontoloacutegico natildeo como ente espaccedilo ou soma de coisas (res)

disponiacuteveis agrave nossa apreensatildeo Mas abertura compreensiva-interpretativa do ser-aiacute

estruturalmente articulada em sua totalidade- enquanto ldquomundordquo - pela significatividade

E eacute dessa articulaccedilatildeo que podem vir significados e dos significados palavras assim

ldquoPodemos dizer que o que estaacute em jogo na discussatildeo de Heidegger com a

concepccedilatildeo husserliana natildeo eacute outra coisa em definitivo que a questatildeo relativa ao

modo fenomenoloacutegico adequado de considerar a experiecircncia antepredicativa

como tal Trata-se de uma questatildeo metodicamente fundamental justamente na

medida em que concerne de modo direto a adequada determinaccedilatildeo do terminus a

quo79 para uma possiacutevel explicaccedilatildeo da origem do enunciado predicativo como

modo derivado e fundado da interpretaccedilatildeo Atado aos preconceitod da ontologia

tradicional que se orienta a partir da estrutura do loacutegos apofatikoacutes considerando

o mesmo como algo dado lsquopresente agrave vistarsquo (Vorhandener) Husserl faz

basicamente o mesmo que jaacute havia feito a teoria tradicional das categorias desde

Aristoacuteteles em diante a saber retroprojetar a estrutura do enunciado da forma S-

P para o acircmbito dos lsquoobjetosrsquo que natildeo eacute outro que dos entes intramundanos

considerados como dados meramente lsquopresente agrave vistarsquo (VIGO 2012 p96)

Se a discussatildeo de Heidegger com a concepccedilatildeo husserliana se torna patente eacute

importante destacar tambeacutem a discussatildeo com a concepccedilatildeo diltheyniana - tendo em vista

o esclarecimento da noccedilatildeo de ldquosignificatividaderdquo Vimos que a categoria do significado

como apresentada por Dilthey possui um aspecto decisivo a relaccedilatildeo entre vivecircncia e

compreensatildeo eacute o ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da hermenecircutica pois traz em si a

categoria do significado como o nexo da vivecircncia com a realidade concreta sem se

apoiar em qualquer elemento transcendente agrave proacutepria experiecircncia vivida Contudo como

observa Heidegger no sect43 de Ser e Tempo o viacutenculo de Dilthey agrave teoria do conhecimento

da eacutepoca compreendendo a vivecircncia como vivecircncia de consciecircncia ou ldquoa relaccedilatildeo-de-ser

da consciecircncia com o real ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p583) faz com que a lsquovidarsquo

seja apresentada de modo indiferenciado sem a compreensatildeo de sua sustentaccedilatildeo

ontoloacutegica jaacute que a vivecircncia particular da consciecircncia como vida conexa e estruturante

79Termo a partir do qual Ponto de partida

109

eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu projeto hermenecircutico Mas Heidegger

reconhece ldquoDilthey natildeo soacute acentua que a realidade nunca eacute dada de modo primaacuterio no

pensamento e na apreensatildeo mas indica sobretudo que o conhecer ele mesmo natildeo

consiste em julgar e que saber eacute uma lsquorelaccedilatildeo de serrsquordquo (HEIDEGGER 2012 p583)

Tentando tornar mais claro mesmo que para Dilthey o mundo natildeo apareccedila como um

conjunto de coisas prontas agrave apreensatildeo da razatildeo humana mais ainda que as coisas

enquanto res natildeo sejam tomadas como a realidade (Realitaumlt) o fato de o pressuposto da

vivecircncia provir da consciecircncia obscurece o fundamento ontoloacutegico de algo como ldquovidardquo

Por isso escapou a Dilthey a relaccedilatildeo primaacuteria entre ser-aiacute como ser-no-mundo em sua

radicalidade ontoloacutegica como relaccedilatildeo fundante de toda e qualquer compreensatildeo de ser

Talvez por esse motivo como observa DASTUR (2007)

ldquoNo trabalho publicado em 1927 Heidegger natildeo usa frequentemente termo

hermenecircutica que aparece apenas trecircs ou quatro vezes () - no paraacutegrafo 7 da

introduccedilatildeo quando eacute para definir a fenomenologia no paraacutegrafo 33 que trata da

enunciaccedilatildeo e no paraacutegrafo 45 que define o iniacutecio da segunda parte da tarefa de

uma interpretaccedilatildeo do Dasein - enquanto o termo Auslegung que significa tanto

interpretaccedilatildeo e explicaccedilatildeo eacute muito mais frequentemente utilizadordquo (p74)

E quando Heidegger retoma o termo ldquohermenecircuticardquo no sect33 ele ressalta o caraacuteter

existenciaacuterio de tal interpretaccedilatildeo

ldquoA enunciaccedilatildeo natildeo pode negar sua origem ontoloacutegica a partir da interpretaccedilatildeo

que-entende O ldquocomordquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor entendedor

(ἑρμηνεία) noacutes os chamamos lsquocomorsquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio para

diferenciaacute-lo do ldquocomordquo apofacircntico da enunciaccedilatildeo (Aussage)rdquo (HEIDEGGER

2012 p 447)

O que eacute essa diferenccedila entre o ldquocomordquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio e o ldquocomordquo

apofacircntico da enunciaccedilatildeo Eacute a diferenccedila entre Auslegung (interpretaccedilatildeo) e Aussage

(enunciado) A diferenccedila consiste no fato de que a originariedade da mostraccedilatildeo dos entes

em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) - pela

significatividade (Bedeutsamkeit) que a articula - e sua derivaccedilatildeo como ente

simplesmente dado (Vorhanden) ndash fazendo emergir algo como significado (Bedeutung)-

ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) em sua ligaccedilatildeo

derivativa agrave interpretaccedilatildeo (Auslegung) De outra maneira como a estrutura interpretativa

aberta pela compreensatildeo ou entendimento (Verstehen) transforma-se em proposiccedilatildeo

Na introduccedilatildeo desse capiacutetulo escrevemos que na fenomenologia heideggeriana veio agrave

110

tona o aspecto ontoloacutegico do conteuacutedo significativo Essa fenomenologia como ontologia

acabou por revelar de um lado a historicidade de todo e qualquer significado que pudesse

vir agrave palavra por outro que o campo de sentido no qual algo pode manter-se em seu

significado tambeacutem era histoacuterico Eacute necessaacuterio portanto a partir de agora mostrar como

o significado aberto pela compressatildeo-interpretativa (algo como algo) ganha sua forma

expressa inicialmente a partir do fenocircmeno da proposiccedilatildeo e a partir dessa derivaccedilatildeo

podemos ter acesso ao fenocircmeno da linguagem

II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da

interpretaccedilatildeo (Auslegung)

A anaacutelise da enunciaccedilatildeo (Aussage) conforme apresenta por Heidegger no sect33 de

Ser e Tempo constitui a segunda estrutura descrita na obra a qual nos permite

compreender o fenocircmeno da linguagem (Sprache) como a manifestaccedilatildeo uacuteltima de um

horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo dos entes previamente

articulada O fenocircmeno da linguagem aparece como resultado dos trecircs objetivos de sua

investigaccedilatildeo neste momento do tratado os quais listamos a seguir

1) Como a estrutura compreensiva-interpretativa (apresentada no toacutepico anterior)

sofre uma modificaccedilatildeo

2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos

3) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade

Como antecipamos e a partir da finalidade da anaacutelise acima apresentada

podemos dizer que o que estaacute em jogo nesse momento da analiacutetica eacute compreender que ldquoa

siacutentese predicativa fundamenta-se numa daccedilatildeo originaacuteria e eacute em funccedilatildeo da experiecircncia

antepredicativa que se opera a atribuiccedilatildeo do predicado ao sujeitordquo (NUNES 2012 p165)

Em outras palavras como a estrutura interpretativa aberta pela compressatildeo (algo como

algo) transforma-se em proposiccedilatildeo (Sujeito-predicado) E essa derivaccedilatildeo eacute elencada nas

trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo (Aussage)

1) Mostraccedilatildeo (Aufzeigung)

2) Predicaccedilatildeo (Praumldikation)

111

3) Comunicaccedilatildeo (Mitteilung)

Essas significaccedilotildees do termo Aussage ainda segundo Heidegger possuem caraacuteter

analiacutetico pois satildeo ldquotiradas do fenocircmeno que ela designa as quais delimitam em sua

conexatildeo e unidade a completa estrutura da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p437)

Essa unidade estaacute assentada nas condiccedilotildees preacutevias tendo em vista que ldquoa enunciaccedilatildeo natildeo

eacute um comportamento-que-flutua-no-ar e que possa por si mesmo abrir o ente

primariamente mas se comporta jaacute sempre sobre a base de ser-no-mundordquo

(HEIDEGGER 2012 p443)

Como vimos no capiacutetulo anterior as condiccedilotildees preacutevias conforme apresentadas no

Relatoacuterio Natorp satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a direccedilatildeo da

visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a ldquovisibilidaderdquo (Sichtweite) De

modo mais claro em (1) temos o acircmbito da realidade dada em uma preacutevia abertura

temporal de sentido em (2) temos a direccedilatildeo que jaacute determinou algo ldquocomo-algordquo (Als-

was) e jaacute ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu lugar

significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de toda

possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o como

do aparecer dos entes em seu ser seu significado e as possibilidades de comportamentos

do ser-aiacute eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto

(1) e jaacute interpretado (2) e por isso pode mover-se em pretensotildees de objetividade e

definiccedilatildeo Essas condiccedilotildees estatildeo articuladas com a interpretaccedilatildeo de Heidegger dos termos

respectivamente noucircs phroacutenesis e sophiacutea e assentadas na noccedilatildeo de verdade como

desvelamento (ἀλήθεια) Em Ser e Tempo Heidegger reelabora essas interpretaccedilotildees com

uma terminologia proacutepria respectivamente Vorhabe (ter-preacutevio) Vorsicht (ver-preacutevio)

e Vorgriff (conceito-preacutevio) e esse tripeacute

ldquoForma o arcabouccedilo projetivo do compreender que nos abre os entes ao sabor

dos nexos da referecircncia na conduta do trato atraveacutes dos quais se estende a rede

de significatividade () Eacute nessa conduta e portanto na experiecircncia

antepredicativa como a praacutexis maciccedila do mundo-da-vida em seu imediato e

frequente transcorrer cotidiano que Heidegger coloca a nascente do sentidordquo

(NUNES 2012 p168)

Como essas condiccedilotildees preacutevias devem ser compreendidas em vista do caraacuteter de

projeto-jogado do ser-aiacute natildeo eacute gratuita a designaccedilatildeo da abertura do ser-aiacute ao mundo como

112

ldquoabertura de sentido fundamentalrdquo A abertura compreensiva fundamental descerra o

poder-ser do ser-aiacute como projeto mas ao projetar-se ele eacute lanccedilado num ldquoaiacuterdquo histoacuterico O

seu poder-ser se lanccedila num campo de jogo jaacute descerrado interpretado e articulado por

essas condiccedilotildees E assim essas condiccedilotildees preacutevias ldquoreconduz[emcc]-nos ao ciacuterculo

hermenecircutico ontoloacutegico-histoacuterico que circunscreve por forccedila da finitude que faz do

homem um Daseinrdquo (NUNES 2012 p168) No que me lanccedilo ao mundo sou e o mundo

eacute como ele eacute como escreve Fernando Pessoa (2006 p177)

ldquoCreio no mundo como um malmequer

Porque o vejo Mas natildeo penso nele

Porque pensar eacute natildeo compreender

O Mundo natildeo se faz para pensarmos nele

(Pensar eacute estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordordquo

Talvez esses versos possam iluminar o que estaacute em questatildeo nesse paraacutegrafo

Poderiacuteamos nos questionar por qual motivo Heidegger natildeo passa da interpretaccedilatildeo

(Auslegung) ao discurso (Rede) pois este como veremos no proacuteximo capiacutetulo remete agrave

fala como fundamento ontoloacutegico da linguagem O sect 33 se refere a uma discussatildeo muito

especiacutefica mas que tem um lugar privilegiado na ontologia fundamental e estaacute

diretamente relacionada ao sect44 da mesma obra A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo de verdade

da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca que era a dos

neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa concepccedilatildeo

tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da verdade em

direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave proposiccedilatildeo Com

isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa medida

condicionando a ontologia agrave loacutegica

Courtine (1996) elabora essa problemaacutetica com clareza A partir de trecircs etapas

ele nos apresenta o caminho que conduz nosso autor da loacutegica agrave liacutengua A primeira etapa

diz respeito aos trabalhos de juventude de Heidegger ldquoainda marcados pela problemaacutetica

da validade como primeira elucidaccedilatildeo do ser no juiacutezordquo (COURTINE 1996 p14) Jaacute a

segunda etapa que Courtine denomina destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica consiste em regressar

da interpretaccedilatildeo ldquoescolarrdquo da loacutegica aristoteacutelica a uma problematizaccedilatildeo mais original do

loacutegos compreendido como modo de desvelamento Eacute nessa segunda etapa que estaacute

113

inserido o trabalho de Ser e Tempo sendo a passagem da primeira agrave segunda etapa

marcada pelo curso de 1925-1926 Logik die Frage nach der Wahrheit (GA21) A

terceira seria ainda uma etapa de destruiccedilatildeo mas de modo diferente marcada pelo que

Courtine denomina desorientaccedilatildeo ou ldquoabalordquo (erschuumlttern) e encontra sua imagem

expliacutecita no texto de 1935 ldquoIntroduccedilatildeo agrave metafiacutesicardquo

Portanto na primeira etapa a loacutegica para o jovem Heidegger eacute ainda apreendida

como loacutegica do ldquosentidordquo ou da ldquovalidaderdquo

ldquoA ideacuteia segundo a qual a Geltung a validade define o modo de ser proacuteprio das

proposiccedilotildees e das verdades vem como se sabe da loacutegica de Lotze Numa nota

das Neuere Forschungen uumlber Logik (GA I p23) Heidegger indicava a respeito

da Loacutegica de Lotze que acabava de ser reeditada sua loacutegica deve sempre ser

considerada como a obra fundamental da loacutegica moderna () E Heidegger que

ateacute aqui se exprimia como disciacutepulo fiel de Husserl terminava por acrescentar

esta questatildeo rica em posteridade para seu proacuteprio pensamento ldquoMas logo se

coloca a questatildeo o que eacute ndash sentidordquo (GA I p170)rdquo (COURTINE 1996 pp16-

17)

Vimos como o sentido (Sinn) em Ser e Tempo eacute apresentado sob uma perspectiva

radical relacionado agrave problematizaccedilatildeo mais original do lsquoloacutegosrsquo como mostraccedilatildeo do

fenocircmeno em seu ser e agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento Essa mudanccedila criacutetica

resulta da aparentemente simples interrogaccedilatildeo de Heidegger acerca da identificaccedilatildeo

ldquoWahrheit = wahrer Satz = Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade)rdquo

(COURTINE 1996 p 19) A criacutetica eacute assim expressa em Logik die Frage nach der

Wahrheit (GA21)

ldquoLotze que introduziu o conceito de lsquoGeltungrsquoem loacutegica emprega a expressatildeo

lsquoserrsquo no sentido estrito segundo o qual ser quer dizer a mesma coisa que

efetividade das coisas ser = lsquorealidadersquo (Vorhandenheit) [] Lotze natildeo conseguiu

superar o naturalismo na medida em que restringiu o significado do termo

veneraacutevel lsquoserrsquo ao ser real agrave realidade [] Na nossa terminologia utilizamos

inversamente ser no sentido amplo inserindo-nos na autecircntica tradiccedilatildeo da

filosofia grega de tal maneira que ser designa tanto a realidade quanto a

idealidade ou outras maneiras possiacuteveis de serrdquo (HEIDEGGER GA21 p62

apud COUTRINE 1996 p19)

Nesse sentido lembremos tambeacutem que para os neokantianos influenciados pela

filosofia dos valores de Lotze o conhecimento eacute possiacutevel como uma atividade valorativa

do juiacutezo (na forma ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo) Ou seja eacute o juiacutezo que reconhece o

conteuacutedo o sentido e a validade da verdade na sua pretensatildeo de necessidade e

114

universalidade algo ldquoeacuterdquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento Ora

o que a leitura de Ser e Tempo ateacute aqui jaacute demonstrou eacute que algo eacute natildeo porque um juiacutezo

loacutegico definiu seu conteuacutedo ontoloacutegico mas porque o ser-aiacute aquele que vai atribuir

sentido jaacute sempre se move numa preacute-compreensatildeo de ser a qual eacute fundamentalmente

praacutetica na visatildeo circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram

em seu ser Ora estabelecendo uma possiacutevel analogia parece que Heidegger desconfia

tanto do conhecimento teoacuterico-proposicional quanto Fernando Pessoa do ldquopensamentordquo

Assim reduzir qualquer ontologia agrave loacutegica atraveacutes do juiacutezo proposicional eacute como ldquoestar

doente dos olhosrdquo

No nosso entender o que Heidegger desenvolve no sect 33 soacute seraacute totalmente

elucidado se o relacionarmos com o sect 44 No sect 33 jaacute se anuncia que a forma fundamental

da predicaccedilatildeo (Praumldikation) sujeito e predicado (ldquoS eacute Prdquo) eacute derivada da mostraccedilatildeo

(Aufzeigung) originaacuteria compreensivo-interpretativa (algo como algo) e soacute por isso a

comunicaccedilatildeo (Mitteilung) uns com os outros na vida cotidiana pode expressar profericcedilotildees

como ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo ldquoHoje eacute um belo diardquo etc Antes de

entramos na apresentaccedilatildeo pormenorizada do sect33 e assim a relacionarmos ao sect44 eacute

necessaacuterio fazermos duas consideraccedilotildees

Essas camadas de derivaccedilatildeo evitam qualquer interpretaccedilatildeo relativista da noccedilatildeo de

linguagem em Heidegger Tentando escapar de uma leitura apressada devemos pensar

no acontecimento da verdade como um acontecimento compreensivo a partir de um ente

finito e histoacuterico o que eacute diferente de reduzi-lo a uma perspectiva historicista O que estaacute

em questatildeo por exemplo natildeo eacute se ldquocasardquo poderia se chamar ldquomesardquo (esse eacute um aspecto

ocircntico da linguagem) ou ainda que o fato de o enunciado possuir um fundamento

contingente ele seria menos verdadeiro Aleacutem disso haacute o fato de que o ente e as

possibilidades de ser do ser-aiacute vecircm agrave palavra por uma mostraccedilatildeo preacutevia de seu ser eacute o

ente que se mostra E na medida em que eacute mobilizado pelo ser-aiacute na interpretaccedilatildeo sua

mostraccedilatildeo pode ser modificada pela expressatildeo na forma predicativa A loacutegica deriva do

loacutegos a loacutegica natildeo eacute o lugar do loacutegos E o loacutegos eacute a maneira mesma de o ente se mostrar

e se ele se mostra para o ser-aiacute isso natildeo quer dizer que eacute o ser-aiacute que o determina Natildeo

Eacute o ser-aiacute que o potildee em liberdade O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento

como fenocircmeno Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a

115

expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional

compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na estabilidade de uma esfera para aleacutem

do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua manifestaccedilatildeo o sentido

de sua proacutepria existecircncia

Caberia ademais em uma pesquisa posterior investigar se a interpretaccedilatildeo do

loacutegos como loacutegos apofacircntico derivada da noccedilatildeo de intencionalidade essecircncia mesma da

fenomenologia ainda reconduz Heidegger a certo viacutenculo com a concepccedilatildeo tradicional

da linguagem na medida em que dizer eacute ainda dizer que algo eacute de tal ou qual maneira ou

seja ainda dizer na forma predicativa Dito de outra forma mesmo que Heidegger

demonstre o caraacuteter derivado da loacutegica ela continua a ser uma purificaccedilatildeo dos elementos

materiais da linguagem Isso significaria dizer que o problema heideggeriano da

linguagem ainda estava inserido no projeto da tradiccedilatildeo da filosofia ocidental 80

Retomemos agora as trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo

(Aussage) Na mostraccedilatildeo (Aufzeigung) como primeiro significado Heidegger reteacutem o

sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Essa forma do enunciado estaacute diretamente

relacionada ao ente que vem ao encontro no Vorhabe (ter-preacutevio) ou noucircs em que o ser-

aiacute originariamente pela ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhanden) movimenta-se e abre a

compreensatildeo em um mundo-ambiente (Umwelt) Mas toda compreensatildeo (Verstehen) jaacute

interpreta (Auslegung) o que entende e assim no trato praacutetico ou no ldquocomordquo

hermenecircutico-existenciaacuterio

ldquoA execuccedilatildeo originaacuteria da interpretaccedilatildeo natildeo consiste em uma proposiccedilatildeo-

enunciativa teoacuterica mas no fato de que no-ver-ao-redor da ocupaccedilatildeo se potildee de

lado ou se troca a ferramenta improacutepria lsquosem perder nisso uma soacute palavrarsquo Da

falta de palavras natildeo se deve concluir a falta de interpretaccedilatildeordquo (HEIDEGGER

2012 P445)

Na predicaccedilatildeo (Praumldikation) segundo significado da enunciaccedilatildeo fundado no

primeiro haacute a determinaccedilatildeo de um ente que modifica e restringe a mostraccedilatildeo de algo

como algo na forma sujeito-predicado Esse segundo significado estaacute diretamente

80 Cf Capiacutetulo I- Introduccedilatildeo

116

relacionado ao Vorsicht (ver-preacutevio) cuja base encontra-se no Vorhabe (ter-preacutevio) No

que o ser-aiacute vecirc algo e o determina ele restringe o utilizaacutevel (Zuhandenes) a um subsistente

(Vorhandener) com isso ele ldquovisa a um subsistente no utilizaacutevel Pelo olhar

contemplativo e para ele o utilizaacutevel se oculta como utilizaacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012

p445) Esse segundo momento da enunciaccedilatildeo estaacute ligado ao significado (Bedeutung) que

emerge a partir da significatividade (Bedeutsamkeit) e nesse sentido ldquoposiccedilatildeo-de-sujeito

posiccedilatildeo-de-predicado em unidade com o-pocircr satildeo inteiramente lsquoapofacircnticosrsquo no sentido

rigoroso da palavrardquo (HEIDEGGER 2012 p439) Aqui Heidegger ainda se refere a uma

categoria do ente que se mostra no interior do mundo Mas entatildeo como ocorre a

modificaccedilatildeo de algo como algo tomado como categoria subsistente (Vorhanden) na forma

loacutegica sujeito-predicado

ldquoAgora pela primeira vez se franqueia o acesso a algo assim como propriedades

O lsquoquecircrsquo da enunciaccedilatildeo determinante do subsistente eacute extraiacutedo do subsistente

como tal () A estrutura-de-como da interpretaccedilatildeo experimenta uma

modificaccedilatildeo O lsquocomorsquo em funccedilatildeo de apropriaccedilatildeo do entendido jaacute natildeo chega ateacute

uma totalidade-de-conjuntaccedilatildeo Ele foi separado de suas possibilidades de

articular as relaccedilotildees-de-remissatildeo da significatividade que constitui o ser-do-

mundo-ambiente O lsquocomorsquo eacute reprimido no plano uniforme do soacute subsistente ()

Esse nivelamento do lsquocomorsquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor em como

da determinaccedilatildeo-da-subsistecircncia eacute a prerrogativa da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER

2012 p447)

O ente tomado como subsistente (Vorhanden) eacute prerrogativa da predicaccedilatildeo Seu

recorte como algo que possui essa ou aquela propriedade torna possiacutevel algo como a

forma predicativa (ldquoS eacute Prdquo) O que estaacute em jogo poreacutem pois tornou-se paradigma da

tradiccedilatildeo eacute o nivelamento de todo e qualquer ente como algo sempre presente dotado de

propriedades e desse modo disponiacuteveis agrave apreensatildeo na forma predicativa Nesse

nivelamento todo ente eacute posto sob o domiacutenio da loacutegica que obscurece sua derivaccedilatildeo

essencial agrave mostraccedilatildeo do ente em seu ser em funccedilatildeo da relaccedilatildeo primaacuteria ser-aiacute como ser-

no-mundo e assim da verdade como desvelamento (ἀλήθεια)

A terceira forma do enunciado derivado do primeiro e do segundo significados eacute

apresentada por Heidegger como comunicaccedilatildeo (Mitteilung) A palavra alematilde jaacute indica o

caraacuteter puacuteblico do que inicialmente foi mostrado e pela predicaccedilatildeo foi determinado

teilung (partilha) mit (com) O enunciado como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se puder ser

partilhado com outrem ldquover juntordquo o mostrado jaacute determinado ldquolsquoCompartilhadorsquo eacute o

comum e transparente ser para o mostrado lsquoser pararsquo que deve ser firmemente mantido

117

como ser-no-mundo [] Agrave enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo entendida assim sentido

existenciaacuterio pertence o ser expressordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Essa terceira forma

estaacute relacionada ao Vorgriff (conceito-preacutevio) ou a significaccedilotildees calcificadas de um

mundo histoacuterico faacutetico

Natildeo podemos esquecer que a anaacutelise dos existenciaacuterios (entender interpretaccedilatildeo e

disposiccedilatildeo) estatildeo na anaacutelise do ldquoser-em como talrdquo (quinto capiacutetulo) antecedida pelo

capiacutetulo intitulado ldquoo ser-no-mundo como ser-com e como ser-si-mesmo lsquoA gentersquordquo

Nesse sentido e pelo caraacuteter programaacutetico de Ser e Tempo a anaacutelise da enunciaccedilatildeo ou

proposiccedilatildeo (Aussage) jaacute pressupotildee que ser-no-mundo eacute sempre ser-com-os-outros Desse

modo ser expresso na comunicaccedilatildeo eacute a primeira manifestaccedilatildeo acerca do fenocircmeno da

linguagem que Heidegger apresenta em Ser e Tempo Poreacutem no sect34 o autor indica que

a comunicaccedilatildeo enunciativa ou informativa (ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo

ldquoHoje eacute um belo diardquo etc) assentada na predicaccedilatildeo eacute um caso particular de comunicaccedilatildeo

(Cf HEIDEGGER 2012 p457) Mas aqui chegamos ao intuito principal de nosso

capiacutetulo descrever como a ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo fundada na predicaccedilatildeo que por

sua vez soacute eacute possiacutevel pela interpretaccedilatildeo apresenta o caraacuteter derivativo do enunciado

expresso em uacuteltima medida pela linguagem que comunica

A partir dessa apresentaccedilatildeo dos trecircs significados do enunciado (Aussage)

compreendemos sua definiccedilatildeo ldquoenunciaccedilatildeo eacute uma mostraccedilatildeo determinante que

comunicardquo (HEIDEGGER 2012 p443) Portanto chegamos agrave estrutura ontoloacutegica da

linguagem (Sprache) ou ao dizer puacuteblico acerca das coisas e do estado de coisas em um

mundo Ter chegado ao objetivo central de nosso capiacutetulo natildeo quer dizer que nossa tarefa

se encerra aqui Uma obra como Ser e Tempo nos exige mais A finalidade da investigaccedilatildeo

desse paraacutegrafo ainda natildeo foi esclarecida em seus dois uacuteltimos pontos

1) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos

2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade

Se Heidegger indica que no mostrar mesmo do fenocircmeno em seu loacutegos (algo como

algo) pode surgir a forma predicativa eacute necessaacuterio explicar como no proacuteprio loacutegos a

flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo eacute possiacutevel Nas palavras de nosso autor

118

ldquoQue funda a unidade desse juntar Ele reside como Platatildeo reconheceu em que o

λόγος eacute sempre um λόγος tivoacuteς Na perspectiva do ente manifesto no λόγος as

palavras satildeo reunidas em um todo verbal Aristoacuteteles viu mais radicalmente todo

λόγος eacute ao mesmo tempo σύνθεσis e διαίρεσηs A mostraccedilatildeo eacute um reunir e separar

Entretanto Aristoacuteteles natildeo desenvolveu a questatildeo ateacute perguntar Que fenocircmeno eacute

o que no interior da estrutura do λόγος possibilita e ao mesmo tempo exige a

caracterizaccedilatildeo de toda enunciaccedilatildeo como siacutentese e dieacuterese () O que com as

estruturas formais do lsquoligarrsquo e lsquosepararrsquo ou mais exatamente com a unidade de

ambos devia ser fenomenicamente encontrado eacute o fenocircmeno do lsquoalgo como algorsquordquo

(HEIDEGGER 2012 p449)

A criacutetica expliacutecita se volta contra Aristoacuteteles mas tambeacutem contra toda tradiccedilatildeo

que absorveu esse pressuposto E como natildeo podemos deixar de observar ateacute seu proacuteprio

mestre Husserl quando este estabeleceu a diferenccedila entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial

Essa distinccedilatildeo desalojou o lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel e o conduziu ao uso loacutegico

sem revelar de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno ou o desvelamento dos

entes em seu ser O fenocircmeno da linguagem enunciativa (Mitteilung) em funccedilatildeo de sua

derivaccedilatildeo da predicaccedilatildeo (Praumldikation) e essa por sua vez derivada da mostraccedilatildeo

(Aufzeigung) possui uma ligaccedilatildeo com os entes na medida em que diz o que de algum

modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que lsquoalgo eacute xrsquo ou que lsquoalgo natildeo eacute xrsquo eacute possiacutevel primariamente

pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com

No interior da estrutura do proacuteprio λόγος ao indicar-se que algo eacute diz-se tambeacutem como

ele eacute ou como ele natildeo eacute [esse traccedilo estaacute relacionado ao caraacuteter intencional do discurso

(die Rede) que examinaremos no proacuteximo capiacutetulo] Contudo a linguagem habitual que

manteacutem vigente os significados calcificados natildeo reconhece esse traccedilo para aleacutem da

gramaacutetica Aleacutem disso a proposiccedilatildeo loacutegica obscurece a estrutura do loacutegos que a

condiciona pelo fato de usurpar a verdade para o juiacutezo natildeo reconhecendo o lugar

originaacuterio da verdade Originariedade somente possiacutevel pela compreensatildeo da verdade

como Aleacutetheia O que nos conduz agrave segunda finalidade da investigaccedilatildeo do sect 33

Para explicarmos esse conceito originaacuterio de verdade eacute necessaacuterio que nos

reportemos ao sect44 Quando se diz ldquooriginariedaderdquo do fenocircmeno da verdade natildeo se diz

algo como lsquocausarsquo da verdade antes se refere agrave sua origem sem sentido objetivo

lsquoObjetividadersquo eacute um conceito derivado da verdade reportada ao juiacutezo Aqui a verdade

tambeacutem natildeo deve ser considerada para aleacutem de sua compreensatildeo histoacuterica Lembremos

de que natildeo haacute ldquoserrdquo sem a compreensatildeo do sentido de ser portanto eacute necessaacuterio vincular

119

sempre ldquoserrdquo ao ser-aiacute ente finito e histoacuterico Por conseguinte compreensatildeo de ser em

Ser e Tempo estaacute como a origem mesma da verdade compreendida como desvelamento

Como jaacute apontamos antes a enunciaccedilatildeo (Aussage) enquanto mostraccedilatildeo

(Aufzeigung) eacute a forma fundante dos modos possiacuteveis de enunciaccedilatildeo e nela Heidegger

reteacutem o sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Na mostraccedilatildeo nada se funda em

representaccedilotildees que se adequam a objetos como compreendeu a tradiccedilatildeo Para serem

verdadeiros e garantirem seu estatuto ontoloacutegico os entes natildeo precisam estar de em

acordo nem se submeterem agrave adequaccedilatildeo dos juiacutezos ou proposiccedilotildees dos homens A

derivaccedilatildeo da verdade como objetividade na ciecircncia ou em todo comportamento teoacuterico

natildeo pode negar a maneira pela qual o ente eacute posto em liberdade Conhecer

originariamente eacute deixar que o ente se mostre em seu ser dessa forma

ldquoSuponha-se que algueacutem de costas para a parede profira a seguinte enunciaccedilatildeo

verdadeira lsquoO quadro pendurado na parede estaacute tortorsquo Essa enunciaccedilatildeo se

comprova quando quem a enuncia se volta para a parede e percebe o quadro torto

ali dependurado Que eacute comprovado nessa comprovaccedilatildeo Eacute constatado algo

como uma concordacircncia do lsquoconhecimentorsquo ou do conhecido com a coisa

lsquocolocadarsquo na parede Sim e natildeo conforme se faccedila cada vez uma adequada

interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do que a expressatildeo lsquoo conhecidorsquo significa A que

se refere quem enuncia se natildeo julga o quadro na percepccedilatildeo mas soacute o representa

A algo como representaccedilotildees Certamente que natildeo se representaccedilatildeo deve aqui

significar representar como processo psiacutequico Tambeacutem natildeo se representaccedilotildees

tecircm o sentido do representado na medida em que visada uma imagem da coisa

real na parede Ao contraacuterio a enunciaccedilatildeo que soacute representa refere-se segundo

seu sentido mais proacuteprio ao quadro real na parede Soacute ele eacute visado e nada que

dele difira () O enunciar eacute um ser voltado para a coisa sendo ela mesma E que

eacute comprovado pela percepccedilatildeo Nada senatildeo que o percebido eacute o mesmo ente

visado na enunciaccedilatildeoConfirma-se que o ser enunciante para o enunciado eacute um

mostrar o ente que ele descobre o ente para o qual se volta Eacute comprovado o ser-

descobridor da enunciaccedilatildeo () o conhecer permanece referido unicamente ao

ente ele mesmo Eacute neste mesmo que se joga por assim dizer a confirmaccedilatildeo O

ente visado se mostra ele mesmo assim como ele eacute em si mesmo () A

enunciaccedilatildeo eacute verdadeira significa que ela descobre o ente em si mesmo Ela

enuncia mostra lsquofaz verrdquo (αποφανσις) o ente em seu ser-descoberto O ser

verdadeiro (verdade) da enunciaccedilatildeo se deve entender como um ser-descobridorrdquo

(Heidegger 2012 pp603-605)

O termo grego ldquoapophantikoacutesrdquo pela junccedilatildeo entre ldquoapordquo [ldquopara forardquo ldquomostrarrdquo

ldquotornar conhecidordquo] e ldquophaineinrdquo [ldquoexibir mostrarrdquo (derivado de lsquophosrsquo ldquoluzrdquo - mesma

raiz da palavra phainoacutemenon)] manteacutem sua forccedila quando articulado com as palavras

120

ldquoAuslegungrdquo e ldquoAussagerdquo Pois tal como ldquoapordquo ldquoausrdquo eacute o prefixo de liacutengua alematilde usado

nessas palavras com o sentido da preposiccedilatildeo aus que significa ldquopara forardquo ldquoderdquo Assim

uma vez interpretado (Auslegung) o ente enunciado (Aussage) jaacute mostrou jaacute trouxe a si

mesmo a conhecimento e desvelou-se como ente e nisso consiste sua verdade originaacuteria

(Aleacutetheia)

O retorno de Heidegger agrave ldquoforccedila das palavras mais elementaresrdquo ou agraves palavras

gregas como loacutegos dikeacute physis teacutechne e aleacutetheia eacute a tentativa de ir aleacutem da

sedimentaccedilatildeo histoacuterica das palavras Dito de outra forma voltar agrave origem dos termos

atraveacutes dos quais o pensamento filosoacutefico teria alcanccedilado lsquoas coisas mesmasrsquo coisas essas

que agora no presente permanecem veladas por camadas interpretativas cotidianas e

teoacutericas Sendo a concepccedilatildeo de que a proposiccedilatildeo eacute o lugar privilegiado da verdade uma

das maiores expressotildees da tradiccedilatildeo metafiacutesica Portanto eacute tarefa a que Ser e Tempo se

propotildee eacute a da descriccedilatildeo desse lugar originaacuterio ndash de mostraccedilatildeo - dos fenocircmenos

Mas se eacute o ser-aiacute na abertura de sentido fundamental que mobiliza os entes em seu

ser qual o papel desse ente marcado pela existecircncia em meio agrave verdade agora

compreendida como Aleacutetheia A compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido

primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode custodiar o sentido

de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento

ldquoO ser-verdadeiro como ser-descobridor soacute eacute de sua parte ontologicamente

possiacutevel sobre o fundmento do ser-no-mundo Este fenocircmeno no qual

reconhecemos uma constituiccedilatildeo fundamental do Dasein eacute o fundamento do

fenocircmeno originaacuterio da verdade () Na medida em que o Dasein eacute

essencialmente sua abertura e aberto abre e descobre ele eacute essencialmente

verdadeiro O Dasein eacute lsquona verdadersquordquo (HEIDEGGER 2012 pp607-611)

O ser-aiacute em sua unidade fenomecircnica como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge)

revelou-se como o fundamento sem fundamento da abertura compreensiva portanto

aquele que como ser-no-mundo pode abrir o sentido de ser de todo ente e de suas

possibilidades Poreacutem como projeto-jogado eacute tambeacutem aquele que pode perder-se e natildeo

tornar transparente essa condiccedilatildeo ontoloacutegica fundamental o que frequentemente jaacute faz

pois sempre jaacute custodiou seu ser no mundo suas orientaccedilotildees cotidianas as sedimentaccedilotildees

121

significativas e as concepccedilotildees de verdade calcificadas Por isso o Dasein eacute o ente que

tambeacutem estaacute na natildeo-verdade (Umwahrheit)81

Recuperemos o sentido efetivo de desvelamento ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o

que aponta para o velamento (lethe) que ficou para traacutes que mostra para aquilo que a

sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila da aleacutetheia que se torna possiacutevel a

objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89)

Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao

encontro em seu significado) no desvelamento originaacuterio de seu ser mas a mostraccedilatildeo dos

fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira dissimulada sempre em uma objetificaccedilatildeo de

seu ser como ente determinado pois ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na

medida em que partimos de seu encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de

descoberta perde seu sentido mais efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Entatildeo ldquodizer que o

Dasein estaacute e natildeo estaacute na verdade eacute compreender que o encobrimento (Verschlossenheit)

eacute [] a contraparte da aberturardquo (NUNES 2012 p197)

Depois dessa exposiccedilatildeo eacute necessaacuterio apresentar como a linguagem estaacute assentada

na constituiccedilatildeo proacutepria ao ser-aiacute em relaccedilatildeo agrave verdade Tentaremos mostrar como o

discurso (Rede) eacute para Heidegger o fundamento ontoloacutegico da linguagem mas ao

mesmo tempo como o proacuteprio fenocircmeno da linguagem jaacute sempre se apresenta como

falatoacuterio (Gerede) Essa eacute a tarefa do proacuteximo e uacuteltimo capiacutetulo de nosso trabalho

81 Cf HEIDEGGER 2012 sect44 p615

122

Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)

Em vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdos Sob a pele das palavras haacute cifras e coacutedigos O sol consola os doentes e natildeo os renova

As coisas Que tristes satildeo as coisas consideradas sem ecircnfase (A flor e a naacuteusea Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

No capiacutetulo anterior descrevemos de que modo o fenocircmeno da linguagem eacute

apresentado pela primeira vez em Ser e Tempo como ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo e ainda

como a linguagem eacute derivada da mostraccedilatildeo preacutevia dos entes em seu ser a partir da relaccedilatildeo

primaacuteria ser-aiacute como ser-no-mundo O Dasein como ente privilegiado estaacute remetido ao

mundo e sempre jaacute possui uma compreensatildeo preacutevia do ser A compreensatildeo ou

entendimento (Verstehen) de ser eacute o fundamento originaacuterio da verdade agora

compreendida como desvelamento aleacutetheia Poreacutem desvelar eacute apontar para o que

permanece velado ou seja a contraparte da abertura eacute o velamento

Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a

ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo

material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos

que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas

que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela

dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se

estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o

123

que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes82rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que

somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em

fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo

Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por

Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um

fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo

incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como

descoberto e os entes sempre disponiacuteveis A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo

cotidiano Heidegger chama de ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou

ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que

esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas

tomadas como oacutebvias e sempre disponiacuteveis pelos nossos recursos linguiacutesticos

I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem

A anaacutelise do discurso (Rede) por Heidegger eacute apresentada no sect34 de Ser e Tempo e

eacute assim descrita

ldquoCom a enunciaccedilatildeo ficou visiacutevel um derivado extremo da interpretaccedilatildeo A

elucidaccedilatildeo da terceira significaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo (ou

manifestaccedilatildeo verbal) conduziu ao conceito de dizer e falar que intencionalmente

sem duacutevida natildeo fora considerado ateacute aquele momento O fato de que a linguagem

seja tematizada somente agora deve servir de indicaccedilatildeo de que esse fenocircmeno

tem suas raiacutezes na constituiccedilatildeo existenciaacuteria da abertura do Dasein O fundamento

ontoloacutegico-existenciaacuterio da linguagem eacute o discurso () O discurso eacute

existenciariamente de igual originariedade que o entenderrdquo (HEIDEGGER

2012 p453)

Esse trecho nos coloca diante de uma constataccedilatildeo reveladora Afinal o que

fundamenta a linguagem estaacute remetido a abertura primaacuteria de sentido Mas isso jaacute natildeo

estaacute claro a partir da descriccedilatildeo da enunciaccedilatildeo De certa forma sim contudo de maneira

indireta pois a enunciaccedilatildeo (Aussage) comunicativa estaacute remetida aos significados ou

seja ao entendimento jaacute articulado e interpretado Agora poreacutem o que Heidegger nos

82 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo

Wolf Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249

124

apresenta eacute o discurso como fundamento da interpretaccedilatildeo e da enunciaccedilatildeo De outra

forma o fundamento da linguagem na proacutepria abertura de sentido (Sinn) de maneira que

o discurso eacute o proacuteprio entendimento articulado que pode interpretar

ldquoO discurso eacute a articulaccedilatildeo da entendibilidade Por isso o discurso fundamenta a

interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo Ao que pode ser articulado na interpretaccedilatildeo e

mesmo mais originariamente jaacute no discurso demos o nome de sentido O

articulado na articulaccedilatildeo discursiva como tal denominamos de o-todo-da-

significaccedilatildeo e este pode ser decomposto em significaccedilotildees As significaccedilotildees como

o articulado do articulaacutevel satildeo sempre providas de sentido () A entendibilidade

do encontrar-se do ser-no-mundo exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER

2012 p455)

O tratamento sobre o discurso (Rede) em Ser e Tempo eacute pouco extensivo mas

cabe a noacutes tentar compreendecirc-lo em todo sua radicalidade O iniacutecio da filosofia grega

denominado como ldquofilosofia da naturezardquo eacute marcado pela tentativa de encontrar a ordem

imanente agrave totalidade substancial do mundo material Essa totalidade estaacute expressa na

palavra physis que nada tem a ver com a natureza empiacuterica e manipulaacutevel que

conhecemos hoje pelas ciecircncias naturais83 Essa totalidade soacute pode ser vista como tal em

sua constituiccedilatildeo una se suas partes estiverem organicamente reunidas sem as quais natildeo

haacute totalidade mas eacute a partir da totalidade que as partes ganham sentido Mesmo que

Heidegger natildeo trate o discurso nesses termos e ainda mesmo que o termo physis apoacutes a

viragem ganhe uma conotaccedilatildeo toda especiacutefica nos valemos dessa explicaccedilatildeo para tentar

compreender a especificidade do discurso Desse modo podemos observar o que estaacute em

jogo no trecho acima O discurso eacute a articulaccedilatildeo da abertura de sentido sem ele o todo

natildeo poderia ser decomposto e a totalidade seria apenas um todo indistinto Nesse sentido

que o discurso fundamenta a interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo E isso nos revela um pouco

mais

ldquoA tatildeo comum definiccedilatildeo do iniacutecio da filosofia como a substituiccedilatildeo da explicaccedilatildeo

miacutetica ou (como eacute o recorte nos manuais de histoacuteria da filosofia) a passagem do

mito ao logos eacute por demais simplista para descrever o que representou a histoacuteria

e filosoficamente essa origem Compreender a filosofia antiga a partir da relaccedilatildeo

entre logos e physis eacute de fato compreender que o iniacutecio da especulaccedilatildeo filosoacutefica

sobre o mundo eacute em grande parte acompanhado pela tradiccedilatildeo miacutetica grega de

unidade entre espiacuterito e natureza e ao mesmo tempo pelo iniacutecio de um certo

83 Cf GONCcedilALVES M 2006 pp7-11

125

estranhamento entre o ser humano pensante e o ser natural ou () a natureza em

sua totalidaderdquo (GONCcedilALVES 2006 p12)

Como vimos o loacutegos para Heidegger natildeo eacute algo que estaacute no Dasein e por isso ele

pode pensar a totalidade Loacutegos segundo Heidegger em seu sentido originaacuterio grego natildeo

eacute ratio Ao contraacuterio o loacutegos estaacute na totalidade ele eacute a articulaccedilatildeo da totalidade que se

mostra ao mostrar os entes ou os fenocircmenos (loacutegos eacute loacutegos apofacircntico) E por isso o ser-

aiacute o acessa inicialmente de modo praacutetico pois natildeo se separa dessa totalidade (por isso a

originariedade da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da

conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) significativamente articulada) Na realidade o ser-aiacute soacute se

afasta dessa totalidade quando natildeo acessa mais o loacutegos de maneira originaacuteria relativo agrave

derivaccedilatildeo como ente simplesmente dado (Vorhanden) fazendo emergir algo como

significado (Bedeutung) que ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da

enunciaccedilatildeo (Aussage)

Mas qual a relaccedilatildeo entre loacutegos e discurso (Rede) Precisamos ir ao sect7 de Ser e

Tempo ldquoQuando dizemos que o significado-fundamental de λόγος eacute discurso essa

traduccedilatildeo literal soacute eacute plenamente validada a partir da determinaccedilatildeo do que o discurso ele

mesmo significardquo (HEIDEGGER 2012 p113) Loacutegos e discurso satildeo portanto o mesmo

Mas isso soacute torna a questatildeo ainda mais difiacutecil Afinal o loacutegos como loacutegos apofacircntico natildeo

eacute o mostrar do ente em seu ser Como mostrar e dizer podem ser o mesmo

ldquoλόγος como discurso significa () algo assim como δηλοῦν tornar manifesto

aquilo de que lsquose discorrersquo no discurso Aristoacuteteles explicitou mais nitidamente

essa funccedilatildeo do discurso como αποφανέσται O λόγος faz ver algo (φαίνεισθαι) a

saber aquilo sobre o que se discorre e faz ver a quem discorre (voz media) e aos

que discorrem uns com os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p113)

Discurso eacute a mostraccedilatildeo (ἀπόφανσις) que torna-se clara (δηλοῦν) Lembremos que

a plurivocidade do ente na tradiccedilatildeo loacutegica estaacute assentada nas possibilidades semacircnticas

submetidas a um princiacutepio loacutegico fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado

ao princiacutepio de identidade Pensamos que o que Heidegger potildee em tela eacute que a

ldquoidentidaderdquo e a ldquonatildeo-contradiccedilatildeordquo natildeo satildeo princiacutepios loacutegicos mas o mostrar e o torna-

se claro dos fenocircmenos em seu ser na totalidade articulada Ou seja o sentido de ser dos

126

fenocircmenos o mostrar o existente como existente eacute o loacutegos que manifesta e diz a si

mesmo pois reporta-se a palavra legein tornar manifesto aquilo de que se fala num

discurso deixar que algo seja visto manifesto porque posicionado em relaccedilatildeo uns com

os outros Tentemos esboccedilar um exemplo mas natildeo esqueccedilamos a fragilidade das palavras

sedimentas e o obscurecimento que elas oferecem a problemaacutetica ontoloacutegica Quando no

nosso cotidiano uma mesa ldquode trabalhordquo sem os livros sem a cadeira sem as canetas e

sobretudo sem a intenccedilatildeo de ser usada para o trabalho natildeo possui qualquer sentido Ela

eacute apenas um pedaccedilo de madeira ou mesmo passa obtusa aos nossos olhos Do mesmo

modo os livros as canetas e a cadeira A articulaccedilatildeo preacutevia desses objetos ou em seu

sentido ontoloacutegico a articulaccedilatildeo desses fenocircmenos eacute o que faz com que cada um deles

possa ser visto como um ldquoistordquo Notemos como o exemplo nos reporta exatamente a noccedilatildeo

de Umwelt descrita por Heidegger O que o discurso indica eacute a articulaccedilatildeo preacutevia para

que as coisas apareccedilam como tais jaacute no mundo circundante Articulaccedilatildeo anterior a

qualquer interpretaccedilatildeo de um ldquoistordquo ou de algo como algo e consequentemente anterior

ao enunciado (Aussage) Assim o caraacuteter ontoloacutegico dessa articulaccedilatildeo sempre dada a

noacutes em um mundo jaacute descerrado em que pode-se travar atividades praacuteticas com os entes

e em uacuteltima instacircncia falar de ldquomesardquo ldquocadeirardquo ldquocanetardquo etc eacute dado pelo discurso (die

Rede) compreendido como sendo o significado fundamental de λόγος

Nesse sentido podemos ver tambeacutem o caraacuteter intencional do discurso Como

indicamos no capiacutetulo anterior loacutegos como loacutegos apofacircntico possui uma ligaccedilatildeo com os

entes na medida que diz o que de algum modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que ldquoalgo eacute xrdquo ou

que ldquoalgo natildeo eacute xrdquo eacute possiacutevel primariamente pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da

mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com No interior da estrutura do proacuteprio λόγος

ao mostrar que algo eacute diz tambeacutem como ele eacute ou como ele natildeo eacute

ldquoPara tanto tomar-se-aacute uma sentenccedila elementar como exemplo de realizaccedilatildeo do

discurso (λόγος) ldquoa caneta eacute azulrdquo Acabou-se de dizer que um dos elementos

constitutivos do falar (λέγειν) eacute o sobre-o-quecirc Este sobre-o-quecirc em direccedilatildeo ao

qual se realiza o movimento intencional de desvelamento se encontra

simplesmente dado como um todo discreto e a interpelaccedilatildeo discursiva destaca

dele certos elementos O que ocorre ao se proferir o enunciado do tipo ldquoa caneta

eacute azulrdquo eacute uma cisatildeo de um todo subsistente o discurso opera no uno indistinto a

fixaccedilatildeo de limite de certas determinaccedilotildees particulares de modo a destacar

componentes pertencentes a esse elemento temaacutetico da fala () Assim natildeo se

tem uma mostraccedilatildeo da totalidade do sobre-o-quecirc mas apenas de determinados

aspectos seus Juntamente com este movimento de distinccedilatildeo do discurso

denominado de cisatildeo (διαίρεσις) ocorre outro a siacutentese (σύνθεσις) Dissociando-

127

se do todo indistinto certos elementos a ele pertencentes estes natildeo satildeo

simplesmente colocados uns ao lado dos outros Ao fixar os limites das

determinaccedilotildees pertencentes ao uno discreto o discurso reuacutene os elementos que

foram por ele destacados posicionando-os uns com os outros Assim a

interpelaccedilatildeo discursiva que demarca um elemento temaacutetico como sendo caneta e

azul atribui a cor azul ao ente utilizaacutevel caneta sendo esses elementos

visualizados conjuntamente como um no enunciado ldquoa caneta eacute azulrdquo Atraveacutes da

siacutentese o que se dava como um todo indistinto eacute visualizado em sua unidade

destacada por determinados aspectos seus Com base nesses dois momentos a

siacutentese (σύνθεσις) e a cisatildeo (διαίρεσις) vecirc-se que o desencobrimento realizado

pelo discurso eacute uma articulaccedilatildeo delimitadora do quecirc para o qual ele se dirigerdquo

(SALGADO 2015 p145)

Contudo o discurso natildeo eacute apenas o ldquosobre-quecircrdquo a ele tambeacutem pertencem ldquoo dito

discursivamente como tal a comunicaccedilatildeo e o anuacutenciordquo (HEIDEGGER 2012 p459) Isto

porque ldquoo discurso eacute a articulaccedilatildeo significacional da entendibilidade [ou da compreensatildeo

(Verstehen)] do encontrar-se (befindlichen) no ser-no-mundordquo (HEIDEGGER 2012

p459) Ou seja natildeo eacute apenas aos entes e a um estado de coisas natildeo conforme ao ser-aiacute

que o discurso se reporta Mas a proacutepria abertura que possui sentido sendo o sentido

ldquoaquilo que a entendibilidade de algo se manteacutem Denominamos sentido o que eacute

articulaacutevel no abrir que entenderdquo (HEIDEGGER 2012 p429) O discurso como o

significado originaacuterio de loacutegos eacute o proacuteprio ser-no-mundo Pois na medida em que a

proacutepria abertura compreensiva se manteacutem por estar articulada pode sustentar em seu

acircmbito o que quer que seja entes sensaccedilotildees projetos etc E para fora dela bem natildeo haacute

nem mesmo fora Nesse sentido que ldquoa entendibilidade do encontrar-se do ser-no-mundo

exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER 2012 p455) e ldquoo todo-de-significaccedilatildeo da

entendibilidade acede agrave palavra Das significaccedilotildees nascem as palavras e natildeo satildeo as

palavras que entendidas como coisas se proveem de significaccedilotildeesrdquo (HEIDEGGER

2012 p455) A situaccedilatildeo insustentaacutevel de considerar as palavras como as portadoras

originaacuterias de significados pode ser exemplificada por um trecho da obra Cem anos de

solidatildeo de Gabriel Garciacutea Maacuterquez no momento em que Joseacute Arcadio Buendiacutea previu

que as inscriccedilotildees graacuteficas poderiam natildeo mais reportar agrave utilidade das coisas

ldquoFue Aureliano quien concibioacute la foacutermula que habiacutea de defenderlos durante varias

meses de las evasiones de la memoria La descubrioacute por casualidad Insomne

experto por haber sido uno de las primeros habiacutea aprendido a la perfeccioacuten el

arte de la plateriacutea Un diacutea estaba buscando el pequentildeo yunque que utilizaba para

laminar los metales y no recordoacute su nombre Su padre se lo dijo laquotasraquo Aureliano

128

escribioacute el nombre en un papel que pegoacute con goma en la base del yunquecito tas

Asiacute estuvo seguro de no olvidarlo en el futuro No se le ocurrioacute que fuera aquella

la primera manifestacioacuten del olvido porque el objeto teniacutea un nombre difiacutecil de

recordar Pero pocos diacuteas despueacutes descubrioacute que teniacutea dificultades para recordar

casi todas las cosas del laboratorio Entonces las marcoacute con el nombre respectivo

de modo que le bastaba con leer la inscripcioacuten para identificarlas Cuando su

padre le comunicoacute su alarma por haber olvidado hasta los hechos maacutes

impresionantes de su nintildeez Aureliano le explicoacute su meacutetodo y Joseacute Arcadio

Buendiacutea lo puso en praacutectica en toda la casa y maacutes tarde la impuso a todo el pueblo

Con un hisopo entintado marcoacute cada cosa con su nombre mesa silla reloj

puerta pared cama cacerola Fue al corral y marcoacute los animales y las plantas

vaca chivo puerca gallina yuca malanga guineo Paca a poca estudiando las

infinitas posibilidades del olvido se dio cuenta de que podiacutea llegar un diacutea en que

se reconocieran las cosas por sus inscripciones pero no se recordara su utilidad

Entonces fue maacutes expliacutecito El letrero que colgoacute en la cerviz de la vaca era una

muestra ejemplar de la forma en que los habitantes de Macondo estaban

dispuestas a luchar contra el olvido Eacutesta es la vaca hay que ordentildearla todas las

mantildeanas para que produzca leche y a la leche hay que herviriacutea para mezclarla

con el cafeacute y hacer cafeacute con lecherdquo (MAacuteRQUEZ 1999 p102)

A doenccedila da insocircnia em Macondo na obra de Maacuterquez e o esquecimento como

sua consequecircncia eacute ndash se nos permitem uma comparaccedilatildeo livre ndash como na cotidianidade

consideramos os entes disponiacuteveis e sempre presentes Partimos sempre desse

encobrimento oferecido pela liacutengua que a cada vez quer fixar os entes e assim as palavras

satildeo instrumentalizadas pois definem afinal nessa insocircnia o que cada coisa eacute O

esquecimento eacute portanto o desligamento da mostraccedilatildeo originaacuteria dos entes em seu ser

E em uacuteltima medida o esquecimento da verdade como desvelamento (Aleacutetheia) Dito de

outro modo aquilo que Heidegger jaacute havia indicado em 1923-1924 ldquoO que importa eacute

somente que essas coisas existem aiacute () Mas que falte um nome para essas coisas mostra

contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia84(HEIDEGGER

2006p31)

Mas o que consiste esse dizer falar do discurso Se ele eacute o fundamento ontoloacutegico

da linguagem certamente natildeo eacute o mesmo que profericcedilotildees verbais e nominais e sobretudo

natildeo diz respeito a natureza fiacutesica da produccedilatildeo e da percepccedilatildeo dos sons da fala humana

como compreende o estudo da foneacutetica Heidegger nos apresenta entatildeo como o dizer do

discurso pode ser visualizado de forma clara pelo ouvir

84 Cf Nota 45

129

ldquoA conexatildeo do discurso com o entender e com a entendibilidade se torna clara a

partir de uma possibilidade existenciaacuteria do discurso ele mesmo a saber a partir

do ouvir Natildeo eacute por acaso que ao natildeo ouvir lsquodireitorsquo dizemos natildeo lsquoter entendidorsquo

Para o discurso o ouvir eacute constitutivo E assim como a prolaccedilatildeo verbal se funda

no discurso a percepccedilatildeo acuacutestica tambeacutem se funda no ouvir () O Dasein ouve

porque entende Como entendedor ser-no-mundo com os outros ele eacute no seu

ouvir lsquoobedientersquo ao Dasein-com e a si mesmo e nessa audiecircncia obediente ele

se torna dependenterdquo (HEIDEGGER 2012 p461)

Essa dependecircncia diz respeito agrave articulaccedilatildeo jaacute aberta de um mundo descerrado O

discurso articula um mundo esse que sempre nos movimentamos e nos orientamos Sem

essa obediecircncia natildeo haveria qualquer possibilidade de accedilotildees e projetos do ser-aiacute E o

ouvir como possibilidade existenciaacuteria do discurso eacute a manifestaccedilatildeo de seu traccedilo

intencional que ilumina sua presenccedila na abertura de sentido Pois o ouvir eacute o fundamento

ontoloacutegico do escutar ldquofenomenicamente mais originaacuterio do que se determina lsquode

imediatorsquo em psicologia como ouvir ter sensaccedilotildees de sons e perceber ruiacutedosrdquo

(HEIDEGGER 2012 p461) De modo mais claro o fenocircmeno desde Husserl indica

aquilo que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute sempre uma doaccedilatildeo com

significado Assim a intencionalidade fenomenoloacutegica para Heidegger agora voltada ao

mundo e a facticidade como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em seu ser acontece

na e pela articulaccedilatildeo discursiva que ouve porque jaacute articulou a totalidade e por isso

entende tendo em vista que essa totalidade natildeo se apresenta como um todo indistinto Ou

seja o ser-aiacute em sua constituiccedilatildeo primaacuteria voltado agrave abertura compreensiva articulada

pelo discurso pode escutar a doaccedilatildeo fenomecircnica

ldquolsquoDe imediatorsquo nunca ouvimos barulhos e o conjunto de ruiacutedos mas o carro que

range a motocicleta O que se ouve eacute a coluna em marcha o vento norte o pica-

pau bicando o fogo crepitando Eacute preciso uma atitude muito artificial e

complicada para lsquoouviursquo um lsquobarulho purorsquo Que em primeiro lugar ouccedilamos

motocicletas e carros eacute a prova fenomecircnica de que o Dasein como ser-no-mundo

manteacutem-se cada vez junto ao utilizaacutevel do interior-do-mundo e de modo algum

imediatamente junto a lsquosensaccedilotildeesrsquo cuja concatenaccedilatildeo tivesse primeiramente de

ser formada para que se proporcionasse o trampolim a partir do qual o sujeito

saltaria para alcanccedilar finalmente um lsquomundorsquo O Dasein como essencialmente

entendedor eacute de pronto junto ao entendidordquo (HEIDEGGER 2012 p461)

A doaccedilatildeo fenomecircnica possibilitada pelo traccedilo intencional do discurso se estende

agrave escuta e ao calar de um outro ser-aiacute pois como ser-no-mundo que eacute sempre ser-com-

os-outros o Dasein jaacute estaacute ldquode antematildeo com o outro junto ao ente sobre o qual discorrerdquo

130

(HEIDEGGER 2012 p463) Por isso quando outra pessoa nos fala algo natildeo ouvimos

primeiramente os sons para depois agregaacute-los e formarmos palavras compreensiacuteveis Ou

ainda quando o outro silencia ainda expressa algo e tambeacutem pode lsquodar a entenderrsquo

ldquoOuvindo compreendemos o que o interlocutor diz E o dizer nos coloca de

imediato com o interlocutor junto ao ente a respeito do qual o discurso se

pronuncia O genuiacuteno silecircncio tambeacutem modo de ouvir e de dizer calando Essa

preeminecircncia do dizer se reflete nos componentes dos do discurso que se

estruturam a partir daquilo que acede agrave palavra do ente que ela torna manifesto

Dizer algo de certa maneira para algueacutem numa tonalidade ou disposiccedilatildeo de

acircnimo nisso consiste o fenocircmeno do discurso em sua completa estrutura

comunicativa-expressivardquo (NUNES 2012 p 170)

Poderiacuteamos dizer que a articulaccedilatildeo da compreensatildeo (Verstehen) pelo discurso

(Rede) na reuniatildeo dos elementos que foram por ele destacados posicionando-os

discursivamente opera como a harmonia de uma muacutesica que daacute aos fenocircmenos seu lugar

na melodia em funccedilatildeo do ritmo Sendo o ritmo o ldquomundordquo como abertura histoacuterica que

sustenta o sentido de ser de cada parte da melodia que continuaraacute agrave tona ou que teraacute

sentido

Portanto para o ser-aiacute estar lanccedilado em um mundo como projeto-jogado eacute estar

familiarizado atraveacutes da abertura que entende dispositivamente o horizonte de sentido E

esse horizonte eacute compartilhado por todos que convivem em um mesmo mundo faacutetico e eacute

neste sentido que a comunicaccedilatildeo o terceiro significado de enunciaccedilatildeo como vimos no

capiacutetulo anterior ldquoefetua lsquoa partilharsquo do co-encontrar-se e do entendimento do ser-comrdquo

(HEIDEGGER 2012 p457) O que eacute compartilhado natildeo eacute meramente um conteuacutedo

significativo de um lsquopacto-linguiacutesticorsquo assim como comunicar natildeo eacute trazer um desejo

uma expressatildeo uma afirmaccedilatildeo de lsquoforarsquo de um sujeito para o lsquointeriorrsquo de outro mas ldquosua

tendecircncia-de-ser consiste em pretender que o ouvinte participe do ser aberto por aquilo-

sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012 p 473) ou seja a partilha da

experiecircncia da abertura compreensiva jaacute articulada como horizonte de possibilidades que

vem agrave linguagem De outro modo

ldquoDado que o fundamento ontoloacutegico natildeo possui existecircncia agrave parte daquilo que

funda o discurso que eacute a condiccedilatildeo transcendental da linguagem relevando-se da

abertura do Dasein de seu ser-no-mundo tambeacutem eacute lsquolinguagem extensivarsquo (SZ

p61) Inversamente a linguagem como totalidade de palavras (Wortganzheit) de

uma liacutengua eacute o discurso pronunciado De onde se conclui que a primeira eacute a forma

131

estabilizada do segundo na perspectiva do ser-no-mundo da existecircncia cotidiana

que lhe impotildee a condiccedilatildeo de ente intramundano como utensiacutelio As palavras que

podem espedaccedilar-se e coisificar-se seriam o veiacuteculo dessa condiccedilatildeo instrumental

() E que eacute aceder agrave palavra senatildeo falar e que eacute falar senatildeo usar a linguagem

Satildeo pois equivalentes as duas afirmaccedilotildees de Heidegger- que ser no-mundo eacute

falante e que ele tem linguagem (Sprache)() Ambas concernem a um soacute

fenocircmeno captado no conceito aristoteacutelico de homem como ser capaz de falar ndash

zoacuteon loacutegon eacutechon- complemento agrave tese do zoacuteon politikoacuten (animal poliacutetico) - que

revela a interlocuccedilatildeo o lsquofalar uns com os outrosrsquo em que o cotidiano grego estava

politicamente enraizadordquo (NUNES 2012 p170)

Eacute um tanto embaraccediloso os caminhos conceituais que levam o discurso (die Rede)

agrave linguagem (die Sprache) e ainda como essa se apresenta sempre como falatoacuterio (das

Gerede) pela essecircncia mesma da comunicaccedilatildeo (Mitteilung) Pois a linguagem cotidiana

- o dizer uns com os outros em um mundo faacutetico - eacute um discurso que jaacute se expressou ou

seja o acontecimento da linguagem jaacute eacute articulado por um discurso preacutevio e o discurso

jaacute expresso eacute comunicaccedilatildeo Mesmo que a analiacutetica indique uma estratificaccedilatildeo e ainda a

fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da linguagem pelo discurso haacute um caraacuteter ciacuteclico

consequecircncia mesma do ciacuterculo hermenecircutico Se as palavras natildeo tecircm significados fixos

mas histoacutericos provenientes de uma abertura de sentido articulada que sustenta esses

significados Ainda assim os significados acumulam-se nas palavras e essas satildeo afinal a

maneira pela qual o mundo eacute dito nas relaccedilotildees interpessoais e nas relaccedilotildees das pessoas

com as coisas Desse modo se os significados acumulam-se nas palavras o discurso (die

Rede) sempre se manifesta na linguagem cotidiana E eacute na cotidianidade que a absorccedilatildeo

da linguagem eacute imediatamente tomada pela impessoalidade atraveacutes do uso instrumental

das palavras na tendecircncia de oferecer um mundo sempre estaacutevel Eacute essa uacuteltima descriccedilatildeo

que Heidegger chama de falatoacuterio (Gerede) Pois

ldquoO substantivo alematildeo Rede deriva-se diretamente do verbo reden que significa

falar O particiacutepio dos verbos em alematildeo eacute feito na maior parte das vezes por meio

da inserccedilatildeo da partiacutecula lsquogersquo() O que temos na cotidianidade mediana do ser-

aiacute eacute falatoacuterio natildeo porque podemos constatar empiricamente um esvaziamento da

linguagem impessoal e porque sempre eacute possiacutevel acompanhar a falta de

profundidade desses discursos Ao contraacuterio eacute falatoacuterio porque natildeo se realiza

senatildeo a partir de um ato jaacute concluiacutedordquo (CASANOVA 2006 p63)

Mas antes de passarmos agrave descriccedilatildeo do falatoacuterio eacute preciso indicar como esses

ldquoembaraccedilos conceituaisrdquo em torno do discurso indicam a ldquotransiccedilatildeo do pensamento

132

heideggeriano ndash em sua segunda fase nucleado em torno da linguagem- ldquo(NUNES 2012

p169) pois ldquoestampam-se na proacutepria equivocidade do termo designativo die Rede que

significa aleacutem de discurso conversaccedilatildeo e pronunciamentordquo (NUNES 2012 p169)

Essa equivocidade torna-se clara no fato que o discurso (die Rede) natildeo se funda em

qualquer ekstase determinada ou seja natildeo eacute possiacutevel encontrar na temporalidade do ser-

aiacute um momento constitutivo no qual ele emerge Dando assim em Ser e Tempo um

caraacuteter transcendental ao discurso

ldquoconotando o loacutegos grego retraduzido o discurso que nos daria a plena abertura

do Dasein em seu aiacute eacute incluindo portanto a disposiccedilatildeo de acircnimo eacute como modo

eminente de temporalizaccedilatildeo a que natildeo cabe o predomiacutenio de um ecircxtase

determinado o existentivo da linguagem o seu fundamento ontoloacutegicordquo

(NUNES 2012 p169)

Apresentamos no capiacutetulo anterior que no sect65 de Ser e Tempo o autor apresenta

o sentido ontoloacutegico da preocupaccedilatildeo (Sorge) na temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-

se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O

ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Futuro

(poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente (presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees

temporais como as que tomamos diariamente mas o caraacuteter essencial da

existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre adiantado (futuro) em

relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza as possibilidades na

facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva oferecida pela tradiccedilatildeo

histoacuterica ) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no presente esse

passado em seus comportamentos e projetos

No Quarto Capiacutetulo da Segunda Seccedilatildeo denominado Temporalidade e

cotidianidade Heidegger retoma a multiplicidade dos fenocircmenos da anaacutelise preparatoacuteria

da primeira seccedilatildeo para compreendecirc-los em sua unidade em funccedilatildeo da totalidade estrutural

fundante da Sorge E se a analiacutetica existenciaacuteria do ser-aiacute inicia sua investigaccedilatildeo a partir

da cotidianidade mediana tendo em vista que a impropriedade oferecida por suas

orientaccedilotildees eacute em suma a orientaccedilatildeo inicial do ser-aiacute para seus possiacuteveis modos de ser Eacute

necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos na cotidianidade a partir da

temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico

133

Nesse sentido no sect 68 item d de Ser e Tempo intitulado ldquoA temporalidade do

discursordquo Heidegger diz A plena abertura do aiacute constituiacuteda pelo entender o encontrar-

se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) recebe a articulaccedilatildeo pelo discurso

(Rede) Por isso o discurso natildeo se temporaliza primariamente numa ekstase determinada

(HEIDEGGER 2012 p949) e ainda o discurso eacute temporal em si mesmordquo

(HEIDEGGER2012 p949) Na continuidade do paraacutegrafo o autor prossegue dizendo

que natildeo obstante o discurso seja expresso na facticidade na linguagem e deste modo o

presente (Gegenwaumlrtige) desempenha uma funccedilatildeo constitutiva ainda assim

Mas porque o discurso cada vez discorre sobre o ente se bem que natildeo primaacuteria

e principalmente no sentido da enunciaccedilatildeo teoacuterica a anaacutelise da constituiccedilatildeo

temporal do discurso e a explicaccedilatildeo dos caracteres temporais das formaccedilotildees da

liacutengua soacute podem ser levados a cabo quando se tenha resolvido o problema da

conexatildeo de princiacutepio de ser e verdade a partir da problemaacutetica da

temporalidade Poder-se-ia delimitar entatildeo o sentido ontoloacutegico do lsquoeacutersquo que uma

superficial teoria da proposiccedilatildeo e do juiacutezo deformou em lsquocoacutepularsquo Soacute a partir da

temporalidade do discurso isto eacute a partir da temporalidade do Dasein em geral

pode-se elucidar a lsquoorigemrsquo e pode-se entender ontologicamente a possibilidade

de uma formaccedilatildeo-do-conceito (HEIDEGGER2012 p949 grifo nosso)

O problema reside no fato de que o Dasein em Ser e Tempo eacute apresentado como

o fundamento sem fundamento de outra forma a compreensatildeo enquanto acontecimento

de sentido primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode

custodiar o sentido de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento

Entatildeo na medida em que a temporalidade (Zeitlichkeit) eacute o sentido ontoloacutegico desse ente

privilegiado qualquer fenocircmeno exposto na analiacutetica preparatoacuteria precisaria encontrar

seu fundamento ontoloacutegico em alguma ekstase determinada futuro o ser-do-sido ou

presencizar Por exemplo o presente desempenha a funccedilatildeo constitutiva da linguagem

(Sprache) na medida em que o ser-aiacute lanccedilado em um mundo encontra-se em meio aos

entes e jaacute junto aos outros atualizando os significados sedimentados pela linguagem (pela

liacutengua) oferecidos no presente Isso poreacutem natildeo ocorre com o discurso (die Rede) que eacute

ldquotemporal em si mesmordquo Desse modo seu sentido ontoloacutegico ou aquilo que sustenta sua

origem compreendida como seu sentido de ser a partir do desvelamento natildeo eacute elucidado

em Ser e Tempo Pensamos que a partir dessa constataccedilatildeo pelo comprometimento

fenomenoloacutegico de Heidegger a estratificaccedilatildeo da linguagem presente em Ser e Tempo

natildeo pode mais manter-se apoacutes a viragem Pois o fenocircmeno da linguagem precisa ser

134

reconsiderado a partir de si mesmo para que seja possiacutevel encontrar seu fundamento

ontoloacutegico85

Esse breve momento da obra de 1927 acerca da temporalidade do discurso em

Ser e Tempo eacute de extrema importacircncia para pensarmos como o fenocircmeno da linguagem

possui jaacute um importante e amplo papel no interior do tratado Pois ele estaacute intimamente

ligado agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento (Aleacutetheia) revelando natildeo soacute um impasse

acerca da estratificaccedilatildeo da linguagem na obra bem como traz agrave tona que o encobrimento

como contraparte da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser ganha uma imagem peculiar

exatamente na manifestaccedilatildeo da linguagem E desse modo apesar da apresentaccedilatildeo do

discurso e de sua especificidade em Ser e Tempo encontramos apenas a descriccedilatildeo da

linguagem (Sprache) que chamamos de ldquonegativardquo como sedimentaccedilatildeo interpretativa

pelo falatoacuterio (Gerede) Eacute o que vamos expor a seguir

II- O Falatoacuterio (das Gerede)

Ainda no sect34 Heidegger alerta que a anaacutelise do discurso (Rede) perdeu de vista a

cotidianidade do ser-aiacute solo fenomecircnico que a analiacutetica se guia naquele momento Pois

as estruturas existenciaacuterias da abertura do ser-no-mundo entender (Verstehen) encontrar

(Befindlichkeit) discurso (Rede) e interpretar (Auslegen) na medida em que se manteacutem

pela abertura primaacuteria do ser-aiacute remetido ao mundo inicialmente no modo de ser de ldquoa-

genterdquo (das Man) devem ser compreendidas em seu modo especiacutefico na cotidianidade

mediana Como o ser-aiacute eacute de iniacutecio lanccedilado nas possibilidades faacuteticas de um mundo

sedimentado a anaacutelise propriamente fenomenoloacutegica deve se orientar pelos fenocircmenos

expressos nesse horizonte

ldquoDe imediato eacute preciso que fique visiacutevel a partir de alguns fenocircmenos

determinados a abertura de a-gente isto eacute pela elucidaccedilatildeo do modo-de-ser-

cotidiano de discurso visatildeo e interpretaccedilatildeo No relativo a esses fenocircmenos natildeo

eacute supeacuterfluo observar que a interpretaccedilatildeo tem um propoacutesito puramente ontoloacutegico

estando muito longe de uma criacutetica moralizante do Dasein cotidiano e estaacute muito

longe de qualquer aspiraccedilatildeo de lsquofilosofia da culturarsquordquo (HEIDEGGER 2012

p471)

85 Nesse sentido Cf LAFONT 1997 pp46-52

135

A anaacutelise do que Heidegger denomina ldquoA-genterdquo (das Man) eacute apresentada no

quarto capiacutetulo da primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo e tem em vista elucidar o ldquoser-no-mundo

como ser-comrdquo e ldquocomo ser-si-mesmordquo Essa descriccedilatildeo estaacute diretamente relacionada ao

conceito de queda ou decair (Verfallen) pois eacute esse solo imediato que o ser-aiacute se

movimenta e terceiriza seu ser agraves orientaccedilotildees cotidianas cada vez em fuga de seu ser-

proacuteprio mas condiccedilatildeo inexoraacutevel para que possa conquistaacute-lo E ainda como expresso

no trecho acima esses conceitos nada tem a ver com uma criacutetica moral como que uma

criacutetica agrave sociedade de massa A anaacutelise eacute uma elucidaccedilatildeo fenomenoloacutegica e por isso

ontoloacutegica O que estaacute em jogo nessa descriccedilatildeo eacute o acesso aos fenocircmenos como eles se

mostram para entatildeo chegar ao fundamento ontoloacutegico que sustenta seu sentido de ser

Desse modo a facticidade ou o mundo cotidiano eacute o maneira pela qual os fenocircmenos e

as possibilidades do ser-aiacute vecircm ao encontro O que anaacutelise sobre ldquoA-genterdquo (das Man)

realizada no sect25 ao sect27 potildee em tela eacute 1) o esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein 2) o

Dasein-com dos outros e o cotidiano ser-com 3) o cotidiano ser-si-mesmo e a-gente

Se no sect9 Heidegger expotildee o sentido formal do ser-aiacute como esse ente que a cada

vez noacutes mesmos somos e ainda como a essecircncia desse ente reside em sua existecircncia o

esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein deve agora voltar-se ao campo situacional histoacuterico

que extraiu esse conceito

ldquoNo presente contexto de uma analiacutetica existenciaacuteria do Dasein factual surge a

pergunta sobre se o referido modo de o eu se dar abre o Dasein em sua

cotidianidade supondo-se que em geral o abra () Pode-se sempre muito bem

dizer sobre esse ente em termos onticamente justificaacuteveis que lsquoeursquo o sou

Contudo a analiacutetica ontoloacutegica ao empregar essas proposiccedilotildees deve fazecirc-lo com

reservas de princiacutepio O lsquoeursquo somente deve ser entendido no sentido de um como

indicador formal e indiferente de algo que em sua concreta conexatildeo-de-ser

fenomecircnica talvez se desvende como o lsquoopostorsquo do que parecia lsquoNatildeo eursquo de

modo algum significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo [privado de

lsquoegoidadersquo] mas significa um determinado modo-de-ser do lsquoeursquo ele mesmo por

exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p337)

A interpretaccedilatildeo moderna da essecircncia do ser humano baseada na egoidade em um

ldquoeurdquo que se reconhece como tal e em uacuteltima medida fundamenta toda e qualquer

descriccedilatildeo dos entes obscurece o solo em que esse conceito aparece Referir-se ao ldquoeurdquo eacute

possiacutevel no trato diaacuterio e comum da existecircncia cotidiana (onticamente) na medida em que

136

o ldquoaiacuterdquo existe cooriginariamente Natildeo haacute sujeito sem mundo por esse motivo a

ldquolsquosubstacircnciarsquo do homem natildeo eacute o espiacuterito como a siacutentese de alma e corpo mas a

existecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p341) E desse modo se a existecircncia acontece em um

mundo ela natildeo se reconhece primariamente para depois reconhecer ldquomundordquo e os

ldquooutrosrdquo mas existindo o ser humano eacute as possibilidades disponiacuteveis em seu ldquoaiacuterdquo

compartilhando com os outros pois ldquonatildeo haacute afinal de pronto um eu isolado que se decirc sem

os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p337)

A abertura primaacuteria de sentido ou a abertura compreensiva-interpretativa sempre

disposta do ser-aiacute o remete ao mundo junto aos entes e aos outros que partilham a mesma

abertura compreensiva-interpretativa e assim noacutes temos mundo De outro modo

ningueacutem tem lsquoseu mundorsquo particular emergente da consciecircncia que se auto reconhece a

partir da qual lsquoenxergarsquo o mundo puacuteblico Tudo que algueacutem possa vir a pensar sentir

compor dizer etc eacute primariamente aquilo que o mundo puacuteblico compartilhado sustenta

como algo que tem sentido Natildeo sou porque penso antes penso porque sou Quando

tentamos pensar em qualquer significado que natildeo seja sustentado pelo sentido do mundo

puacuteblico natildeo encontramos o que possa ser dito ou pensado

Mas o que o autor quer dizer quando indica que o ldquonatildeo eursquo de modo algum

significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo mas significa um determinado modo-de-

ser do lsquoeursquo ele mesmo por exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012

p337) Imersos nas ocupaccedilotildees diaacuterias empreendidas com os outros o ser-aiacute ldquocomo

cotidiano ser-um-com-o-outro estaacute na sujeiccedilatildeo aos outros Ele natildeo eacute si-mesmo os outros

lhe retiram o ser () Nisso os outros natildeo satildeo determinadosrdquo (HEIDEGGER 2012

p363) Na liacutengua portuguesa essa indeterminaccedilatildeo eacute ilustrada pela partiacutecula ldquoserdquo como

iacutendice de indeterminaccedilatildeo do sujeito Por exemplo Necessita-se de empregados Nesse

lugar se eacute tratado muito bem etc O ldquosujeitordquo o ldquoeurdquo do ser-aiacute na cotidianidade natildeo eacute seu

ser-proacuteprio mas a perda de si pois compreende seu ser inicialmente pela imposiccedilatildeo

impessoal indeterminada de suas possibilidades e as realiza sob o domiacutenio dessa

orientaccedilatildeo estuda-se casa-se tem-se filhos etc Nas palavras do autor

ldquoO Dasein cotidiano tira a interpretaccedilatildeo preacute-ontoloacutegica de seu ser do imediato

modo-de-ser de a-gente A interpretaccedilatildeo ontoloacutegica segue de imediato essa

tendecircncia interpretativa e entende o Dasein a partir do mundo e o encontra como

ente do-interior-do-mundo E natildeo somente isso mas a ontologia lsquoimediatarsquo do

137

Dasein faz que se lhe decirc a partir do lsquomundorsquo o sentido de ser em relaccedilatildeo ao qual

esses entes lsquosujeitosrsquo satildeo entendidos Mas porque nessa absorccedilatildeo no mundo

passa-se por cima do fenocircmeno do mundo ele mesmo em seu lugar se introduz o

subsistente do-interior-do-mundo as coisas O ser do ente que eacute -lsquoaiacutersquo-com eacute

concebido como subsistecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p 373)

Como vimos esse modo de ser do ser-aiacute eacute consequecircncia do fato de natildeo termos

qualquer natureza Natildeo haacute como se retirar dessa condiccedilatildeo ontoloacutegica mesmo que

onticamente somos impelidos a cada vez determinarmos nosso ser de alguma forma

indicando noacutes mesmos e os outros como meros subsistentes por exemplo em expressotildees

como ldquoEu sou professorardquo ldquoEle eacute pairdquo ldquoNoacutes somos brasileirosrdquo etc E por isso ldquoo ser-

si-mesmo proacuteprio natildeo repousa sobre um estado-de-exceccedilatildeo de um sujeito desprendido de

a-gente mas eacute uma modificaccedilatildeo existencial de a-gente como um existenciaacuterio essencialrdquo

(HEIDEGGER 2012 p373) ou seja ser-si-mesmo-proacuteprio natildeo eacute se retirar dessa

indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica mas ter transparecircncia dessa condiccedilatildeo irremediaacutevel

A partir dessa explicaccedilatildeo retomemos a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein a partir do

sentido formal da preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-

em (-o-mundo) como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo

(HEIDEGGER 2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser

(existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que

foi lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio

aos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda) O que sustenta o

sentido de ser desse ente eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) pois a temporalidade descobre-

se como o sentido da preocupaccedilatildeo (Sorge) proacutepria ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-

se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute

possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Contudo a preocupaccedilatildeo

proacutepria natildeo eacute a noacutes de pronto transparente e natildeo eacute o modo que inicialmente e na maioria

das vezes estamos e nos orientamos no mundo Ser-no-mundo eacute a abertura compreensiva

disposta jaacute em meio ao mundo articulado e sedimentado portanto eacute constituiacuteda pelo

entender o encontrar-se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) (Cf

HEIDEGGER 2012 p949) Eacute necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos

nessa abertura primaacuteria ao mundo a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal

compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico O autor entatildeo nos apresenta que ldquoo

138

entender funda-se no futuro (adiantar-se ou aguardar) O encontrar-se temporaliza-se

primariamente no ser-do-sido (repeticcedilatildeo ou esquecimento) O decair tem raiz temporal

primariamente no presente (presencizar ou instante)rdquo (HEIDEGGER 2012 p951)

Aguardar (Gewaumlrtigen) esquecimento (Vergessenheit) e instante (Augenblck) satildeo

os modos impessoais de realizaccedilatildeo do ser do ser-aiacute na cotidianidade a partir de seu sentido

ontoloacutegico (Sorge) fundado na temporalidade (Zeitlichkeit) O futuro aparece como

espera na cotidianidade na medida em que estaacute submerso na familiaridade de um mundo

descerrado em que o ser-aiacute pode ocupar-se com os entes e travar relaccedilotildees com os outros

na normalidade da vida cotidiana Na familiaridade o ser-aiacute sabe o que esperar O passado

ou o ser-do-sido nada tem a ver com ldquofalta de lembranccedilardquo mas refere-se a imersatildeo na

dejecccedilatildeo ou no modo de ser-jogado do ser-aiacute Nesse sentido o ser-aiacute sempre ocupado abre-

se ao mundo mas fecha-se ao seu ser-proacuteprio esquecendo de si e de sua indeterminaccedilatildeo

em funccedilatildeo do que jaacute estaacute a cada de vez posto como possiacutevel no mundo O decair no modo

proacuteprio refere-se ao presente ou presencizar ou seja a transparecircncia ao ser-aiacute de sua

condiccedilatildeo de jogado em um presente aberto que a vida e a compreensatildeo de ser decorrem

Na cotidianidade poreacutem o decair como instante refere-se a incessante fala apariccedilatildeo e

apropriaccedilatildeo (natildeo como de si mesmo como ser-proacuteprio mas das possibilidades disponiacuteveis

publicamente) das coisas e de um estado de coisas Incessante porque atualiza as

possibilidades postas descerradas e sedimentadas no mundo movimentando a existecircncia

pela retroalimentaccedilatildeo daquilo que jaacute foi e eacute a cada vez compreendido sem pocircr em questatildeo

afinal aquilo que se compreende e o ente que pode compreender ou seja ente que noacutes

somos

Na anaacutelise preparatoacuteria ou na primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo o decair foi descrito

na ldquointerpretaccedilatildeo do falatoacuterio da curiosidade e da ambiguidaderdquo (HEIDDEGGER 2012

p941) Desse modo esclarecido como a queda ou o decair funda-se na temporalidade do

ser-aiacute portanto esclarecido seu fundamento ontoloacutegico a partir do ente que abre a

compreensatildeo de ser Podemos a partir de agora entender o fenocircmeno da linguagem na

cotidianidade do ser-aiacute e em seu modo de ser improacuteprio De outro modo compreender o

falatoacuterio como queda

A anaacutelise do falatoacuterio (das Gerede) eacute realizada no sect35 precedida exatamente pela

exposiccedilatildeo do discurso como fundamento ontoloacutegico da linguagem Essa linha de

139

apresentaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria antes revela que tambeacutem o fenocircmeno da linguagem parte

de seu encobrimento E revela que seu fundamento eacute a cada vez obliterado no uso comum

das liacutenguas e das palavras no cotidiano poreacutem

ldquoA expressatildeo lsquofalatoacuteriorsquo natildeo deve ser aqui empregada numa acepccedilatildeo pejorativa

Ela significa terminologicamente um fenocircmeno positivo que constitui o modo-

de-ser do entender e interpretar do Dasein cotidiano No mais das vezes o

discurso se expressa e jaacute se expressou em palavras O discurso eacute linguagemrdquo

(HEIDEGGER 2012 p471)

A anaacutelise da cotidianidade eacute um caraacuteter fenomecircnico positivo para a analiacutetica

existenciaacuteria pois eacute a partir dele a partir de um modo de ser improacuteprio que o ser-aiacute eacute

lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria das vezes Natildeo eacute apenas

lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade mas seu modo de ser

ontologicamente irremediaacutevel Nesse sentido apresentar a linguagem como manifestaccedilatildeo

uacuteltima da abertura histoacuterica remetida ao mundo que jaacute compreendeu jaacute articulou e jaacute

interpretou eacute apresentar um caminho agrave pergunta Como a linguagem que eacute essencialmente

generalizante pode afinal ser histoacuterica Questatildeo jaacute exposta nos primeiros escritos de

Heidegger que acaba por expor a origem dessa problemaacutetica em Ser e Tempo como por

exemplo essa passagem do texto de 1919

ldquoA objeccedilatildeo mais elementar mas carregada de suficiente perigosidade tinha a ver

com a linguagem Toda descriccedilatildeo eacute um lsquoconceber-em-palavrasrsquo - a lsquoexpressatildeo

verbalrsquo eacute generalizante Essa objeccedilatildeo eacute baseada na crenccedila de que toda linguagem

eacute jaacute em si mesma objetiva isto eacute viver em um significado implica eo ipso uma

concepccedilatildeo teoacuterica do que se entende que a realizaccedilatildeo do significado natildeo eacute mais

do que a exibiccedilatildeo do objeto () A universalidade do significado das palavras

assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia vividardquo86

(HEIDEGGER (GA5657) 2005 pp134-142)

Esse eacute tambeacutem o risco do uso das palavras e da linguagem na cotidianidade ou

do falatoacuterio A manifestaccedilatildeo da linguagem na expressatildeo eacute comunicaccedilatildeo e o enunciado

86 ldquoLa objecioacuten maacutes elemental pero cargada de suficiente peligrosidad teniacutea que ver con el lenguaje Toda

descripcioacuten es un laquoconcebir-en-palabrasraquo -la laquoexpresioacuten verbalraquo es generalizante Esta objecioacuten descansa

en la creencia de que todo lenguaje es ya en siacute mismo objetivante es decir que vivir en un significado

implica eo ipso una concepcioacuten teoreacutetica de lo que es significado que la plenificacioacuten del significado es

sin maacutes soacutelo una exhibicioacuten del objeto() La universalidad del significado de las palabras sentildeala

primariamente algo originario el caraacutecter mundano de la vivencia vivida rdquo Opcit pp134-142

140

como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se pode partilhar com outrem lsquover juntorsquo o mostrado no

modo do determinar Nesse sentido ldquoo discurso (Rede) que-se-expressa eacute comunicaccedilatildeordquo

(HEIDEGGER 2012 p473) E os conceitos-preacutevios oferecidos na comunicaccedilatildeo acabam

por determinar objetivamente as coisas e o estado de coisas ldquosem que tenham perto de si

tangiacutevel e visiacutevel o ente mostrado e determinadordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Dessa

forma ldquoo acircmbito dessa visatildeo compartilhada amplia-se Mas ao mesmo tempo na

repeticcedilatildeo o mostrado pode precisamente vir a se encobrir de novo () O ouvir-dizer eacute

tambeacutem um ser-no-mundo e ser em relaccedilatildeo ao que eacute ouvidordquo (HEIDEGGER 2012

p439)

A essecircncia do falatoacuterio eacute esse ouvir-dizer comunicado que pode ser repetido E

conforme a compreensatildeo mediana orienta-se pela expressatildeo da linguagem expressa ldquoo

discurso comunicado pode ser entendido amplamente sem que o ouvinte tenha de se pocircr

originariamente entendedor daquilo sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012

p473) A relaccedilatildeo com a linguagem torna-se nesse sentido meramente instrumental Um

exemplo paradigmaacutetico eacute a linguagem jornaliacutestica pois em seu traccedilo essencialmente

comunicativo e divulgador pode a cada vez informar sobre as coisas e um estado de

coisas sem que o leitor ou o ouvinte tenha de fato clareza acerca da compreensatildeo de tais

coisas mas pode repetir o que leu e o que ouviu com os outros e ser entendido A ldquofalta

de clarezardquo nesse exemplo natildeo diz respeito a algo como falta de ldquoacesso agraves fontesrdquo mas

deve ser compreendido em seu caraacuteter ontoloacutegico ou seja o que estaacute em jogo eacute o fato

que a linguagem repetida natildeo coloca em questatildeo seu proacuteprio fundamento A relaccedilatildeo entre

a cotidianidade impessoal e o uso da linguagem eacute algo tatildeo intriacutenseco que Heidegger em

1946 no texto Carta sobre o Humanismo diz

ldquoO que foi dito sobre o lsquoimpessoalrsquo em Ser e Tempo (1927) nos paraacutegrafos 27 e

35 de modo algum deve ser reduzido a um contributo secundaacuterio agrave sociologia

Mas o lsquoimpessoalrsquo tampouco se refere apenas agrave imagem oposto compreendida

de maneira eacutetico-existenciaacuteria do ser proacuteprio da pessoa Ao contraacuterio o que disse

ali conteacutem a indicaccedilatildeo agrave pertinecircncia inicial da palavra com o ser e essa

indicaccedilatildeo eacute pensada segundo a verdade do ser Essa relaccedilatildeo permanece oculta

sob o predomiacutenio da subjetividade que se apresenta como opiniatildeo puacuteblicardquo

(HEIDEGGER 2008 p330 grifo nosso)

141

A linguagem eacute portanto submetida ao que eacute compreensiacutevel na opiniatildeo puacuteblica e

aquilo que a cotidianidade mediana natildeo compreende eacute simplesmente descartado como

incompreensiacutevel Ou seja a proacutepria compreensatildeo (Verstehen) estaacute irremediavelmente

orientada agrave queda e essa mantecircm-se como tal no falatoacuterio Na tentativa de objetivar o

que as coisas satildeo e como elas satildeo tudo que eacute compreendido obscurece seu ldquocomordquo ou

seu mostrar que vem ao encontro no mundo histoacuterico pois ldquosoacute se procura ouvir o

discorrido como talrdquo (HEIDEGGER p473)

ldquoEm meio a essa dinacircmica retoma-se incessantemente uma atitude ontoloacutegica em

relaccedilatildeo aos entes intramundanos em geral e ao ser-aiacute em especiacutefico uma atitude

marcada fundamentalmente por uma opacidade primordial Todos satildeo a

princiacutepio homogeneizados a partir da noccedilatildeo de uma subsistecircncia por si todos

passam a ser desde o princiacutepio considerados como entes simplesmente dados e

detentores ao mesmo tempo de propriedades igualmente dadas() O falatoacuterio

tende entatildeo a coibir o aparecimento de uma outra forma discursiva que se

perfaccedila por meio de um real questionamento do ser do ente e de uma apropriaccedilatildeo

originaacuteria do ente consideradordquo (CASANOVA2006 p70)

O falatoacuterio como linguagem sedimentada e repetida eacute o que inicialmente orienta

o ser-aiacute em seu ldquoairdquo A cotidianidade mediana na qual estamos sempre imersos abre

inicialmente a compreensatildeo do mundo ao ser-aiacute mas ao abri-la acaba por fechaacute-la pois

desenraiza o ser-aiacute do solo originaacuterio dessa compreensatildeo de ser dos entes De outro modo

o loacutegos como discurso articula mundo e o abre agrave compreensatildeo o falatoacuterio como

linguagem sedimentada encobre esse mostrar originaacuterio O falatoacuterio diz e indica as coisas

e o estado de coisas mas natildeo os coloca em sua mostraccedilatildeo a partir de seu ser ou como

nos diz Carlos Drummond ldquoO sol consola os doentes e natildeo os renovardquo Nesse sentido

que a repeticcedilatildeo e a difusatildeo satildeo traccedilos essenciais do falatoacuterio pois movimentam a

existecircncia baseada na estabilidade do compreendido previamente articulado e

compartilhado na vida comum manifesto em uacuteltima medida pela linguagem e pelos

conceitos herdados

ldquoA falta-de-solo natildeo o impede de ingressar no que eacute puacuteblico mas favorece seu

ingresso O falatoacuterio eacute a possibilidade de tudo entender sem uma preacutevia

apropriaccedilatildeo da coisa O falatoacuterio jaacute protege por antecipaccedilatildeo contra o perigo de

malograr em tal apropriaccedilatildeo O falatoacuterio que qualquer um pode obter natildeo soacute

dispensa da tarefa de um entendimento autecircntico mas desenvolve uma

entendibilidade indiferente para a qual nada estaacute fechadordquo (HEDEGGER 2012

p475)

142

A objetividade promovida pelo falatoacuterio ou esse jaacute ser-interpretado natildeo eacute algo

que podemos negar e suspender A queda ou decair (Verfallen) constitui ldquoa plena abertura

do aiacuterdquo e o ldquoDasein nunca eacute capaz de rejeitar esse cotidiano ser-do-interpretado no qual

de imediato cresceurdquo (HEIDEGGER 2012 p477) Ele nos constitui porque eacute

inicialmente nosso ldquoaiacuterdquo e ldquotodo entendimento interpretaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo genuiacutenos

toda redescoberta se efetuam nele a partir dele e contrariamente a elerdquo (HEIDEGGER

2012 p477) ldquoTer mundordquo (abertura compreensiva) para o ser-aiacute que o constitui como

ente privilegiado eacute tambeacutem ser absorvido pelo mundo (queda) A verdade (Aleacutetheia)

como desvelamento eacute tambeacutem encobrimento Ser na verdade eacute tambeacutem estaacute na natildeo-

verdade Ouvir o loacutegos eacute tambeacutem se perder na linguagem

ldquoEacute soacute por isso que (sect34) Ser e Tempo conteacutem uma indicaccedilatildeo essencial da

linguagem tocando na questatildeo simples que pergunta em que modo do ser a

linguagem eacute sempre linguagem como tal O esvaziamento da linguagem que

avanccedila violentamente e se estende com rapidez por toda parte natildeo corroacutei apenas

a responsabilidade esteacutetica e moral em todos os usos da linguagem Proveacutem de

uma ameaccedila da essecircncia do ser humanordquo (HEIDEGGER 2008 p331)

Mas entatildeo qual o caminho Como ir agrave linguagem como tal Heidegger nos

adverte ldquoUm mero uso cuidado da linguagem ainda natildeo demonstra que escapamos desse

perigo essencialrdquo (HEIDEGGER 2008 p331) Na realidade reduzir o problema agrave essa

soluccedilatildeo poderia indicar que nem sequer vemos o perigo pois o esconderia sob agraves vestes

de usos como lsquosabedoriarsquo lsquoculturarsquo lsquoconhecimentorsquo etc ou seja a ldquosoluccedilatildeordquo ainda

estaria submetida ao domiacutenio puacuteblico do que eacute compreensiacutevel

Portanto se ldquoa linguagem ainda nos nega sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2008

p331) entatildeo ainda eacute necessaacuterio seguir a orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica

Diante da pergunta de Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na

cidade Soacutecrates responde ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso

irrdquo87 Para que afinal busquemos a relaccedilatildeo entre loacutegos e ser

87 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9

143

Conclusatildeo

O que vem agrave palavra Essa foi a questatildeo que nos guiou nesse trabalho Ela

atravessa outras perguntas por que falamos de uma determinada forma por exemplo

com sujeito e predicado Como eacute possiacutevel nossa comunicaccedilatildeo Como eacute possiacutevel falar que

algo eacute de tal e qual maneira

Fomos ao livro Ser e Tempo natildeo para dizer sobre o que um autor pensou fomos

ao Ser e Tempo para encontrar elementos que poderiam nos guiar nessas questotildees Entatildeo

a tarefa desse tratado revelou-se tambeacutem como um problema de linguagem Pois eacute a

tentativa de reformulaccedilatildeo da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido

depende justamente daquela reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido do

ser Vimos aiacute uma imbricada problemaacutetica a pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo (Sinn von

Sein) eacute tambeacutem a pergunta sobre o que pode sustentar sentido e significados e por isso

o que pode sustentar a linguagem Se natildeo nos incomodasse a tautologia poderiacuteamos

perguntar qual o sentido do sentido

A necessidade de recolocaccedilatildeo da pergunta estaacute diretamente relacionada agrave criacutetica

imanente de Heidegger agrave fenomenologia de Husserl Abordado sempre e a cada vez como

um ente o ser natildeo eacute no entanto um predicado real Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar

o ser como um ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel

e atributivo Ser natildeo eacute um ente o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo

com vistas agrave forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera

para ldquoQual o sentido de serrdquo Atraveacutes da apropriaccedilatildeo da hermenecircutica Heidegger potildee

em tela o caraacuteter histoacuterico do sentido de ser dos entes E dessa maneira indica como as

palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da

experiecircncia hermenecircutica Contudo diferentemente de como a concebeu Dilthey a

experiecircncia revelou-se natildeo como um meacutetodo de acesso ao caraacuteter histoacuterico do sentido e

144

dos significados mas compreensatildeo fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo circunspecta de

nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser

Poreacutem um problema central deveria ser abordado ldquocomo eacute possiacutevel a forma

loacutegicardquo ou ldquoPor que seguimos a foacutermula lsquosujeito e predicadorsquordquo Essa questatildeo nos levou

ateacute a maneira pela qual essa problemaacutetica foi abordada pelos neokantianos mais

especificamente agravequeles representantes da escola de Baden Esses reduziam a

possibilidade de verdade agrave forma do juiacutezo agrave identificaccedilatildeo entre ldquoWahrheit = wahrer Satz

= Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade) A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo

de verdade da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca

que era a dos neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa

concepccedilatildeo tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da

verdade em direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave

proposiccedilatildeo Com isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa

medida condicionando a ontologia agrave loacutegica

Foi esse mapa complexo dos problemas que foi desenhado nos dois primeiros

capiacutetulos os quais consideramos imprescindiacuteveis para uma exposiccedilatildeo completa da

estrutura ontoloacutegica da linguagem em Ser e Tempo Expondo o contexto das filosofias de

Dilthey Husserl e dos neokantianos de Baden bem como o posicionamento de Heidegger

frente a essas teorias a abordagem fenomenoloacutegico-hermenecircutica revelou-se como o

meacutetodo de acesso ao sentido de ser de todo ente Esse meacutetodo acaba ainda por demonstrar

que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um

campo de signos referenciais fechados que doam significado agraves coisas mas uma

manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez se faz presente na facticidade da

existecircncia concreta Last but not least revelou-se a diferenccedila entre uma concepccedilatildeo de

loacutegos proveniente da loacutegica e outra advinda do conceito de aleacutetheia

Foi a partir daiacute que ficaram claros os contornos dos dois uacuteltimos capiacutetulos desta

Dissertaccedilatildeo Tentamos mostrar como em Ser e Tempo a linguagem estaacute assentada em

duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado revelando a diferenccedila

entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm articulados pela imbricaccedilatildeo

radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno Poreacutem natildeo poderiacuteamos nos sentir satisfeitos

nessa descriccedilatildeo Heidegger nos adverte que estamos em fuga do solo em que o loacutegos se

145

mostra Pois o desvelamento enquanto Aleacutetheia eacute tambeacutem encobrimento por isso o

fenocircmeno sempre se nos mostra de maneira dissimulada Tambeacutem a partir de Ser e Tempo

tentamos evidenciar como a linguagem depende da constituiccedilatildeo proacutepria da verdade Ou

seja como o discurso (Rede) eacute apresentado como fundamento ontoloacutegico da linguagem

mas como o fenocircmeno mesmo da linguagem jaacute sempre se apresenta como falatoacuterio

(Gerede) O fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana enquanto comunicaccedilatildeo

ou seja discurso (die Rede) que jaacute se expressou e a cada vez se expressa eacute repetido e

difundido no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada

pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte

compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente Mas

como entes sem qualquer essecircncia preacutevia sem qualquer natureza definida somos a

proacutepria compreensatildeo (Verstehen) irremediavelmente orientada agrave queda sendo o falatoacuterio

a manifestaccedilatildeo uacuteltima dessa condiccedilatildeo

Esse foi o caminho do nosso trabalho que eacute apenas um iniacutecio Ele natildeo pretende

encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender o papel

da poesia na obra de Heidegger apoacutes os anos 1930 como uma tentativa de desvencilhar-

se do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Ou ainda se a estratificaccedilatildeo

da linguagem segundo a formulaccedilatildeo de Ser e Tempo precisou ser revista apoacutes a viragem

tendo em vista que em 1927 natildeo foi possiacutevel encontrar seu fundamento ontoloacutegico a partir

do Dasein

Por enquanto preferimos a tensatildeo e a suspensatildeo do estado de pergunta Preferimos

o pensar como caminho agraves respostas como soluccedilotildees afinal

ldquoCom seu dizer o pensar abre sulcos imperceptiacuteveis na linguagem Esses satildeo

ainda mais imperceptiacuteveis que os sulcos que a passos lentos o camponecircs abre pelo

campo aforardquo (HEIDEGGER 2008 p376)

146

Bibliografia

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ZAHAVI D A fenomenologia de Husserl Trad Marco Casanova Rio de Janeiro RJ

ViaVerita 2015

  • INTRODUCcedilAtildeO
  • Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na filosofia
  • Introduccedilatildeo
  • I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico
  • II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias
  • II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica
  • III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos
  • Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica
  • Introduccedilatildeo
  • I - Os limites da filosofia dos valores
  • II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio
  • II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger
  • III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
  • III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger
  • Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e Tempo
  • Introduccedilatildeo
  • I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico
  • II A dupla abertura de sentido (Sinn)
  • III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)
  • II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung)
  • Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)
  • Introduccedilatildeo
  • I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem
  • II- O Falatoacuterio (das Gerede)
  • Conclusatildeo
  • Bibliografia

4

Banca Avaliadora

_________________________

Profa Dra Virginia de Arauacutejo Figueiredo-UFMG Orientadora

___________________________

Prof Dr Marco Antocircnio Casanova- UERJ Coorientador

___________________________

1ordm Examinador Prof Doutor Eduardo Soares Neves Silva - UFMG

___________________________

2ordmExaminador Prof Doutor Maacutercio Antocircnio de Paiva- PUCMG

5

Agradecimentos

O trabalho que aqui apresento iniciou-se em Fevereiro de 2014 mas originou-se

haacute 12 anos atraacutes em meu primeiro semestre do curso de graduaccedilatildeo em filosofia na

Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas da UFMG Jaacute nas primeiras aulas questionei

a possibilidade de continuar nesse caminho pois ele havia se tornando cada vez mais

exigente e difiacutecil No segundo semestre poreacutem cursei a mateacuteria ministrada pelo professor

Fernando Rey Puente onde ele tentava explicar aos alunos ainda iniciantes como eu As

Categorias de Aristoacuteteles Aquelas aulas foram decisivas para que eu compreendesse trecircs

coisas dedicaccedilatildeo e rigor satildeo o que minimamente podemos oferecer agrave filosofia (ainda

permaneccedilo na busca de realizar tais condiccedilotildees) o pensamento filosoacutefico uma vez

apresentado a noacutes natildeo oferece saiacuteda mas compromisso e ainda aprendi que se a partir

daquele momento eu ficasse imune ao ler um livro de filosofia era melhor deixaacute-la Por

isso meu primeiro agradecimento eacute a esse professor Tambeacutem natildeo poderia deixar de

agradecer ao professor Ernesto Perini Nas mateacuterias ministradas por ele que cursei durante

a graduaccedilatildeo natildeo soacute se revelava para mim a importacircncia da linguagem no interior dos

problemas filosoacuteficos como aprendi que o respeito com os alunos era uma maneira de

ensinaacute-los

Agradeccedilo tambeacutem a todos os funcionaacuterios da FAFICH de forma especial agrave Vilma

bibliotecaacuteria-chefe e ao Andreacute secretaacuterio da poacutes-graduaccedilatildeo Ambos pela solicitude com

que sempre me atenderam em todos os momentos que precisei

Agradeccedilo tambeacutem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e

Tecnoloacutegico (CNPq) pela concessatildeo da bolsa de estudos que permitiu nos uacuteltimos dois

anos minha dedicaccedilatildeo integral agrave pesquisa do mestrado

Agradeccedilo agravequeles que construiacute como amigos o viacutenculo com o mundo Dentre eles

alguns nomes natildeo posso deixar de citar Agradeccedilo agrave Thamara Chain pelos 22 anos de

amizade e compreensatildeo Agradeccedilo agrave Taiacutes Tourinho por ser vigilante acerca de minha

solidatildeo por vezes demasiada Agradeccedilo agrave Nathaacutelia de Aacutevila por me lembrar a natildeo ser tatildeo

seacuteria e que o caminho tambeacutem se faz com leveza Agradeccedilo agrave Carolina Faria pela partilha

do entusiasmo na descoberta promovida pelo estudo Tambeacutem agradeccedilo agrave Ana Godoi

Gustavo Machado e Gabriel Lago Essas pessoas me ensinaram o valor do debate (por

6

vezes infindaacuteveis) e ainda que pensamento e vida satildeo o mesmo A uacutenica maneira que

encontrei para agradececirc-los eacute tornar puacuteblico o fato de que nossas conversas estatildeo em cada

linha dessa dissertaccedilatildeo

Agradeccedilo agrave minha orientadora Virginia Figueiredo pela confianccedila depositada em

mim ao me aceitar como orientanda Tambeacutem por seus comentaacuterios e ensinamentos

imprescindiacuteveis bem como pela leitura e revisatildeo impecaacutevel de meu trabalho Nesse

sentido tambeacutem ao meu coorientador Marco Antocircnio Casanova a quem agradeccedilo tendo

em vista que sem sua presenccedila algumas partes dessa dissertaccedilatildeo natildeo seriam possiacuteveis

Agradeccedilo minhas irmatildes Jana e Nanda por serem minhas primeiras e eternas

melhores amigas E por fim agradeccedilo agravequeles por quem o meu sentimento entre o amor

a gratidatildeo e a admiraccedilatildeo natildeo alcanccedila a palavra aos meus pais Adauto e Delza Esse

trabalho eacute para vocecircs

7

VERBO SER

Carlos Drummond de Andrade

Que vai ser quando crescer

Vivem perguntando em redor Que eacute ser

Eacute ter um corpo um jeito um nome

Tenho os trecircs E sou

Tenho de mudar quando crescer Usar outro nome corpo e jeito

Ou a gente soacute principia a ser quando cresce

Eacute terriacutevel ser Doacutei Eacute bom Eacute triste

Ser pronunciado tatildeo depressa e cabe tantas coisas

Repito Ser Ser Ser Er R

Que vou ser quando crescer

Sou obrigado a Posso escolher

Natildeo daacute para entender Natildeo vou ser

Vou crescer assim mesmo

Sem ser Esquecer

ldquoAdmitamos que natildeo haja essa significaccedilatildeo indeterminada e que natildeo entendemos sempre o que lsquoserrsquo significa O que ocorreria nesse caso Apenas um nome e um verbo de menos em nossa linguagem De forma alguma Jaacute natildeo haveria simplesmente linguagem alguma Natildeo ocorreria que o ente se nos abrisse de modo a poder ser chamado e dito Pois dizer o ente como tal implica compreender de antematildeo o ente como ente isto eacute o seu ser Suposto que noacutes simplesmente natildeo compreendecircssemos o ser suposto que a palavra lsquoserrsquo natildeo tivesse nem mesmo aquela significaccedilatildeo flutuante entatildeo jaacute natildeo haveria absolutamente nenhuma palavra Noacutes mesmos nunca poderiacuteamos ser aqueles que falam Laacute natildeo poderiacuteamos ser o que somos Pois ser homem significa ser um dizenterdquo

Heidegger Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica

8

Resumo

O presente trabalho tenta evidenciar a partir da obra Ser e Tempo de Martin

Heidegger como a linguagem (die Sprache) eacute a manifestaccedilatildeo uacuteltima da historicidade de

todo e qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como esses significados satildeo

sustentados por um campo de sentido tambeacutem histoacuterico A partir dessa primeira descriccedilatildeo

o trabalho visa esclarecer como a linguagem no uso cotidiano ou o falatoacuterio (das Gerede)

obscurece o caraacuteter histoacuterico do fenocircmeno da linguagem e dos significados que a sustenta

Portanto esta Dissertaccedilatildeo caminha em duas vias que se tocam a primeira pretende

descrever o que chamamos de estrutura ontoloacutegica da linguagem a partir do

redimensionamento da pergunta heideggeriana pelo ser a fim de indicar como as palavras

em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da experiecircncia

hermenecircutica ou seja atraveacutes da compreensatildeo ontoloacutegica preacutevia a linguagem a segunda

pretende mostrar o fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana como comunicaccedilatildeo

ou discurso (die Rede) a qual jaacute se expressou e a cada vez se expressa sempre repetida

e difundida no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada

pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte

compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente

9

Abstract

The present thesis focuses on demonstrating in what manner language (die

Sprache) is the lattermost manifestation of the historicity of any meaning that can come

to words as well as through what agency those meanings are upheld by a conjointly

historical field of meaning insofar as stated by Martin Heidegger in his work ldquoBeing and

Timerdquo (Sein und Zeit) As of this writing our work aims at unraveling by what means

language in its trivial use or the talk (das Gerede) overshadows the historical aspect and

the meanings that withstand the phenomenon of language Hence the present work is

developed in two adjoining ways the first one endeavors to describe the ontological

structure of language deriving out of the resizing of Heideggers question of being that

has the aim of indicating how the words in context of enunciation inherit their meaning

from previous structures of the hermeneutic experience that is through the prior

ontological understanding of the language The second one aims at revealing the language

phenomenon in the median everydayness as communication or discourse (die Rede)

which has already been expressed and is still expressed always repeated and spread in

the talk that obliterates the comprehensive horizon by reducing all beings to an

undifferentiated homogenization and making them available to our linguistic resources

since it is the primary opening of the sense of being that any and all entities have

10

Sumaacuterio INTRODUCcedilAtildeO 11

Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na

filosofia 15

Introduccedilatildeo 15

I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do

conhecimento como essencialmente histoacuterico 17

II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em

relaccedilatildeo agraves ciecircncias 22

II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica 29

III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos 33

Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica 42

Introduccedilatildeo 42

I - Os limites da filosofia dos valores 44

II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio 53

II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger 58

III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal 68

III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger 72

Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e

Tempo 80

Introduccedilatildeo 80

I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou

o ldquocomordquo hermenecircutico 88

II A dupla abertura de sentido (Sinn) 88

III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit) 103

II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung) 110

Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede) 122

Introduccedilatildeo 122

I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem 123

II- O Falatoacuterio (das Gerede) 134

Conclusatildeo 143

Bibliografia 146

11

INTRODUCcedilAtildeO

Estamos diante de um livro Ser e Tempo Abrimo-lo Com o que nos confronta

em sua primeira paacutegina Que natildeo temos desde Platatildeo ateacute hoje resposta agrave pergunta sobre

o que queremos dizer com a palavra lsquoentersquo Natildeo haacute como ficar imune diante da

constataccedilatildeo E se ateacute hoje essa palavra natildeo nos eacute transparente eacute porque aqueles que se

propuseram a andar no caminho do pensamento natildeo souberam perguntar sobre o ente e

isso porque natildeo souberam afinal perguntar sobre o ser Heidegger natildeo nos propotildee sair do

caminho mas uma nova maneira de caminhar Ele nos promete uma resposta Natildeo Ele

propotildee uma vez mais a pergunta pelo ser O objetivo do tratado eacute elaborar essa questatildeo

De que modo Ele agora pergunta Qual o sentido de ser

Nossa pesquisa poderia partir daiacute Iniciariacuteamos a exposiccedilatildeo de nosso trabalho

nessa pergunta e prosseguiriacuteamos em Ser e Tempo De modo algum Seria um

contrassenso para algueacutem que queira estudar a linguagem em Heidegger partir de uma

sentenccedila como se ela fosse oacutebvia Afinal por qual motivo Heidegger natildeo pergunta ldquoO

que eacute o serrdquo ou ldquoHaacute o serrdquo Fechamos Ser e Tempo Eacute preciso compreender como essa

pergunta ganhou uma determinada forma Mas para onde ir

Ser e Tempo eacute uma obra do seacuteculo XX uma obra de filosofia portanto jaacute eacute parte

de nossa tradiccedilatildeo jaacute temos uma preacute-compreensatildeo dela Sabemos previamente que ela

transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica e que o nosso autor expotildee seu caminho

em um texto de 1963 chamado ldquoMeu caminho na fenomenologiardquo Parece-nos um bom

iniacutecio e vamos ao texto Heidegger descreve o iniacutecio de seus estudos o contato com a

obra inaugural da fenomenologia de Husserl e com a tese de Brentano sobre Aristoacuteteles

aiacute se vecirc germinar ainda que de maneira imprecisa sua questatildeo central Mas isso se

mostrou insuficiente para compreender a pergunta posta em Ser e Tempo Recorremos

entatildeo aos textos de Husserl Jaacute na introduccedilatildeo do II volume agrave obra citada por Heidegger

ndash Investigaccedilotildees Loacutegicas - Husserl descreve a necessidade de a fenomenologia

posicionando-se contra a psicologia explicativa procurar sua fundamentaccedilatildeo da loacutegica

numa nova teoria do conhecimento objetiva Nossa jaacute citada preacute-compreensatildeo nos levou

a Dilthey ao descobrir que esse autor tambeacutem se opocircs ao meacutetodo da psicologia

explicativa Vamos tambeacutem aos seus textos Mas a pergunta aparece teraacute sido tatildeo grande

12

a influecircncia que a psicologia explicativa exercia naquela eacutepoca a ponto de exigir que

tantos pensadores sentissem a necessidade de se opor a ela e ao seu meacutetodo

Como se isso natildeo bastasse revelou-se que ambos os autores Dilthey e Husserl

travam diaacutelogo nem sempre expresso com o neokantismo Agrave revelia de todos julguei

que natildeo deveria desconsiderar mais essa referecircncia tendo em vista que um dos principais

nomes dessa corrente ndash Rickert- foi citado por Heidegger no importante (para esta

pesquisa) texto de 1963 ao qual me referi haacute pouco Entatildeo me perguntei o que une esses

trecircs nomes Dilthey Husserl e Rickert Estaacute posta a tarefa do primeiro capiacutetulo da

Dissertaccedilatildeo

Nele tentei compreender como a partir do desenvolvimento das ciecircncias positivas

particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma profunda discussatildeo acerca do sentido e

da possibilidade do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo busca uma

filosofia propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana procura a

autonomia da filosofia frente agrave ciecircncia positiva mas que serviria de base a toda e qualquer

ciecircncia Tambeacutem nesse contexto aparece a contribuiccedilatildeo de Dilthey a qual acrescenta o

caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e traz agrave tona o sentido do conhecimento como

essencialmente histoacuterico

Mas natildeo chegamos ao que nos propomos estamos ainda nos prolegocircmenos Por

qual motivo Heidegger pergunta Qual o sentido de ser Ser e Tempo continua fechado

Precisamos entatildeo reavaliar nossa preacute-compreensatildeo Se como dissemos Ser e Tempo

transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica eacute preciso analisar como essas influecircncias

aparecem no pensamento de Heidegger Vamos a algumas preleccedilotildees do autor anteriores

agrave obra central de nosso trabalho Eacute preciso indicar que nossa intenccedilatildeo natildeo eacute abordar as

preleccedilotildees como processos evolutivos como que para esclarecer em termos de causa e

efeito a publicaccedilatildeo posterior lsquomadurarsquo de Ser e Tempo Mas destacar como as questotildees

desses textos acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a

problemaacutetica cujo desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927

Estaacute posta a tarefa de nosso segundo capiacutetulo

Nele trata-se de compreender como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere

Heidegger no interior da referida discussatildeo pelo sentido do conhecimento Mas ao

mesmo tempo tentaremos mostrar como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva

(considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal)

e a introduccedilatildeo do elemento hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com

13

Heidegger a pergunta fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do

conhecimento e passou a ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto

nosso segundo capiacutetulo pretende analisar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger

no interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do

conhecimento ao sentido do ser

Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido

de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a

teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo

pelo sentido do ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir

da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para

uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no

curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER 2006 p122) o elemento

hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave fenomenologia

que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em

seu ser Podemos abrir novamente Ser e Tempo

Esse percurso foi necessaacuterio para que pudeacutessemos conquistar um solo

interpretativo e sobretudo alcanccedilar a pergunta pelo sentido de ser Pois ela a pergunta

estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura de sentido que precisamos explicitar

E assim no terceiro e central capiacutetulo da Dissertaccedilatildeo apresentar como em Ser e Tempo

o fenocircmeno da linguagem (Sprache) aparece no interior dessa compreensatildeo e em que

medida a linguagem eacute possiacutevel por uma estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Dito de

outro modo na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto

ontoloacutegico do conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e

qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido tambeacutem

histoacuterico em que algo pode se manter em seu significado Eacute nessa perspectiva que

procuramos a estrutura ontoloacutegica da linguagem

Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a

ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo

material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos

que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas

que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela

dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se

estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o

14

que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes1rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que

somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em

fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo

Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por

Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um

fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo

incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como

descoberto A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo cotidiano Heidegger chama de

ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio

natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute

encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas tomadas como oacutebvias

Esse eacute o caminho do nosso trabalho mas eacute apenas o iniacutecio Ele natildeo pretende

encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender a

ldquopassagem para o poeacutetico2rdquo na obra de Heidegger como uma tentativa de desvencilhar-se

do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Por enquanto preferimos a tensatildeo

e a suspensatildeo do estado de pergunta Ser e Tempo continuaraacute aberto Tentaremos nos

manter fieis agrave orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica Diante da pergunta de

Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na cidade Soacutecrates responde

ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso irrdquo3

1 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo Wolf

Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249 2 Cf NUNES 2012 3 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9

15

Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo

sentido do conhecimento na filosofia

Chega um tempo em que natildeo se diz mais meu Deus () Chegou um tempo em que natildeo adianta morrer Chegou um tempo em que a vida eacute uma ordem

A vida apenas sem mistificaccedilatildeo (Os Ombros Suportam o Mundo Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

Conforme Merleau Ponty a fenomenologia surge como uma tentativa para

resolver um problema natildeo de uma seita mas talvez o problema do seacuteculo o problema

que se punha desde 1900 para todo o mundo e ainda eacute hoje colocado (PONTY M1973

Pag15) O problema refere-se agrave crise das ciecircncias humanas (Geistenwissenschaften) e agraves

ciecircncias naturais

Se o fundamento dos princiacutepios da geometria e da fiacutesica eram objetos de

investigaccedilatildeo de Husserl e o levou ao caminho da pesquisa de uma filosofia sem

pressupostos- bem como as investigaccedilotildees dos chamados neokantianos da escola de

Marburg que os levaram agrave tentativa de fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas - as

ciecircncias humanas tambeacutem se desenvolviam no auspiacutecio de sua proacutepria ambiguidade

A medida que se desenvolviam as pesquisas psicoloacutegicas socioloacutegicas

histoacutericas tendiam a nos apresentar todo pensamento toda opiniatildeo e em

particular toda filosofia como o resultado da accedilatildeo combinada das condiccedilotildees

psicoloacutegicas sociais histoacutericas anteriores A psicologia tendia para o que Husserl

denomina psicologismo a sociologia o sociologismo histoacuteria para o

historicismo Ora com isto elas acabavam por erradicar seus proacuteprios

fundamentos (PONTY1973 p15)

Na medida em que os princiacutepios orientadores do homem histoacuterico social e

psicoloacutegico satildeo elementos externos e imbricados de certa contingecircncia conforme os

resultados mesmos dessas pesquisas o pesquisador punha suas proacuteprias afirmaccedilotildees em

duacutevida pois o fundamento de todas elas eacute tambeacutem contingente e o valor de verdade de

suas conclusotildees fluido Contudo quando algo faz aparecer opositores observando e

16

diagnosticando seus problemas fundamentais eacute porque encontra-se em evidecircncia e jaacute

atingiu certo grau de adesatildeo sendo necessaacuterio apontar elementos obliterados em sua

suposta evidecircncia

A autonomia das ciecircncias positivas frente aos sistemas filosoacuteficos em meados do

seacuteculo XIX na Alemanha acompanhava um crescente desprestiacutegio da metafiacutesica e da

filosofia da natureza sendo a reflexatildeo metodoloacutegica suplantada por novos procedimentos

-e uma nova visatildeo de mundo- em que vigoravam o conhecimento empiacuterico impessoal e

temporal

Se a filosofia jaacute natildeo parecia ter condiccedilotildees de responder agraves questotildees dessa nova

visatildeo de mundo cientiacutefica com as propostas da psicologia experimental - baseada no

modelo metodoloacutegico das ciecircncias naturais- ela a filosofia parecia estar condenada ao

ostracismo sendo capaz apenas de se colocar como curiosidade histoacuterica A psicologia

experimental ou explicativa considerava que um procedimento verdadeiramente

cientiacutefico deveria ser baseado na observaccedilatildeo empiacuterica ela era a interpretaccedilatildeo da verdade

atraveacutes de causas psiacutequicas responsaacuteveis pela efetuaccedilatildeo do juiacutezo(MACDOWEL 1993

p28)

O ponto crucial dessa posiccedilatildeo eacute o fato de que o estudo da loacutegica enquanto

estrutura do pensamento estaacute condicionado aos meacutetodos e princiacutepios da psicologia e

portanto condicionada a tipos de demonstraccedilotildees empiacutericas Uma investigaccedilatildeo dessa

espeacutecie - a loacutegica condicionada a demonstraccedilotildees empiacutericas - eacute a negaccedilatildeo da tarefa proacutepria

agrave filosofia (mesmo quando um ou outro pensador negue por exemplo a idealidade loacutegica

ainda assim o faz inserido nessa tarefa de investigaccedilatildeo) pois a loacutegica como doutrina

voltada para uma purificaccedilatildeo radical dos elementos materiais da linguagem e para uma

subsequente reconciliaccedilatildeo entre pensamento e verdade se mostra como expressatildeo

maacutexima do projeto originaacuterio da tradiccedilatildeo (CASANOVA Introduccedilatildeo In DILTHEY

2011p8)

Nesse contexto surgem reaccedilotildees ao modelo predominante das ciecircncias naturais

sobretudo em relaccedilatildeo agrave adesatildeo a este modelo pela psicologia e pelas ciecircncias humanas

Dentre essas reaccedilotildees destacamos o projeto da psicologia descritiva e analiacutetica de Dilthey

as contribuiccedilotildees da pesquisa sobre a validade do conhecimento das escolas neokantistas

17

ndash destacando a filosofia dos valores de Windelband e Rickert - e o projeto husserliano de

uma filosofia sem pressupostos que se realizaria atraveacutes do meacutetodo fenomenoloacutegico

Ciente de que natildeo nos eacute possiacutevel aprofundar nessas complexas investigaccedilotildees nossa

intenccedilatildeo nesse primeiro momento de trabalho eacute apenas indicar os elementos

fundamentais de cada posiccedilatildeo e a partir deles compreender no capiacutetulo seguinte em

que medida essas reaccedilotildees se intercruzam e influenciam o autor privilegiado no texto

dessa dissertaccedilatildeo Este eacute o objetivo de nosso primeiro capiacutetulo

Nosso primeiro capiacutetulo eacute a tentativa de compreender como a partir do

desenvolvimento das ciecircncias positivas particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma

profunda discussatildeo acerca do sentido e possibilidade do conhecimento Nesse contexto o

neokantismo busca uma filosofia propriamente cientiacutefica ndash como reflexo da exigecircncia de

sua proacutepria eacutepoca ndash enquanto a fenomenologia husserliana busca a autonomia da filosofia

descontiacutenua agrave ciecircncia positiva mas que seria a base de toda e qualquer ciecircncia Tambeacutem

nesse contexto emerge como elemento fundamental para o desenvolvimento de nosso

trabalho a tarefa geral de Dilthey que mesmo imersa nas exigecircncias positivistas de seu

tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e potildee em tela o sentido

do conhecimento como essencialmente histoacuterico

I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias

do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente

histoacuterico

Dilthey contra a mera transposiccedilatildeo do meacutetodo das ciecircncias naturais agraves ciecircncias

do espiacuterito ldquose deu conta que a pretensatildeo de entender filosoficamente as disciplinas

histoacutericas soacute poderia levar-se a um porto seguro se reflexiona acerca do que eacute o objeto

das ditas ciecircnciasrdquo (HEIDEGGER 2006p33)

As ciecircncias naturais segundo Dilthey se relacionam com os objetos na medida

em que esses satildeo ou fatos simultacircneos ou sucessivos e aparecem agrave consciecircncia sempre

como dados externos assim recorrendo a uma hipoacutetese como recurso explicativo

condicionada agrave verificaccedilatildeo a partir de maior ou menor incidecircncia desses fatos Os

18

resultados das ciecircncias naturais seriam portanto conclusotildees complementares que

tentariam explicar os fenocircmenos externos (observados como fenocircmenos particulares) e

ordenaacute-los pela funccedilatildeo explicativa da ciecircncia que movimenta da parte (fenocircmenos

unitaacuterios) ao todo (explicaccedilatildeo ordenadora)

Poreacutem os fenocircmenos das ciecircncias humanas aparecem internamente agrave consciecircncia

com realidade de uma lsquoconexatildeo vivarsquo sendo essa conexatildeo da vida psiacutequica

originariamente dada compreensivamente a qualquer homem histoacuterico vivente A anaacutelise

ou distinccedilatildeo dos elos particulares dessa conexatildeo eacute posterior pois o que se daacute

imediatamente agrave consciecircncia eacute a conexatildeo constante das proacuteprias vivecircncias e ldquoa vida natildeo

se faz senatildeo como conexatildeordquo (DILTHEY W2011 pag30) natildeo tendo sentido a partir

dessa evidecircncia falar em algo como deduccedilatildeo dos fenocircmenos psiacutequicos

Exige-se portanto agrave psicologia um outro procedimento pois satildeo somente os

dados da psicologia descritiva que poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar

para as ciecircncias humanas O que estaacute em jogo para Dilthey contra a psicologia

explicativa eacute mostrar como a teoria do conhecimento relativa agraves ciecircncias do espiacuterito e

tambeacutem agrave filosofia natildeo pode abrir matildeo da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica Poreacutem em funccedilatildeo

da especificidade de seus objetos reclama outros meacutetodos que natildeo aqueles das ciecircncias

naturais

Dilthey natildeo aceita os pressupostos do retorno agrave filosofia kantiana4 para a

fundamentaccedilatildeo de suas investigaccedilotildees pois a cisatildeo entre mateacuteria e forma proveniente

desse sistema natildeo serve agraves ciecircncias do espiacuterito e natildeo pode ser mais sustentada diante da

evidecircncia da vida conexa e estruturante da vivecircncia da consciecircncia

4 Sobre esse aspecto eacute importante apresentar duas consideraccedilotildees 1) No interior da biografia de

Schleiermacher de 1860 Dilthey destaca a importacircncia de alguns aspectos do texto de Kant ldquoA religiatildeo

nos limites da simples razatildeordquo (1793) para o desenvolvimento da hermenecircutica de Schleiermacher 2)

Contudo talvez sob influecircncia do debate neokantiano agrave eacutepoca Dilthey apresenta o essencial da filosofia

kantiana como sendo a Criacutetica da Razatildeo Pura ou seja a teoria do conhecimento referente agraves ciecircncias

naturais E nesse sentido que a divisatildeo entre mateacuteria e forma como exposta na primeira criacutetica natildeo eacute

suficiente agrave elaboraccedilatildeo da epistemologia das ciecircncias humanas Sobre esse assunto Cf Kant und die

philosophische Hermeneutik in Kant-Studien 66 (1975) pp 395-403 Traduccioacuten de Angela Ackermann

Pilaacuteri en GADAMER H-G Los caminos de Heidegger Herder Barcelona 2002 pp 57-66 Cf

Beckenkamp J Kant e a hermenecircutica moderna in Kriterion vol51 no121 Belo Horizonte Junho 2010 e

tambeacutem Cf REIS JC A ldquocriacutetica histoacuterica da razatildeordquo Dilthey versus Kant In Textos de histoacuteria UNB

vol10 nordm12 v 10 (2002) pp-159-179

19

ldquoA cisatildeo entre mateacuteria e forma do conhecimento que eacute levada a termo no sistema

kantiano tambeacutem natildeo pode ser hoje mantida Muito mais importante do que essa

cisatildeo satildeo as relaccedilotildees internas que subsistem por toda a parte entre a multiplicidade

das sensaccedilotildees como a mateacuteria do nosso conhecimento e a forma na qual

apreendemos a mateacuteriardquo (DILTHEY W2011 p37)

Para REIS (2003)5 Dilthey eacute associado ao historicismo como seu maior teoacuterico

Ainda como aponta REIS nem todos pesquisadores de sua obra concordam com este

veredito alguns ateacute mesmo questionam se Dilthey poderia ser considerado um

historicista pois em seu projeto de construccedilatildeo de uma epistemologia das ciecircncias

humanas ao se opor ao historicismo romacircntico Dilthey recairia em certo positivismo De

todo modo analisar detalhadamente esta discussatildeo natildeo nos eacute possiacutevel o que nos interessa

aqui eacute apontar que apesar de fazer coro com as caracteriacutesticas gerais deste movimento

Dilthey se destaca por sua busca propriamente epistemoloacutegica das ciecircncias humanas a

partir da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos se afastando em diversos pontos

do chamado ldquoirracionalismordquo romacircntico mas sem reduzir o historicismo agrave pura

epistemologia e sobretudo lanccedilando bases teoacutericas com pretensatildeo cientiacutefica para a

abordagem dos fenocircmenos histoacutericos

ldquoO aspecto positivista da sua teoria devia-se agrave atmosfera naturalista em que ele

viveu As ciecircncias naturais impuseram o seu padratildeo de rigor e objetividade No

seacuteculo XIX a morte da filosofia sistemaacutetica cedeu seu lugar a uma ldquofilosofia

cientiacuteficardquo Natildeo era uma filosofia especulativa mas ldquoestudos positivos com

intenccedilatildeo filosoacuteficardquo O filoacutesofo natildeo podia pensar em qualquer objeto sem recorrer

a estudos concretos ao estudo de fontes primaacuterias extraiacutedas do mundo real

Dilthey neste sentido quis que sua filosofia fosse cientiacutefica Eacute uma teoria do

conhecimento das ciecircncias morais que estudam as relaccedilotildees e eventos positivos

do mundo histoacuterico-social () Aiacute reside seu positivismo que segundo Aron ele

nunca superou e que eacute sua originalidade () Sua tese eacute as ciecircncias humanas

existem como lsquociecircncias e eacute vatildeo discutir o seu caraacuteter cientiacutefico em nome de uma

teoria preconcebida da ciecircnciarsquordquo (REIS 2003p32)

Dilthey se destaca no movimento historicista pela sua preocupaccedilatildeo com o meacutetodo para

as ciecircncias humanas consciente de sua especificidade ou da metodologia autocircnoma dessa

disciplina na medida em que histoacuteria e vida se encontram pela compreensatildeo sendo a vida

ao mesmo tempo histoacuterica e psicoloacutegica E o fato de natildeo haver um modelo universal

sistemaacutetico da histoacuteria natildeo reduz sua pesquisa em uma descriccedilatildeo caoacutetica dos eventos

5 Seguindo a interpretaccedilatildeo de Freunde e Ortega y Gasset Cf REIS JC 2003 p31

20

Vivecircncia compreensatildeo e expressatildeo eacute a triacuteade fundamental para o pensamento de

Dilthey e sua ldquocriacutetica da razatildeo histoacutericardquo consiste em delinear como a construccedilatildeo do

mundo histoacuterico no sujeito torna possiacutevel um saber sobre a realidade espiritual

apreendendo aiacute a partir da experiecircncia do mundo histoacuterico o princiacutepio real das ciecircncias

humanas A reconstruccedilatildeo do mundo da vida natildeo pode ser reduzida a uma soma de

elementos que possam descrevecirc-lo Mais do que isso a vida histoacuterica de um determinado

tempo eacute vivenciada por uma ligaccedilatildeo imediata entre o sujeito e seu tempo cada vivecircncia

sinaliza para a concretude objetiva do espiacuterito da eacutepoca O que importa nesta perspectiva

eacute que a realidade objetiva seja garantida pela proacutepria vivecircncia que eacute ldquoerigida agrave condiccedilatildeo

de categoria epistemoloacutegica fundamental em oposiccedilatildeo ao conceito de representaccedilatildeordquo

(AMARAL2004 p53) ou seja a objetividade da vivecircncia lhe eacute imanente A vivecircncia

(Erlebnis) natildeo eacute mera vida orgacircnica (Leben) mas o encontro indissociaacutevel entre a histoacuteria

e a vida dos homens Se por um lado natildeo eacute possiacutevel acompanhar o horizonte de sentido

de uma eacutepoca sem esta primeira experiecircncia viacutevida cujas expressotildees satildeo particulares por

outro lado eacute somente atraveacutes da compreensatildeo que a vivecircncia eacute alargada superando a

unilateralidade da experiecircncia singular

ldquoA compreensatildeo eacute um reencontro do eu no tu o espiacuterito encontra-se em niacuteveis

cada vez mais elevados da conexatildeo essa mesmidade do espiacuterito no eu no tu em

cada sujeito de uma comunidade em todo sistema da cultura por fim na

totalidade do espiacuterito e da histoacuteria universal torna possiacutevel a atuaccedilatildeo conjunta

das diversas capacidades nas ciecircncias humanas O sujeito do saber estaacute assim

unido com o seu objeto e esse objeto eacute o mesmo em todos os niacuteveis de sua

objetivaccedilatildeo Se a objetividade do mundo espiritual criada no sujeito eacute reconhecida

por este procedimento surge a pergunta sobre o quanto isso pode contribuir para

a resoluccedilatildeo do problema do conhecimento em geralrdquo (DILTHEY 2006p168)

A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo eacute ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da

hermenecircutica de Dilthey pois traz em si a categoria do significado como o nexo da

vivecircncia com a realidade concreta sem se apoiar em qualquer elemento transcendente agrave

proacutepria experiecircncia psicoloacutegica vivida

ldquoA categoria do significado designa a relaccedilatildeo entre as partes da vida e o todo

uma relaccedilatildeo que estaacute fundada na essecircncia da vida Soacute possuiacutemos essa conexatildeo

por meio da memoacuteria na qual podemos visualizar o transcurso vital do passado

Na memoacuteria faz-se valer entatildeo o significado como a forma de apreensatildeo da vida

Captamos o significado de um momento passado Ele eacute significativo na medida

em que nele se realiza um viacutenculo com o futuro por meio da accedilatildeo ou por meio de

um acontecimento exterior Ou na medida em que foi concebido o plano de uma

conduccedilatildeo futura da vida Ou na medida em que um plano de sua realizaccedilatildeo foi

21

levado a termo Ou ele eacute significativo para a vida conjunta na medida em que a

intervenccedilatildeo do indiviacuteduo se realiza nessa vida na qual sua essecircncia mais proacutepria

interveio na configuraccedilatildeo da humanidade Em todos esses e em outros casos o

momento particular possui significado por meio de sua conexatildeo com o todo por

meio da ligaccedilatildeo entre passado e futuro entre existecircncia particular e a

humanidaderdquo (DILTHEY 2006p224)

A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo deve ser entendida como ldquoos dois lados

do processo loacutegico dois lados que se interpenetram mutualmenterdquo (DILTHEY

2006p213) sendo a forma de compreender enquanto meacutetodo a ldquoinduccedilatildeo que deduz das

particularidades parcialmente determinadas para noacutes uma conexatildeo que define o todordquo

(DILTHEY 2006p214) Mas isso soacute eacute possiacutevel pelas categorias que residem na essecircncia

da proacutepria vida categorias que natildeo satildeo dadas a priori e nem podem ser formalizadas

logicamente Satildeo categorias preenchidas no interior de certa unidade espaccedilo-temporal

pois ldquoa vida encontra-se em uma relaccedilatildeo maximamente proacutexima com o preenchimento

do tempo() No tempo a vida existe na relaccedilatildeo das partes com uma conexatildeordquo

(DILTHEY 2006p219)

O conjunto das realizaccedilotildees da compreensatildeo enquanto conexotildees estruturais

objetivas ou objetivaccedilatildeo da proacutepria vida no mundo exterior eacute o conceito das ciecircncias

humanas e ldquotudo aquilo em que o homem por sua atuaccedilatildeo imprimiu sua marca constitui

o objeto das ciecircncias humanasrdquo (DILTHEY 2006 p112) Tendo em vista esse objeto a

tarefa do pesquisador ldquoconsiste na apreensatildeo do mundo do espiacuterito como uma conexatildeo

dos efeitos ou como uma conexatildeo contida em seus produtos duradourosrdquo (DILTHEY

2006p118) A conexatildeo dos efeitos dos produtos da ciecircncia histoacuterica natildeo eacute como o nexo

causal da natureza pois diferentemente da natureza as conexotildees da vida objetiva do

espiacuterito geram valores e realizam fins a vida histoacuterica natildeo eacute reproduccedilatildeo ciacuteclica de si

mesma ndash como a vida natural - mas eacute sempre criativa e ativa na produccedilatildeo desses valores

e bens como seu caraacuteter imanente mais proacuteprio

E eacute nessa apreensatildeo do tear da vida histoacuterica na qual o tempo a vivecircncia e

compreensatildeo estatildeo imbricados e se interpelam o significado ldquoeacute a categoria abrangente

sob a qual a vida se torna concebiacutevelrdquo (DILTHEY 2006p222)

ldquoDito de outro modo conceber algo atribuir valor e estabelecer fins para algo

satildeo atitudes vitais inter-dependentes que configuram as vivecircncias e assim sendo

nos ajudam a construir a proacutepria realidade em que vivemos Vivecircncia e realidade

22

satildeo como que tecidas conjuntamente graccedilas ao apoio da ldquocategoria do

significadordquo (AMARAL 2004p55)

As expressotildees da vivecircncia possuem sua objetividade na medida em que os objetos

as pessoas os valores e os juiacutezos apoiados nesta relaccedilatildeo enraiacutezam-se nos significados

comuns do mundo da vida significados esses que satildeo vivenciados e compreendidos

perfazendo a proacutepria construccedilatildeo do mundo histoacuterico ldquoe consequentemente de sua

compreensatildeo como tarefa basilar das ciecircncias do espiacuteritordquo (AMARAL 2004p57)

II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar

proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias6

Ainda na reaccedilatildeo contra o empirismo positivista do final do seacuteculo XIX e

sobretudo ao psicologismo desenvolveram-se as investigaccedilotildees dos chamados

neokantianos um ldquomovimento com profundas raiacutezes no seacuteculo dezenove [que] dominou

a academia filosoacutefica alematilde entre 1890 e 1920rdquo (CROWELL2001 p23)

Seguindo a exposiccedilatildeo de Crowell o movimento neokantiano pode ser dividido em

trecircs momentos profundamente relacionados com os acontecimentos histoacutericos poliacuteticos

e sociais da Alemanha na virada do seacuteculo XIX para XX Natildeo seraacute possiacutevel nos

aprofundarmos muito na especificidade de cada momento desse movimento bem como

nas suas relaccedilotildees com outras mateacuterias Como jaacute foi dito acima nossa proposta nessa

breve introduccedilatildeo eacute apenas mostrar a importacircncia desse movimento na formaccedilatildeo do

pensamento de Heidegger7 e indicar o contexto geral no qual nasce esse pensamento

6 O neokantismo eacute um movimento complexo e com muitas nuances Como nossa intenccedilatildeo eacute apresentar o

contexto no qual surge o pensamento de Heidegger natildeo pretendemos nos aprofundar e muito menos

desdobrar as divergecircncias entre seus representantes principais atraveacutes do acesso direto agraves suas obras

Portanto seguiremos nesse toacutepico a leitura de Crowell (2001) e Joseacute Rezende Juacutenior (2013) recorrendo

quando necessaacuterio a outros comentadores Destacamos os elementos centrais do pensamento de

Windelband e sobretudo de Rickert pois a partir da anaacutelise da preleccedilatildeo de 1919 de nosso autor ldquoA filosofia

e o problema da concepccedilatildeo de mundordquo ndash em que Heidegger investiga a possibilidade da filosofia como

ciecircncia originaacuteria ndash a posiccedilatildeo desses autores eacute decisiva para elaboraccedilatildeo dos problemas do meacutetodo de acesso

a imediatidade da vida e na primeira parte da referida preleccedilatildeo Heidegger expotildee os pressupostos e

problemas do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e sua dependecircncia ao material teoacuterico das ciecircncias particulares 7 Aleacutem do exposto em nota acima (6) seguimos a leitura de Gianni Vattimo em Introduccedilatildeo a Heidegger

No primeiro capiacutetulo Vattimo mostra a importacircncia dos anos de estudos universitaacuterios de Heidegger em

Freiburg sob orientaccedilatildeo de Heinrich Rickert para o desenvolvimento da questatildeo central de seu

pensamento a questatildeo do ser Segundo Vattimo em sua tese de livre docecircncia de 1916 Heidegger jaacute

23

contexto de uma disputa pela ldquoNova Filosofiardquo que dividiu a Fenomenologia de um lado

e os Neokantianos de outro

ldquoAmbos os movimentos reivindicam o tiacutetulo de filosofia cientiacutefica mas o

neokantismo difere da fenomenologia em manter uma continuidade entre a

ciecircncia positiva e filosofia A teoria da ciecircncia a epistemologia neokantiana

deseja fornecer fundamentos para os princiacutepios de base (lsquocientiacuteficosrsquo) da visatildeo de

mundo A Fenomenologia (aqui Husserl e o jovem Heidegger) ao contraacuterio

estabelece a autonomia da filosofia precisamente atraveacutes da descontinuidade com

a ciecircncia positiva e os objetos de formaccedilatildeo da visatildeo de mundordquo (CROWELL

2001p24)8

No primeiro periacuteodo (1871-1878) verifica-se ldquocerta continuidade entre o inqueacuterito

aprioriacutestico e empiacuterico A autonomia da filosofia vis-agrave-vis a ciecircncia positiva ainda natildeo

tornou a questatildeo decisivardquo (CROWELL 2001p26) Os neokantianos ainda estavam

dispostos a aceitar que as estruturas fundamentais da realidade revelavam seu caraacuteter

transcendental pois ainda constatavam a necessidade das formas universais atraveacutes das

quais podemos pensar as coisas singulares No projeto positivista a ciecircncia empiacuterica

estuda apenas o conteuacutedo de fato em uma restriccedilatildeo circunstancial dos fenocircmenos jaacute

compreendidos

ldquoTentando superar as aporias da Criacutetica da Razatildeo Pura o idealismo

transcendental neokantiano rejeitou a distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si Os

objetos satildeo totalmente imanentes agrave consciecircncia natildeo somente quanto a sua forma

mas tambeacutem agrave sua mateacuteria ieacute o seu elemento empiacuterico Destarte as categorias

jaacute natildeo constituem meramente o modo de aparecer da realidade mas o seu modo

de ser pois ela natildeo existe senatildeo enquanto presente agrave consciecircncia () Assim o

loacutegico como estudos das determinaccedilotildees fundamentais de vaacuterias regiotildees dos

objetos imanentes agrave consciecircncia ocupa com razatildeo ainda para Kant o lugar

reservado antigamente agrave metafiacutesica A tarefa proacutepria da filosofia consiste numa

Teoria das Ciecircncias ieacute no exame das estruturas a priori ao passo que estas

estudam o conteuacutedo empiacuterico das vaacuterias regiotildees dos objetosrdquo (MACDOWELL

Jp30)

manifestava elementos que o impulsionariam a ir aleacutem da loacutegica a recusa de considerar as categorias como

meras funccedilotildees do pensamento e ainda a exigecircncia de considerar o problema da historicidade e do tempo

Assim no interior da problemaacutetica neokantiana Heidegger jaacute se preocupava com questotildees que o

neokantismo mostrava-se incapaz de resolver Cf Vattimo G1987 pp 10-22

8 ldquoBoth movements lay claim to the mantle of ldquoscientific philosophyrdquo but neo-Kantianism differs from

phenomenology in maintaining a continuity between positive science and philosophy As theory of science

neo-Kantian epistemology wants to provide grounds for a principled (ldquoscientificrdquo) weltanschauung

Phenomenology (here Husserl and the early Heidegger) on the contrary establishes the autonomy of

philosophy precisely through a discontinuity with positive science and the aims of worldview formationrdquo

op cit p 24

24

Durante o segundo periacuteodo neokantiano entre 1878 e o final da Primeira Guerra

Mundial as escolas originadas desse movimento vatildeo acirrar suas diferenccedilas A escola de

Marburg (Cohen Natorp e Cassirer) se opocircs sobretudo agraves interpretaccedilotildees psicoloacutegicas

da Primeira Criacutetica de Kant O campo de investigaccedilatildeo dessa escola era direcionado agrave

fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas tais como a fiacutesica e a matemaacutetica pois o que

estaacute em jogo nessa obra segundo os pesquisadores de Marburg natildeo eacute qualquer

fundamentaccedilatildeo da estrutura psicoloacutegica do conhecimento nem sua origem mas o valor

loacutegico de sua verdade na medida em que ldquoo nosso conhecimento dos objetos reais conteacutem

um elemento que natildeo pode ser reduzido pura e simplesmente a intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo

(MCDOWELL J p29)

No mesmo sentido mas sobretudo em funccedilatildeo da superaccedilatildeo do psicologismo e do

relativismo histoacuterico a escola neokantista de Baden representada principalmente por

Windelband e seu disciacutepulo Rickert estende o retorno a Kant com o propoacutesito da

elaboraccedilatildeo de uma loacutegica das ciecircncias humanas O desenvolvimento da filosofia dos

valores (Werttheorie) realizado por essa escola reconhecia a necessidade de diferenciar o

conhecimento da natureza do conhecimento da cultura nesse uacuteltimo caso as leis

deveriam ser explicadas a partir dos valores que neles satildeo presentes Aqui sem duacutevida

existe um ponto de contato com o projeto de Dilthey que nos exige um breve excurso para

desenhar com linhas mais precisas a especificidade de cada projeto

A criacutetica agrave metafiacutesica inaugurada pela filosofia criacutetica de Kant (negando ao

conhecimento qualquer acesso a elementos suprassensiacuteveis) eacute absorvida por Dilthey e

pelos neokantianos contudo a epistemologia das ciecircncias histoacutericas como filosofia

criacutetica da histoacuteria ao recorrer a Kant deveria como aponta Reis (2002 p 166) ldquoou

substituir ou completar ou subordinar ou se coordenar agrave [criacutetica] de Kantrdquo e nesse sentido

eacute possiacutevel observar a fissura entre os projetos Poderiacuteamos dizer que para Dilthey eacute

necessaacuterio superar Kant pois as categorias abstratas do conhecimento satildeo tributaacuterias de

relaccedilotildees vitais primaacuterias como pensamento que emerge da proacutepria vida histoacuterica pois eacute

a vida histoacuterica em uacuteltima instacircncia que fornece ao pensamento unidade e sentido Jaacute

para os neokantianos de Baden poder-se-ia dizer que houve uma coordenaccedilatildeo com vistas

agrave complementaccedilatildeo agrave criacutetica kantiana tendo em vista que tanto para Windelband como

para Rickert a diferenccedila entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito era legiacutetima

25

para o primeiro como uma distinccedilatildeo metodoloacutegica para o segundo como distinccedilatildeo

loacutegica No interior dessa diferenccedila entre Dilthey e os neokantianos de Baden eacute possiacutevel

observar um ponto ainda mais fundamental mesmo com exigecircncias epistemoloacutegicas

objetivas em seu trabalho Dilthey natildeo aceita o pressuposto de um sujeito transcendental

e eacute antes a vivecircncia do sujeito particular histoacuterico que lhe fornece a base de sua pesquisa

jaacute para Windelband e Rickert o idealismo transcendental eacute mantido com o propoacutesito de

garantir o estatuto cientiacutefico de suas teses Assim enquanto Dilthey atraveacutes dos meacutetodos

proacuteprios faz emergir uma nova concepccedilatildeo de ciecircncia os representantes de Baden

movimentam-se em uma teoria preconcebida da ciecircncia Dito de outro modo ldquoenquanto

Dilthey buscava uma forma de liberar as ciecircncias do espiacuterito do meacutetodo das ciecircncias

naturais Windelband e Rickert procuravam uma definiccedilatildeo de ciecircncia que reconhecesse a

importacircncia dos valoresrdquo (WUR 2010p175)

De maneira geral retornando ao ponto central de nosso toacutepico poderiacuteamos

apontar que as duas escolas neokantianas se diferenciavam essencialmente acerca do

objeto de investigaccedilatildeo Na escola de Marburg Cohen direcionava suas pesquisas ao

chamado ldquofato da ciecircnciardquo e a filosofia seria uma reflexatildeo sobre o conhecimento

cientiacutefico concentrando-se na busca de uma metodologia capaz de descrever

matematicamente a constituiccedilatildeo seu objeto na medida em que seu valor de verdade

encontra-se sob bases loacutegico-matemaacuteticas Jaacute na escola de Baden influenciado pela

filosofia dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade

dos juiacutezos cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de

conciliar ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) A ciecircncia apenas

lida com questotildees de fato e se for necessaacuterio analisar a ldquovisatildeo de mundordquo seremos

obrigados a lidar com os deveres e sobretudo com valores

ldquoEsse enfoque nos valores por parte de Windelband levaraacute o neokantismo de

Baden ao desenvolvimento de uma teoria geral do juiacutezo segundo a qual os juiacutezos

cientiacuteficos (juiacutezos teoacutericos) constituem apenas um tipo de juiacutezo qual seja os

juiacutezos orientados pelo valor verdade Aleacutem dos juiacutezos teoacutericos haveria tambeacutem

juiacutezos natildeo teoacutericos como os juiacutezos eacuteticos esteacuteticos religiosos etc os quais

seriam orientados por outros tipos de valores como o bem o justo o belo o

sagrado etc e os quais diriam respeito a outras dimensotildees da experiecircncia

humana para aleacutem da ciecircncia como a moral o direito a arte a religiatildeo etc Com

isso Windelband procura reformar e ampliar o projeto de Kant Como na Criacutetica

da Razatildeo Pura Kant reduziu o papel da filosofia agrave anaacutelise do caraacuteter a priori dos

juiacutezos teoacutericos especiacuteficos das ciecircncias da natureza trata-se portanto de

completar a empresa kantiana com a anaacutelise do caraacuteter a priori dos outros tipos

26

de juiacutezos Mesmo dentro das ciecircncias eacute preciso distinguir tipos de juiacutezos o que

Windelband faraacute atraveacutes da distinccedilatildeo entre ciecircncias nomoloacutegicas e ciecircncias

ideograacuteficas e Rickert com a distinccedilatildeo entre ciecircncias naturais e ciecircncias

culturaisrdquo (RESENDE 2013p17)

Contudo se ambas escolas se diferenciam na circunspecccedilatildeo de seu objeto existe

um ponto de partida epistemoloacutegico comum o retorno a Kant que indica o lugar proacuteprio

da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias A investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo deve se voltar agrave pesquisa

cientiacutefica de como se daacute tal ou qual conhecimento mas analisar a validade do

conhecimento ou seja aquilo que torna a verdade do conhecimento possiacutevel e esse

problema eacute de ordem transcendental pois natildeo estaacute interessada nos processos cognitivos

mas na condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer processo de conhecimento

ldquoContemporacircneo de Hermann Cohen da escola de Marburg Windelband

enfatizou como este a primazia da abordagem epistemoloacutegica dando

continuidade ao projeto kantiano de limitaccedilatildeo do conhecimento buscando

assegurar a sua validade rejeitando a contingecircncia do histoacuterico e do psicoloacutegico

em prol de uma validade atemporal puramente loacutegica Cohen procurou assegurar

a validade loacutegica do conhecimento cientiacutefico na matemaacutetica procedimento que

Windelband analisa como deficiente pois embora a primeira Criacutetica possa

fundamentar a interpretaccedilatildeo de Cohen a segunda e a terceira Criacuteticas assim

como os textos sobre antropologia histoacuteria e poliacutetica requerem outra

fundamentaccedilatildeo que natildeo a matemaacuteticardquo (WU R2010p3)

A terceira fase do movimento ainda segundo Crowell inicia-se no fim da

Primeira Guerra Mundial e vai ateacute a intervenccedilatildeo Nacional Socialista no sistema

universitaacuterio alematildeo nos anos 30 ldquoRefletindo o colapso do otimismo cultural este

periacuteodo eacute caracterizado por um ataque ao idealismo acadecircmico em nome de

Lebensphilosophie (um termo geneacuterico invocando as teses filosoacuteficas lsquoagrave margemrsquo como

as de Nietzsche Bergson e Dilthey)rdquo (CROWELL2011p28) E nesse sentido as escolas

neokantianas precisaram enfrentar o conflito entre a realidade muacuteltipla e dispersa que no

mais das vezes escapa a qualquer tentativa de apreensatildeo conceitual e loacutegica e portanto

agrave consciecircncia transcendental como postulado que garante a cientificidade do projeto

filosoacutefico neokantista

ldquoNa escola de Baden Logik der Philosophie (1911) e Die Lehre vom Urteil [A

doutrina do juiacutezo] (1912) de Lask antecipam temas do terceiro periacuteodo

Abandonando a interpretaccedilatildeo imanente de Rickert do esquema forma-mateacuteria (e

tambeacutem a primazia da razatildeo praacutetica) Lask adota o ponto de partida da

transcendecircncia para dar uma interpretaccedilatildeo ontoloacutegica dos objetos como a unidade

da forma categorial e o material natildeo-loacutegico Objetos satildeo verdades em si mesmas

27

unidades de sentido natildeo cogniccedilotildees juiacutezos proposiccedilotildees Em contraste com

Cohen para quem o objeto eacute construiacutedo no juiacutezo cientiacutefico Lask argumenta que

lsquoos mais baacutesicos problemas da loacutegica revela eles mesmos somente se a cogniccedilatildeo

preacute-teoreacutetica estaacute inclusa na investigaccedilatildeorsquo Em Marburg N Hartmann oferece na

Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis [Fundamentacao para uma

Metafiacutesica do Conhecimento] (1921) uma teoria da relaccedilatildeo sujeito-objeto

ldquorealistardquo quase-fenomenoloacutegica intentada por uma justificaccedilatildeo ontoloacutegica para

o que eacute meramente pressuposto no idealismo loacutegico de Natorp a saber a

habilidade do sujeito para ldquotranscenderrdquo a sua proacutepria esfera Na filologia de

Kant H Heimsoeth comeccedila a descobrir os ldquomotivos metafiacutesicosrdquo da filosofia

criacutetica de Kant uma interpretaccedilatildeo perseguida no curso sobre Kant de Heidegger

1927-1928 e em Kant und das Problem der Metaphysikrdquo

(CROWELL2011p28)9

Eacute conhecida a interlocuccedilatildeo entre Rickert e a fenomenologia de Husserl tanto de

um lado pela criacutetica de Rickert agrave intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica e agrave identificaccedilatildeo entre sentido

(Sinn) e Significado (Bedeutung) nas Investigaccedilotildees Loacutegicas10 quanto por outro pela

criacutetica de Husserl a Rickert no que diz respeito agrave via predominantemente subjetiva das

9 ldquoIn the Baden school Laskrsquos Logik der Philosophie (1911) and Die Lehre vom Urteil (1912) anticipate

themes of the third period Abandoning Rickertrsquos immanentist interpretation of the formmaterial schema

(and so also the primacy of practical reason) Lask adopts the ldquostandpoint of transcendencerdquo to give an

ontological interpretation of the object as a unity of categorial form and alogical material Objects are

themselvesldquo truths unities of meaning not cognitions judgments propositionsrdquo Incontrast to Cohen for

whom the object is constructed in the scientific judgment Lask argues that ldquothe most basic problems of

logic reveal themselves only if pretheoretical cognition is included in the investigationrdquo In Marburg N

Hartmann offered the Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis (1921) a quasi-phenomenological

ldquorealisticrdquo theory of the subject-object relation intended to account ontologically for what is merely

presupposed in Natorprsquos logical idealism namely the subjectrsquos ability to ldquotranscendrdquo its own sphere In

Kant philology H Heimsoeth began to uncover the ldquometaphysical motivesrdquo of Kantrsquos critical philosophy

an interpretation pursued in Heideggerrsquos 1927ndash28 lecture course on Kant and in Kant und das Problem der

Metaphysikrdquoop citp28

10 Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas (sect15 da I Investigaccedilatildeo) contra a posiccedilatildeo de Frege Husserl considera os

termos Sentido (Sinn) e Significado (Bedeutung) como sinocircnimos ldquoSignificaccedilatildeo vale para noacutes aleacutem disso

como sinocircnimo de sentidordquo (HUSSERL 2012 p43) Contudo se em Ideias (1913) Husserl passa a assumir

uma camada de sentido preacutevia agrave significaccedilatildeo linguiacutestica - algo que ele natildeo soacute sugere como a ela se refere

explicitamente chamando-a de sentido preacute-expressivo- a significaccedilatildeo (Bedeutung) permanece

intimamente atrelada agrave expressatildeo (Ausdruck) que continua a ter um caraacuteter epistemoloacutegico relevante

(Cfsect124 Ideacuteias para uma fenomenologia pura e para uma fenomenologia fenomenoloacutegica) Apesar da

nova assunccedilatildeo essa camada preacute-expressiva natildeo passa a ter um teor de verdade superior agrave camada

expressiva pelo contraacuterio Husserl vai permanecer sempre comprometido com o status epistemoloacutegico da

consciecircncia e de seu acesso ao fenocircmeno Entatildeo aquilo que a consciecircncia manifesta linguisticamente

continua a ser o meio pelo qual a fenomenologia pode se realizar como ciecircncia rigorosa e somente a partir

da expressatildeo eacute possiacutevel falar em verdade na medida em que apenas a expressatildeo possui intenccedilatildeo de

significaccedilatildeo Isso porque apesar de sugerir esse sentido preacute-linguiacutestico Husserl continua voltando suas

anaacutelises agrave expressatildeo

28

primeiras publicaccedilotildees de Der Gegenstand der Erkentnnis (O objeto do conhecimento)11

Tambeacutem eacute conhecido o debate entre o idealismo criacutetico de Natorp e a fenomenologia de

Husserl

ldquoEm Ideen I (1913) Husserl afirma com um miacutenimo de ironia que ldquonoacutes somos

genuiacutenos positivistasrdquo (Hua III4639) Sob a tutela de Brentano a atitude inicial

de Husserl em direccedilatildeo ao apriorismo kantiano foi totalmente negativa e em

harmonia com o proacuteprio periacuteodo positivista inicial do neokantismo ele em vez

disso propocircs uma consideraccedilatildeo psicoloacutegica do a priori (egin Philosophie der

Arithmetik [1891]) Pelos anos de 1890 esse tipo de continuidade entre filosofia

e ciecircncia positiva foi abandonado em Marburg pelo idealismo transcendental

Husserl portanto permaneceu bem proacuteximo a Natorp que era o instrumental em

direccedilatildeo daquele caminho do psicologismo e mais tarde inspiraria o movimento

de Husserl da estaacutetica para a fenomenologia geneacutetica Pelos anos 1913 Husserl

tinha desenvolvido seu proacuteprio ldquoidealismo transcendentalrdquo fenomenoloacutegico mas

se manteve distinto em princiacutepio do Neokantismo de Marburg Enquanto esse

uacuteltimo definiu o caraacuteter cientiacutefico da filosofia em termos de

uma loacutegica transcendental uma apresentaccedilatildeo sistemaacutetica dos princiacutepios a priori

(ldquomeacutetodordquo) da ciecircncia empiacuterica o primeiro se manteve anti-sistemaacutetico modelo

empiacuterico do primeiro periacuteodo do seu fundador fundando sua teoria do a priori

sobre um recurso filosoacutefico para a intuiccedilatildeoEm seu tratamento da psicologia de

Natorp na primeira ediccedilatildeo das Investigaccedilotildees Loacutegicas(1900-1901) por exemplo

Husserl rejeita a doutrina de Natorp do puro ego da apercepccedilatildeo Na segunda

ediccedilatildeo contudo ele afirma que tem ldquouma vez conseguido encontraacute-lordquo tendo

aprendido ldquoa natildeo ser desviado de uma pura compreensatildeo do dado por meio de

formas corruptas do ego-metafiacutesicordquo (Hua XIX1374549) Se o Husserl mais

idealista natildeo mais associa o ego kantiano com o ldquocorrupto ego-metafiacutesicordquo do

idealismo especulativo sua anotaccedilatildeo ainda avanccedila em direccedilatildeo a uma afirmaccedilatildeo

bem anti-Natorpiana de ter encontrado o puro ego em uma ldquopura compreensatildeo

do dadordquo isto eacute em evidecircncia intuitiva Outra anotaccedilatildeo afirma que o puro ego eacute

ldquoapreendido na efetivaccedilatildeo de um cogito auto-evidenterdquo (Hua XIX1368544)

Natorp negou a fenomenalidade do ego ele nem pode ser objetivado nem

apresentado ele mesmo como um todo sem deixar de ser genuinamente ldquosujeitordquo

Para Husserl poreacutem esse argumento eacute meramente verbal o ego eacute aqui como um

fato um objeto em seu modo apropriado Afirmar o contraacuterio equivaleria

entregar o ego ao reino do mito (Hua XIX1373ndash76549ndash510)rdquo

(CROWELL2011 p31)12

11 Sobre a interlocuccedilatildeo entre Husserl e Rickert e como as criacuteticas e observaccedilotildees provocaram sucessivas

revisotildees dos trabalhos de ambos os autores Cf RESENDE J 2013 Primeira Parte pp 22-89

12ldquoIn Ideen I (1913) Husserl claims with only slight irony that ldquowe are the genuine positivistsrdquo (Hua

III4639) Under Brentanorsquos tutelage Husserlrsquos initial attitude toward Kantian apriorism had been

altogether negative and in harmony with neo-Kantianismrsquos own early positivist period he instead proposed

a psychological account of the a priori (egin Philosophie der Arithmetik [1891]) By the 1890s this kind

of continuitybetween philosophy and positive science had been abandoned in burg for transcendental

idealism Husserl nevertheless established close ties with Natorp who was instrumental in steering him

away from psychologism and would later inspire Husserlrsquos move from static to genetic phenomenology

By 1913 Husserl had developed his own phenomenological ldquotranscendental idealismrdquo but it remained

distinct in principle from Marburg neo-Kantianism While the latter defined the scientific character of

philosophy in terms of a transcendental logic a systematic presentation of the a priori principles (ldquomethodrdquo)

29

Contudo apesar do diaacutelogo entre esses autores o que nos interessa marcar a tiacutetulo

introdutoacuterio eacute a centralidade do debate que orientou a filosofia deste periacuteodo Seja pela

busca de juiacutezos loacutegicos-matemaacuteticos seja pela busca dos juiacutezos de valor a filosofia ainda

estaacute imersa nos problemas e na gramaacutetica da modernidade pois os debates se

movimentam no interior da teoria do conhecimento e cada escola a seu modo recorre ao

sujeito transcendental para assegurar a garantia de objetividade e validade do

conhecimento A discussatildeo inaugurada por Kant acerca da lsquocoisa em sirsquo e de seu acesso

como ideia da razatildeo redirecionam qualquer ontologia dos objetos agrave consciecircncia do

sujeito E em uacuteltima instacircncia a filosofia permanece imersa no pressuposto da existecircncia

de um fundamento uacuteltimo - baseado no sujeito e em suas possibilidades ligadas agrave

representaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos elementos do mundo externo- como condiccedilatildeo de

possibilidade que garante a seguranccedila e objetividade de todo conhecimento

II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica

Para Wilhelm Windelband (1848-1915) a filosofia deve investigar os valores das

representaccedilotildees ou seja em que medida uma representaccedilatildeo se torna uma proposiccedilatildeo

cientiacutefica Contra as teorias representacionistas do juiacutezo aqui jaacute eacute possiacutevel identificar a

clara separaccedilatildeo entre representaccedilatildeo - que seria a mera apariccedilatildeo de um objeto e suas

propriedades- e o juiacutezo ndash que possui valor de verdade e pode ser negado ou afirmado Os

juiacutezos (sejam loacutegicos esteacuteticos ou eacuteticos) natildeo satildeo neutros como a representaccedilatildeo pois

possuem embutido o que Windelband chama de apreciaccedilatildeo

ldquoTrata-se de uma distinccedilatildeo loacutegica que normalmente natildeo aparece no niacutevel da

gramaacutetica A mera conexatildeo neutra de representaccedilotildees (sujeito + predicado) eacute o que

se chama de juiacutezo jaacute o fato dessas representaccedilotildees constituiacuterem uma proposiccedilatildeo

com valor de verdade se deve agrave apreciaccedilatildeo O que Windelband quer mostrar eacute

of empirical science the former retained the antisystematic empirical cast of its founderrsquos early period

grounding its theory of the a priori on a philosophical appeal to intuition In his treatment of Natorprsquos

psychology in the first edition of the Logical Investigations (1900 1901) for example Husserl rejects

Natorprsquos doctrine of the pure ego of apperception In the second edition (1913) however he claims that he

has ldquosince managed to find itrdquo having learned ldquonot to be led astray from a pure grasp of the given through

corrupt forms of ego-metaphysicrdquo (Hua XIX1374549) If the more idealistic Husserl no longer associates

the Kantian ego with the ldquocorrupt ego-metaphysicrdquo of speculative idealism his note also advances the very

un-Natorpian claim to have found the pure ego in a ldquopure grasp of the givenrdquo that is in intuitive evidence

Another note states that the pure ego is ldquoapprehended in carrying out a self-evident cogitordquo (Hua

XIX1368544) Natorp had denied the phenomenality of the ego it can neither be objectified nor present

itself at all without ceasing to be genuinely ldquosubjectrdquo For Husserl however this argument is merely verbal

The ego is there as a fact an object in its own appropriate manner To claim otherwise is tantamount to

consigning the ego to the realm of myth (Hua XIX1373ndash76549ndash51)rdquo Op cit p31 Cf Tambeacutem

HEIDEGGER 2006 p 124

30

que nisso ordinariamente chamado de juiacutezo estaacute embutida uma apreciaccedilatildeo em

funccedilatildeo de um valor a qual natildeo se confunde com o conjunto de formaccedilotildees

conceituaisrdquo (RESENDE 2013p40)

O que estaacute em jogo nessa concepccedilatildeo eacute identificar que a apreciaccedilatildeo inerente a todo

juiacutezo natildeo diz nada acerca dos conteuacutedos representativos mas de sua pretensatildeo a um ideal

ou fim uacuteltimo como um horizonte estaacutevel do que eacute verdadeiro eacutetico ou esteacutetico e que

funcionam como paracircmetros avaliativos na accedilatildeo mesma de julgar O que estaacute implicado

nessa tese eacute a concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo As ciecircncias particulares possuem pretensatildeo de

valor universal mas essa universalidade natildeo eacute faacutetica e ldquosua necessidade natildeo eacute causal mas

apenas lsquodeve-serrsquo (sein-solle)Toda proposiccedilatildeo loacutegica eacutetica ou esteacutetica eacute impelida pelo

dever-ser universalrdquo(RESENDE2013p41) e mesmo que sua manifestaccedilatildeo seja

faticamente histoacuterica esse dever-ser da proposiccedilatildeo loacutegica deve ser reconhecido como

universal e incondicionalmente vaacutelido por qualquer ser racional ndash em uma clara assunccedilatildeo

da universalidade moral kantiana mas que agora permeia todos os juiacutezos e natildeo somente

os eacuteticos

Considerando os juiacutezos em funccedilatildeo de sua apreciaccedilatildeo Windelband descreve trecircs

tipos de juiacutezos Os juiacutezos satildeo teoacutericos (segundo a apreciaccedilatildeo verdadeirofalso) juiacutezos de

gosto (segundo a apreciaccedilatildeo belofeio) e os juiacutezos eacuteticos (segundo a apreciaccedilatildeo

bommau) Os fenocircmenos psiacutequicos satildeo as representaccedilotildees neutras em sua manifestaccedilatildeo

Assim como comportamentos da apreciaccedilatildeo os juiacutezos ganham sua forma loacutegica nas

figuras judicativas juiacutezos afirmativos juiacutezos negativos juiacutezos problemaacuteticos Essa uacuteltima

forma suspende a apreciaccedilatildeo mas pela pergunta ndash que natildeo eacute propriamente um juiacutezo-

condiciona a possibilidade de julgar portanto se refere a uma etapa mesmo que preacutevia

agrave tomada de posiccedilatildeo apreciativa

Aqui reside o ponto decisivo enquanto para Windelband a loacutegica claacutessica (de

Aristoacuteteles a Kant) se ocupou dos elementos meramente gramaticais - sendo os juiacutezos

coincidentes com as representaccedilotildees na medida que bastava afirmaacute-las ou negaacute-las - a

apreciaccedilatildeo por sua vez aparece como constituidora do conceito presente nas formaccedilotildees

gramaticais pois dizer algo eacute antes apreciar a sua posiccedilatildeo existencial (com fim ao ideal

da mateacuteria em questatildeo eacutetico esteacutetico etc) de forma a negaacute-las ou afirmaacute-las Em outras

palavras para que o conhecimento seja possiacutevel natildeo eacute suficiente a recepccedilatildeo passiva das

representaccedilotildees mas eacute fundamental uma atividade valorativa que constitui um conceito

31

no reconhecimento de seu conteuacutedo sentido e validade na sua pretensatildeo de necessidade

e universalidade Algo lsquoeacutersquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento e

ldquoa pesquisa desses valores com pretensotildees universais () eacute o objeto de estudo da

filosofiardquo (RESENDE 2013p41) Essa posiccedilatildeo seraacute retomada e desenvolvida por

Rickert

Assim como Windelband Heinrich Rickert (1863-1936) coloca o problema na

forma metodoloacutegica ou seja a pesquisa dos valores como meacutetodo de base para a filosofia

e busca assim determinar o criteacuterio de validade do conhecimento atraveacutes do elemento que

confere sua objetividade ou o que pode ser identificado como o crucial para a diferenccedila

entre os enunciados arbitraacuterios e as proposiccedilotildees vaacutelidas do conhecimento efetivo

elemento que Rickert denomina ldquoobjeto do conhecimentordquo como o tiacutetulo mesmo de sua

obra principal indica ldquoDie Gegenstand der Erkenntnisrdquo (revista em seis ediccedilotildees

diferentes entre 1892 e 1928)

Aprofundando as investigaccedilotildees de seu mestre Rickert difere conceitos

ontoloacutegicos de conceitos axioloacutegicos diferenccedila oculta na linguagem ordinaacuteria e que se

torna clara na observaccedilatildeo acerca da concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo ldquoEnquanto para Kant o

problema eacute a impossibilidade de explicar o fato de como a razatildeo teoacuterica pode ser praacutetica

para Rickert o problema eacute o fato de que a razatildeo jaacute eacute sempre praacutetica em seu uso teoacuterico

purordquo (RESENDE 2013p45) e isto natildeo pelo fato de juiacutezos teoacutericos dependerem da lei

moral mas pela convicccedilatildeo acerca dos conteuacutedos mesmos do conhecimento Se a

representaccedilatildeo satildeo processos psiacutequicos elementares e neutros a convicccedilatildeo soacute eacute possiacutevel

pela razatildeo praacutetica Para melhor visualizaccedilatildeo do problema quando digo ldquoS eacute Prdquo ou ldquoS eacute

um sujeitordquo (e aiacute estaacute tambeacutem seu conceito por exemplo ldquohomemrdquo) ou ainda ldquoP eacute um

predicadordquo (e tambeacutem utilizo um conceito por exemplo ldquoracionalrdquo) o que me autoriza

dizer ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo Segundo Rickert eacute a convicccedilatildeo praacutetica fundada no

sentimento (Gefuumlhl) de ldquovontade de verdaderdquo (Willen zur Wahrheit) que impele a busca

da verdade Eacute esse sentimento que possibilita a tomada de posiccedilatildeo que aprova ou

desaprova expresso por fim em um juiacutezo Somos impelidos pelo dever na medida em

que somos livres a buscar a verdade Mas eacute importante considerar que

ldquoApesar de o sentimento ser o paracircmetro para a tomada de posiccedilatildeo do juiacutezo o

dever natildeo deriva do sentimento pois isso seria derivar o dever do ser O dever

natildeo pode ser confundido com a necessidade causal do sentimento Na verdade

32

na proacutepria constataccedilatildeo do sentimento jaacute estaacute pressuposto o dever () Essa

verdade buscada natildeo eacute uma instacircncia ideal mas apenas um postulado um

inalcanccedilaacutevel ideal absoluto de verdade que funciona como moacutebil da atividade

cientiacutefica dos seres moraisrdquo (RESENDE 2013p46)

A razatildeo praacutetica busca a verdade como sua atividade mais proacutepria a partir do dever

impresso na sua proacutepria liberdade expresso no ato praacutetico de tomada de decisatildeo que

culmina na expressatildeo dos juiacutezos (na razatildeo teoacuterica) Se para Kant a accedilatildeo humana livre eacute

impelida a agir conforme a lei moral para Rickert a accedilatildeo humana em seu querer livre -

nem mecacircnico nem bioloacutegico - de um ideal de perfeiccedilatildeo da verdade eacute impelida a agir em

funccedilatildeo do conhecimento e da ciecircncia

Na tentativa de afastar as interpretaccedilotildees psicologistas ou idealistas (natildeo

cientiacuteficas) de sua teoria o valor de verdade para Rickert que eacute garantido pelo dever-ser

eacute observado na evidecircncia como manifestaccedilatildeo psiacutequica do dever mas que pelo seu caraacuteter

de necessidade ultrapassa o indiviacuteduo singular O sentimento de prazer ou desprazer dessa

evidecircncia na estrutura psiacutequica que posiciona o ato praacutetico de tomada de posiccedilatildeo eacute

reconhecido pela sua necessidade transcendente e eacute o elemento do esquema cognitivo que

ldquoestabelece a ponte entre os processos psiacutequicos reais em sua singularidade e

contingecircncia com a universalidade e necessidade transcendental do deverrdquo (RESENDE

2013p47) Mesmo com essas colocaccedilotildees e sobretudo com a postulaccedilatildeo que o dever natildeo

pode ser derivado do ser pelo seu caraacuteter mesmo de liberdade Rickert foi aproximado de

um certo ldquopsicologismo voluntaristardquo pois o valor de verdade na realidade soacute poderia ser

derivado dos processos psiacutequicos tendo em vista que ldquoo dever eacute uma norma psicoloacutegica

que soacute tem sentido lsquopararsquo um sujeito empiacutericordquo (RESENDE 2013p47) E ainda por

mais que sua meta fosse buscar a universalidade e necessidade dos valores ainda assim

esses valores estariam reduzidos ldquoagrave contingecircncia e temporalidade dos processos

psiacutequicos ou seja reduzindo o valor ao serrdquo (RESENDE 2013p48)

Mas como a filosofia dos valores desses autores lida com as pesquisas histoacutericas

enquanto criacutetica do historicismo Para Windelband as ciecircncias positivas satildeo ciecircncias

nomoteacuteticas ou seja operam por uma abstraccedilatildeo que busca o conhecimento universal

atraveacutes da estabilidade de suas leis Jaacute as ciecircncias histoacutericas satildeo ideograacuteficas cujo juiacutezos

natildeo descrevem uma coisa ou estados de coisa enquanto aquilo que eacute mas possuem como

objeto valores que possuem (ou natildeo) validade Validade oferecida em uacuteltima instacircncia

33

pelo juiacutezo em sua forma fundamental como juiacutezo apreciativo Analisar esses valores

requer uma metodologia proacutepria baseada na pesquisa da valoraccedilatildeo como forma de

conhecimento

Para Rickert a filosofia dos valores eacute o fundamento universal para os significados

da histoacuteria e aqui reside o ponto crucial a busca de um ideal absoluto (vontade de

verdade) deve atuar como medida para a realidade individual e histoacuterica sem a qual natildeo

podemos significar a interpretaccedilatildeo da vida histoacuterica e cultural na sua singularidade A

distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor

(Wert) segundo Rickert levaria a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo

de conceitos (Begriffsbildung) e que natildeo se trata de um conhecimento no campo

ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto pelo conceito determinado de maneira formal no

espaccedilo loacutegico-axioloacutegico

Um evento histoacuterico natildeo possui relevacircncia por si soacute eacute a partir da valoraccedilatildeo que

um fato histoacuterico se ldquodiferencia substancialmente de outros na heterogeneidade contiacutenua

a partir de sua individualidaderdquo (Wu R 2010p180) Ou seja o que doa sentido a um

fato histoacuterico na sua individualidade ndash que se destaca dos fluxos indistintos e

heterogecircneos dos acontecimentos - eacute uma realizaccedilatildeo teoacuterica que o valoriza e lhe confere

sentido A histoacuteria eacute portanto possiacutevel e existe como objeto capaz de ser analisado como

ciecircncia pelos valores atribuiacutedos teoricamente a seus eventos

III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos

A crise no modelo teoacuterico tradicional no final do seacuteculo XIX (que apontava

qualquer teoria filosoacutefica como uma lsquocrenccedila justificadarsquo) a reconduccedilatildeo pelos

psicologistas agrave articulaccedilatildeo de argumentos logicamente coerentes baseados na consciecircncia

particular - em que ateacute mesmo os princiacutepios loacutegicos seriam expressatildeo da forma de

conhecimento possiacutevel pela particularidade daquele que conhece- culminam no projeto

husserliano de uma filosofia pura e sem pressupostos

Para Husserl a psicologia baseada no modelo cientiacutefico das ciecircncias naturais leva

agrave particularizaccedilatildeo dos conteuacutedos do conhecimento e nesse modelo a psicologia natildeo

consegue lidar com a universalidade do conteuacutedo dos princiacutepios tornando a relaccedilatildeo entre

34

a realidade e o conhecimento incompatiacuteveis Por mais que a experiecircncia seja particular

as investigaccedilotildees de Husserl o levaram a considerar que a existecircncia humana estaacute em

contato com conteuacutedos que natildeo satildeo particularizaacuteveis A psicologia natildeo deixa clara a

transiccedilatildeo das conexotildees psicoloacutegicas do pensar e a unidade loacutegica de seu conteuacutedo O que

estaacute em jogo para Husserl eacute portanto a relaccedilatildeo entre a subjetividade do conhecer e a

objetividade do conteuacutedo de pensamento

A predominacircncia neokantiana no horizonte universitaacuterio alematildeo e sua maacutexima de

retorno a Kant mantecircm no interior da investigaccedilatildeo termos como por exemplo

lsquoapercepccedilatildeorsquo e lsquorepresentaccedilatildeorsquo Se o neokantismo se volta a Kant tambeacutem sucumbe a

seus limites e nesse movimento revela a insuficiecircncia da investigaccedilatildeo filosoacutefica

condicionada aos sistemas anteriores Para Husserl a filosofia como ciecircncia autocircnoma

requer natildeo um retorno a qualquer teoria mas agraves coisas que agora devem orientar o

pensamento

A tradiccedilatildeo filosoacutefica eacute marcada por uma pretensatildeo a busca da verdade para aleacutem

do que acontece na realidade dos fenocircmenos que nos satildeo acessiacuteveis Ao hipostasiar a

realidade do ser atraveacutes de posturas realistas ou idealistas para assim ter acesso aos

fenocircmenos a tradiccedilatildeo sempre considerou o ser do fenocircmeno para aleacutem do proacuteprio

fenocircmeno13 De maneira diversa Husserl busca os objetos nos proacuteprios campos

fenomecircnicos na medida em que aparecem na dimensatildeo do conhecimento a partir da

proacutepria atividade de pensamento ou seja o objeto que aparece na atividade de

pensamento soacute eacute encontrado na proacutepria atividade por isso natildeo haacute busca ou hipoacutestase

exterior agrave consciecircncia Mas isso natildeo se daacute porque a consciecircncia em seus atos produza ou

determine os significados dos objetos mas sim porque os atos das vivecircncias abrem espaccedilo

para que o objeto se determine no ato mesmo a partir de sua autonomia frente a qualquer

subjetividade particular de pensamento Mas o que queremos dizer com lsquoum objeto que

se determina no ato mesmorsquo Aqui eacute importante destacar sempre que possiacutevel um mal-

entendido em constante revisatildeo a filosofia de Husserl natildeo consiste em um sistema

fechado de proposiccedilotildees as quais poderiacuteamos encaminhar de forma retiliacutenea e deduzir suas

conclusotildees Aqui nessa breve introduccedilatildeo agraves intenccedilotildees do pensamento de Husserl

apresentamos em linhas gerais seu projeto e nos movimentamos a partir do segundo

13 Cf CASANOVA 2013 pp-76-80

35

volume das Investigaccedilotildees Loacutegicas de 1901 e das Ideacuteias para uma fenomenologia pura e

para uma filosofia fenomenoloacutegica publicadas em 1913

Depois dessas consideraccedilotildees atraveacutes das quais foi posta em jogo a noccedilatildeo de um objeto

que se determina no ato mesmo conforme jaacute explicitado nas Investigaccedilotildees eacute requerido

passar agrave explicaccedilatildeo da noccedilatildeo conforme elaborada na obra posterior Ideacuteias O

pensamento de Husserl eacute marcado por uma orientaccedilatildeo especiacutefica a fenomenoloacutegica Essa

orientaccedilatildeo natildeo desconsidera as vaacuterias formas pelas quais podemos ter acesso a objetos

seja pela vida corrente e cotidiana seja pela via cientiacutefica pois ambas estatildeo de acordo

com a orientaccedilatildeo natural A orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica por sua vez se deteacutem no objeto

intencional ou seja o objeto que visado se manifesta agrave consciecircncia conforme seu modo

de doaccedilatildeo fenomecircnico14 Natildeo se trata de um idealismo subjetivo conforme por exemplo

Berkeley mas de uma necessidade de acesso agraves coisas mesmas sem qualquer

pressuposiccedilatildeo sem qualquer movimento que ponha o conhecimento fora da realidade e

que ao mesmo tempo natildeo recaia na descriccedilatildeo ingecircnua da realidade como um conjunto de

impressotildees sensiacuteveis O fenocircmeno que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute

sempre uma doaccedilatildeo com sentidosignificado ldquopois se eacute verdade que os fenocircmenos se

datildeo a noacutes por intermeacutedio dos sentidos eles se datildeo sempre como dotados de um sentido

ou de uma essecircncia Eis porque () a intuiccedilatildeo seraacute uma intuiccedilatildeo da essecircncia ou do

sentidordquo (DARTIGUES 1973p21)

Ao contraacuterio dos neokantianos o modo como Husserl tratou a realidade tornou

improacuteprio o retorno agraves concepccedilotildees filosoacuteficas anteriores Elas natildeo forneciam mais um

caminho vaacutelido para o questionamento filosoacutefico Natildeo era mais suficiente o retorno a

qualquer sistema filosoacutefico fosse para renovaacute-lo - sob esse novo horizonte cientiacutefico -

fosse para retomar seus fundamentos com a finalidade de posicionar a filosofia como

braccedilo de apoio da ciecircncia A fenomenologia pura (puramente descritiva) pertence agrave

pesquisa de uma teoria do conhecimento objetiva na medida em que o modo de apariccedilatildeo

dos fenocircmenos nas vivecircncias do pensamento e do conhecimento seraacute sempre o objeto da

fenomenologia

14 Cf Ideacuteias I Capiacutetulo I

36

A concepccedilatildeo de fenocircmeno na modernidade ganhou diversas acepccedilotildees desde Bacon

ateacute Wolff passando por Descartes e Hobbes Segundo uma noccedilatildeo do senso comum

fenocircmeno eacute a experiecircncia pura e simples do fato considerada sobretudo como

manifestaccedilatildeo empiacuterica da realidade que natildeo pode ser equiparada agrave verdade15 Jaacute para Kant

- na delimitaccedilatildeo feita na primeira Criacutetica do espaccedilo do saber cientiacutefico possiacutevel -

fenocircmeno eacute o objeto especiacutefico do conhecimento humano que aparece sob condiccedilotildees

particulares da estrutura cognosciacutevel do homem a saber de um lado o objeto do

conhecimento depende das bases representativas que satildeo organizadas pelas categorias do

entendimento e de outro dos dados fornecidos pela sensibilidade Resumindo o objeto

de conhecimento para Kant estaacute delimitado pela relaccedilatildeo entre intuiccedilatildeo e conceito Kant

distingue o fenocircmeno - aquilo que eacute possiacutevel conhecer - do nocircumeno aquilo que natildeo se

conhece mas que pode ser pensado enquanto ideia da razatildeo como ldquocoisa em sirdquo Sem

jamais ultrapassar os dados da experiecircncia o sentido fenomenoloacutegico de fenocircmeno de

Husserl supera a distinccedilatildeo kantiana entre nocircumeno e fenocircmeno O fenocircmeno eacute algo que

manifesto revela em si mesmo seu conteuacutedo loacutegico ou essencial Mas a manifestaccedilatildeo do

fenocircmeno deve ser ldquodepuradardquo de qualquer psicologismo pois natildeo deve apenas ser

considerada como manifestaccedilatildeo particular A investigaccedilatildeo filosoacutefica ou melhor a

investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica aqui eacute exigida como meacutetodo para lsquopurificarrsquo o conteuacutedo

objetivo do ato subjetivo

ldquoO caminho que Husserl busca e comandaraacute ateacute em suas uacuteltimas obras a sua

concepccedilatildeo de fenomenologia eacute uma via meacutedia entre esses dois escolhos como

pensar segundo a sua natureza e em cada uma de suas nuanccedilas ndash e portanto sem

jamais ultrapassaacute-los ndash os dados da experiecircncia em sua totalidade Todo o

fenocircmeno e nada mais que o fenocircmeno poder-se-ia dizer O postulado que funda

tal empresa eacute que o fenocircmeno estaacute penetrado no pensamento de logos e que por

sua vez o logos se expotildee e soacute se expotildee no fenocircmeno Apenas sob essa condiccedilatildeo

eacute possiacutevel uma fenocircmeno-logiardquo (DARTIGUES 1973p20)

Aluno de Brentano Husserl ainda radicaliza a teoria da intencionalidade de seu

professor e natildeo mais considera que a consciecircncia se dirija pelo ato intencional agraves

representaccedilotildees empiacutericas da consciecircncia mas agrave objetividade das proacuteprias coisas

detectaacutevel no ato expressivo Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas Husserl apresenta a consciecircncia

como sempre ldquovoltada ardquo ou seja como uma consciecircncia intencional superando natildeo soacute

a noccedilatildeo de consciecircncia como o lsquolugarrsquo das representaccedilotildees que devem ser organizadas por

15 Cf AbbagnoN 2003 p436 Nesse sentido tambeacutem Cf Heidegger 2006 pp26-27

37

exemplo por aparatos internos a priori como tambeacutem qualquer orientaccedilatildeo psicologista

do conhecimento Se a fenomenologia recorre agrave psicologia eacute apenas para a investigaccedilatildeo

descritiva das vivecircncias intencionais e a psicologia descritiva na medida em que se

configura como descriccedilatildeo empiacuterica (cientiacutefica-natural) natildeo pode ser confundida com a

fenomenologia Esta ao contraacuterio mesmo repousando sobre a investigaccedilatildeo descritiva das

vivecircncias intencionais estrato mesmo da psicologia ainda assim possui como

particularidade a descriccedilatildeo pura excluindo qualquer concepccedilatildeo naturalista16

Mas afinal do que se trata nesta ldquodescriccedilatildeo purardquo Eacute na atividade compreensiva em

geral (descriccedilatildeo das vivecircncias intencionais) que Husserl buscaraacute a origem do

conhecimento na anaacutelise dos atos de constituiccedilatildeo de conhecimento dos objetos que ele

vai procurar descrever os movimentos ideais implicados em todo movimento intencional

As investigaccedilotildees gnosioloacutegicas da loacutegica pura expostas nas Investigaccedilotildees loacutegicas

querem lanccedilar as bases e fundamentos seguros como alternativas agraves teorias do

conhecimento empiristas ceacuteticas metafiacutesico-realista e psicologista pretendendo

fundamentar uma verdadeira teoria do conhecimento a partir da filosofia puramente

cientiacutefica Essa anaacutelise se realiza a partir das expressotildees levando em consideraccedilatildeo o

aspecto loacutegico da vivecircncia

ldquoA Fenomenologia analiacutetica de que o loacutegico necessita para os seus trabalhos de

preparaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo diz respeito entre outras coisas e desde logo agraves

lsquorepresentaccedilotildeesrsquo e mais precisamente agraves representaccedilotildees que satildeo expressas

Nestas complexotildees poreacutem o seu interesse primaacuterio vai para as vivecircncias que

estatildeo na funccedilatildeo de significaccedilatildeo as quais se pensam agraves lsquosimplesrsquo expressotildees No

entanto natildeo se pode descurar tambeacutem o lado linguiacutestico-sensiacutevel da complexatildeo

(aquilo que nela constitui a lsquosimplesrsquo expressatildeo) e o modo do seu entrelaccedilamento

com o ato de significar que o anima Eacute bem sabido quatildeo facilmente a anaacutelise das

significaccedilotildees costuma deixar-se guiar pela anaacutelise gramatical de um modo

completamente inadvertido Certamente que dada a dificuldade da anaacutelise direta

das significaccedilotildees seraacute bem-vindo todo e qualquer meio mesmo que imperfeito

de antecipar indiretamente os seus resultados [as significaccedilotildees que o anima] mas

mais ainda que por causa dessa ajuda positiva a anaacutelise gramatical torna-se

importante pelos enganos que traz consigo quando se substitui agrave anaacutelise

propriamente ditas das significaccedilotildeesrdquo (HUSSERL 2012p11)

16 Cf HusserlE Investigaccedilotildees Loacutegicas VolII Introduccedilatildeo sect 6- Aditamentos ndash 3ordm Aditamento

38

A anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a complexidade da vida

intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo eacute possiacutevel a partir da anaacutelise das estruturas

ideais que se apresentam nas vivecircncias da consciecircncia na forma das expressotildees

significativas E se ldquoos objetos para os quais a Loacutegica pura estaacute voltada satildeo desde logo

dados sob vestes gramaticaisrdquo (HUSSERL 2012p3) eacute porque esses dados satildeo embutidos

nas vivecircncias psiacutequicas concretas que ldquotanto em funccedilatildeo de intenccedilatildeo de significaccedilatildeo como

na do preenchimento de significaccedilatildeo () correspondem a certas expressotildees linguiacutesticas

e formam com elas uma unidade fenomenoloacutegicardquo (HUSSERL 2012p3)

O que estaacute em jogo como tarefa da fenomenologia eacute - a partir da unidade entre

intuiccedilatildeo (atividade da consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da

consciecircncia e o preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor

a unidade fenomenoloacutegica desses atos apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo

e preenchimento de significaccedilatildeo para assim encontrar suas distinccedilotildees ideais presentes na

significaccedilatildeo

ldquoDe fato sempre que se trata de conceitos juiacutezos raciociacutenios a Loacutegica pura tem

que ver exclusivamente com estas unidades ideais que denominamos aqui

significaccedilotildees e na medida em que nos esforccedilamos por extrair a essecircncia ideal das

significaccedilotildees dos seus viacutenculos psicoloacutegicos e gramaticais na medida em que

para aleacutem disso temos em vista clarificar as relaccedilotildees aprioriacutesticas de adequaccedilatildeo

agrave objetividade significativa fundadas nessa essecircncia estamos jaacute no domiacutenio da

Loacutegica purardquo(HUSSERL 2012p76)

Enquanto as ciecircncias se movem em direccedilatildeo agraves vaacuterias regiotildees de objetos na

tentativa de compreensatildeo da realidade do mundo Husserl compreende a orientaccedilatildeo

filosoacutefica como investigaccedilatildeo da possibilidade do conhecimento objetivo E nesse sentido

a filosofia de Husserl permanece nos limites de uma criacutetica ao conhecimento

transcendental sem que seu meacutetodo se comprometa com qualquer perspectiva ontoloacutegica

Natildeo porque negue a realidade externa mas porque a reflexatildeo fenomenoloacutegica segundo

Husserl deveria estar direcionada agrave anaacutelise das unidades significativas (Investigaccedilotildees

loacutegicas) e agrave descriccedilatildeo eideacutetica da consciecircncia (Ideacuteias) com o compromisso de esclarecer

a vivecircncia intencional de forma que assim fosse possiacutevel esclarecer as operaccedilotildees de toda

e qualquer consciecircncia inclusive nossa orientaccedilatildeo preacute-reflexiva natural

O vigor da ideia filosoacutefica de ciecircncia tal como elaborada por Husserl residia na

restriccedilatildeo da investigaccedilatildeo agrave coisa mesma A fenomenologia husserliana se restringiu agraves

39

coisas enquanto somos conscientes delas Portanto sem remeter-se ao primado da

autoconsciecircncia da filosofia moderna ela rompeu com a ideia de representaccedilatildeo e por

consequecircncia de adequaccedilatildeo Pois a consideraccedilatildeo a priori da consciecircncia de um sujeito no

modo de questionamento epistemoloacutegico moderno tradicional trazia consigo um

problema inerente a esta pressuposiccedilatildeo a saber a representaccedilatildeo dos elementos externos

pelo aparato interno do sujeito devia ser a cada vez avaliada em sua validade

epistemoloacutegica em sua adequaccedilatildeo agrave consciecircncia Esse problema derivado da

representaccedilatildeo eacute consequecircncia do modo de considerar o sujeito como outro frente ao

mundo A consequecircncia dessa cisatildeo eacute que as representaccedilotildees internas natildeo seriam

suficientes para confirmar a existecircncia do mundo exterior e incapazes de fornecer

elementos conclusivos acerca dos modos de acesso a esse mundo

Husserl aprendeu com Brentano a atitude de recusa a todo e qualquer pressuposto

Mesmo Brentano considerando as representaccedilotildees como uma das bases da atuaccedilatildeo

psiacutequica indica que ldquoa estrutura baacutesica do psiacutequico o que a toda vivecircncia seja inerente

algo objetual a denomina Brentano inexistecircncia intencional Intentio eacute uma expressatildeo

da escolaacutestica que significa dirigir-se a Brentano fala da inexistecircncia intencional do

objetordquo (HEIDEGGER 2006 p39) Nesse sentido a intencionalidade na fenomenologia

husserliana voltada agrave anaacutelise expressiva e natildeo agraves representaccedilotildees torna a questatildeo do

mundo interior ou exterior secundaacuteria O que estaacute em jogo eacute a orientaccedilatildeo da pesquisa pela

condiccedilatildeo do conhecimento que natildeo exclui o mundo e as orientaccedilotildees naturais A suspensatildeo

do mundo exterior na orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica deve-se ao fato de que nesse tipo de

investigaccedilatildeo natildeo se tem nada a dizer sobre ele E nesse sentido a fenomenologia

husserliana que oferece um novo vigor a filosofia do final do seacuteculo XIX apresenta

tambeacutem seu proacuteprio limite

ldquoEm verdade aquela ideia do conhecimento da essecircncia que deveria renovar o

campo do filosofar aquela anaacutelise descritiva do acircmbito imenso da lsquoconsciecircnciarsquo

que teria de anteceder todo conhecimento cientiacutefico e conter todos os seus

pressupostos a priori tinha um limite para aleacutem do qual nem mesmo a

fenomenologia poderia ultrapassar Mesmo um conhecimento fenomenoloacutegico

consumado de todas as essencialidades- dentre as quais tambeacutem se encontram no

campo moral o reino dos lsquovalores ndash natildeo poderia atingir a realidade efetiva do ente

efetivamente real a realidade efetiva da consciecircncia pensante tanto quanto a

realidade efetiva da experiecircncia que ela faz Por mais que a distinccedilatildeo entre o fato

e a essecircncia tenha demarcado o grande campo de pesquisa da fenomenologia ante

as ciecircncias particulares e liberado um trabalho metodologicamente

autoconsciente a factualidade do factual a facticidade a existecircncia natildeo se mostra

40

apenas como algo derradeiro tardio contingente determinado em termos de

conteuacutedo pela intelecccedilatildeo da essecircncia e abarcado segundo toda a sua determinaccedilatildeo

por ela Ao contraacuterio elas tambeacutem se mostram como algo primeiro algo que se

acha agrave base que natildeo pode ser alijado pelo pensamento que suporta por sua vez

todas as intelecccedilotildees da essecircnciardquo (GADAMER 2012p148)

A reduccedilatildeo fenomenoloacutegica natildeo visa reconduzir os fenocircmenos agrave unidade de um

elemento comum mas reconduzir a consciecircncia aos fenocircmenos que se datildeo por si mesmos

e na medida que assim o faz reconhece a existecircncia da base factual na qual o fenocircmeno

pode vir agrave consciecircncia e como um elefante na sala de estar natildeo pode mais ser ignorada

Em outras palavras a investigaccedilatildeo loacutegica o acesso agrave idealidade loacutegica de toda

significaccedilatildeo baseada - mas natildeo reduzida ndash nos atos das vivecircncias psiacutequicas concretas

aponta em uacuteltima instacircncia (mesmo na tentativa de desvio dessa situaccedilatildeo) para o caraacuteter

histoacuterico ou ocasional daquele que pode intencionar significaccedilotildees Mas Husserl natildeo havia

reconhecido esse problema ao diferenciar as expressotildees flutuantes das significaccedilotildees

ideais jaacute na primeira investigaccedilatildeo loacutegica17 O problema neste caso como aponta

Gadamer estaacute exatamente no agente do ato de pensamento pois a base que natildeo pode ser

afastada e que suporta as intelecccedilotildees da essecircncia estaacute necessariamente remetida agravequele

que na accedilatildeo do ato de intelecccedilatildeo eacute finito e histoacuterico ou seja a direccedilatildeo puramente teoacuterica

da fenomenologia de Husserl natildeo deixa de apontar a condiccedilatildeo histoacuterica daquele que pode

realizar qualquer teoria elemento que vai se tornar decisivo para a fenomenologia de

Heidegger

ldquoA doutrina do juiacutezo e de sua fundamentaccedilatildeo a anaacutelise claacutessica da percepccedilatildeo a

distinccedilatildeo loacutegica entre expressatildeo e significado mas sobretudo tambeacutem aquela

17 No sect26 da I Investigaccedilatildeo Loacutegica ldquoExpressotildees essencialmente ocasionais e expressotildees objetivasrdquo

Husserl analisa significaccedilotildees que podem variar de caso a caso ou significaccedilotildees variantes Ele diferencia as

ldquoexpressotildees essencialmente subjetivas e ocasionaisrdquo (por exemplo ldquoeu desejo sorte a vocecircrdquo ou ldquoisto [aqui

que vejo agora] eacute um catildeordquo) das ldquoexpressotildees objetivasrdquo nas quais o que estaacute em questatildeo eacute o teor sonoro

significativo sem necessidade de se ter agrave vista a pessoa que expressa ou a circunstacircncia da expressatildeo Desde

os paraacutegrafos iniciais da primeira investigaccedilatildeo Husserl se preocupa em indicar que a palavra possui ldquofunccedilatildeo

de significaccedilatildeordquo isso quer dizer que a significaccedilatildeo natildeo eacute sustentada pela palavra mas que ela remete a

significaccedilatildeo agrave coisa mesma e nesse sentido para Husserl a ocasionalidade da expressatildeo natildeo prejudica a

unidade ideal de cada uma das expressotildees Contudo o autor natildeo deixa de reconhecer a esfera das expressotildees

ocasionais referidas ao sujeito e sua especificidade como falante identificadas por determinaccedilotildees como

aqui laacute ontem amanhatilde e ainda construccedilotildees expressivas com artigos definidos Essas expressotildees trazem a

referecircncia ao proacuteprio falante e agrave sua situaccedilatildeo ldquode tal maneira que a significaccedilatildeo autecircntica da palavra se

constitui pela primeira vez com base na respectiva representaccedilatildeo desse lugar Por um lado a significaccedilatildeo

eacute sem duacutevida genericamente conceitual porquanto aqui denomina em geral um lugar enquanto tal mas

a este geral junta-se a representaccedilatildeo direta do lugar variando de caso para caso que sob dadas

circunstacircncias do discurso eacute apontada atraveacutes desta representaccedilatildeo conceitual indicativa do aqui e lhe estaacute

subordinadardquo (HUSSERL 2012 p71)

41

descriccedilatildeo incomparavelmente exata e penetrante da consciecircncia interna do tempo

na qual precisaria se construir todo sentido de duraccedilatildeo e de validade atemporal ndash

todos esses eram temas fenomenoloacutegicos de Husserl que emergiram de um

intuito fundamental puramente teoacuterico e que estavam cindidos por um hiato

ontoloacutegico do ponto de partida de Heidegger da experiecircncia pragmaacutetica da vida

da percepccedilatildeo dirigida pelo significado praacutetico do ente agrave matildeo da temporalidade

do ser-aiacute a temporalidade essa que se tomava como movimento da

existecircnciardquo(GADAMER 2012 p154)

Desse modo Heidegger busca um acesso agrave mostraccedilatildeo dos fenocircmenos a partir da

temporalidade existencial do homem e assim compreender como a significaccedilatildeo de todo

e qualquer ente estaacute remetida agrave facticidade (Faktizitaumlt) daquele ente em que algo como

um fenocircmeno pode vir ao encontro

A partir desta breve apresentaccedilatildeo vamos investigar no proacuteximo capiacutetulo (1) A

criacutetica feita por Heidegger a essas trecircs tentativas de superaccedilatildeo da crise da filosofia no

seacuteculo XIX a) a posiccedilatildeo essencialmente teoacuterica da filosofia dos valores e sua

impossibilidade de se apresentar como filosofia originaacuteria b) ao primado da consciecircncia

em Husserl c) a determinaccedilatildeo metodoloacutegica (teoacuterica) da hermenecircutica de Dilthey

Tentaremos compreender (2) como essa problemaacutetica da virada do seacuteculo XIX para o

seacuteculo XX forneceu os princiacutepios que motivaram o pensamento heideggeriano agrave busca

da filosofia como ciecircncia originaacuteria e a partir da anaacutelise dos limites das ditas teorias a

questatildeo do sentido do conhecimento se mostra articulada com outra questatildeo ainda mais

fundamental o sentido do ser e (3) como a recepccedilatildeo da fenomenologia de Husserl por

Heidegger - considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio do meacutetodo fenomenoloacutegico

como indicativo-formal - evidencia a imersatildeo de todo significado em um contexto

hermenecircutico historicamente dado

42

Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica

Mas a vida captada em sua forma irredutiacutevel jaacute sem ornato ou comentaacuterio meloacutedico vida a que aspiramos como paz no cansaccedilo (natildeo a morte) vida miacutenima essencial um iniacutecio um sono

menos que terra sem calor sem ciecircncia nem ironia o que se possa desejar de menos cruel a vida em que o ar natildeo respirado mas me envolva () Natildeo o morto nem o eterno ou o divino apenas o vivo o pequenino calado indiferente e solitaacuterio vivo Isso eu procuro (Vida Menor Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

No capiacutetulo anterior indicamos que o desenvolvimento das ciecircncias positivas

particulares no final do seacuteculo XIX emerge a discussatildeo acerca do sentido e possibilidade

do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo buscou uma filosofia

propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana a autonomia da filosofia

frente agrave ciecircncia positiva E a contribuiccedilatildeo de Dilthey cujo pensamento mesmo imerso

nas exigecircncias positivistas de seu tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda

interpretaccedilatildeo e apresenta o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico

Acreditamos que percorrendo esse caminho podemos compreender no presente capiacutetulo

como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere Heidegger no interior da referida

discussatildeo pelo sentido do conhecimento18 Mas ao mesmo tempo tentaremos mostrar

18 A inserccedilatildeo de Heidegger na discussatildeo pelo sentido do conhecimento que apontamos aqui eacute diferente da

proposta de Crowell (2001) Grosso modo o argumento central de Crowell que atravessa todo o livro eacute a

negaccedilatildeo de uma ruptura radical da abordagem hermenecircutica de Heidegger ndash inclusive no projeto da

ontologia fundamental de Ser e Tempo - frente agrave fenomenologia transcendental de Husserl Crowell

reconhece que os dois projetos natildeo satildeo idecircnticos no entanto no interior do desenvolvimento de seu

pensamento Heidegger teria dado certa continuidade ao projeto husserliano na medida em que ainda pensa

no caraacuteter cientiacutefico da filosofia fenomenoloacutegica (ver pp 129-132) Nossa intenccedilatildeo natildeo eacute travar uma

polecircmica com Crowell pois perderiacuteamos a centralidade do tema de nossa dissertaccedilatildeo Sobre aquele tema

mais especiacutefico conferir tambeacutem Gadamer Verdade e Meacutetodo [260] que faz referecircncia a ele dizendo que

a problemaacutetica de Ser e Tempo natildeo escapa por completo agrave reflexatildeo transcendental Natildeo temos duacutevida de

que Heidegger estaacute comprometido com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do sentido do

conhecimento na medida em que teve profundo contato natildeo soacute com o pensamento neokantiano ndash sobretudo

atraveacutes de Rickert - mas tambeacutem com a fenomenologia de Husserl Ora ambas as correntes estavam

43

como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva (considerando o modo de concepccedilatildeo

originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal) e a introduccedilatildeo do elemento

hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com Heidegger a pergunta

fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do conhecimento e passou a

ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto o argumento central de

nosso segundo capiacutetulo eacute que a abordagem hermenecircutica de Heidegger que se daacute no

interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do

conhecimento ao sentido do ser

Aqui nos eacute necessaacuteria uma breve consideraccedilatildeo Eacute puacuteblica a preocupaccedilatildeo filosoacutefica

de Heidegger com a ontologia jaacute desde seu contato com o livro de Brentano Percurso

descrito pelo proacuteprio autor em Meu caminho para a fenomenologia (Mein Weg in die

Phaumlnomenologie 1963)

ldquoA partir de algumas indicaccedilotildees extraiacutedas de revistas filosoacuteficas tinha averiguado

que o modo de pensar de Husserl fora bastante influenciado por Franz Brentano

cuja tese de doutoramento intitulada Da muacuteltipla significaccedilatildeo do ente em

Aristoacuteteles (1862) tinha sido justamente desde 1907 o guia e o criteacuterio das

minhas primeiras e desajeitadas tentativas de penetrar na filosofia De uma forma

bastante imprecisa o que me movia era a seguinte reflexatildeo lsquose o ente se diz com

significados muacuteltiplos qual seraacute entatildeo o significado fundamental e condutor O

que significa serrsquordquo (HEIDEGGER 2009 p3)

Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido

de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a

teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo

do sentido de ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir

da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para

uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no

curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER (GA20) 2006 p122)19

o elemento hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave

profundamente engajadas com o problema do conhecimento Nosso argumento central ndash defendido no

primeiro capiacutetulo ndash eacute o de que acontece uma virada A abordagem hermenecircutica de Heidegger faz mudar

a questatildeo pelo sentido do conhecimento para a questatildeo do sentido do ser dos entes em geral Revelando

assim o caraacuteter derivado (de uma situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento Cf STEIN E

2008 4ed pp21-30 19 ldquoLa pregunta por el ser surge de la criacutetica inmanente al curso da la propia investigacioacuten

fenomenoloacutegicaresponder en parte a ella constituye el verdadeiro assunto de estas leccionesrdquo opcit p122

44

fenomenologia que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos

fenocircmenos em seu ser Seraacute essa a direccedilatildeo de nosso capiacutetulo

Nele ainda natildeo entraremos na obra central de nosso trabalho abordaremos algumas

preleccedilotildees entre os anos de 1919 e 192520 para expor como a partir da discussatildeo acerca

do sentido do conhecimento e do lugar proacuteprio agrave filosofia Heidegger se posiciona frente

agraves tentativas de pensamento dos Neokantianos de Dilthey e de Husserl Nossa intenccedilatildeo

natildeo eacute interpretar as referidas preleccedilotildees como processos evolutivos de pensamento de

nosso autor como que para esclarecer em termos de causa e efeito a publicaccedilatildeo posterior

ldquomais madurardquo de Ser e Tempo Mas antes destacar como as questotildees desses textos

acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a problemaacutetica cujo

desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927

I - Os limites da filosofia dos valores

No primeiro semestre do poacutes-guerra num contexto de recuperaccedilatildeo da

normalidade da vida cotidiana que obviamente se estendia ao ensino universitaacuterio ocorre

a preleccedilatildeo A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo (GA5657) tiacutetulo

uma das primeiras liccedilotildees do jovem professor em Friburgo em 1919 as quais pretendiam

desenvolver e solucionar parcialmente a ideia de ciecircncia que persegue uma posiccedilatildeo

metodoloacutegica genuiacutena natildeo desfigurada ou seja natildeo afetada por nenhuma teoria e livre

dos prejuiacutezos herdados Para tanto exigia-se voltar agrave esfera da simples consciecircncia

imediata da vida

ldquoA ideia cientiacutefica perseguida eacute tal que uma vez alcanccedilada uma posiccedilatildeo

metodoloacutegica verdadeiramente genuiacutena somos forccedilados a sair e dar um passo

aleacutem de noacutes mesmos para voltar metodologicamente naquela esfera que sempre

permanece alheia a problemaacutetica da ciecircncia que se pretende fundarrdquo21

(HEIDEGGER (GA5657) 2005p 3)

20 HEIDEGGER GA17 GA 61 GA63 GA 5657 e GA62 As traduccedilotildees utilizadas encontram-se na

bibliografia ao final do trabalho 21 ldquoLa idea cientiacutefica que se persigue es de tal naturaleza que una vez alcanzamos una posicioacuten

metodoloacutegica realmente genuina nos vemos obligados a salir y dar un paso maacutes allaacute de nosotros mismos

para volver metodoloacutegicamente sobre aquella esfera que siempre permanece extrantildea a la problemaacutetica maacutes

propia de la ciencia que se pretende fundarrdquo Opcitp3

45

Essa transformaccedilatildeo do meacutetodo natildeo eacute algo arbitraacuterio ou advindo de uma posiccedilatildeo

filosoacutefica mas ldquose evidencia como uma necessidade que se funda na natureza objetiva do

problema como tal e que responde agrave especiacutefica constituiccedilatildeo dos problemas da ciecircncia em

geralrdquo22 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p3) A ciecircncia e seus modelos teoacutericos

irrompem na consciecircncia imediata da vida e a transformam na medida em que trazem

uma nova atitude da consciecircncia a qual se desenvolve no caraacuteter dinacircmico e moacutevel da

vida do espiacuterito ldquoContudo essa irrupccedilatildeo da ideia de ciecircncia no contexto da consciecircncia

natural da vida soacute se daacute em um sentido primordial e radical no marco de uma filosofia

entendida nos termos de ciecircncia originaacuteriardquo23 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p4)

Aqui eacute possiacutevel observar natildeo apenas o mesmo vocabulaacuterio husserliano mas

tambeacutem a mesma tarefa reconduzir a filosofia ao seu lugar de ciecircncia originaacuteria

diferenciando-se dos outros tipos de ciecircncias (biologia fiacutesica psicologia histoacuteria

antropologia etc) Como indica Jeacutesus Adriaacuten Escudero em sua nota de apresentaccedilatildeo agrave

traduccedilatildeo no texto de 1919 eacute possiacutevel observar a linguagem filosoacutefica dos Neokantianos

de Baden (Windelband e Rickert) de Natorp a linguagem fenomenoloacutegica de Husserl e

talvez as primeiras formulaccedilotildees de uma linguagem proacutepria por exemplo Welten

(mundiar) ou das Wie (O como) Mas para noacutes o decisivo eacute notar que se os princiacutepios

que motivam essa investigaccedilatildeo inserem Heidegger no debate de sua eacutepoca (no contexto

da busca de uma filosofia propriamente cientiacutefica) poreacutem no curso de seu pensamento e

na anaacutelise das posiccedilotildees filosoacuteficas que intentam o mesmo objetivo a abordagem da

filosofia como ciecircncia originaacuteria recoloca a problemaacutetica no aspecto propriamente

hermenecircutico e natildeo teoacuterico da vida Se a filosofia eacute ciecircncia originaacuteria eacute a partir desse

aspecto primaacuterio que ela deve se movimentar

Em A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo o modo de

reconduccedilatildeo a essa originariedade jaacute natildeo obedeceraacute aos mesmos moldes da fenomenologia

husserliana Jaacute nessa primeira liccedilatildeo Heidegger nos propotildee uma reconduccedilatildeo da filosofia

(ao seu lugar basilar de toda e qualquer ciecircncia teoacuterica e derivada) que eacute a reconduccedilatildeo agrave

22 ldquomaacutes bien se evidenciaraacute como una necesidad que se funda en la naturaleza objetiva del problema como

tal y que responde a la especiacutefica constitucioacuten de los problemas de la ciencia en generalrdquo Op cit p3 23 ldquoSin embargo esta irrupcioacuten de la idea de ciencia en el contexto de la conciencia natural de la vida soacutelo

se da en un sentido primordial y radical en el marco de una filosofiacutea entendida en teacuterminos de ciencia

originariardquo Opcitp4

46

vida humana na sua imediatidade como fenocircmeno primaacuterio e fundamental Mesmo que

natildeo estejam aiacute desenvolvidas eacute claro as posiccedilotildees de Ser e Tempo como por exemplo o

ldquoser-em-o mundo em geral como constituiccedilatildeo fundamental do Daseinrdquo teses expostas e

desenvolvidas principalmente nos sect12 e 13 da obra de 1927 jaacute era possiacutevel encontrar

alguns elementos da hermenecircutica da facticidade Em 1919 a direccedilatildeo dada a uma filosofia

era a de que devia ocupar-se da vida e assim a proacutepria renovaccedilatildeo da universidade naquele

contexto de reconstruccedilatildeo do poacutes-guerra ldquoimplica[va] um renascimento da autecircntica

consciecircncia cientiacutefica e de seus laccedilos com a vidardquo24 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p

5) Indicaccedilatildeo que se articula com as liccedilotildees posteriores do autor mas que ganha seu

esclarecimento radical em 1923 no Relatoacuterio Natorp na medida em que a apropriaccedilatildeo da

filosofia aristoteacutelica por Heidegger mostra que a vivecircncia e sua relaccedilatildeo de sentido com

todo ente ocorre na ocupaccedilatildeo praacutetica como condiccedilatildeo primaacuteria de conhecimento com o

mundo condiccedilatildeo essa que coincide com a situaccedilatildeo hermenecircutica de toda ontologia

Antes de expormos as linhas gerais do desenvolvimento do texto eacute necessaacuterio

tentar esclarecer o que Heidegger quer dizer com a expressatildeo ldquoconcepccedilatildeo de mundordquo

(Weltanschauung) Para a filosofia segundo nosso autor visatildeo de mundo cosmovisatildeo

ou concepccedilatildeo de mundo natildeo satildeo termos que funcionam como uma direccedilatildeo de

comportamento no interior do mundo direccedilatildeo essa justificada desenvolvida e capaz de

orientar os seres humanos Tambeacutem natildeo oferecem uma visatildeo teoacuterica geral da histoacuteria e

da realidade a partir da qual as ciecircncias pudessem desenvolver-se Assumindo uma

perspectiva bem geral esses satildeo os problemas das filosofias de Windelband e Rickert (e

em certa medida tambeacutem os de Dilthey) contra os quais Heidegger vai se opor nessa

liccedilatildeo Pois o que aiacute estaacute em jogo natildeo eacute a postulaccedilatildeo teoacuterica do que eacute a vida histoacuterica mas

a compreensatildeo do acircmbito fundamental da realidade imediata da vida que proporciona

algo como ldquovisatildeo de mundordquo E desse modo a relaccedilatildeo entre ldquofilosofiardquo e o ldquoproblema

da concepccedilatildeo de mundordquo na conjunccedilatildeo expressa ldquoerdquo natildeo significa a relaccedilatildeo de duas

esferas diferentes mas sim o mesmo acircmbito pois a concepccedilatildeo de mundo potildee em

evidecircncia a natureza e a busca da filosofia ldquoconcepccedilatildeo de mundo como tarefa da

24 ldquoLa renovacioacuten de la universidad implica un renacimiento de la auteacutentica conciencia cientiacutefica y de sus

lazos con la vidardquo Opcitp5

47

filosofia quer dizer uma consideraccedilatildeo histoacuterica da maneira em que a filosofia resolveu

em cada caso esta tarefardquo25 (HEIDEGGER (GA5657) 2005p9)

Como sugere a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Heidegger considera que a

fundamentaccedilatildeo sem preconceitos da filosofia como ciecircncia originaacuteria deve desenvolver-

se a partir de um processo metodoloacutegico ldquoA ideia de ciecircncia exige implicitamente um

desenvolvimento metodoloacutegico dos problemas e nos coloca a tarefa da explicaccedilatildeo

preliminar do verdadeiro problema [que nos ocupa]26rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005

p6) Essa explicaccedilatildeo se desenvolve natildeo como hipoacutetese a ser demonstrada mas a partir

da anaacutelise das filosofias precedentes e de suas preconcepccedilotildees que podem distorcer o tema

da investigaccedilatildeo como elas se aproximaram da vida e como se relacionam com a noccedilatildeo

de ciecircncia

Como mostramos anteriormente jaacute na escola de Baden influenciado pela filosofia

dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade dos juiacutezos

cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de conciliar

ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) Para a escola de Baden as

leis naturais levam agrave explicaccedilatildeo mas eacute a norma de um valor ideal a condiccedilatildeo de um

pensamento verdadeiro Rickert retoma as consideraccedilotildees de Windelband e potildee o

problema em uma base filosoacutefica radical como instrumento metodoloacutegico Entre os sectsect

de 6 e 9 do texto A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo jaacute esboccedilando

algumas consequecircncias problemaacuteticas Heidegger expotildee os elementos principais das

teorias desses autores E se pergunta se aquele meacutetodo que tem a pretensatildeo de clarificar

a relaccedilatildeo entre filosofia e visatildeo de mundo poderia se tornar um meacutetodo seguro para a

realizaccedilatildeo da filosofia como ciecircncia originaacuteria A partir do sect 10 Heidegger inicia a criacutetica

propriamente dita ao meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico do Neokantismo de Baden Um dos alvos

de sua investigaccedilatildeo foi como a ldquodoaccedilatildeo idealrdquo elemento central do meacutetodo na medida

em que eacute o conteuacutedo com pretensatildeo de necessidade e universalidade dos juiacutezos acaba por

revelar o desconhecimento da problemaacutetica acerca da ciecircncia originaacuteria por essa escola

Para tanto Heidegger faz ldquoa pergunta decisiva quais satildeo as formas e normas necessaacuterias

25 ldquoConcepcioacuten del mundo como tarea de la filosofiacutea es decir una consideracioacuten histoacuterica de la manera en

que la filosofiacutea ha resuelto en cada caso esta tareardquo Opcitp9 26 ldquoLa idea de ciencia exige impliacutecitamente un desarrollo metodoloacutegico de los problemas y nos plantea la

tarea de una explicacioacuten preliminar del verdadero problema [que nos ocupa]rdquo Opcit p6

48

que permitem ao pensamento alcanccedilar a validez universal e assim cumprir o propoacutesito

da verdade27rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p50)

A anaacutelise eacute feita em dois momentos a) Consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo b)

aplicaccedilatildeo do meacutetodo

Para a consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo o importante eacute delinear o aspecto

fundamental que sustenta seus paracircmetros Heidegger aponta que para a escola de Baden

as determinaccedilotildees necessaacuterias do pensamento satildeo aquelas que configuram o pensamento

agrave finalidade ideal (validez universal) como condiccedilatildeo de verdade pois o pensamento com

valor deve responder a um dever-ser Pois bem de posse desse elemento basilar eacute na

aplicaccedilatildeo do meacutetodo que se revelaratildeo os problemas

A aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico consiste em a partir do material

fornecido pelos processos psiacutequicos dirigir a visatildeo ao aspecto ideal do pensamento e a

partir daiacute determinando o proacuteprio material ordenando seus elementos em funccedilatildeo de seu

aspecto ideal Portanto ldquoO nuacutecleo de todo o meacutetodo baseia-se no ideal do pensamento

mais precisamente em trazer agrave presenccedila a doaccedilatildeo do ideal28rdquo (HEIDEGGER (GA5657)

2005 p51) Em suma o ideal eacute normativo e dirige a consciecircncia agrave finalidade do

pensamento

ldquoEstamos aqui perante o mesmo problema da circularidade O meacutetodo criacutetico-

teleoloacutegico afirmaria poder determinar o ideal do pensamento isto eacute a verdade

a partir dos pensamentos verdadeiros no entanto o que tenho ante mim satildeo

pensamentos verdadeiros (ocorrecircncias factuais no mundo) mas natildeo a verdade

pois esta eacute um ideal Por outro lado para ter pensamentos verdadeiros ante mim

eu preciso selecionar entre os pensamentos aqueles que satildeo verdadeiros o que

novamente eu soacute posso fazer se jaacute tenho de antematildeo o ideal a verdaderdquo

(RABELO 2013 p28)

A partir daiacute em seu estilo muitas vezes categoacuterico Heidegger demonstra ser

supeacuterfluo o sentido do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e o acusa de em uacuteltima instacircncia nem

mesmo conseguir esclarecer seus pressupostos deixando obscuras questotildees como ldquoa

doaccedilatildeo ideal possibilita uma relaccedilatildeo de apreciaccedilatildeo e de seleccedilatildeo com o material dado mas

27 ldquoAhora surge la pregunta decisiva iquestcuaacuteles son las formas y normas necesarias que permiten al

pensamiento alcanzar la validez universal y cumplir asiacute con el fin de la verdadrdquo Opcitp50

28 ldquoEl nuacutecleo de todo el meacutetodo descansa en el ideal del pensamiento con mayor precisioacuten en traer a la

presencia la donacioacuten del idealrdquo Opcitp51

49

como trago agrave minha consciecircncia o ideal de pensamentordquo ldquoo que significa validez

universal para esse pensamentordquo ldquoO que significa ser verdadeiro para o pensamento

para que ele seja universalmente vaacutelidordquo Nas palavras de nosso autor

ldquoA anaacutelise estrutural do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico mostra que este meacutetodo

pressupotildee em seu sentido mais proacuteprio e como condiccedilatildeo de sua proacutepria

possibilidade justamente aquilo que deve alcanccedilar Natildeo pode encontrar em si

mesmo seu proacuteprio fundamento posto que o ideal jaacute tem que estar dado como

criteacuterio de valoraccedilatildeo criacutetica da norma para levar a cabo a tarefa impliacutecita no

meacutetodordquo29 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p52)

Se a anaacutelise da natureza e aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico fizeram

despontar a primeira criacutetica acerca de sua impossibilidade Heidegger aprofunda sua

criacutetica tendo em vista o aspecto central de sua liccedilatildeo E portanto aponta o

desconhecimento acerca da problemaacutetica da ciecircncia originaacuteria por essa escola

ldquoJaacute vimos que o movimento do meacutetodo mais exatamente a implementaccedilatildeo do

mesmo inclui o ter presente o ideal o fim o dever-ser O ideal tem

evidentemente um conteuacutedo umas determinaccedilotildees substantivas Contudo eacute um

ideal natildeo eacute um conteuacutedo real e efetivo senatildeo um modo de dever-ser Frente a

todo ser o caraacuteter de obrigatoriedade [inerente ao dever-ser] encerra o momento

da idealidade e da validez supra-empiacuterica Assim pois o conceito do meacutetodo

teleoloacutegico pressupotildee algo mais essencial e algo essencialmente diferente a

doaccedilatildeo do dever ser e se tratando do dever absoluto entatildeo falariacuteamos da

objetividade originaacuteriardquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p53)30

A partir da constataccedilatildeo dessas implicaccedilotildees do meacutetodo Heidegger pergunta qual

eacute o correlato objetivo do dever-ser Em outras palavras qual sua orientaccedilatildeo vital Isso

permanece obscuro e mais ainda que a inclusatildeo do elemento do dever-ser no meacutetodo

aparentemente natildeo se mostre como um vieacutes meramente teoacuterico (na medida em que se

29 ldquoEl anaacutelisis estructural del meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico muestra que este meacutetodo presupone en su sentido

maacutes propio y como condicioacuten de su propia posibilidad justamente aquello que debe conseguir No puede

encontrar en siacute mismo su propio fundamento puesto que el ideal ya tiene que estar dado como criterio de

valoracioacuten criacutetica de la norma para llevar a cabo la tarea impliacutecita en el meacutetodordquo Opcitp52 30 ldquoYa vimos que la puesta en marcha del meacutetodo maacutes exactamente la implementacioacuten del mismo incluye

el tener presente el ideal el fin el deber-ser El ideal tiene evidentemente un contenido unas

determinaciones sustantivas Sin embargo es un ideal no es un contenido real y efectivo sino un modo del

deber- ser Frente a todo ser el caraacutecter de obligatoriedad [inherente al deber-ser] encierra el momento de

la idealidad y de la validez supraempiacuterica Asiacute pues en el concepto del meacutetodo teleoloacutegico se presupone

algo esencialmente maacutes y algo esencialmente diferente la donacioacuten del deber-ser y si se tratara del deber

absoluto entonces hablariacuteamos de la objetualidad originariardquo Opcitp53

50

trata da razatildeo praacutetica) natildeo eacute possiacutevel responder agrave demanda necessaacuteria de uma ciecircncia

originaacuteria pois eacute inconciliaacutevel com a urgecircncia da vida faacutetica

Nesse sentido nos parece que na filosofia criacutetica-transcendental de Rickert o

acesso aos elementos decisivos do meacutetodo em uacuteltima instacircncia eacute realizado a partir das

teorias das ciecircncias positivas Entatildeo a filosofia estaacute obrigada a se posicionar frente agraves

teorias dessas ciecircncias e natildeo propriamente a partir da orientaccedilatildeo vital O

desconhecimento acerca da filosofia como ciecircncia originaacuteria se torna aqui patente pois

ao se revelar que satildeo as teorias dessas ciecircncias que fornecem os elementos para os juiacutezos

valorativos relacionados ao dever-ser a filosofia se torna delas dependente e parece nelas

encontrar ateacute mesmo sua condiccedilatildeo de possibilidade

Heidegger ainda aponta em sua criacutetica um problema que decorre da tentativa de

estabelecer uma relaccedilatildeo entre valor judicativo e dever-ser Para ele na vivecircncia imediata

da vida as relaccedilotildees valorativas natildeo encontram a menor correspondecircncia com o dever-ser

Ouccedilamos as suas palavras

ldquoPela manhatilde entro em meu estuacutedio o sol banha meus livros etc estou alegre

Esta alegria natildeo responde em nenhum caso a um dever-ser A lsquoalegriarsquo como tal

natildeo se oferece a mim em uma vivecircncia marcada pelo dever-ser Devo trabalhar

devo sair para uma caminhada duas motivaccedilotildees duas possiacuteveis razotildees que em

si mesmas natildeo formam parte de meu sentimento de alegria senatildeo que o

pressupotildee Existe portanto um tipo de vivecircncia em que me sinto alegre em que

me daacute algo que tem valor como talrdquo 31(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)

A experiecircncia do valor eacute intransitiva natildeo um juiacutezo mas em seu sentido imanente

ldquoo meacutetodo teleoloacutegico implica indubitavelmente o momento da vivecircncia do dever-serrdquo

(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)32

Ateacute agora o que foi analisado foi o significado do meacutetodo criacutetico- teleoloacutegico e

suas implicaccedilotildees que apontaram para a existecircncia de fenocircmenos mais originaacuterios que

passam desapercebidos aos defensores desse meacutetodo E se o meacutetodo loacutegico-teleoloacutegico

31 ldquoiquestPero se me da todo valor como un deber-ser Evidentemente no Yo experimento las relaciones

valorati- vas sin que intervenga el maacutes miacutenimo momento del deber-ser Por la mantildeana entro en mi estudio

el sol bantildea mis libros etceacutetera estoy alegre Esta alegriacutea no responde en ninguacuten caso a un deber-ser La

laquoalegriacutearaquo como tal no se me da en una vivencia marcada por el deber- ser Debo trabajar debo salir de

paseo dos motivaciones dos posibles razones que en siacute mismas no forman parte de mi sentimiento de

alegriacutea sino que lo pre-supo- nen Existe por tanto un tipo de vivencia en el que me siento alegre en el

que se me da algo que tiene valor como talrdquo Opcitp55 32 ldquoEl meacutetodo teleoloacutegico implica indudablemente el momento de la vivencia del deber-serrdquo Opcitp55

51

estabelece a relaccedilatildeo necessaacuteria entre valor e dever-ser acarretando todas as possiacuteveis

criacuteticas jaacute expostas Heidegger natildeo deixa de reconhecer

ldquoUma coisa eacute evidente Rickert detectou um fenocircmeno significativo quando

identificou o objeto do conhecimento como um dever-ser e o desvencilhou dos

mecanismos psiacutequicos o fenocircmeno da motivaccedilatildeo um fenocircmeno que encontra

seu significado primaacuterio tanto nos problemas do conhecimento como em outros

acircmbitos Uma coisa eacute declarar-algo-como-valor [Fuumlr-Wert-Erklaumlren] e outra

muito distinta eacute tomar-algo-por-um-valor [Wertnehmen] Este tomar-algo-como-

um-valor se pode caracterizar como um fenocircmeno originaacuterio como uma

constituiccedilatildeo da vida em si e para si no entanto o declarar-algo-como-um valor

foi visto como algo derivado algo fundado na esfera teoreacutetica e esse mesmo

fenocircmeno teoreacutetico eacute um elemento constitutivo da vida vivida em si mesma

Pressupotildee levantar o veacuteu teoreacutetico do caraacuteter valorativo como tal A estratificaccedilatildeo

precisa desse fenocircmeno natildeo nos interessa nesse momentordquo

(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p57)33

O que estaacute em jogo aqui eacute a relaccedilatildeo entre verdade e valor pois para Rickert

ldquodistinto do processo psiacutequico real uma ocorrecircncia natural que poderia ser tratada

causalmente destaca-se a legalidade ideal do pensar verdadeiro que se deve obedecer

uma vez que se queira o ideal da verdaderdquo (RABELO 2013 p26) Desse modo algo eacute

capaz de ser analisado como verdadeiro atraveacutes dos valores atribuiacutedos teoricamente

(atraveacutes da anaacutelise do juiacutezo) ao seu material Ou seja a verdade eacute garantida na anaacutelise

judicativa que declara-algo-como-valor Por exemplo a distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na

realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor (Wert) segundo Rickert levaria

a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo de conceitos (Begriffsbildung)

e que natildeo se trata de um conhecimento no campo ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto

pelo conceito determinado de maneira formal no espaccedilo loacutegico-axioloacutegico Portanto

ldquoUma coisa eacute ldquoexplicar por valorrdquo (fuumlr-Wert-erklaumlren) outra eacute ldquotomar-por-valorrdquo

(wertnehmen) O primeiro eacute uma construccedilatildeo teoreacutetica o segundo uma vivecircncia

Estaacute em jogo aqui uma diferenccedila que se insinua na liacutengua alematilde a partir da

33 ldquoRickert detectoacute un fenoacutemeno significativo cuando identificoacute el objeto del conocimiento como un deber-

ser y lo deslindoacute de los mecanismos psiacutequicos el fenoacutemeno de la motivacioacuten un fenoacutemeno que encuentra

su significado primario tanto en el problema del conocimiento como en otros aacutembitos Una cosa es declarar-

algo-como-un-valor [Fuumlr-Wert- Erklaumlren] y otra muy distinta tomar-algo-por-un-valor [Wertnehmen]

Este tomar-algo-por-un-valor se puede caracterizar como un fenoacutemeno originario como una constitucioacuten

de la vida en y para siacute en cambio el decla- rar-algo-como-un-valor se ha de ver como algo derivado como

algo fundado en la esfera teoreacutetica9 y ese mismo fenoacutemeno teoreacutetico es un elemento constitutivo de la vida

vivida en siacute misma Presupone levantar el velo teoreacutetico del caraacutecter valorativo como tal La estratificacioacuten

precisa de este fenoacutemeno no nos interesa en estos momentosrdquo Opcitp57 Essa estratificaccedilatildeo a qual

Heidegger se refere jaacute indica em suas primeiras liccedilotildees o desdobramento posterior acerca da criacutetica agrave

primazia que a filosofia oferece a teoria em detrimento da compreensatildeo praacutetica

52

expressatildeo perceber wahrnehmen literalmente tomar-por-verdadeiro No mesmo

sentido imediato em que aquilo que me aparece na percepccedilatildeo sensiacutevel eacute tomado

como estando aiacute ele mesmo sem a necessidade de uma reflexatildeo aqui quer-se

saber se algo vivenciado eacute no proacuteprio vivenciar tomado como algo valoroso se

eacute experienciado enquanto valoroso ou se posteriormente lhe eacute adicionada esta

referecircncia a valoresrdquo (RABELO 2013 p27)

Desse modo para Rickert verdade e valor judicativo (teoacuterico) se comungam mas

essa comunhatildeo para Heidegger natildeo passa de uma constituiccedilatildeo metodoloacutegica externa e

derivada de uma filosofia teoacuterica Se para Rickert o tomar-algo-como-um-valor natildeo tem

ldquovalor de verdaderdquo como o declarar-algo-como-valor Para Heidegger a verdade do ser

(ser ndashverdadeiro) ou o ldquotomar-por-verdadeirordquo (a vivecircncia) independe do valor e nada

tem a ver com o dever-ser

ldquoDaacute-se o ser-verdadeiro como um valor De maneira alguma e nem se daacute no

segundo caso do juiacutezo histoacuterico [acerca da morte de Napoleatildeo I na ilha de Santa

Elena] Contudo o conteuacutedo objetivo desse juiacutezo tem a forma de um valor no

sentido de [que remete a algo] lsquohistoricamente significativorsquo um novo fenocircmeno

lsquovalorativorsquo que natildeo afeta o ser-verdadeiro como tal ao lanccedilar um papel

metodoloacutegico na constituiccedilatildeo da verdade histoacuterica O ser-verdadeiro (ἀ-λήθεια)

como tal natildeo lsquovalersquo Na alegria como alegria assumo valores na verdade

simplesmente vivo Natildeo apreendo o ser-verdadeiro na e atraveacutes de uma assunccedilatildeo

de valores34rdquo (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p58)

Essas uacuteltimas consideraccedilotildees revelam para Heidegger que o meacutetodo teleoloacutegico

estaacute impregnado de pressuposiccedilotildees pois a cada vez ldquoos fenocircmenos do dever-ser do valor

da assunccedilatildeo de um valor da pergunta se a verdade eacute um valor que descansa em uma

valoraccedilatildeo originaacuteria se fundam em uma determinaccedilatildeo valorativa que se realiza

subsequentementerdquo35 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p62) E essas pressuposiccedilotildees

trazem agrave vista o privileacutegio teoreacutetico dessa filosofia

34 ldquoiquestSe da el ser-verdadero como un valor De ninguna manera y tampoco se da en el segundo caso del

juicio histoacuterico [acerca de la muerte de Napoleoacuten I en la isla de Santa Elena] Sin embargo el contenido

objetivo de este juicio tiene la forma de un valor en el sentido de [que remite a algo] laquohistoacutericamente

significativoraquo un nuevo fenoacutemeno laquovalorativoraquo que no afecta al ser-verdadero como tal si bien juega un

papel metodoloacutegico en la constitucioacuten de la verdad histoacuterica El ser-verdadero (ἀ-λήθεια) como tal no

laquovaleraquo En la alegriacutea como alegriacutea asumo valores en la verdad como verdad simplemente vivo No

aprehendo el ser-verdadero en y a traveacutes de una asuncioacuten de valoresrdquo Opcitp58

35 ldquoAl ampliar el anaacutelisis salieron a escena nuevos presupuestos y pusieron de relieve que el meacutetodo

teleoloacutegico estaacute cargado de presuposiciones los fenoacutemenos del deber-ser de la donacioacuten del deber-ser del

valor de la asuncioacuten de un valor de la pregunta de si la verdad es un valor que descansa en uma valoracioacuten

originaria o de si se funda en una determinacioacuten valorativa que se realiza con lsquoposterioridadrsquordquo Opcitp62

53

ldquoO privileacutegio outorgado ao teoreacutetico repousa na convicccedilatildeo de que o teoreacutetico

representa o estrato baacutesico e fundamental que de alguma maneira funda todas as

esferas restantes Isso se potildee manifesto quando eacute falado por exemplo da

lsquoverdadersquo eacutetica artiacutestica ou religiosa Se diz que o teoreacutetico tem todos os demais

acircmbitos valorativos e eacute capaz de fazer isso na medida em que o teoreacutetico mesmo

se concebe como um valor Eacute necessaacuterio romper este primado do teoacuterico mas natildeo

com a finalidade de proclamar a primazia da praacutetica ou introduzir um outro

elemento que mostra os problemas a partir de uma nova perspectiva mas porque

o teoreacutetico mesmo enquanto tal remete a algo preacute -teoreacuteticordquo 36(HEIDEGGER

(GA5657) 2005 p70)

Para os neokantianos de Baden o ideal absoluto como medida da realidade

empiacuterica como condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do pensamento verdadeiro e ainda como

condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do significado histoacuterico reveste-se da transcendentalidade em

funccedilatildeo do rigor cientiacutefico Para eles o mundo do ser natildeo pode ser confundido com o

mundo do valor pois satildeo os valores como elementos transcendentais que orientam a

constituiccedilatildeo do indiviacuteduo histoacuterico de modo loacutegico A realidade - o espaccedilo ontoloacutegico ndash

estaacute condicionada agrave teoria e em uacuteltima instacircncia o proacuteprio teoreacutetico eacute concebido como

valor Inversatildeo que Heidegger detecta como propriamente afastada do acircmbito imediato

da vida e que como meacutetodo portanto natildeo pode fundar-se como ciecircncia originaacuteria

II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt37 originaacuterio

Diferentemente de Windelband e Rickert que subordinavam a verdade agrave

valoraccedilatildeo em funccedilatildeo do juiacutezo jaacute em 1919 Heidegger indicava a derivaccedilatildeo do teoreacutetico

de uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Apoacutes a investigaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-

36 ldquoAsimismo el privilegio otorgado a lo teoreacutetico reposa en la conviccioacuten de que lo teoreacutetico representa el

estrato baacutesico y fundamental que de alguna manera funda todas las esferas restantes Esto se pone de

manifiesto cuando uno habla por ejemplo de la laquoverdadraquo eacutetica artiacutestica o religiosa Se dice que lo teoreacutetico

tintildee todos los demaacutes aacutembitos valorativos y es capaz de hacer eso en la medida en que lo teoreacutetico mismo

se concibe como un valor Se ha de romper con esta primaciacutea de lo teoreacutetico pero no con el propoacutesito de

proclamar un primado de lo praacutectico o de introducir otro elemento que muestre los problemas desde una

nueva perspectiva sino porque lo teoreacutetico mismo y en cuanto tal remite a algo pre-teoreacuteticordquo Opcitp70

37 Como o verbo ldquodarrdquo em portuguecircs o ldquogebenrdquo em alematildeo pode ser utilizado como verbo bitransitivo no

sentido de dar algo a algueacutem (Ex ldquoIch gebe dir mein Buchrdquo ldquoEu te dou o meu livrordquo) Mas no caso do ldquoes

gibtrdquo eacute utilizado no sentido do verbo ldquohaverrdquo ou ldquoexistirrdquo como por exemplo ldquoEs gibt viele Woumlrter ldquoHaacute

muitas palavrasrdquo ou ldquoExistem muitas palavras) Portanto pensar num ldquoes gibtrdquo originaacuterio eacute referir-se agrave

existecircncia originaacuteria das coisas em outras palavras no modo de aparecimento do que haacute do existente em

seu sentido primaacuterio preacutevio a toda determinaccedilatildeo transitiva possiacutevel nos moldes gramaticais

54

teleoloacutegico em A ideacuteia da filosofia e o problema da visatildeo de mundo o autor apresenta

essa instacircncia primaacuteria como correlata a um ldquoes gibtrdquo originaacuterio haacute e o que haacute eacute mundo

ou melhor um dar-se mundo

Aqui reside a primeira exposiccedilatildeo de nosso argumento A abordagem hermenecircutica

de Heidegger no interior da fenomenologia foi decisiva para o acesso agrave questatildeo do sentido

do ser e no desenvolvimento da referida preleccedilatildeo esse movimento se torna patente

A criacutetica de Heidegger agrave teoria do conhecimento e agraves implicaccedilotildees dessa postura

propriamente teoacuterica em relaccedilatildeo agrave verdade conduz o autor agrave correlaccedilatildeo entre as vivecircncias

e a significaccedilatildeo fenomecircnica como cooriginaacuterias da imersatildeo num mundo que haacute se daacute

existe como mundo circundante As pressuposiccedilotildees da teoria do conhecimento e suas

postulaccedilotildees acerca do ldquosujeitordquo reverberam em uma seacuterie de problemas derivados que

nada dizem acerca das vivecircncias Assim questotildees Como eacute possiacutevel o acesso agrave realidade

exterior Em que medida minha vivecircncia subjetiva alcanccedila a vivecircncia de outro

sujeito Como passar da esfera subjetiva aos dados sensoriais do mundo Como

passar da esfera subjetiva ao conhecimento objetivo satildeo problematizaccedilotildees derivadas

da primazia teoacuterica dada pela filosofia e pelas ciecircncias que ignoram por completo que o

viver do mundo circundante natildeo eacute uma contingecircncia () somente em ocasiotildees

excepcionais estamos instalados em uma atitude teoreacutetica38 (HEIDEGGER(GA5657)

2005 p106)

Lembremos que o que estaacute em questatildeo nessa preleccedilatildeo eacute em que medida a filosofia

pode ser considerada como ciecircncia originaacuteria e qual eacute o seu modo de relaccedilatildeo com a visatildeo

de mundo Nesse sentido a filosofia se mostra como aquela ciecircncia que deve se afastar de

qualquer posiccedilatildeo preacutevia e assim dizer que o viver do mundo circundante natildeo eacute uma

contingecircncia eacute reconhecer aquilo que todo posicionamento teoacuterico quer a cada vez

afastar mas eacute em uacuteltima medida a condiccedilatildeo de possibilidade de sua proacutepria realizaccedilatildeo

teoacuterica Com outras palavras a possibilidade do conhecimento estaacute imersa em bases que

natildeo satildeo elas proacuteprias teoacutericas E nesse sentido quando uma ou outra teoria filosoacutefica

pretende investigar a possibilidade do conhecimento partindo de pressuposiccedilotildees teoacutericas

38 ldquoEl vivir del mundo circundante no es una contingencia sino que radica en la esencia de la vida en y para

siacute por el contrario soacutelo en ocasiones excepcionales estamos instalados en una actitud teoreacuteticardquo

Opcitp106

55

acaba por afundar-se em falsos problemas como ldquoa realidade do mundordquo e ldquoo acesso a

essa realidaderdquo Discussotildees vazias pois o mundo em sua realidade histoacuterica eacute o dar-se

originaacuterio e prescinde de toda e qualquer teorizaccedilatildeo

Na leitura de Heidegger o neokantismo decompotildee o acircmbito originaacuterio da

vivecircncia em conceitos teoacutericos que natildeo formam mais uma totalidade pois a

desvivifica transformando-a num objeto a-histoacuterico e portanto sem significado

O mundar (welten) soacute eacute apreensiacutevel pela visatildeo fenomenoloacutegica que ainda natildeo estaacute

contaminada pelos pressupostos teoreacuteticos que tornam essa experiecircncia uma

relaccedilatildeo objetificante () Heidegger se contrapotildee agrave metodologia teoreacutetica que

pretende objetificar e descrever as vivecircncias mas compreender e apreender as

conexotildees de significado em que jaacute se estaacute submerso A fenomenologia pretende

manifestar isso que se daacute em um soacute golpe o mundo circundante (Umweltliche)

caracteriacutestico do vivenciar primordial(WU R2010 p185)

Mas se a compartimentaccedilatildeo da realidade realizada pelas teorias filosoacuteficas recai

em discussotildees vazias e a vivecircncia primordial prescinde de conceitos teoacutericos isso natildeo

apontaria para um empirismo ou um realismo como possibilidades da filosofia A

filosofia eacute ainda busca e busca originaacuteria Nesse sentido o acesso fenomenoloacutegico ao

mundo circundante orientado pela proacutepria coisa na intuiccedilatildeo imediata eacute para Heidegger

o modo de abrir ldquocientificamenterdquo a esfera da vivecircncia resguardando a orientaccedilatildeo agrave vida

sem qualquer teoria preacutevia

O rigor da cientificidade cultivada na fenomenologia cobra sentido a partir

dessa atitude fundamental e natildeo se pode comparar com o rigor das ciecircncias

derivadas e natildeo originaacuterias Ao mesmo tempo resulta claro porque o problema do

meacutetodo joga um papel central na fenomenologia como em nenhuma outra ciecircncia

() Para o problema que nos ocupa a atitude fundamental da fenomenologia

aponta em uma direccedilatildeo decisiva natildeo construir um meacutetodo desde fora ou desde

acima natildeo idear um novo caminho teoreacutetico por meio de reflexotildees dialeacuteticasrdquo39

(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p133)

Desde o iniacutecio da preleccedilatildeo Heidegger estaacute em busca de um meacutetodo capaz de

alcanccedilar o primaacuterio que estaria na base de qualquer conhecimento Nesse sentido a

39 ldquoEl laquorigorraquo de la cientificidad cultivada en la fenomenologiacutea cobra sentido a partir de esta actitud

fundamental y no se puede comparar con el laquorigorraquo de las ciencias derivadas y no originarias Al mismo

tiempo resulta claro por queacute el problema del meacutetodo juega un papel tan central en la fenomenologiacutea como

en ninguna otra ciencia (Por esta razoacuten todo este curso gira realmente en torno a un problema

metodoloacutegico) Para el problema que nos ocupa la actitud fundamental de la fenomenologiacutea apunta en una

direccioacuten decisiva no construir un meacutetodo desde fuera o desde arriba no idear un nuevo camino teoreacutetico

por medio de reflexiones dialeacutecticasrdquo Opcit p133

56

fenomenologia como retorno agraves coisas mesmas se volta ao dar-se originaacuterio das coisas e

eacute atraveacutes delas que o meacutetodo pode vir a ser desenvolvido Ainda em 1919 natildeo foi exposta

em linhas precisas a fenomenologia como meacutetodo indicativo-formal elemento decisivo

no interior da fenomenologia-hermenecircutica de Heidegger O que iremos abordar mais

adiante

A tentativa de orientar-se pelo dado na vivecircncia pelo que eacute como eacute no mundo

circundante se afasta portanto de qualquer objetificaccedilatildeo A fenomenologia como

meacutetodo eacute a possibilidade de compreensatildeo dos significados que nos vem ao encontro no

mundo circundante e histoacuterico no qual jaacute se estaacute sempre imerso Mas se Heidegger

apresenta a fenomenologia como o meacutetodo que alcanccedila o que vem ao encontro sem

qualquer preacutevia teoria esse acesso natildeo se daacute segundo os mesmos paracircmetros de seu

mestre Husserl

Como vimos na fenomenologia husserliana o modo de aparecimento do

fenocircmeno eacute sempre uma doaccedilatildeo de significado mas o acesso aos fenocircmenos eacute sempre a

partir da anaacutelise dos atos intencionais das vivecircncias na consciecircncia Heidegger recusa o

pressuposto da consciecircncia e pretende que a doaccedilatildeo significativa seja originaacuteria da

vivecircncia imersa no mundo No uacuteltimo momento da preleccedilatildeo de 1919 o autor apresenta

o que seria cooriginaacuteria de qualquer orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica e base de qualquer

ciecircncia teoacuterica a intuiccedilatildeo hermenecircutica Assim a vivecircncia que se apropria do vivido eacute

a intuiccedilatildeo compreensiva a intuiccedilatildeo hermenecircutica () A universalidade do significado

das palavras assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia

vivida40 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 pp141-142) Ou seja a significaccedilatildeo

gramaticalmente revestida natildeo aponta para algo essencial apreendido no ato de

consciecircncia (como compreende Husserl) mas a significaccedilatildeo vivida no mundo

circundante

O princiacutepio dos princiacutepios husserlianos tudo o que se daacute originariamente na

intuiccedilatildeo [] haacute que tomaacute-lo simplesmente como se daacute (Husserl Ideen apud Heidegger

40 ldquoLa vivencia que se apropia de lo vivido es la intuicioacuten comprensiva la intuicioacuten hermeneacuteutica la

formacioacuten originariamente fenomenoloacutegica que vuelve hacia atraacutes mediante retroconceptos y que se

anticipa con ayuda de preconceptos y de la que queda excluida toda posicioacuten teoreacutetico-objetivante y

trascendente La universalidad del significado de las palabras sentildeala primariamente algo originario el

caraacutecter mundano de la vivencia vividardquo Opcitpp141142

57

(GA5657) 2005 p132) eacute dado no interior das conexotildees de significados no es gibt

originaacuterio no mundo que se daacute cooriginariamente agraves proacuteprias vivecircncias

Para Heidegger o uacutenico modo de apreender essa vivecircncia originaacuteria eacute retroceder

ao preacute-teoacuterico por uma abordagem fenomenoloacutegica que faz com que o mundar

do mundo se manifeste enquanto tal Alguns anos mais tarde isso constituiria o

nuacutecleo da ontologia fundamental na perspectiva da temporalidade cujo objetivo

de criacutetica natildeo seria mais de maneira tatildeo detida o neokantismo de Windelband e

Rickert mas a totalidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica da filosofia(WuR2010 p186)

Tendo em vista o ponto central da preleccedilatildeo aqui examinada eacute imprescindiacutevel

notar que em 1919 Heidegger estava debatendo com os problemas de seu tempo a

possibilidade do conhecimento o lugar da filosofia diante da autonomia das ciecircncias

particulares e a articulaccedilatildeo dessa problemaacutetica com a Lebensphilosophie Se ainda natildeo

haacute explicitamente a questatildeo do sentido de ser em geral a preleccedilatildeo possui elementos

decisivos para o desenvolvimento da ontologia fundamental O que queremos enfatizar eacute

como o modo de apariccedilatildeo dos fenocircmenos em seu significado prescinde de toda e qualquer

teorizaccedilatildeo Essa caracteriacutestica fundamental vai permanecer vigente nos desdobramentos

futuros do pensamento de Heidegger e vai se mostrar a cada vez mais intimamente

relacionada agrave ambiccedilatildeo heideggeriana de superar os pressupostos da tradiccedilatildeo filosoacutefica

moderna

ldquoA pergunta acerca da realidade do mundo externo deriva em parte de uma

compreensatildeo superficial da filosofia kantiana ou de outro modo de reflexotildees

colocadas por Descartes Eacute uma questatildeo que em todo momento de modo mais ou

menos expresso ocupou a teoria do conhecimento da modernidade assegurando-

se sempre contudo que naturalmente ningueacutem duvida da realidade do mundo

externo Pois o que nela sempre se daacute por suposto eacute que essa realidade essa

mundanidade do mundo eacute no fundo algo que talvez possa demonstrar-se ou

mais exatamente no caso de nos encontrarmos em condiccedilotildees ideais ao final

haviacuteamos demostrado [essa realidade] E contudo o ser-real do mundo natildeo soacute

natildeo necessita ser demosntrado nem sequer eacute algo que na falta de provas

rigorosas por isso deva ser unicamente objeto de crenccedilardquo41( HEIDEGGER

(GA20) 2006 p270)

41 ldquoLa pregunta acerca de la realidad del mundo externo se deriva en parte de uma comprensioacuten superficial

de la filosofia kantiana o mejor dicho de reflexiones que Descartes planteoacute Es uma cuestiacuteon que en todo

momento de modo maacutes o menos expreso ha ocupado a la teoriacutea del conocimiento de la modernidad

aseguraacutendose siempre no obstante de que naturalmente nadie dudara de la realidade del mundo externo

Pues lo que em ella se da por supuesto es que esa realidad esa mundanidad del mundo es em fondo algo

que quizaacute pueda demostrarse o maacutes exactamente es en caso de que nos encontraacuteramos em condiciones

ideales al final habriacuteamos demostrado Y sin embargo el ser-real del mundo no soacutelo no necessita ser

demostrado ni siquiera es algo que a falta de pruebas rigorosas por eso deba ser unicamente objeto de

creenciardquo Opcitp270

58

Assim a partir dessas consideraccedilotildees eacute possiacutevel indicar que a questatildeo do sentido

do ser em geral ou numa palavra a ldquoontologiardquo para Heidegger pode vir a ser atingida

quando se revela que a fenomenologia natildeo estaacute fundada na epistemologia (a partir da

consciecircncia) e que a hermenecircutica natildeo eacute apenas um instrumento metodoloacutegico de acesso

agrave histoacuteria em sua objetividade O que Heidegger pretende exprimir com o termo ldquointuiccedilatildeo

hermenecircuticardquo eacute a possibilidade de uma compreensatildeo imediata do mundo a qual natildeo estaacute

fundada nas vivecircncias subjetivas O es gibt originaacuterio eacute o mundo que se daacute como campo

hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Com outras palavras natildeo haacute

significados ideais eles aparecem a partir da situaccedilatildeo hermenecircutica compartilhada entre

os homens campo que chamamos de mundo e a compreensatildeo desse campo natildeo eacute

tributaacuteria das vivecircncias psiacutequicas Para tanto eacute preciso esclarecer como Heidegger supera

a consciecircncia husserliana enquanto lugar de apariccedilatildeo dos fenocircmenos e tambeacutem como a

noccedilatildeo heideggeriana de ldquointuiccedilatildeo hermenecircuticardquo pretende superar a vivecircncia psiacutequica de

Dilthey como categoria epistemoloacutegica fundamental Chegamos ao ponto onde se torna

necessaacuterio compreender mais detidamente a apropriaccedilatildeo de Heidegger da hermenecircutica

diltheyniana e da fenomenologia husserliana

II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger

Seguindo inicialmente as indicaccedilotildees expressas no primeiro curso proferido por

Heidegger em Marburg (inverno de 1923-1924) Introduccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo

fenomenoloacutegica (GA17) eacute possiacutevel observar a tentativa do autor de compreender a

fenomenologia como fenomenologia da existecircncia e assim se apropriar de maneira mais

originaacuteria da investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica

O curso se inicia com a interpretaccedilatildeo - mantida em seus principais elementos no

sect7 de Ser e Tempo - dos conceitos de fenocircmeno (φαινόμενον) e loacutegos (λόγος) em

Aristoacuteteles para assim pocircr em evidecircncia a interpretaccedilatildeo segundo a qual nos escritos do

filoacutesofo grego esses conceitos indicam a direccedilatildeo do pensamento e da investigaccedilatildeo

filosoacutefica para o ser do homem como ser-no-mundo

59

A perceptibilidade das coisas estaacute sob a condiccedilatildeo de um determinado ser deste

mundo mesmo O ser condiccedilatildeo se refere a um modo de ser do mundo mesmo Agrave

existecircncia no mundo pertence o ser subsistente do Sol justamente o que

pensamos quando afirmamos eacute de dia Desta forma falamos de um estado de

coisas que pertence ao ser do mundo mesmo Daiacute se segue que φαινόμενον natildeo

quer dizer em primeiro lugar nada mais que um destacado modo de presenccedila do

enterdquo42 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30)

Ainda seguindo a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles Heidegger diz que o conceito de

fenocircmeno na medida em que designa tudo o que mostra a si mesmo natildeo pode ser

reduzido ao que estaacute na presenccedila do dia ou seja que existem coisas que satildeo visiacuteveis na

obscuridade pois o que se mostra a si mesmo se mostra tanto na claridade como na

obscuridade43 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30) Para explicitar essa posiccedilatildeo o autor

recorre agraves categorias aristoteacutelicas essenciais do ente em ato e do ente em potecircncia (ogravev

ἐντελέχεια ogravev δύναμις) A obscuridade torna-se tambeacutem positiva a partir da

compreensatildeo dessas categorias em relaccedilatildeo ao fenocircmeno pois o ser da obscuridade

consiste em ser claridade possiacutevel44 (HEIDEGGER (GA17)2006 p31)

A originalidade do ver em Aristoacuteteles se mostra em natildeo se deixar enganar pelo

fato de que para as coisas que somente a noite deixa ver natildeo haacute nenhum nome

que as compreenda todas () O que importa eacute somente que essas coisas existam

aiacute elas satildeo vistas e sobre a base de seu conteuacutedo quiditativo tecircm a pretensatildeo de

serem tomadas por existentes Mas que falte um nome para essas coisas mostra

contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia45

(HEIDEGGER (GA17) 2006p31)

42 ldquoLa perceptibilidad de las cosas estaacute bajo la condicioacuten de un determinado ser de este mundo mismo El

ser condicioacuten se refiere a un modo de ser del mundo mismo A la existencia en el mundo pertenece el ser

subsistente del Sol justamente lo que mentamos cuando afirmamos es de diacutea De esta forma hablamos de

un estado de cosas que pertenece al ser del mundo mismo De aquiacute se sigue que φαινόμενον no quiere decir

en primer lugar nada maacutes que un destacado modo de presencia del enterdquo Op cit p30

43 ldquoEl concepto de φαινόμενον no estaacute limitado a la presencia de las cosas durante el diacutea va maacutes allaacute y

designa todo lo que se muestra em siacute mismo tanto se muestra en la claridad como en la oscuridadrdquo Op

citp30

44 ldquoEl ser de la oscuridad consiste en ser claridade posiblerdquo Opcitp31 45 ldquoLa originaridad del ver en Aristoacuteteles se muestra en que no se deja enganatilder por el hecho de que para las

cosas que soacutelo la noche deja ver no hay ninguacuten nombre que las comprenda a todas (por tanto para las

lucieacuternagas etc) () Lo que le importa es soacutelo que esas cosas existen ahiacute se las ve y sobre la base de su

contenido quiditativo tienen la pretensiacuteon de ser tomadas por existentes Pero que falte um nombre para

esas cosas muestra com todo que nuestra lengua (teoria de las categorias) es uma lengua del diacuteardquo

Opcitp32

60

Para compreendermos o que Heidegger trata nessa passagem eacute fundamental

relembrar a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica que indica algo crucial agrave nossa investigaccedilatildeo o

significado natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua

mostraccedilatildeo Para Husserl a anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a

complexidade da vida intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel a partir

da anaacutelise das estruturas ideais que se apresentam na forma das expressotildees significativas

revestidas gramaticalmente Jaacute para Heidegger parece natildeo haver uma estabilidade

significativa ideal Em outras palavras e como vimos no toacutepico anterior as significaccedilotildees

vecircm ao encontro a partir de sua mostraccedilatildeo intencionadas em meio agrave compreensatildeo

hermenecircutica do mundo circundante por isso as estruturas ideais buscadas por Husserl

a partir da atividade intencional da consciecircncia devem ser revistas em funccedilatildeo da

possibilidade hermenecircutica do mundo circundante A veste gramatical das significaccedilotildees

natildeo pode subordinar o que vem ao encontro no dar-se originaacuterio do mundo quer em

funccedilatildeo de uma linguagem que almeja a cada vez fixar categorialmente o que se mostra

quer em funccedilatildeo de qualquer idealidade essencial pressuposta E assim para Heidegger o

conceito de loacutegos em Aristoacuteteles revela um sentido mais originaacuterio

Um λόγος existe pois quando o falar eacute falar com o mundo existente Ao dizer

forno [Ofen] natildeo falo a partir de uma existecircncia [Dasein] senatildeo que mas bem

me ponho fora da existecircncia [Dasein] do mundo concreto penso algo mas para

esse pensar natildeo desempenha nenhum papel que existam fornos [Oumlfen] ou natildeo

Falar eacute um ser com o mundo eacute algo originaacuterio e se daacute antes dos juiacutezos A partir

daqui se torna compreensiacutevel o juiacutezo Na loacutegica eacute comum considerar como juiacutezos

palavras como fogo () De modo algum o λόγος implica uma pluralidade de

palavras A palavra originaacuteria eacute um nomear mas natildeo eacute um nomear de um mero

nome mas bem o dirigir-se com a fala a algo que se encontra no mundo tal como

se encontra46(HEIDEGGER (GA17) 2006 p39)

46 ldquoUn λόγος existe pues cuando el hablar es um hablar con el mundo existente Al decir lsquohornorsquo no hablo

desde una existencia sino que maacutes bien me pongo fuera de la existencia del mundo concreto miento algo

pero para este mentar no desempentildea ninguacuten papel el que haya hornos o no Hablar es un ser con el mundo

es algo originaacuterio y se da antes que los juicios A partir de aquiacute se vuelve compreensible el juicio En la

loacutegica es tradiciacuteon considerar como juicios palabras como lsquofuegorsquo (De ninguna manera se establece con

ello soacutelo la existencia [Dasein] del fuego sino tambiacuteen que la gente debe saltar de la cama) Em modo

algun el λόγος implica una pluralidad de palabras La palabra originaria era un nombrar pero no el nombrar

de un mero nombre maacutes bien el dirigirse con el habla a algo que se encuentra en el mundo tal como se lo

encuentrardquo Op cit p39 A palavra Dasein nesse trecho ainda natildeo parece se referir ao homem como ldquoser-aiacuterdquo mas usada no

significado tradicional da liacutengua alematilde compreendida como ldquoexistecircnciardquo pois Heidegger nos fala da

ldquoexistecircnciardquo do lsquofornorsquordquo existecircnciardquo do lsquofogorsquo

61

O nomear originaacuterio do loacutegos natildeo eacute como a significaccedilatildeo expressa pela linguagem

que recolhe o ente sob determinado aspecto em seu εἶδος (Cf HEIDEGGER (GA17)

2006 p43) Loacutegos eacute loacutegos apofacircntico (λόγος αποφατικός) eacute o mostrar do fenocircmeno a

respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que se mostra como algo de maneira indiferenciada

natildeo determinada Assim o significado mediante o λόγος eacute caracterizado como existindo

O significado mediante o nome eacute um mero mencionar em sentido formal no λόγος o

significado eacute o mostrar o existente como existente47(HEIDEGGER (GA17) 2006p41)

Esse mostrar do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes

sempre em meio a um campo hermenecircutico e assim cada significado proacuteprio ou

determinado do ente que se mostra refere-se ao que significa em relaccedilotildees com os outros

entes relaccedilatildeo anterior a qualquer experiecircncia predicativa

O modelo tradicional da hermenecircutica como meacutetodo interpretativo vinculado agrave

filologia e ao formato da linguagem escrita se altera e torna-se com Heidegger a

investigaccedilatildeo acerca da proacutepria interpretaccedilatildeo da mostraccedilatildeo de todos os entes como uma

praacutetica viva que remete ao ser dos entes em seu aparecer como ente Hermes o

mensageiro dos deuses agora eacute mensageiro da situaccedilatildeo interpretativa na medida em que

o ser dos entes se mostra aos homens no interior de suas vivecircncias imediata A

interpretaccedilatildeo de algo eacute dada mediante a escuta cuidadosa da mensagem dinacircmica que se

realiza no diaacutelogo entre os homens natildeo eacute mais algo inerte fixo a ser encontrado O λόγος

na fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν E assim ao contraacuterio

da tradiccedilatildeo filosoacutefica que identificou o loacutegos como a expressatildeo ajuizante possiacutevel atraveacutes

da ratio (ou o dizer as modalidades dos entes atraveacutes de palavras e sequecircncia de palavras

organizando-as como sujeito e predicado no juiacutezo predicativo) Heidegger interpreta o

sentido originaacuterio de loacutegos apofacircntico como condiccedilatildeo de possibilidade para a

significaccedilatildeo Esse aspecto eacute assim descrito por Gadamer

Heidegger recorreu a uma etimologia para a palavra logos ela designa a seleccedilatildeo

posicionadorardquo () Loacutegos eacute realmente o posicionar seletivo legein significa

seleccedilatildeo selecionar conjuntamente reunir de tal modo que tudo se decirc como

bagos da videira reunidos e protegidos como a colheita O que eacute assim reunido

da seleccedilatildeo natildeo satildeo certamente apenas as palavras que formam a proposiccedilatildeo Cada

palavra ela mesma jaacute eacute de tal modo que nela muitas coisas satildeo reunidas - na

47ldquoLo significado mediante el λόγος es caracterizado como existiendo Lo significado mediante el nombre

es un mero mencionar el sentido formal en el λόγος lo significado es el mostrar lo existente como

existenterdquo Opcitp41

62

unidade do eidos como diraacute Platatildeo quando ele questiona o eidos com vista ao

logos (GADAMER 2012p528)

O sentido originaacuterio de loacutegos como loacutegos apofacircntico estaacute estritamente

relacionado com o sentido originaacuterio de fenocircmeno A tradiccedilatildeo latina traduziu loacutegos

interpretando-o como razatildeo juiacutezo conceito definiccedilatildeo ou proposiccedilatildeo Poreacutem em grego

logos natildeo significa primariamente juiacutezo entendido como modo de uniatildeo ou de tomada

de posiccedilatildeo seja pela aceitaccedilatildeo ou negaccedilatildeo Logos reporta-se agrave palavra legein tornar

manifesto aquilo de que se fala num discurso Por isso deixa que algo seja visto

comunicando a outro o que eacute manifestado e assim ldquoas posiccedilotildees individuais satildeo

penetradas pela tendecircncia a significar de um λέγειν assim que aspira a manifestar uma

determinada situaccedilatildeo objetiva Natildeo se chega ao λόγος se quiser comeccedilar com o mero

nomear A funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar48rdquo (HEIDEGGER (GA17)

2006 p43) Mas o que se manifesta O fenocircmeno (φαινόμενον) aquilo que se mostra a

si mesmo

A interpretaccedilatildeo da palavra φαινόμενον realizada por Heidegger no primeiro curso

proferido em Marburg indica inicialmente a existecircncia do mundo na medida em que ele

se mostrar a si mesmo49 como orientaccedilatildeo do horizonte temaacutetico da fenomenologia Em

1925 no curso Prolegocircmenos para uma histoacuteria ao conceito de tempo (GA20) o

esclarecimento do sentido originaacuterio do conceito de fenocircmeno seraacute elaborado conforme

o sentido encontrado tambeacutem em Ser e Tempo sect7 Φαινόμενον eacute o particiacutepio (forma

nominal do verbo) de φαίνεισθαι que como voz meacutedia50 significa mostrar-se e no

48 ldquoLas posiciones individuales estaacuten penetradas por la tendencia a significar de un λέγειν asiacute que aspira a

manifestar una determinada situacioacuten objetiva No se llega al λόγος si se quisiera comezar com el mero

nombrar La funcioacuten originaria de significaciacuteon es el manifestarrdquo Opcitp43

49 CfHeidegger (GA17) 2006p61

50 Um esclarecimento sobre a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito de

fenocircmeno por conseguinte da noccedilatildeo de fenomenologia Obviamente natildeo podemos aprofundar-nos nesse

complexo recurso gramatical que exigiria anos de estudos e profundo conhecimento da liacutengua helecircnica

Iremos apenas indicar sua especificidade A estrutura das vozes verbais na liacutengua portuguesa eacute constituiacuteda

de 3 possibilidades a ativa a passiva e a reflexiva Algumas Gramaacuteticas sugerem uma proximidade entre

a voz meacutedia grega e a voz reflexiva no portuguecircs contudo a voz meacutedia natildeo se esgota nessa comparaccedilatildeo

Seguimos a orientaccedilatildeo de Caio Vieira Reis de Camargo (2013) que em seu artigo reuacutene definiccedilotildees

importantes para os estudos linguiacutesticos contemporacircneos acerca da voz meacutedia

ldquoa) lsquoA voz meacutedia denota que o sujeito estaacute de alguma maneira especial envolvido ou interessado na accedilatildeo

do verborsquo (GILDERSLEEVE 1900 p64) b) lsquoVerbos () que tecircm posiccedilatildeo na esfera do Sujeito nos quais

o Sujeito todo parece participanteimplicadorsquo (BRUGMANNB 1903 p104) c) lsquoNa voz ativa os verbos

63

particiacutepio o que se mostra O aparecer o mostrar do fenocircmeno estaacute relacionado com a

raiz de φαίνω φῶς em portuguecircs luz claridade Assim ldquoos φαινόμενα configuram a

totalidade do que se mostra o que os gregos simplesmente identificaram tambeacutem com τὰ

ὄντα o ente51rdquo (HEIDEGGER (GA20)2006 p109) Podemos entatildeo dizer a totalidade

do que se mostra satildeo os fenocircmenos e se a funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar

o loacutegos da fenomenologia natildeo eacute o significado de um ou outro ente mas o manifestar do

ente o sentido de ser dos entes Fenomenologia em sentido formal eacute ldquofazer ver a partir

dele mesmo o que se mostra tal como ele por si mesmo se mostrardquo (HEIDEGGER (GA2)

2012 p119) e assim a fenomenologia caminha em direccedilatildeo agrave ontologia

No capiacutetulo anterior pudemos observar que para Husserl o que estava em jogo

como tarefa da fenomenologia era - a partir da unidade entre intuiccedilatildeo (atividade da

consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da consciecircncia e o

preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor a unidade

fenomenoloacutegica desses atos a saber apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo e

preenchimento de significaccedilatildeo Para Heidegger a intencionalidade fenomenoloacutegica agora

voltada para o sentido de ser dos entes revela que o fenocircmeno vem ao encontro natildeo em

funccedilatildeo da intencionalidade da consciecircncia onde poderia ser depurado na sua significaccedilatildeo

denotam um processo que se realiza a partir de um sujeito e sem ele na meacutedia que eacute a diaacutetesis a definir

por oposiccedilatildeo o verbo indica um processo em que o sujeito eacute o foco o sujeito estaacute no interior do processorsquo

(BENVENISTE 1966 p172) d) lsquoEm indo-europeu e em grego as desinecircncias meacutedias indicam que o

sujeito estaacute interessado de uma maneira pessoal no processorsquo (MEILLET 1937 p244) e) lsquoAs implicaccedilotildees

da meacutedia (quando em oposiccedilatildeo com a ativa) satildeo que a accedilatildeo ou estado afeta o sujeito do verbo ou seus

interessesrsquo (LYONS 1969 p373) Nessas definiccedilotildees a princiacutepio haacute dois empregos da meacutedia a meacutedia

reflexiva direta (especialmente a de Gildersleeve e Meillet voltadas para a questatildeo do interesse do sujeito

oracional) e a meacutedia reciacuteproca que envolve mais as construccedilotildees passivas e intransitivas da meacutedia

(ressaltada por Brugmann e Benveniste com a noccedilatildeo de que o sujeito todo participa e que estaacute interno ao

processo) A definiccedilatildeo de Meillet por outro lado eacute a mais comumente utilizada principalmente em

gramaacuteticas e meacutetodos de ensino do grego antigo atribuindo agrave media a noccedilatildeo de interesse por parte do

sujeito sendo que esse traccedilo embora existente em alguns casos natildeo eacute uacutenico e nem sempre tatildeo evidenterdquo

(pp 185-186)

Quando dissemos que entender a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito

de fenocircmeno pensamos nessa especificidade de algo que na accedilatildeo no verbo (existir manifestar) constitui a

si mesmo no interior do processo O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento como fenocircmeno

Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar

por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na

estabilidade de uma esfera para aleacutem do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua

manifestaccedilatildeo o sentido de sua proacutepria existecircncia

51 ldquoLos φαινόμενα configuran la totalidad de lo que se muestra a siacute mismo lo que los griegos simplemente

indetificaban tambieacuten con τὰ ὄντα lo enterdquoOpcit p109

64

Mas o loacutegos como manifestar-se do fenocircmeno em seu sentido originaacuterio como existente

eacute intencionado no es gibt originaacuterio na concretude do mundo que se daacute

Mas como eacute possiacutevel chegar ao acontecimento de ser do fenocircmeno sem a base de

uma consciecircncia em funccedilatildeo da qual o fenocircmeno pode ser depurado Os estudos da Sexta

Investigaccedilatildeo Loacutegica de Husserl ao distinguir intuiccedilatildeo sensiacutevel da categorial ofereceram

a Heidegger um acesso agrave compreensatildeo do sentido muacuteltiplo do ente Nas palavras do autor

ldquoQuando a partir de 1919 eu proacuteprio ensinando e aprendendo proacuteximo de

Husserl me exercitei na visatildeo fenomenoloacutegica e simultaneamente pus agrave prova

nos Seminaacuterios uma leitura de Aristoacuteteles diferente da habitual retomei o meu

interesse pelas Investigaccedilotildees Loacutegicas muito especialmente pela sexta da

primeira ediccedilatildeo A distinccedilatildeo ali elaborada entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial

revelou-se-me em todo o seu alcance como capaz de determinar lsquoo muacuteltiplo

sentido do entersquordquo (HEIDEGGER2009 p8)

Vejamos brevemente o ponto crucial dessa parte da VI investigaccedilatildeo a qual

Heidegger se refere A questatildeo central eacute ldquoTodas as partes e formas da significaccedilatildeo

correspondem tambeacutem partes e formas da percepccedilatildeo52rdquo (HUSSERL 1975 p106) Em

outras palavras nos enunciados da percepccedilatildeo ldquoUm S eacute Prdquo ldquoEste S eacute Prdquo ldquoTodo S eacute Prdquo

etc cada um de seus elementos (ldquoumrdquo ldquoSrdquo ldquoeacuterdquo ldquoPrdquo) possui significaccedilotildees que

preenchem a percepccedilatildeo Husserl responde negativamente somente S e P possuem

significaccedilatildeo que preenchem a percepccedilatildeo pois existe uma diferenccedila categorial absoluta

entre a forma expressiva e o material expresso E os enunciados da percepccedilatildeo chegam

somente aos elementos materiais que estatildeo presentes nos termos do enunciado

ldquoRepete-se a mesma distinccedilatildeo entre lsquomaterialrsquo e lsquoformarsquo naquilo que

consideramos unitariamente como um lsquotermorsquo Mas em todo enunciado de

percepccedilatildeo e tambeacutem naturalmente em todos os enunciados que exprimem uma

intuiccedilatildeo num certo sentido primaacuterio chegamos finalmente aos uacuteltimos elementos

ndash denominamos elementos materiais ndash que estatildeo presentes nos termos e que

preenchem diretamente na intuiccedilatildeo (percepccedilatildeo imaginaccedilatildeo etc) ao passo que

as formas complementares apesar de exigirem preenchimento enquanto formas

de significaccedilatildeo natildeo encontram diretamente na percepccedilatildeo e nos atos a ela

coordenados nada que jamais lhes possa ser conformerdquo(HUSSERL 1975p110)

52 Percepccedilatildeo aqui compreendida natildeo como mera percepccedilatildeo mas como atos fundados na percepccedilatildeo com

possibilidade objetiva

65

Husserl acompanha Kant na determinaccedilatildeo que ldquoser natildeo eacute um predicado realrdquo pois

a flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo -tanto na funccedilatildeo atributiva (sapato preto) quanto na forma

predicativa (Este sapato eacute preto) ndash natildeo se preenche atraveacutes de qualquer percepccedilatildeo Para

Husserl embora a proposiccedilatildeo kantiana ldquose refira ao ser existencial ao ser do

lsquoposicionamento absolutorsquo () eacute sempre possiacutevel entretanto aplicaacute-la ao ser predicativo

e atributivordquo (HUSSERL1975 p111) Se o ser natildeo eacute nada de aderente ao objeto natildeo eacute

uma caracteriacutestica real interna nem externa e ainda se ldquona esfera da percepccedilatildeo sensiacutevel

e assim compreendida e correlativamente na da intuiccedilatildeo sensiacutevel em geral () uma

significaccedilatildeo como a palavra ser natildeo encontra nenhum correlato objetivo possiacutevelrdquo

(HUSSERL1975 p112) entatildeo como ser vem agrave forma enunciativa Para Husserl o ser

soacute pode ser apreendido no julgar natildeo que ele seja obtido internamente a partir da reflexatildeo

mas no ato de julgar que correlato agrave intuiccedilatildeo do juiacutezo forma a unidade do juiacutezo evidente

Em outras palavras se o ldquo ser eacute fenomenologicamente interpretado como um modo

determinado do ser dadordquo ( ZAHAVI2015p47) a descriccedilatildeo de um fenocircmeno ou de um

estado de coisas em sua ligaccedilatildeo e unidade pelo juiacutezo vai aleacutem da intuiccedilatildeo sensiacutevel e eacute

preciso ampliar o conceito de intuiccedilatildeo considerando-a como uma intuiccedilatildeo categorial

pois ldquomesmo uma argumentaccedilatildeo teoacuterica ou uma anaacutelise conceitual pode ser considerada

como intuiccedilatildeo na medida em que ela nos traz agrave daccedilatildeo originaacuteria um estado de coisas um

traccedilo essencial ou uma demonstraccedilatildeo abstratardquo( ZAHAVI2015p55) Contudo esse

deslocamento do lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel o conduz a forma loacutegico sem revelar

de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno53

Portanto com o propoacutesito de elucidar a apariccedilatildeo originaacuteria de qualquer fenocircmeno

e junto com Aristoacuteteles Heidegger conclui que era Aleacutetheia desvelamento aquilo que

segundo Husserl consistia num ato da consciecircncia O ser natildeo eacute um predicado real se

abordado a cada vez como um ente Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar o ser como um

ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel e atributivo Ser

natildeo eacute um ente54 o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo com vistas agrave

53 Cf NUNES Benedito 2013 pp63-67 54 A diferenccedila ontoloacutegica eacute tomada tematicamente ou seja exposta explicitamente em 1927 em Os

problemas fundamentais da fenomenologia (GA24) Parte II Capiacutetulo I Mesmo de um modo natildeo temaacutetico

a diferenccedila entre ser e ente foi decisiva para a compreensatildeo da constituiccedilatildeo existencial do ser-aiacute nos escritos

anteriores sobretudo em Ser e Tempo Seguimos a leitura de LAFONT (1997) ldquoDo factum -central para a

abordagem de Ser e tempo - de que nossa relaccedilatildeo com o mundo estaacute mediada simbolicamente (o fato de

que lsquonos movemos sempre jaacute em uma compreensatildeo de serrsquo e que a realidade soacute eacute possiacutevel em uma

66

forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera para ldquoQual o

sentido de serrdquo E ao sentido do ser temos acesso pelo meacutetodo fenomenoloacutegico a partir

da situaccedilatildeo na qual o desvelamento dos entes acontece isto eacute no fenocircmeno da existecircncia

Como aponta Stein a apresentaccedilatildeo do conceito de fenomenologia em Ser e

Tempo eacute feita de maneira provisoacuteria no sect 7 e soacute ganha sua explicitaccedilatildeo na dinacircmica da

proacutepria anaacutelise do ldquoobjetordquo Mas tambeacutem como jaacute vimos aqui a especificidade e o fator

determinante do meacutetodo fenomenoloacutegico jaacute estatildeo em desenvolvimento na deacutecada de 20

Cito Stein

ldquoa descoberta que Heidegger fez que existe um primado da tendecircncia para o

encobrimento ()Ao inveacutes de pensar como Husserl e outros filoacutesofos que diante

de noacutes a realidade se estende agrave espera da rede de nossos recursos metodoloacutegicos

que a aprisionem Heidegger afirma que o homem e o essencial nas coisas tendem

para o disfarce ou estatildeo efetivamente encobertos Por isso volta-se para o comordquo

(STEIN 1971p16)

E o que se encobre de maneira excepcional natildeo eacute um ou outro ente mas o ser do

ente e ldquoa fenomenologia eacute o modo de acesso ao que deve se tornar tema da ontologia A

ontologia soacute eacute possiacutevel como fenomenologiardquo (HEIDEGGER (GA2) 2012 p 123)

Fenocircmeno loacutegos e aleacutetheia estatildeo numa imbricaccedilatildeo indissociaacutevel Stein (2001

p79) chega a dizer que a aleacutetheia esconde em si o meacutetodo fenomenoloacutegico e que o retorno

originaacuterio agrave palavra grega resume o pensamento de Heidegger Para nosso trabalho o

importante eacute compreender que a fenomenologia como meacutetodo para a ontologia encontra

no sentido originaacuterio de aleacutetheia a possibilidade de trazer agrave luz o que sustenta qualquer

presenccedila dos entes ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o que aponta para o velamento (lethe) que

ficou para traacutes que mostra para aquilo que a sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila

da aleacutetheia que se torna possiacutevel a objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito

pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89) Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em

sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao encontro em seu significado) no desvelamento

originaacuterio de seu ser mas essa mostraccedilatildeo dos fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira

compreensatildeo de serrsquo) deduz Heidegger a universalidade da lsquopreacute-estrutura do compreenderrsquo (Als-Struktur)

que constitui o nuacutecleo fundamental de sua transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia O instrumento

decisivo do ponto de vista metodoloacutegico que o permite obter este ponto de vista eacute a substituiccedilatildeo da

dicotomia empiacutericotranscendental - proacutepria da filosofia transcendental- pela lsquodiferenccedila ontoloacutegicarsquordquo p29

67

dissimulada sempre atraveacutes de uma objetificaccedilatildeo de seu ser como ente determinado pois

ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na medida em que partimos de seu

encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de descoberta perde seu sentido mais

efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Dessa forma ldquoa fenomenologia no sentido heideggeriano

eacute a desconstruccedilatildeo do evidente e em uma tal desconstruccedilatildeo interessa mostrar que o

evidente eacute em verdade uma modificaccedilatildeo do fenocircmeno lsquoserrsquordquo (FIGAL 2005p47) E aqui

a fenomenologia encontra a hermenecircutica em sua relaccedilatildeo mais radical pois essa

desconstruccedilatildeo do evidente parte do proacuteprio evidente a situaccedilatildeo faacutetica Pois ldquoo ser soacute

pode chegar entatildeo a ser visualizado se essas dissimulaccedilotildees forem comprovadas como

dissimulaccedilotildeesrdquo (FIGAL 2005p47) ou seja na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo faacutetica que

compreende previamente todos os entes

A atualizaccedilatildeo da filosofia antiga sob bases fenomenoloacutegicas eacute chamada de

ldquofenomenologia como repeticcedilatildeordquo55 O retorno ao pensamento de Aristoacuteteles e Platatildeo

realizado por Heidegger ldquonatildeo significa simplesmente acolher uma vez mais um

questionamento filosoacutefico herdado a fim de integraacute-lo no discurso de uma filosofia atualrdquo

e tambeacutem natildeo se trata de ldquoinserir uma filosofia atual em uma tradiccedilatildeordquo (FIGAL 2005

p32) Mas eacute consequecircncia da orientaccedilatildeo do trabalho heideggeriano de uma lsquofilosofia

cientiacuteficarsquo sem pressupostos O comeccedilo da filosofia eacute o questionamento em curso vivo

promovido pela proacutepria questatildeo e natildeo por sistemas externos agraves proacuteprias coisas A

pergunta pelo ser em Heidegger se torna temaacutetica na medida em que o desdobramento da

criacutetica imanente ao modelo husserliano conduz agrave pergunta fundamental inaugurada no

iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo

Se por um lado Heidegger pode ser associado agrave tradiccedilatildeo fenomenoloacutegica por

outro natildeo se pode esquecer a criacutetica imanente que ele fez agrave fenomenologia de Husserl e

que o conduziu a pensar a fenomenologia como meacutetodo a indicar o mundo a existecircncia

e a facticidade como campo de aparecimento dos proacuteprios fenocircmenos tornando portanto

a fenomenologia hermenecircutica Eacute nessa compreensatildeo da tarefa fenomenoloacutegica como o

modo de acesso ao que deve ser tornar tema da ontologia que Heidegger rejeita o

pressuposto husserliano da consciecircncia como correlato do aparecimento dos fenocircmenos

55 Cf Figal 2005 pp29-42 e STEIN 2001 p98

68

Ele o recusa natildeo somente pelo fato de as relaccedilotildees intencionais enquanto processos

mentais da consciecircncia se movimentarem pela pesquisa de conteuacutedos quididativos mas

tambeacutem e sobretudo pelo fato de

ldquoa consciecircncia apresentar em si mesma um contexto ontoloacutegico fechado Essa

ponderaccedilatildeo [a de que a consciecircncia parece natildeo precisar de qualquer objeto

exterior para existir] acaba por indicar a consciecircncia eacute absoluta em funccedilatildeo da

qual em geral a realidade pode se anunciarrdquo (HEIDEGGER Prolegomena zur

Geschichte p 144 apud FIGAL2005 p30)

Para Heidegger a fenomenologia transcendental de Husserl permanece ainda no

horizonte da modernidade Ao colocar o ldquomundo entre parecircntesesrdquo privilegiando a

experiecircncia da consciecircncia essa fenomenologia permaneceria incapaz de levar em conta

a realidade sem uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica e em uacuteltima instacircncia levar em conta as

vivecircncias concretas Heidegger natildeo abre matildeo da fenomenologia husserliana mas

radicaliza seu princiacutepio ldquode volta agraves coisas mesmasrdquo acentuando a tarefa pela existecircncia

e a partir da existecircncia dos fenocircmenos e no desvelamento buscar o sentido do ser de

todo e qualquer fenocircmeno

III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal

Falamos haacute pouco de Heidegger repetir a filosofia antiga como um desdobramento

da proacutepria pesquisa filosoacutefica entendida como ciecircncia originaacuteria e como pergunta pelo

sentido de ser Em Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles Introduccedilatildeo agrave pesquisa

fenomenoloacutegica (GA61) Heidegger desenvolve esse aspecto e indica a problemaacutetica

central e radical a ser enfrentada a partir de Aristoacuteteles a saber ldquodesde de Aristoacuteteles se

manteacutem uma influecircncia taacutecita nas vias da visatildeo e da fala lsquoarticulaccedilotildeesrsquo loacutegicardquo

(HEIDEGGGER (GA61) 2011p11) Antes de entrarmos nessa problemaacutetica apontada

por Heidegger tentemos compreender o que o autor quis dizer com aquela afirmaccedilatildeo

Cito Puente (2001)

ldquoPara Aristoacuteteles foi precisamente a negaccedilatildeo do movimento que levou

Parmecircnides ao postulado da univocidade do ente e seraacute portanto a partir da

afirmaccedilatildeo irrestrita do movimento () que o Estagirita procuraraacute expandir os

horizontes do ente para aleacutem da mera dicotomia estabelecida por Parmecircnides

entre Ente e natildeo-enterdquo (p25)

69

Seguindo a leitura de Puente Aristoacuteteles encontrou a plurivocidade ao afirmar o

movimento no acircmbito dos entes Aleacutem disso como veremos nos desdobramentos a

seguir ele o fez submetendo o acircmbito ontoloacutegico ao acircmbito loacutegico Submissatildeo essa que

foi adotada por toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica que passou a entender a loacutegica como uacutenica via

de acesso agrave ontologia Pois a polivocidade categorial inserida no interior da

quadriparticcedilatildeo semacircntico-ontoloacutegica estaacute por sua vez submetida ao princiacutepio loacutegico de

natildeo contradiccedilatildeo Dito de outro modo as categorias aristoteacutelicas substacircncia

(οὐσία substantia) quantidade (ποσόν quantitas) qualidade (ποιόν qualitas) relaccedilatildeo

(πρός τι relatio) lugar (ποῦ ubi) tempo (ποτέ quando) estado (κεῖσθαι situs) haacutebito

(ἔχειν habere) accedilatildeo (ποιεῖν actio) e paixatildeo (πάσχειν passio) satildeo parte das quatro

possibilidades semacircnticas categoria acidente verdade atopotecircncia Reiterando as

possibilidades semacircnticas de dizer o ente estatildeo submetidas a um princiacutepio loacutegico

fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado ao princiacutepio de identidade

Soacute eacute possiacutevel desenvolver uma ontologia acerca dos entes naturais e sair da univocidade

ontoloacutegica de Parmecircnides se a semacircntica respeitar a impossibilidade loacutegica de uma

simultaneidade de atribuiccedilotildees contraacuterias a um ente ao mesmo tempo Os vaacuterios modos de

dizer o ser ldquoa refutaccedilatildeo confutatoacuteria agrave tese parmenidiana pode ser analisada entatildeo como

o desdobramento loacutegico do pressuposto de Parmecircnidesrdquo (PUENTES2001 p25)

Nesse sentido enfrentar a via loacutegica no interior da filosofia eacute enfrentar a tradiccedilatildeo

que compreendeu que a filosofia devia ser definida bem como seus objetos de forma

conceitual sob princiacutepios loacutegicos Em outras palavras superar a tentativa de dizer

previamente tanto o que a filosofia eacute quanto o que eacute seu objeto de investigaccedilatildeo E em

uacuteltima instacircncia superar a concepccedilatildeo tradicional metafiacutesica que compreende toda

ontologia condicionada agrave loacutegica pois ao ter acesso ao ente atraveacutes das categorias

arrasta a compreensatildeo da verdade agrave semacircntica extensional com lugar privilegiado na

proposiccedilatildeo reduzindo a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo56

56 Aqui eacute pertinente destacar uma consideraccedilatildeo de Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro no prefaacutecio agrave traduccedilatildeo do

texto de Aristoacuteteles As categorias (trad Fernando Coelho Florianoacutepolis Ed Da UFSC 2014 p 9-10)

ldquo A grande questatildeo realmente capaz de colocar a tradiccedilatildeo em xeque eacute a de saber se a compreensatildeo do real

pelas categorias ontoloacutegicas de substacircncia qualidade quantidade tempo lugar etc eacute o que eacute porque as

categorias gramaticais de substantivo e sujeito adjetivo e predicadoetcjaacute se instalaram de antematildeo e

predeterminaram o escopo daquela compreensatildeo ndash metafiacutesica como lsquofeacute na gramaacuteticarsquo como aponta

Nietzsche ndash ou se ao contraacuterio o limite da gramaacutetica ocidental para dizer o real eacute que eacute por ser preacute-limitada

por sua compreensatildeo metafiacutesicardquo

70

Para Heidegger a filosofia deve sempre voltar-se para a vida faacutetica e cabe agrave

definiccedilatildeo filosoacutefica tornar expliacutecita a interpelaccedilatildeo A filosofia natildeo eacute portanto um

conjunto de mateacuterias determinadas (loacutegica ontologia poliacutetica esteacutetica etc) No sentido

formal57 da definiccedilatildeo (determinar o objeto em seu ser-o-que-como [ was-wie-sein]) a

filosofia eacute indicativa (anzeigend) cujo princiacutepio possui um caraacuteter bem especiacutefico

identificar a visatildeo preacutevia Mas o que eacute essa visatildeo preacutevia

ldquoNatildeo haacute aqui como contornar a facticidade do mundo que eacute o nosso e isto natildeo

porque ela definiria a nossa postura em relaccedilatildeo agraves coisas e funcionaria como um

matiz de ordem espiritual em nossa ligaccedilatildeo com o todo mas porque ela perpassa

originariamente o horizonte mesmo a partir do qual os entes se mostram como os

entes que satildeo Esse horizonte possui aleacutem disso um caraacuteter histoacuterico

sedimentado Ele natildeo se determina de maneira loacutegico-transcendental () mas se

constroacutei historicamente a partir de decisotildees de pensamento que vatildeo

paulatinamente determinando que se mostra ou natildeo como dotado de sentidordquo

(CASANOVA 2009 p47)

Assim contra o pensamento imperante da tradiccedilatildeo

ldquoO que se denomina filosoacutefico assim como os termos de acordo com os quais

problemas considerados filosoacuteficos satildeo levantados natildeo nasce nunca de uma

anaacutelise puramente loacutegica Ao contraacuterio tanto a designaccedilatildeo de algo como

filosoacutefico quanto o modo de colocaccedilatildeo dos problemas filosoacuteficos em geral

depende de estruturas faacuteticas que foram sendo lentamente decididas no interior

da tradiccedilatildeo Se desconsiderarmos uma tal dependecircncia o que fazemos eacute

simplesmente assumi-las como oacutebvias () que impedem um tratamento

originaacuterio dos fenocircmenosrdquo (CASANOVA 2009 p 47)

Seguindo Escudero no proacutelogo escrito agrave sua traduccedilatildeo do Relatoacuterio Natorp (2002

p11) para atingir a realidade primaacuteria da vida faacutetica Heidegger nos anos 1920 se

movimenta em duas decisotildees A primeira decisatildeo metodoloacutegica eacute desdobrada em dois

momentos a) o primeiro desconstrutivo descerrar o intricado mapa conceitual da

filosofia e voltar-se ao fenocircmeno da vida b) e o segundo construtivo fazer uma anaacutelise

formal dos diversos modos de efetivaccedilatildeo da vida em seu processo de realizaccedilatildeo histoacuterica

E a segunda decisatildeo a anaacutelise das estruturas ontoloacutegicas da vida que corresponde agrave

hermenecircutica fenomenoloacutegica do ser-aiacute precisamente agrave pergunta pelo sentido do ser no

57 A loacutegica para Heidegger eacute formalista natildeo formal Diz-se formal em relaccedilatildeo agrave indicaccedilatildeo formalista em

relaccedilatildeo a operacionalidade dos elementos da loacutegica Cf HEIDEGGER 2011 p28

71

interior mesmo do acontecimento preacute-teoacuterico da cotidianidade do ser-aiacute para assim ter

acesso ao sentido do ser em geral

Portanto o meacutetodo fenomenoloacutegico como indicativo-formal eacute parte do processo

metodoloacutegico construtivo para o acesso agrave vida faacutetica como maneira de fazer vir ao

encontro os fenocircmenos sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica bem como a maneira de

desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos categoriais de definiccedilatildeo

O elemento decisivo eacute a experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica no como do

aparecer de qualquer objeto e na medida em que este possa ser definido ldquodevem ser

hauridas do modo como o objeto se torna acessiacutevel originariamenterdquo (HEIDEGGER

(GA61) 2011 p28) Com outras palavras qualquer significado compreendido como

indicativo-formal e a expressatildeo linguiacutestica desse conceito satildeo proposiccedilotildees caracterizadas

como indicaccedilotildees hermenecircuticas A terminologia filosoacutefica e seu questionar mais

originaacuterio devem a cada vez indicar o campo situacional histoacuterico de onde extraem seus

conceitos Nas palavras de Heidegger (GA61) ldquoo decisivo eacute o desdobramento radical e

claro de uma situaccedilatildeo hermenecircutica como temporalizaccedilatildeo da proacutepria problemaacutetica

filosoacuteficardquo (2011 p11) Portanto a interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do conhecimento58

para Heidegger exige uma modificaccedilatildeo a pergunta se transforma em ldquocomordquo eacute o

conhecimento ldquoComordquo as coisas vecircm ao encontro e natildeo mais uma definiccedilatildeo que

responderia agrave questatildeo com pretensatildeo atemporal ldquoo que eacute o conhecimentordquo ou ldquoo que eacute

este enterdquo

Por conseguinte os indicadores formais tecircm a funccedilatildeo de explicitar e natildeo de

explicar pois seu caraacuteter indicativo formal potildee em tela atraveacutes de um conceito

inicialmente vazio e sem caraacuteter determinador elementos da proacutepria facticidade

(Faktizitaumlt) para que a anaacutelise hermenecircutica possa compreendecirc-los no interior mesmo da

facticidade e dessa forma encontrar o lugar vivo de cada elemento na estrutura

ontoloacutegica da realidade Mas qual a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo

situacional sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica e que revele tanto a situaccedilatildeo

58 Aqui vemos o compromisso de Heidegger com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do

sentido do conhecimento diligecircncia herdada da fenomenologia Poreacutem agora submetida a abordagem

ontoloacutegica E nesse sentido a abordagem hermenecircutica de Heidegger revela o caraacuteter derivado (de uma

situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento

72

compreensiva quanto descontrua a evidecircncia de toda determinaccedilatildeo conceitual dos entes

revelando antes o seu aparecer como ente Eacute o tema de nosso proacuteximo toacutepico

III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger

Segundo Heidegger ldquoo decisivo na investigaccedilatildeo de Dilthey natildeo eacute a teoria da ciecircncia

da histoacuteria senatildeo a tendecircncia em colocar a realidade histoacuterica agrave vista para a partir dela

esclarecer de que modo e maneira eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo59rdquo (HEIDEGGER (GA20)

2006 p34) Contudo Dilthey se movimenta no marco do questionamento de sua eacutepoca

buscando atraveacutes da vivecircncia da consciecircncia trazer agrave vista a realidade e a validade das

ciecircncias histoacutericas pois busca a partir da vida psiacutequica do sujeito histoacuterico o fundamento

para a garantia da objetividade dos elementos histoacutericos

Ao apresentar o imperativo das ciecircncias naturais e sua apropriaccedilatildeo da noccedilatildeo de

fenocircmeno no final do seacuteculo XIX em Ontologia (Hermenecircutica da facticidade) (GA63)

Heidegger apontou que na tentativa de superaccedilatildeo da metodologia cientiacutefica natural

apesar de ter negado sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito Dilthey se movimentou a partir

dessa orientaccedilatildeo pois seu projeto consistiu em lanccedilar as bases teoacutericas em uacuteltima anaacutelise

com pretensatildeo cientiacutefica para a abordagem dos fenocircmenos histoacutericos

ldquoO trabalho da filosofia concentra-se cada vez mais na teoria da ciecircncia na loacutegica

em seu sentido mais amplo e justamente com a loacutegica na psicologia Ambas

tomam a orientaccedilatildeo da ciecircncia natural e em particular da teoria do

conhecimento que vendo-se realizada na ciecircncia natural o conhecimento

verdadeiro busca as condiccedilotildees de tal conhecimento na consciecircncia Pretende-se

fazer o mesmo com a ciecircncia do espiacuterito dando supostamente um passo adiante

na direccedilatildeo que Kant havia delineado Aqui se considera que a tarefa principal

consiste na demarcaccedilatildeo serviram aqui de criteacuterio a ciecircncia natural embora per

negationem [] Ateacute mesmo Dilthey o qual estaacute propriamente arraigado na

histoacuteria e na teologia caracterizava a ciecircncia do espiacuterito como lsquocriacutetica da razatildeo

histoacutericarsquo apoiando-se naturalmente na problemaacutetica kantianardquo (HEIDEGGER

(GA63) 2012 p76)

Como dissemos Dilthey busca uma epistemologia das ciecircncias humanas a partir

da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos E a vivecircncia particular da consciecircncia

59 ldquoLo decisivo em el planteamiento de Dilthey no es la teoriacutea de la ciencia de la historia sino la tendencia

a poner la realidad de lo histoacuterico a la vista para a partir de ello aclarar de queacute modo y manera es posible

la interpretaciacuteonrdquo Opcit p34

73

como vida conexa e estruturante eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu

projeto Mesmo que Dilthey natildeo recorra agrave noccedilatildeo kantiana de sujeito transcendental ainda

estaacute subordinado agrave necessidade de fundamentaccedilatildeo uacuteltima ndash obrigatoriedade do

pensamento cientiacutefico criacutetico - por isso parte dos dados da psicologia descritiva

acreditando que eles poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar para as ciecircncias

humanas Dito de outro modo ainda que Dilthey tenha se negado a aplicar a metodologia

das ciecircncias naturais agraves ciecircncias humanas natildeo escapou ao ideal cientiacutefico de sua eacutepoca e

sucumbiu ao enrijecimento tradicional da estrutura do conhecimento como fundamento

Contudo Dilthey deu uma grande contribuiccedilatildeo agrave filosofia de sua eacutepoca ao pocircr a

realidade histoacuterica agrave vista e ao propocirc-la como ponto de partida para a anaacutelise que visa

esclarecer de que modo eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo Afastado da estrutura do conhecimento

como fundamento Heidegger indica a anaacutelise hermenecircutica como a forma de apreensatildeo

da abertura originaacuteria de sentido na qual se encontra o ser-aiacute enquanto ser-no-mundo e

como a preacute-compreensatildeo de seu ser e de todo e qualquer ente Com poucas palavras a

hermenecircutica fenomenoloacutegica (ou intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica no interior da situaccedilatildeo

hermenecircutica) constitui a condiccedilatildeo de possibilidade de toda investigaccedilatildeo ontoloacutegica

Aqui o termo ldquosentidordquo natildeo significa definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo mas a manifestaccedilatildeo do

ente em seu ser ou seja no modo como aquilo pode vir ao encontro e se manter como

ente e em uacuteltima instacircncia manter-se em seu significado Assim a apreensatildeo filosoacutefica

dessa abertura de sentido primaacuteria deve ser alcanccedilada na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo de

compreensatildeo dos entes no modo como os entes vecircm ao encontro sem qualquer teoria

pela formaccedilatildeo da posiccedilatildeo preacutevia Eacute por isso que ldquoo decisivo para a configuraccedilatildeo de uma

posiccedilatildeo preacutevia eacute ver o ser-aiacute em sua cotidianidade A cotidianidade caracteriza a

temporalidade do ser-aiacute (concepccedilatildeo preacutevia) Eacute inerente agrave cotidianidade certa medianidade

do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER (GA63) 2012 p90)

Indicamos alguns termos que ainda natildeo foram devidamente esclarecidos como

ser-aiacute ser-no-mundo temporalidade Trataremos mais detidamente desses termos baacutesicos

para a compreensatildeo da filosofia de Heidegger no proacuteximo capiacutetulo a partir da obra

principal de nossa dissertaccedilatildeo No momento faremos apenas esclarecimentos breves para

que possamos prosseguir a nossa apresentaccedilatildeo

74

Na tentativa de desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos

categoriais de definiccedilatildeo (gecircnero e diferenccedila especiacutefica) e a fim de acessar a mostraccedilatildeo

originaacuteria do fenocircmeno Heidegger usa a expressatildeo ser-aiacute (Dasein) para caracterizar

aquele ente que noacutes mesmos somos e indicar sua negatividade categorial pois o ser-aiacute soacute

eacute a partir do seu aiacute de sua existecircncia (mundo faacutetico no qual eacute lanccedilado) sem qualquer

categoria preacutevia que o defina Ponderaccedilatildeo apresentada pelo autor

ldquoAo chamar de homem o ser-aiacute que iraacute investigar coloca-se jaacute de antematildeo dentro

de uma determinada concepccedilatildeo categorial visto que o exame eacute levado a cabo

seguindo a direccedilatildeo da definiccedilatildeo tradicional de lsquoanimal racionalersquo () Tendo tal

definiccedilatildeo como direccedilatildeo define-se a descriccedilatildeo numa perspectiva determinada

sem que com ela se recuperem ativamente os motivos originaacuterios de tal maneira

de ver as coisasrdquo (HEIDEGGER(GA63) 2012 p34)

Mas entatildeo o que significa dizer que o ser-aiacute se encontra enquanto ser-no-mundo

Ao indicar o ser-aiacute Heidegger jaacute aponta a sua constituiccedilatildeo fundamental como ser-no-

mundo Mundo natildeo eacute um ente natildeo eacute o conjunto de entes nem eacute qualquer espacialidade

geomeacutetrica Ser-no-mundo eacute o encontro originaacuterio com a proacutepria facticidade (Faktizitaumlt)

e todas as possibilidades lanccediladas nesse encontro primordial ou como jaacute dissemos a

abertura de sentido na qual se encontra o ser-aiacute primariamente em seu mundo circundante

ldquoSer-no-mundo natildeo quer dizer aparecer entre outras coisas significa poreacutem

ocupar-se no circundante do mundo que vem ao encontro demorar-se nele O

modo proacuteprio de ser mesmo num mundo eacute o cuidado (sorge) () A vida se deixa

atingir ou fala consigo mesma mundanamente no e pelo cuidadordquo (HEIDEGGER

(GA63)2012 p107)

Se Dilthey compreende a categoria do significado como mediadora entre a

vivecircncia da consciecircncia e a realidade histoacuterica para Heidegger a significacircncia eacute a

articulaccedilatildeo do proacuteprio mundo que natildeo vem ao encontro a partir da consciecircncia mas da

ocupaccedilatildeo jaacute orientada pela facticidade (Faktizitaumlt) ldquoA significacircncia eacute um como do ser e

nele centra-se precisamente o categorial do mundo do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER(GA63)

2012 p91) E assim a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo situacional

sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica se daacute a partir da ocupaccedilatildeo do ser-aiacute que estaacute no mundo

propriamente como cuidado Cuidado natildeo quer dizer cuidado de si mas a disposiccedilatildeo agraves

coisas e a si em seu ser estar voltado para o ser dos entes E no caso da imediatidade da

vida a intencionalidade praacutetica que orienta a ocupaccedilatildeo

75

Para Heidegger trazer a realidade histoacuterica agrave vista eacute apropriar-se da situaccedilatildeo

hermenecircutica ou seja conquistar o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se

encontra o fenocircmeno da vida considerando que ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto

apropriaccedilatildeo compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo

(HEIDEGGER(GA62) 2002 p30) Em outras palavras o passado se manifesta sob a

interpretaccedilatildeo e abertura compreensiva possiacutevel no presente E portanto a partir da

abertura que dispotildee o presente lanccedilando suas possibilidades a tarefa da filosofia eacute

apropriar-se dessa compreensatildeo tendo em vista que ela atravessa o ser-aiacute em seu caraacuteter

ontoloacutegico que pode abrir-se a compreensatildeo de ser dos entes Eacute a partir daiacute que

ldquoVem agrave tona o papel paradigmaacutetico da filosofia platocircnico-aristoteacutelica para

Heidegger Segundo o filoacutesofo o que tem lugar em Platatildeo e Aristoacuteteles natildeo eacute algo

que diz respeito apenas ao interesse acadecircmico particular de um grupo de eruditos

especializados em suas obras Natildeo eacute filologia que nos fornece uma primeira via

de acesso aos elementos centrais de suas diversas compreensotildees nem tampouco

a filosofia acadecircmica que nos propicia pela primeira vez uma visatildeo clara do perfil

propriamente dito de seus escritos geniais Ao contraacuterio Platatildeo e Aristoacuteteles satildeo

decisivos para a constituiccedilatildeo das estruturas preacutevias de nossa interpretaccedilatildeo dos

entes porque temos neles a origem de boa parte dos horizontes investigativos

posteriormente sedimentadosrdquo (CASANOVA 2009 p59)

Heidegger entatildeo busca em Aristoacuteteles o ponto de partida natildeo soacute para as

interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas enquanto repeticcedilatildeo da pergunta ontoloacutegica fundamental

como tambeacutem para a interpretaccedilatildeo do uacutenico ente capaz de compreender o sentido do ser

dos entes o ser-aiacute Natildeo sem questionar a leitura tradicional da obra de Aristoacuteteles

Heidegger retomou a importante ldquodoutrinardquo do estagirita a qual estabelecia uma relaccedilatildeo

entre a sabedoria praacutetica (φρόνησις) a sabedoria (σοφία) e a vida do homem e seu modo

de existecircncia (βιος) De modo mais claro

ldquoAteacute Heidegger era comum tratar a obra de Aristoacuteteles a partir de um primado

da filosofa teoacuterica em relaccedilatildeo agrave filosofia praacutetica um primado que havia sido

preparado pelo modo tradicional de leitura do estagirita Partindo da concepccedilatildeo

aristoteacutelica da vida teoacuterica (βίος θεωρητικός) como a vida mais plena possiacutevel e

da filosofia como uma ciecircncia que natildeo se ateacutem aos entes em geral nem tampouco

a um ente especiacutefico mas que tem por uacutenico objeto o ser enquanto ser a

interpretaccedilatildeo tradicional do corpus aristoteacutelico cindiu radicalmente o acircmbito

praacutetico do acircmbito teoacuterico definindo o segundo como o uacutenico acircmbito da verdade

propriamente dita Com isso o acircmbito praacutetico foi relegado a um segundo plano

ao plano daquilo que dizia respeito apenas agrave melhor forma mundana de vidardquo

(CASANOVA 2009 p64)

76

O que estaacute em questatildeo para Heidegger natildeo eacute apenas identificar o fato de que nos

encontramos numa determinada tradiccedilatildeo definida por um extrato do conhecimento

historiograacutefico mas compreender radicalmente como nos situamos nessa tradiccedilatildeo No

texto de 1922 Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da

situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) comumente chamado de Natorp-Bericht ou Relatoacuterio-

Natorp Heidegger tenta explicitar a situaccedilatildeo hermenecircutica atraveacutes do como (wie) de todo

aparecer dos entes e das possibilidades do ser-aiacute na vida faacutetica Sendo o ser-aiacute aquele que

compreende a si mesmo e os outros entes sem qualquer preacutevia teorizaccedilatildeo em seu

acontecimento compreensivo Para tanto eacute necessaacuterio esclarecer as condiccedilotildees de

compreensatildeo e interpretaccedilatildeo ou conquistar o horizonte de sentido jaacute aberto no qual jaacute se

encontra o fenocircmeno da vida As condiccedilotildees satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a

direccedilatildeo da visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a

lsquovisibilidadersquo (Sichtweite)60 Satildeo essas condiccedilotildees que compotildeem a compreensatildeo e a

interpretaccedilatildeo ontoloacutegicas-temporais do ser-aiacute em relaccedilatildeo agraves suas possibilidades de ser e

em relaccedilatildeo aos entes que lhe vem ao encontro Essas condiccedilotildees natildeo satildeo lsquobarreirasrsquo para

o entendimento ao contraacuterio satildeo condiccedilotildees de abertura primaacuteria para qualquer

compreensatildeo ontoloacutegica Tentando esclarecer em (1) temos o acircmbito da realidade dada

em uma preacutevia abertura temporal de sentido em (2) a direccedilatildeo que jaacute determinou algo

ldquocomo-algordquo (Als-was) e ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu

lugar significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de

toda possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o

como do aparecer dos entes em seu ser e as possibilidades de comportamentos do ser-aiacute

eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto (1) e jaacute

interpretado (2) e por isso pode mover-se com pretensotildees de objetividade e definiccedilatildeo dos

entes

Eacute a partir dessas consideraccedilotildees que Heidegger desconstroacutei as noccedilotildees de

Aristoacuteteles engessadas pela tradiccedilatildeo de noucircs phroacutenesis e sophiacutea natildeo mais como

conceitos definidos a partir da leitura tematicamente eacutetica do Estagirita mas a partir da

orientaccedilatildeo da biacuteos ou seja da vida do homem e seu modo de existecircncia faacutetica No interior

do Relatoacuterio-Natorp a partir da interpretaccedilatildeo do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco de

60 Cf HEIDEGGER(GA62)2002 p29

77

Aristoacuteteles Heidegger apresenta essas virtudes dianoeacuteticas como ldquodiferentes

modalidades que permitem levar a cabo uma autecircntica custoacutedia do ser na verdade61rdquo

(HEIDEGGER (GA62) 2002 p60) O que quer dizer que se trata dos modos pelos quais

o ser-aiacute protege o ser dos entes enquanto desvelado (ἀλήθεια)

Para Heidegger o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona

um lsquoaquirsquordquo62 (HEIDEGGER(GA62) 2002 p66) essa virtude proacutepria do homem ldquose

realiza como ενέργεια como atividade () ou seja o νους abre um horizonte que sempre

responde a um modo concreto de tratar com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma

execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma determinaccedilatildeo63rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002

p66) O noucircs compreendido tradicionalmente como intelecto racional eacute proacuteprio do

homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica (homem (animal [gecircnero] + racional [diferenccedila

especiacutefica]) mas porque o homem ou melhor o ser-aiacute eacute o ente que pode custodiar abrir-

se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um compreender que jaacute interpreta

os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto na vida faacutetica que acontece

fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da

solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato praacutetico com os entes Essa

orientaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel porque no noucircs ldquoo loacutegos o legein eacute o modo atraveacutes do qual se

realiza o noein e como tal eacute um como tal eacute um διανοείσθαι um inteligir que decompotildee

e que apreende64rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002 p65) Vimos (II) que o λόγος na

fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν de interpretaccedilatildeo e natildeo diz

respeito agrave definiccedilatildeo linguiacutestica de um ou outro ente mas previamente a qualquer

determinaccedilatildeo gramatical ou categorial refere-se ao que manteacutem o ente como existente

portanto desvelado e interpretado em seu lsquocomo-entersquo Assim a relaccedilatildeo fundamental da

phroacutenesis - que prescreve o como o para-que do ente (utensiacutelio) - ao ser-aiacute eacute o

61 ldquoLa interpretacioacuten de este tratado prescindiendo provisionalmiente de la problemaacutetica especiacuteficamente

eacutetica permite comprender que las laquovirtudes dianoeacuteticasraquo son diferentes modalidades que permiten llevar a

cabo uma auteacutentica custodia del ser en la verdaderdquo Opcitp60 62 ldquoEl νους ofrece en general una perspectiva da algoproporciona un lsquoaquiacutersquordquoOp cit p66

63 ldquoEl νοῦς que es ίδιος άνθρωπος se realiza concretamente como ενέργεια como actividad como su

propia actividad es decir el νοῦς abre un horizonte que siempre responde a un modo concreto de tratar

con el mundo a traveacutes de una opercioacuten de una ejecucioacuten de una manipulacioacuten de una determinacioacutenrdquo

Opcitp66

64 ldquoel λόγος el λέγειν es el modo em el que se realiza el νοεῖν y como tal es un διανοείσθαι un inteligir

que decompone lo que apreenderdquo Opcit p65

78

desvelamento do ente no instante do proacuteprio trato da proacutepria atividade praacutetica sem

qualquer mediaccedilatildeo teoacuterica com o ente

Mas as atividades praacuteticas satildeo realizadas natildeo com fim em si mesmas mas com

vistas agrave execuccedilatildeo de um fim mobilizado pelo proacuteprio ser-aiacute em sua vida cotidiana e faacutetica

Assim o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se encontra o fenocircmeno da vida

parte do instante mesmo que potildee ao alcance da vista circunspecta o modo de

comportamento apropriado com o ente com vistas agrave execuccedilatildeo de um fim Desse modo

ldquoO ser da vida eacute considerado como uma atividade que encontra em si mesmo seu

fim o ser da vida se encontra nessa atividade quando a vida humana chegou a

seu fim com respeito a sua possibilidade de movimento mais proacutepria a

possibilidade de inteligir puro Essa atividade eacute proacutepria da εξις [do modo de ser]

que se conhece como σοφία Conforme seu caraacutecter intencional o compreender

puro natildeo custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo

forma parte do horizonte intencional da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso

pode ser de outra maneira O ser da vida humana deve ser considerado

unicamente desde a perspectiva da temporalizaccedilatildeo pura da σοφία como tal e em

razatildeo da autecircntica atividade a sua disposiccedilatildeordquo65 (HEIDEGGER (GA62) 2002

p71)

Assim o sentido do ser soacute pode ser abordado atraveacutes do ser-aiacute pois a pergunta

pelo ser do ser-aiacute possibilita a pergunta pelo sentido do ser em geral natildeo por um

fundamento teoacuterico mas como uma condiccedilatildeo ontoloacutegica O ser-aiacute eacute o ente que pode abrir-

se ao desvelamento dos entes e o faz a partir da proacutepria vida faacutetica sem qualquer

teorizaccedilatildeo preacutevia o ser-aiacute mobiliza o ser dos entes em geral em funccedilatildeo da proacutepria vida

ou seja dos modos possiacuteveis de ser a partir de sua temporalidade

Desde as primeiras investigaccedilotildees de Heidegger na deacutecada de 1920 daacute-se uma

profunda transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia a qual consiste na tentativa de

mostrar como eacute possiacutevel articular filosoficamente uma ciecircncia originaacuteria da vida ou em

mostrar como se daacute a realidade antes de qualquer consideraccedilatildeo cientiacutefica ajuizante isso

65 ldquoEl ser de la vida es considerado como uma actividad que encuentra em siacute mesma su fin el ser da la vida

se encuentra em esta actividad cuando la vida humana haacute llegado a su fin com respecto a su posibilidad de

movimento maacutes propia la posibilidad del inteligir puro Esta actividad es propia de la εξις [del modo de

ser] que se conoce como σοφία Conforme a su caraacutecter intencional el comprender puro no custodia la vida

humana en el modo de su ser faacutectico la vida humana no forma parte del horizonte intencional de la σοφία

ya que es un ente que en cada caso puede ser de otra manera El ser de la vida humana debe considerarse

unicamente desde la perspectiva de la temporalizacioacuten pura de la σοφία como tal y en razoacuten de la auteacutentica

actividad a su disposicioacutenrdquo Opcitp71

79

quer dizer antes de qualquer concepccedilatildeo teoacuterica de mundo Nesse sentido vimos que a

intencionalidade fenomenoloacutegica eacute intuiccedilatildeo compreensiva ou intuiccedilatildeo hermenecircutica em

meio ao mundo circundante que vem ao encontro E as coisas que vecircm ao encontro natildeo

respondem primariamente ao tradicional esquema sujeito-objeto mas resultam

compreensiacuteveis a partir da pertenccedila preacutevia a um mundo jaacute articulado ou a partir de um

estado de coisas preacute-compreendido na vida faacutetica que articula toda e qualquer

compreensatildeo do homem (das coisas e de si mesmo) desde sua existecircncia imediata no

mundo Dito de outro modo revela-se como compreensatildeo ontoloacutegica

Ao decidirmos apresentar as preleccedilotildees de Heidegger que antecederam a obra central

para o nosso trabalho foi nosso intuito elucidar os princiacutepios que provavelmente

motivaram a problemaacutetica exposta em Ser e Tempo A partir de agora nossa tarefa seraacute a

de tentar compreender a partir da obra de 1927 como o fenocircmeno da linguagem aparece

no interior dessa compreensatildeo e em que medida a linguagem eacute possiacutevel por uma

estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Eacute a tentativa de nosso proacuteximo capiacutetulo

80

Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da

linguagem (Sprache) em Ser e Tempo

ldquoa maacutequina do mundo se entreabriu para quem de a romper jaacute se esquivava e soacute de o ter pensado se carpiardquo (A maacutequina do mundo Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

Nos capiacutetulos anteriores descrevemos como do desenvolvimento das ciecircncias

positivas particulares no final do seacuteculo XIX emergiu a discussatildeo acerca do sentido e da

possibilidade do conhecimento No interior desse contexto destacamos o pensamento de

Husserl de Dilthey e as linhas gerais de alguns neokantianos de Baden A partir daiacute

descrevemos como a criacutetica heideggeriana agrave filosofia dos valores dos neokantianos

conduziu-o ao que ele proacuteprio chamou de lsquoes gibtrsquo originaacuterio como o campo

hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Para compreender a questatildeo pelo

sentido do ser em geral ie a proacutepria ontologia para Heidegger era necessaacuterio esclarecer

que a fenomenologia natildeo estava fundada na epistemologia (a partir da consciecircncia) e que

a hermenecircutica natildeo era apenas um instrumento metodoloacutegico capaz de nos dar acesso agrave

histoacuteria em sua objetividade mas muito mais do que isso ela era intuiccedilatildeo compreensiva

e imediata do mundo Assim a partir da criacutetica imanente que Heidegger fez ao meacutetodo

fenomenoloacutegico husserliano foi possiacutevel compreender como ele reconduziu a filosofia agrave

pergunta fundamental inaugurada no iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo a

pergunta pelo ser Aleacutem disso como o pensador desenvolveu a hermenecircutica voltada agrave

facticidade da vida natildeo em funccedilatildeo das vivecircncias da consciecircncia dos sujeitos histoacutericos

mas das vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico Todo esse percurso foi necessaacuterio para que

pudeacutessemos conquistar um solo interpretativo capaz de sustentar a anaacutelise do fenocircmeno

da linguagem tal como aparece em Ser e Tempo E ainda alcanccedilar a pergunta pelo

81

sentido de ser Pois ela a pergunta estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura

de sentido que precisamos explicitar

Contra a tradicional abordagem do problema da linguagem que mais comumente

focalizou as obras de Heidegger apoacutes a viragem (die Kehre)66 ie os escritos a partir

da deacutecada de 1930 neste capiacutetulo defenderemos que o fenocircmeno da linguagem (Sprache)

jaacute desempenha um papel decisivo em Ser e Tempo e que ele soacute se torna possiacutevel a partir

de uma das estruturas preacutevias existenciaacuterias examinadas na citada obra e que eacute a

estrutura de mostraccedilatildeo dos entes Assim embora admitindo que a questatildeo da linguagem

ainda natildeo estivesse posta de modo expliacutecito ou temaacutetico nosso trabalho pretende chamar

atenccedilatildeo para a inegaacutevel funccedilatildeo que a linguagem cumpre jaacute na obra de 1927

No sect 18 de Ser e Tempo Heidegger afirma que a significatividade funda a

possibilidade de significaccedilotildees e estas a possibilidade da linguagem

Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez

familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o

Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como

lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutengua

(HEIDEGGER 2012p261)

66 Apoacutes a Kehre nos anos 1930 a questatildeo do sentido de ser eacute reconduzida agrave histoacuteria e verdade do seer Este

movimento estaacute diretamente relacionado com o limite mesmo da obra de 1927 pois o processo de

singularizaccedilatildeo do ser-aiacute conforme elaborado em Ser e Tempo parece natildeo ser suficiente para a

movimentaccedilatildeo do horizonte histoacuterico e de sua semacircntica fechada Essa insuficiecircncia eacute levada agraves uacuteltimas

consequecircncias a partir dos anos 1930 e radicalizada com uma viragem em direccedilatildeo ao campo dos

acontecimentos histoacutericos Em Ser e tempo a negatividade proacutepria ao ser-aiacute apontava para a possibilidade

de mobilidade histoacuterica a partir da assunccedilatildeo como singularizaccedilatildeo de sua proacutepria negatividade e de sua

responsabilidade mais proacutepria como ser-aiacute de decisatildeo quanto aos caminhos de sua proacutepria existecircncia Jaacute

apoacutes a viragem a negatividade se mostraraacute natildeo somente a partir do ser-aiacute mas tambeacutem no assentamento

de toda abertura histoacuterica compreensiva uma negatividade que se mostraraacute na ausecircncia mesma de

fundamentos absolutos Caberia ademais considerar um aprofundamento das estruturas fenomenoloacutegicas

mais fundamentais no decorrer do pensamento de Heidegger Seraacute que em Ser e Tempo podemos defender

que a abertura que sustenta o sentido de ser do ser-aiacute como cuidado e temporalidade (Zeitlichkeit) estaria

afinal assentada no tempo histoacuterico Questatildeo afinal expressa na uacuteltima linha de Ser e tempo ldquoO tempo

(Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Seria entatildeo possiacutevel

pensar esse aprofundamento do gesto fenomenoloacutegico como a busca do limite de qualquer

intencionalidade Dito de outro modo apoacutes a Kehre o ser enquanto Ereignis (acontecimento apropriador)

poderia ser compreendido como o acircmbito sempre fugidio de toda e qualquer intencionalidade mas ao

mesmo tempo acircmbito no qual unicamente toda e qualquer intencionalidade pode acontecer Revelar-se-ia

o sentido fenomenoloacutegico do que Heidegger chama de clareira (die Lichtung)

82

Na seacutetima ediccedilatildeo de Ser e Tempo publicada em 1953 numa nota muito

esclarecedora acrescentada justamente a esta passagem acima citada Heidegger

evidenciou a diferenccedila entre a sua concepccedilatildeo da linguagem nos anos 20 e aquela apoacutes a

viragem Essa nota apareceu nas obras completas publicadas a partir de 1977 e tambeacutem

na traduccedilatildeo brasileira aqui utilizada Nessa nota muito importante para o objetivo desta

pesquisa o autor corrigiu sua proacutepria afirmaccedilatildeo (1927) de que a linguagem era derivada

Em 1953 ele declarou categoricamente que natildeo era verdadeiro que ldquoDasein-que-entende

[pudessecc] abrir como interpretante algo assim como lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais

[fundariamcc] novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo E que ldquoa liacutengua natildeo eacute

um pavimento sobreposto a outro senatildeo que eacute o desdobrar-se originaacuterio da verdade como

[aiacute] (HEIDEGGER 2012p261 nota c) Essa correccedilatildeo nos daacute uma prova de que a

concepccedilatildeo de linguagem em Ser e Tempo possuiacutea uma estratificaccedilatildeo que natildeo mais eacute aceita

apoacutes os anos 30 Poreacutem como aponta Stein o fenocircmeno da linguagem jaacute desempenhava

um importante e inegaacutevel papel no interior do tratado de 1927

Heidegger liga o questionamento de sua obra prima ao problema da linguagem

Ela assume papel condutor na elaboraccedilatildeo de seu meacutetodo e na realizaccedilatildeo analiacutetica

existencial No meacutetodo fenomenoloacutegico como interpretaccedilatildeo ou hermenecircutica

universal como apossamento de tudo o que foi transmitido pela tradiccedilatildeo atraveacutes

da linguagem como destruiccedilatildeo e revolvimento do chatildeo linguiacutestico da metafiacutesica

ocidental se descobre um imenso projeto de analiacutetica da linguagem Mas como

o meacutetodo fenomenoloacutegico visa o redimensionamento da questatildeo do ser natildeo numa

abstrata teoria do ser nem numa pesquisa historiograacutefica de questotildees ontoloacutegicas

mas numa imediata proximidade com a praacutexis humana como existecircncia e

facticidade a linguagem - o sentido a significaccedilatildeo - natildeo eacute analisada nun sistema

fechado de referecircncias mas ao niacutevel da historicidade Se no meacutetodo dialeacutetico

podemos encontrar uma certa miacutestica teleo-loacutegica (teleacuteo-troacutepica) a palavra no

meacutetodo do positivismo uma certa tecno-loacutegica da linguagem encontramos no

meacutetodo fenomenoloacutegico de Heidegger uma certa onto-loacutegica do dizer isto eacute uma

compreensatildeo da dimensatildeo preacute-ontoloacutegica da linguagem ligada a explicitaccedilatildeo do

mundo como horizonte de transcendecircncia (STEIN1971 p14)

Ser e Tempo possui certo caraacuteter preparatoacuterio pois eacute a tentativa de reformulaccedilatildeo

da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido depende justamente daquela

reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo O objetivo do tratado

eacute nos proacuteprios termos de Ser e Tempo a elaboraccedilatildeo concreta da pergunta pelo sentido

de ldquoserrdquo (Sinn von Sein) (HEIDEGGER2012 p31) No interior da elaboraccedilatildeo da proacutepria

83

pergunta a abordagem fenomenoloacutegica-hermenecircutica como meacutetodo de acesso ao sentido

de ser de todo ente acaba por demonstrar que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as

coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um campo de signos referenciais fechados que

doam significado agraves coisas mas uma manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez

se faz presente na facticidade da existecircncia concreta Nossa tentativa no presente capiacutetulo

eacute compreender como a partir da reelaboraccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ser e de seu

desenvolvimento nessa obra a linguagem se mostra enquanto manifestaccedilatildeo uacuteltima de um

horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo previamente

articulada dos entes e das possibilidades do ser-aiacute E dessa maneira indicar como as

palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da

experiecircncia hermenecircutica Mas antes de iniciarmos nosso capiacutetulo eacute necessaacuterio fazer

algumas consideraccedilotildees que se tornaram agora possiacuteveis apoacutes o desenvolvimento dos

capiacutetulos anteriores e as quais balizam nossa investigaccedilatildeo central

Certamente a fenomenologia husserliana tambeacutem natildeo atribui agrave linguagem um

aspecto referencial de acesso agraves coisas ao contraacuterio a assim chamada visatildeo das essecircncias

eacute a maneira de depurar o conteuacutedo linguiacutestico do conteuacutedo significativo preacute-linguiacutestico

Nas palavras de Gadamer (2010 p8)

A eleiccedilatildeo do modelo da visatildeo como modo do procedimento fenomenoloacutegico

indica que coisa mesma eacute preacute-conceptual e preacute-linguiacutestica A linguagem permite

articular o sentido da coisa mesma que contudo eacute independente da linguagem Eacute

aliaacutes apenas neste quadro que o exerciacutecio da eacutepoche se torna compreensiacutevel A

epocheacute eacute o que torna possiacutevel a reduccedilatildeo ao estado absolutamente desprovido de

preconceitos Mas o que eacute que torna a epocheacute possiacutevel A epocheacute eacute considerada

por Husserl como uma possibilidade de princiacutepio e como uma possibilidade

universal Mas esta possibilidade pressupotildee que se possa passar de uma plano

predicativo ndasho da linguagem ndash para um plano ante-predicativo - o da pura visatildeo

[] Por outro lado aquilo que se daacute de uma forma originaacuteria e na sua pureza daacute-

se como presenccedila absoluta numa figuraccedilatildeo atemporal Os fenoacutemenos no sentido

husserliano caracterizam-se por serem dados agrave consciecircncia de uma forma

absolutamente evidente e uacuteltima o fenoacutemeno eacute absoluta presenccedila a sua doaccedilatildeo

eacute plena

Husserl busca avanccedilar ateacute um plano imediato da experiecircncia que anteceda agrave

interpretaccedilatildeo como experiecircncia preacute-linguiacutestica a partir de intenccedilotildees linguiacutesticas Assim

busca na intencionalidade do fenocircmeno um estado desprovido de preconceito (epocheacute)

Heidegger alia-se a Husserl contra a tese de que o sentido ou o significado sejam

84

linguiacutesticos Contudo para o autor de Ser e Tempo toda experiecircncia jaacute inclui uma

interpretaccedilatildeo certamente natildeo linguiacutestica mas hermenecircutica e fundamentalmente praacutetica

Dessa forma intencionar um fenocircmeno a partir de um horizonte histoacuterico hermenecircutico eacute

considerar e apropriar-se do significado oferecido pelas condiccedilotildees preacutevias e em uacuteltima

anaacutelise por uma semacircntica sedimentada Dito de outro modo para Husserl a expressatildeo

linguiacutestica eacute a maneira de o pensamento intencionar significaccedilatildeo e a orientaccedilatildeo da

pesquisa pela condiccedilatildeo e possibilidade do conhecimento suspende todo posicionamento

ontoloacutegico da coisa mesma em prol do acesso epistemoloacutegico objetivo aos fenocircmenos Jaacute

na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto ontoloacutegico do

conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e qualquer significado

que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido que eacute tambeacutem histoacuterico e no qual

algo pode manter-se em seu significado Eacute nessa perspectiva que nos colocamos em busca

da estrutura ontoloacutegica da linguagem

Portanto eacute importante ter em vista que para Heidegger

(1) a experiecircncia hermenecircutica traz a significatividade (Bedeutsamkeit) que potildee a

descoberto todo e qualquer ente E na medida em que essa experiecircncia orienta o ponto

de partida da intencionalidade67 ela desvela o ente em seu ser o qual (ente) aparece

como algo No entanto essa significatividade se manteacutem em virtude de uma dupla

67 O termo ldquoDaseinrdquo eacute utilizado por Heidegger para afastar qualquer compreensatildeo de homem como

ldquosujeitordquo ldquoconsciecircnciardquo ldquoanimal racionalrdquo etc Desse modo poder-se-ia pensar que uma vez afastadas

essas interpretaccedilotildees tambeacutem o termo lsquointencionalidadersquo deveria ser desconsiderado pois a fenomenologia

husserliana o utiliza como ato de consciecircncia Natildeo eacute o caso Heidegger ainda manteacutem a orientaccedilatildeo

fenomenoloacutegica poreacutem a desloca da consciecircncia para a abertura compreensiva sendo ser-aiacutemundo a

relaccedilatildeo intencional primaacuteria e ainda essa compreensatildeo eacute fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo

circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser Ou sejavisatildeo natildeo teoacuterica

sem a primazia da consciecircncia A intencionalidade eacute pensada portanto natildeo como ato de consciecircncia mas

abertura compreensiva mobilizada por toda e qualquer performatizaccedilatildeo existencial Em Ser e Tempo o

termo lsquointencionalidadersquo e seus derivados aparecem apenas 4 vezes em 2 momentos 1) No sect10 ldquoAgrave essecircncia

da pessoa pertence o existir somente na execuccedilatildeo dos atos intencionais [intentionalen] e assim ela por

essecircncia natildeo eacute objeto () Em todo caso a pessoa eacute dada enquanto executora de atos intencionais

[intentionaler]ligados pela unidade de um sentidordquo (2012 p155) 2) No sect69 nota 10 ldquoA anaacutelise

intencional [intentionalen] da percepccedilatildeo e da intuiccedilatildeo em geral deveria sugerir essa caracterizaccedilatildeo

lsquotemporalrsquo do fenocircmeno Que e como a intencionalidade [Intentionalitaumlt] da lsquoconsciecircnciarsquo se funda na

temporalidade estaacutetica do Dasein ()rdquo Essa uacuteltima passagem eacute decisiva A intencionalidade eacute portanto

mantida por Heidegger mas deve ser compreendida em funccedilatildeo do sentido de ser do ser-aiacute a temporalidade

que abre compreensivamente o ser dos entes em geral Cf tambeacutem nota 70

85

abertura de sentido (Sinn) a abertura de mundo em funccedilatildeo do ser-aiacute e o sentido de ser

do ser-aiacute em funccedilatildeo da temporalidade de sua existecircncia

(2) a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados

(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Entatildeo o significado pode

vir a ganhar sua expressatildeo e forma predicativas a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo

(Aussage) em sua ligaccedilatildeo derivativa da interpretaccedilatildeo (Auslegung) Apresentando dessa

maneira o caraacuteter originaacuterio da verdade enquanto desvelamento (Aleacutetheia) e natildeo como

aderente ao juiacutezo proposicional como compreendeu a tradiccedilatildeo Eacute assim que se daacute

primariamente o acesso ao fenocircmeno da linguagem em seu sentido ontoloacutegico

Podemos antecipar aqui o que seraacute desenvolvido nesse capiacutetulo a linguagem estaacute

assentada em duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado68 que

revelam a diferenccedila entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm

articulados pela imbricaccedilatildeo radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno

Finalmente pedindo a paciecircncia do nosso leitor antes de comeccedilarmos o capiacutetulo

III vamos repetir um pouco o que jaacute foi adquirido nos dois primeiros capiacutetulos da

Dissertaccedilatildeo quando tentamos mostrar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger no

interior da fenomenologia (a partir de sua criacutetica imanente e radicalizaccedilatildeo do gesto

fenomenoloacutegico) foi decisiva para a virada da questatildeo compreendida como possibilidade

de acesso pelo sentido do conhecimento ao sentido do ser Agora a partir de Ser e Tempo

eacute possiacutevel considerar que houve um aprofundamento desse gesto fenomenoloacutegico Por

outra teria ocorrido um aprofundamento ou uma radicalizaccedilatildeo das estruturas

fenomenoloacutegicas De modo mais claro eacute possiacutevel compreender o percurso heideggeriano

como uma tentativa de lanccedilar a intencionalidade enquanto essecircncia mesma da

68 Diferentemente de VIGO (2012 p71) que considera 3 estruturas compreensatildeo (Verstehen) -

interpretaccedilatildeo (Auslegung) e enunciado (Aussage) noacutes consideraremos apenas duas tendo em vista que

julgamos natildeo ser a compreensatildeo uma estrutura autocircnoma e que portanto ela natildeo deve ser separada da

interpretaccedilatildeo Seguimos a letra do sect32 de Ser e Tempo ldquoNa interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo

diverso mas torna-se ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p421) Pensamos que conceder autonomia agrave

compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido primaacuterio ao natildeo remetecirc-la ao Dasein quem

compreendendo jaacute interpreta e custodia o sentido de ser dos entes jaacute estariacuteamos no campo dos

acontecimentos histoacutericos Portanto estariacuteamos ultrapassando os limites de Ser e Tempo ou mais

especificamente falando os limites da ldquoAnaliacutetica Existencialrdquo

86

fenomenologia num acircmbito fundamental que se abriria a toda e qualquer possibilidade

de intencionalidade Vejamos essas questotildees mais detidamente

Como jaacute indicado tanto em Heidegger como em Husserl existe um primado da

experiecircncia antepredicativa em detrimento da predicaccedilatildeo ou da experiecircncia

predicativamente articulada69 Jaacute na preleccedilatildeo de 1919 Heidegger apontava o lsquoes gibtrsquo

originaacuterio ou a concretude do mundo que se daacute como acircmbito fundamental no qual se abre

a possibilidade de intencionalidade Depois dela as preleccedilotildees dos anos 1920 passaram a

descrever a intencionalidade como uma noccedilatildeo praacutetica orientada pela ocupaccedilatildeo e com base

nisso descreveram a experiecircncia antepredicativa e histoacuterica do significado Mas foi

somente em Ser e Tempo que Heidegger elaborou uma ontologia fundamental a partir da

analiacutetica existenciaacuteria70 do ser-aiacute A ontologia fundamental eacute descrita como a necessidade

de pocircr em questatildeo o ente em que a compreensatildeo de ser enquanto questatildeo eacute possiacutevel ou

como expresso no Relatoacuterio Natorp o ente que pode custodiar abrir-se ao desvelamento

do ser dos entes Mas o que isso significa sob uma perspectiva fenomenoloacutegica

A descriccedilatildeo do ser-aiacute como existecircncia projetiva assentada em sua negatividade

proacutepria (negatividade entendida pelo fato de que o ser-aiacute soacute eacute a partir do seu aiacute de sua

69 Nesse sentido conferir tambeacutem VIGO 2012 p75 70 Na traduccedilatildeo de Ser e Tempo utilizada os termos Existenzial e Existenzielle satildeo traduzidos por

ldquoexistenciaacuteriordquo e ldquoexistencialrdquo respectivamente A diferenccedila foi estabelecida por Heidegger para marcar a

determinaccedilatildeo constitutiva da existecircncia (ou sua estrutura) cuja determinaccedilatildeo cabe agrave ontologia

(existenciaacuterio) da determinaccedilatildeo existencial (existencial) que trata de um assunto ocircntico do Dasein ou de

um conhecimento que conduz a si mesmo (HEIDEGGER 2012 sect4-9)

Apesar da consulta a outras traduccedilotildees (francesa de Emmanuel Martineau e espanhola de Jorge Rivera)

usaremos os termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho Em alguns momentos aleacutem da

traduccedilatildeo de Castilho que eacute bastante recente (2012) tambeacutem citaremos as palavras da traduccedilatildeo brasileira

anterior (com exceccedilatildeo da traduccedilatildeo de lsquoDaseinrsquo como lsquopresenccedilarsquo que natildeo seraacute utilizada nesse trabalho)

Acerca dos termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho haveraacute apenas duas exceccedilotildees a

primeira refere-se ao uso da palavra lsquoDaseinrsquo a qual Castilho Rivera e Martineau mantiveram no original

alematildeo obedecendo uma sugestatildeo do proacuteprio Heidegger Ser-aiacute eacute a traduccedilatildeo portuguesa do termo alematildeo

Dasein que no uso comum na liacutengua alematilde eacute usado como sinocircnimo para existecircncia mas que no texto

heideggeriano tem um significado peculiar tornando a traduccedilatildeo do termo problemaacutetica Em uma carta de

Heidegger a Jean Beaufret datada de 23 de Novembro de 1945 o autor daacute a seguinte informaccedilatildeo ldquolsquoDa-

sein eacute uma palavra-chave do meu pensar por isso ela eacute causa de graves erros de interpretaccedilatildeo natildeo significa

para mim exatamente eis-me mas se eacute que me posso exprimir num francecircs sem duacutevida impossiacutevel ser-

o-aiacute e o-laacute significa exatamente Aleacutetheia desvelamento-aberturardquo (Carta sobre o humanismo Martin

Heidegger - 2 ed rev Traduccedilatildeo de Rubens Eduardo Frias Satildeo Paulo Centauro ndash 2005 p 89) Algumas

vezes infieacuteis a Castilho e ao proacuteprio Heidegger utilizaremos tambeacutem a sua traduccedilatildeo ldquoser-aiacuterdquo para maior

fluidez do texto A segunda exceccedilatildeo refere-se agraves citaccedilotildees cuja opccedilatildeo por traduccedilotildees tradicionais resolvemos

natildeo alterar

87

existecircncia) sem qualquer categoria preacutevia que o defina potildee em tela que esse ente eacute

marcado pelo caraacuteter de poder-ser orientando-se segundo possibilidades existenciais que

natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas somente na morte como fim de todas as

possibilidades Isso se daacute porque o ser-aiacute eacute o limite fundamental no qual se abre a

possibilidade de intencionalidade ou o sentido do experimentado enquanto

experimentado71 ldquoSoacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a abertura do ser-no-

mundo lsquopode ser preenchidarsquo pelo ente que nele pode ser descobertordquo (HEIDEGGER

2012 p429) De outro modo se para Husserl a noccedilatildeo de intencionalidade faz com que a

cada vez que o pensamento se volte agrave consciecircncia ela descortina sua direccedilatildeo em relaccedilatildeo

ao fenocircmeno Para Heidegger poreacutem uma vez superada a primazia da consciecircncia a

cada vez que o pensamento se volta ao Dasein ele descortina sua direccedilatildeo ao mundo

fenocircmeno originaacuterio em que os entes podem vir ao encontro em seu ser bem como as

possibilidades de ser do proacuteprio Dasein

A ontologia fundamental aparece em sua necessidade porque o ser-aiacute mesmo natildeo

pode ser intencionado significativamente natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente

e por isso seu caraacuteter de poder-ser por isso ele poder mobilizar sentidos e atualizar

significaccedilotildees Assim o ser-aiacute eacute o ente que custodia e compreende o ser do ente jaacute em suas

atividades praacuteticas ou seja ele mobiliza a intencionalidade mas eacute o ente que a

intencionalidade natildeo pode alcanccedilar Na tentativa de apreendecirc-lo em seu ser a anaacutelise

conduz para fora para seu ldquoaiacuterdquo Assim Dasein eacute ser-aiacute eacute existecircncia que se projeta

lanccedilada no ldquoaiacuterdquo histoacuterico O Dasein como apresentado por Heidegger ldquoenvolve uma

dimensatildeo de ser (-sein) e por outro uma dimensatildeo locativa um aiacute (Da-)rdquo (CASANOVA

2006 p12) e isto deve-se ao fato que ldquoapenas ele [Dasein] se acha no ponto de

imbricaccedilatildeo de ser e mundordquo (CASANOVA 2006 p12)

71 Cf HEIDEGGER (GA62) 2002 p 71 ldquoConforme seu caraacutecter intencional o compreender puro natildeo

custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo forma parte do horizonte intencional

da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso pode ser de outra maneirardquo ldquoDas reine Verstehen bringt

nicht etwa nach seinem intentionalen Charakter das menschliche Leben im Wie seines faktischen Seins in

Verwahrung die σοφία hat es uumlberhaupt nicht zu ihrem intentionalen Worauf es ist ja ein Seiendes das ist

gerade dadurch daszlig es je anders sein kannrdquo (HEIDEGGER GA62 [pp385-386] grifo nosso)

88

Dessa forma a pergunta pelo sentido do ser seraacute elaborada conforme os trecircs

momentos constitutivos da questatildeo descritos no sect2 de Ser e Tempo

1- O perguntando ou aquilo de que se pergunta ser do ente

2- O interrogado ou aquilo a quequem se pergunta Dasein

3- O perguntado ou aquilo que se pergunta sentido do ser em geral

A pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2) perguntando

sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma ontologia

fundamental Isso esclarecido podemos iniciar propriamente nosso capiacutetulo e tema

central de nosso trabalho

I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado)

Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico

II A dupla abertura de sentido (Sinn)

Conforme descrito no sect9 de Ser e Tempo o ser-aiacute eacute o ente que a cada vez somos

(eu tu etc) ou seja a particular existecircncia finita e histoacuterica natildeo um conceito geneacuterico

em que as diferenccedilas especiacuteficas apareceriam na experiecircncia sensiacutevel Para esse ente ldquoo

ser ele mesmo eacute o que estaacute a cada vez em jogordquo (HEIDEGGER 2012 p139) Existir e

ser responsaacutevel pelo seu ser eacute o mesmo No que existe o ser-aiacute tem-que-ser (Zu-sein) a

ele natildeo eacute facultado a escolha de haver ou natildeo com seu ser uma vez sendo ele eacute e sendo

ele ldquose comporta em relaccedilatildeo ao seu ser como em realizaccedilatildeo de sua possibilidade mais

proacutepria O Dasein eacute cada vez sua possibilidade (Moglichkeit)rdquo (HEIDEGGER 2012

p141)

Por meio de toda e qualquer performatizaccedilatildeo (com relaccedilatildeo a si mesmo em relaccedilatildeo

aos outros e em relaccedilatildeo aos entes) o ser-aiacute enssencializa a si mesmo como existecircncia E

89

no que se enssencia (como existecircncia e natildeo categorialmente) o seu ser mesmo estaacute em

jogo pois eacute por essa determinaccedilatildeo ontoloacutegica negativa que o ser-aiacute pode conquistar seu

poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees cotidianas

Assim o desenvolvimento da analiacutetica existenciaacuteria aponta para a compreensatildeo do

sentido formal72 da constituiccedilatildeo da existecircncia do ser-aiacute ldquoO Dasein se determina cada vez

como ente a partir de uma possibilidade que ele eacute e que ao mesmo tempo e de alguma

maneira ele entende em seu serrdquo (HEIDEGGER 2012 p 143)

As orientaccedilotildees cotidianas ou a cotidianidade mediana ndash em que o ser-aiacute pode

perder-se no poder-ser improacuteprio - natildeo deve ser considerada pejorativamente como algo

a ser extirpado da existecircncia e da analiacutetica Ao contraacuterio em realidade natildeo pode A

impropriedade oferecida por essas orientaccedilotildees eacute em suma a maneira inicial em que o ser-

aiacute - como ser-no-mundo como ente lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ndash estaacute aberto para seus

possiacuteveis modos de ser Dessa forma a anaacutelise da cotidianidade tem um caraacuteter

fenomecircnico positivo para a analiacutetica existenciaacuteria pois eacute a partir desse modo de ser

improacuteprio que o ser-aiacute eacute lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria

das vezes Portanto natildeo eacute apenas lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade

A analiacutetica existenciaacuteria inicia entatildeo sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio E se

dissemos haacute pouco eacute que por meio da performatizaccedilatildeo que o ser-aiacute enssencia a si mesmo

como existecircncia e essa orientaccedilatildeo para qualquer performance natildeo eacute ilimitada Como as

possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha para um ato de vontade

do ser-aiacute mas satildeo mobilizadas na e pela existecircncia radicalmente histoacuterica o ser-aiacute pela

abertura primaacuteria remetido ao mundo eacute marcado pelo caraacuteter de poder-ser (Seinkonnen)

mas em funccedilatildeo de sua realizaccedilatildeo como possibilidade (Moglichkeit) De modo mais claro

ldquopor natildeo possuir nenhuma quididade [o ser-aiacute cc] eacute a realidade da possibilidade para a

possibilidade () Natildeo podendo ser puro poder-ser pois se assim o fosse o ser-aiacute jaacute seria

algo positivamente definidordquo (CABRAL 2015 p79) Dessa forma o ser-aiacute que a cada

vez deve conquistar o seu ser na radicalidade de sua finitude e historicidade eacute o ente que

pode pela sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica mobilizar sentido E por isso mobilizar na

72 Quando nos referirmos a ldquosentido formalrdquo no decorrer de nosso trabalho Cf Capiacutetulo II- Item III-

Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal

90

concretude da vida faacutetica o sentido de ser dos entes os sentidos das relaccedilatildeo aos outros e

sentido de seu ser

ldquoO desvelamento do ser exige sempre um ponto de partida ocircntico Mas o ser-aiacute

eacute privilegiado e ontologicamente ocircntico por causa de sua preacutevia compreensatildeo de

ser Entatildeo o desvelamento do ser deveraacute ser tentado primordialmente a partir do

ser-aiacute mediante uma analiacutetica existencial de suas estruturas O sentido do ser

(preocupaccedilatildeo) dessas estruturas do ser-aiacute eacute a temporalidade Assim a analiacutetica das

estruturas deveraacute ser refeita no homem na temporalidaderdquo (STEIN 2001 p204)

A preacutevia compreensatildeo de ser do ser-aiacute sua negatividade quiditativa seu caraacuteter

de poder-ser e sua constituiccedilatildeo aberta lanccedilada e remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo eacute dada

como acontecimento compreensivo A compreensatildeo ou o entender (Verstehen) eacute uma

das estruturas existenciaacuterias desse ente ocircntico-ontoloacutegico73 e ldquoao interpretaacute-lo como

existenciaacuterio fundamental mostra-se que esse fenocircmeno eacute assim concebido como modus

fundamental do ser do Daseinrdquo (HEIDEGGER 2012 p407) Esse existenciaacuterio

fundamental natildeo refere a uma capacidade entre outras do ser-aiacute de apropriar-se de algo

pelo entendimento intelectivo natildeo eacute uma relaccedilatildeo entre sujeito-objeto mas a constituiccedilatildeo

fundamental do ser-aiacute como ser-no-mundo como relaccedilatildeo intencional primaacuteria e desse

modo o horizonte compreensivo do ser-aiacute com seu ser ldquoO ser-aiacute possui uma relaccedilatildeo

compreensiva com o seu ser porque eacute somente por meio da compreensatildeo que ele encontra

o campo de jogo no interior do qual pode conquistar esse seu serrdquo(CASANOVA 2006

p 13) O ldquoDardquo ou ldquoaiacuterdquo do Dasein e sua estrutura fundamental ser-no-mundo podem ser

esclarecidos em contraponto a concepccedilatildeo paradigmaacutetica da epistemologia moderna de

Kant por exemplo O entender (Verstehen) tal como Heidegger o apresenta natildeo se baseia

na associaccedilatildeo psicoloacutegica das representaccedilotildees ou ainda a abertura primaacuteria que conduz o

ser-aiacute agraves suas possibilidades em que seu ser estaacute em jogo natildeo eacute algo como apercepccedilatildeo

No paradigma epistemoloacutegico da modernidade em uacuteltima instacircncia o entendimento eacute

uma reconstruccedilatildeo interna dos elementos externos do mundo reconstruccedilatildeo essa que

depende das faculdades cognitivas do sujeito capazes de unificar o agregado de

experiecircncias externas O entendimento em Heidegger eacute a abertura primaacuteria uma relaccedilatildeo

intencional estruturante ser-aiacute eacute ser-no-mundo portanto o Dasein eacute sempre remetido ao

73 Ocircntico pelo fato de ser ainda um ente ontoloacutegico pelo fato de ser o ente que pode e sempre abre a

compreensatildeo de ser (Cf HEIDEGGER 2012 sect4-9)

91

ldquomundordquo projetado para ldquoforardquo e esse ldquoforardquo eacute sempre abertura compreensiva ao mundo

faacutetico como horizonte hermenecircutico de sentido

Essa abertura compreensiva fundamental descerra o poder-ser do ser-aiacute como

projeto O fato de o ser-aiacute ser lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ao seu poder -ser em um

campo de jogo para seus possiacuteveis modos de ser natildeo conduz a um determinismo

circunstancial o qual o ser-aiacute estaria fadado a reproduzir maquinalmente e atualizar

incessantemente Tambeacutem ldquoo projetar nada tem a ver com um comportar-se em relaccedilatildeo a

um plano ideado de acordo com o qual o Dasein organizaria o seu serrdquo (HEIDEGGER

2012 p413) mas originariamente ldquoele sempre jaacute se projetou e se projeta enquanto eacuterdquo

(HEIDEGGER 2012 p413) A noccedilatildeo de projeto repousa na abertura compreensiva do

ser-aiacute e na sua ligaccedilatildeo radical com suas possibilidades Logo no iniacutecio do sect32 essa noccedilatildeo

eacute explicitada

ldquoO Dasein como entender projeta seu ser em possibilidades Esse entendedor ser

para possibilidades eacute ele mesmo um poder-ser pelo efeito contraacuterio que as

possibilidades como abertas tecircm sobre o Dasein O projetar do entender tem uma

possibilidade proacutepria de desenvolvimento Chamamos interpretaccedilatildeo o

desenvolvimento do entender Na interpretaccedilatildeo o entender entendendo

apropria-se do seu entendido Na interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo

diverso mas torna-se ele mesmo () A interpretaccedilatildeo natildeo consiste em tomar

conhecimento do entendido mas em elaborar possibilidades projetadas no

entenderrdquo (HEIDEGGER 2012 p421)

Dissemos haacute pouco que as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como

disponiacuteveis agrave escolha e agrave espera de um ato de vontade do ser-aiacute (natildeo estatildeo suspensas como

que dadas a cada ser-aiacute ao nascer como gocircndolas de projetos de ser) mas satildeo mobilizadas

na e pela existecircncia E ainda que essa existecircncia seja sempre projetiva em um mundo

histoacuterico Desse modo o entender (Verstehen) acontece sempre como interpretaccedilatildeo

(Auslegung) a abertura ao mundo eacute um projeto de sentido do ser-aiacute que jaacute interpreta que

jaacute potildee em visatildeo o que entende Mas o que isso quer dizer Como Heidegger chega a esses

existenciaacuterios

Vimos no capiacutetulo anterior a partir da leitura do texto de 1922 Interpretaccedilotildees

fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) ou

Relatoacuterio-Natorp que o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona

92

um lsquoaquirsquordquo essa virtude proacutepria do homem ldquose realiza como ενέργεια como atividade

() ou seja o νους abre um horizonte que sempre responde a um modo concreto de tratar

com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma

determinaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2002 p66) Compreendido tradicionalmente como

intelecto propriamente racional o noucircs eacute proacuteprio do homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica

[homem (animal (gecircnero) + racional (diferenccedila especiacutefica)] mas porque o ser-aiacute eacute o ente

que pode custodiar abrir-se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um

compreender que jaacute interpreta os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto

na vida faacutetica que acontece fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis

enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato

praacutetico com os entes

Em Ser e Tempo Heidegger descreve as vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico e

tambeacutem como o fenocircmeno do mundo se mostra atraveacutes dos entes intramundanos A forma

imediata de esses entes se mostrarem daacute-se na lida praacutetica que o ser-aiacute trava com eles em

um mundo circundante ou em um mundo-ambiente (Umwelt) Eacute atraveacutes da ocupaccedilatildeo

com os entes que o ser-aiacute se movimenta inicialmente na compreensatildeo faacutetica de mundo eacute

aiacute que o Dasein visualiza os entes em sua serventia especiacutefica no quadro de um horizonte

ocupacional Esse horizonte possui certa anterioridade em relaccedilatildeo ao proacuteprio uso do

instrumento ou utensiacutelio (Zeug) particular e isto fica claro no sect 15 quando Heidegger

potildee em relevo o modo de ser dos utensiacutelios na delimitaccedilatildeo preacutevia do que seja sua

instrumentalidade ldquoEm termos rigorosos um instrumento nunca lsquoeacutersquo isolado Ao ser de

instrumento pertence sempre cada vez um todo-instrumental no qual esse instrumento

pode ser o que ele eacute Instrumento eacute por essecircncia lsquoalgo pararsquo (HEIDEGGER 2012

p211) Na essecircncia do instrumento estaacute sempre a referecircncia de algo para algo O ser do

utensiacutelio e seu significado que aparece no instante do trato portanto jaacute interpretado a

partir do uso nascem da totalidade utensiliar (Zeugganzheit) que o atravessa Mas esta

totalidade utensiliar se assenta num contexto ainda mais complexo Se o utensiacutelio eacute

confeccionado de acordo com a sua finalidade especiacutefica como ldquoalgo parardquo seu uso o

liga a outros utensiacutelios por exemplo o pincel que uso para pintar remete-se agrave tela que

uso para suporte da tinta Assim como a tela remete-se natildeo soacute a sua finalidade mas

tambeacutem aos materiais atraveacutes dos quais ela foi produzida madeira tecido e gesso E

ainda remete-se ao produtor da tela ou seja aos outros entes no modo de ser do ser-aiacute

93

Poreacutem essa descriccedilatildeo do instrumento em um mundo-ambiente (Umwelt) ainda eacute

insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica de todo ente em geral

Assim conforme o sect 17 Heidegger aponta que a estrutura do sinal (Zeichen) ldquofornece

um fio condutor ontoloacutegico para uma lsquocaracterizaccedilatildeorsquo de todo ente em geralrdquo

(HEIDEGGER2012 p 233) O sinal enquanto utensiacutelio tem em sua serventia especiacutefica

o mostrar e ao mostrar fornece o fenocircmeno da referecircncia natildeo somente de sua referecircncia

mas de todo e qualquer ente uma vez que a relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia explicita o

fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua finalidade

na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal enquanto

instrumento nos mostra o mundo circundante e potildee em relevo o caraacuteter da referecircncia

que natildeo deve ser confundida com o proacuteprio sinal pois natildeo eacute determinaccedilatildeo ocircntica de um

ou outro manual especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica do manual e fundamento

constitutivo da mundidade como rede referencial na qual o Dasein jaacute se encontra inserido

na abertura ao mundo Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo

circundante o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a

complexa rede de remissotildees referenciais e atraveacutes dela a totalidade conjuntural ou

conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)

ldquoO termo conjuntura tem como correlato na liacutengua alematilde a palavra Bewandtins

que designa primariamente a propriedade ou a constituiccedilatildeo de uma coisa e em

um segundo momento a circunstacircncia em que algo se mostra essencialmente

como algo Neste segundo caso o termo se mostra em sintonia com a expressatildeo

Bewendenlassen como o deixar (lassen) algo se conformar (bewenden) a uma

certa estrutura e se mostrar como o que eacute em meio a essa conformidaderdquo

(CASANOVA 2006 p37)

A noccedilatildeo de conjuntura no sect 18 eacute um dos momentos mais decisivos da primeira

parte de Ser e Tempo pois revela que a totalidade conjuntural eacute anterior a qualquer

determinaccedilatildeo particular dos entes intramundanos Eacute essa conjuntura que determina os

usos possiacuteveis a partir da conformidade dos entes nela inseridos revelando que o

utensiacutelio em si mesmo natildeo possui qualquer determinaccedilatildeo essencial mas a recebe do

campo de uso da conjuntura na qual estaacute inserido Mas natildeo eacute soacute isso a determinaccedilatildeo

essencial de um ente intramundando acontece tambeacutem em funccedilatildeo do ser-aiacute cujo lsquoem

vista dersquo ao final da remissatildeo natildeo mais remonta a um lsquopara quecircrsquo mas mobiliza e em

uacuteltima instacircncia determina as conformaccedilotildees dos entes intramundanos Isso revela que o

que estaacute em jogo natildeo eacute o que eacute algo mas antes em virtude de que se faz algo O ser-aiacute

94

pode agir relacionar-se com os outros e consigo mesmo pois sabe comportar-se no

campo fenomecircnico aberto que arrasta consigo sua possibilidade de ser De outra forma

toda e qualquer performatizaccedilatildeo do ser-aiacute em relaccedilatildeo aos entes remete em uacuteltima medida

agravequele que pode voltar-se aos entes e mobilizaacute-los

O que a conjuntura indica previamente eacute ldquoa articulaccedilatildeo originaacuteria com certas

possibilidades essenciais do ser-aiacute que permitem ao ser-aiacute projetar efetivamente o campo

de sua realizaccedilatildeo como poder-serrdquo (CASANOVA 2006 p36) Essa realizaccedilatildeo do poder-

ser do ser-aiacute mobiliza a conformaccedilatildeo dos entes em funccedilatildeo do sentido existencial do ser-

aiacute pois uma atividade qualquer natildeo eacute feita por ela mesma mas soacute tem sentido na intenccedilatildeo

de um ente que estaacute aberto agrave apreensatildeo do ser dos entes em geral Desse modo a primaacuteria

abertura compreensiva do ser-aiacute ao mundo eacute um projeto de sentido que jaacute interpreta e ao

fazecirc-lo realiza a cada vez a cada ato de sua existecircncia a cada performatizaccedilatildeo a

possibilidade de seu ser pondo em liberdade os entes no interior do mundo e as relaccedilotildees

com os outros no projeto lanccedilado (faacutetico) na e pela sua existecircncia E isso porque

ldquoQuando o ente do-interior-do-mundo eacute descoberto com o ser do Dasein isto eacute

quando veio ao entendimento dizemos que ele tem sentido Mas tomado

rigorosamente o que eacute entendido natildeo eacute o sentido mas o ente ou o ser Sentido eacute

aquilo em que a entendibilidade de algo se manteacutem () Sentido eacute aquilo-em-

relaccedilatildeo-a-quecirc do projeto estruturado pelo ter-preacutevio pelo ver-preacutevio e pelo

conceito preacutevio a partir de que algo pode ser entendido como algo Na medida

em que entender e interpretaccedilatildeo constituem a constituiccedilatildeo existenciaacuteria do lsquoaiacutersquo o

sentido deve ser concebido como arcabouccedilo existenciaacuterio-formal da abertura

pertencente ao entender O sentido eacute um existenciaacuterio do Dasein natildeo uma

propriedade presa ao ente que reside lsquoatraacutesrsquo dele ou flutua em algum lugar como

em um lsquoreino intermediaacuteriorsquo Soacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a

abertura do ser-no-mundo lsquopode ser preenchidarsquo () E quando perguntamos

pelo sentido de ser a investigaccedilatildeo natildeo se torna entatildeo profunda e natildeo excogita

nada que esteja atraacutes do ser mas pergunta por ele mesmo na medida em que ele

estaacute na entendibilidade do Dasein O sentido de ser nunca pode ser contraposto

ao ente ou ao ser como lsquofundorsquo que sustenta o ente porque o lsquofundamentorsquo soacute eacute

acessiacutevel como sentido mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta- de-

sentidordquo (HEIDEGGER 2012 pp 429-431)

Apelamos para essa longa citaccedilatildeo a fim de explicitar o que dissemos

anteriormente acerca da mobilizaccedilatildeo dos entes em seu ser em funccedilatildeo dos focos

existenciais do ser-aiacute Os entes somente vecircm ao encontro como entes que satildeo a partir da

intenccedilatildeo de um ente que estaacute aberto a compreensatildeo do ser dos entes em geral Com a

95

citaccedilatildeo pretendemos tambeacutem apontar para algo importante acerca do fundamento

histoacuterico dessa abertura O sentido de ser natildeo eacute algo a ser alcanccedilado teoricamente pois

natildeo eacute algo estaacutevel e fundante da realidade que responde ao esquema causa-efeito ele eacute

essencialmente histoacuterico e eacute trazido pela experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica

da existecircncia mesma do ser-aiacute Natildeo se pode ter lsquoserrsquo sem a compreensatildeo do sentido de

ser vinculando portanto lsquoserrsquo ao ser-aiacute ente cuja estrutura pertence agrave compreensatildeo de

ser Como nos adverte o autor de Ser e Tempo o Dasein eacute um ente certamente diferente

dos outros entes no interior do mundo e eacute o lsquoabismo da falta de sentidorsquo que remete agrave

totalidade do fenocircmeno do ser-aiacute como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge) a qual acontece

em funccedilatildeo do sentido da temporalidade (Zeitlichkeit) Eacute essa ldquosegundardquo abertura de

sentido que devemos explicitar a partir de agora

Indicamos acima que a indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica do ser-aiacute o conduz a conquistar

seu poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees

cotidianas Poreacutem ser-proacuteprio ou ser-improacuteprio natildeo satildeo categorias operacionalizaacuteveis em

funccedilatildeo de um ideal de vida Essas possibilidades repousam na existecircncia e revelam a

tensatildeo da condiccedilatildeo primaacuteria da abertura ao mundo do ser-aiacute como projeto- jogado e

ldquodessa tensatildeo eacute possiacutevel deduzir o modo como o ser-aiacute faticamente existe() o caraacuteter

mesmo do jogado do ser-aiacute implica a absorccedilatildeo imediata no mundo sedimentado ele

encontra a si mesmo na medida em que se perderdquo (CASANOVA 2009 p123) E por

isso quando a analiacutetica existenciaacuteria inicia sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio no qual

o ser-aiacute eacute lanccedilado ldquoisso natildeo significa por sua vez outra coisa senatildeo que ele [o ser-aiacute]

concretiza o poder ser que ele eacute a partir das possibilidades faacuteticas disponibilizadas pelo

mundordquo (CASANOVA 2009 p123)

A abertura compreensiva eacute uma compreensatildeo da proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica na qual

nos orientamos inicialmente e na qual satildeo dadas nossas possibilidades de ser natildeo de

maneira teoacuterica mas absorvidas nas praacuteticas nos projetos de sentido relaccedilatildeo com os

outros e lida com os entes Abertura essa que um passado tornou possiacutevel e se faz

radicalmente imperativa no presente atraveacutes da cotidianidade orientando o ser-aiacute e

fazendo emergir algo assim como um mundo Por exemplo a realizaccedilatildeo deste trabalho

como dissertaccedilatildeo acadecircmica apareceu como possibilidade para o projeto de sentido de

sua autora porque escrever sobre filosofia faz sentido este projeto de sentido veio ao

96

encontro de seu poder-ser natildeo meramente por um ato de escolha mas inicialmente porque

filosofia dissertaccedilatildeo e universidade satildeo elementos mantidos em seu significado oriundo

da tradiccedilatildeo ocidental natildeo por uma linha histoacuterica que a autora recupera e quer trazer ao

presente mas porque mais uma vez ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto apropriaccedilatildeo

compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo

(HEIDEGGER2002 p30)

E uma vez remetida ao mundo pela orientaccedilatildeo cotidiana a autora pode

estabelecer relaccedilotildees com os entes (livros computador papel etc) consigo mesmo (como

autora) e com os outros (leitores desse trabalho) que partilham essas possibilidades

sedimentadas Dessa forma a orientaccedilatildeo cotidiana primaacuteria revela ldquoexistir () eacute de iniacutecio

o mesmo que perder-se de sirdquo (CASANOVA 2009 p123) pois ldquoo ser-aiacute suspende a

irrealidade originaacuteria que eacute a sua e adquire ao mesmo tempo um modo de ser marcado

por uma aparecircncia de consistecircnciardquo (CASANOVA 2009 p123) Em outras palavras a

absorccedilatildeo na cotidianidade (o caraacuteter de jogado do projeto) oferece uma familiaridade ao

ser-aiacute na qual ele pode se movimentar pois oferece a confiabilidade ocircntica ao projeto de

sentido mas tambeacutem estabelece

ldquoUma relaccedilatildeo com o seu poder-ser que pode ser denominado como fuga uma vez

que a suspensatildeo [de sua irrealidade originaacuteria] promove exatamente uma

tranquilizaccedilatildeo em meio agrave supressatildeo de nadidade constitutiva de um ente marcado

pelo caraacuteter de poder-ser e o ocultamento de um tal caraacuteterrdquo (CASANOVA

2009 p123)

Em meio agrave familiaridade em que o ser-aiacute eacute jogado sua negatividade quiditativa e

seu traccedilo ontoloacutegico essencial como poder-ser satildeo obstruiacutedos agrave compreensatildeo do Dasein

em relaccedilatildeo ao seu ser Voltemos ao nosso exemplo as relaccedilotildees que a autora deste trabalho

pode exercer a partir de suas possibilidades a orientam como ser autora deste trabalho

como aquela que escreve ou ainda como aquela vinculada agrave universidade e assim por

diante Poreacutem nada poderia definir nossa existecircncia como fazem as orientaccedilotildees

cotidianas pois o Dasein que cada um de noacutes somos eacute marcado pela negatividade radical

frente a qualquer definiccedilatildeo ocircntica Como entatildeo essa fuga natildeo nos condena a reproduzir

maquinalmente e atualizar incessantemente as orientaccedilotildees cotidianas - Porque o ser-aiacute

97

mesmo jogado eacute ainda projeto e no limite de seu projeto ele pode se encontrar com seu

poder-ser mais proacuteprio como ser para a morte (das Sein zum Tod)74

Tal como as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha agrave

espera de um ato de vontade do ser-aiacute a conquista de seu ser-proacuteprio ou sua

singularizaccedilatildeo tambeacutem natildeo eacute produto de sua vontade A dinacircmica de singularizaccedilatildeo do

ser-aiacute eacute possiacutevel pela tonalidade afetiva ou o modo de encontrar-se (Befindlicheit)

fundamental da anguacutestia (Angst)

O entender (Verstehen) ou abertura compreensiva eacute sempre dispositiva na medida

em que a compreensatildeo natildeo se refere agrave capacidade ou agraves faculdades cognitivas do homem

ldquoO termo disposiccedilatildeo aponta diretamente para o modo como o ser-aiacute a cada vez se

descobre em meio a uma tal abertura Na medida em que o ser-aiacute eacute um ente

marcado essencialmente por seu caraacuteter existencial e natildeo se mostra senatildeo como

um poder ser ele natildeo pode aprender a abertura do ente na totalidade por meio de

alguma faculdade cognitiva de sua subjetividade () Befindlichkeit diz o

encontrar-se de uma certa maneirardquo (CASANOVA 2006p50)

Encontrar-se de certa maneira natildeo eacute uma espeacutecie de afeto psicoloacutegico que o ser-

aiacute projeta de dentro para fora nem uma relaccedilatildeo de fora para dentro que afeta o ser-aiacute Natildeo

eacute uma relaccedilatildeo causal Eacute uma afinaccedilatildeo (ajuste do tom) que deve ser compreendida

repousando na intenccedilatildeo primaacuteria do ser-aiacute como ser-no-mundo Como o autor explicita

ainda no sect29 ldquoO ser do estado-de-acircnimo do encontrar-se constitui existenciariamente a

abertura do Dasein para o mundordquo (HEIDEGGER 2012 p393) Eacute propositadamente que

se apela para a metaacutefora musical (ldquoafinaccedilatildeordquo) para tentar compreender esse ldquoestado de

acircnimo do encontrar-serdquo como por exemplo acontece quando uma muacutesica eacute tocada ela

afina a abertura compreensiva do ser-aiacute a um estado de acircnimo que noacutes poderiacuteamos chamar

de melancoacutelico A melancolia natildeo estaacute na muacutesica (natildeo haacute como pensar que as tonalidades

afetivas sejam propriedades de um ou outro ente na medida em que o ser de todo e

74 Aqui eacute importante considerar as palavras de Juliaacuten Mariacuteas na Conferecircncia do curso ldquoLos estilos de la

Filosofiacuteardquo Madrid 19992000 Ediccedilatildeo Jean Lauand Traduccedilatildeo Sylvio Horta ldquoa preposiccedilatildeo zu natildeo quer

dizer para mas a Isto eacute a expressatildeo sein zum Tod poderia ser traduzida por estar agrave morte (estar a

la muerte) Qual eacute a condiccedilatildeo dos homens - e das mulheres evidentemente - natildeo somente quando nos

atropela um caminhatildeo ou quando temos pneumonia dupla O homem estaacute agrave morte sempre estaacute na

possibilidade de morrer estaacute em potecircncia proacutexima de morrer estaacute exposto agrave morte e eacute isso justamente o

que quer dizer sein zum Tod estar aberto agrave morte estar nessa possibilidade proacutexima real eficazrdquo

98

qualquer ente eacute aberto em funccedilatildeo do ser-aiacute que os potildee em liberdade no interior do mundo)

como tambeacutem natildeo estaacute no Dasein (natildeo haacute nada de aderente a esse ente que venha agrave tona

sua abertura eacute sempre remetida ao mundo e ao encontro com os entes) Portanto a

melancolia como no exemplo eacute a modificaccedilatildeo da atmosfera promovida pelo proacuteprio

encontrar-se do ser-aiacute em meio aos entes

Mas por qual motivo a anguacutestia aparece em Ser e Tempo como a tonalidade afetiva

ou o modo fundamental de encontrar-se Enquanto os estados de acircnimo natildeo conforme agrave

anguacutestia constituem a abertura compreensiva do ser-aiacute para a lida e para as relaccedilotildees que

podem ser realizadas no interior do mundo em meio aos entes ldquoo diante-de-quecirc da

anguacutestia eacute o ser-no-mundo como talrdquo (HEIDEGGER 2012 p521) Na anguacutestia natildeo haacute

ente que venha ao encontro no qual o ser-aiacute possa se reportar e refugiar-se mas a si mesmo

em sua indeterminaccedilatildeo

ldquoNa anguacutestia o utilizaacutevel do mundo-ambiente e em geral o ente do-interior-do-

mundo se afundam O lsquomundorsquo jaacute nada pode oferecer nem tambeacutem o Dasein-

com com os outros A anguacutestia retira assim do Dasein a possibilidade de no

decair entender-se a partir do lsquomundorsquo e do puacuteblico ser-do-interpretado Ela

projeta o Dasein de volta naquilo por que ele se angustia seu proacuteprio poder ndashser-

no-mundo () Com o porquecirc do se angustiar a anguacutestia abre portanto o Dasein

como ser possiacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012 p525)

Na anguacutestia natildeo haacute a ldquosuspensatildeo de mundordquo como se o Dasein se retirasse dele

O que haacute eacute a suspensatildeo das orientaccedilotildees cotidianas que obliteram sua constituiccedilatildeo

primaacuteria Portanto ainda e agora radicalmente transparente como ser-no-mundo o

Dasein suspende a familiaridade em meio ao ente voltando-se a si mesmo como ser-

possiacutevel que mobiliza sentido e ldquotem mundordquo Lembremos que a necessidade da ontologia

fundamental como radicalizaccedilatildeo do gesto fenomenoloacutegico indica que o ser-aiacute mesmo

natildeo pode ser intencionado natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente e por isso seu

caraacuteter de poder-ser E se pela anguacutestia o ser-aiacute volta-se a si mesmo o que vem eacute essa

indeterminaccedilatildeo radical revelando em uacuteltima medida o ldquoabismo da falta de sentidordquo Esse

abismo natildeo leva a qualquer espeacutecie de niilismo natildeo eacute o que estaacute em jogo aqui ao

contraacuterio pois o ldquoo ser-aiacute se vecirc confrontado com o seu caraacuteter como poder-ser Dessa

confrontaccedilatildeo nasce ao mesmo tempo a possibilidade de assunccedilatildeo de si mesmo como

cuidado (Sorge)rdquo (CASANOVA 2009 p128)

99

Recuperemos por um instante os trecircs momentos constitutivos da questatildeo descritos

no sect2 de Ser e Tempo a pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2)

perguntando sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma

ontologia fundamental A ontologia fundamental como analiacutetica existenciaacuteria em seu

primeiro momento descreve as estruturas fundamentais do ser-aiacute com o propoacutesito de

chegar ao ser desse ente que compreende o sentido de ser (sect12 ao sect38) Contudo eacute

importante considerar que existe certa lsquoartificialidadersquo nesse processo de explicitaccedilatildeo das

estruturas do ser-aiacute Eacute importante manter o sentido de ldquoanaliacuteticardquo Pois o fenocircmeno

mesmo deve ser compreendido como um todo natildeo em funccedilatildeo das partes mas a partir de

sua proacutepria mostraccedilatildeo Em outras palavras a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein deve agora

ser recuperada e este ente deve ser assinalado de maneira propriamente fenomenoloacutegica

ou seja em sua totalidade enquanto fenocircmeno Eacute o que a segunda parte da analiacutetica deve

recuperar ldquoabrangendo os componentes que se interligam ndash a existencialidade a

facticidade e a quedardquo (NUNES 2012 p116)

A partir desses componentes Heidegger apresenta o sentido formal da

preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-em (-o-mundo)

como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo (HEIDEGGER

2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser (existencialidade ou

existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que foi

lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio aos

entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)

Poreacutem natildeo dissemos que o ser-aiacute eacute marcado pela negatividade quiditativa e que

existe segundo possibilidades as quais natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas na morte

como fim de todas as possibilidades Ou nas palavras de nosso autor ldquoE se a existecircncia

determina o ser do Dasein e sua essecircncia eacute constituiacuteda pelo poder-ser entatildeo o Dasein

podendo ser enquanto existir deve-ser cada vez algo de ainda natildeo sendordquo

(HEIDEGGER 2012 p645) Entatildeo essa interpretaccedilatildeo do ser do Dasein como um

fenocircmeno unitaacuterio como Sorge natildeo contradiz tal afirmaccedilatildeo Natildeo haacute qualquer

contradiccedilatildeo pois eacute exatamente

ldquoO cuidado como manifestaccedilatildeo da finitude que permite a Heidegger identificar

a morte como o chegar do Dasein ao fim () e ver nesse ente em sua totalidade

o ser para a morte() O Dasein chega pois a um fim mas que o determina desde

100

o princiacutepio como possibilidade do que viraacute a ser A morte natildeo eacute para ele portanto

o puro aniquilamento representaacutevel conforme a experiecircncia da caducidade ()

impessoal e necessaacuterio na seacuterie de causas naturais () Ontologicamente falando

o homem deixa de viver porque morre e morre porque lhe eacute inerente o morrer

enquanto poder-ser de cada qual () intrasferiacutevel e irrepresentaacutevel na relaccedilatildeo

com o ser a que a existecircncia estaacute concernidardquo (NUNES 2012 pp 117-119)

Como poder-ser (existenciariedade) o ser-aiacute adianta-se em relaccedilatildeo agrave sua

possibilidade mais proacutepria Seu ser-proacuteprio insuperaacutevel como ser-para-a-morte (porque

intransferiacutevel a qualquer outro) revela-se como a possibilidade para a impossibilidade

ou seja impossibilidade de sua existecircncia lanccedilada (facticidade) de ter um lsquoaiacutersquo sendo o

lsquoaiacutersquo a compreensatildeo dos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)

Mas eacute importante considerar que a preocupaccedilatildeo ou o cuidado natildeo eacute a totalidade alcanccedilada

por aquele que chegou agrave singularizaccedilatildeo pela tonalidade fundamental da anguacutestia ela eacute a

constituiccedilatildeo ontoloacutegica de todo e qualquer Dasein O que a singularizaccedilatildeo promove

como possibilidade aberta pela anguacutestia eacute a transparecircncia desse ser-proacuteprio cada vez

obliterado na cotidianidade Na cotidianidade a morte eacute vista como um ldquomero deixar de

viverrdquo transferido a cada vez ao outro que morreu ldquodessa vezrdquo75 em um tratamento

radicalmente impessoal pela indiferenccedila frente a esse poder-ser proacuteprio e irrevogaacutevel

A morte como fim de todas as possibilidades enquanto poder-ser extremo eacute

indeterminada mesmo que seja a certeza mais proacutepria Pois natildeo se chega agrave morte

pensando nela o que estaacute em jogo eacute a responsabilidade do ser-aiacute frente a essa

transparecircncia a assunccedilatildeo pelo ser-aiacute de sua nulidade que atravessando-o (sem qualquer

conteuacutedo prescritivo do que deve-se ou natildeo fazer) pode orientar o caminho de sua

existecircncia Existecircncia ainda faacutetica ainda em meio aos entes de um mundo sedimentado

Em outras palavras caminho que reconduz o ser-aiacute ao ldquoaiacuterdquo que ele tem que ser e que ele

radicalmente eacute O que a singularizaccedilatildeo aponta eacute ldquoLeben ist Tod und Tod ist auch ein

75 Heidegger indica a novela de LN Tolstoacutei ldquoA morte de Ivan Ilitchrdquo para ilustrar o fenocircmeno da morte

tratada impessoalmente e o abalo dessa impessoalidade (Cf HEIDEGGER 2012 p699) Poderiacuteamos

tambeacutem indicar a partir de nossa cotidianidade exemplos do tratamento impessoal acerca da morte as

estatiacutesticas dos ldquomortos nas estradasrdquo a notiacutecia da morte de alguma personalidade puacuteblica e ainda - para

natildeo confundirmos esse fenocircmeno com um mero ldquonoticiarrdquorsquo a morte - a maneira mesma que tratamos a

morte de algueacutem proacuteximo pois mesmo tomados pelo pesar o que constatamos eacute a ldquoperdardquo do outro Seria

possiacutevel restaurar a ponte mesmo que indicativa que Heidegger natildeo admite entre o fenocircmeno impessoal

da morte e nosso ser-proacuteprio como ser-para-a-morte Talvez algo acessiacutevel pela linguagem poeacutetica Aqui

eacute oportuno considerar os belos versos do poema Na morte de Henriqueta Lisboa ldquoNa morte nos

encontramos Sim na morte Tempo de consoacutercio e de viacutenculordquo In Flor da Morte Belo Horizonte Ed

UFMG 2004

101

Leben76rdquo Nessa indicaccedilatildeo ldquoO si-mesmo que como tal tem de pocircr o fundamento de si

mesmo nunca pode se assenhorar desse fundamento e tem de existindo assumir no

entanto o ser-fundamento Ser o proacuteprio fundamento dejectado eacute o poder-ser em jogo na

preocupaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p779) Eacute pela assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo

(Sorge) que o ser-aiacute pode compreender que os sentidos mobilizados em sua existecircncia satildeo

existenciariamente remetidos ao seu ser mesmo ente histoacuterico e finito radicalmente

marcado pela nulidade essencial Isso posto recuperamos uma vez mais agora com toda

a importacircncia as palavras de nosso autor ldquoo lsquofundamentorsquo soacute eacute acessiacutevel como sentido

mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta-de-sentidordquo (HEIDEGGER 2012 p431)

A transparecircncia de seu ser-proacuteprio ao ser-aiacute eacute assumir ldquoser como fundamento

dejectado da nulidade Mas a assunccedilatildeo da dejecccedilatildeo significa para o Dasein ser

propriamente como ele a cada vez jaacute erardquo (HEIDEGGGER 2012 p887) Em outras

palavras a assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute para o ser-aiacute reconhecer que ele

eacute existecircncia radicalmente faacutetica (Faktizitaumlt) ainda em meio aos entes de um mundo

sedimentado Desse modo ldquoentender o seu ser ainda e sempre ldquoem seu essencial ser-

culpadordquo (HEIDEGGER 2012 p887) A singularizaccedilatildeo do ser-aiacute natildeo promove um

distanciamento da vida cotidiana natildeo faz com que ele se retire da queda mas que a

assuma e assim assuma ldquoa responsabilidade pela necessidade de pagar uma diacutevida que

cada ser-aiacute tem para consigo mesmordquo (CASANOVA 2009 p136) Diacutevida de assumir

seu ser como existecircncia como projeto-jogado e como poder-ser proacuteprio marcado pela

possibilidade extrema da morte Essa culpa do ser-aiacute eacute a assunccedilatildeo de que ele jaacute sempre

desonerou seu ser ele jaacute sempre deixou seu ser sob tutela do mundo e das orientaccedilotildees

cotidianas - por sua condiccedilatildeo de soacute poder-ser a partir da absorccedilatildeo imediata no mundo

Essa culpa natildeo eacute a mesma das concepccedilotildees cristatildes Em Pascal por exemplo a culpa eacute

consequecircncia da perda de nossa primeira natureza em funccedilatildeo do pecado original77 Para

Heidegger a culpa eacute consequecircncia do fato de natildeo termos qualquer natureza Natildeo haacute como

se retirar dessa condiccedilatildeo eis nossa culpa essencial e nossa queda irremediaacutevel

76 ldquoA vida eacute morte e a morte eacute tambeacutem uma vidardquo HOumlLDERLIN Friedrich In lieblicher Blaumlue - Disponiacutevel

em httpswwwhsaugsburgde~harschgermanicaChronologie19JhHoelderlinhoe_0801html Acesso

em 21 marccedilo 2016 77 Cf por exemplo os aforismos 131 e 616 de Pascal nos Penseacutees Ediccedilatildeo e organizaccedilatildeo Lafumaacute

102

Mas se chegamos agrave totalidade originaacuteria do todo-estrutural do ser-aiacute ou em outras

palavras agrave assinalado constituiccedilatildeo propriamente fenomenoloacutegica do ser-aiacute como

preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute necessaacuterio considerar o sentido ontoloacutegico desse fenocircmeno

Lembramos mais uma vez o que eacute ldquosentidordquo para Heidegger ldquoSentido eacute aquilo em que a

entendibilidade de algo se manteacutemrdquo (2012 p429) Se o ser-aiacute pode ser indicado em sua

totalidade fenomecircnica (ainda que radicalmente diverso dos entes do interior do mundo)

eacute necessaacuterio como expresso no sect65 perguntar ldquoQue possibilita o ser do Dasein e assim

sua existecircncia factual (faktische)

O sentido de ser do Dasein como Sorge a compreensatildeo de sua nulidade essencial

a partir do fenocircmeno unitaacuterio de seu ser aponta para aquilo que pode sustentaacute-lo ldquoA

temporalidade descobre-se como o sentido da preocupaccedilatildeo proacutepriardquo (HEIDEGGER

2012 p889)

Na continuaccedilatildeo do sect65 o autor descreve como a preocupaccedilatildeo reside na

temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-

em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo

(HEIDEGGER 2012 p891) Futuro (poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente

(presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees temporais como as que tomamos diariamente mas

o caraacuteter essencial da existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre

adiantado (futuro) em relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza

as possibilidades na facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva da

proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica a cada vez presente na qual nos orientamos inicialmente em

nossos comportamentos) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no

presente esse passado em seus comportamentos e projetos E como adverte o autor

ldquoOs momentos da preocupaccedilatildeo natildeo se amontoam como a temporalidade ela

mesma natildeo vai tambeacutem lsquocom o temporsquo se compondo de futuro ser-do-sido e

presente A temporalidade natildeo lsquoeacutersquo em geral nenhum ente Ela natildeo eacute mas se

temporalizardquo (HEIDEGGER 2012 p893)

Ou seja a temporalidade acontece na existecircncia do ser-aiacute na unidade do

fenocircmeno que se mostrou como preocupaccedilatildeo ou cuidado (Sorge) E ainda acontece jaacute no

que o ser-aiacute entende (Verstehen) como o sentido ontoloacutegico desse acontecimento mesmo

da compreensatildeo Por isso ainda no iniacutecio desse toacutepico dissemos que a constituiccedilatildeo aberta

103

e remetida ao mundo (ao seu ldquoaiacuterdquo) do ser-aiacute eacute dada como acontecimento compreensivo

pois em seu sentido ontoloacutegico eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) que se temporaliza78

Assim finalmente chegamos agrave dupla abertura de sentido em Ser e Tempo a que

chamamos de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo a abertura compreensiva do ser-aiacute

remetida ao mundo e o sentido de ser do ser-aiacute a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) O

caraacuteter fundamental dessa estrutura se daacute pelo fato que eacute a partir dela que o ser-aiacute pode

conceder significaccedilotildees e por isso a primeira estrutura do que pode tornar manifesto o

fenocircmeno da linguagem Agora eacute necessaacuterio descrever a relaccedilatildeo entre mundo e

significatividade ainda como parte dessa primeira estrutura para que alcancemos a

segunda estrutura o fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) e a partir dele agrave linguagem

III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)

No toacutepico anterior apresentamos a constituiccedilatildeo aberta do ser-aiacute lanccedilada e

remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo Mas o que constitui algo assim como mundo O que

afinal quer dizer ldquomundordquo (Welt) Nesse sentido precisamos retomar a descriccedilatildeo

realizada anteriormente acerca da referecircncia e da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) Essa

retomada natildeo significa prolixidade mas consequecircncia inevitaacutevel da ligaccedilatildeo essencial

entre ser-aiacute e mundo E se antes a descriccedilatildeo foi explicitada para compreendermos a

abertura de sentido em funccedilatildeo do ser-aiacute agora seraacute exposta para compreendermos o

proacuteprio ldquoaiacuterdquo

Sem pressupor mundo como ente ou como espaccedilo a pesquisa fenomenoloacutegica

aproximou-se dos campos de mostraccedilatildeo de algo como lsquomundorsquo escapando de qualquer

preacutevia teorizaccedilatildeo Nessa direccedilatildeo vimos que algo como lsquomundorsquo se daacute inicialmente a

partir da abertura primaacuteria de sentido promovida pelo entender ou compreensatildeo

78 Como indicamos (nota 66) haacute uma questatildeo natildeo respondida em Ser e Tempo a temporalidade (Zeitlichkeit)

estaria afinal assentada no tempo histoacuterico da abertura Questatildeo expressa na uacuteltima linha daquela obra ldquoO

tempo (Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Essa questatildeo

aponta para o limite da obra de 1927 na medida em que o sentido de ser remetido e em funccedilatildeo de um ente

especiacutefico mesmo que privilegiado apresenta seus limites Natildeo aprofundaremos esse problema Nesse

sentido conferir inicialmente HEIDEGGER M Os problemas fundamentais da fenomenologia Trad

Marco Antocircnio Casanova Petroacutepolis RJ Vozes 2012 ndash Parte II (pp331-478) Conferir tambeacutem

CASANOVA (2009 pp 140-145) NUNES (2012 pp200-220) e STEIN (2001 pp297-309)

104

(Verstehen) Esse existenciaacuterio primaacuterio acontece sempre como interpretaccedilatildeo

(Auslegung) que jaacute potildee em visatildeo o que entende

A partir da lida praacutetica e natildeo teoacuterica que o ser-aiacute trava inicialmente com os entes

intramundanos (sect15) Heidegger chega a noccedilatildeo de mundo circundante ou mundo-

ambiente (Umwelt) Poreacutem a descriccedilatildeo do uso dos utensiacutelios (Zeug) em um mundo-

ambiente (Umwelt) eacute insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica

de todo ente em geral Assim conforme o sect 17 Heidegger descreve o fenocircmeno da

referecircncia a partir da descriccedilatildeo do sinal enquanto utensiacutelio que tem em sua serventia

especiacutefica o mostrar e ao fazecirc-lo conduz a compreensatildeo da instrumentalidade ou

utilizabilidade (Zuhandenheit) de todo e qualquer ente A relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia

explicita o fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua

finalidade na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal

enquanto instrumento nos mostra o mundo-circundante (Umwelt) e potildee em relevo o

caraacuteter da referecircncia que natildeo deve ser confundido com o proacuteprio sinal pois eacute a estrutura

ontoloacutegica do manual e fundamento constitutivo da mundidade como rede referencial na

qual o Dasein jaacute se encontra inserido na abertura primaacuteria remetida ao mundo na lida

praacutetica

O ldquomostrarrdquo do sinal tal como o ldquomartelarrdquo do martelo ou a emprego de todo e

qualquer ente natildeo satildeo propriedades essenciais presentes nos lsquoobjetosrsquo apreendidas pelo

ser-aiacute mas satildeo trazidas agrave luz na e pela estrutura da remissatildeo a partir do trato praacutetico E

ldquoser-remetido-ardquo como constituiccedilatildeo do utilizaacutevel eacute em uacuteltima medida ldquoconjuntar-se agraverdquo

nas palavras de Heidegger

ldquoConjuntaccedilatildeo eacute o ser do interior-do-mundo em relaccedilatildeo ao qual esse ente jaacute eacute e

de pronto cada vez posto-em-liberdade () Isto de que ele tenha uma

conjuntaccedilatildeo comjunto eacute a determinaccedilatildeo ontoloacutegica do ser desse ente e natildeo um

enunciado ocircntico sobre o enterdquo (HEIDEGGER 2012 p251)

Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo circundante (Umwelt)

o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a complexa rede de

remissotildees referenciais e revelando a totalidade conjuntural ou conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)

A totalidade conjuntural se mostra anterior a qualquer determinaccedilatildeo particular dos entes

intramundanos - uma vez que eacute a conjuntura mesma que determinaraacute os usos possiacuteveis a

partir da conformidade dos entes nela inseridos- revelando que o utensiacutelio em si mesmo

105

e em uacuteltima medida todo e qualquer ente no interior do mundo natildeo possui qualquer

determinaccedilatildeo essencial mas a recebe a partir do campo de uso da conjuntura na qual estaacute

inserido Como a partir daiacute se chega entatildeo agrave noccedilatildeo de algo como ldquomundordquo A conjuntura

como conformaccedilatildeo de todo e qualquer ente eacute dada em funccedilatildeo do que Heidegger chama

de significatividade (Bedeutsamkeit)

ldquoAo se manter na familiaridade com a abertura das relaccedilotildees o entender as potildee

diante de si como aquilo em que seu remeter se move O entender deixa-se

remeter nestas relaccedilotildees e por elas mesmas O caraacuteter relacional dessas relaccedilotildees

do remeter noacutes o aprendemos como significar Na familiaridade com essas

relaccedilotildees o Dasein lsquosignificarsquo a si mesmo daacute-se a entender originariamente seu

ser e poder-ser relativamente a seu ser-no-mundo [] O todo relacional desse

significar noacutes o denominamos significatividade Ela eacute o que constitui a estrutura

do mundordquo (HEIDEGGER2012p261)

Essa passagem traz o elemento crucial agrave nossa investigaccedilatildeo a significatividade

como a condiccedilatildeo mesma ou melhor a proacutepria lsquointeligibilidadersquo do mundo natildeo como

arcabouccedilo teoacuterico mas como acircmbito da interpretaccedilatildeo anterior a qualquer definiccedilatildeo

predicativa do ente A totalidade conjuntural que conforma os entes intramundanos

determina-os significativamente em seu ldquocomordquo ou seja os faz ver e aparecer como ente

como algo no interior da abertura de sentido do proacuteprio mundo Isto quer dizer que a

conjuntaccedilatildeo deixa ver o ente em seu ldquoser enterdquo como algo que lsquoeacutersquo a partir de um horizonte

ldquode tal maneira que ele se torna primeiramente acessiacutevel como ente do-interior-do-

mundordquo (HEIDEGGER 2012p255)

A abertura ou entendimento preacutevio no qual o ser-aiacute histoacuterico e finito faz o ente

vir ao encontro na conjuntura e o mobiliza conforme seu foco existencial mostra o

fenocircmeno do mundo e isso como jaacute apresentamos a partir da familiaridade em que o

Dasein se movimenta pelo seu caraacuteter de jogado O fenocircmeno do mundo eacute explicitado

por Heidegger na seguinte passagem

ldquoO Dasein se remete jaacute cada vez e sempre a partir de um em-vista-de-quecirc ao

com-quecirc de uma conjutaccedilatildeo isto eacute na medida em que eacute ele deixa jaacute cada vez e

sempre o ente vir-de-encontro como utilizaacutevel Aquilo-em-que o Dasein

previamente se entende no modus do remeter-se eacute aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do

preacutevio fazer o ente vir-de-encontro O em-quecirc do entender que se-remete como

aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do fazer o ente vir-de-encontro no modo-de-ser da

conjuntaccedilatildeo eacute o fenocircmeno do mundo E a estrutura daquilo a que o Dasein se

remete eacute o que constitui a mundidade do mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 257)

106

Mas essa passagem tambeacutem mostra uma diferenccedila que natildeo pode ser ignorada o

fenocircmeno do mundo e a mundidade (Weltlichkeit) do mundo O primeiro diz respeito agrave

mobilizaccedilatildeo de uma determinada conjuntura jaacute familiar a partir dos focos existenciais do

ser-aiacute possiacuteveis em um horizonte descerrado (aspecto ocircntico) a segunda indica o aspecto

estrutural ontoloacutegico do mundo Por isto a significatividade explicitada inicialmente

pelo fenocircmeno da referecircncia e trazida agrave tona pela noccedilatildeo de conjuntaccedilatildeo eacute chamada de

estrutura formal da mundidade pois natildeo diz respeito a uma estrutura deste ou daquele

ldquomundordquo especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica de algo como ldquomundordquo

A significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados

(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Quando um ente se mostra

na e pela ocupaccedilatildeo (Besorgen) vem agrave conjuntaccedilatildeo no momento mesmo do trato manual

e assim ele eacute posto em liberdade em seu ser como utilizaacutevel (Zuhandenes) e natildeo eacute- como

compreendeu a tradiccedilatildeo assentada na noccedilatildeo sujeito-objeto ndash uma lsquoresrsquo uma coisa um

ldquomaterial disponiacutevel no mundordquo Ou seja ele natildeo se mostra primariamente como um

subsistente (Vorhandener) jaacute que ldquofamiliaridade com o mundo natildeo exige

necessariamente uma transparecircncia teoacuterica das relaccedilotildees do mundo que constituem o

mundo como mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 259)

Para Heidegger (ao menos em Ser e Tempo) os entes no interior do mundo (entes

intramundanos) natildeo conforme ao modo de ser do Dasein satildeo de dois modos ou como

duas categorias como Zuhanden (agrave matildeo) que se mostra de modo originaacuterio no trato

praacutetico e como Vorhanden (ente simplesmente dado ou subsistente) que aparece de

modo derivado agrave mostraccedilatildeo praacutetica Trazendo agrave tona a gecircnese praacutetica do significado

Vigo (2012) chama a atenccedilatildeo acerca do tratamento pouco extensivo agraves categorias que

Heidegger oferece em 1927

ldquoHeidegger oferece tatildeo somente um tratamento muito fragmentaacuterio desses

aspectos que jaacute foi explicado pelo fato expressamente declarado do caraacuteter

preparatoacuterio em SZ Ela natildeo conteacutem mesmo remotamente a totalidade do que

deveria conter um modelo ontoloacutegico de aspiraccedilatildeo integral que abarca as

diferentes ontologias regionais e apresentar o repertoacuterio das categorias mais

relevantes para cada uma delas mostrando aleacutem disso as correspondentes

relaccedilotildees de dependecircncia etcrdquo (p113)

O caraacuteter preparatoacuterio e ainda formal de Ser e Tempo o qual apenas estabelece a

diferenccedila categorial entre Zuhanden e Vorhanden parece querer marcar uma diferenccedila

107

mais fundamental ainda vinculada agraves primeiras preleccedilotildees da deacutecada de 1920 nas quais a

derivaccedilatildeo do teoreacutetico era atribuiacuteda a uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Em Ser e

Tempo ldquoa diferenccedila entre o conhecimento matemaacutetico e o conhecimento filosoacuteficordquo ganha

um contorno definitivo como diferenccedila ldquoentre uma concepccedilatildeo de loacutegos provinda da loacutegica

e outra que adveacutem do conceito de aleacutetheiardquo (STEFANI 2009 p51)

Dessa forma qualquer ente tomado de forma teoacuterica com um significado

determinado eacute um modo de acesso ou um visar o ente de modo derivado pelo ser-aiacute (natildeo

podemos esquecer que a mobilizaccedilatildeo dos entes eacute realizada em funccedilatildeo dos focos

existenciais do Dasein o que foi chamado de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo) Em

outras palavras como a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que significado

(Bedeutung) mas sua condiccedilatildeo de possibilidade qualquer teoria ou modo de tratamento

teoacuterico de um ente subsistente (Vorhandenes) eacute tributaacuterio da sedimentaccedilatildeo de um mundo

da sedimentaccedilatildeo de uma totalidade conjuntural que vem ao encontro do ser-aiacute

originariamente na ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhandenes) Assim ldquoo mundo faacutetico

onde se desdobra a existecircncia do ser-aiacute eacute constituiacutedo pela solidificaccedilatildeo dos significados

dos entes intramundanos e pela sedimentaccedilatildeo dos sentidos em virtude dos quais o ser-aiacute

desdobra o poder-ser que ele eacuterdquo (CABRAL 2015 p94) O ser-aiacute como projeto jogado

mobiliza sentidos e atualiza essas significaccedilotildees calcificadas de um mundo histoacuterico Algo

como um conceito uma definiccedilatildeo ou um significado do ente eacute possiacutevel por essa abertura

de sentido interpretativa preacutevia e sedimentada articulada pela significatividade e dada de

maneira preacute-linguiacutestica

Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez

familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o

Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como

lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo

(HEIDEGGER 2012p261 grifo nosso)

Prestemos atenccedilatildeo agrave uacuteltima consideraccedilatildeo dessa passagem significaccedilotildees natildeo satildeo

palavras elas fundam palavras Lembremos a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica o significado

natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua mostraccedilatildeo

Vimos no capiacutetulo anterior que o loacutegos do fenocircmeno para Heidegger eacute loacutegos apofacircntico

(λόγος αποφατικός) o mostrar do fenocircmeno a respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que

se mostra como algo de maneira indiferenciada natildeo determinada E ainda esse mostrar

do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes sempre em meio a

108

um campo interpretativo Ou seja agora podemos dizer eacute o mostrar o ente como ente

(algo como algo) no interior do mundo Na abertura que entende (Verstehen) remetida ao

mundo originariamente na lida praacutetica algo vem ao encontro e na medida que se mostra

jaacute se mostra interpretado (Auslegung) como algo do interior do mundo Mundo

compreendido em seu aspecto ontoloacutegico natildeo como ente espaccedilo ou soma de coisas (res)

disponiacuteveis agrave nossa apreensatildeo Mas abertura compreensiva-interpretativa do ser-aiacute

estruturalmente articulada em sua totalidade- enquanto ldquomundordquo - pela significatividade

E eacute dessa articulaccedilatildeo que podem vir significados e dos significados palavras assim

ldquoPodemos dizer que o que estaacute em jogo na discussatildeo de Heidegger com a

concepccedilatildeo husserliana natildeo eacute outra coisa em definitivo que a questatildeo relativa ao

modo fenomenoloacutegico adequado de considerar a experiecircncia antepredicativa

como tal Trata-se de uma questatildeo metodicamente fundamental justamente na

medida em que concerne de modo direto a adequada determinaccedilatildeo do terminus a

quo79 para uma possiacutevel explicaccedilatildeo da origem do enunciado predicativo como

modo derivado e fundado da interpretaccedilatildeo Atado aos preconceitod da ontologia

tradicional que se orienta a partir da estrutura do loacutegos apofatikoacutes considerando

o mesmo como algo dado lsquopresente agrave vistarsquo (Vorhandener) Husserl faz

basicamente o mesmo que jaacute havia feito a teoria tradicional das categorias desde

Aristoacuteteles em diante a saber retroprojetar a estrutura do enunciado da forma S-

P para o acircmbito dos lsquoobjetosrsquo que natildeo eacute outro que dos entes intramundanos

considerados como dados meramente lsquopresente agrave vistarsquo (VIGO 2012 p96)

Se a discussatildeo de Heidegger com a concepccedilatildeo husserliana se torna patente eacute

importante destacar tambeacutem a discussatildeo com a concepccedilatildeo diltheyniana - tendo em vista

o esclarecimento da noccedilatildeo de ldquosignificatividaderdquo Vimos que a categoria do significado

como apresentada por Dilthey possui um aspecto decisivo a relaccedilatildeo entre vivecircncia e

compreensatildeo eacute o ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da hermenecircutica pois traz em si a

categoria do significado como o nexo da vivecircncia com a realidade concreta sem se

apoiar em qualquer elemento transcendente agrave proacutepria experiecircncia vivida Contudo como

observa Heidegger no sect43 de Ser e Tempo o viacutenculo de Dilthey agrave teoria do conhecimento

da eacutepoca compreendendo a vivecircncia como vivecircncia de consciecircncia ou ldquoa relaccedilatildeo-de-ser

da consciecircncia com o real ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p583) faz com que a lsquovidarsquo

seja apresentada de modo indiferenciado sem a compreensatildeo de sua sustentaccedilatildeo

ontoloacutegica jaacute que a vivecircncia particular da consciecircncia como vida conexa e estruturante

79Termo a partir do qual Ponto de partida

109

eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu projeto hermenecircutico Mas Heidegger

reconhece ldquoDilthey natildeo soacute acentua que a realidade nunca eacute dada de modo primaacuterio no

pensamento e na apreensatildeo mas indica sobretudo que o conhecer ele mesmo natildeo

consiste em julgar e que saber eacute uma lsquorelaccedilatildeo de serrsquordquo (HEIDEGGER 2012 p583)

Tentando tornar mais claro mesmo que para Dilthey o mundo natildeo apareccedila como um

conjunto de coisas prontas agrave apreensatildeo da razatildeo humana mais ainda que as coisas

enquanto res natildeo sejam tomadas como a realidade (Realitaumlt) o fato de o pressuposto da

vivecircncia provir da consciecircncia obscurece o fundamento ontoloacutegico de algo como ldquovidardquo

Por isso escapou a Dilthey a relaccedilatildeo primaacuteria entre ser-aiacute como ser-no-mundo em sua

radicalidade ontoloacutegica como relaccedilatildeo fundante de toda e qualquer compreensatildeo de ser

Talvez por esse motivo como observa DASTUR (2007)

ldquoNo trabalho publicado em 1927 Heidegger natildeo usa frequentemente termo

hermenecircutica que aparece apenas trecircs ou quatro vezes () - no paraacutegrafo 7 da

introduccedilatildeo quando eacute para definir a fenomenologia no paraacutegrafo 33 que trata da

enunciaccedilatildeo e no paraacutegrafo 45 que define o iniacutecio da segunda parte da tarefa de

uma interpretaccedilatildeo do Dasein - enquanto o termo Auslegung que significa tanto

interpretaccedilatildeo e explicaccedilatildeo eacute muito mais frequentemente utilizadordquo (p74)

E quando Heidegger retoma o termo ldquohermenecircuticardquo no sect33 ele ressalta o caraacuteter

existenciaacuterio de tal interpretaccedilatildeo

ldquoA enunciaccedilatildeo natildeo pode negar sua origem ontoloacutegica a partir da interpretaccedilatildeo

que-entende O ldquocomordquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor entendedor

(ἑρμηνεία) noacutes os chamamos lsquocomorsquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio para

diferenciaacute-lo do ldquocomordquo apofacircntico da enunciaccedilatildeo (Aussage)rdquo (HEIDEGGER

2012 p 447)

O que eacute essa diferenccedila entre o ldquocomordquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio e o ldquocomordquo

apofacircntico da enunciaccedilatildeo Eacute a diferenccedila entre Auslegung (interpretaccedilatildeo) e Aussage

(enunciado) A diferenccedila consiste no fato de que a originariedade da mostraccedilatildeo dos entes

em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) - pela

significatividade (Bedeutsamkeit) que a articula - e sua derivaccedilatildeo como ente

simplesmente dado (Vorhanden) ndash fazendo emergir algo como significado (Bedeutung)-

ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) em sua ligaccedilatildeo

derivativa agrave interpretaccedilatildeo (Auslegung) De outra maneira como a estrutura interpretativa

aberta pela compreensatildeo ou entendimento (Verstehen) transforma-se em proposiccedilatildeo

Na introduccedilatildeo desse capiacutetulo escrevemos que na fenomenologia heideggeriana veio agrave

110

tona o aspecto ontoloacutegico do conteuacutedo significativo Essa fenomenologia como ontologia

acabou por revelar de um lado a historicidade de todo e qualquer significado que pudesse

vir agrave palavra por outro que o campo de sentido no qual algo pode manter-se em seu

significado tambeacutem era histoacuterico Eacute necessaacuterio portanto a partir de agora mostrar como

o significado aberto pela compressatildeo-interpretativa (algo como algo) ganha sua forma

expressa inicialmente a partir do fenocircmeno da proposiccedilatildeo e a partir dessa derivaccedilatildeo

podemos ter acesso ao fenocircmeno da linguagem

II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da

interpretaccedilatildeo (Auslegung)

A anaacutelise da enunciaccedilatildeo (Aussage) conforme apresenta por Heidegger no sect33 de

Ser e Tempo constitui a segunda estrutura descrita na obra a qual nos permite

compreender o fenocircmeno da linguagem (Sprache) como a manifestaccedilatildeo uacuteltima de um

horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo dos entes previamente

articulada O fenocircmeno da linguagem aparece como resultado dos trecircs objetivos de sua

investigaccedilatildeo neste momento do tratado os quais listamos a seguir

1) Como a estrutura compreensiva-interpretativa (apresentada no toacutepico anterior)

sofre uma modificaccedilatildeo

2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos

3) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade

Como antecipamos e a partir da finalidade da anaacutelise acima apresentada

podemos dizer que o que estaacute em jogo nesse momento da analiacutetica eacute compreender que ldquoa

siacutentese predicativa fundamenta-se numa daccedilatildeo originaacuteria e eacute em funccedilatildeo da experiecircncia

antepredicativa que se opera a atribuiccedilatildeo do predicado ao sujeitordquo (NUNES 2012 p165)

Em outras palavras como a estrutura interpretativa aberta pela compressatildeo (algo como

algo) transforma-se em proposiccedilatildeo (Sujeito-predicado) E essa derivaccedilatildeo eacute elencada nas

trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo (Aussage)

1) Mostraccedilatildeo (Aufzeigung)

2) Predicaccedilatildeo (Praumldikation)

111

3) Comunicaccedilatildeo (Mitteilung)

Essas significaccedilotildees do termo Aussage ainda segundo Heidegger possuem caraacuteter

analiacutetico pois satildeo ldquotiradas do fenocircmeno que ela designa as quais delimitam em sua

conexatildeo e unidade a completa estrutura da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p437)

Essa unidade estaacute assentada nas condiccedilotildees preacutevias tendo em vista que ldquoa enunciaccedilatildeo natildeo

eacute um comportamento-que-flutua-no-ar e que possa por si mesmo abrir o ente

primariamente mas se comporta jaacute sempre sobre a base de ser-no-mundordquo

(HEIDEGGER 2012 p443)

Como vimos no capiacutetulo anterior as condiccedilotildees preacutevias conforme apresentadas no

Relatoacuterio Natorp satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a direccedilatildeo da

visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a ldquovisibilidaderdquo (Sichtweite) De

modo mais claro em (1) temos o acircmbito da realidade dada em uma preacutevia abertura

temporal de sentido em (2) temos a direccedilatildeo que jaacute determinou algo ldquocomo-algordquo (Als-

was) e jaacute ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu lugar

significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de toda

possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o como

do aparecer dos entes em seu ser seu significado e as possibilidades de comportamentos

do ser-aiacute eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto

(1) e jaacute interpretado (2) e por isso pode mover-se em pretensotildees de objetividade e

definiccedilatildeo Essas condiccedilotildees estatildeo articuladas com a interpretaccedilatildeo de Heidegger dos termos

respectivamente noucircs phroacutenesis e sophiacutea e assentadas na noccedilatildeo de verdade como

desvelamento (ἀλήθεια) Em Ser e Tempo Heidegger reelabora essas interpretaccedilotildees com

uma terminologia proacutepria respectivamente Vorhabe (ter-preacutevio) Vorsicht (ver-preacutevio)

e Vorgriff (conceito-preacutevio) e esse tripeacute

ldquoForma o arcabouccedilo projetivo do compreender que nos abre os entes ao sabor

dos nexos da referecircncia na conduta do trato atraveacutes dos quais se estende a rede

de significatividade () Eacute nessa conduta e portanto na experiecircncia

antepredicativa como a praacutexis maciccedila do mundo-da-vida em seu imediato e

frequente transcorrer cotidiano que Heidegger coloca a nascente do sentidordquo

(NUNES 2012 p168)

Como essas condiccedilotildees preacutevias devem ser compreendidas em vista do caraacuteter de

projeto-jogado do ser-aiacute natildeo eacute gratuita a designaccedilatildeo da abertura do ser-aiacute ao mundo como

112

ldquoabertura de sentido fundamentalrdquo A abertura compreensiva fundamental descerra o

poder-ser do ser-aiacute como projeto mas ao projetar-se ele eacute lanccedilado num ldquoaiacuterdquo histoacuterico O

seu poder-ser se lanccedila num campo de jogo jaacute descerrado interpretado e articulado por

essas condiccedilotildees E assim essas condiccedilotildees preacutevias ldquoreconduz[emcc]-nos ao ciacuterculo

hermenecircutico ontoloacutegico-histoacuterico que circunscreve por forccedila da finitude que faz do

homem um Daseinrdquo (NUNES 2012 p168) No que me lanccedilo ao mundo sou e o mundo

eacute como ele eacute como escreve Fernando Pessoa (2006 p177)

ldquoCreio no mundo como um malmequer

Porque o vejo Mas natildeo penso nele

Porque pensar eacute natildeo compreender

O Mundo natildeo se faz para pensarmos nele

(Pensar eacute estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordordquo

Talvez esses versos possam iluminar o que estaacute em questatildeo nesse paraacutegrafo

Poderiacuteamos nos questionar por qual motivo Heidegger natildeo passa da interpretaccedilatildeo

(Auslegung) ao discurso (Rede) pois este como veremos no proacuteximo capiacutetulo remete agrave

fala como fundamento ontoloacutegico da linguagem O sect 33 se refere a uma discussatildeo muito

especiacutefica mas que tem um lugar privilegiado na ontologia fundamental e estaacute

diretamente relacionada ao sect44 da mesma obra A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo de verdade

da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca que era a dos

neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa concepccedilatildeo

tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da verdade em

direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave proposiccedilatildeo Com

isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa medida

condicionando a ontologia agrave loacutegica

Courtine (1996) elabora essa problemaacutetica com clareza A partir de trecircs etapas

ele nos apresenta o caminho que conduz nosso autor da loacutegica agrave liacutengua A primeira etapa

diz respeito aos trabalhos de juventude de Heidegger ldquoainda marcados pela problemaacutetica

da validade como primeira elucidaccedilatildeo do ser no juiacutezordquo (COURTINE 1996 p14) Jaacute a

segunda etapa que Courtine denomina destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica consiste em regressar

da interpretaccedilatildeo ldquoescolarrdquo da loacutegica aristoteacutelica a uma problematizaccedilatildeo mais original do

loacutegos compreendido como modo de desvelamento Eacute nessa segunda etapa que estaacute

113

inserido o trabalho de Ser e Tempo sendo a passagem da primeira agrave segunda etapa

marcada pelo curso de 1925-1926 Logik die Frage nach der Wahrheit (GA21) A

terceira seria ainda uma etapa de destruiccedilatildeo mas de modo diferente marcada pelo que

Courtine denomina desorientaccedilatildeo ou ldquoabalordquo (erschuumlttern) e encontra sua imagem

expliacutecita no texto de 1935 ldquoIntroduccedilatildeo agrave metafiacutesicardquo

Portanto na primeira etapa a loacutegica para o jovem Heidegger eacute ainda apreendida

como loacutegica do ldquosentidordquo ou da ldquovalidaderdquo

ldquoA ideacuteia segundo a qual a Geltung a validade define o modo de ser proacuteprio das

proposiccedilotildees e das verdades vem como se sabe da loacutegica de Lotze Numa nota

das Neuere Forschungen uumlber Logik (GA I p23) Heidegger indicava a respeito

da Loacutegica de Lotze que acabava de ser reeditada sua loacutegica deve sempre ser

considerada como a obra fundamental da loacutegica moderna () E Heidegger que

ateacute aqui se exprimia como disciacutepulo fiel de Husserl terminava por acrescentar

esta questatildeo rica em posteridade para seu proacuteprio pensamento ldquoMas logo se

coloca a questatildeo o que eacute ndash sentidordquo (GA I p170)rdquo (COURTINE 1996 pp16-

17)

Vimos como o sentido (Sinn) em Ser e Tempo eacute apresentado sob uma perspectiva

radical relacionado agrave problematizaccedilatildeo mais original do lsquoloacutegosrsquo como mostraccedilatildeo do

fenocircmeno em seu ser e agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento Essa mudanccedila criacutetica

resulta da aparentemente simples interrogaccedilatildeo de Heidegger acerca da identificaccedilatildeo

ldquoWahrheit = wahrer Satz = Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade)rdquo

(COURTINE 1996 p 19) A criacutetica eacute assim expressa em Logik die Frage nach der

Wahrheit (GA21)

ldquoLotze que introduziu o conceito de lsquoGeltungrsquoem loacutegica emprega a expressatildeo

lsquoserrsquo no sentido estrito segundo o qual ser quer dizer a mesma coisa que

efetividade das coisas ser = lsquorealidadersquo (Vorhandenheit) [] Lotze natildeo conseguiu

superar o naturalismo na medida em que restringiu o significado do termo

veneraacutevel lsquoserrsquo ao ser real agrave realidade [] Na nossa terminologia utilizamos

inversamente ser no sentido amplo inserindo-nos na autecircntica tradiccedilatildeo da

filosofia grega de tal maneira que ser designa tanto a realidade quanto a

idealidade ou outras maneiras possiacuteveis de serrdquo (HEIDEGGER GA21 p62

apud COUTRINE 1996 p19)

Nesse sentido lembremos tambeacutem que para os neokantianos influenciados pela

filosofia dos valores de Lotze o conhecimento eacute possiacutevel como uma atividade valorativa

do juiacutezo (na forma ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo) Ou seja eacute o juiacutezo que reconhece o

conteuacutedo o sentido e a validade da verdade na sua pretensatildeo de necessidade e

114

universalidade algo ldquoeacuterdquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento Ora

o que a leitura de Ser e Tempo ateacute aqui jaacute demonstrou eacute que algo eacute natildeo porque um juiacutezo

loacutegico definiu seu conteuacutedo ontoloacutegico mas porque o ser-aiacute aquele que vai atribuir

sentido jaacute sempre se move numa preacute-compreensatildeo de ser a qual eacute fundamentalmente

praacutetica na visatildeo circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram

em seu ser Ora estabelecendo uma possiacutevel analogia parece que Heidegger desconfia

tanto do conhecimento teoacuterico-proposicional quanto Fernando Pessoa do ldquopensamentordquo

Assim reduzir qualquer ontologia agrave loacutegica atraveacutes do juiacutezo proposicional eacute como ldquoestar

doente dos olhosrdquo

No nosso entender o que Heidegger desenvolve no sect 33 soacute seraacute totalmente

elucidado se o relacionarmos com o sect 44 No sect 33 jaacute se anuncia que a forma fundamental

da predicaccedilatildeo (Praumldikation) sujeito e predicado (ldquoS eacute Prdquo) eacute derivada da mostraccedilatildeo

(Aufzeigung) originaacuteria compreensivo-interpretativa (algo como algo) e soacute por isso a

comunicaccedilatildeo (Mitteilung) uns com os outros na vida cotidiana pode expressar profericcedilotildees

como ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo ldquoHoje eacute um belo diardquo etc Antes de

entramos na apresentaccedilatildeo pormenorizada do sect33 e assim a relacionarmos ao sect44 eacute

necessaacuterio fazermos duas consideraccedilotildees

Essas camadas de derivaccedilatildeo evitam qualquer interpretaccedilatildeo relativista da noccedilatildeo de

linguagem em Heidegger Tentando escapar de uma leitura apressada devemos pensar

no acontecimento da verdade como um acontecimento compreensivo a partir de um ente

finito e histoacuterico o que eacute diferente de reduzi-lo a uma perspectiva historicista O que estaacute

em questatildeo por exemplo natildeo eacute se ldquocasardquo poderia se chamar ldquomesardquo (esse eacute um aspecto

ocircntico da linguagem) ou ainda que o fato de o enunciado possuir um fundamento

contingente ele seria menos verdadeiro Aleacutem disso haacute o fato de que o ente e as

possibilidades de ser do ser-aiacute vecircm agrave palavra por uma mostraccedilatildeo preacutevia de seu ser eacute o

ente que se mostra E na medida em que eacute mobilizado pelo ser-aiacute na interpretaccedilatildeo sua

mostraccedilatildeo pode ser modificada pela expressatildeo na forma predicativa A loacutegica deriva do

loacutegos a loacutegica natildeo eacute o lugar do loacutegos E o loacutegos eacute a maneira mesma de o ente se mostrar

e se ele se mostra para o ser-aiacute isso natildeo quer dizer que eacute o ser-aiacute que o determina Natildeo

Eacute o ser-aiacute que o potildee em liberdade O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento

como fenocircmeno Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a

115

expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional

compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na estabilidade de uma esfera para aleacutem

do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua manifestaccedilatildeo o sentido

de sua proacutepria existecircncia

Caberia ademais em uma pesquisa posterior investigar se a interpretaccedilatildeo do

loacutegos como loacutegos apofacircntico derivada da noccedilatildeo de intencionalidade essecircncia mesma da

fenomenologia ainda reconduz Heidegger a certo viacutenculo com a concepccedilatildeo tradicional

da linguagem na medida em que dizer eacute ainda dizer que algo eacute de tal ou qual maneira ou

seja ainda dizer na forma predicativa Dito de outra forma mesmo que Heidegger

demonstre o caraacuteter derivado da loacutegica ela continua a ser uma purificaccedilatildeo dos elementos

materiais da linguagem Isso significaria dizer que o problema heideggeriano da

linguagem ainda estava inserido no projeto da tradiccedilatildeo da filosofia ocidental 80

Retomemos agora as trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo

(Aussage) Na mostraccedilatildeo (Aufzeigung) como primeiro significado Heidegger reteacutem o

sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Essa forma do enunciado estaacute diretamente

relacionada ao ente que vem ao encontro no Vorhabe (ter-preacutevio) ou noucircs em que o ser-

aiacute originariamente pela ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhanden) movimenta-se e abre a

compreensatildeo em um mundo-ambiente (Umwelt) Mas toda compreensatildeo (Verstehen) jaacute

interpreta (Auslegung) o que entende e assim no trato praacutetico ou no ldquocomordquo

hermenecircutico-existenciaacuterio

ldquoA execuccedilatildeo originaacuteria da interpretaccedilatildeo natildeo consiste em uma proposiccedilatildeo-

enunciativa teoacuterica mas no fato de que no-ver-ao-redor da ocupaccedilatildeo se potildee de

lado ou se troca a ferramenta improacutepria lsquosem perder nisso uma soacute palavrarsquo Da

falta de palavras natildeo se deve concluir a falta de interpretaccedilatildeordquo (HEIDEGGER

2012 P445)

Na predicaccedilatildeo (Praumldikation) segundo significado da enunciaccedilatildeo fundado no

primeiro haacute a determinaccedilatildeo de um ente que modifica e restringe a mostraccedilatildeo de algo

como algo na forma sujeito-predicado Esse segundo significado estaacute diretamente

80 Cf Capiacutetulo I- Introduccedilatildeo

116

relacionado ao Vorsicht (ver-preacutevio) cuja base encontra-se no Vorhabe (ter-preacutevio) No

que o ser-aiacute vecirc algo e o determina ele restringe o utilizaacutevel (Zuhandenes) a um subsistente

(Vorhandener) com isso ele ldquovisa a um subsistente no utilizaacutevel Pelo olhar

contemplativo e para ele o utilizaacutevel se oculta como utilizaacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012

p445) Esse segundo momento da enunciaccedilatildeo estaacute ligado ao significado (Bedeutung) que

emerge a partir da significatividade (Bedeutsamkeit) e nesse sentido ldquoposiccedilatildeo-de-sujeito

posiccedilatildeo-de-predicado em unidade com o-pocircr satildeo inteiramente lsquoapofacircnticosrsquo no sentido

rigoroso da palavrardquo (HEIDEGGER 2012 p439) Aqui Heidegger ainda se refere a uma

categoria do ente que se mostra no interior do mundo Mas entatildeo como ocorre a

modificaccedilatildeo de algo como algo tomado como categoria subsistente (Vorhanden) na forma

loacutegica sujeito-predicado

ldquoAgora pela primeira vez se franqueia o acesso a algo assim como propriedades

O lsquoquecircrsquo da enunciaccedilatildeo determinante do subsistente eacute extraiacutedo do subsistente

como tal () A estrutura-de-como da interpretaccedilatildeo experimenta uma

modificaccedilatildeo O lsquocomorsquo em funccedilatildeo de apropriaccedilatildeo do entendido jaacute natildeo chega ateacute

uma totalidade-de-conjuntaccedilatildeo Ele foi separado de suas possibilidades de

articular as relaccedilotildees-de-remissatildeo da significatividade que constitui o ser-do-

mundo-ambiente O lsquocomorsquo eacute reprimido no plano uniforme do soacute subsistente ()

Esse nivelamento do lsquocomorsquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor em como

da determinaccedilatildeo-da-subsistecircncia eacute a prerrogativa da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER

2012 p447)

O ente tomado como subsistente (Vorhanden) eacute prerrogativa da predicaccedilatildeo Seu

recorte como algo que possui essa ou aquela propriedade torna possiacutevel algo como a

forma predicativa (ldquoS eacute Prdquo) O que estaacute em jogo poreacutem pois tornou-se paradigma da

tradiccedilatildeo eacute o nivelamento de todo e qualquer ente como algo sempre presente dotado de

propriedades e desse modo disponiacuteveis agrave apreensatildeo na forma predicativa Nesse

nivelamento todo ente eacute posto sob o domiacutenio da loacutegica que obscurece sua derivaccedilatildeo

essencial agrave mostraccedilatildeo do ente em seu ser em funccedilatildeo da relaccedilatildeo primaacuteria ser-aiacute como ser-

no-mundo e assim da verdade como desvelamento (ἀλήθεια)

A terceira forma do enunciado derivado do primeiro e do segundo significados eacute

apresentada por Heidegger como comunicaccedilatildeo (Mitteilung) A palavra alematilde jaacute indica o

caraacuteter puacuteblico do que inicialmente foi mostrado e pela predicaccedilatildeo foi determinado

teilung (partilha) mit (com) O enunciado como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se puder ser

partilhado com outrem ldquover juntordquo o mostrado jaacute determinado ldquolsquoCompartilhadorsquo eacute o

comum e transparente ser para o mostrado lsquoser pararsquo que deve ser firmemente mantido

117

como ser-no-mundo [] Agrave enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo entendida assim sentido

existenciaacuterio pertence o ser expressordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Essa terceira forma

estaacute relacionada ao Vorgriff (conceito-preacutevio) ou a significaccedilotildees calcificadas de um

mundo histoacuterico faacutetico

Natildeo podemos esquecer que a anaacutelise dos existenciaacuterios (entender interpretaccedilatildeo e

disposiccedilatildeo) estatildeo na anaacutelise do ldquoser-em como talrdquo (quinto capiacutetulo) antecedida pelo

capiacutetulo intitulado ldquoo ser-no-mundo como ser-com e como ser-si-mesmo lsquoA gentersquordquo

Nesse sentido e pelo caraacuteter programaacutetico de Ser e Tempo a anaacutelise da enunciaccedilatildeo ou

proposiccedilatildeo (Aussage) jaacute pressupotildee que ser-no-mundo eacute sempre ser-com-os-outros Desse

modo ser expresso na comunicaccedilatildeo eacute a primeira manifestaccedilatildeo acerca do fenocircmeno da

linguagem que Heidegger apresenta em Ser e Tempo Poreacutem no sect34 o autor indica que

a comunicaccedilatildeo enunciativa ou informativa (ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo

ldquoHoje eacute um belo diardquo etc) assentada na predicaccedilatildeo eacute um caso particular de comunicaccedilatildeo

(Cf HEIDEGGER 2012 p457) Mas aqui chegamos ao intuito principal de nosso

capiacutetulo descrever como a ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo fundada na predicaccedilatildeo que por

sua vez soacute eacute possiacutevel pela interpretaccedilatildeo apresenta o caraacuteter derivativo do enunciado

expresso em uacuteltima medida pela linguagem que comunica

A partir dessa apresentaccedilatildeo dos trecircs significados do enunciado (Aussage)

compreendemos sua definiccedilatildeo ldquoenunciaccedilatildeo eacute uma mostraccedilatildeo determinante que

comunicardquo (HEIDEGGER 2012 p443) Portanto chegamos agrave estrutura ontoloacutegica da

linguagem (Sprache) ou ao dizer puacuteblico acerca das coisas e do estado de coisas em um

mundo Ter chegado ao objetivo central de nosso capiacutetulo natildeo quer dizer que nossa tarefa

se encerra aqui Uma obra como Ser e Tempo nos exige mais A finalidade da investigaccedilatildeo

desse paraacutegrafo ainda natildeo foi esclarecida em seus dois uacuteltimos pontos

1) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos

2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade

Se Heidegger indica que no mostrar mesmo do fenocircmeno em seu loacutegos (algo como

algo) pode surgir a forma predicativa eacute necessaacuterio explicar como no proacuteprio loacutegos a

flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo eacute possiacutevel Nas palavras de nosso autor

118

ldquoQue funda a unidade desse juntar Ele reside como Platatildeo reconheceu em que o

λόγος eacute sempre um λόγος tivoacuteς Na perspectiva do ente manifesto no λόγος as

palavras satildeo reunidas em um todo verbal Aristoacuteteles viu mais radicalmente todo

λόγος eacute ao mesmo tempo σύνθεσis e διαίρεσηs A mostraccedilatildeo eacute um reunir e separar

Entretanto Aristoacuteteles natildeo desenvolveu a questatildeo ateacute perguntar Que fenocircmeno eacute

o que no interior da estrutura do λόγος possibilita e ao mesmo tempo exige a

caracterizaccedilatildeo de toda enunciaccedilatildeo como siacutentese e dieacuterese () O que com as

estruturas formais do lsquoligarrsquo e lsquosepararrsquo ou mais exatamente com a unidade de

ambos devia ser fenomenicamente encontrado eacute o fenocircmeno do lsquoalgo como algorsquordquo

(HEIDEGGER 2012 p449)

A criacutetica expliacutecita se volta contra Aristoacuteteles mas tambeacutem contra toda tradiccedilatildeo

que absorveu esse pressuposto E como natildeo podemos deixar de observar ateacute seu proacuteprio

mestre Husserl quando este estabeleceu a diferenccedila entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial

Essa distinccedilatildeo desalojou o lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel e o conduziu ao uso loacutegico

sem revelar de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno ou o desvelamento dos

entes em seu ser O fenocircmeno da linguagem enunciativa (Mitteilung) em funccedilatildeo de sua

derivaccedilatildeo da predicaccedilatildeo (Praumldikation) e essa por sua vez derivada da mostraccedilatildeo

(Aufzeigung) possui uma ligaccedilatildeo com os entes na medida em que diz o que de algum

modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que lsquoalgo eacute xrsquo ou que lsquoalgo natildeo eacute xrsquo eacute possiacutevel primariamente

pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com

No interior da estrutura do proacuteprio λόγος ao indicar-se que algo eacute diz-se tambeacutem como

ele eacute ou como ele natildeo eacute [esse traccedilo estaacute relacionado ao caraacuteter intencional do discurso

(die Rede) que examinaremos no proacuteximo capiacutetulo] Contudo a linguagem habitual que

manteacutem vigente os significados calcificados natildeo reconhece esse traccedilo para aleacutem da

gramaacutetica Aleacutem disso a proposiccedilatildeo loacutegica obscurece a estrutura do loacutegos que a

condiciona pelo fato de usurpar a verdade para o juiacutezo natildeo reconhecendo o lugar

originaacuterio da verdade Originariedade somente possiacutevel pela compreensatildeo da verdade

como Aleacutetheia O que nos conduz agrave segunda finalidade da investigaccedilatildeo do sect 33

Para explicarmos esse conceito originaacuterio de verdade eacute necessaacuterio que nos

reportemos ao sect44 Quando se diz ldquooriginariedaderdquo do fenocircmeno da verdade natildeo se diz

algo como lsquocausarsquo da verdade antes se refere agrave sua origem sem sentido objetivo

lsquoObjetividadersquo eacute um conceito derivado da verdade reportada ao juiacutezo Aqui a verdade

tambeacutem natildeo deve ser considerada para aleacutem de sua compreensatildeo histoacuterica Lembremos

de que natildeo haacute ldquoserrdquo sem a compreensatildeo do sentido de ser portanto eacute necessaacuterio vincular

119

sempre ldquoserrdquo ao ser-aiacute ente finito e histoacuterico Por conseguinte compreensatildeo de ser em

Ser e Tempo estaacute como a origem mesma da verdade compreendida como desvelamento

Como jaacute apontamos antes a enunciaccedilatildeo (Aussage) enquanto mostraccedilatildeo

(Aufzeigung) eacute a forma fundante dos modos possiacuteveis de enunciaccedilatildeo e nela Heidegger

reteacutem o sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Na mostraccedilatildeo nada se funda em

representaccedilotildees que se adequam a objetos como compreendeu a tradiccedilatildeo Para serem

verdadeiros e garantirem seu estatuto ontoloacutegico os entes natildeo precisam estar de em

acordo nem se submeterem agrave adequaccedilatildeo dos juiacutezos ou proposiccedilotildees dos homens A

derivaccedilatildeo da verdade como objetividade na ciecircncia ou em todo comportamento teoacuterico

natildeo pode negar a maneira pela qual o ente eacute posto em liberdade Conhecer

originariamente eacute deixar que o ente se mostre em seu ser dessa forma

ldquoSuponha-se que algueacutem de costas para a parede profira a seguinte enunciaccedilatildeo

verdadeira lsquoO quadro pendurado na parede estaacute tortorsquo Essa enunciaccedilatildeo se

comprova quando quem a enuncia se volta para a parede e percebe o quadro torto

ali dependurado Que eacute comprovado nessa comprovaccedilatildeo Eacute constatado algo

como uma concordacircncia do lsquoconhecimentorsquo ou do conhecido com a coisa

lsquocolocadarsquo na parede Sim e natildeo conforme se faccedila cada vez uma adequada

interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do que a expressatildeo lsquoo conhecidorsquo significa A que

se refere quem enuncia se natildeo julga o quadro na percepccedilatildeo mas soacute o representa

A algo como representaccedilotildees Certamente que natildeo se representaccedilatildeo deve aqui

significar representar como processo psiacutequico Tambeacutem natildeo se representaccedilotildees

tecircm o sentido do representado na medida em que visada uma imagem da coisa

real na parede Ao contraacuterio a enunciaccedilatildeo que soacute representa refere-se segundo

seu sentido mais proacuteprio ao quadro real na parede Soacute ele eacute visado e nada que

dele difira () O enunciar eacute um ser voltado para a coisa sendo ela mesma E que

eacute comprovado pela percepccedilatildeo Nada senatildeo que o percebido eacute o mesmo ente

visado na enunciaccedilatildeoConfirma-se que o ser enunciante para o enunciado eacute um

mostrar o ente que ele descobre o ente para o qual se volta Eacute comprovado o ser-

descobridor da enunciaccedilatildeo () o conhecer permanece referido unicamente ao

ente ele mesmo Eacute neste mesmo que se joga por assim dizer a confirmaccedilatildeo O

ente visado se mostra ele mesmo assim como ele eacute em si mesmo () A

enunciaccedilatildeo eacute verdadeira significa que ela descobre o ente em si mesmo Ela

enuncia mostra lsquofaz verrdquo (αποφανσις) o ente em seu ser-descoberto O ser

verdadeiro (verdade) da enunciaccedilatildeo se deve entender como um ser-descobridorrdquo

(Heidegger 2012 pp603-605)

O termo grego ldquoapophantikoacutesrdquo pela junccedilatildeo entre ldquoapordquo [ldquopara forardquo ldquomostrarrdquo

ldquotornar conhecidordquo] e ldquophaineinrdquo [ldquoexibir mostrarrdquo (derivado de lsquophosrsquo ldquoluzrdquo - mesma

raiz da palavra phainoacutemenon)] manteacutem sua forccedila quando articulado com as palavras

120

ldquoAuslegungrdquo e ldquoAussagerdquo Pois tal como ldquoapordquo ldquoausrdquo eacute o prefixo de liacutengua alematilde usado

nessas palavras com o sentido da preposiccedilatildeo aus que significa ldquopara forardquo ldquoderdquo Assim

uma vez interpretado (Auslegung) o ente enunciado (Aussage) jaacute mostrou jaacute trouxe a si

mesmo a conhecimento e desvelou-se como ente e nisso consiste sua verdade originaacuteria

(Aleacutetheia)

O retorno de Heidegger agrave ldquoforccedila das palavras mais elementaresrdquo ou agraves palavras

gregas como loacutegos dikeacute physis teacutechne e aleacutetheia eacute a tentativa de ir aleacutem da

sedimentaccedilatildeo histoacuterica das palavras Dito de outra forma voltar agrave origem dos termos

atraveacutes dos quais o pensamento filosoacutefico teria alcanccedilado lsquoas coisas mesmasrsquo coisas essas

que agora no presente permanecem veladas por camadas interpretativas cotidianas e

teoacutericas Sendo a concepccedilatildeo de que a proposiccedilatildeo eacute o lugar privilegiado da verdade uma

das maiores expressotildees da tradiccedilatildeo metafiacutesica Portanto eacute tarefa a que Ser e Tempo se

propotildee eacute a da descriccedilatildeo desse lugar originaacuterio ndash de mostraccedilatildeo - dos fenocircmenos

Mas se eacute o ser-aiacute na abertura de sentido fundamental que mobiliza os entes em seu

ser qual o papel desse ente marcado pela existecircncia em meio agrave verdade agora

compreendida como Aleacutetheia A compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido

primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode custodiar o sentido

de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento

ldquoO ser-verdadeiro como ser-descobridor soacute eacute de sua parte ontologicamente

possiacutevel sobre o fundmento do ser-no-mundo Este fenocircmeno no qual

reconhecemos uma constituiccedilatildeo fundamental do Dasein eacute o fundamento do

fenocircmeno originaacuterio da verdade () Na medida em que o Dasein eacute

essencialmente sua abertura e aberto abre e descobre ele eacute essencialmente

verdadeiro O Dasein eacute lsquona verdadersquordquo (HEIDEGGER 2012 pp607-611)

O ser-aiacute em sua unidade fenomecircnica como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge)

revelou-se como o fundamento sem fundamento da abertura compreensiva portanto

aquele que como ser-no-mundo pode abrir o sentido de ser de todo ente e de suas

possibilidades Poreacutem como projeto-jogado eacute tambeacutem aquele que pode perder-se e natildeo

tornar transparente essa condiccedilatildeo ontoloacutegica fundamental o que frequentemente jaacute faz

pois sempre jaacute custodiou seu ser no mundo suas orientaccedilotildees cotidianas as sedimentaccedilotildees

121

significativas e as concepccedilotildees de verdade calcificadas Por isso o Dasein eacute o ente que

tambeacutem estaacute na natildeo-verdade (Umwahrheit)81

Recuperemos o sentido efetivo de desvelamento ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o

que aponta para o velamento (lethe) que ficou para traacutes que mostra para aquilo que a

sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila da aleacutetheia que se torna possiacutevel a

objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89)

Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao

encontro em seu significado) no desvelamento originaacuterio de seu ser mas a mostraccedilatildeo dos

fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira dissimulada sempre em uma objetificaccedilatildeo de

seu ser como ente determinado pois ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na

medida em que partimos de seu encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de

descoberta perde seu sentido mais efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Entatildeo ldquodizer que o

Dasein estaacute e natildeo estaacute na verdade eacute compreender que o encobrimento (Verschlossenheit)

eacute [] a contraparte da aberturardquo (NUNES 2012 p197)

Depois dessa exposiccedilatildeo eacute necessaacuterio apresentar como a linguagem estaacute assentada

na constituiccedilatildeo proacutepria ao ser-aiacute em relaccedilatildeo agrave verdade Tentaremos mostrar como o

discurso (Rede) eacute para Heidegger o fundamento ontoloacutegico da linguagem mas ao

mesmo tempo como o proacuteprio fenocircmeno da linguagem jaacute sempre se apresenta como

falatoacuterio (Gerede) Essa eacute a tarefa do proacuteximo e uacuteltimo capiacutetulo de nosso trabalho

81 Cf HEIDEGGER 2012 sect44 p615

122

Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)

Em vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdos Sob a pele das palavras haacute cifras e coacutedigos O sol consola os doentes e natildeo os renova

As coisas Que tristes satildeo as coisas consideradas sem ecircnfase (A flor e a naacuteusea Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

No capiacutetulo anterior descrevemos de que modo o fenocircmeno da linguagem eacute

apresentado pela primeira vez em Ser e Tempo como ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo e ainda

como a linguagem eacute derivada da mostraccedilatildeo preacutevia dos entes em seu ser a partir da relaccedilatildeo

primaacuteria ser-aiacute como ser-no-mundo O Dasein como ente privilegiado estaacute remetido ao

mundo e sempre jaacute possui uma compreensatildeo preacutevia do ser A compreensatildeo ou

entendimento (Verstehen) de ser eacute o fundamento originaacuterio da verdade agora

compreendida como desvelamento aleacutetheia Poreacutem desvelar eacute apontar para o que

permanece velado ou seja a contraparte da abertura eacute o velamento

Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a

ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo

material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos

que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas

que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela

dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se

estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o

123

que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes82rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que

somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em

fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo

Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por

Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um

fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo

incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como

descoberto e os entes sempre disponiacuteveis A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo

cotidiano Heidegger chama de ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou

ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que

esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas

tomadas como oacutebvias e sempre disponiacuteveis pelos nossos recursos linguiacutesticos

I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem

A anaacutelise do discurso (Rede) por Heidegger eacute apresentada no sect34 de Ser e Tempo e

eacute assim descrita

ldquoCom a enunciaccedilatildeo ficou visiacutevel um derivado extremo da interpretaccedilatildeo A

elucidaccedilatildeo da terceira significaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo (ou

manifestaccedilatildeo verbal) conduziu ao conceito de dizer e falar que intencionalmente

sem duacutevida natildeo fora considerado ateacute aquele momento O fato de que a linguagem

seja tematizada somente agora deve servir de indicaccedilatildeo de que esse fenocircmeno

tem suas raiacutezes na constituiccedilatildeo existenciaacuteria da abertura do Dasein O fundamento

ontoloacutegico-existenciaacuterio da linguagem eacute o discurso () O discurso eacute

existenciariamente de igual originariedade que o entenderrdquo (HEIDEGGER

2012 p453)

Esse trecho nos coloca diante de uma constataccedilatildeo reveladora Afinal o que

fundamenta a linguagem estaacute remetido a abertura primaacuteria de sentido Mas isso jaacute natildeo

estaacute claro a partir da descriccedilatildeo da enunciaccedilatildeo De certa forma sim contudo de maneira

indireta pois a enunciaccedilatildeo (Aussage) comunicativa estaacute remetida aos significados ou

seja ao entendimento jaacute articulado e interpretado Agora poreacutem o que Heidegger nos

82 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo

Wolf Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249

124

apresenta eacute o discurso como fundamento da interpretaccedilatildeo e da enunciaccedilatildeo De outra

forma o fundamento da linguagem na proacutepria abertura de sentido (Sinn) de maneira que

o discurso eacute o proacuteprio entendimento articulado que pode interpretar

ldquoO discurso eacute a articulaccedilatildeo da entendibilidade Por isso o discurso fundamenta a

interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo Ao que pode ser articulado na interpretaccedilatildeo e

mesmo mais originariamente jaacute no discurso demos o nome de sentido O

articulado na articulaccedilatildeo discursiva como tal denominamos de o-todo-da-

significaccedilatildeo e este pode ser decomposto em significaccedilotildees As significaccedilotildees como

o articulado do articulaacutevel satildeo sempre providas de sentido () A entendibilidade

do encontrar-se do ser-no-mundo exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER

2012 p455)

O tratamento sobre o discurso (Rede) em Ser e Tempo eacute pouco extensivo mas

cabe a noacutes tentar compreendecirc-lo em todo sua radicalidade O iniacutecio da filosofia grega

denominado como ldquofilosofia da naturezardquo eacute marcado pela tentativa de encontrar a ordem

imanente agrave totalidade substancial do mundo material Essa totalidade estaacute expressa na

palavra physis que nada tem a ver com a natureza empiacuterica e manipulaacutevel que

conhecemos hoje pelas ciecircncias naturais83 Essa totalidade soacute pode ser vista como tal em

sua constituiccedilatildeo una se suas partes estiverem organicamente reunidas sem as quais natildeo

haacute totalidade mas eacute a partir da totalidade que as partes ganham sentido Mesmo que

Heidegger natildeo trate o discurso nesses termos e ainda mesmo que o termo physis apoacutes a

viragem ganhe uma conotaccedilatildeo toda especiacutefica nos valemos dessa explicaccedilatildeo para tentar

compreender a especificidade do discurso Desse modo podemos observar o que estaacute em

jogo no trecho acima O discurso eacute a articulaccedilatildeo da abertura de sentido sem ele o todo

natildeo poderia ser decomposto e a totalidade seria apenas um todo indistinto Nesse sentido

que o discurso fundamenta a interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo E isso nos revela um pouco

mais

ldquoA tatildeo comum definiccedilatildeo do iniacutecio da filosofia como a substituiccedilatildeo da explicaccedilatildeo

miacutetica ou (como eacute o recorte nos manuais de histoacuteria da filosofia) a passagem do

mito ao logos eacute por demais simplista para descrever o que representou a histoacuteria

e filosoficamente essa origem Compreender a filosofia antiga a partir da relaccedilatildeo

entre logos e physis eacute de fato compreender que o iniacutecio da especulaccedilatildeo filosoacutefica

sobre o mundo eacute em grande parte acompanhado pela tradiccedilatildeo miacutetica grega de

unidade entre espiacuterito e natureza e ao mesmo tempo pelo iniacutecio de um certo

83 Cf GONCcedilALVES M 2006 pp7-11

125

estranhamento entre o ser humano pensante e o ser natural ou () a natureza em

sua totalidaderdquo (GONCcedilALVES 2006 p12)

Como vimos o loacutegos para Heidegger natildeo eacute algo que estaacute no Dasein e por isso ele

pode pensar a totalidade Loacutegos segundo Heidegger em seu sentido originaacuterio grego natildeo

eacute ratio Ao contraacuterio o loacutegos estaacute na totalidade ele eacute a articulaccedilatildeo da totalidade que se

mostra ao mostrar os entes ou os fenocircmenos (loacutegos eacute loacutegos apofacircntico) E por isso o ser-

aiacute o acessa inicialmente de modo praacutetico pois natildeo se separa dessa totalidade (por isso a

originariedade da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da

conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) significativamente articulada) Na realidade o ser-aiacute soacute se

afasta dessa totalidade quando natildeo acessa mais o loacutegos de maneira originaacuteria relativo agrave

derivaccedilatildeo como ente simplesmente dado (Vorhanden) fazendo emergir algo como

significado (Bedeutung) que ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da

enunciaccedilatildeo (Aussage)

Mas qual a relaccedilatildeo entre loacutegos e discurso (Rede) Precisamos ir ao sect7 de Ser e

Tempo ldquoQuando dizemos que o significado-fundamental de λόγος eacute discurso essa

traduccedilatildeo literal soacute eacute plenamente validada a partir da determinaccedilatildeo do que o discurso ele

mesmo significardquo (HEIDEGGER 2012 p113) Loacutegos e discurso satildeo portanto o mesmo

Mas isso soacute torna a questatildeo ainda mais difiacutecil Afinal o loacutegos como loacutegos apofacircntico natildeo

eacute o mostrar do ente em seu ser Como mostrar e dizer podem ser o mesmo

ldquoλόγος como discurso significa () algo assim como δηλοῦν tornar manifesto

aquilo de que lsquose discorrersquo no discurso Aristoacuteteles explicitou mais nitidamente

essa funccedilatildeo do discurso como αποφανέσται O λόγος faz ver algo (φαίνεισθαι) a

saber aquilo sobre o que se discorre e faz ver a quem discorre (voz media) e aos

que discorrem uns com os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p113)

Discurso eacute a mostraccedilatildeo (ἀπόφανσις) que torna-se clara (δηλοῦν) Lembremos que

a plurivocidade do ente na tradiccedilatildeo loacutegica estaacute assentada nas possibilidades semacircnticas

submetidas a um princiacutepio loacutegico fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado

ao princiacutepio de identidade Pensamos que o que Heidegger potildee em tela eacute que a

ldquoidentidaderdquo e a ldquonatildeo-contradiccedilatildeordquo natildeo satildeo princiacutepios loacutegicos mas o mostrar e o torna-

se claro dos fenocircmenos em seu ser na totalidade articulada Ou seja o sentido de ser dos

126

fenocircmenos o mostrar o existente como existente eacute o loacutegos que manifesta e diz a si

mesmo pois reporta-se a palavra legein tornar manifesto aquilo de que se fala num

discurso deixar que algo seja visto manifesto porque posicionado em relaccedilatildeo uns com

os outros Tentemos esboccedilar um exemplo mas natildeo esqueccedilamos a fragilidade das palavras

sedimentas e o obscurecimento que elas oferecem a problemaacutetica ontoloacutegica Quando no

nosso cotidiano uma mesa ldquode trabalhordquo sem os livros sem a cadeira sem as canetas e

sobretudo sem a intenccedilatildeo de ser usada para o trabalho natildeo possui qualquer sentido Ela

eacute apenas um pedaccedilo de madeira ou mesmo passa obtusa aos nossos olhos Do mesmo

modo os livros as canetas e a cadeira A articulaccedilatildeo preacutevia desses objetos ou em seu

sentido ontoloacutegico a articulaccedilatildeo desses fenocircmenos eacute o que faz com que cada um deles

possa ser visto como um ldquoistordquo Notemos como o exemplo nos reporta exatamente a noccedilatildeo

de Umwelt descrita por Heidegger O que o discurso indica eacute a articulaccedilatildeo preacutevia para

que as coisas apareccedilam como tais jaacute no mundo circundante Articulaccedilatildeo anterior a

qualquer interpretaccedilatildeo de um ldquoistordquo ou de algo como algo e consequentemente anterior

ao enunciado (Aussage) Assim o caraacuteter ontoloacutegico dessa articulaccedilatildeo sempre dada a

noacutes em um mundo jaacute descerrado em que pode-se travar atividades praacuteticas com os entes

e em uacuteltima instacircncia falar de ldquomesardquo ldquocadeirardquo ldquocanetardquo etc eacute dado pelo discurso (die

Rede) compreendido como sendo o significado fundamental de λόγος

Nesse sentido podemos ver tambeacutem o caraacuteter intencional do discurso Como

indicamos no capiacutetulo anterior loacutegos como loacutegos apofacircntico possui uma ligaccedilatildeo com os

entes na medida que diz o que de algum modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que ldquoalgo eacute xrdquo ou

que ldquoalgo natildeo eacute xrdquo eacute possiacutevel primariamente pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da

mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com No interior da estrutura do proacuteprio λόγος

ao mostrar que algo eacute diz tambeacutem como ele eacute ou como ele natildeo eacute

ldquoPara tanto tomar-se-aacute uma sentenccedila elementar como exemplo de realizaccedilatildeo do

discurso (λόγος) ldquoa caneta eacute azulrdquo Acabou-se de dizer que um dos elementos

constitutivos do falar (λέγειν) eacute o sobre-o-quecirc Este sobre-o-quecirc em direccedilatildeo ao

qual se realiza o movimento intencional de desvelamento se encontra

simplesmente dado como um todo discreto e a interpelaccedilatildeo discursiva destaca

dele certos elementos O que ocorre ao se proferir o enunciado do tipo ldquoa caneta

eacute azulrdquo eacute uma cisatildeo de um todo subsistente o discurso opera no uno indistinto a

fixaccedilatildeo de limite de certas determinaccedilotildees particulares de modo a destacar

componentes pertencentes a esse elemento temaacutetico da fala () Assim natildeo se

tem uma mostraccedilatildeo da totalidade do sobre-o-quecirc mas apenas de determinados

aspectos seus Juntamente com este movimento de distinccedilatildeo do discurso

denominado de cisatildeo (διαίρεσις) ocorre outro a siacutentese (σύνθεσις) Dissociando-

127

se do todo indistinto certos elementos a ele pertencentes estes natildeo satildeo

simplesmente colocados uns ao lado dos outros Ao fixar os limites das

determinaccedilotildees pertencentes ao uno discreto o discurso reuacutene os elementos que

foram por ele destacados posicionando-os uns com os outros Assim a

interpelaccedilatildeo discursiva que demarca um elemento temaacutetico como sendo caneta e

azul atribui a cor azul ao ente utilizaacutevel caneta sendo esses elementos

visualizados conjuntamente como um no enunciado ldquoa caneta eacute azulrdquo Atraveacutes da

siacutentese o que se dava como um todo indistinto eacute visualizado em sua unidade

destacada por determinados aspectos seus Com base nesses dois momentos a

siacutentese (σύνθεσις) e a cisatildeo (διαίρεσις) vecirc-se que o desencobrimento realizado

pelo discurso eacute uma articulaccedilatildeo delimitadora do quecirc para o qual ele se dirigerdquo

(SALGADO 2015 p145)

Contudo o discurso natildeo eacute apenas o ldquosobre-quecircrdquo a ele tambeacutem pertencem ldquoo dito

discursivamente como tal a comunicaccedilatildeo e o anuacutenciordquo (HEIDEGGER 2012 p459) Isto

porque ldquoo discurso eacute a articulaccedilatildeo significacional da entendibilidade [ou da compreensatildeo

(Verstehen)] do encontrar-se (befindlichen) no ser-no-mundordquo (HEIDEGGER 2012

p459) Ou seja natildeo eacute apenas aos entes e a um estado de coisas natildeo conforme ao ser-aiacute

que o discurso se reporta Mas a proacutepria abertura que possui sentido sendo o sentido

ldquoaquilo que a entendibilidade de algo se manteacutem Denominamos sentido o que eacute

articulaacutevel no abrir que entenderdquo (HEIDEGGER 2012 p429) O discurso como o

significado originaacuterio de loacutegos eacute o proacuteprio ser-no-mundo Pois na medida em que a

proacutepria abertura compreensiva se manteacutem por estar articulada pode sustentar em seu

acircmbito o que quer que seja entes sensaccedilotildees projetos etc E para fora dela bem natildeo haacute

nem mesmo fora Nesse sentido que ldquoa entendibilidade do encontrar-se do ser-no-mundo

exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER 2012 p455) e ldquoo todo-de-significaccedilatildeo da

entendibilidade acede agrave palavra Das significaccedilotildees nascem as palavras e natildeo satildeo as

palavras que entendidas como coisas se proveem de significaccedilotildeesrdquo (HEIDEGGER

2012 p455) A situaccedilatildeo insustentaacutevel de considerar as palavras como as portadoras

originaacuterias de significados pode ser exemplificada por um trecho da obra Cem anos de

solidatildeo de Gabriel Garciacutea Maacuterquez no momento em que Joseacute Arcadio Buendiacutea previu

que as inscriccedilotildees graacuteficas poderiam natildeo mais reportar agrave utilidade das coisas

ldquoFue Aureliano quien concibioacute la foacutermula que habiacutea de defenderlos durante varias

meses de las evasiones de la memoria La descubrioacute por casualidad Insomne

experto por haber sido uno de las primeros habiacutea aprendido a la perfeccioacuten el

arte de la plateriacutea Un diacutea estaba buscando el pequentildeo yunque que utilizaba para

laminar los metales y no recordoacute su nombre Su padre se lo dijo laquotasraquo Aureliano

128

escribioacute el nombre en un papel que pegoacute con goma en la base del yunquecito tas

Asiacute estuvo seguro de no olvidarlo en el futuro No se le ocurrioacute que fuera aquella

la primera manifestacioacuten del olvido porque el objeto teniacutea un nombre difiacutecil de

recordar Pero pocos diacuteas despueacutes descubrioacute que teniacutea dificultades para recordar

casi todas las cosas del laboratorio Entonces las marcoacute con el nombre respectivo

de modo que le bastaba con leer la inscripcioacuten para identificarlas Cuando su

padre le comunicoacute su alarma por haber olvidado hasta los hechos maacutes

impresionantes de su nintildeez Aureliano le explicoacute su meacutetodo y Joseacute Arcadio

Buendiacutea lo puso en praacutectica en toda la casa y maacutes tarde la impuso a todo el pueblo

Con un hisopo entintado marcoacute cada cosa con su nombre mesa silla reloj

puerta pared cama cacerola Fue al corral y marcoacute los animales y las plantas

vaca chivo puerca gallina yuca malanga guineo Paca a poca estudiando las

infinitas posibilidades del olvido se dio cuenta de que podiacutea llegar un diacutea en que

se reconocieran las cosas por sus inscripciones pero no se recordara su utilidad

Entonces fue maacutes expliacutecito El letrero que colgoacute en la cerviz de la vaca era una

muestra ejemplar de la forma en que los habitantes de Macondo estaban

dispuestas a luchar contra el olvido Eacutesta es la vaca hay que ordentildearla todas las

mantildeanas para que produzca leche y a la leche hay que herviriacutea para mezclarla

con el cafeacute y hacer cafeacute con lecherdquo (MAacuteRQUEZ 1999 p102)

A doenccedila da insocircnia em Macondo na obra de Maacuterquez e o esquecimento como

sua consequecircncia eacute ndash se nos permitem uma comparaccedilatildeo livre ndash como na cotidianidade

consideramos os entes disponiacuteveis e sempre presentes Partimos sempre desse

encobrimento oferecido pela liacutengua que a cada vez quer fixar os entes e assim as palavras

satildeo instrumentalizadas pois definem afinal nessa insocircnia o que cada coisa eacute O

esquecimento eacute portanto o desligamento da mostraccedilatildeo originaacuteria dos entes em seu ser

E em uacuteltima medida o esquecimento da verdade como desvelamento (Aleacutetheia) Dito de

outro modo aquilo que Heidegger jaacute havia indicado em 1923-1924 ldquoO que importa eacute

somente que essas coisas existem aiacute () Mas que falte um nome para essas coisas mostra

contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia84(HEIDEGGER

2006p31)

Mas o que consiste esse dizer falar do discurso Se ele eacute o fundamento ontoloacutegico

da linguagem certamente natildeo eacute o mesmo que profericcedilotildees verbais e nominais e sobretudo

natildeo diz respeito a natureza fiacutesica da produccedilatildeo e da percepccedilatildeo dos sons da fala humana

como compreende o estudo da foneacutetica Heidegger nos apresenta entatildeo como o dizer do

discurso pode ser visualizado de forma clara pelo ouvir

84 Cf Nota 45

129

ldquoA conexatildeo do discurso com o entender e com a entendibilidade se torna clara a

partir de uma possibilidade existenciaacuteria do discurso ele mesmo a saber a partir

do ouvir Natildeo eacute por acaso que ao natildeo ouvir lsquodireitorsquo dizemos natildeo lsquoter entendidorsquo

Para o discurso o ouvir eacute constitutivo E assim como a prolaccedilatildeo verbal se funda

no discurso a percepccedilatildeo acuacutestica tambeacutem se funda no ouvir () O Dasein ouve

porque entende Como entendedor ser-no-mundo com os outros ele eacute no seu

ouvir lsquoobedientersquo ao Dasein-com e a si mesmo e nessa audiecircncia obediente ele

se torna dependenterdquo (HEIDEGGER 2012 p461)

Essa dependecircncia diz respeito agrave articulaccedilatildeo jaacute aberta de um mundo descerrado O

discurso articula um mundo esse que sempre nos movimentamos e nos orientamos Sem

essa obediecircncia natildeo haveria qualquer possibilidade de accedilotildees e projetos do ser-aiacute E o

ouvir como possibilidade existenciaacuteria do discurso eacute a manifestaccedilatildeo de seu traccedilo

intencional que ilumina sua presenccedila na abertura de sentido Pois o ouvir eacute o fundamento

ontoloacutegico do escutar ldquofenomenicamente mais originaacuterio do que se determina lsquode

imediatorsquo em psicologia como ouvir ter sensaccedilotildees de sons e perceber ruiacutedosrdquo

(HEIDEGGER 2012 p461) De modo mais claro o fenocircmeno desde Husserl indica

aquilo que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute sempre uma doaccedilatildeo com

significado Assim a intencionalidade fenomenoloacutegica para Heidegger agora voltada ao

mundo e a facticidade como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em seu ser acontece

na e pela articulaccedilatildeo discursiva que ouve porque jaacute articulou a totalidade e por isso

entende tendo em vista que essa totalidade natildeo se apresenta como um todo indistinto Ou

seja o ser-aiacute em sua constituiccedilatildeo primaacuteria voltado agrave abertura compreensiva articulada

pelo discurso pode escutar a doaccedilatildeo fenomecircnica

ldquolsquoDe imediatorsquo nunca ouvimos barulhos e o conjunto de ruiacutedos mas o carro que

range a motocicleta O que se ouve eacute a coluna em marcha o vento norte o pica-

pau bicando o fogo crepitando Eacute preciso uma atitude muito artificial e

complicada para lsquoouviursquo um lsquobarulho purorsquo Que em primeiro lugar ouccedilamos

motocicletas e carros eacute a prova fenomecircnica de que o Dasein como ser-no-mundo

manteacutem-se cada vez junto ao utilizaacutevel do interior-do-mundo e de modo algum

imediatamente junto a lsquosensaccedilotildeesrsquo cuja concatenaccedilatildeo tivesse primeiramente de

ser formada para que se proporcionasse o trampolim a partir do qual o sujeito

saltaria para alcanccedilar finalmente um lsquomundorsquo O Dasein como essencialmente

entendedor eacute de pronto junto ao entendidordquo (HEIDEGGER 2012 p461)

A doaccedilatildeo fenomecircnica possibilitada pelo traccedilo intencional do discurso se estende

agrave escuta e ao calar de um outro ser-aiacute pois como ser-no-mundo que eacute sempre ser-com-

os-outros o Dasein jaacute estaacute ldquode antematildeo com o outro junto ao ente sobre o qual discorrerdquo

130

(HEIDEGGER 2012 p463) Por isso quando outra pessoa nos fala algo natildeo ouvimos

primeiramente os sons para depois agregaacute-los e formarmos palavras compreensiacuteveis Ou

ainda quando o outro silencia ainda expressa algo e tambeacutem pode lsquodar a entenderrsquo

ldquoOuvindo compreendemos o que o interlocutor diz E o dizer nos coloca de

imediato com o interlocutor junto ao ente a respeito do qual o discurso se

pronuncia O genuiacuteno silecircncio tambeacutem modo de ouvir e de dizer calando Essa

preeminecircncia do dizer se reflete nos componentes dos do discurso que se

estruturam a partir daquilo que acede agrave palavra do ente que ela torna manifesto

Dizer algo de certa maneira para algueacutem numa tonalidade ou disposiccedilatildeo de

acircnimo nisso consiste o fenocircmeno do discurso em sua completa estrutura

comunicativa-expressivardquo (NUNES 2012 p 170)

Poderiacuteamos dizer que a articulaccedilatildeo da compreensatildeo (Verstehen) pelo discurso

(Rede) na reuniatildeo dos elementos que foram por ele destacados posicionando-os

discursivamente opera como a harmonia de uma muacutesica que daacute aos fenocircmenos seu lugar

na melodia em funccedilatildeo do ritmo Sendo o ritmo o ldquomundordquo como abertura histoacuterica que

sustenta o sentido de ser de cada parte da melodia que continuaraacute agrave tona ou que teraacute

sentido

Portanto para o ser-aiacute estar lanccedilado em um mundo como projeto-jogado eacute estar

familiarizado atraveacutes da abertura que entende dispositivamente o horizonte de sentido E

esse horizonte eacute compartilhado por todos que convivem em um mesmo mundo faacutetico e eacute

neste sentido que a comunicaccedilatildeo o terceiro significado de enunciaccedilatildeo como vimos no

capiacutetulo anterior ldquoefetua lsquoa partilharsquo do co-encontrar-se e do entendimento do ser-comrdquo

(HEIDEGGER 2012 p457) O que eacute compartilhado natildeo eacute meramente um conteuacutedo

significativo de um lsquopacto-linguiacutesticorsquo assim como comunicar natildeo eacute trazer um desejo

uma expressatildeo uma afirmaccedilatildeo de lsquoforarsquo de um sujeito para o lsquointeriorrsquo de outro mas ldquosua

tendecircncia-de-ser consiste em pretender que o ouvinte participe do ser aberto por aquilo-

sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012 p 473) ou seja a partilha da

experiecircncia da abertura compreensiva jaacute articulada como horizonte de possibilidades que

vem agrave linguagem De outro modo

ldquoDado que o fundamento ontoloacutegico natildeo possui existecircncia agrave parte daquilo que

funda o discurso que eacute a condiccedilatildeo transcendental da linguagem relevando-se da

abertura do Dasein de seu ser-no-mundo tambeacutem eacute lsquolinguagem extensivarsquo (SZ

p61) Inversamente a linguagem como totalidade de palavras (Wortganzheit) de

uma liacutengua eacute o discurso pronunciado De onde se conclui que a primeira eacute a forma

131

estabilizada do segundo na perspectiva do ser-no-mundo da existecircncia cotidiana

que lhe impotildee a condiccedilatildeo de ente intramundano como utensiacutelio As palavras que

podem espedaccedilar-se e coisificar-se seriam o veiacuteculo dessa condiccedilatildeo instrumental

() E que eacute aceder agrave palavra senatildeo falar e que eacute falar senatildeo usar a linguagem

Satildeo pois equivalentes as duas afirmaccedilotildees de Heidegger- que ser no-mundo eacute

falante e que ele tem linguagem (Sprache)() Ambas concernem a um soacute

fenocircmeno captado no conceito aristoteacutelico de homem como ser capaz de falar ndash

zoacuteon loacutegon eacutechon- complemento agrave tese do zoacuteon politikoacuten (animal poliacutetico) - que

revela a interlocuccedilatildeo o lsquofalar uns com os outrosrsquo em que o cotidiano grego estava

politicamente enraizadordquo (NUNES 2012 p170)

Eacute um tanto embaraccediloso os caminhos conceituais que levam o discurso (die Rede)

agrave linguagem (die Sprache) e ainda como essa se apresenta sempre como falatoacuterio (das

Gerede) pela essecircncia mesma da comunicaccedilatildeo (Mitteilung) Pois a linguagem cotidiana

- o dizer uns com os outros em um mundo faacutetico - eacute um discurso que jaacute se expressou ou

seja o acontecimento da linguagem jaacute eacute articulado por um discurso preacutevio e o discurso

jaacute expresso eacute comunicaccedilatildeo Mesmo que a analiacutetica indique uma estratificaccedilatildeo e ainda a

fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da linguagem pelo discurso haacute um caraacuteter ciacuteclico

consequecircncia mesma do ciacuterculo hermenecircutico Se as palavras natildeo tecircm significados fixos

mas histoacutericos provenientes de uma abertura de sentido articulada que sustenta esses

significados Ainda assim os significados acumulam-se nas palavras e essas satildeo afinal a

maneira pela qual o mundo eacute dito nas relaccedilotildees interpessoais e nas relaccedilotildees das pessoas

com as coisas Desse modo se os significados acumulam-se nas palavras o discurso (die

Rede) sempre se manifesta na linguagem cotidiana E eacute na cotidianidade que a absorccedilatildeo

da linguagem eacute imediatamente tomada pela impessoalidade atraveacutes do uso instrumental

das palavras na tendecircncia de oferecer um mundo sempre estaacutevel Eacute essa uacuteltima descriccedilatildeo

que Heidegger chama de falatoacuterio (Gerede) Pois

ldquoO substantivo alematildeo Rede deriva-se diretamente do verbo reden que significa

falar O particiacutepio dos verbos em alematildeo eacute feito na maior parte das vezes por meio

da inserccedilatildeo da partiacutecula lsquogersquo() O que temos na cotidianidade mediana do ser-

aiacute eacute falatoacuterio natildeo porque podemos constatar empiricamente um esvaziamento da

linguagem impessoal e porque sempre eacute possiacutevel acompanhar a falta de

profundidade desses discursos Ao contraacuterio eacute falatoacuterio porque natildeo se realiza

senatildeo a partir de um ato jaacute concluiacutedordquo (CASANOVA 2006 p63)

Mas antes de passarmos agrave descriccedilatildeo do falatoacuterio eacute preciso indicar como esses

ldquoembaraccedilos conceituaisrdquo em torno do discurso indicam a ldquotransiccedilatildeo do pensamento

132

heideggeriano ndash em sua segunda fase nucleado em torno da linguagem- ldquo(NUNES 2012

p169) pois ldquoestampam-se na proacutepria equivocidade do termo designativo die Rede que

significa aleacutem de discurso conversaccedilatildeo e pronunciamentordquo (NUNES 2012 p169)

Essa equivocidade torna-se clara no fato que o discurso (die Rede) natildeo se funda em

qualquer ekstase determinada ou seja natildeo eacute possiacutevel encontrar na temporalidade do ser-

aiacute um momento constitutivo no qual ele emerge Dando assim em Ser e Tempo um

caraacuteter transcendental ao discurso

ldquoconotando o loacutegos grego retraduzido o discurso que nos daria a plena abertura

do Dasein em seu aiacute eacute incluindo portanto a disposiccedilatildeo de acircnimo eacute como modo

eminente de temporalizaccedilatildeo a que natildeo cabe o predomiacutenio de um ecircxtase

determinado o existentivo da linguagem o seu fundamento ontoloacutegicordquo

(NUNES 2012 p169)

Apresentamos no capiacutetulo anterior que no sect65 de Ser e Tempo o autor apresenta

o sentido ontoloacutegico da preocupaccedilatildeo (Sorge) na temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-

se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O

ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Futuro

(poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente (presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees

temporais como as que tomamos diariamente mas o caraacuteter essencial da

existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre adiantado (futuro) em

relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza as possibilidades na

facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva oferecida pela tradiccedilatildeo

histoacuterica ) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no presente esse

passado em seus comportamentos e projetos

No Quarto Capiacutetulo da Segunda Seccedilatildeo denominado Temporalidade e

cotidianidade Heidegger retoma a multiplicidade dos fenocircmenos da anaacutelise preparatoacuteria

da primeira seccedilatildeo para compreendecirc-los em sua unidade em funccedilatildeo da totalidade estrutural

fundante da Sorge E se a analiacutetica existenciaacuteria do ser-aiacute inicia sua investigaccedilatildeo a partir

da cotidianidade mediana tendo em vista que a impropriedade oferecida por suas

orientaccedilotildees eacute em suma a orientaccedilatildeo inicial do ser-aiacute para seus possiacuteveis modos de ser Eacute

necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos na cotidianidade a partir da

temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico

133

Nesse sentido no sect 68 item d de Ser e Tempo intitulado ldquoA temporalidade do

discursordquo Heidegger diz A plena abertura do aiacute constituiacuteda pelo entender o encontrar-

se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) recebe a articulaccedilatildeo pelo discurso

(Rede) Por isso o discurso natildeo se temporaliza primariamente numa ekstase determinada

(HEIDEGGER 2012 p949) e ainda o discurso eacute temporal em si mesmordquo

(HEIDEGGER2012 p949) Na continuidade do paraacutegrafo o autor prossegue dizendo

que natildeo obstante o discurso seja expresso na facticidade na linguagem e deste modo o

presente (Gegenwaumlrtige) desempenha uma funccedilatildeo constitutiva ainda assim

Mas porque o discurso cada vez discorre sobre o ente se bem que natildeo primaacuteria

e principalmente no sentido da enunciaccedilatildeo teoacuterica a anaacutelise da constituiccedilatildeo

temporal do discurso e a explicaccedilatildeo dos caracteres temporais das formaccedilotildees da

liacutengua soacute podem ser levados a cabo quando se tenha resolvido o problema da

conexatildeo de princiacutepio de ser e verdade a partir da problemaacutetica da

temporalidade Poder-se-ia delimitar entatildeo o sentido ontoloacutegico do lsquoeacutersquo que uma

superficial teoria da proposiccedilatildeo e do juiacutezo deformou em lsquocoacutepularsquo Soacute a partir da

temporalidade do discurso isto eacute a partir da temporalidade do Dasein em geral

pode-se elucidar a lsquoorigemrsquo e pode-se entender ontologicamente a possibilidade

de uma formaccedilatildeo-do-conceito (HEIDEGGER2012 p949 grifo nosso)

O problema reside no fato de que o Dasein em Ser e Tempo eacute apresentado como

o fundamento sem fundamento de outra forma a compreensatildeo enquanto acontecimento

de sentido primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode

custodiar o sentido de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento

Entatildeo na medida em que a temporalidade (Zeitlichkeit) eacute o sentido ontoloacutegico desse ente

privilegiado qualquer fenocircmeno exposto na analiacutetica preparatoacuteria precisaria encontrar

seu fundamento ontoloacutegico em alguma ekstase determinada futuro o ser-do-sido ou

presencizar Por exemplo o presente desempenha a funccedilatildeo constitutiva da linguagem

(Sprache) na medida em que o ser-aiacute lanccedilado em um mundo encontra-se em meio aos

entes e jaacute junto aos outros atualizando os significados sedimentados pela linguagem (pela

liacutengua) oferecidos no presente Isso poreacutem natildeo ocorre com o discurso (die Rede) que eacute

ldquotemporal em si mesmordquo Desse modo seu sentido ontoloacutegico ou aquilo que sustenta sua

origem compreendida como seu sentido de ser a partir do desvelamento natildeo eacute elucidado

em Ser e Tempo Pensamos que a partir dessa constataccedilatildeo pelo comprometimento

fenomenoloacutegico de Heidegger a estratificaccedilatildeo da linguagem presente em Ser e Tempo

natildeo pode mais manter-se apoacutes a viragem Pois o fenocircmeno da linguagem precisa ser

134

reconsiderado a partir de si mesmo para que seja possiacutevel encontrar seu fundamento

ontoloacutegico85

Esse breve momento da obra de 1927 acerca da temporalidade do discurso em

Ser e Tempo eacute de extrema importacircncia para pensarmos como o fenocircmeno da linguagem

possui jaacute um importante e amplo papel no interior do tratado Pois ele estaacute intimamente

ligado agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento (Aleacutetheia) revelando natildeo soacute um impasse

acerca da estratificaccedilatildeo da linguagem na obra bem como traz agrave tona que o encobrimento

como contraparte da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser ganha uma imagem peculiar

exatamente na manifestaccedilatildeo da linguagem E desse modo apesar da apresentaccedilatildeo do

discurso e de sua especificidade em Ser e Tempo encontramos apenas a descriccedilatildeo da

linguagem (Sprache) que chamamos de ldquonegativardquo como sedimentaccedilatildeo interpretativa

pelo falatoacuterio (Gerede) Eacute o que vamos expor a seguir

II- O Falatoacuterio (das Gerede)

Ainda no sect34 Heidegger alerta que a anaacutelise do discurso (Rede) perdeu de vista a

cotidianidade do ser-aiacute solo fenomecircnico que a analiacutetica se guia naquele momento Pois

as estruturas existenciaacuterias da abertura do ser-no-mundo entender (Verstehen) encontrar

(Befindlichkeit) discurso (Rede) e interpretar (Auslegen) na medida em que se manteacutem

pela abertura primaacuteria do ser-aiacute remetido ao mundo inicialmente no modo de ser de ldquoa-

genterdquo (das Man) devem ser compreendidas em seu modo especiacutefico na cotidianidade

mediana Como o ser-aiacute eacute de iniacutecio lanccedilado nas possibilidades faacuteticas de um mundo

sedimentado a anaacutelise propriamente fenomenoloacutegica deve se orientar pelos fenocircmenos

expressos nesse horizonte

ldquoDe imediato eacute preciso que fique visiacutevel a partir de alguns fenocircmenos

determinados a abertura de a-gente isto eacute pela elucidaccedilatildeo do modo-de-ser-

cotidiano de discurso visatildeo e interpretaccedilatildeo No relativo a esses fenocircmenos natildeo

eacute supeacuterfluo observar que a interpretaccedilatildeo tem um propoacutesito puramente ontoloacutegico

estando muito longe de uma criacutetica moralizante do Dasein cotidiano e estaacute muito

longe de qualquer aspiraccedilatildeo de lsquofilosofia da culturarsquordquo (HEIDEGGER 2012

p471)

85 Nesse sentido Cf LAFONT 1997 pp46-52

135

A anaacutelise do que Heidegger denomina ldquoA-genterdquo (das Man) eacute apresentada no

quarto capiacutetulo da primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo e tem em vista elucidar o ldquoser-no-mundo

como ser-comrdquo e ldquocomo ser-si-mesmordquo Essa descriccedilatildeo estaacute diretamente relacionada ao

conceito de queda ou decair (Verfallen) pois eacute esse solo imediato que o ser-aiacute se

movimenta e terceiriza seu ser agraves orientaccedilotildees cotidianas cada vez em fuga de seu ser-

proacuteprio mas condiccedilatildeo inexoraacutevel para que possa conquistaacute-lo E ainda como expresso

no trecho acima esses conceitos nada tem a ver com uma criacutetica moral como que uma

criacutetica agrave sociedade de massa A anaacutelise eacute uma elucidaccedilatildeo fenomenoloacutegica e por isso

ontoloacutegica O que estaacute em jogo nessa descriccedilatildeo eacute o acesso aos fenocircmenos como eles se

mostram para entatildeo chegar ao fundamento ontoloacutegico que sustenta seu sentido de ser

Desse modo a facticidade ou o mundo cotidiano eacute o maneira pela qual os fenocircmenos e

as possibilidades do ser-aiacute vecircm ao encontro O que anaacutelise sobre ldquoA-genterdquo (das Man)

realizada no sect25 ao sect27 potildee em tela eacute 1) o esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein 2) o

Dasein-com dos outros e o cotidiano ser-com 3) o cotidiano ser-si-mesmo e a-gente

Se no sect9 Heidegger expotildee o sentido formal do ser-aiacute como esse ente que a cada

vez noacutes mesmos somos e ainda como a essecircncia desse ente reside em sua existecircncia o

esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein deve agora voltar-se ao campo situacional histoacuterico

que extraiu esse conceito

ldquoNo presente contexto de uma analiacutetica existenciaacuteria do Dasein factual surge a

pergunta sobre se o referido modo de o eu se dar abre o Dasein em sua

cotidianidade supondo-se que em geral o abra () Pode-se sempre muito bem

dizer sobre esse ente em termos onticamente justificaacuteveis que lsquoeursquo o sou

Contudo a analiacutetica ontoloacutegica ao empregar essas proposiccedilotildees deve fazecirc-lo com

reservas de princiacutepio O lsquoeursquo somente deve ser entendido no sentido de um como

indicador formal e indiferente de algo que em sua concreta conexatildeo-de-ser

fenomecircnica talvez se desvende como o lsquoopostorsquo do que parecia lsquoNatildeo eursquo de

modo algum significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo [privado de

lsquoegoidadersquo] mas significa um determinado modo-de-ser do lsquoeursquo ele mesmo por

exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p337)

A interpretaccedilatildeo moderna da essecircncia do ser humano baseada na egoidade em um

ldquoeurdquo que se reconhece como tal e em uacuteltima medida fundamenta toda e qualquer

descriccedilatildeo dos entes obscurece o solo em que esse conceito aparece Referir-se ao ldquoeurdquo eacute

possiacutevel no trato diaacuterio e comum da existecircncia cotidiana (onticamente) na medida em que

136

o ldquoaiacuterdquo existe cooriginariamente Natildeo haacute sujeito sem mundo por esse motivo a

ldquolsquosubstacircnciarsquo do homem natildeo eacute o espiacuterito como a siacutentese de alma e corpo mas a

existecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p341) E desse modo se a existecircncia acontece em um

mundo ela natildeo se reconhece primariamente para depois reconhecer ldquomundordquo e os

ldquooutrosrdquo mas existindo o ser humano eacute as possibilidades disponiacuteveis em seu ldquoaiacuterdquo

compartilhando com os outros pois ldquonatildeo haacute afinal de pronto um eu isolado que se decirc sem

os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p337)

A abertura primaacuteria de sentido ou a abertura compreensiva-interpretativa sempre

disposta do ser-aiacute o remete ao mundo junto aos entes e aos outros que partilham a mesma

abertura compreensiva-interpretativa e assim noacutes temos mundo De outro modo

ningueacutem tem lsquoseu mundorsquo particular emergente da consciecircncia que se auto reconhece a

partir da qual lsquoenxergarsquo o mundo puacuteblico Tudo que algueacutem possa vir a pensar sentir

compor dizer etc eacute primariamente aquilo que o mundo puacuteblico compartilhado sustenta

como algo que tem sentido Natildeo sou porque penso antes penso porque sou Quando

tentamos pensar em qualquer significado que natildeo seja sustentado pelo sentido do mundo

puacuteblico natildeo encontramos o que possa ser dito ou pensado

Mas o que o autor quer dizer quando indica que o ldquonatildeo eursquo de modo algum

significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo mas significa um determinado modo-de-

ser do lsquoeursquo ele mesmo por exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012

p337) Imersos nas ocupaccedilotildees diaacuterias empreendidas com os outros o ser-aiacute ldquocomo

cotidiano ser-um-com-o-outro estaacute na sujeiccedilatildeo aos outros Ele natildeo eacute si-mesmo os outros

lhe retiram o ser () Nisso os outros natildeo satildeo determinadosrdquo (HEIDEGGER 2012

p363) Na liacutengua portuguesa essa indeterminaccedilatildeo eacute ilustrada pela partiacutecula ldquoserdquo como

iacutendice de indeterminaccedilatildeo do sujeito Por exemplo Necessita-se de empregados Nesse

lugar se eacute tratado muito bem etc O ldquosujeitordquo o ldquoeurdquo do ser-aiacute na cotidianidade natildeo eacute seu

ser-proacuteprio mas a perda de si pois compreende seu ser inicialmente pela imposiccedilatildeo

impessoal indeterminada de suas possibilidades e as realiza sob o domiacutenio dessa

orientaccedilatildeo estuda-se casa-se tem-se filhos etc Nas palavras do autor

ldquoO Dasein cotidiano tira a interpretaccedilatildeo preacute-ontoloacutegica de seu ser do imediato

modo-de-ser de a-gente A interpretaccedilatildeo ontoloacutegica segue de imediato essa

tendecircncia interpretativa e entende o Dasein a partir do mundo e o encontra como

ente do-interior-do-mundo E natildeo somente isso mas a ontologia lsquoimediatarsquo do

137

Dasein faz que se lhe decirc a partir do lsquomundorsquo o sentido de ser em relaccedilatildeo ao qual

esses entes lsquosujeitosrsquo satildeo entendidos Mas porque nessa absorccedilatildeo no mundo

passa-se por cima do fenocircmeno do mundo ele mesmo em seu lugar se introduz o

subsistente do-interior-do-mundo as coisas O ser do ente que eacute -lsquoaiacutersquo-com eacute

concebido como subsistecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p 373)

Como vimos esse modo de ser do ser-aiacute eacute consequecircncia do fato de natildeo termos

qualquer natureza Natildeo haacute como se retirar dessa condiccedilatildeo ontoloacutegica mesmo que

onticamente somos impelidos a cada vez determinarmos nosso ser de alguma forma

indicando noacutes mesmos e os outros como meros subsistentes por exemplo em expressotildees

como ldquoEu sou professorardquo ldquoEle eacute pairdquo ldquoNoacutes somos brasileirosrdquo etc E por isso ldquoo ser-

si-mesmo proacuteprio natildeo repousa sobre um estado-de-exceccedilatildeo de um sujeito desprendido de

a-gente mas eacute uma modificaccedilatildeo existencial de a-gente como um existenciaacuterio essencialrdquo

(HEIDEGGER 2012 p373) ou seja ser-si-mesmo-proacuteprio natildeo eacute se retirar dessa

indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica mas ter transparecircncia dessa condiccedilatildeo irremediaacutevel

A partir dessa explicaccedilatildeo retomemos a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein a partir do

sentido formal da preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-

em (-o-mundo) como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo

(HEIDEGGER 2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser

(existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que

foi lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio

aos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda) O que sustenta o

sentido de ser desse ente eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) pois a temporalidade descobre-

se como o sentido da preocupaccedilatildeo (Sorge) proacutepria ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-

se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute

possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Contudo a preocupaccedilatildeo

proacutepria natildeo eacute a noacutes de pronto transparente e natildeo eacute o modo que inicialmente e na maioria

das vezes estamos e nos orientamos no mundo Ser-no-mundo eacute a abertura compreensiva

disposta jaacute em meio ao mundo articulado e sedimentado portanto eacute constituiacuteda pelo

entender o encontrar-se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) (Cf

HEIDEGGER 2012 p949) Eacute necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos

nessa abertura primaacuteria ao mundo a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal

compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico O autor entatildeo nos apresenta que ldquoo

138

entender funda-se no futuro (adiantar-se ou aguardar) O encontrar-se temporaliza-se

primariamente no ser-do-sido (repeticcedilatildeo ou esquecimento) O decair tem raiz temporal

primariamente no presente (presencizar ou instante)rdquo (HEIDEGGER 2012 p951)

Aguardar (Gewaumlrtigen) esquecimento (Vergessenheit) e instante (Augenblck) satildeo

os modos impessoais de realizaccedilatildeo do ser do ser-aiacute na cotidianidade a partir de seu sentido

ontoloacutegico (Sorge) fundado na temporalidade (Zeitlichkeit) O futuro aparece como

espera na cotidianidade na medida em que estaacute submerso na familiaridade de um mundo

descerrado em que o ser-aiacute pode ocupar-se com os entes e travar relaccedilotildees com os outros

na normalidade da vida cotidiana Na familiaridade o ser-aiacute sabe o que esperar O passado

ou o ser-do-sido nada tem a ver com ldquofalta de lembranccedilardquo mas refere-se a imersatildeo na

dejecccedilatildeo ou no modo de ser-jogado do ser-aiacute Nesse sentido o ser-aiacute sempre ocupado abre-

se ao mundo mas fecha-se ao seu ser-proacuteprio esquecendo de si e de sua indeterminaccedilatildeo

em funccedilatildeo do que jaacute estaacute a cada de vez posto como possiacutevel no mundo O decair no modo

proacuteprio refere-se ao presente ou presencizar ou seja a transparecircncia ao ser-aiacute de sua

condiccedilatildeo de jogado em um presente aberto que a vida e a compreensatildeo de ser decorrem

Na cotidianidade poreacutem o decair como instante refere-se a incessante fala apariccedilatildeo e

apropriaccedilatildeo (natildeo como de si mesmo como ser-proacuteprio mas das possibilidades disponiacuteveis

publicamente) das coisas e de um estado de coisas Incessante porque atualiza as

possibilidades postas descerradas e sedimentadas no mundo movimentando a existecircncia

pela retroalimentaccedilatildeo daquilo que jaacute foi e eacute a cada vez compreendido sem pocircr em questatildeo

afinal aquilo que se compreende e o ente que pode compreender ou seja ente que noacutes

somos

Na anaacutelise preparatoacuteria ou na primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo o decair foi descrito

na ldquointerpretaccedilatildeo do falatoacuterio da curiosidade e da ambiguidaderdquo (HEIDDEGGER 2012

p941) Desse modo esclarecido como a queda ou o decair funda-se na temporalidade do

ser-aiacute portanto esclarecido seu fundamento ontoloacutegico a partir do ente que abre a

compreensatildeo de ser Podemos a partir de agora entender o fenocircmeno da linguagem na

cotidianidade do ser-aiacute e em seu modo de ser improacuteprio De outro modo compreender o

falatoacuterio como queda

A anaacutelise do falatoacuterio (das Gerede) eacute realizada no sect35 precedida exatamente pela

exposiccedilatildeo do discurso como fundamento ontoloacutegico da linguagem Essa linha de

139

apresentaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria antes revela que tambeacutem o fenocircmeno da linguagem parte

de seu encobrimento E revela que seu fundamento eacute a cada vez obliterado no uso comum

das liacutenguas e das palavras no cotidiano poreacutem

ldquoA expressatildeo lsquofalatoacuteriorsquo natildeo deve ser aqui empregada numa acepccedilatildeo pejorativa

Ela significa terminologicamente um fenocircmeno positivo que constitui o modo-

de-ser do entender e interpretar do Dasein cotidiano No mais das vezes o

discurso se expressa e jaacute se expressou em palavras O discurso eacute linguagemrdquo

(HEIDEGGER 2012 p471)

A anaacutelise da cotidianidade eacute um caraacuteter fenomecircnico positivo para a analiacutetica

existenciaacuteria pois eacute a partir dele a partir de um modo de ser improacuteprio que o ser-aiacute eacute

lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria das vezes Natildeo eacute apenas

lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade mas seu modo de ser

ontologicamente irremediaacutevel Nesse sentido apresentar a linguagem como manifestaccedilatildeo

uacuteltima da abertura histoacuterica remetida ao mundo que jaacute compreendeu jaacute articulou e jaacute

interpretou eacute apresentar um caminho agrave pergunta Como a linguagem que eacute essencialmente

generalizante pode afinal ser histoacuterica Questatildeo jaacute exposta nos primeiros escritos de

Heidegger que acaba por expor a origem dessa problemaacutetica em Ser e Tempo como por

exemplo essa passagem do texto de 1919

ldquoA objeccedilatildeo mais elementar mas carregada de suficiente perigosidade tinha a ver

com a linguagem Toda descriccedilatildeo eacute um lsquoconceber-em-palavrasrsquo - a lsquoexpressatildeo

verbalrsquo eacute generalizante Essa objeccedilatildeo eacute baseada na crenccedila de que toda linguagem

eacute jaacute em si mesma objetiva isto eacute viver em um significado implica eo ipso uma

concepccedilatildeo teoacuterica do que se entende que a realizaccedilatildeo do significado natildeo eacute mais

do que a exibiccedilatildeo do objeto () A universalidade do significado das palavras

assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia vividardquo86

(HEIDEGGER (GA5657) 2005 pp134-142)

Esse eacute tambeacutem o risco do uso das palavras e da linguagem na cotidianidade ou

do falatoacuterio A manifestaccedilatildeo da linguagem na expressatildeo eacute comunicaccedilatildeo e o enunciado

86 ldquoLa objecioacuten maacutes elemental pero cargada de suficiente peligrosidad teniacutea que ver con el lenguaje Toda

descripcioacuten es un laquoconcebir-en-palabrasraquo -la laquoexpresioacuten verbalraquo es generalizante Esta objecioacuten descansa

en la creencia de que todo lenguaje es ya en siacute mismo objetivante es decir que vivir en un significado

implica eo ipso una concepcioacuten teoreacutetica de lo que es significado que la plenificacioacuten del significado es

sin maacutes soacutelo una exhibicioacuten del objeto() La universalidad del significado de las palabras sentildeala

primariamente algo originario el caraacutecter mundano de la vivencia vivida rdquo Opcit pp134-142

140

como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se pode partilhar com outrem lsquover juntorsquo o mostrado no

modo do determinar Nesse sentido ldquoo discurso (Rede) que-se-expressa eacute comunicaccedilatildeordquo

(HEIDEGGER 2012 p473) E os conceitos-preacutevios oferecidos na comunicaccedilatildeo acabam

por determinar objetivamente as coisas e o estado de coisas ldquosem que tenham perto de si

tangiacutevel e visiacutevel o ente mostrado e determinadordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Dessa

forma ldquoo acircmbito dessa visatildeo compartilhada amplia-se Mas ao mesmo tempo na

repeticcedilatildeo o mostrado pode precisamente vir a se encobrir de novo () O ouvir-dizer eacute

tambeacutem um ser-no-mundo e ser em relaccedilatildeo ao que eacute ouvidordquo (HEIDEGGER 2012

p439)

A essecircncia do falatoacuterio eacute esse ouvir-dizer comunicado que pode ser repetido E

conforme a compreensatildeo mediana orienta-se pela expressatildeo da linguagem expressa ldquoo

discurso comunicado pode ser entendido amplamente sem que o ouvinte tenha de se pocircr

originariamente entendedor daquilo sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012

p473) A relaccedilatildeo com a linguagem torna-se nesse sentido meramente instrumental Um

exemplo paradigmaacutetico eacute a linguagem jornaliacutestica pois em seu traccedilo essencialmente

comunicativo e divulgador pode a cada vez informar sobre as coisas e um estado de

coisas sem que o leitor ou o ouvinte tenha de fato clareza acerca da compreensatildeo de tais

coisas mas pode repetir o que leu e o que ouviu com os outros e ser entendido A ldquofalta

de clarezardquo nesse exemplo natildeo diz respeito a algo como falta de ldquoacesso agraves fontesrdquo mas

deve ser compreendido em seu caraacuteter ontoloacutegico ou seja o que estaacute em jogo eacute o fato

que a linguagem repetida natildeo coloca em questatildeo seu proacuteprio fundamento A relaccedilatildeo entre

a cotidianidade impessoal e o uso da linguagem eacute algo tatildeo intriacutenseco que Heidegger em

1946 no texto Carta sobre o Humanismo diz

ldquoO que foi dito sobre o lsquoimpessoalrsquo em Ser e Tempo (1927) nos paraacutegrafos 27 e

35 de modo algum deve ser reduzido a um contributo secundaacuterio agrave sociologia

Mas o lsquoimpessoalrsquo tampouco se refere apenas agrave imagem oposto compreendida

de maneira eacutetico-existenciaacuteria do ser proacuteprio da pessoa Ao contraacuterio o que disse

ali conteacutem a indicaccedilatildeo agrave pertinecircncia inicial da palavra com o ser e essa

indicaccedilatildeo eacute pensada segundo a verdade do ser Essa relaccedilatildeo permanece oculta

sob o predomiacutenio da subjetividade que se apresenta como opiniatildeo puacuteblicardquo

(HEIDEGGER 2008 p330 grifo nosso)

141

A linguagem eacute portanto submetida ao que eacute compreensiacutevel na opiniatildeo puacuteblica e

aquilo que a cotidianidade mediana natildeo compreende eacute simplesmente descartado como

incompreensiacutevel Ou seja a proacutepria compreensatildeo (Verstehen) estaacute irremediavelmente

orientada agrave queda e essa mantecircm-se como tal no falatoacuterio Na tentativa de objetivar o

que as coisas satildeo e como elas satildeo tudo que eacute compreendido obscurece seu ldquocomordquo ou

seu mostrar que vem ao encontro no mundo histoacuterico pois ldquosoacute se procura ouvir o

discorrido como talrdquo (HEIDEGGER p473)

ldquoEm meio a essa dinacircmica retoma-se incessantemente uma atitude ontoloacutegica em

relaccedilatildeo aos entes intramundanos em geral e ao ser-aiacute em especiacutefico uma atitude

marcada fundamentalmente por uma opacidade primordial Todos satildeo a

princiacutepio homogeneizados a partir da noccedilatildeo de uma subsistecircncia por si todos

passam a ser desde o princiacutepio considerados como entes simplesmente dados e

detentores ao mesmo tempo de propriedades igualmente dadas() O falatoacuterio

tende entatildeo a coibir o aparecimento de uma outra forma discursiva que se

perfaccedila por meio de um real questionamento do ser do ente e de uma apropriaccedilatildeo

originaacuteria do ente consideradordquo (CASANOVA2006 p70)

O falatoacuterio como linguagem sedimentada e repetida eacute o que inicialmente orienta

o ser-aiacute em seu ldquoairdquo A cotidianidade mediana na qual estamos sempre imersos abre

inicialmente a compreensatildeo do mundo ao ser-aiacute mas ao abri-la acaba por fechaacute-la pois

desenraiza o ser-aiacute do solo originaacuterio dessa compreensatildeo de ser dos entes De outro modo

o loacutegos como discurso articula mundo e o abre agrave compreensatildeo o falatoacuterio como

linguagem sedimentada encobre esse mostrar originaacuterio O falatoacuterio diz e indica as coisas

e o estado de coisas mas natildeo os coloca em sua mostraccedilatildeo a partir de seu ser ou como

nos diz Carlos Drummond ldquoO sol consola os doentes e natildeo os renovardquo Nesse sentido

que a repeticcedilatildeo e a difusatildeo satildeo traccedilos essenciais do falatoacuterio pois movimentam a

existecircncia baseada na estabilidade do compreendido previamente articulado e

compartilhado na vida comum manifesto em uacuteltima medida pela linguagem e pelos

conceitos herdados

ldquoA falta-de-solo natildeo o impede de ingressar no que eacute puacuteblico mas favorece seu

ingresso O falatoacuterio eacute a possibilidade de tudo entender sem uma preacutevia

apropriaccedilatildeo da coisa O falatoacuterio jaacute protege por antecipaccedilatildeo contra o perigo de

malograr em tal apropriaccedilatildeo O falatoacuterio que qualquer um pode obter natildeo soacute

dispensa da tarefa de um entendimento autecircntico mas desenvolve uma

entendibilidade indiferente para a qual nada estaacute fechadordquo (HEDEGGER 2012

p475)

142

A objetividade promovida pelo falatoacuterio ou esse jaacute ser-interpretado natildeo eacute algo

que podemos negar e suspender A queda ou decair (Verfallen) constitui ldquoa plena abertura

do aiacuterdquo e o ldquoDasein nunca eacute capaz de rejeitar esse cotidiano ser-do-interpretado no qual

de imediato cresceurdquo (HEIDEGGER 2012 p477) Ele nos constitui porque eacute

inicialmente nosso ldquoaiacuterdquo e ldquotodo entendimento interpretaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo genuiacutenos

toda redescoberta se efetuam nele a partir dele e contrariamente a elerdquo (HEIDEGGER

2012 p477) ldquoTer mundordquo (abertura compreensiva) para o ser-aiacute que o constitui como

ente privilegiado eacute tambeacutem ser absorvido pelo mundo (queda) A verdade (Aleacutetheia)

como desvelamento eacute tambeacutem encobrimento Ser na verdade eacute tambeacutem estaacute na natildeo-

verdade Ouvir o loacutegos eacute tambeacutem se perder na linguagem

ldquoEacute soacute por isso que (sect34) Ser e Tempo conteacutem uma indicaccedilatildeo essencial da

linguagem tocando na questatildeo simples que pergunta em que modo do ser a

linguagem eacute sempre linguagem como tal O esvaziamento da linguagem que

avanccedila violentamente e se estende com rapidez por toda parte natildeo corroacutei apenas

a responsabilidade esteacutetica e moral em todos os usos da linguagem Proveacutem de

uma ameaccedila da essecircncia do ser humanordquo (HEIDEGGER 2008 p331)

Mas entatildeo qual o caminho Como ir agrave linguagem como tal Heidegger nos

adverte ldquoUm mero uso cuidado da linguagem ainda natildeo demonstra que escapamos desse

perigo essencialrdquo (HEIDEGGER 2008 p331) Na realidade reduzir o problema agrave essa

soluccedilatildeo poderia indicar que nem sequer vemos o perigo pois o esconderia sob agraves vestes

de usos como lsquosabedoriarsquo lsquoculturarsquo lsquoconhecimentorsquo etc ou seja a ldquosoluccedilatildeordquo ainda

estaria submetida ao domiacutenio puacuteblico do que eacute compreensiacutevel

Portanto se ldquoa linguagem ainda nos nega sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2008

p331) entatildeo ainda eacute necessaacuterio seguir a orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica

Diante da pergunta de Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na

cidade Soacutecrates responde ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso

irrdquo87 Para que afinal busquemos a relaccedilatildeo entre loacutegos e ser

87 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9

143

Conclusatildeo

O que vem agrave palavra Essa foi a questatildeo que nos guiou nesse trabalho Ela

atravessa outras perguntas por que falamos de uma determinada forma por exemplo

com sujeito e predicado Como eacute possiacutevel nossa comunicaccedilatildeo Como eacute possiacutevel falar que

algo eacute de tal e qual maneira

Fomos ao livro Ser e Tempo natildeo para dizer sobre o que um autor pensou fomos

ao Ser e Tempo para encontrar elementos que poderiam nos guiar nessas questotildees Entatildeo

a tarefa desse tratado revelou-se tambeacutem como um problema de linguagem Pois eacute a

tentativa de reformulaccedilatildeo da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido

depende justamente daquela reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido do

ser Vimos aiacute uma imbricada problemaacutetica a pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo (Sinn von

Sein) eacute tambeacutem a pergunta sobre o que pode sustentar sentido e significados e por isso

o que pode sustentar a linguagem Se natildeo nos incomodasse a tautologia poderiacuteamos

perguntar qual o sentido do sentido

A necessidade de recolocaccedilatildeo da pergunta estaacute diretamente relacionada agrave criacutetica

imanente de Heidegger agrave fenomenologia de Husserl Abordado sempre e a cada vez como

um ente o ser natildeo eacute no entanto um predicado real Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar

o ser como um ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel

e atributivo Ser natildeo eacute um ente o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo

com vistas agrave forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera

para ldquoQual o sentido de serrdquo Atraveacutes da apropriaccedilatildeo da hermenecircutica Heidegger potildee

em tela o caraacuteter histoacuterico do sentido de ser dos entes E dessa maneira indica como as

palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da

experiecircncia hermenecircutica Contudo diferentemente de como a concebeu Dilthey a

experiecircncia revelou-se natildeo como um meacutetodo de acesso ao caraacuteter histoacuterico do sentido e

144

dos significados mas compreensatildeo fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo circunspecta de

nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser

Poreacutem um problema central deveria ser abordado ldquocomo eacute possiacutevel a forma

loacutegicardquo ou ldquoPor que seguimos a foacutermula lsquosujeito e predicadorsquordquo Essa questatildeo nos levou

ateacute a maneira pela qual essa problemaacutetica foi abordada pelos neokantianos mais

especificamente agravequeles representantes da escola de Baden Esses reduziam a

possibilidade de verdade agrave forma do juiacutezo agrave identificaccedilatildeo entre ldquoWahrheit = wahrer Satz

= Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade) A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo

de verdade da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca

que era a dos neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa

concepccedilatildeo tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da

verdade em direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave

proposiccedilatildeo Com isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa

medida condicionando a ontologia agrave loacutegica

Foi esse mapa complexo dos problemas que foi desenhado nos dois primeiros

capiacutetulos os quais consideramos imprescindiacuteveis para uma exposiccedilatildeo completa da

estrutura ontoloacutegica da linguagem em Ser e Tempo Expondo o contexto das filosofias de

Dilthey Husserl e dos neokantianos de Baden bem como o posicionamento de Heidegger

frente a essas teorias a abordagem fenomenoloacutegico-hermenecircutica revelou-se como o

meacutetodo de acesso ao sentido de ser de todo ente Esse meacutetodo acaba ainda por demonstrar

que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um

campo de signos referenciais fechados que doam significado agraves coisas mas uma

manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez se faz presente na facticidade da

existecircncia concreta Last but not least revelou-se a diferenccedila entre uma concepccedilatildeo de

loacutegos proveniente da loacutegica e outra advinda do conceito de aleacutetheia

Foi a partir daiacute que ficaram claros os contornos dos dois uacuteltimos capiacutetulos desta

Dissertaccedilatildeo Tentamos mostrar como em Ser e Tempo a linguagem estaacute assentada em

duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado revelando a diferenccedila

entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm articulados pela imbricaccedilatildeo

radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno Poreacutem natildeo poderiacuteamos nos sentir satisfeitos

nessa descriccedilatildeo Heidegger nos adverte que estamos em fuga do solo em que o loacutegos se

145

mostra Pois o desvelamento enquanto Aleacutetheia eacute tambeacutem encobrimento por isso o

fenocircmeno sempre se nos mostra de maneira dissimulada Tambeacutem a partir de Ser e Tempo

tentamos evidenciar como a linguagem depende da constituiccedilatildeo proacutepria da verdade Ou

seja como o discurso (Rede) eacute apresentado como fundamento ontoloacutegico da linguagem

mas como o fenocircmeno mesmo da linguagem jaacute sempre se apresenta como falatoacuterio

(Gerede) O fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana enquanto comunicaccedilatildeo

ou seja discurso (die Rede) que jaacute se expressou e a cada vez se expressa eacute repetido e

difundido no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada

pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte

compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente Mas

como entes sem qualquer essecircncia preacutevia sem qualquer natureza definida somos a

proacutepria compreensatildeo (Verstehen) irremediavelmente orientada agrave queda sendo o falatoacuterio

a manifestaccedilatildeo uacuteltima dessa condiccedilatildeo

Esse foi o caminho do nosso trabalho que eacute apenas um iniacutecio Ele natildeo pretende

encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender o papel

da poesia na obra de Heidegger apoacutes os anos 1930 como uma tentativa de desvencilhar-

se do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Ou ainda se a estratificaccedilatildeo

da linguagem segundo a formulaccedilatildeo de Ser e Tempo precisou ser revista apoacutes a viragem

tendo em vista que em 1927 natildeo foi possiacutevel encontrar seu fundamento ontoloacutegico a partir

do Dasein

Por enquanto preferimos a tensatildeo e a suspensatildeo do estado de pergunta Preferimos

o pensar como caminho agraves respostas como soluccedilotildees afinal

ldquoCom seu dizer o pensar abre sulcos imperceptiacuteveis na linguagem Esses satildeo

ainda mais imperceptiacuteveis que os sulcos que a passos lentos o camponecircs abre pelo

campo aforardquo (HEIDEGGER 2008 p376)

146

Bibliografia

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_____________ O meu caminho para a fenomenologia Trad Ana Falcato Covilhatilde

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Satildeo Paulo Ed Ideacuteias e Letras 2006

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  • INTRODUCcedilAtildeO
  • Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na filosofia
  • Introduccedilatildeo
  • I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico
  • II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias
  • II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica
  • III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos
  • Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica
  • Introduccedilatildeo
  • I - Os limites da filosofia dos valores
  • II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio
  • II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger
  • III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
  • III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger
  • Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e Tempo
  • Introduccedilatildeo
  • I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico
  • II A dupla abertura de sentido (Sinn)
  • III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)
  • II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung)
  • Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)
  • Introduccedilatildeo
  • I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem
  • II- O Falatoacuterio (das Gerede)
  • Conclusatildeo
  • Bibliografia

5

Agradecimentos

O trabalho que aqui apresento iniciou-se em Fevereiro de 2014 mas originou-se

haacute 12 anos atraacutes em meu primeiro semestre do curso de graduaccedilatildeo em filosofia na

Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas da UFMG Jaacute nas primeiras aulas questionei

a possibilidade de continuar nesse caminho pois ele havia se tornando cada vez mais

exigente e difiacutecil No segundo semestre poreacutem cursei a mateacuteria ministrada pelo professor

Fernando Rey Puente onde ele tentava explicar aos alunos ainda iniciantes como eu As

Categorias de Aristoacuteteles Aquelas aulas foram decisivas para que eu compreendesse trecircs

coisas dedicaccedilatildeo e rigor satildeo o que minimamente podemos oferecer agrave filosofia (ainda

permaneccedilo na busca de realizar tais condiccedilotildees) o pensamento filosoacutefico uma vez

apresentado a noacutes natildeo oferece saiacuteda mas compromisso e ainda aprendi que se a partir

daquele momento eu ficasse imune ao ler um livro de filosofia era melhor deixaacute-la Por

isso meu primeiro agradecimento eacute a esse professor Tambeacutem natildeo poderia deixar de

agradecer ao professor Ernesto Perini Nas mateacuterias ministradas por ele que cursei durante

a graduaccedilatildeo natildeo soacute se revelava para mim a importacircncia da linguagem no interior dos

problemas filosoacuteficos como aprendi que o respeito com os alunos era uma maneira de

ensinaacute-los

Agradeccedilo tambeacutem a todos os funcionaacuterios da FAFICH de forma especial agrave Vilma

bibliotecaacuteria-chefe e ao Andreacute secretaacuterio da poacutes-graduaccedilatildeo Ambos pela solicitude com

que sempre me atenderam em todos os momentos que precisei

Agradeccedilo tambeacutem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e

Tecnoloacutegico (CNPq) pela concessatildeo da bolsa de estudos que permitiu nos uacuteltimos dois

anos minha dedicaccedilatildeo integral agrave pesquisa do mestrado

Agradeccedilo agravequeles que construiacute como amigos o viacutenculo com o mundo Dentre eles

alguns nomes natildeo posso deixar de citar Agradeccedilo agrave Thamara Chain pelos 22 anos de

amizade e compreensatildeo Agradeccedilo agrave Taiacutes Tourinho por ser vigilante acerca de minha

solidatildeo por vezes demasiada Agradeccedilo agrave Nathaacutelia de Aacutevila por me lembrar a natildeo ser tatildeo

seacuteria e que o caminho tambeacutem se faz com leveza Agradeccedilo agrave Carolina Faria pela partilha

do entusiasmo na descoberta promovida pelo estudo Tambeacutem agradeccedilo agrave Ana Godoi

Gustavo Machado e Gabriel Lago Essas pessoas me ensinaram o valor do debate (por

6

vezes infindaacuteveis) e ainda que pensamento e vida satildeo o mesmo A uacutenica maneira que

encontrei para agradececirc-los eacute tornar puacuteblico o fato de que nossas conversas estatildeo em cada

linha dessa dissertaccedilatildeo

Agradeccedilo agrave minha orientadora Virginia Figueiredo pela confianccedila depositada em

mim ao me aceitar como orientanda Tambeacutem por seus comentaacuterios e ensinamentos

imprescindiacuteveis bem como pela leitura e revisatildeo impecaacutevel de meu trabalho Nesse

sentido tambeacutem ao meu coorientador Marco Antocircnio Casanova a quem agradeccedilo tendo

em vista que sem sua presenccedila algumas partes dessa dissertaccedilatildeo natildeo seriam possiacuteveis

Agradeccedilo minhas irmatildes Jana e Nanda por serem minhas primeiras e eternas

melhores amigas E por fim agradeccedilo agravequeles por quem o meu sentimento entre o amor

a gratidatildeo e a admiraccedilatildeo natildeo alcanccedila a palavra aos meus pais Adauto e Delza Esse

trabalho eacute para vocecircs

7

VERBO SER

Carlos Drummond de Andrade

Que vai ser quando crescer

Vivem perguntando em redor Que eacute ser

Eacute ter um corpo um jeito um nome

Tenho os trecircs E sou

Tenho de mudar quando crescer Usar outro nome corpo e jeito

Ou a gente soacute principia a ser quando cresce

Eacute terriacutevel ser Doacutei Eacute bom Eacute triste

Ser pronunciado tatildeo depressa e cabe tantas coisas

Repito Ser Ser Ser Er R

Que vou ser quando crescer

Sou obrigado a Posso escolher

Natildeo daacute para entender Natildeo vou ser

Vou crescer assim mesmo

Sem ser Esquecer

ldquoAdmitamos que natildeo haja essa significaccedilatildeo indeterminada e que natildeo entendemos sempre o que lsquoserrsquo significa O que ocorreria nesse caso Apenas um nome e um verbo de menos em nossa linguagem De forma alguma Jaacute natildeo haveria simplesmente linguagem alguma Natildeo ocorreria que o ente se nos abrisse de modo a poder ser chamado e dito Pois dizer o ente como tal implica compreender de antematildeo o ente como ente isto eacute o seu ser Suposto que noacutes simplesmente natildeo compreendecircssemos o ser suposto que a palavra lsquoserrsquo natildeo tivesse nem mesmo aquela significaccedilatildeo flutuante entatildeo jaacute natildeo haveria absolutamente nenhuma palavra Noacutes mesmos nunca poderiacuteamos ser aqueles que falam Laacute natildeo poderiacuteamos ser o que somos Pois ser homem significa ser um dizenterdquo

Heidegger Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica

8

Resumo

O presente trabalho tenta evidenciar a partir da obra Ser e Tempo de Martin

Heidegger como a linguagem (die Sprache) eacute a manifestaccedilatildeo uacuteltima da historicidade de

todo e qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como esses significados satildeo

sustentados por um campo de sentido tambeacutem histoacuterico A partir dessa primeira descriccedilatildeo

o trabalho visa esclarecer como a linguagem no uso cotidiano ou o falatoacuterio (das Gerede)

obscurece o caraacuteter histoacuterico do fenocircmeno da linguagem e dos significados que a sustenta

Portanto esta Dissertaccedilatildeo caminha em duas vias que se tocam a primeira pretende

descrever o que chamamos de estrutura ontoloacutegica da linguagem a partir do

redimensionamento da pergunta heideggeriana pelo ser a fim de indicar como as palavras

em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da experiecircncia

hermenecircutica ou seja atraveacutes da compreensatildeo ontoloacutegica preacutevia a linguagem a segunda

pretende mostrar o fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana como comunicaccedilatildeo

ou discurso (die Rede) a qual jaacute se expressou e a cada vez se expressa sempre repetida

e difundida no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada

pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte

compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente

9

Abstract

The present thesis focuses on demonstrating in what manner language (die

Sprache) is the lattermost manifestation of the historicity of any meaning that can come

to words as well as through what agency those meanings are upheld by a conjointly

historical field of meaning insofar as stated by Martin Heidegger in his work ldquoBeing and

Timerdquo (Sein und Zeit) As of this writing our work aims at unraveling by what means

language in its trivial use or the talk (das Gerede) overshadows the historical aspect and

the meanings that withstand the phenomenon of language Hence the present work is

developed in two adjoining ways the first one endeavors to describe the ontological

structure of language deriving out of the resizing of Heideggers question of being that

has the aim of indicating how the words in context of enunciation inherit their meaning

from previous structures of the hermeneutic experience that is through the prior

ontological understanding of the language The second one aims at revealing the language

phenomenon in the median everydayness as communication or discourse (die Rede)

which has already been expressed and is still expressed always repeated and spread in

the talk that obliterates the comprehensive horizon by reducing all beings to an

undifferentiated homogenization and making them available to our linguistic resources

since it is the primary opening of the sense of being that any and all entities have

10

Sumaacuterio INTRODUCcedilAtildeO 11

Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na

filosofia 15

Introduccedilatildeo 15

I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do

conhecimento como essencialmente histoacuterico 17

II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em

relaccedilatildeo agraves ciecircncias 22

II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica 29

III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos 33

Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica 42

Introduccedilatildeo 42

I - Os limites da filosofia dos valores 44

II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio 53

II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger 58

III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal 68

III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger 72

Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e

Tempo 80

Introduccedilatildeo 80

I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou

o ldquocomordquo hermenecircutico 88

II A dupla abertura de sentido (Sinn) 88

III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit) 103

II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung) 110

Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede) 122

Introduccedilatildeo 122

I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem 123

II- O Falatoacuterio (das Gerede) 134

Conclusatildeo 143

Bibliografia 146

11

INTRODUCcedilAtildeO

Estamos diante de um livro Ser e Tempo Abrimo-lo Com o que nos confronta

em sua primeira paacutegina Que natildeo temos desde Platatildeo ateacute hoje resposta agrave pergunta sobre

o que queremos dizer com a palavra lsquoentersquo Natildeo haacute como ficar imune diante da

constataccedilatildeo E se ateacute hoje essa palavra natildeo nos eacute transparente eacute porque aqueles que se

propuseram a andar no caminho do pensamento natildeo souberam perguntar sobre o ente e

isso porque natildeo souberam afinal perguntar sobre o ser Heidegger natildeo nos propotildee sair do

caminho mas uma nova maneira de caminhar Ele nos promete uma resposta Natildeo Ele

propotildee uma vez mais a pergunta pelo ser O objetivo do tratado eacute elaborar essa questatildeo

De que modo Ele agora pergunta Qual o sentido de ser

Nossa pesquisa poderia partir daiacute Iniciariacuteamos a exposiccedilatildeo de nosso trabalho

nessa pergunta e prosseguiriacuteamos em Ser e Tempo De modo algum Seria um

contrassenso para algueacutem que queira estudar a linguagem em Heidegger partir de uma

sentenccedila como se ela fosse oacutebvia Afinal por qual motivo Heidegger natildeo pergunta ldquoO

que eacute o serrdquo ou ldquoHaacute o serrdquo Fechamos Ser e Tempo Eacute preciso compreender como essa

pergunta ganhou uma determinada forma Mas para onde ir

Ser e Tempo eacute uma obra do seacuteculo XX uma obra de filosofia portanto jaacute eacute parte

de nossa tradiccedilatildeo jaacute temos uma preacute-compreensatildeo dela Sabemos previamente que ela

transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica e que o nosso autor expotildee seu caminho

em um texto de 1963 chamado ldquoMeu caminho na fenomenologiardquo Parece-nos um bom

iniacutecio e vamos ao texto Heidegger descreve o iniacutecio de seus estudos o contato com a

obra inaugural da fenomenologia de Husserl e com a tese de Brentano sobre Aristoacuteteles

aiacute se vecirc germinar ainda que de maneira imprecisa sua questatildeo central Mas isso se

mostrou insuficiente para compreender a pergunta posta em Ser e Tempo Recorremos

entatildeo aos textos de Husserl Jaacute na introduccedilatildeo do II volume agrave obra citada por Heidegger

ndash Investigaccedilotildees Loacutegicas - Husserl descreve a necessidade de a fenomenologia

posicionando-se contra a psicologia explicativa procurar sua fundamentaccedilatildeo da loacutegica

numa nova teoria do conhecimento objetiva Nossa jaacute citada preacute-compreensatildeo nos levou

a Dilthey ao descobrir que esse autor tambeacutem se opocircs ao meacutetodo da psicologia

explicativa Vamos tambeacutem aos seus textos Mas a pergunta aparece teraacute sido tatildeo grande

12

a influecircncia que a psicologia explicativa exercia naquela eacutepoca a ponto de exigir que

tantos pensadores sentissem a necessidade de se opor a ela e ao seu meacutetodo

Como se isso natildeo bastasse revelou-se que ambos os autores Dilthey e Husserl

travam diaacutelogo nem sempre expresso com o neokantismo Agrave revelia de todos julguei

que natildeo deveria desconsiderar mais essa referecircncia tendo em vista que um dos principais

nomes dessa corrente ndash Rickert- foi citado por Heidegger no importante (para esta

pesquisa) texto de 1963 ao qual me referi haacute pouco Entatildeo me perguntei o que une esses

trecircs nomes Dilthey Husserl e Rickert Estaacute posta a tarefa do primeiro capiacutetulo da

Dissertaccedilatildeo

Nele tentei compreender como a partir do desenvolvimento das ciecircncias positivas

particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma profunda discussatildeo acerca do sentido e

da possibilidade do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo busca uma

filosofia propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana procura a

autonomia da filosofia frente agrave ciecircncia positiva mas que serviria de base a toda e qualquer

ciecircncia Tambeacutem nesse contexto aparece a contribuiccedilatildeo de Dilthey a qual acrescenta o

caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e traz agrave tona o sentido do conhecimento como

essencialmente histoacuterico

Mas natildeo chegamos ao que nos propomos estamos ainda nos prolegocircmenos Por

qual motivo Heidegger pergunta Qual o sentido de ser Ser e Tempo continua fechado

Precisamos entatildeo reavaliar nossa preacute-compreensatildeo Se como dissemos Ser e Tempo

transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica eacute preciso analisar como essas influecircncias

aparecem no pensamento de Heidegger Vamos a algumas preleccedilotildees do autor anteriores

agrave obra central de nosso trabalho Eacute preciso indicar que nossa intenccedilatildeo natildeo eacute abordar as

preleccedilotildees como processos evolutivos como que para esclarecer em termos de causa e

efeito a publicaccedilatildeo posterior lsquomadurarsquo de Ser e Tempo Mas destacar como as questotildees

desses textos acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a

problemaacutetica cujo desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927

Estaacute posta a tarefa de nosso segundo capiacutetulo

Nele trata-se de compreender como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere

Heidegger no interior da referida discussatildeo pelo sentido do conhecimento Mas ao

mesmo tempo tentaremos mostrar como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva

(considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal)

e a introduccedilatildeo do elemento hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com

13

Heidegger a pergunta fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do

conhecimento e passou a ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto

nosso segundo capiacutetulo pretende analisar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger

no interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do

conhecimento ao sentido do ser

Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido

de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a

teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo

pelo sentido do ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir

da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para

uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no

curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER 2006 p122) o elemento

hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave fenomenologia

que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em

seu ser Podemos abrir novamente Ser e Tempo

Esse percurso foi necessaacuterio para que pudeacutessemos conquistar um solo

interpretativo e sobretudo alcanccedilar a pergunta pelo sentido de ser Pois ela a pergunta

estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura de sentido que precisamos explicitar

E assim no terceiro e central capiacutetulo da Dissertaccedilatildeo apresentar como em Ser e Tempo

o fenocircmeno da linguagem (Sprache) aparece no interior dessa compreensatildeo e em que

medida a linguagem eacute possiacutevel por uma estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Dito de

outro modo na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto

ontoloacutegico do conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e

qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido tambeacutem

histoacuterico em que algo pode se manter em seu significado Eacute nessa perspectiva que

procuramos a estrutura ontoloacutegica da linguagem

Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a

ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo

material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos

que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas

que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela

dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se

estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o

14

que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes1rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que

somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em

fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo

Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por

Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um

fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo

incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como

descoberto A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo cotidiano Heidegger chama de

ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio

natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute

encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas tomadas como oacutebvias

Esse eacute o caminho do nosso trabalho mas eacute apenas o iniacutecio Ele natildeo pretende

encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender a

ldquopassagem para o poeacutetico2rdquo na obra de Heidegger como uma tentativa de desvencilhar-se

do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Por enquanto preferimos a tensatildeo

e a suspensatildeo do estado de pergunta Ser e Tempo continuaraacute aberto Tentaremos nos

manter fieis agrave orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica Diante da pergunta de

Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na cidade Soacutecrates responde

ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso irrdquo3

1 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo Wolf

Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249 2 Cf NUNES 2012 3 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9

15

Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo

sentido do conhecimento na filosofia

Chega um tempo em que natildeo se diz mais meu Deus () Chegou um tempo em que natildeo adianta morrer Chegou um tempo em que a vida eacute uma ordem

A vida apenas sem mistificaccedilatildeo (Os Ombros Suportam o Mundo Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

Conforme Merleau Ponty a fenomenologia surge como uma tentativa para

resolver um problema natildeo de uma seita mas talvez o problema do seacuteculo o problema

que se punha desde 1900 para todo o mundo e ainda eacute hoje colocado (PONTY M1973

Pag15) O problema refere-se agrave crise das ciecircncias humanas (Geistenwissenschaften) e agraves

ciecircncias naturais

Se o fundamento dos princiacutepios da geometria e da fiacutesica eram objetos de

investigaccedilatildeo de Husserl e o levou ao caminho da pesquisa de uma filosofia sem

pressupostos- bem como as investigaccedilotildees dos chamados neokantianos da escola de

Marburg que os levaram agrave tentativa de fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas - as

ciecircncias humanas tambeacutem se desenvolviam no auspiacutecio de sua proacutepria ambiguidade

A medida que se desenvolviam as pesquisas psicoloacutegicas socioloacutegicas

histoacutericas tendiam a nos apresentar todo pensamento toda opiniatildeo e em

particular toda filosofia como o resultado da accedilatildeo combinada das condiccedilotildees

psicoloacutegicas sociais histoacutericas anteriores A psicologia tendia para o que Husserl

denomina psicologismo a sociologia o sociologismo histoacuteria para o

historicismo Ora com isto elas acabavam por erradicar seus proacuteprios

fundamentos (PONTY1973 p15)

Na medida em que os princiacutepios orientadores do homem histoacuterico social e

psicoloacutegico satildeo elementos externos e imbricados de certa contingecircncia conforme os

resultados mesmos dessas pesquisas o pesquisador punha suas proacuteprias afirmaccedilotildees em

duacutevida pois o fundamento de todas elas eacute tambeacutem contingente e o valor de verdade de

suas conclusotildees fluido Contudo quando algo faz aparecer opositores observando e

16

diagnosticando seus problemas fundamentais eacute porque encontra-se em evidecircncia e jaacute

atingiu certo grau de adesatildeo sendo necessaacuterio apontar elementos obliterados em sua

suposta evidecircncia

A autonomia das ciecircncias positivas frente aos sistemas filosoacuteficos em meados do

seacuteculo XIX na Alemanha acompanhava um crescente desprestiacutegio da metafiacutesica e da

filosofia da natureza sendo a reflexatildeo metodoloacutegica suplantada por novos procedimentos

-e uma nova visatildeo de mundo- em que vigoravam o conhecimento empiacuterico impessoal e

temporal

Se a filosofia jaacute natildeo parecia ter condiccedilotildees de responder agraves questotildees dessa nova

visatildeo de mundo cientiacutefica com as propostas da psicologia experimental - baseada no

modelo metodoloacutegico das ciecircncias naturais- ela a filosofia parecia estar condenada ao

ostracismo sendo capaz apenas de se colocar como curiosidade histoacuterica A psicologia

experimental ou explicativa considerava que um procedimento verdadeiramente

cientiacutefico deveria ser baseado na observaccedilatildeo empiacuterica ela era a interpretaccedilatildeo da verdade

atraveacutes de causas psiacutequicas responsaacuteveis pela efetuaccedilatildeo do juiacutezo(MACDOWEL 1993

p28)

O ponto crucial dessa posiccedilatildeo eacute o fato de que o estudo da loacutegica enquanto

estrutura do pensamento estaacute condicionado aos meacutetodos e princiacutepios da psicologia e

portanto condicionada a tipos de demonstraccedilotildees empiacutericas Uma investigaccedilatildeo dessa

espeacutecie - a loacutegica condicionada a demonstraccedilotildees empiacutericas - eacute a negaccedilatildeo da tarefa proacutepria

agrave filosofia (mesmo quando um ou outro pensador negue por exemplo a idealidade loacutegica

ainda assim o faz inserido nessa tarefa de investigaccedilatildeo) pois a loacutegica como doutrina

voltada para uma purificaccedilatildeo radical dos elementos materiais da linguagem e para uma

subsequente reconciliaccedilatildeo entre pensamento e verdade se mostra como expressatildeo

maacutexima do projeto originaacuterio da tradiccedilatildeo (CASANOVA Introduccedilatildeo In DILTHEY

2011p8)

Nesse contexto surgem reaccedilotildees ao modelo predominante das ciecircncias naturais

sobretudo em relaccedilatildeo agrave adesatildeo a este modelo pela psicologia e pelas ciecircncias humanas

Dentre essas reaccedilotildees destacamos o projeto da psicologia descritiva e analiacutetica de Dilthey

as contribuiccedilotildees da pesquisa sobre a validade do conhecimento das escolas neokantistas

17

ndash destacando a filosofia dos valores de Windelband e Rickert - e o projeto husserliano de

uma filosofia sem pressupostos que se realizaria atraveacutes do meacutetodo fenomenoloacutegico

Ciente de que natildeo nos eacute possiacutevel aprofundar nessas complexas investigaccedilotildees nossa

intenccedilatildeo nesse primeiro momento de trabalho eacute apenas indicar os elementos

fundamentais de cada posiccedilatildeo e a partir deles compreender no capiacutetulo seguinte em

que medida essas reaccedilotildees se intercruzam e influenciam o autor privilegiado no texto

dessa dissertaccedilatildeo Este eacute o objetivo de nosso primeiro capiacutetulo

Nosso primeiro capiacutetulo eacute a tentativa de compreender como a partir do

desenvolvimento das ciecircncias positivas particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma

profunda discussatildeo acerca do sentido e possibilidade do conhecimento Nesse contexto o

neokantismo busca uma filosofia propriamente cientiacutefica ndash como reflexo da exigecircncia de

sua proacutepria eacutepoca ndash enquanto a fenomenologia husserliana busca a autonomia da filosofia

descontiacutenua agrave ciecircncia positiva mas que seria a base de toda e qualquer ciecircncia Tambeacutem

nesse contexto emerge como elemento fundamental para o desenvolvimento de nosso

trabalho a tarefa geral de Dilthey que mesmo imersa nas exigecircncias positivistas de seu

tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e potildee em tela o sentido

do conhecimento como essencialmente histoacuterico

I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias

do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente

histoacuterico

Dilthey contra a mera transposiccedilatildeo do meacutetodo das ciecircncias naturais agraves ciecircncias

do espiacuterito ldquose deu conta que a pretensatildeo de entender filosoficamente as disciplinas

histoacutericas soacute poderia levar-se a um porto seguro se reflexiona acerca do que eacute o objeto

das ditas ciecircnciasrdquo (HEIDEGGER 2006p33)

As ciecircncias naturais segundo Dilthey se relacionam com os objetos na medida

em que esses satildeo ou fatos simultacircneos ou sucessivos e aparecem agrave consciecircncia sempre

como dados externos assim recorrendo a uma hipoacutetese como recurso explicativo

condicionada agrave verificaccedilatildeo a partir de maior ou menor incidecircncia desses fatos Os

18

resultados das ciecircncias naturais seriam portanto conclusotildees complementares que

tentariam explicar os fenocircmenos externos (observados como fenocircmenos particulares) e

ordenaacute-los pela funccedilatildeo explicativa da ciecircncia que movimenta da parte (fenocircmenos

unitaacuterios) ao todo (explicaccedilatildeo ordenadora)

Poreacutem os fenocircmenos das ciecircncias humanas aparecem internamente agrave consciecircncia

com realidade de uma lsquoconexatildeo vivarsquo sendo essa conexatildeo da vida psiacutequica

originariamente dada compreensivamente a qualquer homem histoacuterico vivente A anaacutelise

ou distinccedilatildeo dos elos particulares dessa conexatildeo eacute posterior pois o que se daacute

imediatamente agrave consciecircncia eacute a conexatildeo constante das proacuteprias vivecircncias e ldquoa vida natildeo

se faz senatildeo como conexatildeordquo (DILTHEY W2011 pag30) natildeo tendo sentido a partir

dessa evidecircncia falar em algo como deduccedilatildeo dos fenocircmenos psiacutequicos

Exige-se portanto agrave psicologia um outro procedimento pois satildeo somente os

dados da psicologia descritiva que poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar

para as ciecircncias humanas O que estaacute em jogo para Dilthey contra a psicologia

explicativa eacute mostrar como a teoria do conhecimento relativa agraves ciecircncias do espiacuterito e

tambeacutem agrave filosofia natildeo pode abrir matildeo da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica Poreacutem em funccedilatildeo

da especificidade de seus objetos reclama outros meacutetodos que natildeo aqueles das ciecircncias

naturais

Dilthey natildeo aceita os pressupostos do retorno agrave filosofia kantiana4 para a

fundamentaccedilatildeo de suas investigaccedilotildees pois a cisatildeo entre mateacuteria e forma proveniente

desse sistema natildeo serve agraves ciecircncias do espiacuterito e natildeo pode ser mais sustentada diante da

evidecircncia da vida conexa e estruturante da vivecircncia da consciecircncia

4 Sobre esse aspecto eacute importante apresentar duas consideraccedilotildees 1) No interior da biografia de

Schleiermacher de 1860 Dilthey destaca a importacircncia de alguns aspectos do texto de Kant ldquoA religiatildeo

nos limites da simples razatildeordquo (1793) para o desenvolvimento da hermenecircutica de Schleiermacher 2)

Contudo talvez sob influecircncia do debate neokantiano agrave eacutepoca Dilthey apresenta o essencial da filosofia

kantiana como sendo a Criacutetica da Razatildeo Pura ou seja a teoria do conhecimento referente agraves ciecircncias

naturais E nesse sentido que a divisatildeo entre mateacuteria e forma como exposta na primeira criacutetica natildeo eacute

suficiente agrave elaboraccedilatildeo da epistemologia das ciecircncias humanas Sobre esse assunto Cf Kant und die

philosophische Hermeneutik in Kant-Studien 66 (1975) pp 395-403 Traduccioacuten de Angela Ackermann

Pilaacuteri en GADAMER H-G Los caminos de Heidegger Herder Barcelona 2002 pp 57-66 Cf

Beckenkamp J Kant e a hermenecircutica moderna in Kriterion vol51 no121 Belo Horizonte Junho 2010 e

tambeacutem Cf REIS JC A ldquocriacutetica histoacuterica da razatildeordquo Dilthey versus Kant In Textos de histoacuteria UNB

vol10 nordm12 v 10 (2002) pp-159-179

19

ldquoA cisatildeo entre mateacuteria e forma do conhecimento que eacute levada a termo no sistema

kantiano tambeacutem natildeo pode ser hoje mantida Muito mais importante do que essa

cisatildeo satildeo as relaccedilotildees internas que subsistem por toda a parte entre a multiplicidade

das sensaccedilotildees como a mateacuteria do nosso conhecimento e a forma na qual

apreendemos a mateacuteriardquo (DILTHEY W2011 p37)

Para REIS (2003)5 Dilthey eacute associado ao historicismo como seu maior teoacuterico

Ainda como aponta REIS nem todos pesquisadores de sua obra concordam com este

veredito alguns ateacute mesmo questionam se Dilthey poderia ser considerado um

historicista pois em seu projeto de construccedilatildeo de uma epistemologia das ciecircncias

humanas ao se opor ao historicismo romacircntico Dilthey recairia em certo positivismo De

todo modo analisar detalhadamente esta discussatildeo natildeo nos eacute possiacutevel o que nos interessa

aqui eacute apontar que apesar de fazer coro com as caracteriacutesticas gerais deste movimento

Dilthey se destaca por sua busca propriamente epistemoloacutegica das ciecircncias humanas a

partir da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos se afastando em diversos pontos

do chamado ldquoirracionalismordquo romacircntico mas sem reduzir o historicismo agrave pura

epistemologia e sobretudo lanccedilando bases teoacutericas com pretensatildeo cientiacutefica para a

abordagem dos fenocircmenos histoacutericos

ldquoO aspecto positivista da sua teoria devia-se agrave atmosfera naturalista em que ele

viveu As ciecircncias naturais impuseram o seu padratildeo de rigor e objetividade No

seacuteculo XIX a morte da filosofia sistemaacutetica cedeu seu lugar a uma ldquofilosofia

cientiacuteficardquo Natildeo era uma filosofia especulativa mas ldquoestudos positivos com

intenccedilatildeo filosoacuteficardquo O filoacutesofo natildeo podia pensar em qualquer objeto sem recorrer

a estudos concretos ao estudo de fontes primaacuterias extraiacutedas do mundo real

Dilthey neste sentido quis que sua filosofia fosse cientiacutefica Eacute uma teoria do

conhecimento das ciecircncias morais que estudam as relaccedilotildees e eventos positivos

do mundo histoacuterico-social () Aiacute reside seu positivismo que segundo Aron ele

nunca superou e que eacute sua originalidade () Sua tese eacute as ciecircncias humanas

existem como lsquociecircncias e eacute vatildeo discutir o seu caraacuteter cientiacutefico em nome de uma

teoria preconcebida da ciecircnciarsquordquo (REIS 2003p32)

Dilthey se destaca no movimento historicista pela sua preocupaccedilatildeo com o meacutetodo para

as ciecircncias humanas consciente de sua especificidade ou da metodologia autocircnoma dessa

disciplina na medida em que histoacuteria e vida se encontram pela compreensatildeo sendo a vida

ao mesmo tempo histoacuterica e psicoloacutegica E o fato de natildeo haver um modelo universal

sistemaacutetico da histoacuteria natildeo reduz sua pesquisa em uma descriccedilatildeo caoacutetica dos eventos

5 Seguindo a interpretaccedilatildeo de Freunde e Ortega y Gasset Cf REIS JC 2003 p31

20

Vivecircncia compreensatildeo e expressatildeo eacute a triacuteade fundamental para o pensamento de

Dilthey e sua ldquocriacutetica da razatildeo histoacutericardquo consiste em delinear como a construccedilatildeo do

mundo histoacuterico no sujeito torna possiacutevel um saber sobre a realidade espiritual

apreendendo aiacute a partir da experiecircncia do mundo histoacuterico o princiacutepio real das ciecircncias

humanas A reconstruccedilatildeo do mundo da vida natildeo pode ser reduzida a uma soma de

elementos que possam descrevecirc-lo Mais do que isso a vida histoacuterica de um determinado

tempo eacute vivenciada por uma ligaccedilatildeo imediata entre o sujeito e seu tempo cada vivecircncia

sinaliza para a concretude objetiva do espiacuterito da eacutepoca O que importa nesta perspectiva

eacute que a realidade objetiva seja garantida pela proacutepria vivecircncia que eacute ldquoerigida agrave condiccedilatildeo

de categoria epistemoloacutegica fundamental em oposiccedilatildeo ao conceito de representaccedilatildeordquo

(AMARAL2004 p53) ou seja a objetividade da vivecircncia lhe eacute imanente A vivecircncia

(Erlebnis) natildeo eacute mera vida orgacircnica (Leben) mas o encontro indissociaacutevel entre a histoacuteria

e a vida dos homens Se por um lado natildeo eacute possiacutevel acompanhar o horizonte de sentido

de uma eacutepoca sem esta primeira experiecircncia viacutevida cujas expressotildees satildeo particulares por

outro lado eacute somente atraveacutes da compreensatildeo que a vivecircncia eacute alargada superando a

unilateralidade da experiecircncia singular

ldquoA compreensatildeo eacute um reencontro do eu no tu o espiacuterito encontra-se em niacuteveis

cada vez mais elevados da conexatildeo essa mesmidade do espiacuterito no eu no tu em

cada sujeito de uma comunidade em todo sistema da cultura por fim na

totalidade do espiacuterito e da histoacuteria universal torna possiacutevel a atuaccedilatildeo conjunta

das diversas capacidades nas ciecircncias humanas O sujeito do saber estaacute assim

unido com o seu objeto e esse objeto eacute o mesmo em todos os niacuteveis de sua

objetivaccedilatildeo Se a objetividade do mundo espiritual criada no sujeito eacute reconhecida

por este procedimento surge a pergunta sobre o quanto isso pode contribuir para

a resoluccedilatildeo do problema do conhecimento em geralrdquo (DILTHEY 2006p168)

A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo eacute ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da

hermenecircutica de Dilthey pois traz em si a categoria do significado como o nexo da

vivecircncia com a realidade concreta sem se apoiar em qualquer elemento transcendente agrave

proacutepria experiecircncia psicoloacutegica vivida

ldquoA categoria do significado designa a relaccedilatildeo entre as partes da vida e o todo

uma relaccedilatildeo que estaacute fundada na essecircncia da vida Soacute possuiacutemos essa conexatildeo

por meio da memoacuteria na qual podemos visualizar o transcurso vital do passado

Na memoacuteria faz-se valer entatildeo o significado como a forma de apreensatildeo da vida

Captamos o significado de um momento passado Ele eacute significativo na medida

em que nele se realiza um viacutenculo com o futuro por meio da accedilatildeo ou por meio de

um acontecimento exterior Ou na medida em que foi concebido o plano de uma

conduccedilatildeo futura da vida Ou na medida em que um plano de sua realizaccedilatildeo foi

21

levado a termo Ou ele eacute significativo para a vida conjunta na medida em que a

intervenccedilatildeo do indiviacuteduo se realiza nessa vida na qual sua essecircncia mais proacutepria

interveio na configuraccedilatildeo da humanidade Em todos esses e em outros casos o

momento particular possui significado por meio de sua conexatildeo com o todo por

meio da ligaccedilatildeo entre passado e futuro entre existecircncia particular e a

humanidaderdquo (DILTHEY 2006p224)

A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo deve ser entendida como ldquoos dois lados

do processo loacutegico dois lados que se interpenetram mutualmenterdquo (DILTHEY

2006p213) sendo a forma de compreender enquanto meacutetodo a ldquoinduccedilatildeo que deduz das

particularidades parcialmente determinadas para noacutes uma conexatildeo que define o todordquo

(DILTHEY 2006p214) Mas isso soacute eacute possiacutevel pelas categorias que residem na essecircncia

da proacutepria vida categorias que natildeo satildeo dadas a priori e nem podem ser formalizadas

logicamente Satildeo categorias preenchidas no interior de certa unidade espaccedilo-temporal

pois ldquoa vida encontra-se em uma relaccedilatildeo maximamente proacutexima com o preenchimento

do tempo() No tempo a vida existe na relaccedilatildeo das partes com uma conexatildeordquo

(DILTHEY 2006p219)

O conjunto das realizaccedilotildees da compreensatildeo enquanto conexotildees estruturais

objetivas ou objetivaccedilatildeo da proacutepria vida no mundo exterior eacute o conceito das ciecircncias

humanas e ldquotudo aquilo em que o homem por sua atuaccedilatildeo imprimiu sua marca constitui

o objeto das ciecircncias humanasrdquo (DILTHEY 2006 p112) Tendo em vista esse objeto a

tarefa do pesquisador ldquoconsiste na apreensatildeo do mundo do espiacuterito como uma conexatildeo

dos efeitos ou como uma conexatildeo contida em seus produtos duradourosrdquo (DILTHEY

2006p118) A conexatildeo dos efeitos dos produtos da ciecircncia histoacuterica natildeo eacute como o nexo

causal da natureza pois diferentemente da natureza as conexotildees da vida objetiva do

espiacuterito geram valores e realizam fins a vida histoacuterica natildeo eacute reproduccedilatildeo ciacuteclica de si

mesma ndash como a vida natural - mas eacute sempre criativa e ativa na produccedilatildeo desses valores

e bens como seu caraacuteter imanente mais proacuteprio

E eacute nessa apreensatildeo do tear da vida histoacuterica na qual o tempo a vivecircncia e

compreensatildeo estatildeo imbricados e se interpelam o significado ldquoeacute a categoria abrangente

sob a qual a vida se torna concebiacutevelrdquo (DILTHEY 2006p222)

ldquoDito de outro modo conceber algo atribuir valor e estabelecer fins para algo

satildeo atitudes vitais inter-dependentes que configuram as vivecircncias e assim sendo

nos ajudam a construir a proacutepria realidade em que vivemos Vivecircncia e realidade

22

satildeo como que tecidas conjuntamente graccedilas ao apoio da ldquocategoria do

significadordquo (AMARAL 2004p55)

As expressotildees da vivecircncia possuem sua objetividade na medida em que os objetos

as pessoas os valores e os juiacutezos apoiados nesta relaccedilatildeo enraiacutezam-se nos significados

comuns do mundo da vida significados esses que satildeo vivenciados e compreendidos

perfazendo a proacutepria construccedilatildeo do mundo histoacuterico ldquoe consequentemente de sua

compreensatildeo como tarefa basilar das ciecircncias do espiacuteritordquo (AMARAL 2004p57)

II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar

proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias6

Ainda na reaccedilatildeo contra o empirismo positivista do final do seacuteculo XIX e

sobretudo ao psicologismo desenvolveram-se as investigaccedilotildees dos chamados

neokantianos um ldquomovimento com profundas raiacutezes no seacuteculo dezenove [que] dominou

a academia filosoacutefica alematilde entre 1890 e 1920rdquo (CROWELL2001 p23)

Seguindo a exposiccedilatildeo de Crowell o movimento neokantiano pode ser dividido em

trecircs momentos profundamente relacionados com os acontecimentos histoacutericos poliacuteticos

e sociais da Alemanha na virada do seacuteculo XIX para XX Natildeo seraacute possiacutevel nos

aprofundarmos muito na especificidade de cada momento desse movimento bem como

nas suas relaccedilotildees com outras mateacuterias Como jaacute foi dito acima nossa proposta nessa

breve introduccedilatildeo eacute apenas mostrar a importacircncia desse movimento na formaccedilatildeo do

pensamento de Heidegger7 e indicar o contexto geral no qual nasce esse pensamento

6 O neokantismo eacute um movimento complexo e com muitas nuances Como nossa intenccedilatildeo eacute apresentar o

contexto no qual surge o pensamento de Heidegger natildeo pretendemos nos aprofundar e muito menos

desdobrar as divergecircncias entre seus representantes principais atraveacutes do acesso direto agraves suas obras

Portanto seguiremos nesse toacutepico a leitura de Crowell (2001) e Joseacute Rezende Juacutenior (2013) recorrendo

quando necessaacuterio a outros comentadores Destacamos os elementos centrais do pensamento de

Windelband e sobretudo de Rickert pois a partir da anaacutelise da preleccedilatildeo de 1919 de nosso autor ldquoA filosofia

e o problema da concepccedilatildeo de mundordquo ndash em que Heidegger investiga a possibilidade da filosofia como

ciecircncia originaacuteria ndash a posiccedilatildeo desses autores eacute decisiva para elaboraccedilatildeo dos problemas do meacutetodo de acesso

a imediatidade da vida e na primeira parte da referida preleccedilatildeo Heidegger expotildee os pressupostos e

problemas do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e sua dependecircncia ao material teoacuterico das ciecircncias particulares 7 Aleacutem do exposto em nota acima (6) seguimos a leitura de Gianni Vattimo em Introduccedilatildeo a Heidegger

No primeiro capiacutetulo Vattimo mostra a importacircncia dos anos de estudos universitaacuterios de Heidegger em

Freiburg sob orientaccedilatildeo de Heinrich Rickert para o desenvolvimento da questatildeo central de seu

pensamento a questatildeo do ser Segundo Vattimo em sua tese de livre docecircncia de 1916 Heidegger jaacute

23

contexto de uma disputa pela ldquoNova Filosofiardquo que dividiu a Fenomenologia de um lado

e os Neokantianos de outro

ldquoAmbos os movimentos reivindicam o tiacutetulo de filosofia cientiacutefica mas o

neokantismo difere da fenomenologia em manter uma continuidade entre a

ciecircncia positiva e filosofia A teoria da ciecircncia a epistemologia neokantiana

deseja fornecer fundamentos para os princiacutepios de base (lsquocientiacuteficosrsquo) da visatildeo de

mundo A Fenomenologia (aqui Husserl e o jovem Heidegger) ao contraacuterio

estabelece a autonomia da filosofia precisamente atraveacutes da descontinuidade com

a ciecircncia positiva e os objetos de formaccedilatildeo da visatildeo de mundordquo (CROWELL

2001p24)8

No primeiro periacuteodo (1871-1878) verifica-se ldquocerta continuidade entre o inqueacuterito

aprioriacutestico e empiacuterico A autonomia da filosofia vis-agrave-vis a ciecircncia positiva ainda natildeo

tornou a questatildeo decisivardquo (CROWELL 2001p26) Os neokantianos ainda estavam

dispostos a aceitar que as estruturas fundamentais da realidade revelavam seu caraacuteter

transcendental pois ainda constatavam a necessidade das formas universais atraveacutes das

quais podemos pensar as coisas singulares No projeto positivista a ciecircncia empiacuterica

estuda apenas o conteuacutedo de fato em uma restriccedilatildeo circunstancial dos fenocircmenos jaacute

compreendidos

ldquoTentando superar as aporias da Criacutetica da Razatildeo Pura o idealismo

transcendental neokantiano rejeitou a distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si Os

objetos satildeo totalmente imanentes agrave consciecircncia natildeo somente quanto a sua forma

mas tambeacutem agrave sua mateacuteria ieacute o seu elemento empiacuterico Destarte as categorias

jaacute natildeo constituem meramente o modo de aparecer da realidade mas o seu modo

de ser pois ela natildeo existe senatildeo enquanto presente agrave consciecircncia () Assim o

loacutegico como estudos das determinaccedilotildees fundamentais de vaacuterias regiotildees dos

objetos imanentes agrave consciecircncia ocupa com razatildeo ainda para Kant o lugar

reservado antigamente agrave metafiacutesica A tarefa proacutepria da filosofia consiste numa

Teoria das Ciecircncias ieacute no exame das estruturas a priori ao passo que estas

estudam o conteuacutedo empiacuterico das vaacuterias regiotildees dos objetosrdquo (MACDOWELL

Jp30)

manifestava elementos que o impulsionariam a ir aleacutem da loacutegica a recusa de considerar as categorias como

meras funccedilotildees do pensamento e ainda a exigecircncia de considerar o problema da historicidade e do tempo

Assim no interior da problemaacutetica neokantiana Heidegger jaacute se preocupava com questotildees que o

neokantismo mostrava-se incapaz de resolver Cf Vattimo G1987 pp 10-22

8 ldquoBoth movements lay claim to the mantle of ldquoscientific philosophyrdquo but neo-Kantianism differs from

phenomenology in maintaining a continuity between positive science and philosophy As theory of science

neo-Kantian epistemology wants to provide grounds for a principled (ldquoscientificrdquo) weltanschauung

Phenomenology (here Husserl and the early Heidegger) on the contrary establishes the autonomy of

philosophy precisely through a discontinuity with positive science and the aims of worldview formationrdquo

op cit p 24

24

Durante o segundo periacuteodo neokantiano entre 1878 e o final da Primeira Guerra

Mundial as escolas originadas desse movimento vatildeo acirrar suas diferenccedilas A escola de

Marburg (Cohen Natorp e Cassirer) se opocircs sobretudo agraves interpretaccedilotildees psicoloacutegicas

da Primeira Criacutetica de Kant O campo de investigaccedilatildeo dessa escola era direcionado agrave

fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas tais como a fiacutesica e a matemaacutetica pois o que

estaacute em jogo nessa obra segundo os pesquisadores de Marburg natildeo eacute qualquer

fundamentaccedilatildeo da estrutura psicoloacutegica do conhecimento nem sua origem mas o valor

loacutegico de sua verdade na medida em que ldquoo nosso conhecimento dos objetos reais conteacutem

um elemento que natildeo pode ser reduzido pura e simplesmente a intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo

(MCDOWELL J p29)

No mesmo sentido mas sobretudo em funccedilatildeo da superaccedilatildeo do psicologismo e do

relativismo histoacuterico a escola neokantista de Baden representada principalmente por

Windelband e seu disciacutepulo Rickert estende o retorno a Kant com o propoacutesito da

elaboraccedilatildeo de uma loacutegica das ciecircncias humanas O desenvolvimento da filosofia dos

valores (Werttheorie) realizado por essa escola reconhecia a necessidade de diferenciar o

conhecimento da natureza do conhecimento da cultura nesse uacuteltimo caso as leis

deveriam ser explicadas a partir dos valores que neles satildeo presentes Aqui sem duacutevida

existe um ponto de contato com o projeto de Dilthey que nos exige um breve excurso para

desenhar com linhas mais precisas a especificidade de cada projeto

A criacutetica agrave metafiacutesica inaugurada pela filosofia criacutetica de Kant (negando ao

conhecimento qualquer acesso a elementos suprassensiacuteveis) eacute absorvida por Dilthey e

pelos neokantianos contudo a epistemologia das ciecircncias histoacutericas como filosofia

criacutetica da histoacuteria ao recorrer a Kant deveria como aponta Reis (2002 p 166) ldquoou

substituir ou completar ou subordinar ou se coordenar agrave [criacutetica] de Kantrdquo e nesse sentido

eacute possiacutevel observar a fissura entre os projetos Poderiacuteamos dizer que para Dilthey eacute

necessaacuterio superar Kant pois as categorias abstratas do conhecimento satildeo tributaacuterias de

relaccedilotildees vitais primaacuterias como pensamento que emerge da proacutepria vida histoacuterica pois eacute

a vida histoacuterica em uacuteltima instacircncia que fornece ao pensamento unidade e sentido Jaacute

para os neokantianos de Baden poder-se-ia dizer que houve uma coordenaccedilatildeo com vistas

agrave complementaccedilatildeo agrave criacutetica kantiana tendo em vista que tanto para Windelband como

para Rickert a diferenccedila entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito era legiacutetima

25

para o primeiro como uma distinccedilatildeo metodoloacutegica para o segundo como distinccedilatildeo

loacutegica No interior dessa diferenccedila entre Dilthey e os neokantianos de Baden eacute possiacutevel

observar um ponto ainda mais fundamental mesmo com exigecircncias epistemoloacutegicas

objetivas em seu trabalho Dilthey natildeo aceita o pressuposto de um sujeito transcendental

e eacute antes a vivecircncia do sujeito particular histoacuterico que lhe fornece a base de sua pesquisa

jaacute para Windelband e Rickert o idealismo transcendental eacute mantido com o propoacutesito de

garantir o estatuto cientiacutefico de suas teses Assim enquanto Dilthey atraveacutes dos meacutetodos

proacuteprios faz emergir uma nova concepccedilatildeo de ciecircncia os representantes de Baden

movimentam-se em uma teoria preconcebida da ciecircncia Dito de outro modo ldquoenquanto

Dilthey buscava uma forma de liberar as ciecircncias do espiacuterito do meacutetodo das ciecircncias

naturais Windelband e Rickert procuravam uma definiccedilatildeo de ciecircncia que reconhecesse a

importacircncia dos valoresrdquo (WUR 2010p175)

De maneira geral retornando ao ponto central de nosso toacutepico poderiacuteamos

apontar que as duas escolas neokantianas se diferenciavam essencialmente acerca do

objeto de investigaccedilatildeo Na escola de Marburg Cohen direcionava suas pesquisas ao

chamado ldquofato da ciecircnciardquo e a filosofia seria uma reflexatildeo sobre o conhecimento

cientiacutefico concentrando-se na busca de uma metodologia capaz de descrever

matematicamente a constituiccedilatildeo seu objeto na medida em que seu valor de verdade

encontra-se sob bases loacutegico-matemaacuteticas Jaacute na escola de Baden influenciado pela

filosofia dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade

dos juiacutezos cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de

conciliar ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) A ciecircncia apenas

lida com questotildees de fato e se for necessaacuterio analisar a ldquovisatildeo de mundordquo seremos

obrigados a lidar com os deveres e sobretudo com valores

ldquoEsse enfoque nos valores por parte de Windelband levaraacute o neokantismo de

Baden ao desenvolvimento de uma teoria geral do juiacutezo segundo a qual os juiacutezos

cientiacuteficos (juiacutezos teoacutericos) constituem apenas um tipo de juiacutezo qual seja os

juiacutezos orientados pelo valor verdade Aleacutem dos juiacutezos teoacutericos haveria tambeacutem

juiacutezos natildeo teoacutericos como os juiacutezos eacuteticos esteacuteticos religiosos etc os quais

seriam orientados por outros tipos de valores como o bem o justo o belo o

sagrado etc e os quais diriam respeito a outras dimensotildees da experiecircncia

humana para aleacutem da ciecircncia como a moral o direito a arte a religiatildeo etc Com

isso Windelband procura reformar e ampliar o projeto de Kant Como na Criacutetica

da Razatildeo Pura Kant reduziu o papel da filosofia agrave anaacutelise do caraacuteter a priori dos

juiacutezos teoacutericos especiacuteficos das ciecircncias da natureza trata-se portanto de

completar a empresa kantiana com a anaacutelise do caraacuteter a priori dos outros tipos

26

de juiacutezos Mesmo dentro das ciecircncias eacute preciso distinguir tipos de juiacutezos o que

Windelband faraacute atraveacutes da distinccedilatildeo entre ciecircncias nomoloacutegicas e ciecircncias

ideograacuteficas e Rickert com a distinccedilatildeo entre ciecircncias naturais e ciecircncias

culturaisrdquo (RESENDE 2013p17)

Contudo se ambas escolas se diferenciam na circunspecccedilatildeo de seu objeto existe

um ponto de partida epistemoloacutegico comum o retorno a Kant que indica o lugar proacuteprio

da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias A investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo deve se voltar agrave pesquisa

cientiacutefica de como se daacute tal ou qual conhecimento mas analisar a validade do

conhecimento ou seja aquilo que torna a verdade do conhecimento possiacutevel e esse

problema eacute de ordem transcendental pois natildeo estaacute interessada nos processos cognitivos

mas na condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer processo de conhecimento

ldquoContemporacircneo de Hermann Cohen da escola de Marburg Windelband

enfatizou como este a primazia da abordagem epistemoloacutegica dando

continuidade ao projeto kantiano de limitaccedilatildeo do conhecimento buscando

assegurar a sua validade rejeitando a contingecircncia do histoacuterico e do psicoloacutegico

em prol de uma validade atemporal puramente loacutegica Cohen procurou assegurar

a validade loacutegica do conhecimento cientiacutefico na matemaacutetica procedimento que

Windelband analisa como deficiente pois embora a primeira Criacutetica possa

fundamentar a interpretaccedilatildeo de Cohen a segunda e a terceira Criacuteticas assim

como os textos sobre antropologia histoacuteria e poliacutetica requerem outra

fundamentaccedilatildeo que natildeo a matemaacuteticardquo (WU R2010p3)

A terceira fase do movimento ainda segundo Crowell inicia-se no fim da

Primeira Guerra Mundial e vai ateacute a intervenccedilatildeo Nacional Socialista no sistema

universitaacuterio alematildeo nos anos 30 ldquoRefletindo o colapso do otimismo cultural este

periacuteodo eacute caracterizado por um ataque ao idealismo acadecircmico em nome de

Lebensphilosophie (um termo geneacuterico invocando as teses filosoacuteficas lsquoagrave margemrsquo como

as de Nietzsche Bergson e Dilthey)rdquo (CROWELL2011p28) E nesse sentido as escolas

neokantianas precisaram enfrentar o conflito entre a realidade muacuteltipla e dispersa que no

mais das vezes escapa a qualquer tentativa de apreensatildeo conceitual e loacutegica e portanto

agrave consciecircncia transcendental como postulado que garante a cientificidade do projeto

filosoacutefico neokantista

ldquoNa escola de Baden Logik der Philosophie (1911) e Die Lehre vom Urteil [A

doutrina do juiacutezo] (1912) de Lask antecipam temas do terceiro periacuteodo

Abandonando a interpretaccedilatildeo imanente de Rickert do esquema forma-mateacuteria (e

tambeacutem a primazia da razatildeo praacutetica) Lask adota o ponto de partida da

transcendecircncia para dar uma interpretaccedilatildeo ontoloacutegica dos objetos como a unidade

da forma categorial e o material natildeo-loacutegico Objetos satildeo verdades em si mesmas

27

unidades de sentido natildeo cogniccedilotildees juiacutezos proposiccedilotildees Em contraste com

Cohen para quem o objeto eacute construiacutedo no juiacutezo cientiacutefico Lask argumenta que

lsquoos mais baacutesicos problemas da loacutegica revela eles mesmos somente se a cogniccedilatildeo

preacute-teoreacutetica estaacute inclusa na investigaccedilatildeorsquo Em Marburg N Hartmann oferece na

Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis [Fundamentacao para uma

Metafiacutesica do Conhecimento] (1921) uma teoria da relaccedilatildeo sujeito-objeto

ldquorealistardquo quase-fenomenoloacutegica intentada por uma justificaccedilatildeo ontoloacutegica para

o que eacute meramente pressuposto no idealismo loacutegico de Natorp a saber a

habilidade do sujeito para ldquotranscenderrdquo a sua proacutepria esfera Na filologia de

Kant H Heimsoeth comeccedila a descobrir os ldquomotivos metafiacutesicosrdquo da filosofia

criacutetica de Kant uma interpretaccedilatildeo perseguida no curso sobre Kant de Heidegger

1927-1928 e em Kant und das Problem der Metaphysikrdquo

(CROWELL2011p28)9

Eacute conhecida a interlocuccedilatildeo entre Rickert e a fenomenologia de Husserl tanto de

um lado pela criacutetica de Rickert agrave intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica e agrave identificaccedilatildeo entre sentido

(Sinn) e Significado (Bedeutung) nas Investigaccedilotildees Loacutegicas10 quanto por outro pela

criacutetica de Husserl a Rickert no que diz respeito agrave via predominantemente subjetiva das

9 ldquoIn the Baden school Laskrsquos Logik der Philosophie (1911) and Die Lehre vom Urteil (1912) anticipate

themes of the third period Abandoning Rickertrsquos immanentist interpretation of the formmaterial schema

(and so also the primacy of practical reason) Lask adopts the ldquostandpoint of transcendencerdquo to give an

ontological interpretation of the object as a unity of categorial form and alogical material Objects are

themselvesldquo truths unities of meaning not cognitions judgments propositionsrdquo Incontrast to Cohen for

whom the object is constructed in the scientific judgment Lask argues that ldquothe most basic problems of

logic reveal themselves only if pretheoretical cognition is included in the investigationrdquo In Marburg N

Hartmann offered the Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis (1921) a quasi-phenomenological

ldquorealisticrdquo theory of the subject-object relation intended to account ontologically for what is merely

presupposed in Natorprsquos logical idealism namely the subjectrsquos ability to ldquotranscendrdquo its own sphere In

Kant philology H Heimsoeth began to uncover the ldquometaphysical motivesrdquo of Kantrsquos critical philosophy

an interpretation pursued in Heideggerrsquos 1927ndash28 lecture course on Kant and in Kant und das Problem der

Metaphysikrdquoop citp28

10 Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas (sect15 da I Investigaccedilatildeo) contra a posiccedilatildeo de Frege Husserl considera os

termos Sentido (Sinn) e Significado (Bedeutung) como sinocircnimos ldquoSignificaccedilatildeo vale para noacutes aleacutem disso

como sinocircnimo de sentidordquo (HUSSERL 2012 p43) Contudo se em Ideias (1913) Husserl passa a assumir

uma camada de sentido preacutevia agrave significaccedilatildeo linguiacutestica - algo que ele natildeo soacute sugere como a ela se refere

explicitamente chamando-a de sentido preacute-expressivo- a significaccedilatildeo (Bedeutung) permanece

intimamente atrelada agrave expressatildeo (Ausdruck) que continua a ter um caraacuteter epistemoloacutegico relevante

(Cfsect124 Ideacuteias para uma fenomenologia pura e para uma fenomenologia fenomenoloacutegica) Apesar da

nova assunccedilatildeo essa camada preacute-expressiva natildeo passa a ter um teor de verdade superior agrave camada

expressiva pelo contraacuterio Husserl vai permanecer sempre comprometido com o status epistemoloacutegico da

consciecircncia e de seu acesso ao fenocircmeno Entatildeo aquilo que a consciecircncia manifesta linguisticamente

continua a ser o meio pelo qual a fenomenologia pode se realizar como ciecircncia rigorosa e somente a partir

da expressatildeo eacute possiacutevel falar em verdade na medida em que apenas a expressatildeo possui intenccedilatildeo de

significaccedilatildeo Isso porque apesar de sugerir esse sentido preacute-linguiacutestico Husserl continua voltando suas

anaacutelises agrave expressatildeo

28

primeiras publicaccedilotildees de Der Gegenstand der Erkentnnis (O objeto do conhecimento)11

Tambeacutem eacute conhecido o debate entre o idealismo criacutetico de Natorp e a fenomenologia de

Husserl

ldquoEm Ideen I (1913) Husserl afirma com um miacutenimo de ironia que ldquonoacutes somos

genuiacutenos positivistasrdquo (Hua III4639) Sob a tutela de Brentano a atitude inicial

de Husserl em direccedilatildeo ao apriorismo kantiano foi totalmente negativa e em

harmonia com o proacuteprio periacuteodo positivista inicial do neokantismo ele em vez

disso propocircs uma consideraccedilatildeo psicoloacutegica do a priori (egin Philosophie der

Arithmetik [1891]) Pelos anos de 1890 esse tipo de continuidade entre filosofia

e ciecircncia positiva foi abandonado em Marburg pelo idealismo transcendental

Husserl portanto permaneceu bem proacuteximo a Natorp que era o instrumental em

direccedilatildeo daquele caminho do psicologismo e mais tarde inspiraria o movimento

de Husserl da estaacutetica para a fenomenologia geneacutetica Pelos anos 1913 Husserl

tinha desenvolvido seu proacuteprio ldquoidealismo transcendentalrdquo fenomenoloacutegico mas

se manteve distinto em princiacutepio do Neokantismo de Marburg Enquanto esse

uacuteltimo definiu o caraacuteter cientiacutefico da filosofia em termos de

uma loacutegica transcendental uma apresentaccedilatildeo sistemaacutetica dos princiacutepios a priori

(ldquomeacutetodordquo) da ciecircncia empiacuterica o primeiro se manteve anti-sistemaacutetico modelo

empiacuterico do primeiro periacuteodo do seu fundador fundando sua teoria do a priori

sobre um recurso filosoacutefico para a intuiccedilatildeoEm seu tratamento da psicologia de

Natorp na primeira ediccedilatildeo das Investigaccedilotildees Loacutegicas(1900-1901) por exemplo

Husserl rejeita a doutrina de Natorp do puro ego da apercepccedilatildeo Na segunda

ediccedilatildeo contudo ele afirma que tem ldquouma vez conseguido encontraacute-lordquo tendo

aprendido ldquoa natildeo ser desviado de uma pura compreensatildeo do dado por meio de

formas corruptas do ego-metafiacutesicordquo (Hua XIX1374549) Se o Husserl mais

idealista natildeo mais associa o ego kantiano com o ldquocorrupto ego-metafiacutesicordquo do

idealismo especulativo sua anotaccedilatildeo ainda avanccedila em direccedilatildeo a uma afirmaccedilatildeo

bem anti-Natorpiana de ter encontrado o puro ego em uma ldquopura compreensatildeo

do dadordquo isto eacute em evidecircncia intuitiva Outra anotaccedilatildeo afirma que o puro ego eacute

ldquoapreendido na efetivaccedilatildeo de um cogito auto-evidenterdquo (Hua XIX1368544)

Natorp negou a fenomenalidade do ego ele nem pode ser objetivado nem

apresentado ele mesmo como um todo sem deixar de ser genuinamente ldquosujeitordquo

Para Husserl poreacutem esse argumento eacute meramente verbal o ego eacute aqui como um

fato um objeto em seu modo apropriado Afirmar o contraacuterio equivaleria

entregar o ego ao reino do mito (Hua XIX1373ndash76549ndash510)rdquo

(CROWELL2011 p31)12

11 Sobre a interlocuccedilatildeo entre Husserl e Rickert e como as criacuteticas e observaccedilotildees provocaram sucessivas

revisotildees dos trabalhos de ambos os autores Cf RESENDE J 2013 Primeira Parte pp 22-89

12ldquoIn Ideen I (1913) Husserl claims with only slight irony that ldquowe are the genuine positivistsrdquo (Hua

III4639) Under Brentanorsquos tutelage Husserlrsquos initial attitude toward Kantian apriorism had been

altogether negative and in harmony with neo-Kantianismrsquos own early positivist period he instead proposed

a psychological account of the a priori (egin Philosophie der Arithmetik [1891]) By the 1890s this kind

of continuitybetween philosophy and positive science had been abandoned in burg for transcendental

idealism Husserl nevertheless established close ties with Natorp who was instrumental in steering him

away from psychologism and would later inspire Husserlrsquos move from static to genetic phenomenology

By 1913 Husserl had developed his own phenomenological ldquotranscendental idealismrdquo but it remained

distinct in principle from Marburg neo-Kantianism While the latter defined the scientific character of

philosophy in terms of a transcendental logic a systematic presentation of the a priori principles (ldquomethodrdquo)

29

Contudo apesar do diaacutelogo entre esses autores o que nos interessa marcar a tiacutetulo

introdutoacuterio eacute a centralidade do debate que orientou a filosofia deste periacuteodo Seja pela

busca de juiacutezos loacutegicos-matemaacuteticos seja pela busca dos juiacutezos de valor a filosofia ainda

estaacute imersa nos problemas e na gramaacutetica da modernidade pois os debates se

movimentam no interior da teoria do conhecimento e cada escola a seu modo recorre ao

sujeito transcendental para assegurar a garantia de objetividade e validade do

conhecimento A discussatildeo inaugurada por Kant acerca da lsquocoisa em sirsquo e de seu acesso

como ideia da razatildeo redirecionam qualquer ontologia dos objetos agrave consciecircncia do

sujeito E em uacuteltima instacircncia a filosofia permanece imersa no pressuposto da existecircncia

de um fundamento uacuteltimo - baseado no sujeito e em suas possibilidades ligadas agrave

representaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos elementos do mundo externo- como condiccedilatildeo de

possibilidade que garante a seguranccedila e objetividade de todo conhecimento

II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica

Para Wilhelm Windelband (1848-1915) a filosofia deve investigar os valores das

representaccedilotildees ou seja em que medida uma representaccedilatildeo se torna uma proposiccedilatildeo

cientiacutefica Contra as teorias representacionistas do juiacutezo aqui jaacute eacute possiacutevel identificar a

clara separaccedilatildeo entre representaccedilatildeo - que seria a mera apariccedilatildeo de um objeto e suas

propriedades- e o juiacutezo ndash que possui valor de verdade e pode ser negado ou afirmado Os

juiacutezos (sejam loacutegicos esteacuteticos ou eacuteticos) natildeo satildeo neutros como a representaccedilatildeo pois

possuem embutido o que Windelband chama de apreciaccedilatildeo

ldquoTrata-se de uma distinccedilatildeo loacutegica que normalmente natildeo aparece no niacutevel da

gramaacutetica A mera conexatildeo neutra de representaccedilotildees (sujeito + predicado) eacute o que

se chama de juiacutezo jaacute o fato dessas representaccedilotildees constituiacuterem uma proposiccedilatildeo

com valor de verdade se deve agrave apreciaccedilatildeo O que Windelband quer mostrar eacute

of empirical science the former retained the antisystematic empirical cast of its founderrsquos early period

grounding its theory of the a priori on a philosophical appeal to intuition In his treatment of Natorprsquos

psychology in the first edition of the Logical Investigations (1900 1901) for example Husserl rejects

Natorprsquos doctrine of the pure ego of apperception In the second edition (1913) however he claims that he

has ldquosince managed to find itrdquo having learned ldquonot to be led astray from a pure grasp of the given through

corrupt forms of ego-metaphysicrdquo (Hua XIX1374549) If the more idealistic Husserl no longer associates

the Kantian ego with the ldquocorrupt ego-metaphysicrdquo of speculative idealism his note also advances the very

un-Natorpian claim to have found the pure ego in a ldquopure grasp of the givenrdquo that is in intuitive evidence

Another note states that the pure ego is ldquoapprehended in carrying out a self-evident cogitordquo (Hua

XIX1368544) Natorp had denied the phenomenality of the ego it can neither be objectified nor present

itself at all without ceasing to be genuinely ldquosubjectrdquo For Husserl however this argument is merely verbal

The ego is there as a fact an object in its own appropriate manner To claim otherwise is tantamount to

consigning the ego to the realm of myth (Hua XIX1373ndash76549ndash51)rdquo Op cit p31 Cf Tambeacutem

HEIDEGGER 2006 p 124

30

que nisso ordinariamente chamado de juiacutezo estaacute embutida uma apreciaccedilatildeo em

funccedilatildeo de um valor a qual natildeo se confunde com o conjunto de formaccedilotildees

conceituaisrdquo (RESENDE 2013p40)

O que estaacute em jogo nessa concepccedilatildeo eacute identificar que a apreciaccedilatildeo inerente a todo

juiacutezo natildeo diz nada acerca dos conteuacutedos representativos mas de sua pretensatildeo a um ideal

ou fim uacuteltimo como um horizonte estaacutevel do que eacute verdadeiro eacutetico ou esteacutetico e que

funcionam como paracircmetros avaliativos na accedilatildeo mesma de julgar O que estaacute implicado

nessa tese eacute a concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo As ciecircncias particulares possuem pretensatildeo de

valor universal mas essa universalidade natildeo eacute faacutetica e ldquosua necessidade natildeo eacute causal mas

apenas lsquodeve-serrsquo (sein-solle)Toda proposiccedilatildeo loacutegica eacutetica ou esteacutetica eacute impelida pelo

dever-ser universalrdquo(RESENDE2013p41) e mesmo que sua manifestaccedilatildeo seja

faticamente histoacuterica esse dever-ser da proposiccedilatildeo loacutegica deve ser reconhecido como

universal e incondicionalmente vaacutelido por qualquer ser racional ndash em uma clara assunccedilatildeo

da universalidade moral kantiana mas que agora permeia todos os juiacutezos e natildeo somente

os eacuteticos

Considerando os juiacutezos em funccedilatildeo de sua apreciaccedilatildeo Windelband descreve trecircs

tipos de juiacutezos Os juiacutezos satildeo teoacutericos (segundo a apreciaccedilatildeo verdadeirofalso) juiacutezos de

gosto (segundo a apreciaccedilatildeo belofeio) e os juiacutezos eacuteticos (segundo a apreciaccedilatildeo

bommau) Os fenocircmenos psiacutequicos satildeo as representaccedilotildees neutras em sua manifestaccedilatildeo

Assim como comportamentos da apreciaccedilatildeo os juiacutezos ganham sua forma loacutegica nas

figuras judicativas juiacutezos afirmativos juiacutezos negativos juiacutezos problemaacuteticos Essa uacuteltima

forma suspende a apreciaccedilatildeo mas pela pergunta ndash que natildeo eacute propriamente um juiacutezo-

condiciona a possibilidade de julgar portanto se refere a uma etapa mesmo que preacutevia

agrave tomada de posiccedilatildeo apreciativa

Aqui reside o ponto decisivo enquanto para Windelband a loacutegica claacutessica (de

Aristoacuteteles a Kant) se ocupou dos elementos meramente gramaticais - sendo os juiacutezos

coincidentes com as representaccedilotildees na medida que bastava afirmaacute-las ou negaacute-las - a

apreciaccedilatildeo por sua vez aparece como constituidora do conceito presente nas formaccedilotildees

gramaticais pois dizer algo eacute antes apreciar a sua posiccedilatildeo existencial (com fim ao ideal

da mateacuteria em questatildeo eacutetico esteacutetico etc) de forma a negaacute-las ou afirmaacute-las Em outras

palavras para que o conhecimento seja possiacutevel natildeo eacute suficiente a recepccedilatildeo passiva das

representaccedilotildees mas eacute fundamental uma atividade valorativa que constitui um conceito

31

no reconhecimento de seu conteuacutedo sentido e validade na sua pretensatildeo de necessidade

e universalidade Algo lsquoeacutersquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento e

ldquoa pesquisa desses valores com pretensotildees universais () eacute o objeto de estudo da

filosofiardquo (RESENDE 2013p41) Essa posiccedilatildeo seraacute retomada e desenvolvida por

Rickert

Assim como Windelband Heinrich Rickert (1863-1936) coloca o problema na

forma metodoloacutegica ou seja a pesquisa dos valores como meacutetodo de base para a filosofia

e busca assim determinar o criteacuterio de validade do conhecimento atraveacutes do elemento que

confere sua objetividade ou o que pode ser identificado como o crucial para a diferenccedila

entre os enunciados arbitraacuterios e as proposiccedilotildees vaacutelidas do conhecimento efetivo

elemento que Rickert denomina ldquoobjeto do conhecimentordquo como o tiacutetulo mesmo de sua

obra principal indica ldquoDie Gegenstand der Erkenntnisrdquo (revista em seis ediccedilotildees

diferentes entre 1892 e 1928)

Aprofundando as investigaccedilotildees de seu mestre Rickert difere conceitos

ontoloacutegicos de conceitos axioloacutegicos diferenccedila oculta na linguagem ordinaacuteria e que se

torna clara na observaccedilatildeo acerca da concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo ldquoEnquanto para Kant o

problema eacute a impossibilidade de explicar o fato de como a razatildeo teoacuterica pode ser praacutetica

para Rickert o problema eacute o fato de que a razatildeo jaacute eacute sempre praacutetica em seu uso teoacuterico

purordquo (RESENDE 2013p45) e isto natildeo pelo fato de juiacutezos teoacutericos dependerem da lei

moral mas pela convicccedilatildeo acerca dos conteuacutedos mesmos do conhecimento Se a

representaccedilatildeo satildeo processos psiacutequicos elementares e neutros a convicccedilatildeo soacute eacute possiacutevel

pela razatildeo praacutetica Para melhor visualizaccedilatildeo do problema quando digo ldquoS eacute Prdquo ou ldquoS eacute

um sujeitordquo (e aiacute estaacute tambeacutem seu conceito por exemplo ldquohomemrdquo) ou ainda ldquoP eacute um

predicadordquo (e tambeacutem utilizo um conceito por exemplo ldquoracionalrdquo) o que me autoriza

dizer ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo Segundo Rickert eacute a convicccedilatildeo praacutetica fundada no

sentimento (Gefuumlhl) de ldquovontade de verdaderdquo (Willen zur Wahrheit) que impele a busca

da verdade Eacute esse sentimento que possibilita a tomada de posiccedilatildeo que aprova ou

desaprova expresso por fim em um juiacutezo Somos impelidos pelo dever na medida em

que somos livres a buscar a verdade Mas eacute importante considerar que

ldquoApesar de o sentimento ser o paracircmetro para a tomada de posiccedilatildeo do juiacutezo o

dever natildeo deriva do sentimento pois isso seria derivar o dever do ser O dever

natildeo pode ser confundido com a necessidade causal do sentimento Na verdade

32

na proacutepria constataccedilatildeo do sentimento jaacute estaacute pressuposto o dever () Essa

verdade buscada natildeo eacute uma instacircncia ideal mas apenas um postulado um

inalcanccedilaacutevel ideal absoluto de verdade que funciona como moacutebil da atividade

cientiacutefica dos seres moraisrdquo (RESENDE 2013p46)

A razatildeo praacutetica busca a verdade como sua atividade mais proacutepria a partir do dever

impresso na sua proacutepria liberdade expresso no ato praacutetico de tomada de decisatildeo que

culmina na expressatildeo dos juiacutezos (na razatildeo teoacuterica) Se para Kant a accedilatildeo humana livre eacute

impelida a agir conforme a lei moral para Rickert a accedilatildeo humana em seu querer livre -

nem mecacircnico nem bioloacutegico - de um ideal de perfeiccedilatildeo da verdade eacute impelida a agir em

funccedilatildeo do conhecimento e da ciecircncia

Na tentativa de afastar as interpretaccedilotildees psicologistas ou idealistas (natildeo

cientiacuteficas) de sua teoria o valor de verdade para Rickert que eacute garantido pelo dever-ser

eacute observado na evidecircncia como manifestaccedilatildeo psiacutequica do dever mas que pelo seu caraacuteter

de necessidade ultrapassa o indiviacuteduo singular O sentimento de prazer ou desprazer dessa

evidecircncia na estrutura psiacutequica que posiciona o ato praacutetico de tomada de posiccedilatildeo eacute

reconhecido pela sua necessidade transcendente e eacute o elemento do esquema cognitivo que

ldquoestabelece a ponte entre os processos psiacutequicos reais em sua singularidade e

contingecircncia com a universalidade e necessidade transcendental do deverrdquo (RESENDE

2013p47) Mesmo com essas colocaccedilotildees e sobretudo com a postulaccedilatildeo que o dever natildeo

pode ser derivado do ser pelo seu caraacuteter mesmo de liberdade Rickert foi aproximado de

um certo ldquopsicologismo voluntaristardquo pois o valor de verdade na realidade soacute poderia ser

derivado dos processos psiacutequicos tendo em vista que ldquoo dever eacute uma norma psicoloacutegica

que soacute tem sentido lsquopararsquo um sujeito empiacutericordquo (RESENDE 2013p47) E ainda por

mais que sua meta fosse buscar a universalidade e necessidade dos valores ainda assim

esses valores estariam reduzidos ldquoagrave contingecircncia e temporalidade dos processos

psiacutequicos ou seja reduzindo o valor ao serrdquo (RESENDE 2013p48)

Mas como a filosofia dos valores desses autores lida com as pesquisas histoacutericas

enquanto criacutetica do historicismo Para Windelband as ciecircncias positivas satildeo ciecircncias

nomoteacuteticas ou seja operam por uma abstraccedilatildeo que busca o conhecimento universal

atraveacutes da estabilidade de suas leis Jaacute as ciecircncias histoacutericas satildeo ideograacuteficas cujo juiacutezos

natildeo descrevem uma coisa ou estados de coisa enquanto aquilo que eacute mas possuem como

objeto valores que possuem (ou natildeo) validade Validade oferecida em uacuteltima instacircncia

33

pelo juiacutezo em sua forma fundamental como juiacutezo apreciativo Analisar esses valores

requer uma metodologia proacutepria baseada na pesquisa da valoraccedilatildeo como forma de

conhecimento

Para Rickert a filosofia dos valores eacute o fundamento universal para os significados

da histoacuteria e aqui reside o ponto crucial a busca de um ideal absoluto (vontade de

verdade) deve atuar como medida para a realidade individual e histoacuterica sem a qual natildeo

podemos significar a interpretaccedilatildeo da vida histoacuterica e cultural na sua singularidade A

distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor

(Wert) segundo Rickert levaria a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo

de conceitos (Begriffsbildung) e que natildeo se trata de um conhecimento no campo

ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto pelo conceito determinado de maneira formal no

espaccedilo loacutegico-axioloacutegico

Um evento histoacuterico natildeo possui relevacircncia por si soacute eacute a partir da valoraccedilatildeo que

um fato histoacuterico se ldquodiferencia substancialmente de outros na heterogeneidade contiacutenua

a partir de sua individualidaderdquo (Wu R 2010p180) Ou seja o que doa sentido a um

fato histoacuterico na sua individualidade ndash que se destaca dos fluxos indistintos e

heterogecircneos dos acontecimentos - eacute uma realizaccedilatildeo teoacuterica que o valoriza e lhe confere

sentido A histoacuteria eacute portanto possiacutevel e existe como objeto capaz de ser analisado como

ciecircncia pelos valores atribuiacutedos teoricamente a seus eventos

III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos

A crise no modelo teoacuterico tradicional no final do seacuteculo XIX (que apontava

qualquer teoria filosoacutefica como uma lsquocrenccedila justificadarsquo) a reconduccedilatildeo pelos

psicologistas agrave articulaccedilatildeo de argumentos logicamente coerentes baseados na consciecircncia

particular - em que ateacute mesmo os princiacutepios loacutegicos seriam expressatildeo da forma de

conhecimento possiacutevel pela particularidade daquele que conhece- culminam no projeto

husserliano de uma filosofia pura e sem pressupostos

Para Husserl a psicologia baseada no modelo cientiacutefico das ciecircncias naturais leva

agrave particularizaccedilatildeo dos conteuacutedos do conhecimento e nesse modelo a psicologia natildeo

consegue lidar com a universalidade do conteuacutedo dos princiacutepios tornando a relaccedilatildeo entre

34

a realidade e o conhecimento incompatiacuteveis Por mais que a experiecircncia seja particular

as investigaccedilotildees de Husserl o levaram a considerar que a existecircncia humana estaacute em

contato com conteuacutedos que natildeo satildeo particularizaacuteveis A psicologia natildeo deixa clara a

transiccedilatildeo das conexotildees psicoloacutegicas do pensar e a unidade loacutegica de seu conteuacutedo O que

estaacute em jogo para Husserl eacute portanto a relaccedilatildeo entre a subjetividade do conhecer e a

objetividade do conteuacutedo de pensamento

A predominacircncia neokantiana no horizonte universitaacuterio alematildeo e sua maacutexima de

retorno a Kant mantecircm no interior da investigaccedilatildeo termos como por exemplo

lsquoapercepccedilatildeorsquo e lsquorepresentaccedilatildeorsquo Se o neokantismo se volta a Kant tambeacutem sucumbe a

seus limites e nesse movimento revela a insuficiecircncia da investigaccedilatildeo filosoacutefica

condicionada aos sistemas anteriores Para Husserl a filosofia como ciecircncia autocircnoma

requer natildeo um retorno a qualquer teoria mas agraves coisas que agora devem orientar o

pensamento

A tradiccedilatildeo filosoacutefica eacute marcada por uma pretensatildeo a busca da verdade para aleacutem

do que acontece na realidade dos fenocircmenos que nos satildeo acessiacuteveis Ao hipostasiar a

realidade do ser atraveacutes de posturas realistas ou idealistas para assim ter acesso aos

fenocircmenos a tradiccedilatildeo sempre considerou o ser do fenocircmeno para aleacutem do proacuteprio

fenocircmeno13 De maneira diversa Husserl busca os objetos nos proacuteprios campos

fenomecircnicos na medida em que aparecem na dimensatildeo do conhecimento a partir da

proacutepria atividade de pensamento ou seja o objeto que aparece na atividade de

pensamento soacute eacute encontrado na proacutepria atividade por isso natildeo haacute busca ou hipoacutestase

exterior agrave consciecircncia Mas isso natildeo se daacute porque a consciecircncia em seus atos produza ou

determine os significados dos objetos mas sim porque os atos das vivecircncias abrem espaccedilo

para que o objeto se determine no ato mesmo a partir de sua autonomia frente a qualquer

subjetividade particular de pensamento Mas o que queremos dizer com lsquoum objeto que

se determina no ato mesmorsquo Aqui eacute importante destacar sempre que possiacutevel um mal-

entendido em constante revisatildeo a filosofia de Husserl natildeo consiste em um sistema

fechado de proposiccedilotildees as quais poderiacuteamos encaminhar de forma retiliacutenea e deduzir suas

conclusotildees Aqui nessa breve introduccedilatildeo agraves intenccedilotildees do pensamento de Husserl

apresentamos em linhas gerais seu projeto e nos movimentamos a partir do segundo

13 Cf CASANOVA 2013 pp-76-80

35

volume das Investigaccedilotildees Loacutegicas de 1901 e das Ideacuteias para uma fenomenologia pura e

para uma filosofia fenomenoloacutegica publicadas em 1913

Depois dessas consideraccedilotildees atraveacutes das quais foi posta em jogo a noccedilatildeo de um objeto

que se determina no ato mesmo conforme jaacute explicitado nas Investigaccedilotildees eacute requerido

passar agrave explicaccedilatildeo da noccedilatildeo conforme elaborada na obra posterior Ideacuteias O

pensamento de Husserl eacute marcado por uma orientaccedilatildeo especiacutefica a fenomenoloacutegica Essa

orientaccedilatildeo natildeo desconsidera as vaacuterias formas pelas quais podemos ter acesso a objetos

seja pela vida corrente e cotidiana seja pela via cientiacutefica pois ambas estatildeo de acordo

com a orientaccedilatildeo natural A orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica por sua vez se deteacutem no objeto

intencional ou seja o objeto que visado se manifesta agrave consciecircncia conforme seu modo

de doaccedilatildeo fenomecircnico14 Natildeo se trata de um idealismo subjetivo conforme por exemplo

Berkeley mas de uma necessidade de acesso agraves coisas mesmas sem qualquer

pressuposiccedilatildeo sem qualquer movimento que ponha o conhecimento fora da realidade e

que ao mesmo tempo natildeo recaia na descriccedilatildeo ingecircnua da realidade como um conjunto de

impressotildees sensiacuteveis O fenocircmeno que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute

sempre uma doaccedilatildeo com sentidosignificado ldquopois se eacute verdade que os fenocircmenos se

datildeo a noacutes por intermeacutedio dos sentidos eles se datildeo sempre como dotados de um sentido

ou de uma essecircncia Eis porque () a intuiccedilatildeo seraacute uma intuiccedilatildeo da essecircncia ou do

sentidordquo (DARTIGUES 1973p21)

Ao contraacuterio dos neokantianos o modo como Husserl tratou a realidade tornou

improacuteprio o retorno agraves concepccedilotildees filosoacuteficas anteriores Elas natildeo forneciam mais um

caminho vaacutelido para o questionamento filosoacutefico Natildeo era mais suficiente o retorno a

qualquer sistema filosoacutefico fosse para renovaacute-lo - sob esse novo horizonte cientiacutefico -

fosse para retomar seus fundamentos com a finalidade de posicionar a filosofia como

braccedilo de apoio da ciecircncia A fenomenologia pura (puramente descritiva) pertence agrave

pesquisa de uma teoria do conhecimento objetiva na medida em que o modo de apariccedilatildeo

dos fenocircmenos nas vivecircncias do pensamento e do conhecimento seraacute sempre o objeto da

fenomenologia

14 Cf Ideacuteias I Capiacutetulo I

36

A concepccedilatildeo de fenocircmeno na modernidade ganhou diversas acepccedilotildees desde Bacon

ateacute Wolff passando por Descartes e Hobbes Segundo uma noccedilatildeo do senso comum

fenocircmeno eacute a experiecircncia pura e simples do fato considerada sobretudo como

manifestaccedilatildeo empiacuterica da realidade que natildeo pode ser equiparada agrave verdade15 Jaacute para Kant

- na delimitaccedilatildeo feita na primeira Criacutetica do espaccedilo do saber cientiacutefico possiacutevel -

fenocircmeno eacute o objeto especiacutefico do conhecimento humano que aparece sob condiccedilotildees

particulares da estrutura cognosciacutevel do homem a saber de um lado o objeto do

conhecimento depende das bases representativas que satildeo organizadas pelas categorias do

entendimento e de outro dos dados fornecidos pela sensibilidade Resumindo o objeto

de conhecimento para Kant estaacute delimitado pela relaccedilatildeo entre intuiccedilatildeo e conceito Kant

distingue o fenocircmeno - aquilo que eacute possiacutevel conhecer - do nocircumeno aquilo que natildeo se

conhece mas que pode ser pensado enquanto ideia da razatildeo como ldquocoisa em sirdquo Sem

jamais ultrapassar os dados da experiecircncia o sentido fenomenoloacutegico de fenocircmeno de

Husserl supera a distinccedilatildeo kantiana entre nocircumeno e fenocircmeno O fenocircmeno eacute algo que

manifesto revela em si mesmo seu conteuacutedo loacutegico ou essencial Mas a manifestaccedilatildeo do

fenocircmeno deve ser ldquodepuradardquo de qualquer psicologismo pois natildeo deve apenas ser

considerada como manifestaccedilatildeo particular A investigaccedilatildeo filosoacutefica ou melhor a

investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica aqui eacute exigida como meacutetodo para lsquopurificarrsquo o conteuacutedo

objetivo do ato subjetivo

ldquoO caminho que Husserl busca e comandaraacute ateacute em suas uacuteltimas obras a sua

concepccedilatildeo de fenomenologia eacute uma via meacutedia entre esses dois escolhos como

pensar segundo a sua natureza e em cada uma de suas nuanccedilas ndash e portanto sem

jamais ultrapassaacute-los ndash os dados da experiecircncia em sua totalidade Todo o

fenocircmeno e nada mais que o fenocircmeno poder-se-ia dizer O postulado que funda

tal empresa eacute que o fenocircmeno estaacute penetrado no pensamento de logos e que por

sua vez o logos se expotildee e soacute se expotildee no fenocircmeno Apenas sob essa condiccedilatildeo

eacute possiacutevel uma fenocircmeno-logiardquo (DARTIGUES 1973p20)

Aluno de Brentano Husserl ainda radicaliza a teoria da intencionalidade de seu

professor e natildeo mais considera que a consciecircncia se dirija pelo ato intencional agraves

representaccedilotildees empiacutericas da consciecircncia mas agrave objetividade das proacuteprias coisas

detectaacutevel no ato expressivo Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas Husserl apresenta a consciecircncia

como sempre ldquovoltada ardquo ou seja como uma consciecircncia intencional superando natildeo soacute

a noccedilatildeo de consciecircncia como o lsquolugarrsquo das representaccedilotildees que devem ser organizadas por

15 Cf AbbagnoN 2003 p436 Nesse sentido tambeacutem Cf Heidegger 2006 pp26-27

37

exemplo por aparatos internos a priori como tambeacutem qualquer orientaccedilatildeo psicologista

do conhecimento Se a fenomenologia recorre agrave psicologia eacute apenas para a investigaccedilatildeo

descritiva das vivecircncias intencionais e a psicologia descritiva na medida em que se

configura como descriccedilatildeo empiacuterica (cientiacutefica-natural) natildeo pode ser confundida com a

fenomenologia Esta ao contraacuterio mesmo repousando sobre a investigaccedilatildeo descritiva das

vivecircncias intencionais estrato mesmo da psicologia ainda assim possui como

particularidade a descriccedilatildeo pura excluindo qualquer concepccedilatildeo naturalista16

Mas afinal do que se trata nesta ldquodescriccedilatildeo purardquo Eacute na atividade compreensiva em

geral (descriccedilatildeo das vivecircncias intencionais) que Husserl buscaraacute a origem do

conhecimento na anaacutelise dos atos de constituiccedilatildeo de conhecimento dos objetos que ele

vai procurar descrever os movimentos ideais implicados em todo movimento intencional

As investigaccedilotildees gnosioloacutegicas da loacutegica pura expostas nas Investigaccedilotildees loacutegicas

querem lanccedilar as bases e fundamentos seguros como alternativas agraves teorias do

conhecimento empiristas ceacuteticas metafiacutesico-realista e psicologista pretendendo

fundamentar uma verdadeira teoria do conhecimento a partir da filosofia puramente

cientiacutefica Essa anaacutelise se realiza a partir das expressotildees levando em consideraccedilatildeo o

aspecto loacutegico da vivecircncia

ldquoA Fenomenologia analiacutetica de que o loacutegico necessita para os seus trabalhos de

preparaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo diz respeito entre outras coisas e desde logo agraves

lsquorepresentaccedilotildeesrsquo e mais precisamente agraves representaccedilotildees que satildeo expressas

Nestas complexotildees poreacutem o seu interesse primaacuterio vai para as vivecircncias que

estatildeo na funccedilatildeo de significaccedilatildeo as quais se pensam agraves lsquosimplesrsquo expressotildees No

entanto natildeo se pode descurar tambeacutem o lado linguiacutestico-sensiacutevel da complexatildeo

(aquilo que nela constitui a lsquosimplesrsquo expressatildeo) e o modo do seu entrelaccedilamento

com o ato de significar que o anima Eacute bem sabido quatildeo facilmente a anaacutelise das

significaccedilotildees costuma deixar-se guiar pela anaacutelise gramatical de um modo

completamente inadvertido Certamente que dada a dificuldade da anaacutelise direta

das significaccedilotildees seraacute bem-vindo todo e qualquer meio mesmo que imperfeito

de antecipar indiretamente os seus resultados [as significaccedilotildees que o anima] mas

mais ainda que por causa dessa ajuda positiva a anaacutelise gramatical torna-se

importante pelos enganos que traz consigo quando se substitui agrave anaacutelise

propriamente ditas das significaccedilotildeesrdquo (HUSSERL 2012p11)

16 Cf HusserlE Investigaccedilotildees Loacutegicas VolII Introduccedilatildeo sect 6- Aditamentos ndash 3ordm Aditamento

38

A anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a complexidade da vida

intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo eacute possiacutevel a partir da anaacutelise das estruturas

ideais que se apresentam nas vivecircncias da consciecircncia na forma das expressotildees

significativas E se ldquoos objetos para os quais a Loacutegica pura estaacute voltada satildeo desde logo

dados sob vestes gramaticaisrdquo (HUSSERL 2012p3) eacute porque esses dados satildeo embutidos

nas vivecircncias psiacutequicas concretas que ldquotanto em funccedilatildeo de intenccedilatildeo de significaccedilatildeo como

na do preenchimento de significaccedilatildeo () correspondem a certas expressotildees linguiacutesticas

e formam com elas uma unidade fenomenoloacutegicardquo (HUSSERL 2012p3)

O que estaacute em jogo como tarefa da fenomenologia eacute - a partir da unidade entre

intuiccedilatildeo (atividade da consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da

consciecircncia e o preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor

a unidade fenomenoloacutegica desses atos apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo

e preenchimento de significaccedilatildeo para assim encontrar suas distinccedilotildees ideais presentes na

significaccedilatildeo

ldquoDe fato sempre que se trata de conceitos juiacutezos raciociacutenios a Loacutegica pura tem

que ver exclusivamente com estas unidades ideais que denominamos aqui

significaccedilotildees e na medida em que nos esforccedilamos por extrair a essecircncia ideal das

significaccedilotildees dos seus viacutenculos psicoloacutegicos e gramaticais na medida em que

para aleacutem disso temos em vista clarificar as relaccedilotildees aprioriacutesticas de adequaccedilatildeo

agrave objetividade significativa fundadas nessa essecircncia estamos jaacute no domiacutenio da

Loacutegica purardquo(HUSSERL 2012p76)

Enquanto as ciecircncias se movem em direccedilatildeo agraves vaacuterias regiotildees de objetos na

tentativa de compreensatildeo da realidade do mundo Husserl compreende a orientaccedilatildeo

filosoacutefica como investigaccedilatildeo da possibilidade do conhecimento objetivo E nesse sentido

a filosofia de Husserl permanece nos limites de uma criacutetica ao conhecimento

transcendental sem que seu meacutetodo se comprometa com qualquer perspectiva ontoloacutegica

Natildeo porque negue a realidade externa mas porque a reflexatildeo fenomenoloacutegica segundo

Husserl deveria estar direcionada agrave anaacutelise das unidades significativas (Investigaccedilotildees

loacutegicas) e agrave descriccedilatildeo eideacutetica da consciecircncia (Ideacuteias) com o compromisso de esclarecer

a vivecircncia intencional de forma que assim fosse possiacutevel esclarecer as operaccedilotildees de toda

e qualquer consciecircncia inclusive nossa orientaccedilatildeo preacute-reflexiva natural

O vigor da ideia filosoacutefica de ciecircncia tal como elaborada por Husserl residia na

restriccedilatildeo da investigaccedilatildeo agrave coisa mesma A fenomenologia husserliana se restringiu agraves

39

coisas enquanto somos conscientes delas Portanto sem remeter-se ao primado da

autoconsciecircncia da filosofia moderna ela rompeu com a ideia de representaccedilatildeo e por

consequecircncia de adequaccedilatildeo Pois a consideraccedilatildeo a priori da consciecircncia de um sujeito no

modo de questionamento epistemoloacutegico moderno tradicional trazia consigo um

problema inerente a esta pressuposiccedilatildeo a saber a representaccedilatildeo dos elementos externos

pelo aparato interno do sujeito devia ser a cada vez avaliada em sua validade

epistemoloacutegica em sua adequaccedilatildeo agrave consciecircncia Esse problema derivado da

representaccedilatildeo eacute consequecircncia do modo de considerar o sujeito como outro frente ao

mundo A consequecircncia dessa cisatildeo eacute que as representaccedilotildees internas natildeo seriam

suficientes para confirmar a existecircncia do mundo exterior e incapazes de fornecer

elementos conclusivos acerca dos modos de acesso a esse mundo

Husserl aprendeu com Brentano a atitude de recusa a todo e qualquer pressuposto

Mesmo Brentano considerando as representaccedilotildees como uma das bases da atuaccedilatildeo

psiacutequica indica que ldquoa estrutura baacutesica do psiacutequico o que a toda vivecircncia seja inerente

algo objetual a denomina Brentano inexistecircncia intencional Intentio eacute uma expressatildeo

da escolaacutestica que significa dirigir-se a Brentano fala da inexistecircncia intencional do

objetordquo (HEIDEGGER 2006 p39) Nesse sentido a intencionalidade na fenomenologia

husserliana voltada agrave anaacutelise expressiva e natildeo agraves representaccedilotildees torna a questatildeo do

mundo interior ou exterior secundaacuteria O que estaacute em jogo eacute a orientaccedilatildeo da pesquisa pela

condiccedilatildeo do conhecimento que natildeo exclui o mundo e as orientaccedilotildees naturais A suspensatildeo

do mundo exterior na orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica deve-se ao fato de que nesse tipo de

investigaccedilatildeo natildeo se tem nada a dizer sobre ele E nesse sentido a fenomenologia

husserliana que oferece um novo vigor a filosofia do final do seacuteculo XIX apresenta

tambeacutem seu proacuteprio limite

ldquoEm verdade aquela ideia do conhecimento da essecircncia que deveria renovar o

campo do filosofar aquela anaacutelise descritiva do acircmbito imenso da lsquoconsciecircnciarsquo

que teria de anteceder todo conhecimento cientiacutefico e conter todos os seus

pressupostos a priori tinha um limite para aleacutem do qual nem mesmo a

fenomenologia poderia ultrapassar Mesmo um conhecimento fenomenoloacutegico

consumado de todas as essencialidades- dentre as quais tambeacutem se encontram no

campo moral o reino dos lsquovalores ndash natildeo poderia atingir a realidade efetiva do ente

efetivamente real a realidade efetiva da consciecircncia pensante tanto quanto a

realidade efetiva da experiecircncia que ela faz Por mais que a distinccedilatildeo entre o fato

e a essecircncia tenha demarcado o grande campo de pesquisa da fenomenologia ante

as ciecircncias particulares e liberado um trabalho metodologicamente

autoconsciente a factualidade do factual a facticidade a existecircncia natildeo se mostra

40

apenas como algo derradeiro tardio contingente determinado em termos de

conteuacutedo pela intelecccedilatildeo da essecircncia e abarcado segundo toda a sua determinaccedilatildeo

por ela Ao contraacuterio elas tambeacutem se mostram como algo primeiro algo que se

acha agrave base que natildeo pode ser alijado pelo pensamento que suporta por sua vez

todas as intelecccedilotildees da essecircnciardquo (GADAMER 2012p148)

A reduccedilatildeo fenomenoloacutegica natildeo visa reconduzir os fenocircmenos agrave unidade de um

elemento comum mas reconduzir a consciecircncia aos fenocircmenos que se datildeo por si mesmos

e na medida que assim o faz reconhece a existecircncia da base factual na qual o fenocircmeno

pode vir agrave consciecircncia e como um elefante na sala de estar natildeo pode mais ser ignorada

Em outras palavras a investigaccedilatildeo loacutegica o acesso agrave idealidade loacutegica de toda

significaccedilatildeo baseada - mas natildeo reduzida ndash nos atos das vivecircncias psiacutequicas concretas

aponta em uacuteltima instacircncia (mesmo na tentativa de desvio dessa situaccedilatildeo) para o caraacuteter

histoacuterico ou ocasional daquele que pode intencionar significaccedilotildees Mas Husserl natildeo havia

reconhecido esse problema ao diferenciar as expressotildees flutuantes das significaccedilotildees

ideais jaacute na primeira investigaccedilatildeo loacutegica17 O problema neste caso como aponta

Gadamer estaacute exatamente no agente do ato de pensamento pois a base que natildeo pode ser

afastada e que suporta as intelecccedilotildees da essecircncia estaacute necessariamente remetida agravequele

que na accedilatildeo do ato de intelecccedilatildeo eacute finito e histoacuterico ou seja a direccedilatildeo puramente teoacuterica

da fenomenologia de Husserl natildeo deixa de apontar a condiccedilatildeo histoacuterica daquele que pode

realizar qualquer teoria elemento que vai se tornar decisivo para a fenomenologia de

Heidegger

ldquoA doutrina do juiacutezo e de sua fundamentaccedilatildeo a anaacutelise claacutessica da percepccedilatildeo a

distinccedilatildeo loacutegica entre expressatildeo e significado mas sobretudo tambeacutem aquela

17 No sect26 da I Investigaccedilatildeo Loacutegica ldquoExpressotildees essencialmente ocasionais e expressotildees objetivasrdquo

Husserl analisa significaccedilotildees que podem variar de caso a caso ou significaccedilotildees variantes Ele diferencia as

ldquoexpressotildees essencialmente subjetivas e ocasionaisrdquo (por exemplo ldquoeu desejo sorte a vocecircrdquo ou ldquoisto [aqui

que vejo agora] eacute um catildeordquo) das ldquoexpressotildees objetivasrdquo nas quais o que estaacute em questatildeo eacute o teor sonoro

significativo sem necessidade de se ter agrave vista a pessoa que expressa ou a circunstacircncia da expressatildeo Desde

os paraacutegrafos iniciais da primeira investigaccedilatildeo Husserl se preocupa em indicar que a palavra possui ldquofunccedilatildeo

de significaccedilatildeordquo isso quer dizer que a significaccedilatildeo natildeo eacute sustentada pela palavra mas que ela remete a

significaccedilatildeo agrave coisa mesma e nesse sentido para Husserl a ocasionalidade da expressatildeo natildeo prejudica a

unidade ideal de cada uma das expressotildees Contudo o autor natildeo deixa de reconhecer a esfera das expressotildees

ocasionais referidas ao sujeito e sua especificidade como falante identificadas por determinaccedilotildees como

aqui laacute ontem amanhatilde e ainda construccedilotildees expressivas com artigos definidos Essas expressotildees trazem a

referecircncia ao proacuteprio falante e agrave sua situaccedilatildeo ldquode tal maneira que a significaccedilatildeo autecircntica da palavra se

constitui pela primeira vez com base na respectiva representaccedilatildeo desse lugar Por um lado a significaccedilatildeo

eacute sem duacutevida genericamente conceitual porquanto aqui denomina em geral um lugar enquanto tal mas

a este geral junta-se a representaccedilatildeo direta do lugar variando de caso para caso que sob dadas

circunstacircncias do discurso eacute apontada atraveacutes desta representaccedilatildeo conceitual indicativa do aqui e lhe estaacute

subordinadardquo (HUSSERL 2012 p71)

41

descriccedilatildeo incomparavelmente exata e penetrante da consciecircncia interna do tempo

na qual precisaria se construir todo sentido de duraccedilatildeo e de validade atemporal ndash

todos esses eram temas fenomenoloacutegicos de Husserl que emergiram de um

intuito fundamental puramente teoacuterico e que estavam cindidos por um hiato

ontoloacutegico do ponto de partida de Heidegger da experiecircncia pragmaacutetica da vida

da percepccedilatildeo dirigida pelo significado praacutetico do ente agrave matildeo da temporalidade

do ser-aiacute a temporalidade essa que se tomava como movimento da

existecircnciardquo(GADAMER 2012 p154)

Desse modo Heidegger busca um acesso agrave mostraccedilatildeo dos fenocircmenos a partir da

temporalidade existencial do homem e assim compreender como a significaccedilatildeo de todo

e qualquer ente estaacute remetida agrave facticidade (Faktizitaumlt) daquele ente em que algo como

um fenocircmeno pode vir ao encontro

A partir desta breve apresentaccedilatildeo vamos investigar no proacuteximo capiacutetulo (1) A

criacutetica feita por Heidegger a essas trecircs tentativas de superaccedilatildeo da crise da filosofia no

seacuteculo XIX a) a posiccedilatildeo essencialmente teoacuterica da filosofia dos valores e sua

impossibilidade de se apresentar como filosofia originaacuteria b) ao primado da consciecircncia

em Husserl c) a determinaccedilatildeo metodoloacutegica (teoacuterica) da hermenecircutica de Dilthey

Tentaremos compreender (2) como essa problemaacutetica da virada do seacuteculo XIX para o

seacuteculo XX forneceu os princiacutepios que motivaram o pensamento heideggeriano agrave busca

da filosofia como ciecircncia originaacuteria e a partir da anaacutelise dos limites das ditas teorias a

questatildeo do sentido do conhecimento se mostra articulada com outra questatildeo ainda mais

fundamental o sentido do ser e (3) como a recepccedilatildeo da fenomenologia de Husserl por

Heidegger - considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio do meacutetodo fenomenoloacutegico

como indicativo-formal - evidencia a imersatildeo de todo significado em um contexto

hermenecircutico historicamente dado

42

Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica

Mas a vida captada em sua forma irredutiacutevel jaacute sem ornato ou comentaacuterio meloacutedico vida a que aspiramos como paz no cansaccedilo (natildeo a morte) vida miacutenima essencial um iniacutecio um sono

menos que terra sem calor sem ciecircncia nem ironia o que se possa desejar de menos cruel a vida em que o ar natildeo respirado mas me envolva () Natildeo o morto nem o eterno ou o divino apenas o vivo o pequenino calado indiferente e solitaacuterio vivo Isso eu procuro (Vida Menor Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

No capiacutetulo anterior indicamos que o desenvolvimento das ciecircncias positivas

particulares no final do seacuteculo XIX emerge a discussatildeo acerca do sentido e possibilidade

do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo buscou uma filosofia

propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana a autonomia da filosofia

frente agrave ciecircncia positiva E a contribuiccedilatildeo de Dilthey cujo pensamento mesmo imerso

nas exigecircncias positivistas de seu tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda

interpretaccedilatildeo e apresenta o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico

Acreditamos que percorrendo esse caminho podemos compreender no presente capiacutetulo

como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere Heidegger no interior da referida

discussatildeo pelo sentido do conhecimento18 Mas ao mesmo tempo tentaremos mostrar

18 A inserccedilatildeo de Heidegger na discussatildeo pelo sentido do conhecimento que apontamos aqui eacute diferente da

proposta de Crowell (2001) Grosso modo o argumento central de Crowell que atravessa todo o livro eacute a

negaccedilatildeo de uma ruptura radical da abordagem hermenecircutica de Heidegger ndash inclusive no projeto da

ontologia fundamental de Ser e Tempo - frente agrave fenomenologia transcendental de Husserl Crowell

reconhece que os dois projetos natildeo satildeo idecircnticos no entanto no interior do desenvolvimento de seu

pensamento Heidegger teria dado certa continuidade ao projeto husserliano na medida em que ainda pensa

no caraacuteter cientiacutefico da filosofia fenomenoloacutegica (ver pp 129-132) Nossa intenccedilatildeo natildeo eacute travar uma

polecircmica com Crowell pois perderiacuteamos a centralidade do tema de nossa dissertaccedilatildeo Sobre aquele tema

mais especiacutefico conferir tambeacutem Gadamer Verdade e Meacutetodo [260] que faz referecircncia a ele dizendo que

a problemaacutetica de Ser e Tempo natildeo escapa por completo agrave reflexatildeo transcendental Natildeo temos duacutevida de

que Heidegger estaacute comprometido com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do sentido do

conhecimento na medida em que teve profundo contato natildeo soacute com o pensamento neokantiano ndash sobretudo

atraveacutes de Rickert - mas tambeacutem com a fenomenologia de Husserl Ora ambas as correntes estavam

43

como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva (considerando o modo de concepccedilatildeo

originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal) e a introduccedilatildeo do elemento

hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com Heidegger a pergunta

fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do conhecimento e passou a

ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto o argumento central de

nosso segundo capiacutetulo eacute que a abordagem hermenecircutica de Heidegger que se daacute no

interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do

conhecimento ao sentido do ser

Aqui nos eacute necessaacuteria uma breve consideraccedilatildeo Eacute puacuteblica a preocupaccedilatildeo filosoacutefica

de Heidegger com a ontologia jaacute desde seu contato com o livro de Brentano Percurso

descrito pelo proacuteprio autor em Meu caminho para a fenomenologia (Mein Weg in die

Phaumlnomenologie 1963)

ldquoA partir de algumas indicaccedilotildees extraiacutedas de revistas filosoacuteficas tinha averiguado

que o modo de pensar de Husserl fora bastante influenciado por Franz Brentano

cuja tese de doutoramento intitulada Da muacuteltipla significaccedilatildeo do ente em

Aristoacuteteles (1862) tinha sido justamente desde 1907 o guia e o criteacuterio das

minhas primeiras e desajeitadas tentativas de penetrar na filosofia De uma forma

bastante imprecisa o que me movia era a seguinte reflexatildeo lsquose o ente se diz com

significados muacuteltiplos qual seraacute entatildeo o significado fundamental e condutor O

que significa serrsquordquo (HEIDEGGER 2009 p3)

Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido

de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a

teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo

do sentido de ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir

da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para

uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no

curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER (GA20) 2006 p122)19

o elemento hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave

profundamente engajadas com o problema do conhecimento Nosso argumento central ndash defendido no

primeiro capiacutetulo ndash eacute o de que acontece uma virada A abordagem hermenecircutica de Heidegger faz mudar

a questatildeo pelo sentido do conhecimento para a questatildeo do sentido do ser dos entes em geral Revelando

assim o caraacuteter derivado (de uma situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento Cf STEIN E

2008 4ed pp21-30 19 ldquoLa pregunta por el ser surge de la criacutetica inmanente al curso da la propia investigacioacuten

fenomenoloacutegicaresponder en parte a ella constituye el verdadeiro assunto de estas leccionesrdquo opcit p122

44

fenomenologia que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos

fenocircmenos em seu ser Seraacute essa a direccedilatildeo de nosso capiacutetulo

Nele ainda natildeo entraremos na obra central de nosso trabalho abordaremos algumas

preleccedilotildees entre os anos de 1919 e 192520 para expor como a partir da discussatildeo acerca

do sentido do conhecimento e do lugar proacuteprio agrave filosofia Heidegger se posiciona frente

agraves tentativas de pensamento dos Neokantianos de Dilthey e de Husserl Nossa intenccedilatildeo

natildeo eacute interpretar as referidas preleccedilotildees como processos evolutivos de pensamento de

nosso autor como que para esclarecer em termos de causa e efeito a publicaccedilatildeo posterior

ldquomais madurardquo de Ser e Tempo Mas antes destacar como as questotildees desses textos

acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a problemaacutetica cujo

desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927

I - Os limites da filosofia dos valores

No primeiro semestre do poacutes-guerra num contexto de recuperaccedilatildeo da

normalidade da vida cotidiana que obviamente se estendia ao ensino universitaacuterio ocorre

a preleccedilatildeo A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo (GA5657) tiacutetulo

uma das primeiras liccedilotildees do jovem professor em Friburgo em 1919 as quais pretendiam

desenvolver e solucionar parcialmente a ideia de ciecircncia que persegue uma posiccedilatildeo

metodoloacutegica genuiacutena natildeo desfigurada ou seja natildeo afetada por nenhuma teoria e livre

dos prejuiacutezos herdados Para tanto exigia-se voltar agrave esfera da simples consciecircncia

imediata da vida

ldquoA ideia cientiacutefica perseguida eacute tal que uma vez alcanccedilada uma posiccedilatildeo

metodoloacutegica verdadeiramente genuiacutena somos forccedilados a sair e dar um passo

aleacutem de noacutes mesmos para voltar metodologicamente naquela esfera que sempre

permanece alheia a problemaacutetica da ciecircncia que se pretende fundarrdquo21

(HEIDEGGER (GA5657) 2005p 3)

20 HEIDEGGER GA17 GA 61 GA63 GA 5657 e GA62 As traduccedilotildees utilizadas encontram-se na

bibliografia ao final do trabalho 21 ldquoLa idea cientiacutefica que se persigue es de tal naturaleza que una vez alcanzamos una posicioacuten

metodoloacutegica realmente genuina nos vemos obligados a salir y dar un paso maacutes allaacute de nosotros mismos

para volver metodoloacutegicamente sobre aquella esfera que siempre permanece extrantildea a la problemaacutetica maacutes

propia de la ciencia que se pretende fundarrdquo Opcitp3

45

Essa transformaccedilatildeo do meacutetodo natildeo eacute algo arbitraacuterio ou advindo de uma posiccedilatildeo

filosoacutefica mas ldquose evidencia como uma necessidade que se funda na natureza objetiva do

problema como tal e que responde agrave especiacutefica constituiccedilatildeo dos problemas da ciecircncia em

geralrdquo22 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p3) A ciecircncia e seus modelos teoacutericos

irrompem na consciecircncia imediata da vida e a transformam na medida em que trazem

uma nova atitude da consciecircncia a qual se desenvolve no caraacuteter dinacircmico e moacutevel da

vida do espiacuterito ldquoContudo essa irrupccedilatildeo da ideia de ciecircncia no contexto da consciecircncia

natural da vida soacute se daacute em um sentido primordial e radical no marco de uma filosofia

entendida nos termos de ciecircncia originaacuteriardquo23 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p4)

Aqui eacute possiacutevel observar natildeo apenas o mesmo vocabulaacuterio husserliano mas

tambeacutem a mesma tarefa reconduzir a filosofia ao seu lugar de ciecircncia originaacuteria

diferenciando-se dos outros tipos de ciecircncias (biologia fiacutesica psicologia histoacuteria

antropologia etc) Como indica Jeacutesus Adriaacuten Escudero em sua nota de apresentaccedilatildeo agrave

traduccedilatildeo no texto de 1919 eacute possiacutevel observar a linguagem filosoacutefica dos Neokantianos

de Baden (Windelband e Rickert) de Natorp a linguagem fenomenoloacutegica de Husserl e

talvez as primeiras formulaccedilotildees de uma linguagem proacutepria por exemplo Welten

(mundiar) ou das Wie (O como) Mas para noacutes o decisivo eacute notar que se os princiacutepios

que motivam essa investigaccedilatildeo inserem Heidegger no debate de sua eacutepoca (no contexto

da busca de uma filosofia propriamente cientiacutefica) poreacutem no curso de seu pensamento e

na anaacutelise das posiccedilotildees filosoacuteficas que intentam o mesmo objetivo a abordagem da

filosofia como ciecircncia originaacuteria recoloca a problemaacutetica no aspecto propriamente

hermenecircutico e natildeo teoacuterico da vida Se a filosofia eacute ciecircncia originaacuteria eacute a partir desse

aspecto primaacuterio que ela deve se movimentar

Em A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo o modo de

reconduccedilatildeo a essa originariedade jaacute natildeo obedeceraacute aos mesmos moldes da fenomenologia

husserliana Jaacute nessa primeira liccedilatildeo Heidegger nos propotildee uma reconduccedilatildeo da filosofia

(ao seu lugar basilar de toda e qualquer ciecircncia teoacuterica e derivada) que eacute a reconduccedilatildeo agrave

22 ldquomaacutes bien se evidenciaraacute como una necesidad que se funda en la naturaleza objetiva del problema como

tal y que responde a la especiacutefica constitucioacuten de los problemas de la ciencia en generalrdquo Op cit p3 23 ldquoSin embargo esta irrupcioacuten de la idea de ciencia en el contexto de la conciencia natural de la vida soacutelo

se da en un sentido primordial y radical en el marco de una filosofiacutea entendida en teacuterminos de ciencia

originariardquo Opcitp4

46

vida humana na sua imediatidade como fenocircmeno primaacuterio e fundamental Mesmo que

natildeo estejam aiacute desenvolvidas eacute claro as posiccedilotildees de Ser e Tempo como por exemplo o

ldquoser-em-o mundo em geral como constituiccedilatildeo fundamental do Daseinrdquo teses expostas e

desenvolvidas principalmente nos sect12 e 13 da obra de 1927 jaacute era possiacutevel encontrar

alguns elementos da hermenecircutica da facticidade Em 1919 a direccedilatildeo dada a uma filosofia

era a de que devia ocupar-se da vida e assim a proacutepria renovaccedilatildeo da universidade naquele

contexto de reconstruccedilatildeo do poacutes-guerra ldquoimplica[va] um renascimento da autecircntica

consciecircncia cientiacutefica e de seus laccedilos com a vidardquo24 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p

5) Indicaccedilatildeo que se articula com as liccedilotildees posteriores do autor mas que ganha seu

esclarecimento radical em 1923 no Relatoacuterio Natorp na medida em que a apropriaccedilatildeo da

filosofia aristoteacutelica por Heidegger mostra que a vivecircncia e sua relaccedilatildeo de sentido com

todo ente ocorre na ocupaccedilatildeo praacutetica como condiccedilatildeo primaacuteria de conhecimento com o

mundo condiccedilatildeo essa que coincide com a situaccedilatildeo hermenecircutica de toda ontologia

Antes de expormos as linhas gerais do desenvolvimento do texto eacute necessaacuterio

tentar esclarecer o que Heidegger quer dizer com a expressatildeo ldquoconcepccedilatildeo de mundordquo

(Weltanschauung) Para a filosofia segundo nosso autor visatildeo de mundo cosmovisatildeo

ou concepccedilatildeo de mundo natildeo satildeo termos que funcionam como uma direccedilatildeo de

comportamento no interior do mundo direccedilatildeo essa justificada desenvolvida e capaz de

orientar os seres humanos Tambeacutem natildeo oferecem uma visatildeo teoacuterica geral da histoacuteria e

da realidade a partir da qual as ciecircncias pudessem desenvolver-se Assumindo uma

perspectiva bem geral esses satildeo os problemas das filosofias de Windelband e Rickert (e

em certa medida tambeacutem os de Dilthey) contra os quais Heidegger vai se opor nessa

liccedilatildeo Pois o que aiacute estaacute em jogo natildeo eacute a postulaccedilatildeo teoacuterica do que eacute a vida histoacuterica mas

a compreensatildeo do acircmbito fundamental da realidade imediata da vida que proporciona

algo como ldquovisatildeo de mundordquo E desse modo a relaccedilatildeo entre ldquofilosofiardquo e o ldquoproblema

da concepccedilatildeo de mundordquo na conjunccedilatildeo expressa ldquoerdquo natildeo significa a relaccedilatildeo de duas

esferas diferentes mas sim o mesmo acircmbito pois a concepccedilatildeo de mundo potildee em

evidecircncia a natureza e a busca da filosofia ldquoconcepccedilatildeo de mundo como tarefa da

24 ldquoLa renovacioacuten de la universidad implica un renacimiento de la auteacutentica conciencia cientiacutefica y de sus

lazos con la vidardquo Opcitp5

47

filosofia quer dizer uma consideraccedilatildeo histoacuterica da maneira em que a filosofia resolveu

em cada caso esta tarefardquo25 (HEIDEGGER (GA5657) 2005p9)

Como sugere a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Heidegger considera que a

fundamentaccedilatildeo sem preconceitos da filosofia como ciecircncia originaacuteria deve desenvolver-

se a partir de um processo metodoloacutegico ldquoA ideia de ciecircncia exige implicitamente um

desenvolvimento metodoloacutegico dos problemas e nos coloca a tarefa da explicaccedilatildeo

preliminar do verdadeiro problema [que nos ocupa]26rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005

p6) Essa explicaccedilatildeo se desenvolve natildeo como hipoacutetese a ser demonstrada mas a partir

da anaacutelise das filosofias precedentes e de suas preconcepccedilotildees que podem distorcer o tema

da investigaccedilatildeo como elas se aproximaram da vida e como se relacionam com a noccedilatildeo

de ciecircncia

Como mostramos anteriormente jaacute na escola de Baden influenciado pela filosofia

dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade dos juiacutezos

cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de conciliar

ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) Para a escola de Baden as

leis naturais levam agrave explicaccedilatildeo mas eacute a norma de um valor ideal a condiccedilatildeo de um

pensamento verdadeiro Rickert retoma as consideraccedilotildees de Windelband e potildee o

problema em uma base filosoacutefica radical como instrumento metodoloacutegico Entre os sectsect

de 6 e 9 do texto A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo jaacute esboccedilando

algumas consequecircncias problemaacuteticas Heidegger expotildee os elementos principais das

teorias desses autores E se pergunta se aquele meacutetodo que tem a pretensatildeo de clarificar

a relaccedilatildeo entre filosofia e visatildeo de mundo poderia se tornar um meacutetodo seguro para a

realizaccedilatildeo da filosofia como ciecircncia originaacuteria A partir do sect 10 Heidegger inicia a criacutetica

propriamente dita ao meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico do Neokantismo de Baden Um dos alvos

de sua investigaccedilatildeo foi como a ldquodoaccedilatildeo idealrdquo elemento central do meacutetodo na medida

em que eacute o conteuacutedo com pretensatildeo de necessidade e universalidade dos juiacutezos acaba por

revelar o desconhecimento da problemaacutetica acerca da ciecircncia originaacuteria por essa escola

Para tanto Heidegger faz ldquoa pergunta decisiva quais satildeo as formas e normas necessaacuterias

25 ldquoConcepcioacuten del mundo como tarea de la filosofiacutea es decir una consideracioacuten histoacuterica de la manera en

que la filosofiacutea ha resuelto en cada caso esta tareardquo Opcitp9 26 ldquoLa idea de ciencia exige impliacutecitamente un desarrollo metodoloacutegico de los problemas y nos plantea la

tarea de una explicacioacuten preliminar del verdadero problema [que nos ocupa]rdquo Opcit p6

48

que permitem ao pensamento alcanccedilar a validez universal e assim cumprir o propoacutesito

da verdade27rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p50)

A anaacutelise eacute feita em dois momentos a) Consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo b)

aplicaccedilatildeo do meacutetodo

Para a consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo o importante eacute delinear o aspecto

fundamental que sustenta seus paracircmetros Heidegger aponta que para a escola de Baden

as determinaccedilotildees necessaacuterias do pensamento satildeo aquelas que configuram o pensamento

agrave finalidade ideal (validez universal) como condiccedilatildeo de verdade pois o pensamento com

valor deve responder a um dever-ser Pois bem de posse desse elemento basilar eacute na

aplicaccedilatildeo do meacutetodo que se revelaratildeo os problemas

A aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico consiste em a partir do material

fornecido pelos processos psiacutequicos dirigir a visatildeo ao aspecto ideal do pensamento e a

partir daiacute determinando o proacuteprio material ordenando seus elementos em funccedilatildeo de seu

aspecto ideal Portanto ldquoO nuacutecleo de todo o meacutetodo baseia-se no ideal do pensamento

mais precisamente em trazer agrave presenccedila a doaccedilatildeo do ideal28rdquo (HEIDEGGER (GA5657)

2005 p51) Em suma o ideal eacute normativo e dirige a consciecircncia agrave finalidade do

pensamento

ldquoEstamos aqui perante o mesmo problema da circularidade O meacutetodo criacutetico-

teleoloacutegico afirmaria poder determinar o ideal do pensamento isto eacute a verdade

a partir dos pensamentos verdadeiros no entanto o que tenho ante mim satildeo

pensamentos verdadeiros (ocorrecircncias factuais no mundo) mas natildeo a verdade

pois esta eacute um ideal Por outro lado para ter pensamentos verdadeiros ante mim

eu preciso selecionar entre os pensamentos aqueles que satildeo verdadeiros o que

novamente eu soacute posso fazer se jaacute tenho de antematildeo o ideal a verdaderdquo

(RABELO 2013 p28)

A partir daiacute em seu estilo muitas vezes categoacuterico Heidegger demonstra ser

supeacuterfluo o sentido do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e o acusa de em uacuteltima instacircncia nem

mesmo conseguir esclarecer seus pressupostos deixando obscuras questotildees como ldquoa

doaccedilatildeo ideal possibilita uma relaccedilatildeo de apreciaccedilatildeo e de seleccedilatildeo com o material dado mas

27 ldquoAhora surge la pregunta decisiva iquestcuaacuteles son las formas y normas necesarias que permiten al

pensamiento alcanzar la validez universal y cumplir asiacute con el fin de la verdadrdquo Opcitp50

28 ldquoEl nuacutecleo de todo el meacutetodo descansa en el ideal del pensamiento con mayor precisioacuten en traer a la

presencia la donacioacuten del idealrdquo Opcitp51

49

como trago agrave minha consciecircncia o ideal de pensamentordquo ldquoo que significa validez

universal para esse pensamentordquo ldquoO que significa ser verdadeiro para o pensamento

para que ele seja universalmente vaacutelidordquo Nas palavras de nosso autor

ldquoA anaacutelise estrutural do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico mostra que este meacutetodo

pressupotildee em seu sentido mais proacuteprio e como condiccedilatildeo de sua proacutepria

possibilidade justamente aquilo que deve alcanccedilar Natildeo pode encontrar em si

mesmo seu proacuteprio fundamento posto que o ideal jaacute tem que estar dado como

criteacuterio de valoraccedilatildeo criacutetica da norma para levar a cabo a tarefa impliacutecita no

meacutetodordquo29 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p52)

Se a anaacutelise da natureza e aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico fizeram

despontar a primeira criacutetica acerca de sua impossibilidade Heidegger aprofunda sua

criacutetica tendo em vista o aspecto central de sua liccedilatildeo E portanto aponta o

desconhecimento acerca da problemaacutetica da ciecircncia originaacuteria por essa escola

ldquoJaacute vimos que o movimento do meacutetodo mais exatamente a implementaccedilatildeo do

mesmo inclui o ter presente o ideal o fim o dever-ser O ideal tem

evidentemente um conteuacutedo umas determinaccedilotildees substantivas Contudo eacute um

ideal natildeo eacute um conteuacutedo real e efetivo senatildeo um modo de dever-ser Frente a

todo ser o caraacuteter de obrigatoriedade [inerente ao dever-ser] encerra o momento

da idealidade e da validez supra-empiacuterica Assim pois o conceito do meacutetodo

teleoloacutegico pressupotildee algo mais essencial e algo essencialmente diferente a

doaccedilatildeo do dever ser e se tratando do dever absoluto entatildeo falariacuteamos da

objetividade originaacuteriardquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p53)30

A partir da constataccedilatildeo dessas implicaccedilotildees do meacutetodo Heidegger pergunta qual

eacute o correlato objetivo do dever-ser Em outras palavras qual sua orientaccedilatildeo vital Isso

permanece obscuro e mais ainda que a inclusatildeo do elemento do dever-ser no meacutetodo

aparentemente natildeo se mostre como um vieacutes meramente teoacuterico (na medida em que se

29 ldquoEl anaacutelisis estructural del meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico muestra que este meacutetodo presupone en su sentido

maacutes propio y como condicioacuten de su propia posibilidad justamente aquello que debe conseguir No puede

encontrar en siacute mismo su propio fundamento puesto que el ideal ya tiene que estar dado como criterio de

valoracioacuten criacutetica de la norma para llevar a cabo la tarea impliacutecita en el meacutetodordquo Opcitp52 30 ldquoYa vimos que la puesta en marcha del meacutetodo maacutes exactamente la implementacioacuten del mismo incluye

el tener presente el ideal el fin el deber-ser El ideal tiene evidentemente un contenido unas

determinaciones sustantivas Sin embargo es un ideal no es un contenido real y efectivo sino un modo del

deber- ser Frente a todo ser el caraacutecter de obligatoriedad [inherente al deber-ser] encierra el momento de

la idealidad y de la validez supraempiacuterica Asiacute pues en el concepto del meacutetodo teleoloacutegico se presupone

algo esencialmente maacutes y algo esencialmente diferente la donacioacuten del deber-ser y si se tratara del deber

absoluto entonces hablariacuteamos de la objetualidad originariardquo Opcitp53

50

trata da razatildeo praacutetica) natildeo eacute possiacutevel responder agrave demanda necessaacuteria de uma ciecircncia

originaacuteria pois eacute inconciliaacutevel com a urgecircncia da vida faacutetica

Nesse sentido nos parece que na filosofia criacutetica-transcendental de Rickert o

acesso aos elementos decisivos do meacutetodo em uacuteltima instacircncia eacute realizado a partir das

teorias das ciecircncias positivas Entatildeo a filosofia estaacute obrigada a se posicionar frente agraves

teorias dessas ciecircncias e natildeo propriamente a partir da orientaccedilatildeo vital O

desconhecimento acerca da filosofia como ciecircncia originaacuteria se torna aqui patente pois

ao se revelar que satildeo as teorias dessas ciecircncias que fornecem os elementos para os juiacutezos

valorativos relacionados ao dever-ser a filosofia se torna delas dependente e parece nelas

encontrar ateacute mesmo sua condiccedilatildeo de possibilidade

Heidegger ainda aponta em sua criacutetica um problema que decorre da tentativa de

estabelecer uma relaccedilatildeo entre valor judicativo e dever-ser Para ele na vivecircncia imediata

da vida as relaccedilotildees valorativas natildeo encontram a menor correspondecircncia com o dever-ser

Ouccedilamos as suas palavras

ldquoPela manhatilde entro em meu estuacutedio o sol banha meus livros etc estou alegre

Esta alegria natildeo responde em nenhum caso a um dever-ser A lsquoalegriarsquo como tal

natildeo se oferece a mim em uma vivecircncia marcada pelo dever-ser Devo trabalhar

devo sair para uma caminhada duas motivaccedilotildees duas possiacuteveis razotildees que em

si mesmas natildeo formam parte de meu sentimento de alegria senatildeo que o

pressupotildee Existe portanto um tipo de vivecircncia em que me sinto alegre em que

me daacute algo que tem valor como talrdquo 31(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)

A experiecircncia do valor eacute intransitiva natildeo um juiacutezo mas em seu sentido imanente

ldquoo meacutetodo teleoloacutegico implica indubitavelmente o momento da vivecircncia do dever-serrdquo

(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)32

Ateacute agora o que foi analisado foi o significado do meacutetodo criacutetico- teleoloacutegico e

suas implicaccedilotildees que apontaram para a existecircncia de fenocircmenos mais originaacuterios que

passam desapercebidos aos defensores desse meacutetodo E se o meacutetodo loacutegico-teleoloacutegico

31 ldquoiquestPero se me da todo valor como un deber-ser Evidentemente no Yo experimento las relaciones

valorati- vas sin que intervenga el maacutes miacutenimo momento del deber-ser Por la mantildeana entro en mi estudio

el sol bantildea mis libros etceacutetera estoy alegre Esta alegriacutea no responde en ninguacuten caso a un deber-ser La

laquoalegriacutearaquo como tal no se me da en una vivencia marcada por el deber- ser Debo trabajar debo salir de

paseo dos motivaciones dos posibles razones que en siacute mismas no forman parte de mi sentimiento de

alegriacutea sino que lo pre-supo- nen Existe por tanto un tipo de vivencia en el que me siento alegre en el

que se me da algo que tiene valor como talrdquo Opcitp55 32 ldquoEl meacutetodo teleoloacutegico implica indudablemente el momento de la vivencia del deber-serrdquo Opcitp55

51

estabelece a relaccedilatildeo necessaacuteria entre valor e dever-ser acarretando todas as possiacuteveis

criacuteticas jaacute expostas Heidegger natildeo deixa de reconhecer

ldquoUma coisa eacute evidente Rickert detectou um fenocircmeno significativo quando

identificou o objeto do conhecimento como um dever-ser e o desvencilhou dos

mecanismos psiacutequicos o fenocircmeno da motivaccedilatildeo um fenocircmeno que encontra

seu significado primaacuterio tanto nos problemas do conhecimento como em outros

acircmbitos Uma coisa eacute declarar-algo-como-valor [Fuumlr-Wert-Erklaumlren] e outra

muito distinta eacute tomar-algo-por-um-valor [Wertnehmen] Este tomar-algo-como-

um-valor se pode caracterizar como um fenocircmeno originaacuterio como uma

constituiccedilatildeo da vida em si e para si no entanto o declarar-algo-como-um valor

foi visto como algo derivado algo fundado na esfera teoreacutetica e esse mesmo

fenocircmeno teoreacutetico eacute um elemento constitutivo da vida vivida em si mesma

Pressupotildee levantar o veacuteu teoreacutetico do caraacuteter valorativo como tal A estratificaccedilatildeo

precisa desse fenocircmeno natildeo nos interessa nesse momentordquo

(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p57)33

O que estaacute em jogo aqui eacute a relaccedilatildeo entre verdade e valor pois para Rickert

ldquodistinto do processo psiacutequico real uma ocorrecircncia natural que poderia ser tratada

causalmente destaca-se a legalidade ideal do pensar verdadeiro que se deve obedecer

uma vez que se queira o ideal da verdaderdquo (RABELO 2013 p26) Desse modo algo eacute

capaz de ser analisado como verdadeiro atraveacutes dos valores atribuiacutedos teoricamente

(atraveacutes da anaacutelise do juiacutezo) ao seu material Ou seja a verdade eacute garantida na anaacutelise

judicativa que declara-algo-como-valor Por exemplo a distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na

realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor (Wert) segundo Rickert levaria

a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo de conceitos (Begriffsbildung)

e que natildeo se trata de um conhecimento no campo ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto

pelo conceito determinado de maneira formal no espaccedilo loacutegico-axioloacutegico Portanto

ldquoUma coisa eacute ldquoexplicar por valorrdquo (fuumlr-Wert-erklaumlren) outra eacute ldquotomar-por-valorrdquo

(wertnehmen) O primeiro eacute uma construccedilatildeo teoreacutetica o segundo uma vivecircncia

Estaacute em jogo aqui uma diferenccedila que se insinua na liacutengua alematilde a partir da

33 ldquoRickert detectoacute un fenoacutemeno significativo cuando identificoacute el objeto del conocimiento como un deber-

ser y lo deslindoacute de los mecanismos psiacutequicos el fenoacutemeno de la motivacioacuten un fenoacutemeno que encuentra

su significado primario tanto en el problema del conocimiento como en otros aacutembitos Una cosa es declarar-

algo-como-un-valor [Fuumlr-Wert- Erklaumlren] y otra muy distinta tomar-algo-por-un-valor [Wertnehmen]

Este tomar-algo-por-un-valor se puede caracterizar como un fenoacutemeno originario como una constitucioacuten

de la vida en y para siacute en cambio el decla- rar-algo-como-un-valor se ha de ver como algo derivado como

algo fundado en la esfera teoreacutetica9 y ese mismo fenoacutemeno teoreacutetico es un elemento constitutivo de la vida

vivida en siacute misma Presupone levantar el velo teoreacutetico del caraacutecter valorativo como tal La estratificacioacuten

precisa de este fenoacutemeno no nos interesa en estos momentosrdquo Opcitp57 Essa estratificaccedilatildeo a qual

Heidegger se refere jaacute indica em suas primeiras liccedilotildees o desdobramento posterior acerca da criacutetica agrave

primazia que a filosofia oferece a teoria em detrimento da compreensatildeo praacutetica

52

expressatildeo perceber wahrnehmen literalmente tomar-por-verdadeiro No mesmo

sentido imediato em que aquilo que me aparece na percepccedilatildeo sensiacutevel eacute tomado

como estando aiacute ele mesmo sem a necessidade de uma reflexatildeo aqui quer-se

saber se algo vivenciado eacute no proacuteprio vivenciar tomado como algo valoroso se

eacute experienciado enquanto valoroso ou se posteriormente lhe eacute adicionada esta

referecircncia a valoresrdquo (RABELO 2013 p27)

Desse modo para Rickert verdade e valor judicativo (teoacuterico) se comungam mas

essa comunhatildeo para Heidegger natildeo passa de uma constituiccedilatildeo metodoloacutegica externa e

derivada de uma filosofia teoacuterica Se para Rickert o tomar-algo-como-um-valor natildeo tem

ldquovalor de verdaderdquo como o declarar-algo-como-valor Para Heidegger a verdade do ser

(ser ndashverdadeiro) ou o ldquotomar-por-verdadeirordquo (a vivecircncia) independe do valor e nada

tem a ver com o dever-ser

ldquoDaacute-se o ser-verdadeiro como um valor De maneira alguma e nem se daacute no

segundo caso do juiacutezo histoacuterico [acerca da morte de Napoleatildeo I na ilha de Santa

Elena] Contudo o conteuacutedo objetivo desse juiacutezo tem a forma de um valor no

sentido de [que remete a algo] lsquohistoricamente significativorsquo um novo fenocircmeno

lsquovalorativorsquo que natildeo afeta o ser-verdadeiro como tal ao lanccedilar um papel

metodoloacutegico na constituiccedilatildeo da verdade histoacuterica O ser-verdadeiro (ἀ-λήθεια)

como tal natildeo lsquovalersquo Na alegria como alegria assumo valores na verdade

simplesmente vivo Natildeo apreendo o ser-verdadeiro na e atraveacutes de uma assunccedilatildeo

de valores34rdquo (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p58)

Essas uacuteltimas consideraccedilotildees revelam para Heidegger que o meacutetodo teleoloacutegico

estaacute impregnado de pressuposiccedilotildees pois a cada vez ldquoos fenocircmenos do dever-ser do valor

da assunccedilatildeo de um valor da pergunta se a verdade eacute um valor que descansa em uma

valoraccedilatildeo originaacuteria se fundam em uma determinaccedilatildeo valorativa que se realiza

subsequentementerdquo35 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p62) E essas pressuposiccedilotildees

trazem agrave vista o privileacutegio teoreacutetico dessa filosofia

34 ldquoiquestSe da el ser-verdadero como un valor De ninguna manera y tampoco se da en el segundo caso del

juicio histoacuterico [acerca de la muerte de Napoleoacuten I en la isla de Santa Elena] Sin embargo el contenido

objetivo de este juicio tiene la forma de un valor en el sentido de [que remite a algo] laquohistoacutericamente

significativoraquo un nuevo fenoacutemeno laquovalorativoraquo que no afecta al ser-verdadero como tal si bien juega un

papel metodoloacutegico en la constitucioacuten de la verdad histoacuterica El ser-verdadero (ἀ-λήθεια) como tal no

laquovaleraquo En la alegriacutea como alegriacutea asumo valores en la verdad como verdad simplemente vivo No

aprehendo el ser-verdadero en y a traveacutes de una asuncioacuten de valoresrdquo Opcitp58

35 ldquoAl ampliar el anaacutelisis salieron a escena nuevos presupuestos y pusieron de relieve que el meacutetodo

teleoloacutegico estaacute cargado de presuposiciones los fenoacutemenos del deber-ser de la donacioacuten del deber-ser del

valor de la asuncioacuten de un valor de la pregunta de si la verdad es un valor que descansa en uma valoracioacuten

originaria o de si se funda en una determinacioacuten valorativa que se realiza con lsquoposterioridadrsquordquo Opcitp62

53

ldquoO privileacutegio outorgado ao teoreacutetico repousa na convicccedilatildeo de que o teoreacutetico

representa o estrato baacutesico e fundamental que de alguma maneira funda todas as

esferas restantes Isso se potildee manifesto quando eacute falado por exemplo da

lsquoverdadersquo eacutetica artiacutestica ou religiosa Se diz que o teoreacutetico tem todos os demais

acircmbitos valorativos e eacute capaz de fazer isso na medida em que o teoreacutetico mesmo

se concebe como um valor Eacute necessaacuterio romper este primado do teoacuterico mas natildeo

com a finalidade de proclamar a primazia da praacutetica ou introduzir um outro

elemento que mostra os problemas a partir de uma nova perspectiva mas porque

o teoreacutetico mesmo enquanto tal remete a algo preacute -teoreacuteticordquo 36(HEIDEGGER

(GA5657) 2005 p70)

Para os neokantianos de Baden o ideal absoluto como medida da realidade

empiacuterica como condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do pensamento verdadeiro e ainda como

condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do significado histoacuterico reveste-se da transcendentalidade em

funccedilatildeo do rigor cientiacutefico Para eles o mundo do ser natildeo pode ser confundido com o

mundo do valor pois satildeo os valores como elementos transcendentais que orientam a

constituiccedilatildeo do indiviacuteduo histoacuterico de modo loacutegico A realidade - o espaccedilo ontoloacutegico ndash

estaacute condicionada agrave teoria e em uacuteltima instacircncia o proacuteprio teoreacutetico eacute concebido como

valor Inversatildeo que Heidegger detecta como propriamente afastada do acircmbito imediato

da vida e que como meacutetodo portanto natildeo pode fundar-se como ciecircncia originaacuteria

II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt37 originaacuterio

Diferentemente de Windelband e Rickert que subordinavam a verdade agrave

valoraccedilatildeo em funccedilatildeo do juiacutezo jaacute em 1919 Heidegger indicava a derivaccedilatildeo do teoreacutetico

de uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Apoacutes a investigaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-

36 ldquoAsimismo el privilegio otorgado a lo teoreacutetico reposa en la conviccioacuten de que lo teoreacutetico representa el

estrato baacutesico y fundamental que de alguna manera funda todas las esferas restantes Esto se pone de

manifiesto cuando uno habla por ejemplo de la laquoverdadraquo eacutetica artiacutestica o religiosa Se dice que lo teoreacutetico

tintildee todos los demaacutes aacutembitos valorativos y es capaz de hacer eso en la medida en que lo teoreacutetico mismo

se concibe como un valor Se ha de romper con esta primaciacutea de lo teoreacutetico pero no con el propoacutesito de

proclamar un primado de lo praacutectico o de introducir otro elemento que muestre los problemas desde una

nueva perspectiva sino porque lo teoreacutetico mismo y en cuanto tal remite a algo pre-teoreacuteticordquo Opcitp70

37 Como o verbo ldquodarrdquo em portuguecircs o ldquogebenrdquo em alematildeo pode ser utilizado como verbo bitransitivo no

sentido de dar algo a algueacutem (Ex ldquoIch gebe dir mein Buchrdquo ldquoEu te dou o meu livrordquo) Mas no caso do ldquoes

gibtrdquo eacute utilizado no sentido do verbo ldquohaverrdquo ou ldquoexistirrdquo como por exemplo ldquoEs gibt viele Woumlrter ldquoHaacute

muitas palavrasrdquo ou ldquoExistem muitas palavras) Portanto pensar num ldquoes gibtrdquo originaacuterio eacute referir-se agrave

existecircncia originaacuteria das coisas em outras palavras no modo de aparecimento do que haacute do existente em

seu sentido primaacuterio preacutevio a toda determinaccedilatildeo transitiva possiacutevel nos moldes gramaticais

54

teleoloacutegico em A ideacuteia da filosofia e o problema da visatildeo de mundo o autor apresenta

essa instacircncia primaacuteria como correlata a um ldquoes gibtrdquo originaacuterio haacute e o que haacute eacute mundo

ou melhor um dar-se mundo

Aqui reside a primeira exposiccedilatildeo de nosso argumento A abordagem hermenecircutica

de Heidegger no interior da fenomenologia foi decisiva para o acesso agrave questatildeo do sentido

do ser e no desenvolvimento da referida preleccedilatildeo esse movimento se torna patente

A criacutetica de Heidegger agrave teoria do conhecimento e agraves implicaccedilotildees dessa postura

propriamente teoacuterica em relaccedilatildeo agrave verdade conduz o autor agrave correlaccedilatildeo entre as vivecircncias

e a significaccedilatildeo fenomecircnica como cooriginaacuterias da imersatildeo num mundo que haacute se daacute

existe como mundo circundante As pressuposiccedilotildees da teoria do conhecimento e suas

postulaccedilotildees acerca do ldquosujeitordquo reverberam em uma seacuterie de problemas derivados que

nada dizem acerca das vivecircncias Assim questotildees Como eacute possiacutevel o acesso agrave realidade

exterior Em que medida minha vivecircncia subjetiva alcanccedila a vivecircncia de outro

sujeito Como passar da esfera subjetiva aos dados sensoriais do mundo Como

passar da esfera subjetiva ao conhecimento objetivo satildeo problematizaccedilotildees derivadas

da primazia teoacuterica dada pela filosofia e pelas ciecircncias que ignoram por completo que o

viver do mundo circundante natildeo eacute uma contingecircncia () somente em ocasiotildees

excepcionais estamos instalados em uma atitude teoreacutetica38 (HEIDEGGER(GA5657)

2005 p106)

Lembremos que o que estaacute em questatildeo nessa preleccedilatildeo eacute em que medida a filosofia

pode ser considerada como ciecircncia originaacuteria e qual eacute o seu modo de relaccedilatildeo com a visatildeo

de mundo Nesse sentido a filosofia se mostra como aquela ciecircncia que deve se afastar de

qualquer posiccedilatildeo preacutevia e assim dizer que o viver do mundo circundante natildeo eacute uma

contingecircncia eacute reconhecer aquilo que todo posicionamento teoacuterico quer a cada vez

afastar mas eacute em uacuteltima medida a condiccedilatildeo de possibilidade de sua proacutepria realizaccedilatildeo

teoacuterica Com outras palavras a possibilidade do conhecimento estaacute imersa em bases que

natildeo satildeo elas proacuteprias teoacutericas E nesse sentido quando uma ou outra teoria filosoacutefica

pretende investigar a possibilidade do conhecimento partindo de pressuposiccedilotildees teoacutericas

38 ldquoEl vivir del mundo circundante no es una contingencia sino que radica en la esencia de la vida en y para

siacute por el contrario soacutelo en ocasiones excepcionales estamos instalados en una actitud teoreacuteticardquo

Opcitp106

55

acaba por afundar-se em falsos problemas como ldquoa realidade do mundordquo e ldquoo acesso a

essa realidaderdquo Discussotildees vazias pois o mundo em sua realidade histoacuterica eacute o dar-se

originaacuterio e prescinde de toda e qualquer teorizaccedilatildeo

Na leitura de Heidegger o neokantismo decompotildee o acircmbito originaacuterio da

vivecircncia em conceitos teoacutericos que natildeo formam mais uma totalidade pois a

desvivifica transformando-a num objeto a-histoacuterico e portanto sem significado

O mundar (welten) soacute eacute apreensiacutevel pela visatildeo fenomenoloacutegica que ainda natildeo estaacute

contaminada pelos pressupostos teoreacuteticos que tornam essa experiecircncia uma

relaccedilatildeo objetificante () Heidegger se contrapotildee agrave metodologia teoreacutetica que

pretende objetificar e descrever as vivecircncias mas compreender e apreender as

conexotildees de significado em que jaacute se estaacute submerso A fenomenologia pretende

manifestar isso que se daacute em um soacute golpe o mundo circundante (Umweltliche)

caracteriacutestico do vivenciar primordial(WU R2010 p185)

Mas se a compartimentaccedilatildeo da realidade realizada pelas teorias filosoacuteficas recai

em discussotildees vazias e a vivecircncia primordial prescinde de conceitos teoacutericos isso natildeo

apontaria para um empirismo ou um realismo como possibilidades da filosofia A

filosofia eacute ainda busca e busca originaacuteria Nesse sentido o acesso fenomenoloacutegico ao

mundo circundante orientado pela proacutepria coisa na intuiccedilatildeo imediata eacute para Heidegger

o modo de abrir ldquocientificamenterdquo a esfera da vivecircncia resguardando a orientaccedilatildeo agrave vida

sem qualquer teoria preacutevia

O rigor da cientificidade cultivada na fenomenologia cobra sentido a partir

dessa atitude fundamental e natildeo se pode comparar com o rigor das ciecircncias

derivadas e natildeo originaacuterias Ao mesmo tempo resulta claro porque o problema do

meacutetodo joga um papel central na fenomenologia como em nenhuma outra ciecircncia

() Para o problema que nos ocupa a atitude fundamental da fenomenologia

aponta em uma direccedilatildeo decisiva natildeo construir um meacutetodo desde fora ou desde

acima natildeo idear um novo caminho teoreacutetico por meio de reflexotildees dialeacuteticasrdquo39

(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p133)

Desde o iniacutecio da preleccedilatildeo Heidegger estaacute em busca de um meacutetodo capaz de

alcanccedilar o primaacuterio que estaria na base de qualquer conhecimento Nesse sentido a

39 ldquoEl laquorigorraquo de la cientificidad cultivada en la fenomenologiacutea cobra sentido a partir de esta actitud

fundamental y no se puede comparar con el laquorigorraquo de las ciencias derivadas y no originarias Al mismo

tiempo resulta claro por queacute el problema del meacutetodo juega un papel tan central en la fenomenologiacutea como

en ninguna otra ciencia (Por esta razoacuten todo este curso gira realmente en torno a un problema

metodoloacutegico) Para el problema que nos ocupa la actitud fundamental de la fenomenologiacutea apunta en una

direccioacuten decisiva no construir un meacutetodo desde fuera o desde arriba no idear un nuevo camino teoreacutetico

por medio de reflexiones dialeacutecticasrdquo Opcit p133

56

fenomenologia como retorno agraves coisas mesmas se volta ao dar-se originaacuterio das coisas e

eacute atraveacutes delas que o meacutetodo pode vir a ser desenvolvido Ainda em 1919 natildeo foi exposta

em linhas precisas a fenomenologia como meacutetodo indicativo-formal elemento decisivo

no interior da fenomenologia-hermenecircutica de Heidegger O que iremos abordar mais

adiante

A tentativa de orientar-se pelo dado na vivecircncia pelo que eacute como eacute no mundo

circundante se afasta portanto de qualquer objetificaccedilatildeo A fenomenologia como

meacutetodo eacute a possibilidade de compreensatildeo dos significados que nos vem ao encontro no

mundo circundante e histoacuterico no qual jaacute se estaacute sempre imerso Mas se Heidegger

apresenta a fenomenologia como o meacutetodo que alcanccedila o que vem ao encontro sem

qualquer preacutevia teoria esse acesso natildeo se daacute segundo os mesmos paracircmetros de seu

mestre Husserl

Como vimos na fenomenologia husserliana o modo de aparecimento do

fenocircmeno eacute sempre uma doaccedilatildeo de significado mas o acesso aos fenocircmenos eacute sempre a

partir da anaacutelise dos atos intencionais das vivecircncias na consciecircncia Heidegger recusa o

pressuposto da consciecircncia e pretende que a doaccedilatildeo significativa seja originaacuteria da

vivecircncia imersa no mundo No uacuteltimo momento da preleccedilatildeo de 1919 o autor apresenta

o que seria cooriginaacuteria de qualquer orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica e base de qualquer

ciecircncia teoacuterica a intuiccedilatildeo hermenecircutica Assim a vivecircncia que se apropria do vivido eacute

a intuiccedilatildeo compreensiva a intuiccedilatildeo hermenecircutica () A universalidade do significado

das palavras assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia

vivida40 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 pp141-142) Ou seja a significaccedilatildeo

gramaticalmente revestida natildeo aponta para algo essencial apreendido no ato de

consciecircncia (como compreende Husserl) mas a significaccedilatildeo vivida no mundo

circundante

O princiacutepio dos princiacutepios husserlianos tudo o que se daacute originariamente na

intuiccedilatildeo [] haacute que tomaacute-lo simplesmente como se daacute (Husserl Ideen apud Heidegger

40 ldquoLa vivencia que se apropia de lo vivido es la intuicioacuten comprensiva la intuicioacuten hermeneacuteutica la

formacioacuten originariamente fenomenoloacutegica que vuelve hacia atraacutes mediante retroconceptos y que se

anticipa con ayuda de preconceptos y de la que queda excluida toda posicioacuten teoreacutetico-objetivante y

trascendente La universalidad del significado de las palabras sentildeala primariamente algo originario el

caraacutecter mundano de la vivencia vividardquo Opcitpp141142

57

(GA5657) 2005 p132) eacute dado no interior das conexotildees de significados no es gibt

originaacuterio no mundo que se daacute cooriginariamente agraves proacuteprias vivecircncias

Para Heidegger o uacutenico modo de apreender essa vivecircncia originaacuteria eacute retroceder

ao preacute-teoacuterico por uma abordagem fenomenoloacutegica que faz com que o mundar

do mundo se manifeste enquanto tal Alguns anos mais tarde isso constituiria o

nuacutecleo da ontologia fundamental na perspectiva da temporalidade cujo objetivo

de criacutetica natildeo seria mais de maneira tatildeo detida o neokantismo de Windelband e

Rickert mas a totalidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica da filosofia(WuR2010 p186)

Tendo em vista o ponto central da preleccedilatildeo aqui examinada eacute imprescindiacutevel

notar que em 1919 Heidegger estava debatendo com os problemas de seu tempo a

possibilidade do conhecimento o lugar da filosofia diante da autonomia das ciecircncias

particulares e a articulaccedilatildeo dessa problemaacutetica com a Lebensphilosophie Se ainda natildeo

haacute explicitamente a questatildeo do sentido de ser em geral a preleccedilatildeo possui elementos

decisivos para o desenvolvimento da ontologia fundamental O que queremos enfatizar eacute

como o modo de apariccedilatildeo dos fenocircmenos em seu significado prescinde de toda e qualquer

teorizaccedilatildeo Essa caracteriacutestica fundamental vai permanecer vigente nos desdobramentos

futuros do pensamento de Heidegger e vai se mostrar a cada vez mais intimamente

relacionada agrave ambiccedilatildeo heideggeriana de superar os pressupostos da tradiccedilatildeo filosoacutefica

moderna

ldquoA pergunta acerca da realidade do mundo externo deriva em parte de uma

compreensatildeo superficial da filosofia kantiana ou de outro modo de reflexotildees

colocadas por Descartes Eacute uma questatildeo que em todo momento de modo mais ou

menos expresso ocupou a teoria do conhecimento da modernidade assegurando-

se sempre contudo que naturalmente ningueacutem duvida da realidade do mundo

externo Pois o que nela sempre se daacute por suposto eacute que essa realidade essa

mundanidade do mundo eacute no fundo algo que talvez possa demonstrar-se ou

mais exatamente no caso de nos encontrarmos em condiccedilotildees ideais ao final

haviacuteamos demostrado [essa realidade] E contudo o ser-real do mundo natildeo soacute

natildeo necessita ser demosntrado nem sequer eacute algo que na falta de provas

rigorosas por isso deva ser unicamente objeto de crenccedilardquo41( HEIDEGGER

(GA20) 2006 p270)

41 ldquoLa pregunta acerca de la realidad del mundo externo se deriva en parte de uma comprensioacuten superficial

de la filosofia kantiana o mejor dicho de reflexiones que Descartes planteoacute Es uma cuestiacuteon que en todo

momento de modo maacutes o menos expreso ha ocupado a la teoriacutea del conocimiento de la modernidad

aseguraacutendose siempre no obstante de que naturalmente nadie dudara de la realidade del mundo externo

Pues lo que em ella se da por supuesto es que esa realidad esa mundanidad del mundo es em fondo algo

que quizaacute pueda demostrarse o maacutes exactamente es en caso de que nos encontraacuteramos em condiciones

ideales al final habriacuteamos demostrado Y sin embargo el ser-real del mundo no soacutelo no necessita ser

demostrado ni siquiera es algo que a falta de pruebas rigorosas por eso deba ser unicamente objeto de

creenciardquo Opcitp270

58

Assim a partir dessas consideraccedilotildees eacute possiacutevel indicar que a questatildeo do sentido

do ser em geral ou numa palavra a ldquoontologiardquo para Heidegger pode vir a ser atingida

quando se revela que a fenomenologia natildeo estaacute fundada na epistemologia (a partir da

consciecircncia) e que a hermenecircutica natildeo eacute apenas um instrumento metodoloacutegico de acesso

agrave histoacuteria em sua objetividade O que Heidegger pretende exprimir com o termo ldquointuiccedilatildeo

hermenecircuticardquo eacute a possibilidade de uma compreensatildeo imediata do mundo a qual natildeo estaacute

fundada nas vivecircncias subjetivas O es gibt originaacuterio eacute o mundo que se daacute como campo

hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Com outras palavras natildeo haacute

significados ideais eles aparecem a partir da situaccedilatildeo hermenecircutica compartilhada entre

os homens campo que chamamos de mundo e a compreensatildeo desse campo natildeo eacute

tributaacuteria das vivecircncias psiacutequicas Para tanto eacute preciso esclarecer como Heidegger supera

a consciecircncia husserliana enquanto lugar de apariccedilatildeo dos fenocircmenos e tambeacutem como a

noccedilatildeo heideggeriana de ldquointuiccedilatildeo hermenecircuticardquo pretende superar a vivecircncia psiacutequica de

Dilthey como categoria epistemoloacutegica fundamental Chegamos ao ponto onde se torna

necessaacuterio compreender mais detidamente a apropriaccedilatildeo de Heidegger da hermenecircutica

diltheyniana e da fenomenologia husserliana

II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger

Seguindo inicialmente as indicaccedilotildees expressas no primeiro curso proferido por

Heidegger em Marburg (inverno de 1923-1924) Introduccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo

fenomenoloacutegica (GA17) eacute possiacutevel observar a tentativa do autor de compreender a

fenomenologia como fenomenologia da existecircncia e assim se apropriar de maneira mais

originaacuteria da investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica

O curso se inicia com a interpretaccedilatildeo - mantida em seus principais elementos no

sect7 de Ser e Tempo - dos conceitos de fenocircmeno (φαινόμενον) e loacutegos (λόγος) em

Aristoacuteteles para assim pocircr em evidecircncia a interpretaccedilatildeo segundo a qual nos escritos do

filoacutesofo grego esses conceitos indicam a direccedilatildeo do pensamento e da investigaccedilatildeo

filosoacutefica para o ser do homem como ser-no-mundo

59

A perceptibilidade das coisas estaacute sob a condiccedilatildeo de um determinado ser deste

mundo mesmo O ser condiccedilatildeo se refere a um modo de ser do mundo mesmo Agrave

existecircncia no mundo pertence o ser subsistente do Sol justamente o que

pensamos quando afirmamos eacute de dia Desta forma falamos de um estado de

coisas que pertence ao ser do mundo mesmo Daiacute se segue que φαινόμενον natildeo

quer dizer em primeiro lugar nada mais que um destacado modo de presenccedila do

enterdquo42 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30)

Ainda seguindo a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles Heidegger diz que o conceito de

fenocircmeno na medida em que designa tudo o que mostra a si mesmo natildeo pode ser

reduzido ao que estaacute na presenccedila do dia ou seja que existem coisas que satildeo visiacuteveis na

obscuridade pois o que se mostra a si mesmo se mostra tanto na claridade como na

obscuridade43 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30) Para explicitar essa posiccedilatildeo o autor

recorre agraves categorias aristoteacutelicas essenciais do ente em ato e do ente em potecircncia (ogravev

ἐντελέχεια ogravev δύναμις) A obscuridade torna-se tambeacutem positiva a partir da

compreensatildeo dessas categorias em relaccedilatildeo ao fenocircmeno pois o ser da obscuridade

consiste em ser claridade possiacutevel44 (HEIDEGGER (GA17)2006 p31)

A originalidade do ver em Aristoacuteteles se mostra em natildeo se deixar enganar pelo

fato de que para as coisas que somente a noite deixa ver natildeo haacute nenhum nome

que as compreenda todas () O que importa eacute somente que essas coisas existam

aiacute elas satildeo vistas e sobre a base de seu conteuacutedo quiditativo tecircm a pretensatildeo de

serem tomadas por existentes Mas que falte um nome para essas coisas mostra

contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia45

(HEIDEGGER (GA17) 2006p31)

42 ldquoLa perceptibilidad de las cosas estaacute bajo la condicioacuten de un determinado ser de este mundo mismo El

ser condicioacuten se refiere a un modo de ser del mundo mismo A la existencia en el mundo pertenece el ser

subsistente del Sol justamente lo que mentamos cuando afirmamos es de diacutea De esta forma hablamos de

un estado de cosas que pertenece al ser del mundo mismo De aquiacute se sigue que φαινόμενον no quiere decir

en primer lugar nada maacutes que un destacado modo de presencia del enterdquo Op cit p30

43 ldquoEl concepto de φαινόμενον no estaacute limitado a la presencia de las cosas durante el diacutea va maacutes allaacute y

designa todo lo que se muestra em siacute mismo tanto se muestra en la claridad como en la oscuridadrdquo Op

citp30

44 ldquoEl ser de la oscuridad consiste en ser claridade posiblerdquo Opcitp31 45 ldquoLa originaridad del ver en Aristoacuteteles se muestra en que no se deja enganatilder por el hecho de que para las

cosas que soacutelo la noche deja ver no hay ninguacuten nombre que las comprenda a todas (por tanto para las

lucieacuternagas etc) () Lo que le importa es soacutelo que esas cosas existen ahiacute se las ve y sobre la base de su

contenido quiditativo tienen la pretensiacuteon de ser tomadas por existentes Pero que falte um nombre para

esas cosas muestra com todo que nuestra lengua (teoria de las categorias) es uma lengua del diacuteardquo

Opcitp32

60

Para compreendermos o que Heidegger trata nessa passagem eacute fundamental

relembrar a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica que indica algo crucial agrave nossa investigaccedilatildeo o

significado natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua

mostraccedilatildeo Para Husserl a anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a

complexidade da vida intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel a partir

da anaacutelise das estruturas ideais que se apresentam na forma das expressotildees significativas

revestidas gramaticalmente Jaacute para Heidegger parece natildeo haver uma estabilidade

significativa ideal Em outras palavras e como vimos no toacutepico anterior as significaccedilotildees

vecircm ao encontro a partir de sua mostraccedilatildeo intencionadas em meio agrave compreensatildeo

hermenecircutica do mundo circundante por isso as estruturas ideais buscadas por Husserl

a partir da atividade intencional da consciecircncia devem ser revistas em funccedilatildeo da

possibilidade hermenecircutica do mundo circundante A veste gramatical das significaccedilotildees

natildeo pode subordinar o que vem ao encontro no dar-se originaacuterio do mundo quer em

funccedilatildeo de uma linguagem que almeja a cada vez fixar categorialmente o que se mostra

quer em funccedilatildeo de qualquer idealidade essencial pressuposta E assim para Heidegger o

conceito de loacutegos em Aristoacuteteles revela um sentido mais originaacuterio

Um λόγος existe pois quando o falar eacute falar com o mundo existente Ao dizer

forno [Ofen] natildeo falo a partir de uma existecircncia [Dasein] senatildeo que mas bem

me ponho fora da existecircncia [Dasein] do mundo concreto penso algo mas para

esse pensar natildeo desempenha nenhum papel que existam fornos [Oumlfen] ou natildeo

Falar eacute um ser com o mundo eacute algo originaacuterio e se daacute antes dos juiacutezos A partir

daqui se torna compreensiacutevel o juiacutezo Na loacutegica eacute comum considerar como juiacutezos

palavras como fogo () De modo algum o λόγος implica uma pluralidade de

palavras A palavra originaacuteria eacute um nomear mas natildeo eacute um nomear de um mero

nome mas bem o dirigir-se com a fala a algo que se encontra no mundo tal como

se encontra46(HEIDEGGER (GA17) 2006 p39)

46 ldquoUn λόγος existe pues cuando el hablar es um hablar con el mundo existente Al decir lsquohornorsquo no hablo

desde una existencia sino que maacutes bien me pongo fuera de la existencia del mundo concreto miento algo

pero para este mentar no desempentildea ninguacuten papel el que haya hornos o no Hablar es un ser con el mundo

es algo originaacuterio y se da antes que los juicios A partir de aquiacute se vuelve compreensible el juicio En la

loacutegica es tradiciacuteon considerar como juicios palabras como lsquofuegorsquo (De ninguna manera se establece con

ello soacutelo la existencia [Dasein] del fuego sino tambiacuteen que la gente debe saltar de la cama) Em modo

algun el λόγος implica una pluralidad de palabras La palabra originaria era un nombrar pero no el nombrar

de un mero nombre maacutes bien el dirigirse con el habla a algo que se encuentra en el mundo tal como se lo

encuentrardquo Op cit p39 A palavra Dasein nesse trecho ainda natildeo parece se referir ao homem como ldquoser-aiacuterdquo mas usada no

significado tradicional da liacutengua alematilde compreendida como ldquoexistecircnciardquo pois Heidegger nos fala da

ldquoexistecircnciardquo do lsquofornorsquordquo existecircnciardquo do lsquofogorsquo

61

O nomear originaacuterio do loacutegos natildeo eacute como a significaccedilatildeo expressa pela linguagem

que recolhe o ente sob determinado aspecto em seu εἶδος (Cf HEIDEGGER (GA17)

2006 p43) Loacutegos eacute loacutegos apofacircntico (λόγος αποφατικός) eacute o mostrar do fenocircmeno a

respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que se mostra como algo de maneira indiferenciada

natildeo determinada Assim o significado mediante o λόγος eacute caracterizado como existindo

O significado mediante o nome eacute um mero mencionar em sentido formal no λόγος o

significado eacute o mostrar o existente como existente47(HEIDEGGER (GA17) 2006p41)

Esse mostrar do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes

sempre em meio a um campo hermenecircutico e assim cada significado proacuteprio ou

determinado do ente que se mostra refere-se ao que significa em relaccedilotildees com os outros

entes relaccedilatildeo anterior a qualquer experiecircncia predicativa

O modelo tradicional da hermenecircutica como meacutetodo interpretativo vinculado agrave

filologia e ao formato da linguagem escrita se altera e torna-se com Heidegger a

investigaccedilatildeo acerca da proacutepria interpretaccedilatildeo da mostraccedilatildeo de todos os entes como uma

praacutetica viva que remete ao ser dos entes em seu aparecer como ente Hermes o

mensageiro dos deuses agora eacute mensageiro da situaccedilatildeo interpretativa na medida em que

o ser dos entes se mostra aos homens no interior de suas vivecircncias imediata A

interpretaccedilatildeo de algo eacute dada mediante a escuta cuidadosa da mensagem dinacircmica que se

realiza no diaacutelogo entre os homens natildeo eacute mais algo inerte fixo a ser encontrado O λόγος

na fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν E assim ao contraacuterio

da tradiccedilatildeo filosoacutefica que identificou o loacutegos como a expressatildeo ajuizante possiacutevel atraveacutes

da ratio (ou o dizer as modalidades dos entes atraveacutes de palavras e sequecircncia de palavras

organizando-as como sujeito e predicado no juiacutezo predicativo) Heidegger interpreta o

sentido originaacuterio de loacutegos apofacircntico como condiccedilatildeo de possibilidade para a

significaccedilatildeo Esse aspecto eacute assim descrito por Gadamer

Heidegger recorreu a uma etimologia para a palavra logos ela designa a seleccedilatildeo

posicionadorardquo () Loacutegos eacute realmente o posicionar seletivo legein significa

seleccedilatildeo selecionar conjuntamente reunir de tal modo que tudo se decirc como

bagos da videira reunidos e protegidos como a colheita O que eacute assim reunido

da seleccedilatildeo natildeo satildeo certamente apenas as palavras que formam a proposiccedilatildeo Cada

palavra ela mesma jaacute eacute de tal modo que nela muitas coisas satildeo reunidas - na

47ldquoLo significado mediante el λόγος es caracterizado como existiendo Lo significado mediante el nombre

es un mero mencionar el sentido formal en el λόγος lo significado es el mostrar lo existente como

existenterdquo Opcitp41

62

unidade do eidos como diraacute Platatildeo quando ele questiona o eidos com vista ao

logos (GADAMER 2012p528)

O sentido originaacuterio de loacutegos como loacutegos apofacircntico estaacute estritamente

relacionado com o sentido originaacuterio de fenocircmeno A tradiccedilatildeo latina traduziu loacutegos

interpretando-o como razatildeo juiacutezo conceito definiccedilatildeo ou proposiccedilatildeo Poreacutem em grego

logos natildeo significa primariamente juiacutezo entendido como modo de uniatildeo ou de tomada

de posiccedilatildeo seja pela aceitaccedilatildeo ou negaccedilatildeo Logos reporta-se agrave palavra legein tornar

manifesto aquilo de que se fala num discurso Por isso deixa que algo seja visto

comunicando a outro o que eacute manifestado e assim ldquoas posiccedilotildees individuais satildeo

penetradas pela tendecircncia a significar de um λέγειν assim que aspira a manifestar uma

determinada situaccedilatildeo objetiva Natildeo se chega ao λόγος se quiser comeccedilar com o mero

nomear A funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar48rdquo (HEIDEGGER (GA17)

2006 p43) Mas o que se manifesta O fenocircmeno (φαινόμενον) aquilo que se mostra a

si mesmo

A interpretaccedilatildeo da palavra φαινόμενον realizada por Heidegger no primeiro curso

proferido em Marburg indica inicialmente a existecircncia do mundo na medida em que ele

se mostrar a si mesmo49 como orientaccedilatildeo do horizonte temaacutetico da fenomenologia Em

1925 no curso Prolegocircmenos para uma histoacuteria ao conceito de tempo (GA20) o

esclarecimento do sentido originaacuterio do conceito de fenocircmeno seraacute elaborado conforme

o sentido encontrado tambeacutem em Ser e Tempo sect7 Φαινόμενον eacute o particiacutepio (forma

nominal do verbo) de φαίνεισθαι que como voz meacutedia50 significa mostrar-se e no

48 ldquoLas posiciones individuales estaacuten penetradas por la tendencia a significar de un λέγειν asiacute que aspira a

manifestar una determinada situacioacuten objetiva No se llega al λόγος si se quisiera comezar com el mero

nombrar La funcioacuten originaria de significaciacuteon es el manifestarrdquo Opcitp43

49 CfHeidegger (GA17) 2006p61

50 Um esclarecimento sobre a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito de

fenocircmeno por conseguinte da noccedilatildeo de fenomenologia Obviamente natildeo podemos aprofundar-nos nesse

complexo recurso gramatical que exigiria anos de estudos e profundo conhecimento da liacutengua helecircnica

Iremos apenas indicar sua especificidade A estrutura das vozes verbais na liacutengua portuguesa eacute constituiacuteda

de 3 possibilidades a ativa a passiva e a reflexiva Algumas Gramaacuteticas sugerem uma proximidade entre

a voz meacutedia grega e a voz reflexiva no portuguecircs contudo a voz meacutedia natildeo se esgota nessa comparaccedilatildeo

Seguimos a orientaccedilatildeo de Caio Vieira Reis de Camargo (2013) que em seu artigo reuacutene definiccedilotildees

importantes para os estudos linguiacutesticos contemporacircneos acerca da voz meacutedia

ldquoa) lsquoA voz meacutedia denota que o sujeito estaacute de alguma maneira especial envolvido ou interessado na accedilatildeo

do verborsquo (GILDERSLEEVE 1900 p64) b) lsquoVerbos () que tecircm posiccedilatildeo na esfera do Sujeito nos quais

o Sujeito todo parece participanteimplicadorsquo (BRUGMANNB 1903 p104) c) lsquoNa voz ativa os verbos

63

particiacutepio o que se mostra O aparecer o mostrar do fenocircmeno estaacute relacionado com a

raiz de φαίνω φῶς em portuguecircs luz claridade Assim ldquoos φαινόμενα configuram a

totalidade do que se mostra o que os gregos simplesmente identificaram tambeacutem com τὰ

ὄντα o ente51rdquo (HEIDEGGER (GA20)2006 p109) Podemos entatildeo dizer a totalidade

do que se mostra satildeo os fenocircmenos e se a funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar

o loacutegos da fenomenologia natildeo eacute o significado de um ou outro ente mas o manifestar do

ente o sentido de ser dos entes Fenomenologia em sentido formal eacute ldquofazer ver a partir

dele mesmo o que se mostra tal como ele por si mesmo se mostrardquo (HEIDEGGER (GA2)

2012 p119) e assim a fenomenologia caminha em direccedilatildeo agrave ontologia

No capiacutetulo anterior pudemos observar que para Husserl o que estava em jogo

como tarefa da fenomenologia era - a partir da unidade entre intuiccedilatildeo (atividade da

consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da consciecircncia e o

preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor a unidade

fenomenoloacutegica desses atos a saber apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo e

preenchimento de significaccedilatildeo Para Heidegger a intencionalidade fenomenoloacutegica agora

voltada para o sentido de ser dos entes revela que o fenocircmeno vem ao encontro natildeo em

funccedilatildeo da intencionalidade da consciecircncia onde poderia ser depurado na sua significaccedilatildeo

denotam um processo que se realiza a partir de um sujeito e sem ele na meacutedia que eacute a diaacutetesis a definir

por oposiccedilatildeo o verbo indica um processo em que o sujeito eacute o foco o sujeito estaacute no interior do processorsquo

(BENVENISTE 1966 p172) d) lsquoEm indo-europeu e em grego as desinecircncias meacutedias indicam que o

sujeito estaacute interessado de uma maneira pessoal no processorsquo (MEILLET 1937 p244) e) lsquoAs implicaccedilotildees

da meacutedia (quando em oposiccedilatildeo com a ativa) satildeo que a accedilatildeo ou estado afeta o sujeito do verbo ou seus

interessesrsquo (LYONS 1969 p373) Nessas definiccedilotildees a princiacutepio haacute dois empregos da meacutedia a meacutedia

reflexiva direta (especialmente a de Gildersleeve e Meillet voltadas para a questatildeo do interesse do sujeito

oracional) e a meacutedia reciacuteproca que envolve mais as construccedilotildees passivas e intransitivas da meacutedia

(ressaltada por Brugmann e Benveniste com a noccedilatildeo de que o sujeito todo participa e que estaacute interno ao

processo) A definiccedilatildeo de Meillet por outro lado eacute a mais comumente utilizada principalmente em

gramaacuteticas e meacutetodos de ensino do grego antigo atribuindo agrave media a noccedilatildeo de interesse por parte do

sujeito sendo que esse traccedilo embora existente em alguns casos natildeo eacute uacutenico e nem sempre tatildeo evidenterdquo

(pp 185-186)

Quando dissemos que entender a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito

de fenocircmeno pensamos nessa especificidade de algo que na accedilatildeo no verbo (existir manifestar) constitui a

si mesmo no interior do processo O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento como fenocircmeno

Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar

por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na

estabilidade de uma esfera para aleacutem do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua

manifestaccedilatildeo o sentido de sua proacutepria existecircncia

51 ldquoLos φαινόμενα configuran la totalidad de lo que se muestra a siacute mismo lo que los griegos simplemente

indetificaban tambieacuten con τὰ ὄντα lo enterdquoOpcit p109

64

Mas o loacutegos como manifestar-se do fenocircmeno em seu sentido originaacuterio como existente

eacute intencionado no es gibt originaacuterio na concretude do mundo que se daacute

Mas como eacute possiacutevel chegar ao acontecimento de ser do fenocircmeno sem a base de

uma consciecircncia em funccedilatildeo da qual o fenocircmeno pode ser depurado Os estudos da Sexta

Investigaccedilatildeo Loacutegica de Husserl ao distinguir intuiccedilatildeo sensiacutevel da categorial ofereceram

a Heidegger um acesso agrave compreensatildeo do sentido muacuteltiplo do ente Nas palavras do autor

ldquoQuando a partir de 1919 eu proacuteprio ensinando e aprendendo proacuteximo de

Husserl me exercitei na visatildeo fenomenoloacutegica e simultaneamente pus agrave prova

nos Seminaacuterios uma leitura de Aristoacuteteles diferente da habitual retomei o meu

interesse pelas Investigaccedilotildees Loacutegicas muito especialmente pela sexta da

primeira ediccedilatildeo A distinccedilatildeo ali elaborada entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial

revelou-se-me em todo o seu alcance como capaz de determinar lsquoo muacuteltiplo

sentido do entersquordquo (HEIDEGGER2009 p8)

Vejamos brevemente o ponto crucial dessa parte da VI investigaccedilatildeo a qual

Heidegger se refere A questatildeo central eacute ldquoTodas as partes e formas da significaccedilatildeo

correspondem tambeacutem partes e formas da percepccedilatildeo52rdquo (HUSSERL 1975 p106) Em

outras palavras nos enunciados da percepccedilatildeo ldquoUm S eacute Prdquo ldquoEste S eacute Prdquo ldquoTodo S eacute Prdquo

etc cada um de seus elementos (ldquoumrdquo ldquoSrdquo ldquoeacuterdquo ldquoPrdquo) possui significaccedilotildees que

preenchem a percepccedilatildeo Husserl responde negativamente somente S e P possuem

significaccedilatildeo que preenchem a percepccedilatildeo pois existe uma diferenccedila categorial absoluta

entre a forma expressiva e o material expresso E os enunciados da percepccedilatildeo chegam

somente aos elementos materiais que estatildeo presentes nos termos do enunciado

ldquoRepete-se a mesma distinccedilatildeo entre lsquomaterialrsquo e lsquoformarsquo naquilo que

consideramos unitariamente como um lsquotermorsquo Mas em todo enunciado de

percepccedilatildeo e tambeacutem naturalmente em todos os enunciados que exprimem uma

intuiccedilatildeo num certo sentido primaacuterio chegamos finalmente aos uacuteltimos elementos

ndash denominamos elementos materiais ndash que estatildeo presentes nos termos e que

preenchem diretamente na intuiccedilatildeo (percepccedilatildeo imaginaccedilatildeo etc) ao passo que

as formas complementares apesar de exigirem preenchimento enquanto formas

de significaccedilatildeo natildeo encontram diretamente na percepccedilatildeo e nos atos a ela

coordenados nada que jamais lhes possa ser conformerdquo(HUSSERL 1975p110)

52 Percepccedilatildeo aqui compreendida natildeo como mera percepccedilatildeo mas como atos fundados na percepccedilatildeo com

possibilidade objetiva

65

Husserl acompanha Kant na determinaccedilatildeo que ldquoser natildeo eacute um predicado realrdquo pois

a flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo -tanto na funccedilatildeo atributiva (sapato preto) quanto na forma

predicativa (Este sapato eacute preto) ndash natildeo se preenche atraveacutes de qualquer percepccedilatildeo Para

Husserl embora a proposiccedilatildeo kantiana ldquose refira ao ser existencial ao ser do

lsquoposicionamento absolutorsquo () eacute sempre possiacutevel entretanto aplicaacute-la ao ser predicativo

e atributivordquo (HUSSERL1975 p111) Se o ser natildeo eacute nada de aderente ao objeto natildeo eacute

uma caracteriacutestica real interna nem externa e ainda se ldquona esfera da percepccedilatildeo sensiacutevel

e assim compreendida e correlativamente na da intuiccedilatildeo sensiacutevel em geral () uma

significaccedilatildeo como a palavra ser natildeo encontra nenhum correlato objetivo possiacutevelrdquo

(HUSSERL1975 p112) entatildeo como ser vem agrave forma enunciativa Para Husserl o ser

soacute pode ser apreendido no julgar natildeo que ele seja obtido internamente a partir da reflexatildeo

mas no ato de julgar que correlato agrave intuiccedilatildeo do juiacutezo forma a unidade do juiacutezo evidente

Em outras palavras se o ldquo ser eacute fenomenologicamente interpretado como um modo

determinado do ser dadordquo ( ZAHAVI2015p47) a descriccedilatildeo de um fenocircmeno ou de um

estado de coisas em sua ligaccedilatildeo e unidade pelo juiacutezo vai aleacutem da intuiccedilatildeo sensiacutevel e eacute

preciso ampliar o conceito de intuiccedilatildeo considerando-a como uma intuiccedilatildeo categorial

pois ldquomesmo uma argumentaccedilatildeo teoacuterica ou uma anaacutelise conceitual pode ser considerada

como intuiccedilatildeo na medida em que ela nos traz agrave daccedilatildeo originaacuteria um estado de coisas um

traccedilo essencial ou uma demonstraccedilatildeo abstratardquo( ZAHAVI2015p55) Contudo esse

deslocamento do lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel o conduz a forma loacutegico sem revelar

de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno53

Portanto com o propoacutesito de elucidar a apariccedilatildeo originaacuteria de qualquer fenocircmeno

e junto com Aristoacuteteles Heidegger conclui que era Aleacutetheia desvelamento aquilo que

segundo Husserl consistia num ato da consciecircncia O ser natildeo eacute um predicado real se

abordado a cada vez como um ente Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar o ser como um

ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel e atributivo Ser

natildeo eacute um ente54 o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo com vistas agrave

53 Cf NUNES Benedito 2013 pp63-67 54 A diferenccedila ontoloacutegica eacute tomada tematicamente ou seja exposta explicitamente em 1927 em Os

problemas fundamentais da fenomenologia (GA24) Parte II Capiacutetulo I Mesmo de um modo natildeo temaacutetico

a diferenccedila entre ser e ente foi decisiva para a compreensatildeo da constituiccedilatildeo existencial do ser-aiacute nos escritos

anteriores sobretudo em Ser e Tempo Seguimos a leitura de LAFONT (1997) ldquoDo factum -central para a

abordagem de Ser e tempo - de que nossa relaccedilatildeo com o mundo estaacute mediada simbolicamente (o fato de

que lsquonos movemos sempre jaacute em uma compreensatildeo de serrsquo e que a realidade soacute eacute possiacutevel em uma

66

forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera para ldquoQual o

sentido de serrdquo E ao sentido do ser temos acesso pelo meacutetodo fenomenoloacutegico a partir

da situaccedilatildeo na qual o desvelamento dos entes acontece isto eacute no fenocircmeno da existecircncia

Como aponta Stein a apresentaccedilatildeo do conceito de fenomenologia em Ser e

Tempo eacute feita de maneira provisoacuteria no sect 7 e soacute ganha sua explicitaccedilatildeo na dinacircmica da

proacutepria anaacutelise do ldquoobjetordquo Mas tambeacutem como jaacute vimos aqui a especificidade e o fator

determinante do meacutetodo fenomenoloacutegico jaacute estatildeo em desenvolvimento na deacutecada de 20

Cito Stein

ldquoa descoberta que Heidegger fez que existe um primado da tendecircncia para o

encobrimento ()Ao inveacutes de pensar como Husserl e outros filoacutesofos que diante

de noacutes a realidade se estende agrave espera da rede de nossos recursos metodoloacutegicos

que a aprisionem Heidegger afirma que o homem e o essencial nas coisas tendem

para o disfarce ou estatildeo efetivamente encobertos Por isso volta-se para o comordquo

(STEIN 1971p16)

E o que se encobre de maneira excepcional natildeo eacute um ou outro ente mas o ser do

ente e ldquoa fenomenologia eacute o modo de acesso ao que deve se tornar tema da ontologia A

ontologia soacute eacute possiacutevel como fenomenologiardquo (HEIDEGGER (GA2) 2012 p 123)

Fenocircmeno loacutegos e aleacutetheia estatildeo numa imbricaccedilatildeo indissociaacutevel Stein (2001

p79) chega a dizer que a aleacutetheia esconde em si o meacutetodo fenomenoloacutegico e que o retorno

originaacuterio agrave palavra grega resume o pensamento de Heidegger Para nosso trabalho o

importante eacute compreender que a fenomenologia como meacutetodo para a ontologia encontra

no sentido originaacuterio de aleacutetheia a possibilidade de trazer agrave luz o que sustenta qualquer

presenccedila dos entes ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o que aponta para o velamento (lethe) que

ficou para traacutes que mostra para aquilo que a sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila

da aleacutetheia que se torna possiacutevel a objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito

pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89) Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em

sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao encontro em seu significado) no desvelamento

originaacuterio de seu ser mas essa mostraccedilatildeo dos fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira

compreensatildeo de serrsquo) deduz Heidegger a universalidade da lsquopreacute-estrutura do compreenderrsquo (Als-Struktur)

que constitui o nuacutecleo fundamental de sua transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia O instrumento

decisivo do ponto de vista metodoloacutegico que o permite obter este ponto de vista eacute a substituiccedilatildeo da

dicotomia empiacutericotranscendental - proacutepria da filosofia transcendental- pela lsquodiferenccedila ontoloacutegicarsquordquo p29

67

dissimulada sempre atraveacutes de uma objetificaccedilatildeo de seu ser como ente determinado pois

ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na medida em que partimos de seu

encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de descoberta perde seu sentido mais

efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Dessa forma ldquoa fenomenologia no sentido heideggeriano

eacute a desconstruccedilatildeo do evidente e em uma tal desconstruccedilatildeo interessa mostrar que o

evidente eacute em verdade uma modificaccedilatildeo do fenocircmeno lsquoserrsquordquo (FIGAL 2005p47) E aqui

a fenomenologia encontra a hermenecircutica em sua relaccedilatildeo mais radical pois essa

desconstruccedilatildeo do evidente parte do proacuteprio evidente a situaccedilatildeo faacutetica Pois ldquoo ser soacute

pode chegar entatildeo a ser visualizado se essas dissimulaccedilotildees forem comprovadas como

dissimulaccedilotildeesrdquo (FIGAL 2005p47) ou seja na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo faacutetica que

compreende previamente todos os entes

A atualizaccedilatildeo da filosofia antiga sob bases fenomenoloacutegicas eacute chamada de

ldquofenomenologia como repeticcedilatildeordquo55 O retorno ao pensamento de Aristoacuteteles e Platatildeo

realizado por Heidegger ldquonatildeo significa simplesmente acolher uma vez mais um

questionamento filosoacutefico herdado a fim de integraacute-lo no discurso de uma filosofia atualrdquo

e tambeacutem natildeo se trata de ldquoinserir uma filosofia atual em uma tradiccedilatildeordquo (FIGAL 2005

p32) Mas eacute consequecircncia da orientaccedilatildeo do trabalho heideggeriano de uma lsquofilosofia

cientiacuteficarsquo sem pressupostos O comeccedilo da filosofia eacute o questionamento em curso vivo

promovido pela proacutepria questatildeo e natildeo por sistemas externos agraves proacuteprias coisas A

pergunta pelo ser em Heidegger se torna temaacutetica na medida em que o desdobramento da

criacutetica imanente ao modelo husserliano conduz agrave pergunta fundamental inaugurada no

iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo

Se por um lado Heidegger pode ser associado agrave tradiccedilatildeo fenomenoloacutegica por

outro natildeo se pode esquecer a criacutetica imanente que ele fez agrave fenomenologia de Husserl e

que o conduziu a pensar a fenomenologia como meacutetodo a indicar o mundo a existecircncia

e a facticidade como campo de aparecimento dos proacuteprios fenocircmenos tornando portanto

a fenomenologia hermenecircutica Eacute nessa compreensatildeo da tarefa fenomenoloacutegica como o

modo de acesso ao que deve ser tornar tema da ontologia que Heidegger rejeita o

pressuposto husserliano da consciecircncia como correlato do aparecimento dos fenocircmenos

55 Cf Figal 2005 pp29-42 e STEIN 2001 p98

68

Ele o recusa natildeo somente pelo fato de as relaccedilotildees intencionais enquanto processos

mentais da consciecircncia se movimentarem pela pesquisa de conteuacutedos quididativos mas

tambeacutem e sobretudo pelo fato de

ldquoa consciecircncia apresentar em si mesma um contexto ontoloacutegico fechado Essa

ponderaccedilatildeo [a de que a consciecircncia parece natildeo precisar de qualquer objeto

exterior para existir] acaba por indicar a consciecircncia eacute absoluta em funccedilatildeo da

qual em geral a realidade pode se anunciarrdquo (HEIDEGGER Prolegomena zur

Geschichte p 144 apud FIGAL2005 p30)

Para Heidegger a fenomenologia transcendental de Husserl permanece ainda no

horizonte da modernidade Ao colocar o ldquomundo entre parecircntesesrdquo privilegiando a

experiecircncia da consciecircncia essa fenomenologia permaneceria incapaz de levar em conta

a realidade sem uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica e em uacuteltima instacircncia levar em conta as

vivecircncias concretas Heidegger natildeo abre matildeo da fenomenologia husserliana mas

radicaliza seu princiacutepio ldquode volta agraves coisas mesmasrdquo acentuando a tarefa pela existecircncia

e a partir da existecircncia dos fenocircmenos e no desvelamento buscar o sentido do ser de

todo e qualquer fenocircmeno

III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal

Falamos haacute pouco de Heidegger repetir a filosofia antiga como um desdobramento

da proacutepria pesquisa filosoacutefica entendida como ciecircncia originaacuteria e como pergunta pelo

sentido de ser Em Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles Introduccedilatildeo agrave pesquisa

fenomenoloacutegica (GA61) Heidegger desenvolve esse aspecto e indica a problemaacutetica

central e radical a ser enfrentada a partir de Aristoacuteteles a saber ldquodesde de Aristoacuteteles se

manteacutem uma influecircncia taacutecita nas vias da visatildeo e da fala lsquoarticulaccedilotildeesrsquo loacutegicardquo

(HEIDEGGGER (GA61) 2011p11) Antes de entrarmos nessa problemaacutetica apontada

por Heidegger tentemos compreender o que o autor quis dizer com aquela afirmaccedilatildeo

Cito Puente (2001)

ldquoPara Aristoacuteteles foi precisamente a negaccedilatildeo do movimento que levou

Parmecircnides ao postulado da univocidade do ente e seraacute portanto a partir da

afirmaccedilatildeo irrestrita do movimento () que o Estagirita procuraraacute expandir os

horizontes do ente para aleacutem da mera dicotomia estabelecida por Parmecircnides

entre Ente e natildeo-enterdquo (p25)

69

Seguindo a leitura de Puente Aristoacuteteles encontrou a plurivocidade ao afirmar o

movimento no acircmbito dos entes Aleacutem disso como veremos nos desdobramentos a

seguir ele o fez submetendo o acircmbito ontoloacutegico ao acircmbito loacutegico Submissatildeo essa que

foi adotada por toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica que passou a entender a loacutegica como uacutenica via

de acesso agrave ontologia Pois a polivocidade categorial inserida no interior da

quadriparticcedilatildeo semacircntico-ontoloacutegica estaacute por sua vez submetida ao princiacutepio loacutegico de

natildeo contradiccedilatildeo Dito de outro modo as categorias aristoteacutelicas substacircncia

(οὐσία substantia) quantidade (ποσόν quantitas) qualidade (ποιόν qualitas) relaccedilatildeo

(πρός τι relatio) lugar (ποῦ ubi) tempo (ποτέ quando) estado (κεῖσθαι situs) haacutebito

(ἔχειν habere) accedilatildeo (ποιεῖν actio) e paixatildeo (πάσχειν passio) satildeo parte das quatro

possibilidades semacircnticas categoria acidente verdade atopotecircncia Reiterando as

possibilidades semacircnticas de dizer o ente estatildeo submetidas a um princiacutepio loacutegico

fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado ao princiacutepio de identidade

Soacute eacute possiacutevel desenvolver uma ontologia acerca dos entes naturais e sair da univocidade

ontoloacutegica de Parmecircnides se a semacircntica respeitar a impossibilidade loacutegica de uma

simultaneidade de atribuiccedilotildees contraacuterias a um ente ao mesmo tempo Os vaacuterios modos de

dizer o ser ldquoa refutaccedilatildeo confutatoacuteria agrave tese parmenidiana pode ser analisada entatildeo como

o desdobramento loacutegico do pressuposto de Parmecircnidesrdquo (PUENTES2001 p25)

Nesse sentido enfrentar a via loacutegica no interior da filosofia eacute enfrentar a tradiccedilatildeo

que compreendeu que a filosofia devia ser definida bem como seus objetos de forma

conceitual sob princiacutepios loacutegicos Em outras palavras superar a tentativa de dizer

previamente tanto o que a filosofia eacute quanto o que eacute seu objeto de investigaccedilatildeo E em

uacuteltima instacircncia superar a concepccedilatildeo tradicional metafiacutesica que compreende toda

ontologia condicionada agrave loacutegica pois ao ter acesso ao ente atraveacutes das categorias

arrasta a compreensatildeo da verdade agrave semacircntica extensional com lugar privilegiado na

proposiccedilatildeo reduzindo a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo56

56 Aqui eacute pertinente destacar uma consideraccedilatildeo de Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro no prefaacutecio agrave traduccedilatildeo do

texto de Aristoacuteteles As categorias (trad Fernando Coelho Florianoacutepolis Ed Da UFSC 2014 p 9-10)

ldquo A grande questatildeo realmente capaz de colocar a tradiccedilatildeo em xeque eacute a de saber se a compreensatildeo do real

pelas categorias ontoloacutegicas de substacircncia qualidade quantidade tempo lugar etc eacute o que eacute porque as

categorias gramaticais de substantivo e sujeito adjetivo e predicadoetcjaacute se instalaram de antematildeo e

predeterminaram o escopo daquela compreensatildeo ndash metafiacutesica como lsquofeacute na gramaacuteticarsquo como aponta

Nietzsche ndash ou se ao contraacuterio o limite da gramaacutetica ocidental para dizer o real eacute que eacute por ser preacute-limitada

por sua compreensatildeo metafiacutesicardquo

70

Para Heidegger a filosofia deve sempre voltar-se para a vida faacutetica e cabe agrave

definiccedilatildeo filosoacutefica tornar expliacutecita a interpelaccedilatildeo A filosofia natildeo eacute portanto um

conjunto de mateacuterias determinadas (loacutegica ontologia poliacutetica esteacutetica etc) No sentido

formal57 da definiccedilatildeo (determinar o objeto em seu ser-o-que-como [ was-wie-sein]) a

filosofia eacute indicativa (anzeigend) cujo princiacutepio possui um caraacuteter bem especiacutefico

identificar a visatildeo preacutevia Mas o que eacute essa visatildeo preacutevia

ldquoNatildeo haacute aqui como contornar a facticidade do mundo que eacute o nosso e isto natildeo

porque ela definiria a nossa postura em relaccedilatildeo agraves coisas e funcionaria como um

matiz de ordem espiritual em nossa ligaccedilatildeo com o todo mas porque ela perpassa

originariamente o horizonte mesmo a partir do qual os entes se mostram como os

entes que satildeo Esse horizonte possui aleacutem disso um caraacuteter histoacuterico

sedimentado Ele natildeo se determina de maneira loacutegico-transcendental () mas se

constroacutei historicamente a partir de decisotildees de pensamento que vatildeo

paulatinamente determinando que se mostra ou natildeo como dotado de sentidordquo

(CASANOVA 2009 p47)

Assim contra o pensamento imperante da tradiccedilatildeo

ldquoO que se denomina filosoacutefico assim como os termos de acordo com os quais

problemas considerados filosoacuteficos satildeo levantados natildeo nasce nunca de uma

anaacutelise puramente loacutegica Ao contraacuterio tanto a designaccedilatildeo de algo como

filosoacutefico quanto o modo de colocaccedilatildeo dos problemas filosoacuteficos em geral

depende de estruturas faacuteticas que foram sendo lentamente decididas no interior

da tradiccedilatildeo Se desconsiderarmos uma tal dependecircncia o que fazemos eacute

simplesmente assumi-las como oacutebvias () que impedem um tratamento

originaacuterio dos fenocircmenosrdquo (CASANOVA 2009 p 47)

Seguindo Escudero no proacutelogo escrito agrave sua traduccedilatildeo do Relatoacuterio Natorp (2002

p11) para atingir a realidade primaacuteria da vida faacutetica Heidegger nos anos 1920 se

movimenta em duas decisotildees A primeira decisatildeo metodoloacutegica eacute desdobrada em dois

momentos a) o primeiro desconstrutivo descerrar o intricado mapa conceitual da

filosofia e voltar-se ao fenocircmeno da vida b) e o segundo construtivo fazer uma anaacutelise

formal dos diversos modos de efetivaccedilatildeo da vida em seu processo de realizaccedilatildeo histoacuterica

E a segunda decisatildeo a anaacutelise das estruturas ontoloacutegicas da vida que corresponde agrave

hermenecircutica fenomenoloacutegica do ser-aiacute precisamente agrave pergunta pelo sentido do ser no

57 A loacutegica para Heidegger eacute formalista natildeo formal Diz-se formal em relaccedilatildeo agrave indicaccedilatildeo formalista em

relaccedilatildeo a operacionalidade dos elementos da loacutegica Cf HEIDEGGER 2011 p28

71

interior mesmo do acontecimento preacute-teoacuterico da cotidianidade do ser-aiacute para assim ter

acesso ao sentido do ser em geral

Portanto o meacutetodo fenomenoloacutegico como indicativo-formal eacute parte do processo

metodoloacutegico construtivo para o acesso agrave vida faacutetica como maneira de fazer vir ao

encontro os fenocircmenos sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica bem como a maneira de

desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos categoriais de definiccedilatildeo

O elemento decisivo eacute a experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica no como do

aparecer de qualquer objeto e na medida em que este possa ser definido ldquodevem ser

hauridas do modo como o objeto se torna acessiacutevel originariamenterdquo (HEIDEGGER

(GA61) 2011 p28) Com outras palavras qualquer significado compreendido como

indicativo-formal e a expressatildeo linguiacutestica desse conceito satildeo proposiccedilotildees caracterizadas

como indicaccedilotildees hermenecircuticas A terminologia filosoacutefica e seu questionar mais

originaacuterio devem a cada vez indicar o campo situacional histoacuterico de onde extraem seus

conceitos Nas palavras de Heidegger (GA61) ldquoo decisivo eacute o desdobramento radical e

claro de uma situaccedilatildeo hermenecircutica como temporalizaccedilatildeo da proacutepria problemaacutetica

filosoacuteficardquo (2011 p11) Portanto a interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do conhecimento58

para Heidegger exige uma modificaccedilatildeo a pergunta se transforma em ldquocomordquo eacute o

conhecimento ldquoComordquo as coisas vecircm ao encontro e natildeo mais uma definiccedilatildeo que

responderia agrave questatildeo com pretensatildeo atemporal ldquoo que eacute o conhecimentordquo ou ldquoo que eacute

este enterdquo

Por conseguinte os indicadores formais tecircm a funccedilatildeo de explicitar e natildeo de

explicar pois seu caraacuteter indicativo formal potildee em tela atraveacutes de um conceito

inicialmente vazio e sem caraacuteter determinador elementos da proacutepria facticidade

(Faktizitaumlt) para que a anaacutelise hermenecircutica possa compreendecirc-los no interior mesmo da

facticidade e dessa forma encontrar o lugar vivo de cada elemento na estrutura

ontoloacutegica da realidade Mas qual a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo

situacional sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica e que revele tanto a situaccedilatildeo

58 Aqui vemos o compromisso de Heidegger com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do

sentido do conhecimento diligecircncia herdada da fenomenologia Poreacutem agora submetida a abordagem

ontoloacutegica E nesse sentido a abordagem hermenecircutica de Heidegger revela o caraacuteter derivado (de uma

situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento

72

compreensiva quanto descontrua a evidecircncia de toda determinaccedilatildeo conceitual dos entes

revelando antes o seu aparecer como ente Eacute o tema de nosso proacuteximo toacutepico

III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger

Segundo Heidegger ldquoo decisivo na investigaccedilatildeo de Dilthey natildeo eacute a teoria da ciecircncia

da histoacuteria senatildeo a tendecircncia em colocar a realidade histoacuterica agrave vista para a partir dela

esclarecer de que modo e maneira eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo59rdquo (HEIDEGGER (GA20)

2006 p34) Contudo Dilthey se movimenta no marco do questionamento de sua eacutepoca

buscando atraveacutes da vivecircncia da consciecircncia trazer agrave vista a realidade e a validade das

ciecircncias histoacutericas pois busca a partir da vida psiacutequica do sujeito histoacuterico o fundamento

para a garantia da objetividade dos elementos histoacutericos

Ao apresentar o imperativo das ciecircncias naturais e sua apropriaccedilatildeo da noccedilatildeo de

fenocircmeno no final do seacuteculo XIX em Ontologia (Hermenecircutica da facticidade) (GA63)

Heidegger apontou que na tentativa de superaccedilatildeo da metodologia cientiacutefica natural

apesar de ter negado sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito Dilthey se movimentou a partir

dessa orientaccedilatildeo pois seu projeto consistiu em lanccedilar as bases teoacutericas em uacuteltima anaacutelise

com pretensatildeo cientiacutefica para a abordagem dos fenocircmenos histoacutericos

ldquoO trabalho da filosofia concentra-se cada vez mais na teoria da ciecircncia na loacutegica

em seu sentido mais amplo e justamente com a loacutegica na psicologia Ambas

tomam a orientaccedilatildeo da ciecircncia natural e em particular da teoria do

conhecimento que vendo-se realizada na ciecircncia natural o conhecimento

verdadeiro busca as condiccedilotildees de tal conhecimento na consciecircncia Pretende-se

fazer o mesmo com a ciecircncia do espiacuterito dando supostamente um passo adiante

na direccedilatildeo que Kant havia delineado Aqui se considera que a tarefa principal

consiste na demarcaccedilatildeo serviram aqui de criteacuterio a ciecircncia natural embora per

negationem [] Ateacute mesmo Dilthey o qual estaacute propriamente arraigado na

histoacuteria e na teologia caracterizava a ciecircncia do espiacuterito como lsquocriacutetica da razatildeo

histoacutericarsquo apoiando-se naturalmente na problemaacutetica kantianardquo (HEIDEGGER

(GA63) 2012 p76)

Como dissemos Dilthey busca uma epistemologia das ciecircncias humanas a partir

da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos E a vivecircncia particular da consciecircncia

59 ldquoLo decisivo em el planteamiento de Dilthey no es la teoriacutea de la ciencia de la historia sino la tendencia

a poner la realidad de lo histoacuterico a la vista para a partir de ello aclarar de queacute modo y manera es posible

la interpretaciacuteonrdquo Opcit p34

73

como vida conexa e estruturante eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu

projeto Mesmo que Dilthey natildeo recorra agrave noccedilatildeo kantiana de sujeito transcendental ainda

estaacute subordinado agrave necessidade de fundamentaccedilatildeo uacuteltima ndash obrigatoriedade do

pensamento cientiacutefico criacutetico - por isso parte dos dados da psicologia descritiva

acreditando que eles poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar para as ciecircncias

humanas Dito de outro modo ainda que Dilthey tenha se negado a aplicar a metodologia

das ciecircncias naturais agraves ciecircncias humanas natildeo escapou ao ideal cientiacutefico de sua eacutepoca e

sucumbiu ao enrijecimento tradicional da estrutura do conhecimento como fundamento

Contudo Dilthey deu uma grande contribuiccedilatildeo agrave filosofia de sua eacutepoca ao pocircr a

realidade histoacuterica agrave vista e ao propocirc-la como ponto de partida para a anaacutelise que visa

esclarecer de que modo eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo Afastado da estrutura do conhecimento

como fundamento Heidegger indica a anaacutelise hermenecircutica como a forma de apreensatildeo

da abertura originaacuteria de sentido na qual se encontra o ser-aiacute enquanto ser-no-mundo e

como a preacute-compreensatildeo de seu ser e de todo e qualquer ente Com poucas palavras a

hermenecircutica fenomenoloacutegica (ou intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica no interior da situaccedilatildeo

hermenecircutica) constitui a condiccedilatildeo de possibilidade de toda investigaccedilatildeo ontoloacutegica

Aqui o termo ldquosentidordquo natildeo significa definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo mas a manifestaccedilatildeo do

ente em seu ser ou seja no modo como aquilo pode vir ao encontro e se manter como

ente e em uacuteltima instacircncia manter-se em seu significado Assim a apreensatildeo filosoacutefica

dessa abertura de sentido primaacuteria deve ser alcanccedilada na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo de

compreensatildeo dos entes no modo como os entes vecircm ao encontro sem qualquer teoria

pela formaccedilatildeo da posiccedilatildeo preacutevia Eacute por isso que ldquoo decisivo para a configuraccedilatildeo de uma

posiccedilatildeo preacutevia eacute ver o ser-aiacute em sua cotidianidade A cotidianidade caracteriza a

temporalidade do ser-aiacute (concepccedilatildeo preacutevia) Eacute inerente agrave cotidianidade certa medianidade

do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER (GA63) 2012 p90)

Indicamos alguns termos que ainda natildeo foram devidamente esclarecidos como

ser-aiacute ser-no-mundo temporalidade Trataremos mais detidamente desses termos baacutesicos

para a compreensatildeo da filosofia de Heidegger no proacuteximo capiacutetulo a partir da obra

principal de nossa dissertaccedilatildeo No momento faremos apenas esclarecimentos breves para

que possamos prosseguir a nossa apresentaccedilatildeo

74

Na tentativa de desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos

categoriais de definiccedilatildeo (gecircnero e diferenccedila especiacutefica) e a fim de acessar a mostraccedilatildeo

originaacuteria do fenocircmeno Heidegger usa a expressatildeo ser-aiacute (Dasein) para caracterizar

aquele ente que noacutes mesmos somos e indicar sua negatividade categorial pois o ser-aiacute soacute

eacute a partir do seu aiacute de sua existecircncia (mundo faacutetico no qual eacute lanccedilado) sem qualquer

categoria preacutevia que o defina Ponderaccedilatildeo apresentada pelo autor

ldquoAo chamar de homem o ser-aiacute que iraacute investigar coloca-se jaacute de antematildeo dentro

de uma determinada concepccedilatildeo categorial visto que o exame eacute levado a cabo

seguindo a direccedilatildeo da definiccedilatildeo tradicional de lsquoanimal racionalersquo () Tendo tal

definiccedilatildeo como direccedilatildeo define-se a descriccedilatildeo numa perspectiva determinada

sem que com ela se recuperem ativamente os motivos originaacuterios de tal maneira

de ver as coisasrdquo (HEIDEGGER(GA63) 2012 p34)

Mas entatildeo o que significa dizer que o ser-aiacute se encontra enquanto ser-no-mundo

Ao indicar o ser-aiacute Heidegger jaacute aponta a sua constituiccedilatildeo fundamental como ser-no-

mundo Mundo natildeo eacute um ente natildeo eacute o conjunto de entes nem eacute qualquer espacialidade

geomeacutetrica Ser-no-mundo eacute o encontro originaacuterio com a proacutepria facticidade (Faktizitaumlt)

e todas as possibilidades lanccediladas nesse encontro primordial ou como jaacute dissemos a

abertura de sentido na qual se encontra o ser-aiacute primariamente em seu mundo circundante

ldquoSer-no-mundo natildeo quer dizer aparecer entre outras coisas significa poreacutem

ocupar-se no circundante do mundo que vem ao encontro demorar-se nele O

modo proacuteprio de ser mesmo num mundo eacute o cuidado (sorge) () A vida se deixa

atingir ou fala consigo mesma mundanamente no e pelo cuidadordquo (HEIDEGGER

(GA63)2012 p107)

Se Dilthey compreende a categoria do significado como mediadora entre a

vivecircncia da consciecircncia e a realidade histoacuterica para Heidegger a significacircncia eacute a

articulaccedilatildeo do proacuteprio mundo que natildeo vem ao encontro a partir da consciecircncia mas da

ocupaccedilatildeo jaacute orientada pela facticidade (Faktizitaumlt) ldquoA significacircncia eacute um como do ser e

nele centra-se precisamente o categorial do mundo do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER(GA63)

2012 p91) E assim a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo situacional

sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica se daacute a partir da ocupaccedilatildeo do ser-aiacute que estaacute no mundo

propriamente como cuidado Cuidado natildeo quer dizer cuidado de si mas a disposiccedilatildeo agraves

coisas e a si em seu ser estar voltado para o ser dos entes E no caso da imediatidade da

vida a intencionalidade praacutetica que orienta a ocupaccedilatildeo

75

Para Heidegger trazer a realidade histoacuterica agrave vista eacute apropriar-se da situaccedilatildeo

hermenecircutica ou seja conquistar o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se

encontra o fenocircmeno da vida considerando que ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto

apropriaccedilatildeo compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo

(HEIDEGGER(GA62) 2002 p30) Em outras palavras o passado se manifesta sob a

interpretaccedilatildeo e abertura compreensiva possiacutevel no presente E portanto a partir da

abertura que dispotildee o presente lanccedilando suas possibilidades a tarefa da filosofia eacute

apropriar-se dessa compreensatildeo tendo em vista que ela atravessa o ser-aiacute em seu caraacuteter

ontoloacutegico que pode abrir-se a compreensatildeo de ser dos entes Eacute a partir daiacute que

ldquoVem agrave tona o papel paradigmaacutetico da filosofia platocircnico-aristoteacutelica para

Heidegger Segundo o filoacutesofo o que tem lugar em Platatildeo e Aristoacuteteles natildeo eacute algo

que diz respeito apenas ao interesse acadecircmico particular de um grupo de eruditos

especializados em suas obras Natildeo eacute filologia que nos fornece uma primeira via

de acesso aos elementos centrais de suas diversas compreensotildees nem tampouco

a filosofia acadecircmica que nos propicia pela primeira vez uma visatildeo clara do perfil

propriamente dito de seus escritos geniais Ao contraacuterio Platatildeo e Aristoacuteteles satildeo

decisivos para a constituiccedilatildeo das estruturas preacutevias de nossa interpretaccedilatildeo dos

entes porque temos neles a origem de boa parte dos horizontes investigativos

posteriormente sedimentadosrdquo (CASANOVA 2009 p59)

Heidegger entatildeo busca em Aristoacuteteles o ponto de partida natildeo soacute para as

interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas enquanto repeticcedilatildeo da pergunta ontoloacutegica fundamental

como tambeacutem para a interpretaccedilatildeo do uacutenico ente capaz de compreender o sentido do ser

dos entes o ser-aiacute Natildeo sem questionar a leitura tradicional da obra de Aristoacuteteles

Heidegger retomou a importante ldquodoutrinardquo do estagirita a qual estabelecia uma relaccedilatildeo

entre a sabedoria praacutetica (φρόνησις) a sabedoria (σοφία) e a vida do homem e seu modo

de existecircncia (βιος) De modo mais claro

ldquoAteacute Heidegger era comum tratar a obra de Aristoacuteteles a partir de um primado

da filosofa teoacuterica em relaccedilatildeo agrave filosofia praacutetica um primado que havia sido

preparado pelo modo tradicional de leitura do estagirita Partindo da concepccedilatildeo

aristoteacutelica da vida teoacuterica (βίος θεωρητικός) como a vida mais plena possiacutevel e

da filosofia como uma ciecircncia que natildeo se ateacutem aos entes em geral nem tampouco

a um ente especiacutefico mas que tem por uacutenico objeto o ser enquanto ser a

interpretaccedilatildeo tradicional do corpus aristoteacutelico cindiu radicalmente o acircmbito

praacutetico do acircmbito teoacuterico definindo o segundo como o uacutenico acircmbito da verdade

propriamente dita Com isso o acircmbito praacutetico foi relegado a um segundo plano

ao plano daquilo que dizia respeito apenas agrave melhor forma mundana de vidardquo

(CASANOVA 2009 p64)

76

O que estaacute em questatildeo para Heidegger natildeo eacute apenas identificar o fato de que nos

encontramos numa determinada tradiccedilatildeo definida por um extrato do conhecimento

historiograacutefico mas compreender radicalmente como nos situamos nessa tradiccedilatildeo No

texto de 1922 Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da

situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) comumente chamado de Natorp-Bericht ou Relatoacuterio-

Natorp Heidegger tenta explicitar a situaccedilatildeo hermenecircutica atraveacutes do como (wie) de todo

aparecer dos entes e das possibilidades do ser-aiacute na vida faacutetica Sendo o ser-aiacute aquele que

compreende a si mesmo e os outros entes sem qualquer preacutevia teorizaccedilatildeo em seu

acontecimento compreensivo Para tanto eacute necessaacuterio esclarecer as condiccedilotildees de

compreensatildeo e interpretaccedilatildeo ou conquistar o horizonte de sentido jaacute aberto no qual jaacute se

encontra o fenocircmeno da vida As condiccedilotildees satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a

direccedilatildeo da visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a

lsquovisibilidadersquo (Sichtweite)60 Satildeo essas condiccedilotildees que compotildeem a compreensatildeo e a

interpretaccedilatildeo ontoloacutegicas-temporais do ser-aiacute em relaccedilatildeo agraves suas possibilidades de ser e

em relaccedilatildeo aos entes que lhe vem ao encontro Essas condiccedilotildees natildeo satildeo lsquobarreirasrsquo para

o entendimento ao contraacuterio satildeo condiccedilotildees de abertura primaacuteria para qualquer

compreensatildeo ontoloacutegica Tentando esclarecer em (1) temos o acircmbito da realidade dada

em uma preacutevia abertura temporal de sentido em (2) a direccedilatildeo que jaacute determinou algo

ldquocomo-algordquo (Als-was) e ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu

lugar significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de

toda possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o

como do aparecer dos entes em seu ser e as possibilidades de comportamentos do ser-aiacute

eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto (1) e jaacute

interpretado (2) e por isso pode mover-se com pretensotildees de objetividade e definiccedilatildeo dos

entes

Eacute a partir dessas consideraccedilotildees que Heidegger desconstroacutei as noccedilotildees de

Aristoacuteteles engessadas pela tradiccedilatildeo de noucircs phroacutenesis e sophiacutea natildeo mais como

conceitos definidos a partir da leitura tematicamente eacutetica do Estagirita mas a partir da

orientaccedilatildeo da biacuteos ou seja da vida do homem e seu modo de existecircncia faacutetica No interior

do Relatoacuterio-Natorp a partir da interpretaccedilatildeo do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco de

60 Cf HEIDEGGER(GA62)2002 p29

77

Aristoacuteteles Heidegger apresenta essas virtudes dianoeacuteticas como ldquodiferentes

modalidades que permitem levar a cabo uma autecircntica custoacutedia do ser na verdade61rdquo

(HEIDEGGER (GA62) 2002 p60) O que quer dizer que se trata dos modos pelos quais

o ser-aiacute protege o ser dos entes enquanto desvelado (ἀλήθεια)

Para Heidegger o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona

um lsquoaquirsquordquo62 (HEIDEGGER(GA62) 2002 p66) essa virtude proacutepria do homem ldquose

realiza como ενέργεια como atividade () ou seja o νους abre um horizonte que sempre

responde a um modo concreto de tratar com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma

execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma determinaccedilatildeo63rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002

p66) O noucircs compreendido tradicionalmente como intelecto racional eacute proacuteprio do

homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica (homem (animal [gecircnero] + racional [diferenccedila

especiacutefica]) mas porque o homem ou melhor o ser-aiacute eacute o ente que pode custodiar abrir-

se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um compreender que jaacute interpreta

os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto na vida faacutetica que acontece

fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da

solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato praacutetico com os entes Essa

orientaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel porque no noucircs ldquoo loacutegos o legein eacute o modo atraveacutes do qual se

realiza o noein e como tal eacute um como tal eacute um διανοείσθαι um inteligir que decompotildee

e que apreende64rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002 p65) Vimos (II) que o λόγος na

fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν de interpretaccedilatildeo e natildeo diz

respeito agrave definiccedilatildeo linguiacutestica de um ou outro ente mas previamente a qualquer

determinaccedilatildeo gramatical ou categorial refere-se ao que manteacutem o ente como existente

portanto desvelado e interpretado em seu lsquocomo-entersquo Assim a relaccedilatildeo fundamental da

phroacutenesis - que prescreve o como o para-que do ente (utensiacutelio) - ao ser-aiacute eacute o

61 ldquoLa interpretacioacuten de este tratado prescindiendo provisionalmiente de la problemaacutetica especiacuteficamente

eacutetica permite comprender que las laquovirtudes dianoeacuteticasraquo son diferentes modalidades que permiten llevar a

cabo uma auteacutentica custodia del ser en la verdaderdquo Opcitp60 62 ldquoEl νους ofrece en general una perspectiva da algoproporciona un lsquoaquiacutersquordquoOp cit p66

63 ldquoEl νοῦς que es ίδιος άνθρωπος se realiza concretamente como ενέργεια como actividad como su

propia actividad es decir el νοῦς abre un horizonte que siempre responde a un modo concreto de tratar

con el mundo a traveacutes de una opercioacuten de una ejecucioacuten de una manipulacioacuten de una determinacioacutenrdquo

Opcitp66

64 ldquoel λόγος el λέγειν es el modo em el que se realiza el νοεῖν y como tal es un διανοείσθαι un inteligir

que decompone lo que apreenderdquo Opcit p65

78

desvelamento do ente no instante do proacuteprio trato da proacutepria atividade praacutetica sem

qualquer mediaccedilatildeo teoacuterica com o ente

Mas as atividades praacuteticas satildeo realizadas natildeo com fim em si mesmas mas com

vistas agrave execuccedilatildeo de um fim mobilizado pelo proacuteprio ser-aiacute em sua vida cotidiana e faacutetica

Assim o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se encontra o fenocircmeno da vida

parte do instante mesmo que potildee ao alcance da vista circunspecta o modo de

comportamento apropriado com o ente com vistas agrave execuccedilatildeo de um fim Desse modo

ldquoO ser da vida eacute considerado como uma atividade que encontra em si mesmo seu

fim o ser da vida se encontra nessa atividade quando a vida humana chegou a

seu fim com respeito a sua possibilidade de movimento mais proacutepria a

possibilidade de inteligir puro Essa atividade eacute proacutepria da εξις [do modo de ser]

que se conhece como σοφία Conforme seu caraacutecter intencional o compreender

puro natildeo custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo

forma parte do horizonte intencional da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso

pode ser de outra maneira O ser da vida humana deve ser considerado

unicamente desde a perspectiva da temporalizaccedilatildeo pura da σοφία como tal e em

razatildeo da autecircntica atividade a sua disposiccedilatildeordquo65 (HEIDEGGER (GA62) 2002

p71)

Assim o sentido do ser soacute pode ser abordado atraveacutes do ser-aiacute pois a pergunta

pelo ser do ser-aiacute possibilita a pergunta pelo sentido do ser em geral natildeo por um

fundamento teoacuterico mas como uma condiccedilatildeo ontoloacutegica O ser-aiacute eacute o ente que pode abrir-

se ao desvelamento dos entes e o faz a partir da proacutepria vida faacutetica sem qualquer

teorizaccedilatildeo preacutevia o ser-aiacute mobiliza o ser dos entes em geral em funccedilatildeo da proacutepria vida

ou seja dos modos possiacuteveis de ser a partir de sua temporalidade

Desde as primeiras investigaccedilotildees de Heidegger na deacutecada de 1920 daacute-se uma

profunda transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia a qual consiste na tentativa de

mostrar como eacute possiacutevel articular filosoficamente uma ciecircncia originaacuteria da vida ou em

mostrar como se daacute a realidade antes de qualquer consideraccedilatildeo cientiacutefica ajuizante isso

65 ldquoEl ser de la vida es considerado como uma actividad que encuentra em siacute mesma su fin el ser da la vida

se encuentra em esta actividad cuando la vida humana haacute llegado a su fin com respecto a su posibilidad de

movimento maacutes propia la posibilidad del inteligir puro Esta actividad es propia de la εξις [del modo de

ser] que se conoce como σοφία Conforme a su caraacutecter intencional el comprender puro no custodia la vida

humana en el modo de su ser faacutectico la vida humana no forma parte del horizonte intencional de la σοφία

ya que es un ente que en cada caso puede ser de otra manera El ser de la vida humana debe considerarse

unicamente desde la perspectiva de la temporalizacioacuten pura de la σοφία como tal y en razoacuten de la auteacutentica

actividad a su disposicioacutenrdquo Opcitp71

79

quer dizer antes de qualquer concepccedilatildeo teoacuterica de mundo Nesse sentido vimos que a

intencionalidade fenomenoloacutegica eacute intuiccedilatildeo compreensiva ou intuiccedilatildeo hermenecircutica em

meio ao mundo circundante que vem ao encontro E as coisas que vecircm ao encontro natildeo

respondem primariamente ao tradicional esquema sujeito-objeto mas resultam

compreensiacuteveis a partir da pertenccedila preacutevia a um mundo jaacute articulado ou a partir de um

estado de coisas preacute-compreendido na vida faacutetica que articula toda e qualquer

compreensatildeo do homem (das coisas e de si mesmo) desde sua existecircncia imediata no

mundo Dito de outro modo revela-se como compreensatildeo ontoloacutegica

Ao decidirmos apresentar as preleccedilotildees de Heidegger que antecederam a obra central

para o nosso trabalho foi nosso intuito elucidar os princiacutepios que provavelmente

motivaram a problemaacutetica exposta em Ser e Tempo A partir de agora nossa tarefa seraacute a

de tentar compreender a partir da obra de 1927 como o fenocircmeno da linguagem aparece

no interior dessa compreensatildeo e em que medida a linguagem eacute possiacutevel por uma

estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Eacute a tentativa de nosso proacuteximo capiacutetulo

80

Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da

linguagem (Sprache) em Ser e Tempo

ldquoa maacutequina do mundo se entreabriu para quem de a romper jaacute se esquivava e soacute de o ter pensado se carpiardquo (A maacutequina do mundo Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

Nos capiacutetulos anteriores descrevemos como do desenvolvimento das ciecircncias

positivas particulares no final do seacuteculo XIX emergiu a discussatildeo acerca do sentido e da

possibilidade do conhecimento No interior desse contexto destacamos o pensamento de

Husserl de Dilthey e as linhas gerais de alguns neokantianos de Baden A partir daiacute

descrevemos como a criacutetica heideggeriana agrave filosofia dos valores dos neokantianos

conduziu-o ao que ele proacuteprio chamou de lsquoes gibtrsquo originaacuterio como o campo

hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Para compreender a questatildeo pelo

sentido do ser em geral ie a proacutepria ontologia para Heidegger era necessaacuterio esclarecer

que a fenomenologia natildeo estava fundada na epistemologia (a partir da consciecircncia) e que

a hermenecircutica natildeo era apenas um instrumento metodoloacutegico capaz de nos dar acesso agrave

histoacuteria em sua objetividade mas muito mais do que isso ela era intuiccedilatildeo compreensiva

e imediata do mundo Assim a partir da criacutetica imanente que Heidegger fez ao meacutetodo

fenomenoloacutegico husserliano foi possiacutevel compreender como ele reconduziu a filosofia agrave

pergunta fundamental inaugurada no iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo a

pergunta pelo ser Aleacutem disso como o pensador desenvolveu a hermenecircutica voltada agrave

facticidade da vida natildeo em funccedilatildeo das vivecircncias da consciecircncia dos sujeitos histoacutericos

mas das vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico Todo esse percurso foi necessaacuterio para que

pudeacutessemos conquistar um solo interpretativo capaz de sustentar a anaacutelise do fenocircmeno

da linguagem tal como aparece em Ser e Tempo E ainda alcanccedilar a pergunta pelo

81

sentido de ser Pois ela a pergunta estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura

de sentido que precisamos explicitar

Contra a tradicional abordagem do problema da linguagem que mais comumente

focalizou as obras de Heidegger apoacutes a viragem (die Kehre)66 ie os escritos a partir

da deacutecada de 1930 neste capiacutetulo defenderemos que o fenocircmeno da linguagem (Sprache)

jaacute desempenha um papel decisivo em Ser e Tempo e que ele soacute se torna possiacutevel a partir

de uma das estruturas preacutevias existenciaacuterias examinadas na citada obra e que eacute a

estrutura de mostraccedilatildeo dos entes Assim embora admitindo que a questatildeo da linguagem

ainda natildeo estivesse posta de modo expliacutecito ou temaacutetico nosso trabalho pretende chamar

atenccedilatildeo para a inegaacutevel funccedilatildeo que a linguagem cumpre jaacute na obra de 1927

No sect 18 de Ser e Tempo Heidegger afirma que a significatividade funda a

possibilidade de significaccedilotildees e estas a possibilidade da linguagem

Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez

familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o

Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como

lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutengua

(HEIDEGGER 2012p261)

66 Apoacutes a Kehre nos anos 1930 a questatildeo do sentido de ser eacute reconduzida agrave histoacuteria e verdade do seer Este

movimento estaacute diretamente relacionado com o limite mesmo da obra de 1927 pois o processo de

singularizaccedilatildeo do ser-aiacute conforme elaborado em Ser e Tempo parece natildeo ser suficiente para a

movimentaccedilatildeo do horizonte histoacuterico e de sua semacircntica fechada Essa insuficiecircncia eacute levada agraves uacuteltimas

consequecircncias a partir dos anos 1930 e radicalizada com uma viragem em direccedilatildeo ao campo dos

acontecimentos histoacutericos Em Ser e tempo a negatividade proacutepria ao ser-aiacute apontava para a possibilidade

de mobilidade histoacuterica a partir da assunccedilatildeo como singularizaccedilatildeo de sua proacutepria negatividade e de sua

responsabilidade mais proacutepria como ser-aiacute de decisatildeo quanto aos caminhos de sua proacutepria existecircncia Jaacute

apoacutes a viragem a negatividade se mostraraacute natildeo somente a partir do ser-aiacute mas tambeacutem no assentamento

de toda abertura histoacuterica compreensiva uma negatividade que se mostraraacute na ausecircncia mesma de

fundamentos absolutos Caberia ademais considerar um aprofundamento das estruturas fenomenoloacutegicas

mais fundamentais no decorrer do pensamento de Heidegger Seraacute que em Ser e Tempo podemos defender

que a abertura que sustenta o sentido de ser do ser-aiacute como cuidado e temporalidade (Zeitlichkeit) estaria

afinal assentada no tempo histoacuterico Questatildeo afinal expressa na uacuteltima linha de Ser e tempo ldquoO tempo

(Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Seria entatildeo possiacutevel

pensar esse aprofundamento do gesto fenomenoloacutegico como a busca do limite de qualquer

intencionalidade Dito de outro modo apoacutes a Kehre o ser enquanto Ereignis (acontecimento apropriador)

poderia ser compreendido como o acircmbito sempre fugidio de toda e qualquer intencionalidade mas ao

mesmo tempo acircmbito no qual unicamente toda e qualquer intencionalidade pode acontecer Revelar-se-ia

o sentido fenomenoloacutegico do que Heidegger chama de clareira (die Lichtung)

82

Na seacutetima ediccedilatildeo de Ser e Tempo publicada em 1953 numa nota muito

esclarecedora acrescentada justamente a esta passagem acima citada Heidegger

evidenciou a diferenccedila entre a sua concepccedilatildeo da linguagem nos anos 20 e aquela apoacutes a

viragem Essa nota apareceu nas obras completas publicadas a partir de 1977 e tambeacutem

na traduccedilatildeo brasileira aqui utilizada Nessa nota muito importante para o objetivo desta

pesquisa o autor corrigiu sua proacutepria afirmaccedilatildeo (1927) de que a linguagem era derivada

Em 1953 ele declarou categoricamente que natildeo era verdadeiro que ldquoDasein-que-entende

[pudessecc] abrir como interpretante algo assim como lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais

[fundariamcc] novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo E que ldquoa liacutengua natildeo eacute

um pavimento sobreposto a outro senatildeo que eacute o desdobrar-se originaacuterio da verdade como

[aiacute] (HEIDEGGER 2012p261 nota c) Essa correccedilatildeo nos daacute uma prova de que a

concepccedilatildeo de linguagem em Ser e Tempo possuiacutea uma estratificaccedilatildeo que natildeo mais eacute aceita

apoacutes os anos 30 Poreacutem como aponta Stein o fenocircmeno da linguagem jaacute desempenhava

um importante e inegaacutevel papel no interior do tratado de 1927

Heidegger liga o questionamento de sua obra prima ao problema da linguagem

Ela assume papel condutor na elaboraccedilatildeo de seu meacutetodo e na realizaccedilatildeo analiacutetica

existencial No meacutetodo fenomenoloacutegico como interpretaccedilatildeo ou hermenecircutica

universal como apossamento de tudo o que foi transmitido pela tradiccedilatildeo atraveacutes

da linguagem como destruiccedilatildeo e revolvimento do chatildeo linguiacutestico da metafiacutesica

ocidental se descobre um imenso projeto de analiacutetica da linguagem Mas como

o meacutetodo fenomenoloacutegico visa o redimensionamento da questatildeo do ser natildeo numa

abstrata teoria do ser nem numa pesquisa historiograacutefica de questotildees ontoloacutegicas

mas numa imediata proximidade com a praacutexis humana como existecircncia e

facticidade a linguagem - o sentido a significaccedilatildeo - natildeo eacute analisada nun sistema

fechado de referecircncias mas ao niacutevel da historicidade Se no meacutetodo dialeacutetico

podemos encontrar uma certa miacutestica teleo-loacutegica (teleacuteo-troacutepica) a palavra no

meacutetodo do positivismo uma certa tecno-loacutegica da linguagem encontramos no

meacutetodo fenomenoloacutegico de Heidegger uma certa onto-loacutegica do dizer isto eacute uma

compreensatildeo da dimensatildeo preacute-ontoloacutegica da linguagem ligada a explicitaccedilatildeo do

mundo como horizonte de transcendecircncia (STEIN1971 p14)

Ser e Tempo possui certo caraacuteter preparatoacuterio pois eacute a tentativa de reformulaccedilatildeo

da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido depende justamente daquela

reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo O objetivo do tratado

eacute nos proacuteprios termos de Ser e Tempo a elaboraccedilatildeo concreta da pergunta pelo sentido

de ldquoserrdquo (Sinn von Sein) (HEIDEGGER2012 p31) No interior da elaboraccedilatildeo da proacutepria

83

pergunta a abordagem fenomenoloacutegica-hermenecircutica como meacutetodo de acesso ao sentido

de ser de todo ente acaba por demonstrar que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as

coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um campo de signos referenciais fechados que

doam significado agraves coisas mas uma manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez

se faz presente na facticidade da existecircncia concreta Nossa tentativa no presente capiacutetulo

eacute compreender como a partir da reelaboraccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ser e de seu

desenvolvimento nessa obra a linguagem se mostra enquanto manifestaccedilatildeo uacuteltima de um

horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo previamente

articulada dos entes e das possibilidades do ser-aiacute E dessa maneira indicar como as

palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da

experiecircncia hermenecircutica Mas antes de iniciarmos nosso capiacutetulo eacute necessaacuterio fazer

algumas consideraccedilotildees que se tornaram agora possiacuteveis apoacutes o desenvolvimento dos

capiacutetulos anteriores e as quais balizam nossa investigaccedilatildeo central

Certamente a fenomenologia husserliana tambeacutem natildeo atribui agrave linguagem um

aspecto referencial de acesso agraves coisas ao contraacuterio a assim chamada visatildeo das essecircncias

eacute a maneira de depurar o conteuacutedo linguiacutestico do conteuacutedo significativo preacute-linguiacutestico

Nas palavras de Gadamer (2010 p8)

A eleiccedilatildeo do modelo da visatildeo como modo do procedimento fenomenoloacutegico

indica que coisa mesma eacute preacute-conceptual e preacute-linguiacutestica A linguagem permite

articular o sentido da coisa mesma que contudo eacute independente da linguagem Eacute

aliaacutes apenas neste quadro que o exerciacutecio da eacutepoche se torna compreensiacutevel A

epocheacute eacute o que torna possiacutevel a reduccedilatildeo ao estado absolutamente desprovido de

preconceitos Mas o que eacute que torna a epocheacute possiacutevel A epocheacute eacute considerada

por Husserl como uma possibilidade de princiacutepio e como uma possibilidade

universal Mas esta possibilidade pressupotildee que se possa passar de uma plano

predicativo ndasho da linguagem ndash para um plano ante-predicativo - o da pura visatildeo

[] Por outro lado aquilo que se daacute de uma forma originaacuteria e na sua pureza daacute-

se como presenccedila absoluta numa figuraccedilatildeo atemporal Os fenoacutemenos no sentido

husserliano caracterizam-se por serem dados agrave consciecircncia de uma forma

absolutamente evidente e uacuteltima o fenoacutemeno eacute absoluta presenccedila a sua doaccedilatildeo

eacute plena

Husserl busca avanccedilar ateacute um plano imediato da experiecircncia que anteceda agrave

interpretaccedilatildeo como experiecircncia preacute-linguiacutestica a partir de intenccedilotildees linguiacutesticas Assim

busca na intencionalidade do fenocircmeno um estado desprovido de preconceito (epocheacute)

Heidegger alia-se a Husserl contra a tese de que o sentido ou o significado sejam

84

linguiacutesticos Contudo para o autor de Ser e Tempo toda experiecircncia jaacute inclui uma

interpretaccedilatildeo certamente natildeo linguiacutestica mas hermenecircutica e fundamentalmente praacutetica

Dessa forma intencionar um fenocircmeno a partir de um horizonte histoacuterico hermenecircutico eacute

considerar e apropriar-se do significado oferecido pelas condiccedilotildees preacutevias e em uacuteltima

anaacutelise por uma semacircntica sedimentada Dito de outro modo para Husserl a expressatildeo

linguiacutestica eacute a maneira de o pensamento intencionar significaccedilatildeo e a orientaccedilatildeo da

pesquisa pela condiccedilatildeo e possibilidade do conhecimento suspende todo posicionamento

ontoloacutegico da coisa mesma em prol do acesso epistemoloacutegico objetivo aos fenocircmenos Jaacute

na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto ontoloacutegico do

conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e qualquer significado

que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido que eacute tambeacutem histoacuterico e no qual

algo pode manter-se em seu significado Eacute nessa perspectiva que nos colocamos em busca

da estrutura ontoloacutegica da linguagem

Portanto eacute importante ter em vista que para Heidegger

(1) a experiecircncia hermenecircutica traz a significatividade (Bedeutsamkeit) que potildee a

descoberto todo e qualquer ente E na medida em que essa experiecircncia orienta o ponto

de partida da intencionalidade67 ela desvela o ente em seu ser o qual (ente) aparece

como algo No entanto essa significatividade se manteacutem em virtude de uma dupla

67 O termo ldquoDaseinrdquo eacute utilizado por Heidegger para afastar qualquer compreensatildeo de homem como

ldquosujeitordquo ldquoconsciecircnciardquo ldquoanimal racionalrdquo etc Desse modo poder-se-ia pensar que uma vez afastadas

essas interpretaccedilotildees tambeacutem o termo lsquointencionalidadersquo deveria ser desconsiderado pois a fenomenologia

husserliana o utiliza como ato de consciecircncia Natildeo eacute o caso Heidegger ainda manteacutem a orientaccedilatildeo

fenomenoloacutegica poreacutem a desloca da consciecircncia para a abertura compreensiva sendo ser-aiacutemundo a

relaccedilatildeo intencional primaacuteria e ainda essa compreensatildeo eacute fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo

circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser Ou sejavisatildeo natildeo teoacuterica

sem a primazia da consciecircncia A intencionalidade eacute pensada portanto natildeo como ato de consciecircncia mas

abertura compreensiva mobilizada por toda e qualquer performatizaccedilatildeo existencial Em Ser e Tempo o

termo lsquointencionalidadersquo e seus derivados aparecem apenas 4 vezes em 2 momentos 1) No sect10 ldquoAgrave essecircncia

da pessoa pertence o existir somente na execuccedilatildeo dos atos intencionais [intentionalen] e assim ela por

essecircncia natildeo eacute objeto () Em todo caso a pessoa eacute dada enquanto executora de atos intencionais

[intentionaler]ligados pela unidade de um sentidordquo (2012 p155) 2) No sect69 nota 10 ldquoA anaacutelise

intencional [intentionalen] da percepccedilatildeo e da intuiccedilatildeo em geral deveria sugerir essa caracterizaccedilatildeo

lsquotemporalrsquo do fenocircmeno Que e como a intencionalidade [Intentionalitaumlt] da lsquoconsciecircnciarsquo se funda na

temporalidade estaacutetica do Dasein ()rdquo Essa uacuteltima passagem eacute decisiva A intencionalidade eacute portanto

mantida por Heidegger mas deve ser compreendida em funccedilatildeo do sentido de ser do ser-aiacute a temporalidade

que abre compreensivamente o ser dos entes em geral Cf tambeacutem nota 70

85

abertura de sentido (Sinn) a abertura de mundo em funccedilatildeo do ser-aiacute e o sentido de ser

do ser-aiacute em funccedilatildeo da temporalidade de sua existecircncia

(2) a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados

(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Entatildeo o significado pode

vir a ganhar sua expressatildeo e forma predicativas a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo

(Aussage) em sua ligaccedilatildeo derivativa da interpretaccedilatildeo (Auslegung) Apresentando dessa

maneira o caraacuteter originaacuterio da verdade enquanto desvelamento (Aleacutetheia) e natildeo como

aderente ao juiacutezo proposicional como compreendeu a tradiccedilatildeo Eacute assim que se daacute

primariamente o acesso ao fenocircmeno da linguagem em seu sentido ontoloacutegico

Podemos antecipar aqui o que seraacute desenvolvido nesse capiacutetulo a linguagem estaacute

assentada em duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado68 que

revelam a diferenccedila entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm

articulados pela imbricaccedilatildeo radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno

Finalmente pedindo a paciecircncia do nosso leitor antes de comeccedilarmos o capiacutetulo

III vamos repetir um pouco o que jaacute foi adquirido nos dois primeiros capiacutetulos da

Dissertaccedilatildeo quando tentamos mostrar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger no

interior da fenomenologia (a partir de sua criacutetica imanente e radicalizaccedilatildeo do gesto

fenomenoloacutegico) foi decisiva para a virada da questatildeo compreendida como possibilidade

de acesso pelo sentido do conhecimento ao sentido do ser Agora a partir de Ser e Tempo

eacute possiacutevel considerar que houve um aprofundamento desse gesto fenomenoloacutegico Por

outra teria ocorrido um aprofundamento ou uma radicalizaccedilatildeo das estruturas

fenomenoloacutegicas De modo mais claro eacute possiacutevel compreender o percurso heideggeriano

como uma tentativa de lanccedilar a intencionalidade enquanto essecircncia mesma da

68 Diferentemente de VIGO (2012 p71) que considera 3 estruturas compreensatildeo (Verstehen) -

interpretaccedilatildeo (Auslegung) e enunciado (Aussage) noacutes consideraremos apenas duas tendo em vista que

julgamos natildeo ser a compreensatildeo uma estrutura autocircnoma e que portanto ela natildeo deve ser separada da

interpretaccedilatildeo Seguimos a letra do sect32 de Ser e Tempo ldquoNa interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo

diverso mas torna-se ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p421) Pensamos que conceder autonomia agrave

compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido primaacuterio ao natildeo remetecirc-la ao Dasein quem

compreendendo jaacute interpreta e custodia o sentido de ser dos entes jaacute estariacuteamos no campo dos

acontecimentos histoacutericos Portanto estariacuteamos ultrapassando os limites de Ser e Tempo ou mais

especificamente falando os limites da ldquoAnaliacutetica Existencialrdquo

86

fenomenologia num acircmbito fundamental que se abriria a toda e qualquer possibilidade

de intencionalidade Vejamos essas questotildees mais detidamente

Como jaacute indicado tanto em Heidegger como em Husserl existe um primado da

experiecircncia antepredicativa em detrimento da predicaccedilatildeo ou da experiecircncia

predicativamente articulada69 Jaacute na preleccedilatildeo de 1919 Heidegger apontava o lsquoes gibtrsquo

originaacuterio ou a concretude do mundo que se daacute como acircmbito fundamental no qual se abre

a possibilidade de intencionalidade Depois dela as preleccedilotildees dos anos 1920 passaram a

descrever a intencionalidade como uma noccedilatildeo praacutetica orientada pela ocupaccedilatildeo e com base

nisso descreveram a experiecircncia antepredicativa e histoacuterica do significado Mas foi

somente em Ser e Tempo que Heidegger elaborou uma ontologia fundamental a partir da

analiacutetica existenciaacuteria70 do ser-aiacute A ontologia fundamental eacute descrita como a necessidade

de pocircr em questatildeo o ente em que a compreensatildeo de ser enquanto questatildeo eacute possiacutevel ou

como expresso no Relatoacuterio Natorp o ente que pode custodiar abrir-se ao desvelamento

do ser dos entes Mas o que isso significa sob uma perspectiva fenomenoloacutegica

A descriccedilatildeo do ser-aiacute como existecircncia projetiva assentada em sua negatividade

proacutepria (negatividade entendida pelo fato de que o ser-aiacute soacute eacute a partir do seu aiacute de sua

69 Nesse sentido conferir tambeacutem VIGO 2012 p75 70 Na traduccedilatildeo de Ser e Tempo utilizada os termos Existenzial e Existenzielle satildeo traduzidos por

ldquoexistenciaacuteriordquo e ldquoexistencialrdquo respectivamente A diferenccedila foi estabelecida por Heidegger para marcar a

determinaccedilatildeo constitutiva da existecircncia (ou sua estrutura) cuja determinaccedilatildeo cabe agrave ontologia

(existenciaacuterio) da determinaccedilatildeo existencial (existencial) que trata de um assunto ocircntico do Dasein ou de

um conhecimento que conduz a si mesmo (HEIDEGGER 2012 sect4-9)

Apesar da consulta a outras traduccedilotildees (francesa de Emmanuel Martineau e espanhola de Jorge Rivera)

usaremos os termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho Em alguns momentos aleacutem da

traduccedilatildeo de Castilho que eacute bastante recente (2012) tambeacutem citaremos as palavras da traduccedilatildeo brasileira

anterior (com exceccedilatildeo da traduccedilatildeo de lsquoDaseinrsquo como lsquopresenccedilarsquo que natildeo seraacute utilizada nesse trabalho)

Acerca dos termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho haveraacute apenas duas exceccedilotildees a

primeira refere-se ao uso da palavra lsquoDaseinrsquo a qual Castilho Rivera e Martineau mantiveram no original

alematildeo obedecendo uma sugestatildeo do proacuteprio Heidegger Ser-aiacute eacute a traduccedilatildeo portuguesa do termo alematildeo

Dasein que no uso comum na liacutengua alematilde eacute usado como sinocircnimo para existecircncia mas que no texto

heideggeriano tem um significado peculiar tornando a traduccedilatildeo do termo problemaacutetica Em uma carta de

Heidegger a Jean Beaufret datada de 23 de Novembro de 1945 o autor daacute a seguinte informaccedilatildeo ldquolsquoDa-

sein eacute uma palavra-chave do meu pensar por isso ela eacute causa de graves erros de interpretaccedilatildeo natildeo significa

para mim exatamente eis-me mas se eacute que me posso exprimir num francecircs sem duacutevida impossiacutevel ser-

o-aiacute e o-laacute significa exatamente Aleacutetheia desvelamento-aberturardquo (Carta sobre o humanismo Martin

Heidegger - 2 ed rev Traduccedilatildeo de Rubens Eduardo Frias Satildeo Paulo Centauro ndash 2005 p 89) Algumas

vezes infieacuteis a Castilho e ao proacuteprio Heidegger utilizaremos tambeacutem a sua traduccedilatildeo ldquoser-aiacuterdquo para maior

fluidez do texto A segunda exceccedilatildeo refere-se agraves citaccedilotildees cuja opccedilatildeo por traduccedilotildees tradicionais resolvemos

natildeo alterar

87

existecircncia) sem qualquer categoria preacutevia que o defina potildee em tela que esse ente eacute

marcado pelo caraacuteter de poder-ser orientando-se segundo possibilidades existenciais que

natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas somente na morte como fim de todas as

possibilidades Isso se daacute porque o ser-aiacute eacute o limite fundamental no qual se abre a

possibilidade de intencionalidade ou o sentido do experimentado enquanto

experimentado71 ldquoSoacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a abertura do ser-no-

mundo lsquopode ser preenchidarsquo pelo ente que nele pode ser descobertordquo (HEIDEGGER

2012 p429) De outro modo se para Husserl a noccedilatildeo de intencionalidade faz com que a

cada vez que o pensamento se volte agrave consciecircncia ela descortina sua direccedilatildeo em relaccedilatildeo

ao fenocircmeno Para Heidegger poreacutem uma vez superada a primazia da consciecircncia a

cada vez que o pensamento se volta ao Dasein ele descortina sua direccedilatildeo ao mundo

fenocircmeno originaacuterio em que os entes podem vir ao encontro em seu ser bem como as

possibilidades de ser do proacuteprio Dasein

A ontologia fundamental aparece em sua necessidade porque o ser-aiacute mesmo natildeo

pode ser intencionado significativamente natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente

e por isso seu caraacuteter de poder-ser por isso ele poder mobilizar sentidos e atualizar

significaccedilotildees Assim o ser-aiacute eacute o ente que custodia e compreende o ser do ente jaacute em suas

atividades praacuteticas ou seja ele mobiliza a intencionalidade mas eacute o ente que a

intencionalidade natildeo pode alcanccedilar Na tentativa de apreendecirc-lo em seu ser a anaacutelise

conduz para fora para seu ldquoaiacuterdquo Assim Dasein eacute ser-aiacute eacute existecircncia que se projeta

lanccedilada no ldquoaiacuterdquo histoacuterico O Dasein como apresentado por Heidegger ldquoenvolve uma

dimensatildeo de ser (-sein) e por outro uma dimensatildeo locativa um aiacute (Da-)rdquo (CASANOVA

2006 p12) e isto deve-se ao fato que ldquoapenas ele [Dasein] se acha no ponto de

imbricaccedilatildeo de ser e mundordquo (CASANOVA 2006 p12)

71 Cf HEIDEGGER (GA62) 2002 p 71 ldquoConforme seu caraacutecter intencional o compreender puro natildeo

custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo forma parte do horizonte intencional

da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso pode ser de outra maneirardquo ldquoDas reine Verstehen bringt

nicht etwa nach seinem intentionalen Charakter das menschliche Leben im Wie seines faktischen Seins in

Verwahrung die σοφία hat es uumlberhaupt nicht zu ihrem intentionalen Worauf es ist ja ein Seiendes das ist

gerade dadurch daszlig es je anders sein kannrdquo (HEIDEGGER GA62 [pp385-386] grifo nosso)

88

Dessa forma a pergunta pelo sentido do ser seraacute elaborada conforme os trecircs

momentos constitutivos da questatildeo descritos no sect2 de Ser e Tempo

1- O perguntando ou aquilo de que se pergunta ser do ente

2- O interrogado ou aquilo a quequem se pergunta Dasein

3- O perguntado ou aquilo que se pergunta sentido do ser em geral

A pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2) perguntando

sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma ontologia

fundamental Isso esclarecido podemos iniciar propriamente nosso capiacutetulo e tema

central de nosso trabalho

I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado)

Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico

II A dupla abertura de sentido (Sinn)

Conforme descrito no sect9 de Ser e Tempo o ser-aiacute eacute o ente que a cada vez somos

(eu tu etc) ou seja a particular existecircncia finita e histoacuterica natildeo um conceito geneacuterico

em que as diferenccedilas especiacuteficas apareceriam na experiecircncia sensiacutevel Para esse ente ldquoo

ser ele mesmo eacute o que estaacute a cada vez em jogordquo (HEIDEGGER 2012 p139) Existir e

ser responsaacutevel pelo seu ser eacute o mesmo No que existe o ser-aiacute tem-que-ser (Zu-sein) a

ele natildeo eacute facultado a escolha de haver ou natildeo com seu ser uma vez sendo ele eacute e sendo

ele ldquose comporta em relaccedilatildeo ao seu ser como em realizaccedilatildeo de sua possibilidade mais

proacutepria O Dasein eacute cada vez sua possibilidade (Moglichkeit)rdquo (HEIDEGGER 2012

p141)

Por meio de toda e qualquer performatizaccedilatildeo (com relaccedilatildeo a si mesmo em relaccedilatildeo

aos outros e em relaccedilatildeo aos entes) o ser-aiacute enssencializa a si mesmo como existecircncia E

89

no que se enssencia (como existecircncia e natildeo categorialmente) o seu ser mesmo estaacute em

jogo pois eacute por essa determinaccedilatildeo ontoloacutegica negativa que o ser-aiacute pode conquistar seu

poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees cotidianas

Assim o desenvolvimento da analiacutetica existenciaacuteria aponta para a compreensatildeo do

sentido formal72 da constituiccedilatildeo da existecircncia do ser-aiacute ldquoO Dasein se determina cada vez

como ente a partir de uma possibilidade que ele eacute e que ao mesmo tempo e de alguma

maneira ele entende em seu serrdquo (HEIDEGGER 2012 p 143)

As orientaccedilotildees cotidianas ou a cotidianidade mediana ndash em que o ser-aiacute pode

perder-se no poder-ser improacuteprio - natildeo deve ser considerada pejorativamente como algo

a ser extirpado da existecircncia e da analiacutetica Ao contraacuterio em realidade natildeo pode A

impropriedade oferecida por essas orientaccedilotildees eacute em suma a maneira inicial em que o ser-

aiacute - como ser-no-mundo como ente lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ndash estaacute aberto para seus

possiacuteveis modos de ser Dessa forma a anaacutelise da cotidianidade tem um caraacuteter

fenomecircnico positivo para a analiacutetica existenciaacuteria pois eacute a partir desse modo de ser

improacuteprio que o ser-aiacute eacute lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria

das vezes Portanto natildeo eacute apenas lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade

A analiacutetica existenciaacuteria inicia entatildeo sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio E se

dissemos haacute pouco eacute que por meio da performatizaccedilatildeo que o ser-aiacute enssencia a si mesmo

como existecircncia e essa orientaccedilatildeo para qualquer performance natildeo eacute ilimitada Como as

possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha para um ato de vontade

do ser-aiacute mas satildeo mobilizadas na e pela existecircncia radicalmente histoacuterica o ser-aiacute pela

abertura primaacuteria remetido ao mundo eacute marcado pelo caraacuteter de poder-ser (Seinkonnen)

mas em funccedilatildeo de sua realizaccedilatildeo como possibilidade (Moglichkeit) De modo mais claro

ldquopor natildeo possuir nenhuma quididade [o ser-aiacute cc] eacute a realidade da possibilidade para a

possibilidade () Natildeo podendo ser puro poder-ser pois se assim o fosse o ser-aiacute jaacute seria

algo positivamente definidordquo (CABRAL 2015 p79) Dessa forma o ser-aiacute que a cada

vez deve conquistar o seu ser na radicalidade de sua finitude e historicidade eacute o ente que

pode pela sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica mobilizar sentido E por isso mobilizar na

72 Quando nos referirmos a ldquosentido formalrdquo no decorrer de nosso trabalho Cf Capiacutetulo II- Item III-

Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal

90

concretude da vida faacutetica o sentido de ser dos entes os sentidos das relaccedilatildeo aos outros e

sentido de seu ser

ldquoO desvelamento do ser exige sempre um ponto de partida ocircntico Mas o ser-aiacute

eacute privilegiado e ontologicamente ocircntico por causa de sua preacutevia compreensatildeo de

ser Entatildeo o desvelamento do ser deveraacute ser tentado primordialmente a partir do

ser-aiacute mediante uma analiacutetica existencial de suas estruturas O sentido do ser

(preocupaccedilatildeo) dessas estruturas do ser-aiacute eacute a temporalidade Assim a analiacutetica das

estruturas deveraacute ser refeita no homem na temporalidaderdquo (STEIN 2001 p204)

A preacutevia compreensatildeo de ser do ser-aiacute sua negatividade quiditativa seu caraacuteter

de poder-ser e sua constituiccedilatildeo aberta lanccedilada e remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo eacute dada

como acontecimento compreensivo A compreensatildeo ou o entender (Verstehen) eacute uma

das estruturas existenciaacuterias desse ente ocircntico-ontoloacutegico73 e ldquoao interpretaacute-lo como

existenciaacuterio fundamental mostra-se que esse fenocircmeno eacute assim concebido como modus

fundamental do ser do Daseinrdquo (HEIDEGGER 2012 p407) Esse existenciaacuterio

fundamental natildeo refere a uma capacidade entre outras do ser-aiacute de apropriar-se de algo

pelo entendimento intelectivo natildeo eacute uma relaccedilatildeo entre sujeito-objeto mas a constituiccedilatildeo

fundamental do ser-aiacute como ser-no-mundo como relaccedilatildeo intencional primaacuteria e desse

modo o horizonte compreensivo do ser-aiacute com seu ser ldquoO ser-aiacute possui uma relaccedilatildeo

compreensiva com o seu ser porque eacute somente por meio da compreensatildeo que ele encontra

o campo de jogo no interior do qual pode conquistar esse seu serrdquo(CASANOVA 2006

p 13) O ldquoDardquo ou ldquoaiacuterdquo do Dasein e sua estrutura fundamental ser-no-mundo podem ser

esclarecidos em contraponto a concepccedilatildeo paradigmaacutetica da epistemologia moderna de

Kant por exemplo O entender (Verstehen) tal como Heidegger o apresenta natildeo se baseia

na associaccedilatildeo psicoloacutegica das representaccedilotildees ou ainda a abertura primaacuteria que conduz o

ser-aiacute agraves suas possibilidades em que seu ser estaacute em jogo natildeo eacute algo como apercepccedilatildeo

No paradigma epistemoloacutegico da modernidade em uacuteltima instacircncia o entendimento eacute

uma reconstruccedilatildeo interna dos elementos externos do mundo reconstruccedilatildeo essa que

depende das faculdades cognitivas do sujeito capazes de unificar o agregado de

experiecircncias externas O entendimento em Heidegger eacute a abertura primaacuteria uma relaccedilatildeo

intencional estruturante ser-aiacute eacute ser-no-mundo portanto o Dasein eacute sempre remetido ao

73 Ocircntico pelo fato de ser ainda um ente ontoloacutegico pelo fato de ser o ente que pode e sempre abre a

compreensatildeo de ser (Cf HEIDEGGER 2012 sect4-9)

91

ldquomundordquo projetado para ldquoforardquo e esse ldquoforardquo eacute sempre abertura compreensiva ao mundo

faacutetico como horizonte hermenecircutico de sentido

Essa abertura compreensiva fundamental descerra o poder-ser do ser-aiacute como

projeto O fato de o ser-aiacute ser lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ao seu poder -ser em um

campo de jogo para seus possiacuteveis modos de ser natildeo conduz a um determinismo

circunstancial o qual o ser-aiacute estaria fadado a reproduzir maquinalmente e atualizar

incessantemente Tambeacutem ldquoo projetar nada tem a ver com um comportar-se em relaccedilatildeo a

um plano ideado de acordo com o qual o Dasein organizaria o seu serrdquo (HEIDEGGER

2012 p413) mas originariamente ldquoele sempre jaacute se projetou e se projeta enquanto eacuterdquo

(HEIDEGGER 2012 p413) A noccedilatildeo de projeto repousa na abertura compreensiva do

ser-aiacute e na sua ligaccedilatildeo radical com suas possibilidades Logo no iniacutecio do sect32 essa noccedilatildeo

eacute explicitada

ldquoO Dasein como entender projeta seu ser em possibilidades Esse entendedor ser

para possibilidades eacute ele mesmo um poder-ser pelo efeito contraacuterio que as

possibilidades como abertas tecircm sobre o Dasein O projetar do entender tem uma

possibilidade proacutepria de desenvolvimento Chamamos interpretaccedilatildeo o

desenvolvimento do entender Na interpretaccedilatildeo o entender entendendo

apropria-se do seu entendido Na interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo

diverso mas torna-se ele mesmo () A interpretaccedilatildeo natildeo consiste em tomar

conhecimento do entendido mas em elaborar possibilidades projetadas no

entenderrdquo (HEIDEGGER 2012 p421)

Dissemos haacute pouco que as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como

disponiacuteveis agrave escolha e agrave espera de um ato de vontade do ser-aiacute (natildeo estatildeo suspensas como

que dadas a cada ser-aiacute ao nascer como gocircndolas de projetos de ser) mas satildeo mobilizadas

na e pela existecircncia E ainda que essa existecircncia seja sempre projetiva em um mundo

histoacuterico Desse modo o entender (Verstehen) acontece sempre como interpretaccedilatildeo

(Auslegung) a abertura ao mundo eacute um projeto de sentido do ser-aiacute que jaacute interpreta que

jaacute potildee em visatildeo o que entende Mas o que isso quer dizer Como Heidegger chega a esses

existenciaacuterios

Vimos no capiacutetulo anterior a partir da leitura do texto de 1922 Interpretaccedilotildees

fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) ou

Relatoacuterio-Natorp que o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona

92

um lsquoaquirsquordquo essa virtude proacutepria do homem ldquose realiza como ενέργεια como atividade

() ou seja o νους abre um horizonte que sempre responde a um modo concreto de tratar

com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma

determinaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2002 p66) Compreendido tradicionalmente como

intelecto propriamente racional o noucircs eacute proacuteprio do homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica

[homem (animal (gecircnero) + racional (diferenccedila especiacutefica)] mas porque o ser-aiacute eacute o ente

que pode custodiar abrir-se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um

compreender que jaacute interpreta os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto

na vida faacutetica que acontece fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis

enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato

praacutetico com os entes

Em Ser e Tempo Heidegger descreve as vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico e

tambeacutem como o fenocircmeno do mundo se mostra atraveacutes dos entes intramundanos A forma

imediata de esses entes se mostrarem daacute-se na lida praacutetica que o ser-aiacute trava com eles em

um mundo circundante ou em um mundo-ambiente (Umwelt) Eacute atraveacutes da ocupaccedilatildeo

com os entes que o ser-aiacute se movimenta inicialmente na compreensatildeo faacutetica de mundo eacute

aiacute que o Dasein visualiza os entes em sua serventia especiacutefica no quadro de um horizonte

ocupacional Esse horizonte possui certa anterioridade em relaccedilatildeo ao proacuteprio uso do

instrumento ou utensiacutelio (Zeug) particular e isto fica claro no sect 15 quando Heidegger

potildee em relevo o modo de ser dos utensiacutelios na delimitaccedilatildeo preacutevia do que seja sua

instrumentalidade ldquoEm termos rigorosos um instrumento nunca lsquoeacutersquo isolado Ao ser de

instrumento pertence sempre cada vez um todo-instrumental no qual esse instrumento

pode ser o que ele eacute Instrumento eacute por essecircncia lsquoalgo pararsquo (HEIDEGGER 2012

p211) Na essecircncia do instrumento estaacute sempre a referecircncia de algo para algo O ser do

utensiacutelio e seu significado que aparece no instante do trato portanto jaacute interpretado a

partir do uso nascem da totalidade utensiliar (Zeugganzheit) que o atravessa Mas esta

totalidade utensiliar se assenta num contexto ainda mais complexo Se o utensiacutelio eacute

confeccionado de acordo com a sua finalidade especiacutefica como ldquoalgo parardquo seu uso o

liga a outros utensiacutelios por exemplo o pincel que uso para pintar remete-se agrave tela que

uso para suporte da tinta Assim como a tela remete-se natildeo soacute a sua finalidade mas

tambeacutem aos materiais atraveacutes dos quais ela foi produzida madeira tecido e gesso E

ainda remete-se ao produtor da tela ou seja aos outros entes no modo de ser do ser-aiacute

93

Poreacutem essa descriccedilatildeo do instrumento em um mundo-ambiente (Umwelt) ainda eacute

insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica de todo ente em geral

Assim conforme o sect 17 Heidegger aponta que a estrutura do sinal (Zeichen) ldquofornece

um fio condutor ontoloacutegico para uma lsquocaracterizaccedilatildeorsquo de todo ente em geralrdquo

(HEIDEGGER2012 p 233) O sinal enquanto utensiacutelio tem em sua serventia especiacutefica

o mostrar e ao mostrar fornece o fenocircmeno da referecircncia natildeo somente de sua referecircncia

mas de todo e qualquer ente uma vez que a relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia explicita o

fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua finalidade

na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal enquanto

instrumento nos mostra o mundo circundante e potildee em relevo o caraacuteter da referecircncia

que natildeo deve ser confundida com o proacuteprio sinal pois natildeo eacute determinaccedilatildeo ocircntica de um

ou outro manual especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica do manual e fundamento

constitutivo da mundidade como rede referencial na qual o Dasein jaacute se encontra inserido

na abertura ao mundo Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo

circundante o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a

complexa rede de remissotildees referenciais e atraveacutes dela a totalidade conjuntural ou

conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)

ldquoO termo conjuntura tem como correlato na liacutengua alematilde a palavra Bewandtins

que designa primariamente a propriedade ou a constituiccedilatildeo de uma coisa e em

um segundo momento a circunstacircncia em que algo se mostra essencialmente

como algo Neste segundo caso o termo se mostra em sintonia com a expressatildeo

Bewendenlassen como o deixar (lassen) algo se conformar (bewenden) a uma

certa estrutura e se mostrar como o que eacute em meio a essa conformidaderdquo

(CASANOVA 2006 p37)

A noccedilatildeo de conjuntura no sect 18 eacute um dos momentos mais decisivos da primeira

parte de Ser e Tempo pois revela que a totalidade conjuntural eacute anterior a qualquer

determinaccedilatildeo particular dos entes intramundanos Eacute essa conjuntura que determina os

usos possiacuteveis a partir da conformidade dos entes nela inseridos revelando que o

utensiacutelio em si mesmo natildeo possui qualquer determinaccedilatildeo essencial mas a recebe do

campo de uso da conjuntura na qual estaacute inserido Mas natildeo eacute soacute isso a determinaccedilatildeo

essencial de um ente intramundando acontece tambeacutem em funccedilatildeo do ser-aiacute cujo lsquoem

vista dersquo ao final da remissatildeo natildeo mais remonta a um lsquopara quecircrsquo mas mobiliza e em

uacuteltima instacircncia determina as conformaccedilotildees dos entes intramundanos Isso revela que o

que estaacute em jogo natildeo eacute o que eacute algo mas antes em virtude de que se faz algo O ser-aiacute

94

pode agir relacionar-se com os outros e consigo mesmo pois sabe comportar-se no

campo fenomecircnico aberto que arrasta consigo sua possibilidade de ser De outra forma

toda e qualquer performatizaccedilatildeo do ser-aiacute em relaccedilatildeo aos entes remete em uacuteltima medida

agravequele que pode voltar-se aos entes e mobilizaacute-los

O que a conjuntura indica previamente eacute ldquoa articulaccedilatildeo originaacuteria com certas

possibilidades essenciais do ser-aiacute que permitem ao ser-aiacute projetar efetivamente o campo

de sua realizaccedilatildeo como poder-serrdquo (CASANOVA 2006 p36) Essa realizaccedilatildeo do poder-

ser do ser-aiacute mobiliza a conformaccedilatildeo dos entes em funccedilatildeo do sentido existencial do ser-

aiacute pois uma atividade qualquer natildeo eacute feita por ela mesma mas soacute tem sentido na intenccedilatildeo

de um ente que estaacute aberto agrave apreensatildeo do ser dos entes em geral Desse modo a primaacuteria

abertura compreensiva do ser-aiacute ao mundo eacute um projeto de sentido que jaacute interpreta e ao

fazecirc-lo realiza a cada vez a cada ato de sua existecircncia a cada performatizaccedilatildeo a

possibilidade de seu ser pondo em liberdade os entes no interior do mundo e as relaccedilotildees

com os outros no projeto lanccedilado (faacutetico) na e pela sua existecircncia E isso porque

ldquoQuando o ente do-interior-do-mundo eacute descoberto com o ser do Dasein isto eacute

quando veio ao entendimento dizemos que ele tem sentido Mas tomado

rigorosamente o que eacute entendido natildeo eacute o sentido mas o ente ou o ser Sentido eacute

aquilo em que a entendibilidade de algo se manteacutem () Sentido eacute aquilo-em-

relaccedilatildeo-a-quecirc do projeto estruturado pelo ter-preacutevio pelo ver-preacutevio e pelo

conceito preacutevio a partir de que algo pode ser entendido como algo Na medida

em que entender e interpretaccedilatildeo constituem a constituiccedilatildeo existenciaacuteria do lsquoaiacutersquo o

sentido deve ser concebido como arcabouccedilo existenciaacuterio-formal da abertura

pertencente ao entender O sentido eacute um existenciaacuterio do Dasein natildeo uma

propriedade presa ao ente que reside lsquoatraacutesrsquo dele ou flutua em algum lugar como

em um lsquoreino intermediaacuteriorsquo Soacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a

abertura do ser-no-mundo lsquopode ser preenchidarsquo () E quando perguntamos

pelo sentido de ser a investigaccedilatildeo natildeo se torna entatildeo profunda e natildeo excogita

nada que esteja atraacutes do ser mas pergunta por ele mesmo na medida em que ele

estaacute na entendibilidade do Dasein O sentido de ser nunca pode ser contraposto

ao ente ou ao ser como lsquofundorsquo que sustenta o ente porque o lsquofundamentorsquo soacute eacute

acessiacutevel como sentido mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta- de-

sentidordquo (HEIDEGGER 2012 pp 429-431)

Apelamos para essa longa citaccedilatildeo a fim de explicitar o que dissemos

anteriormente acerca da mobilizaccedilatildeo dos entes em seu ser em funccedilatildeo dos focos

existenciais do ser-aiacute Os entes somente vecircm ao encontro como entes que satildeo a partir da

intenccedilatildeo de um ente que estaacute aberto a compreensatildeo do ser dos entes em geral Com a

95

citaccedilatildeo pretendemos tambeacutem apontar para algo importante acerca do fundamento

histoacuterico dessa abertura O sentido de ser natildeo eacute algo a ser alcanccedilado teoricamente pois

natildeo eacute algo estaacutevel e fundante da realidade que responde ao esquema causa-efeito ele eacute

essencialmente histoacuterico e eacute trazido pela experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica

da existecircncia mesma do ser-aiacute Natildeo se pode ter lsquoserrsquo sem a compreensatildeo do sentido de

ser vinculando portanto lsquoserrsquo ao ser-aiacute ente cuja estrutura pertence agrave compreensatildeo de

ser Como nos adverte o autor de Ser e Tempo o Dasein eacute um ente certamente diferente

dos outros entes no interior do mundo e eacute o lsquoabismo da falta de sentidorsquo que remete agrave

totalidade do fenocircmeno do ser-aiacute como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge) a qual acontece

em funccedilatildeo do sentido da temporalidade (Zeitlichkeit) Eacute essa ldquosegundardquo abertura de

sentido que devemos explicitar a partir de agora

Indicamos acima que a indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica do ser-aiacute o conduz a conquistar

seu poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees

cotidianas Poreacutem ser-proacuteprio ou ser-improacuteprio natildeo satildeo categorias operacionalizaacuteveis em

funccedilatildeo de um ideal de vida Essas possibilidades repousam na existecircncia e revelam a

tensatildeo da condiccedilatildeo primaacuteria da abertura ao mundo do ser-aiacute como projeto- jogado e

ldquodessa tensatildeo eacute possiacutevel deduzir o modo como o ser-aiacute faticamente existe() o caraacuteter

mesmo do jogado do ser-aiacute implica a absorccedilatildeo imediata no mundo sedimentado ele

encontra a si mesmo na medida em que se perderdquo (CASANOVA 2009 p123) E por

isso quando a analiacutetica existenciaacuteria inicia sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio no qual

o ser-aiacute eacute lanccedilado ldquoisso natildeo significa por sua vez outra coisa senatildeo que ele [o ser-aiacute]

concretiza o poder ser que ele eacute a partir das possibilidades faacuteticas disponibilizadas pelo

mundordquo (CASANOVA 2009 p123)

A abertura compreensiva eacute uma compreensatildeo da proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica na qual

nos orientamos inicialmente e na qual satildeo dadas nossas possibilidades de ser natildeo de

maneira teoacuterica mas absorvidas nas praacuteticas nos projetos de sentido relaccedilatildeo com os

outros e lida com os entes Abertura essa que um passado tornou possiacutevel e se faz

radicalmente imperativa no presente atraveacutes da cotidianidade orientando o ser-aiacute e

fazendo emergir algo assim como um mundo Por exemplo a realizaccedilatildeo deste trabalho

como dissertaccedilatildeo acadecircmica apareceu como possibilidade para o projeto de sentido de

sua autora porque escrever sobre filosofia faz sentido este projeto de sentido veio ao

96

encontro de seu poder-ser natildeo meramente por um ato de escolha mas inicialmente porque

filosofia dissertaccedilatildeo e universidade satildeo elementos mantidos em seu significado oriundo

da tradiccedilatildeo ocidental natildeo por uma linha histoacuterica que a autora recupera e quer trazer ao

presente mas porque mais uma vez ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto apropriaccedilatildeo

compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo

(HEIDEGGER2002 p30)

E uma vez remetida ao mundo pela orientaccedilatildeo cotidiana a autora pode

estabelecer relaccedilotildees com os entes (livros computador papel etc) consigo mesmo (como

autora) e com os outros (leitores desse trabalho) que partilham essas possibilidades

sedimentadas Dessa forma a orientaccedilatildeo cotidiana primaacuteria revela ldquoexistir () eacute de iniacutecio

o mesmo que perder-se de sirdquo (CASANOVA 2009 p123) pois ldquoo ser-aiacute suspende a

irrealidade originaacuteria que eacute a sua e adquire ao mesmo tempo um modo de ser marcado

por uma aparecircncia de consistecircnciardquo (CASANOVA 2009 p123) Em outras palavras a

absorccedilatildeo na cotidianidade (o caraacuteter de jogado do projeto) oferece uma familiaridade ao

ser-aiacute na qual ele pode se movimentar pois oferece a confiabilidade ocircntica ao projeto de

sentido mas tambeacutem estabelece

ldquoUma relaccedilatildeo com o seu poder-ser que pode ser denominado como fuga uma vez

que a suspensatildeo [de sua irrealidade originaacuteria] promove exatamente uma

tranquilizaccedilatildeo em meio agrave supressatildeo de nadidade constitutiva de um ente marcado

pelo caraacuteter de poder-ser e o ocultamento de um tal caraacuteterrdquo (CASANOVA

2009 p123)

Em meio agrave familiaridade em que o ser-aiacute eacute jogado sua negatividade quiditativa e

seu traccedilo ontoloacutegico essencial como poder-ser satildeo obstruiacutedos agrave compreensatildeo do Dasein

em relaccedilatildeo ao seu ser Voltemos ao nosso exemplo as relaccedilotildees que a autora deste trabalho

pode exercer a partir de suas possibilidades a orientam como ser autora deste trabalho

como aquela que escreve ou ainda como aquela vinculada agrave universidade e assim por

diante Poreacutem nada poderia definir nossa existecircncia como fazem as orientaccedilotildees

cotidianas pois o Dasein que cada um de noacutes somos eacute marcado pela negatividade radical

frente a qualquer definiccedilatildeo ocircntica Como entatildeo essa fuga natildeo nos condena a reproduzir

maquinalmente e atualizar incessantemente as orientaccedilotildees cotidianas - Porque o ser-aiacute

97

mesmo jogado eacute ainda projeto e no limite de seu projeto ele pode se encontrar com seu

poder-ser mais proacuteprio como ser para a morte (das Sein zum Tod)74

Tal como as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha agrave

espera de um ato de vontade do ser-aiacute a conquista de seu ser-proacuteprio ou sua

singularizaccedilatildeo tambeacutem natildeo eacute produto de sua vontade A dinacircmica de singularizaccedilatildeo do

ser-aiacute eacute possiacutevel pela tonalidade afetiva ou o modo de encontrar-se (Befindlicheit)

fundamental da anguacutestia (Angst)

O entender (Verstehen) ou abertura compreensiva eacute sempre dispositiva na medida

em que a compreensatildeo natildeo se refere agrave capacidade ou agraves faculdades cognitivas do homem

ldquoO termo disposiccedilatildeo aponta diretamente para o modo como o ser-aiacute a cada vez se

descobre em meio a uma tal abertura Na medida em que o ser-aiacute eacute um ente

marcado essencialmente por seu caraacuteter existencial e natildeo se mostra senatildeo como

um poder ser ele natildeo pode aprender a abertura do ente na totalidade por meio de

alguma faculdade cognitiva de sua subjetividade () Befindlichkeit diz o

encontrar-se de uma certa maneirardquo (CASANOVA 2006p50)

Encontrar-se de certa maneira natildeo eacute uma espeacutecie de afeto psicoloacutegico que o ser-

aiacute projeta de dentro para fora nem uma relaccedilatildeo de fora para dentro que afeta o ser-aiacute Natildeo

eacute uma relaccedilatildeo causal Eacute uma afinaccedilatildeo (ajuste do tom) que deve ser compreendida

repousando na intenccedilatildeo primaacuteria do ser-aiacute como ser-no-mundo Como o autor explicita

ainda no sect29 ldquoO ser do estado-de-acircnimo do encontrar-se constitui existenciariamente a

abertura do Dasein para o mundordquo (HEIDEGGER 2012 p393) Eacute propositadamente que

se apela para a metaacutefora musical (ldquoafinaccedilatildeordquo) para tentar compreender esse ldquoestado de

acircnimo do encontrar-serdquo como por exemplo acontece quando uma muacutesica eacute tocada ela

afina a abertura compreensiva do ser-aiacute a um estado de acircnimo que noacutes poderiacuteamos chamar

de melancoacutelico A melancolia natildeo estaacute na muacutesica (natildeo haacute como pensar que as tonalidades

afetivas sejam propriedades de um ou outro ente na medida em que o ser de todo e

74 Aqui eacute importante considerar as palavras de Juliaacuten Mariacuteas na Conferecircncia do curso ldquoLos estilos de la

Filosofiacuteardquo Madrid 19992000 Ediccedilatildeo Jean Lauand Traduccedilatildeo Sylvio Horta ldquoa preposiccedilatildeo zu natildeo quer

dizer para mas a Isto eacute a expressatildeo sein zum Tod poderia ser traduzida por estar agrave morte (estar a

la muerte) Qual eacute a condiccedilatildeo dos homens - e das mulheres evidentemente - natildeo somente quando nos

atropela um caminhatildeo ou quando temos pneumonia dupla O homem estaacute agrave morte sempre estaacute na

possibilidade de morrer estaacute em potecircncia proacutexima de morrer estaacute exposto agrave morte e eacute isso justamente o

que quer dizer sein zum Tod estar aberto agrave morte estar nessa possibilidade proacutexima real eficazrdquo

98

qualquer ente eacute aberto em funccedilatildeo do ser-aiacute que os potildee em liberdade no interior do mundo)

como tambeacutem natildeo estaacute no Dasein (natildeo haacute nada de aderente a esse ente que venha agrave tona

sua abertura eacute sempre remetida ao mundo e ao encontro com os entes) Portanto a

melancolia como no exemplo eacute a modificaccedilatildeo da atmosfera promovida pelo proacuteprio

encontrar-se do ser-aiacute em meio aos entes

Mas por qual motivo a anguacutestia aparece em Ser e Tempo como a tonalidade afetiva

ou o modo fundamental de encontrar-se Enquanto os estados de acircnimo natildeo conforme agrave

anguacutestia constituem a abertura compreensiva do ser-aiacute para a lida e para as relaccedilotildees que

podem ser realizadas no interior do mundo em meio aos entes ldquoo diante-de-quecirc da

anguacutestia eacute o ser-no-mundo como talrdquo (HEIDEGGER 2012 p521) Na anguacutestia natildeo haacute

ente que venha ao encontro no qual o ser-aiacute possa se reportar e refugiar-se mas a si mesmo

em sua indeterminaccedilatildeo

ldquoNa anguacutestia o utilizaacutevel do mundo-ambiente e em geral o ente do-interior-do-

mundo se afundam O lsquomundorsquo jaacute nada pode oferecer nem tambeacutem o Dasein-

com com os outros A anguacutestia retira assim do Dasein a possibilidade de no

decair entender-se a partir do lsquomundorsquo e do puacuteblico ser-do-interpretado Ela

projeta o Dasein de volta naquilo por que ele se angustia seu proacuteprio poder ndashser-

no-mundo () Com o porquecirc do se angustiar a anguacutestia abre portanto o Dasein

como ser possiacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012 p525)

Na anguacutestia natildeo haacute a ldquosuspensatildeo de mundordquo como se o Dasein se retirasse dele

O que haacute eacute a suspensatildeo das orientaccedilotildees cotidianas que obliteram sua constituiccedilatildeo

primaacuteria Portanto ainda e agora radicalmente transparente como ser-no-mundo o

Dasein suspende a familiaridade em meio ao ente voltando-se a si mesmo como ser-

possiacutevel que mobiliza sentido e ldquotem mundordquo Lembremos que a necessidade da ontologia

fundamental como radicalizaccedilatildeo do gesto fenomenoloacutegico indica que o ser-aiacute mesmo

natildeo pode ser intencionado natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente e por isso seu

caraacuteter de poder-ser E se pela anguacutestia o ser-aiacute volta-se a si mesmo o que vem eacute essa

indeterminaccedilatildeo radical revelando em uacuteltima medida o ldquoabismo da falta de sentidordquo Esse

abismo natildeo leva a qualquer espeacutecie de niilismo natildeo eacute o que estaacute em jogo aqui ao

contraacuterio pois o ldquoo ser-aiacute se vecirc confrontado com o seu caraacuteter como poder-ser Dessa

confrontaccedilatildeo nasce ao mesmo tempo a possibilidade de assunccedilatildeo de si mesmo como

cuidado (Sorge)rdquo (CASANOVA 2009 p128)

99

Recuperemos por um instante os trecircs momentos constitutivos da questatildeo descritos

no sect2 de Ser e Tempo a pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2)

perguntando sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma

ontologia fundamental A ontologia fundamental como analiacutetica existenciaacuteria em seu

primeiro momento descreve as estruturas fundamentais do ser-aiacute com o propoacutesito de

chegar ao ser desse ente que compreende o sentido de ser (sect12 ao sect38) Contudo eacute

importante considerar que existe certa lsquoartificialidadersquo nesse processo de explicitaccedilatildeo das

estruturas do ser-aiacute Eacute importante manter o sentido de ldquoanaliacuteticardquo Pois o fenocircmeno

mesmo deve ser compreendido como um todo natildeo em funccedilatildeo das partes mas a partir de

sua proacutepria mostraccedilatildeo Em outras palavras a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein deve agora

ser recuperada e este ente deve ser assinalado de maneira propriamente fenomenoloacutegica

ou seja em sua totalidade enquanto fenocircmeno Eacute o que a segunda parte da analiacutetica deve

recuperar ldquoabrangendo os componentes que se interligam ndash a existencialidade a

facticidade e a quedardquo (NUNES 2012 p116)

A partir desses componentes Heidegger apresenta o sentido formal da

preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-em (-o-mundo)

como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo (HEIDEGGER

2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser (existencialidade ou

existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que foi

lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio aos

entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)

Poreacutem natildeo dissemos que o ser-aiacute eacute marcado pela negatividade quiditativa e que

existe segundo possibilidades as quais natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas na morte

como fim de todas as possibilidades Ou nas palavras de nosso autor ldquoE se a existecircncia

determina o ser do Dasein e sua essecircncia eacute constituiacuteda pelo poder-ser entatildeo o Dasein

podendo ser enquanto existir deve-ser cada vez algo de ainda natildeo sendordquo

(HEIDEGGER 2012 p645) Entatildeo essa interpretaccedilatildeo do ser do Dasein como um

fenocircmeno unitaacuterio como Sorge natildeo contradiz tal afirmaccedilatildeo Natildeo haacute qualquer

contradiccedilatildeo pois eacute exatamente

ldquoO cuidado como manifestaccedilatildeo da finitude que permite a Heidegger identificar

a morte como o chegar do Dasein ao fim () e ver nesse ente em sua totalidade

o ser para a morte() O Dasein chega pois a um fim mas que o determina desde

100

o princiacutepio como possibilidade do que viraacute a ser A morte natildeo eacute para ele portanto

o puro aniquilamento representaacutevel conforme a experiecircncia da caducidade ()

impessoal e necessaacuterio na seacuterie de causas naturais () Ontologicamente falando

o homem deixa de viver porque morre e morre porque lhe eacute inerente o morrer

enquanto poder-ser de cada qual () intrasferiacutevel e irrepresentaacutevel na relaccedilatildeo

com o ser a que a existecircncia estaacute concernidardquo (NUNES 2012 pp 117-119)

Como poder-ser (existenciariedade) o ser-aiacute adianta-se em relaccedilatildeo agrave sua

possibilidade mais proacutepria Seu ser-proacuteprio insuperaacutevel como ser-para-a-morte (porque

intransferiacutevel a qualquer outro) revela-se como a possibilidade para a impossibilidade

ou seja impossibilidade de sua existecircncia lanccedilada (facticidade) de ter um lsquoaiacutersquo sendo o

lsquoaiacutersquo a compreensatildeo dos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)

Mas eacute importante considerar que a preocupaccedilatildeo ou o cuidado natildeo eacute a totalidade alcanccedilada

por aquele que chegou agrave singularizaccedilatildeo pela tonalidade fundamental da anguacutestia ela eacute a

constituiccedilatildeo ontoloacutegica de todo e qualquer Dasein O que a singularizaccedilatildeo promove

como possibilidade aberta pela anguacutestia eacute a transparecircncia desse ser-proacuteprio cada vez

obliterado na cotidianidade Na cotidianidade a morte eacute vista como um ldquomero deixar de

viverrdquo transferido a cada vez ao outro que morreu ldquodessa vezrdquo75 em um tratamento

radicalmente impessoal pela indiferenccedila frente a esse poder-ser proacuteprio e irrevogaacutevel

A morte como fim de todas as possibilidades enquanto poder-ser extremo eacute

indeterminada mesmo que seja a certeza mais proacutepria Pois natildeo se chega agrave morte

pensando nela o que estaacute em jogo eacute a responsabilidade do ser-aiacute frente a essa

transparecircncia a assunccedilatildeo pelo ser-aiacute de sua nulidade que atravessando-o (sem qualquer

conteuacutedo prescritivo do que deve-se ou natildeo fazer) pode orientar o caminho de sua

existecircncia Existecircncia ainda faacutetica ainda em meio aos entes de um mundo sedimentado

Em outras palavras caminho que reconduz o ser-aiacute ao ldquoaiacuterdquo que ele tem que ser e que ele

radicalmente eacute O que a singularizaccedilatildeo aponta eacute ldquoLeben ist Tod und Tod ist auch ein

75 Heidegger indica a novela de LN Tolstoacutei ldquoA morte de Ivan Ilitchrdquo para ilustrar o fenocircmeno da morte

tratada impessoalmente e o abalo dessa impessoalidade (Cf HEIDEGGER 2012 p699) Poderiacuteamos

tambeacutem indicar a partir de nossa cotidianidade exemplos do tratamento impessoal acerca da morte as

estatiacutesticas dos ldquomortos nas estradasrdquo a notiacutecia da morte de alguma personalidade puacuteblica e ainda - para

natildeo confundirmos esse fenocircmeno com um mero ldquonoticiarrdquorsquo a morte - a maneira mesma que tratamos a

morte de algueacutem proacuteximo pois mesmo tomados pelo pesar o que constatamos eacute a ldquoperdardquo do outro Seria

possiacutevel restaurar a ponte mesmo que indicativa que Heidegger natildeo admite entre o fenocircmeno impessoal

da morte e nosso ser-proacuteprio como ser-para-a-morte Talvez algo acessiacutevel pela linguagem poeacutetica Aqui

eacute oportuno considerar os belos versos do poema Na morte de Henriqueta Lisboa ldquoNa morte nos

encontramos Sim na morte Tempo de consoacutercio e de viacutenculordquo In Flor da Morte Belo Horizonte Ed

UFMG 2004

101

Leben76rdquo Nessa indicaccedilatildeo ldquoO si-mesmo que como tal tem de pocircr o fundamento de si

mesmo nunca pode se assenhorar desse fundamento e tem de existindo assumir no

entanto o ser-fundamento Ser o proacuteprio fundamento dejectado eacute o poder-ser em jogo na

preocupaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p779) Eacute pela assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo

(Sorge) que o ser-aiacute pode compreender que os sentidos mobilizados em sua existecircncia satildeo

existenciariamente remetidos ao seu ser mesmo ente histoacuterico e finito radicalmente

marcado pela nulidade essencial Isso posto recuperamos uma vez mais agora com toda

a importacircncia as palavras de nosso autor ldquoo lsquofundamentorsquo soacute eacute acessiacutevel como sentido

mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta-de-sentidordquo (HEIDEGGER 2012 p431)

A transparecircncia de seu ser-proacuteprio ao ser-aiacute eacute assumir ldquoser como fundamento

dejectado da nulidade Mas a assunccedilatildeo da dejecccedilatildeo significa para o Dasein ser

propriamente como ele a cada vez jaacute erardquo (HEIDEGGGER 2012 p887) Em outras

palavras a assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute para o ser-aiacute reconhecer que ele

eacute existecircncia radicalmente faacutetica (Faktizitaumlt) ainda em meio aos entes de um mundo

sedimentado Desse modo ldquoentender o seu ser ainda e sempre ldquoem seu essencial ser-

culpadordquo (HEIDEGGER 2012 p887) A singularizaccedilatildeo do ser-aiacute natildeo promove um

distanciamento da vida cotidiana natildeo faz com que ele se retire da queda mas que a

assuma e assim assuma ldquoa responsabilidade pela necessidade de pagar uma diacutevida que

cada ser-aiacute tem para consigo mesmordquo (CASANOVA 2009 p136) Diacutevida de assumir

seu ser como existecircncia como projeto-jogado e como poder-ser proacuteprio marcado pela

possibilidade extrema da morte Essa culpa do ser-aiacute eacute a assunccedilatildeo de que ele jaacute sempre

desonerou seu ser ele jaacute sempre deixou seu ser sob tutela do mundo e das orientaccedilotildees

cotidianas - por sua condiccedilatildeo de soacute poder-ser a partir da absorccedilatildeo imediata no mundo

Essa culpa natildeo eacute a mesma das concepccedilotildees cristatildes Em Pascal por exemplo a culpa eacute

consequecircncia da perda de nossa primeira natureza em funccedilatildeo do pecado original77 Para

Heidegger a culpa eacute consequecircncia do fato de natildeo termos qualquer natureza Natildeo haacute como

se retirar dessa condiccedilatildeo eis nossa culpa essencial e nossa queda irremediaacutevel

76 ldquoA vida eacute morte e a morte eacute tambeacutem uma vidardquo HOumlLDERLIN Friedrich In lieblicher Blaumlue - Disponiacutevel

em httpswwwhsaugsburgde~harschgermanicaChronologie19JhHoelderlinhoe_0801html Acesso

em 21 marccedilo 2016 77 Cf por exemplo os aforismos 131 e 616 de Pascal nos Penseacutees Ediccedilatildeo e organizaccedilatildeo Lafumaacute

102

Mas se chegamos agrave totalidade originaacuteria do todo-estrutural do ser-aiacute ou em outras

palavras agrave assinalado constituiccedilatildeo propriamente fenomenoloacutegica do ser-aiacute como

preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute necessaacuterio considerar o sentido ontoloacutegico desse fenocircmeno

Lembramos mais uma vez o que eacute ldquosentidordquo para Heidegger ldquoSentido eacute aquilo em que a

entendibilidade de algo se manteacutemrdquo (2012 p429) Se o ser-aiacute pode ser indicado em sua

totalidade fenomecircnica (ainda que radicalmente diverso dos entes do interior do mundo)

eacute necessaacuterio como expresso no sect65 perguntar ldquoQue possibilita o ser do Dasein e assim

sua existecircncia factual (faktische)

O sentido de ser do Dasein como Sorge a compreensatildeo de sua nulidade essencial

a partir do fenocircmeno unitaacuterio de seu ser aponta para aquilo que pode sustentaacute-lo ldquoA

temporalidade descobre-se como o sentido da preocupaccedilatildeo proacutepriardquo (HEIDEGGER

2012 p889)

Na continuaccedilatildeo do sect65 o autor descreve como a preocupaccedilatildeo reside na

temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-

em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo

(HEIDEGGER 2012 p891) Futuro (poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente

(presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees temporais como as que tomamos diariamente mas

o caraacuteter essencial da existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre

adiantado (futuro) em relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza

as possibilidades na facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva da

proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica a cada vez presente na qual nos orientamos inicialmente em

nossos comportamentos) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no

presente esse passado em seus comportamentos e projetos E como adverte o autor

ldquoOs momentos da preocupaccedilatildeo natildeo se amontoam como a temporalidade ela

mesma natildeo vai tambeacutem lsquocom o temporsquo se compondo de futuro ser-do-sido e

presente A temporalidade natildeo lsquoeacutersquo em geral nenhum ente Ela natildeo eacute mas se

temporalizardquo (HEIDEGGER 2012 p893)

Ou seja a temporalidade acontece na existecircncia do ser-aiacute na unidade do

fenocircmeno que se mostrou como preocupaccedilatildeo ou cuidado (Sorge) E ainda acontece jaacute no

que o ser-aiacute entende (Verstehen) como o sentido ontoloacutegico desse acontecimento mesmo

da compreensatildeo Por isso ainda no iniacutecio desse toacutepico dissemos que a constituiccedilatildeo aberta

103

e remetida ao mundo (ao seu ldquoaiacuterdquo) do ser-aiacute eacute dada como acontecimento compreensivo

pois em seu sentido ontoloacutegico eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) que se temporaliza78

Assim finalmente chegamos agrave dupla abertura de sentido em Ser e Tempo a que

chamamos de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo a abertura compreensiva do ser-aiacute

remetida ao mundo e o sentido de ser do ser-aiacute a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) O

caraacuteter fundamental dessa estrutura se daacute pelo fato que eacute a partir dela que o ser-aiacute pode

conceder significaccedilotildees e por isso a primeira estrutura do que pode tornar manifesto o

fenocircmeno da linguagem Agora eacute necessaacuterio descrever a relaccedilatildeo entre mundo e

significatividade ainda como parte dessa primeira estrutura para que alcancemos a

segunda estrutura o fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) e a partir dele agrave linguagem

III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)

No toacutepico anterior apresentamos a constituiccedilatildeo aberta do ser-aiacute lanccedilada e

remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo Mas o que constitui algo assim como mundo O que

afinal quer dizer ldquomundordquo (Welt) Nesse sentido precisamos retomar a descriccedilatildeo

realizada anteriormente acerca da referecircncia e da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) Essa

retomada natildeo significa prolixidade mas consequecircncia inevitaacutevel da ligaccedilatildeo essencial

entre ser-aiacute e mundo E se antes a descriccedilatildeo foi explicitada para compreendermos a

abertura de sentido em funccedilatildeo do ser-aiacute agora seraacute exposta para compreendermos o

proacuteprio ldquoaiacuterdquo

Sem pressupor mundo como ente ou como espaccedilo a pesquisa fenomenoloacutegica

aproximou-se dos campos de mostraccedilatildeo de algo como lsquomundorsquo escapando de qualquer

preacutevia teorizaccedilatildeo Nessa direccedilatildeo vimos que algo como lsquomundorsquo se daacute inicialmente a

partir da abertura primaacuteria de sentido promovida pelo entender ou compreensatildeo

78 Como indicamos (nota 66) haacute uma questatildeo natildeo respondida em Ser e Tempo a temporalidade (Zeitlichkeit)

estaria afinal assentada no tempo histoacuterico da abertura Questatildeo expressa na uacuteltima linha daquela obra ldquoO

tempo (Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Essa questatildeo

aponta para o limite da obra de 1927 na medida em que o sentido de ser remetido e em funccedilatildeo de um ente

especiacutefico mesmo que privilegiado apresenta seus limites Natildeo aprofundaremos esse problema Nesse

sentido conferir inicialmente HEIDEGGER M Os problemas fundamentais da fenomenologia Trad

Marco Antocircnio Casanova Petroacutepolis RJ Vozes 2012 ndash Parte II (pp331-478) Conferir tambeacutem

CASANOVA (2009 pp 140-145) NUNES (2012 pp200-220) e STEIN (2001 pp297-309)

104

(Verstehen) Esse existenciaacuterio primaacuterio acontece sempre como interpretaccedilatildeo

(Auslegung) que jaacute potildee em visatildeo o que entende

A partir da lida praacutetica e natildeo teoacuterica que o ser-aiacute trava inicialmente com os entes

intramundanos (sect15) Heidegger chega a noccedilatildeo de mundo circundante ou mundo-

ambiente (Umwelt) Poreacutem a descriccedilatildeo do uso dos utensiacutelios (Zeug) em um mundo-

ambiente (Umwelt) eacute insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica

de todo ente em geral Assim conforme o sect 17 Heidegger descreve o fenocircmeno da

referecircncia a partir da descriccedilatildeo do sinal enquanto utensiacutelio que tem em sua serventia

especiacutefica o mostrar e ao fazecirc-lo conduz a compreensatildeo da instrumentalidade ou

utilizabilidade (Zuhandenheit) de todo e qualquer ente A relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia

explicita o fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua

finalidade na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal

enquanto instrumento nos mostra o mundo-circundante (Umwelt) e potildee em relevo o

caraacuteter da referecircncia que natildeo deve ser confundido com o proacuteprio sinal pois eacute a estrutura

ontoloacutegica do manual e fundamento constitutivo da mundidade como rede referencial na

qual o Dasein jaacute se encontra inserido na abertura primaacuteria remetida ao mundo na lida

praacutetica

O ldquomostrarrdquo do sinal tal como o ldquomartelarrdquo do martelo ou a emprego de todo e

qualquer ente natildeo satildeo propriedades essenciais presentes nos lsquoobjetosrsquo apreendidas pelo

ser-aiacute mas satildeo trazidas agrave luz na e pela estrutura da remissatildeo a partir do trato praacutetico E

ldquoser-remetido-ardquo como constituiccedilatildeo do utilizaacutevel eacute em uacuteltima medida ldquoconjuntar-se agraverdquo

nas palavras de Heidegger

ldquoConjuntaccedilatildeo eacute o ser do interior-do-mundo em relaccedilatildeo ao qual esse ente jaacute eacute e

de pronto cada vez posto-em-liberdade () Isto de que ele tenha uma

conjuntaccedilatildeo comjunto eacute a determinaccedilatildeo ontoloacutegica do ser desse ente e natildeo um

enunciado ocircntico sobre o enterdquo (HEIDEGGER 2012 p251)

Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo circundante (Umwelt)

o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a complexa rede de

remissotildees referenciais e revelando a totalidade conjuntural ou conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)

A totalidade conjuntural se mostra anterior a qualquer determinaccedilatildeo particular dos entes

intramundanos - uma vez que eacute a conjuntura mesma que determinaraacute os usos possiacuteveis a

partir da conformidade dos entes nela inseridos- revelando que o utensiacutelio em si mesmo

105

e em uacuteltima medida todo e qualquer ente no interior do mundo natildeo possui qualquer

determinaccedilatildeo essencial mas a recebe a partir do campo de uso da conjuntura na qual estaacute

inserido Como a partir daiacute se chega entatildeo agrave noccedilatildeo de algo como ldquomundordquo A conjuntura

como conformaccedilatildeo de todo e qualquer ente eacute dada em funccedilatildeo do que Heidegger chama

de significatividade (Bedeutsamkeit)

ldquoAo se manter na familiaridade com a abertura das relaccedilotildees o entender as potildee

diante de si como aquilo em que seu remeter se move O entender deixa-se

remeter nestas relaccedilotildees e por elas mesmas O caraacuteter relacional dessas relaccedilotildees

do remeter noacutes o aprendemos como significar Na familiaridade com essas

relaccedilotildees o Dasein lsquosignificarsquo a si mesmo daacute-se a entender originariamente seu

ser e poder-ser relativamente a seu ser-no-mundo [] O todo relacional desse

significar noacutes o denominamos significatividade Ela eacute o que constitui a estrutura

do mundordquo (HEIDEGGER2012p261)

Essa passagem traz o elemento crucial agrave nossa investigaccedilatildeo a significatividade

como a condiccedilatildeo mesma ou melhor a proacutepria lsquointeligibilidadersquo do mundo natildeo como

arcabouccedilo teoacuterico mas como acircmbito da interpretaccedilatildeo anterior a qualquer definiccedilatildeo

predicativa do ente A totalidade conjuntural que conforma os entes intramundanos

determina-os significativamente em seu ldquocomordquo ou seja os faz ver e aparecer como ente

como algo no interior da abertura de sentido do proacuteprio mundo Isto quer dizer que a

conjuntaccedilatildeo deixa ver o ente em seu ldquoser enterdquo como algo que lsquoeacutersquo a partir de um horizonte

ldquode tal maneira que ele se torna primeiramente acessiacutevel como ente do-interior-do-

mundordquo (HEIDEGGER 2012p255)

A abertura ou entendimento preacutevio no qual o ser-aiacute histoacuterico e finito faz o ente

vir ao encontro na conjuntura e o mobiliza conforme seu foco existencial mostra o

fenocircmeno do mundo e isso como jaacute apresentamos a partir da familiaridade em que o

Dasein se movimenta pelo seu caraacuteter de jogado O fenocircmeno do mundo eacute explicitado

por Heidegger na seguinte passagem

ldquoO Dasein se remete jaacute cada vez e sempre a partir de um em-vista-de-quecirc ao

com-quecirc de uma conjutaccedilatildeo isto eacute na medida em que eacute ele deixa jaacute cada vez e

sempre o ente vir-de-encontro como utilizaacutevel Aquilo-em-que o Dasein

previamente se entende no modus do remeter-se eacute aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do

preacutevio fazer o ente vir-de-encontro O em-quecirc do entender que se-remete como

aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do fazer o ente vir-de-encontro no modo-de-ser da

conjuntaccedilatildeo eacute o fenocircmeno do mundo E a estrutura daquilo a que o Dasein se

remete eacute o que constitui a mundidade do mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 257)

106

Mas essa passagem tambeacutem mostra uma diferenccedila que natildeo pode ser ignorada o

fenocircmeno do mundo e a mundidade (Weltlichkeit) do mundo O primeiro diz respeito agrave

mobilizaccedilatildeo de uma determinada conjuntura jaacute familiar a partir dos focos existenciais do

ser-aiacute possiacuteveis em um horizonte descerrado (aspecto ocircntico) a segunda indica o aspecto

estrutural ontoloacutegico do mundo Por isto a significatividade explicitada inicialmente

pelo fenocircmeno da referecircncia e trazida agrave tona pela noccedilatildeo de conjuntaccedilatildeo eacute chamada de

estrutura formal da mundidade pois natildeo diz respeito a uma estrutura deste ou daquele

ldquomundordquo especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica de algo como ldquomundordquo

A significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados

(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Quando um ente se mostra

na e pela ocupaccedilatildeo (Besorgen) vem agrave conjuntaccedilatildeo no momento mesmo do trato manual

e assim ele eacute posto em liberdade em seu ser como utilizaacutevel (Zuhandenes) e natildeo eacute- como

compreendeu a tradiccedilatildeo assentada na noccedilatildeo sujeito-objeto ndash uma lsquoresrsquo uma coisa um

ldquomaterial disponiacutevel no mundordquo Ou seja ele natildeo se mostra primariamente como um

subsistente (Vorhandener) jaacute que ldquofamiliaridade com o mundo natildeo exige

necessariamente uma transparecircncia teoacuterica das relaccedilotildees do mundo que constituem o

mundo como mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 259)

Para Heidegger (ao menos em Ser e Tempo) os entes no interior do mundo (entes

intramundanos) natildeo conforme ao modo de ser do Dasein satildeo de dois modos ou como

duas categorias como Zuhanden (agrave matildeo) que se mostra de modo originaacuterio no trato

praacutetico e como Vorhanden (ente simplesmente dado ou subsistente) que aparece de

modo derivado agrave mostraccedilatildeo praacutetica Trazendo agrave tona a gecircnese praacutetica do significado

Vigo (2012) chama a atenccedilatildeo acerca do tratamento pouco extensivo agraves categorias que

Heidegger oferece em 1927

ldquoHeidegger oferece tatildeo somente um tratamento muito fragmentaacuterio desses

aspectos que jaacute foi explicado pelo fato expressamente declarado do caraacuteter

preparatoacuterio em SZ Ela natildeo conteacutem mesmo remotamente a totalidade do que

deveria conter um modelo ontoloacutegico de aspiraccedilatildeo integral que abarca as

diferentes ontologias regionais e apresentar o repertoacuterio das categorias mais

relevantes para cada uma delas mostrando aleacutem disso as correspondentes

relaccedilotildees de dependecircncia etcrdquo (p113)

O caraacuteter preparatoacuterio e ainda formal de Ser e Tempo o qual apenas estabelece a

diferenccedila categorial entre Zuhanden e Vorhanden parece querer marcar uma diferenccedila

107

mais fundamental ainda vinculada agraves primeiras preleccedilotildees da deacutecada de 1920 nas quais a

derivaccedilatildeo do teoreacutetico era atribuiacuteda a uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Em Ser e

Tempo ldquoa diferenccedila entre o conhecimento matemaacutetico e o conhecimento filosoacuteficordquo ganha

um contorno definitivo como diferenccedila ldquoentre uma concepccedilatildeo de loacutegos provinda da loacutegica

e outra que adveacutem do conceito de aleacutetheiardquo (STEFANI 2009 p51)

Dessa forma qualquer ente tomado de forma teoacuterica com um significado

determinado eacute um modo de acesso ou um visar o ente de modo derivado pelo ser-aiacute (natildeo

podemos esquecer que a mobilizaccedilatildeo dos entes eacute realizada em funccedilatildeo dos focos

existenciais do Dasein o que foi chamado de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo) Em

outras palavras como a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que significado

(Bedeutung) mas sua condiccedilatildeo de possibilidade qualquer teoria ou modo de tratamento

teoacuterico de um ente subsistente (Vorhandenes) eacute tributaacuterio da sedimentaccedilatildeo de um mundo

da sedimentaccedilatildeo de uma totalidade conjuntural que vem ao encontro do ser-aiacute

originariamente na ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhandenes) Assim ldquoo mundo faacutetico

onde se desdobra a existecircncia do ser-aiacute eacute constituiacutedo pela solidificaccedilatildeo dos significados

dos entes intramundanos e pela sedimentaccedilatildeo dos sentidos em virtude dos quais o ser-aiacute

desdobra o poder-ser que ele eacuterdquo (CABRAL 2015 p94) O ser-aiacute como projeto jogado

mobiliza sentidos e atualiza essas significaccedilotildees calcificadas de um mundo histoacuterico Algo

como um conceito uma definiccedilatildeo ou um significado do ente eacute possiacutevel por essa abertura

de sentido interpretativa preacutevia e sedimentada articulada pela significatividade e dada de

maneira preacute-linguiacutestica

Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez

familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o

Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como

lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo

(HEIDEGGER 2012p261 grifo nosso)

Prestemos atenccedilatildeo agrave uacuteltima consideraccedilatildeo dessa passagem significaccedilotildees natildeo satildeo

palavras elas fundam palavras Lembremos a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica o significado

natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua mostraccedilatildeo

Vimos no capiacutetulo anterior que o loacutegos do fenocircmeno para Heidegger eacute loacutegos apofacircntico

(λόγος αποφατικός) o mostrar do fenocircmeno a respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que

se mostra como algo de maneira indiferenciada natildeo determinada E ainda esse mostrar

do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes sempre em meio a

108

um campo interpretativo Ou seja agora podemos dizer eacute o mostrar o ente como ente

(algo como algo) no interior do mundo Na abertura que entende (Verstehen) remetida ao

mundo originariamente na lida praacutetica algo vem ao encontro e na medida que se mostra

jaacute se mostra interpretado (Auslegung) como algo do interior do mundo Mundo

compreendido em seu aspecto ontoloacutegico natildeo como ente espaccedilo ou soma de coisas (res)

disponiacuteveis agrave nossa apreensatildeo Mas abertura compreensiva-interpretativa do ser-aiacute

estruturalmente articulada em sua totalidade- enquanto ldquomundordquo - pela significatividade

E eacute dessa articulaccedilatildeo que podem vir significados e dos significados palavras assim

ldquoPodemos dizer que o que estaacute em jogo na discussatildeo de Heidegger com a

concepccedilatildeo husserliana natildeo eacute outra coisa em definitivo que a questatildeo relativa ao

modo fenomenoloacutegico adequado de considerar a experiecircncia antepredicativa

como tal Trata-se de uma questatildeo metodicamente fundamental justamente na

medida em que concerne de modo direto a adequada determinaccedilatildeo do terminus a

quo79 para uma possiacutevel explicaccedilatildeo da origem do enunciado predicativo como

modo derivado e fundado da interpretaccedilatildeo Atado aos preconceitod da ontologia

tradicional que se orienta a partir da estrutura do loacutegos apofatikoacutes considerando

o mesmo como algo dado lsquopresente agrave vistarsquo (Vorhandener) Husserl faz

basicamente o mesmo que jaacute havia feito a teoria tradicional das categorias desde

Aristoacuteteles em diante a saber retroprojetar a estrutura do enunciado da forma S-

P para o acircmbito dos lsquoobjetosrsquo que natildeo eacute outro que dos entes intramundanos

considerados como dados meramente lsquopresente agrave vistarsquo (VIGO 2012 p96)

Se a discussatildeo de Heidegger com a concepccedilatildeo husserliana se torna patente eacute

importante destacar tambeacutem a discussatildeo com a concepccedilatildeo diltheyniana - tendo em vista

o esclarecimento da noccedilatildeo de ldquosignificatividaderdquo Vimos que a categoria do significado

como apresentada por Dilthey possui um aspecto decisivo a relaccedilatildeo entre vivecircncia e

compreensatildeo eacute o ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da hermenecircutica pois traz em si a

categoria do significado como o nexo da vivecircncia com a realidade concreta sem se

apoiar em qualquer elemento transcendente agrave proacutepria experiecircncia vivida Contudo como

observa Heidegger no sect43 de Ser e Tempo o viacutenculo de Dilthey agrave teoria do conhecimento

da eacutepoca compreendendo a vivecircncia como vivecircncia de consciecircncia ou ldquoa relaccedilatildeo-de-ser

da consciecircncia com o real ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p583) faz com que a lsquovidarsquo

seja apresentada de modo indiferenciado sem a compreensatildeo de sua sustentaccedilatildeo

ontoloacutegica jaacute que a vivecircncia particular da consciecircncia como vida conexa e estruturante

79Termo a partir do qual Ponto de partida

109

eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu projeto hermenecircutico Mas Heidegger

reconhece ldquoDilthey natildeo soacute acentua que a realidade nunca eacute dada de modo primaacuterio no

pensamento e na apreensatildeo mas indica sobretudo que o conhecer ele mesmo natildeo

consiste em julgar e que saber eacute uma lsquorelaccedilatildeo de serrsquordquo (HEIDEGGER 2012 p583)

Tentando tornar mais claro mesmo que para Dilthey o mundo natildeo apareccedila como um

conjunto de coisas prontas agrave apreensatildeo da razatildeo humana mais ainda que as coisas

enquanto res natildeo sejam tomadas como a realidade (Realitaumlt) o fato de o pressuposto da

vivecircncia provir da consciecircncia obscurece o fundamento ontoloacutegico de algo como ldquovidardquo

Por isso escapou a Dilthey a relaccedilatildeo primaacuteria entre ser-aiacute como ser-no-mundo em sua

radicalidade ontoloacutegica como relaccedilatildeo fundante de toda e qualquer compreensatildeo de ser

Talvez por esse motivo como observa DASTUR (2007)

ldquoNo trabalho publicado em 1927 Heidegger natildeo usa frequentemente termo

hermenecircutica que aparece apenas trecircs ou quatro vezes () - no paraacutegrafo 7 da

introduccedilatildeo quando eacute para definir a fenomenologia no paraacutegrafo 33 que trata da

enunciaccedilatildeo e no paraacutegrafo 45 que define o iniacutecio da segunda parte da tarefa de

uma interpretaccedilatildeo do Dasein - enquanto o termo Auslegung que significa tanto

interpretaccedilatildeo e explicaccedilatildeo eacute muito mais frequentemente utilizadordquo (p74)

E quando Heidegger retoma o termo ldquohermenecircuticardquo no sect33 ele ressalta o caraacuteter

existenciaacuterio de tal interpretaccedilatildeo

ldquoA enunciaccedilatildeo natildeo pode negar sua origem ontoloacutegica a partir da interpretaccedilatildeo

que-entende O ldquocomordquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor entendedor

(ἑρμηνεία) noacutes os chamamos lsquocomorsquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio para

diferenciaacute-lo do ldquocomordquo apofacircntico da enunciaccedilatildeo (Aussage)rdquo (HEIDEGGER

2012 p 447)

O que eacute essa diferenccedila entre o ldquocomordquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio e o ldquocomordquo

apofacircntico da enunciaccedilatildeo Eacute a diferenccedila entre Auslegung (interpretaccedilatildeo) e Aussage

(enunciado) A diferenccedila consiste no fato de que a originariedade da mostraccedilatildeo dos entes

em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) - pela

significatividade (Bedeutsamkeit) que a articula - e sua derivaccedilatildeo como ente

simplesmente dado (Vorhanden) ndash fazendo emergir algo como significado (Bedeutung)-

ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) em sua ligaccedilatildeo

derivativa agrave interpretaccedilatildeo (Auslegung) De outra maneira como a estrutura interpretativa

aberta pela compreensatildeo ou entendimento (Verstehen) transforma-se em proposiccedilatildeo

Na introduccedilatildeo desse capiacutetulo escrevemos que na fenomenologia heideggeriana veio agrave

110

tona o aspecto ontoloacutegico do conteuacutedo significativo Essa fenomenologia como ontologia

acabou por revelar de um lado a historicidade de todo e qualquer significado que pudesse

vir agrave palavra por outro que o campo de sentido no qual algo pode manter-se em seu

significado tambeacutem era histoacuterico Eacute necessaacuterio portanto a partir de agora mostrar como

o significado aberto pela compressatildeo-interpretativa (algo como algo) ganha sua forma

expressa inicialmente a partir do fenocircmeno da proposiccedilatildeo e a partir dessa derivaccedilatildeo

podemos ter acesso ao fenocircmeno da linguagem

II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da

interpretaccedilatildeo (Auslegung)

A anaacutelise da enunciaccedilatildeo (Aussage) conforme apresenta por Heidegger no sect33 de

Ser e Tempo constitui a segunda estrutura descrita na obra a qual nos permite

compreender o fenocircmeno da linguagem (Sprache) como a manifestaccedilatildeo uacuteltima de um

horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo dos entes previamente

articulada O fenocircmeno da linguagem aparece como resultado dos trecircs objetivos de sua

investigaccedilatildeo neste momento do tratado os quais listamos a seguir

1) Como a estrutura compreensiva-interpretativa (apresentada no toacutepico anterior)

sofre uma modificaccedilatildeo

2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos

3) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade

Como antecipamos e a partir da finalidade da anaacutelise acima apresentada

podemos dizer que o que estaacute em jogo nesse momento da analiacutetica eacute compreender que ldquoa

siacutentese predicativa fundamenta-se numa daccedilatildeo originaacuteria e eacute em funccedilatildeo da experiecircncia

antepredicativa que se opera a atribuiccedilatildeo do predicado ao sujeitordquo (NUNES 2012 p165)

Em outras palavras como a estrutura interpretativa aberta pela compressatildeo (algo como

algo) transforma-se em proposiccedilatildeo (Sujeito-predicado) E essa derivaccedilatildeo eacute elencada nas

trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo (Aussage)

1) Mostraccedilatildeo (Aufzeigung)

2) Predicaccedilatildeo (Praumldikation)

111

3) Comunicaccedilatildeo (Mitteilung)

Essas significaccedilotildees do termo Aussage ainda segundo Heidegger possuem caraacuteter

analiacutetico pois satildeo ldquotiradas do fenocircmeno que ela designa as quais delimitam em sua

conexatildeo e unidade a completa estrutura da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p437)

Essa unidade estaacute assentada nas condiccedilotildees preacutevias tendo em vista que ldquoa enunciaccedilatildeo natildeo

eacute um comportamento-que-flutua-no-ar e que possa por si mesmo abrir o ente

primariamente mas se comporta jaacute sempre sobre a base de ser-no-mundordquo

(HEIDEGGER 2012 p443)

Como vimos no capiacutetulo anterior as condiccedilotildees preacutevias conforme apresentadas no

Relatoacuterio Natorp satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a direccedilatildeo da

visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a ldquovisibilidaderdquo (Sichtweite) De

modo mais claro em (1) temos o acircmbito da realidade dada em uma preacutevia abertura

temporal de sentido em (2) temos a direccedilatildeo que jaacute determinou algo ldquocomo-algordquo (Als-

was) e jaacute ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu lugar

significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de toda

possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o como

do aparecer dos entes em seu ser seu significado e as possibilidades de comportamentos

do ser-aiacute eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto

(1) e jaacute interpretado (2) e por isso pode mover-se em pretensotildees de objetividade e

definiccedilatildeo Essas condiccedilotildees estatildeo articuladas com a interpretaccedilatildeo de Heidegger dos termos

respectivamente noucircs phroacutenesis e sophiacutea e assentadas na noccedilatildeo de verdade como

desvelamento (ἀλήθεια) Em Ser e Tempo Heidegger reelabora essas interpretaccedilotildees com

uma terminologia proacutepria respectivamente Vorhabe (ter-preacutevio) Vorsicht (ver-preacutevio)

e Vorgriff (conceito-preacutevio) e esse tripeacute

ldquoForma o arcabouccedilo projetivo do compreender que nos abre os entes ao sabor

dos nexos da referecircncia na conduta do trato atraveacutes dos quais se estende a rede

de significatividade () Eacute nessa conduta e portanto na experiecircncia

antepredicativa como a praacutexis maciccedila do mundo-da-vida em seu imediato e

frequente transcorrer cotidiano que Heidegger coloca a nascente do sentidordquo

(NUNES 2012 p168)

Como essas condiccedilotildees preacutevias devem ser compreendidas em vista do caraacuteter de

projeto-jogado do ser-aiacute natildeo eacute gratuita a designaccedilatildeo da abertura do ser-aiacute ao mundo como

112

ldquoabertura de sentido fundamentalrdquo A abertura compreensiva fundamental descerra o

poder-ser do ser-aiacute como projeto mas ao projetar-se ele eacute lanccedilado num ldquoaiacuterdquo histoacuterico O

seu poder-ser se lanccedila num campo de jogo jaacute descerrado interpretado e articulado por

essas condiccedilotildees E assim essas condiccedilotildees preacutevias ldquoreconduz[emcc]-nos ao ciacuterculo

hermenecircutico ontoloacutegico-histoacuterico que circunscreve por forccedila da finitude que faz do

homem um Daseinrdquo (NUNES 2012 p168) No que me lanccedilo ao mundo sou e o mundo

eacute como ele eacute como escreve Fernando Pessoa (2006 p177)

ldquoCreio no mundo como um malmequer

Porque o vejo Mas natildeo penso nele

Porque pensar eacute natildeo compreender

O Mundo natildeo se faz para pensarmos nele

(Pensar eacute estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordordquo

Talvez esses versos possam iluminar o que estaacute em questatildeo nesse paraacutegrafo

Poderiacuteamos nos questionar por qual motivo Heidegger natildeo passa da interpretaccedilatildeo

(Auslegung) ao discurso (Rede) pois este como veremos no proacuteximo capiacutetulo remete agrave

fala como fundamento ontoloacutegico da linguagem O sect 33 se refere a uma discussatildeo muito

especiacutefica mas que tem um lugar privilegiado na ontologia fundamental e estaacute

diretamente relacionada ao sect44 da mesma obra A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo de verdade

da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca que era a dos

neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa concepccedilatildeo

tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da verdade em

direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave proposiccedilatildeo Com

isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa medida

condicionando a ontologia agrave loacutegica

Courtine (1996) elabora essa problemaacutetica com clareza A partir de trecircs etapas

ele nos apresenta o caminho que conduz nosso autor da loacutegica agrave liacutengua A primeira etapa

diz respeito aos trabalhos de juventude de Heidegger ldquoainda marcados pela problemaacutetica

da validade como primeira elucidaccedilatildeo do ser no juiacutezordquo (COURTINE 1996 p14) Jaacute a

segunda etapa que Courtine denomina destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica consiste em regressar

da interpretaccedilatildeo ldquoescolarrdquo da loacutegica aristoteacutelica a uma problematizaccedilatildeo mais original do

loacutegos compreendido como modo de desvelamento Eacute nessa segunda etapa que estaacute

113

inserido o trabalho de Ser e Tempo sendo a passagem da primeira agrave segunda etapa

marcada pelo curso de 1925-1926 Logik die Frage nach der Wahrheit (GA21) A

terceira seria ainda uma etapa de destruiccedilatildeo mas de modo diferente marcada pelo que

Courtine denomina desorientaccedilatildeo ou ldquoabalordquo (erschuumlttern) e encontra sua imagem

expliacutecita no texto de 1935 ldquoIntroduccedilatildeo agrave metafiacutesicardquo

Portanto na primeira etapa a loacutegica para o jovem Heidegger eacute ainda apreendida

como loacutegica do ldquosentidordquo ou da ldquovalidaderdquo

ldquoA ideacuteia segundo a qual a Geltung a validade define o modo de ser proacuteprio das

proposiccedilotildees e das verdades vem como se sabe da loacutegica de Lotze Numa nota

das Neuere Forschungen uumlber Logik (GA I p23) Heidegger indicava a respeito

da Loacutegica de Lotze que acabava de ser reeditada sua loacutegica deve sempre ser

considerada como a obra fundamental da loacutegica moderna () E Heidegger que

ateacute aqui se exprimia como disciacutepulo fiel de Husserl terminava por acrescentar

esta questatildeo rica em posteridade para seu proacuteprio pensamento ldquoMas logo se

coloca a questatildeo o que eacute ndash sentidordquo (GA I p170)rdquo (COURTINE 1996 pp16-

17)

Vimos como o sentido (Sinn) em Ser e Tempo eacute apresentado sob uma perspectiva

radical relacionado agrave problematizaccedilatildeo mais original do lsquoloacutegosrsquo como mostraccedilatildeo do

fenocircmeno em seu ser e agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento Essa mudanccedila criacutetica

resulta da aparentemente simples interrogaccedilatildeo de Heidegger acerca da identificaccedilatildeo

ldquoWahrheit = wahrer Satz = Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade)rdquo

(COURTINE 1996 p 19) A criacutetica eacute assim expressa em Logik die Frage nach der

Wahrheit (GA21)

ldquoLotze que introduziu o conceito de lsquoGeltungrsquoem loacutegica emprega a expressatildeo

lsquoserrsquo no sentido estrito segundo o qual ser quer dizer a mesma coisa que

efetividade das coisas ser = lsquorealidadersquo (Vorhandenheit) [] Lotze natildeo conseguiu

superar o naturalismo na medida em que restringiu o significado do termo

veneraacutevel lsquoserrsquo ao ser real agrave realidade [] Na nossa terminologia utilizamos

inversamente ser no sentido amplo inserindo-nos na autecircntica tradiccedilatildeo da

filosofia grega de tal maneira que ser designa tanto a realidade quanto a

idealidade ou outras maneiras possiacuteveis de serrdquo (HEIDEGGER GA21 p62

apud COUTRINE 1996 p19)

Nesse sentido lembremos tambeacutem que para os neokantianos influenciados pela

filosofia dos valores de Lotze o conhecimento eacute possiacutevel como uma atividade valorativa

do juiacutezo (na forma ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo) Ou seja eacute o juiacutezo que reconhece o

conteuacutedo o sentido e a validade da verdade na sua pretensatildeo de necessidade e

114

universalidade algo ldquoeacuterdquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento Ora

o que a leitura de Ser e Tempo ateacute aqui jaacute demonstrou eacute que algo eacute natildeo porque um juiacutezo

loacutegico definiu seu conteuacutedo ontoloacutegico mas porque o ser-aiacute aquele que vai atribuir

sentido jaacute sempre se move numa preacute-compreensatildeo de ser a qual eacute fundamentalmente

praacutetica na visatildeo circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram

em seu ser Ora estabelecendo uma possiacutevel analogia parece que Heidegger desconfia

tanto do conhecimento teoacuterico-proposicional quanto Fernando Pessoa do ldquopensamentordquo

Assim reduzir qualquer ontologia agrave loacutegica atraveacutes do juiacutezo proposicional eacute como ldquoestar

doente dos olhosrdquo

No nosso entender o que Heidegger desenvolve no sect 33 soacute seraacute totalmente

elucidado se o relacionarmos com o sect 44 No sect 33 jaacute se anuncia que a forma fundamental

da predicaccedilatildeo (Praumldikation) sujeito e predicado (ldquoS eacute Prdquo) eacute derivada da mostraccedilatildeo

(Aufzeigung) originaacuteria compreensivo-interpretativa (algo como algo) e soacute por isso a

comunicaccedilatildeo (Mitteilung) uns com os outros na vida cotidiana pode expressar profericcedilotildees

como ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo ldquoHoje eacute um belo diardquo etc Antes de

entramos na apresentaccedilatildeo pormenorizada do sect33 e assim a relacionarmos ao sect44 eacute

necessaacuterio fazermos duas consideraccedilotildees

Essas camadas de derivaccedilatildeo evitam qualquer interpretaccedilatildeo relativista da noccedilatildeo de

linguagem em Heidegger Tentando escapar de uma leitura apressada devemos pensar

no acontecimento da verdade como um acontecimento compreensivo a partir de um ente

finito e histoacuterico o que eacute diferente de reduzi-lo a uma perspectiva historicista O que estaacute

em questatildeo por exemplo natildeo eacute se ldquocasardquo poderia se chamar ldquomesardquo (esse eacute um aspecto

ocircntico da linguagem) ou ainda que o fato de o enunciado possuir um fundamento

contingente ele seria menos verdadeiro Aleacutem disso haacute o fato de que o ente e as

possibilidades de ser do ser-aiacute vecircm agrave palavra por uma mostraccedilatildeo preacutevia de seu ser eacute o

ente que se mostra E na medida em que eacute mobilizado pelo ser-aiacute na interpretaccedilatildeo sua

mostraccedilatildeo pode ser modificada pela expressatildeo na forma predicativa A loacutegica deriva do

loacutegos a loacutegica natildeo eacute o lugar do loacutegos E o loacutegos eacute a maneira mesma de o ente se mostrar

e se ele se mostra para o ser-aiacute isso natildeo quer dizer que eacute o ser-aiacute que o determina Natildeo

Eacute o ser-aiacute que o potildee em liberdade O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento

como fenocircmeno Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a

115

expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional

compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na estabilidade de uma esfera para aleacutem

do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua manifestaccedilatildeo o sentido

de sua proacutepria existecircncia

Caberia ademais em uma pesquisa posterior investigar se a interpretaccedilatildeo do

loacutegos como loacutegos apofacircntico derivada da noccedilatildeo de intencionalidade essecircncia mesma da

fenomenologia ainda reconduz Heidegger a certo viacutenculo com a concepccedilatildeo tradicional

da linguagem na medida em que dizer eacute ainda dizer que algo eacute de tal ou qual maneira ou

seja ainda dizer na forma predicativa Dito de outra forma mesmo que Heidegger

demonstre o caraacuteter derivado da loacutegica ela continua a ser uma purificaccedilatildeo dos elementos

materiais da linguagem Isso significaria dizer que o problema heideggeriano da

linguagem ainda estava inserido no projeto da tradiccedilatildeo da filosofia ocidental 80

Retomemos agora as trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo

(Aussage) Na mostraccedilatildeo (Aufzeigung) como primeiro significado Heidegger reteacutem o

sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Essa forma do enunciado estaacute diretamente

relacionada ao ente que vem ao encontro no Vorhabe (ter-preacutevio) ou noucircs em que o ser-

aiacute originariamente pela ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhanden) movimenta-se e abre a

compreensatildeo em um mundo-ambiente (Umwelt) Mas toda compreensatildeo (Verstehen) jaacute

interpreta (Auslegung) o que entende e assim no trato praacutetico ou no ldquocomordquo

hermenecircutico-existenciaacuterio

ldquoA execuccedilatildeo originaacuteria da interpretaccedilatildeo natildeo consiste em uma proposiccedilatildeo-

enunciativa teoacuterica mas no fato de que no-ver-ao-redor da ocupaccedilatildeo se potildee de

lado ou se troca a ferramenta improacutepria lsquosem perder nisso uma soacute palavrarsquo Da

falta de palavras natildeo se deve concluir a falta de interpretaccedilatildeordquo (HEIDEGGER

2012 P445)

Na predicaccedilatildeo (Praumldikation) segundo significado da enunciaccedilatildeo fundado no

primeiro haacute a determinaccedilatildeo de um ente que modifica e restringe a mostraccedilatildeo de algo

como algo na forma sujeito-predicado Esse segundo significado estaacute diretamente

80 Cf Capiacutetulo I- Introduccedilatildeo

116

relacionado ao Vorsicht (ver-preacutevio) cuja base encontra-se no Vorhabe (ter-preacutevio) No

que o ser-aiacute vecirc algo e o determina ele restringe o utilizaacutevel (Zuhandenes) a um subsistente

(Vorhandener) com isso ele ldquovisa a um subsistente no utilizaacutevel Pelo olhar

contemplativo e para ele o utilizaacutevel se oculta como utilizaacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012

p445) Esse segundo momento da enunciaccedilatildeo estaacute ligado ao significado (Bedeutung) que

emerge a partir da significatividade (Bedeutsamkeit) e nesse sentido ldquoposiccedilatildeo-de-sujeito

posiccedilatildeo-de-predicado em unidade com o-pocircr satildeo inteiramente lsquoapofacircnticosrsquo no sentido

rigoroso da palavrardquo (HEIDEGGER 2012 p439) Aqui Heidegger ainda se refere a uma

categoria do ente que se mostra no interior do mundo Mas entatildeo como ocorre a

modificaccedilatildeo de algo como algo tomado como categoria subsistente (Vorhanden) na forma

loacutegica sujeito-predicado

ldquoAgora pela primeira vez se franqueia o acesso a algo assim como propriedades

O lsquoquecircrsquo da enunciaccedilatildeo determinante do subsistente eacute extraiacutedo do subsistente

como tal () A estrutura-de-como da interpretaccedilatildeo experimenta uma

modificaccedilatildeo O lsquocomorsquo em funccedilatildeo de apropriaccedilatildeo do entendido jaacute natildeo chega ateacute

uma totalidade-de-conjuntaccedilatildeo Ele foi separado de suas possibilidades de

articular as relaccedilotildees-de-remissatildeo da significatividade que constitui o ser-do-

mundo-ambiente O lsquocomorsquo eacute reprimido no plano uniforme do soacute subsistente ()

Esse nivelamento do lsquocomorsquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor em como

da determinaccedilatildeo-da-subsistecircncia eacute a prerrogativa da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER

2012 p447)

O ente tomado como subsistente (Vorhanden) eacute prerrogativa da predicaccedilatildeo Seu

recorte como algo que possui essa ou aquela propriedade torna possiacutevel algo como a

forma predicativa (ldquoS eacute Prdquo) O que estaacute em jogo poreacutem pois tornou-se paradigma da

tradiccedilatildeo eacute o nivelamento de todo e qualquer ente como algo sempre presente dotado de

propriedades e desse modo disponiacuteveis agrave apreensatildeo na forma predicativa Nesse

nivelamento todo ente eacute posto sob o domiacutenio da loacutegica que obscurece sua derivaccedilatildeo

essencial agrave mostraccedilatildeo do ente em seu ser em funccedilatildeo da relaccedilatildeo primaacuteria ser-aiacute como ser-

no-mundo e assim da verdade como desvelamento (ἀλήθεια)

A terceira forma do enunciado derivado do primeiro e do segundo significados eacute

apresentada por Heidegger como comunicaccedilatildeo (Mitteilung) A palavra alematilde jaacute indica o

caraacuteter puacuteblico do que inicialmente foi mostrado e pela predicaccedilatildeo foi determinado

teilung (partilha) mit (com) O enunciado como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se puder ser

partilhado com outrem ldquover juntordquo o mostrado jaacute determinado ldquolsquoCompartilhadorsquo eacute o

comum e transparente ser para o mostrado lsquoser pararsquo que deve ser firmemente mantido

117

como ser-no-mundo [] Agrave enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo entendida assim sentido

existenciaacuterio pertence o ser expressordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Essa terceira forma

estaacute relacionada ao Vorgriff (conceito-preacutevio) ou a significaccedilotildees calcificadas de um

mundo histoacuterico faacutetico

Natildeo podemos esquecer que a anaacutelise dos existenciaacuterios (entender interpretaccedilatildeo e

disposiccedilatildeo) estatildeo na anaacutelise do ldquoser-em como talrdquo (quinto capiacutetulo) antecedida pelo

capiacutetulo intitulado ldquoo ser-no-mundo como ser-com e como ser-si-mesmo lsquoA gentersquordquo

Nesse sentido e pelo caraacuteter programaacutetico de Ser e Tempo a anaacutelise da enunciaccedilatildeo ou

proposiccedilatildeo (Aussage) jaacute pressupotildee que ser-no-mundo eacute sempre ser-com-os-outros Desse

modo ser expresso na comunicaccedilatildeo eacute a primeira manifestaccedilatildeo acerca do fenocircmeno da

linguagem que Heidegger apresenta em Ser e Tempo Poreacutem no sect34 o autor indica que

a comunicaccedilatildeo enunciativa ou informativa (ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo

ldquoHoje eacute um belo diardquo etc) assentada na predicaccedilatildeo eacute um caso particular de comunicaccedilatildeo

(Cf HEIDEGGER 2012 p457) Mas aqui chegamos ao intuito principal de nosso

capiacutetulo descrever como a ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo fundada na predicaccedilatildeo que por

sua vez soacute eacute possiacutevel pela interpretaccedilatildeo apresenta o caraacuteter derivativo do enunciado

expresso em uacuteltima medida pela linguagem que comunica

A partir dessa apresentaccedilatildeo dos trecircs significados do enunciado (Aussage)

compreendemos sua definiccedilatildeo ldquoenunciaccedilatildeo eacute uma mostraccedilatildeo determinante que

comunicardquo (HEIDEGGER 2012 p443) Portanto chegamos agrave estrutura ontoloacutegica da

linguagem (Sprache) ou ao dizer puacuteblico acerca das coisas e do estado de coisas em um

mundo Ter chegado ao objetivo central de nosso capiacutetulo natildeo quer dizer que nossa tarefa

se encerra aqui Uma obra como Ser e Tempo nos exige mais A finalidade da investigaccedilatildeo

desse paraacutegrafo ainda natildeo foi esclarecida em seus dois uacuteltimos pontos

1) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos

2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade

Se Heidegger indica que no mostrar mesmo do fenocircmeno em seu loacutegos (algo como

algo) pode surgir a forma predicativa eacute necessaacuterio explicar como no proacuteprio loacutegos a

flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo eacute possiacutevel Nas palavras de nosso autor

118

ldquoQue funda a unidade desse juntar Ele reside como Platatildeo reconheceu em que o

λόγος eacute sempre um λόγος tivoacuteς Na perspectiva do ente manifesto no λόγος as

palavras satildeo reunidas em um todo verbal Aristoacuteteles viu mais radicalmente todo

λόγος eacute ao mesmo tempo σύνθεσis e διαίρεσηs A mostraccedilatildeo eacute um reunir e separar

Entretanto Aristoacuteteles natildeo desenvolveu a questatildeo ateacute perguntar Que fenocircmeno eacute

o que no interior da estrutura do λόγος possibilita e ao mesmo tempo exige a

caracterizaccedilatildeo de toda enunciaccedilatildeo como siacutentese e dieacuterese () O que com as

estruturas formais do lsquoligarrsquo e lsquosepararrsquo ou mais exatamente com a unidade de

ambos devia ser fenomenicamente encontrado eacute o fenocircmeno do lsquoalgo como algorsquordquo

(HEIDEGGER 2012 p449)

A criacutetica expliacutecita se volta contra Aristoacuteteles mas tambeacutem contra toda tradiccedilatildeo

que absorveu esse pressuposto E como natildeo podemos deixar de observar ateacute seu proacuteprio

mestre Husserl quando este estabeleceu a diferenccedila entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial

Essa distinccedilatildeo desalojou o lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel e o conduziu ao uso loacutegico

sem revelar de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno ou o desvelamento dos

entes em seu ser O fenocircmeno da linguagem enunciativa (Mitteilung) em funccedilatildeo de sua

derivaccedilatildeo da predicaccedilatildeo (Praumldikation) e essa por sua vez derivada da mostraccedilatildeo

(Aufzeigung) possui uma ligaccedilatildeo com os entes na medida em que diz o que de algum

modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que lsquoalgo eacute xrsquo ou que lsquoalgo natildeo eacute xrsquo eacute possiacutevel primariamente

pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com

No interior da estrutura do proacuteprio λόγος ao indicar-se que algo eacute diz-se tambeacutem como

ele eacute ou como ele natildeo eacute [esse traccedilo estaacute relacionado ao caraacuteter intencional do discurso

(die Rede) que examinaremos no proacuteximo capiacutetulo] Contudo a linguagem habitual que

manteacutem vigente os significados calcificados natildeo reconhece esse traccedilo para aleacutem da

gramaacutetica Aleacutem disso a proposiccedilatildeo loacutegica obscurece a estrutura do loacutegos que a

condiciona pelo fato de usurpar a verdade para o juiacutezo natildeo reconhecendo o lugar

originaacuterio da verdade Originariedade somente possiacutevel pela compreensatildeo da verdade

como Aleacutetheia O que nos conduz agrave segunda finalidade da investigaccedilatildeo do sect 33

Para explicarmos esse conceito originaacuterio de verdade eacute necessaacuterio que nos

reportemos ao sect44 Quando se diz ldquooriginariedaderdquo do fenocircmeno da verdade natildeo se diz

algo como lsquocausarsquo da verdade antes se refere agrave sua origem sem sentido objetivo

lsquoObjetividadersquo eacute um conceito derivado da verdade reportada ao juiacutezo Aqui a verdade

tambeacutem natildeo deve ser considerada para aleacutem de sua compreensatildeo histoacuterica Lembremos

de que natildeo haacute ldquoserrdquo sem a compreensatildeo do sentido de ser portanto eacute necessaacuterio vincular

119

sempre ldquoserrdquo ao ser-aiacute ente finito e histoacuterico Por conseguinte compreensatildeo de ser em

Ser e Tempo estaacute como a origem mesma da verdade compreendida como desvelamento

Como jaacute apontamos antes a enunciaccedilatildeo (Aussage) enquanto mostraccedilatildeo

(Aufzeigung) eacute a forma fundante dos modos possiacuteveis de enunciaccedilatildeo e nela Heidegger

reteacutem o sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Na mostraccedilatildeo nada se funda em

representaccedilotildees que se adequam a objetos como compreendeu a tradiccedilatildeo Para serem

verdadeiros e garantirem seu estatuto ontoloacutegico os entes natildeo precisam estar de em

acordo nem se submeterem agrave adequaccedilatildeo dos juiacutezos ou proposiccedilotildees dos homens A

derivaccedilatildeo da verdade como objetividade na ciecircncia ou em todo comportamento teoacuterico

natildeo pode negar a maneira pela qual o ente eacute posto em liberdade Conhecer

originariamente eacute deixar que o ente se mostre em seu ser dessa forma

ldquoSuponha-se que algueacutem de costas para a parede profira a seguinte enunciaccedilatildeo

verdadeira lsquoO quadro pendurado na parede estaacute tortorsquo Essa enunciaccedilatildeo se

comprova quando quem a enuncia se volta para a parede e percebe o quadro torto

ali dependurado Que eacute comprovado nessa comprovaccedilatildeo Eacute constatado algo

como uma concordacircncia do lsquoconhecimentorsquo ou do conhecido com a coisa

lsquocolocadarsquo na parede Sim e natildeo conforme se faccedila cada vez uma adequada

interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do que a expressatildeo lsquoo conhecidorsquo significa A que

se refere quem enuncia se natildeo julga o quadro na percepccedilatildeo mas soacute o representa

A algo como representaccedilotildees Certamente que natildeo se representaccedilatildeo deve aqui

significar representar como processo psiacutequico Tambeacutem natildeo se representaccedilotildees

tecircm o sentido do representado na medida em que visada uma imagem da coisa

real na parede Ao contraacuterio a enunciaccedilatildeo que soacute representa refere-se segundo

seu sentido mais proacuteprio ao quadro real na parede Soacute ele eacute visado e nada que

dele difira () O enunciar eacute um ser voltado para a coisa sendo ela mesma E que

eacute comprovado pela percepccedilatildeo Nada senatildeo que o percebido eacute o mesmo ente

visado na enunciaccedilatildeoConfirma-se que o ser enunciante para o enunciado eacute um

mostrar o ente que ele descobre o ente para o qual se volta Eacute comprovado o ser-

descobridor da enunciaccedilatildeo () o conhecer permanece referido unicamente ao

ente ele mesmo Eacute neste mesmo que se joga por assim dizer a confirmaccedilatildeo O

ente visado se mostra ele mesmo assim como ele eacute em si mesmo () A

enunciaccedilatildeo eacute verdadeira significa que ela descobre o ente em si mesmo Ela

enuncia mostra lsquofaz verrdquo (αποφανσις) o ente em seu ser-descoberto O ser

verdadeiro (verdade) da enunciaccedilatildeo se deve entender como um ser-descobridorrdquo

(Heidegger 2012 pp603-605)

O termo grego ldquoapophantikoacutesrdquo pela junccedilatildeo entre ldquoapordquo [ldquopara forardquo ldquomostrarrdquo

ldquotornar conhecidordquo] e ldquophaineinrdquo [ldquoexibir mostrarrdquo (derivado de lsquophosrsquo ldquoluzrdquo - mesma

raiz da palavra phainoacutemenon)] manteacutem sua forccedila quando articulado com as palavras

120

ldquoAuslegungrdquo e ldquoAussagerdquo Pois tal como ldquoapordquo ldquoausrdquo eacute o prefixo de liacutengua alematilde usado

nessas palavras com o sentido da preposiccedilatildeo aus que significa ldquopara forardquo ldquoderdquo Assim

uma vez interpretado (Auslegung) o ente enunciado (Aussage) jaacute mostrou jaacute trouxe a si

mesmo a conhecimento e desvelou-se como ente e nisso consiste sua verdade originaacuteria

(Aleacutetheia)

O retorno de Heidegger agrave ldquoforccedila das palavras mais elementaresrdquo ou agraves palavras

gregas como loacutegos dikeacute physis teacutechne e aleacutetheia eacute a tentativa de ir aleacutem da

sedimentaccedilatildeo histoacuterica das palavras Dito de outra forma voltar agrave origem dos termos

atraveacutes dos quais o pensamento filosoacutefico teria alcanccedilado lsquoas coisas mesmasrsquo coisas essas

que agora no presente permanecem veladas por camadas interpretativas cotidianas e

teoacutericas Sendo a concepccedilatildeo de que a proposiccedilatildeo eacute o lugar privilegiado da verdade uma

das maiores expressotildees da tradiccedilatildeo metafiacutesica Portanto eacute tarefa a que Ser e Tempo se

propotildee eacute a da descriccedilatildeo desse lugar originaacuterio ndash de mostraccedilatildeo - dos fenocircmenos

Mas se eacute o ser-aiacute na abertura de sentido fundamental que mobiliza os entes em seu

ser qual o papel desse ente marcado pela existecircncia em meio agrave verdade agora

compreendida como Aleacutetheia A compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido

primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode custodiar o sentido

de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento

ldquoO ser-verdadeiro como ser-descobridor soacute eacute de sua parte ontologicamente

possiacutevel sobre o fundmento do ser-no-mundo Este fenocircmeno no qual

reconhecemos uma constituiccedilatildeo fundamental do Dasein eacute o fundamento do

fenocircmeno originaacuterio da verdade () Na medida em que o Dasein eacute

essencialmente sua abertura e aberto abre e descobre ele eacute essencialmente

verdadeiro O Dasein eacute lsquona verdadersquordquo (HEIDEGGER 2012 pp607-611)

O ser-aiacute em sua unidade fenomecircnica como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge)

revelou-se como o fundamento sem fundamento da abertura compreensiva portanto

aquele que como ser-no-mundo pode abrir o sentido de ser de todo ente e de suas

possibilidades Poreacutem como projeto-jogado eacute tambeacutem aquele que pode perder-se e natildeo

tornar transparente essa condiccedilatildeo ontoloacutegica fundamental o que frequentemente jaacute faz

pois sempre jaacute custodiou seu ser no mundo suas orientaccedilotildees cotidianas as sedimentaccedilotildees

121

significativas e as concepccedilotildees de verdade calcificadas Por isso o Dasein eacute o ente que

tambeacutem estaacute na natildeo-verdade (Umwahrheit)81

Recuperemos o sentido efetivo de desvelamento ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o

que aponta para o velamento (lethe) que ficou para traacutes que mostra para aquilo que a

sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila da aleacutetheia que se torna possiacutevel a

objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89)

Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao

encontro em seu significado) no desvelamento originaacuterio de seu ser mas a mostraccedilatildeo dos

fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira dissimulada sempre em uma objetificaccedilatildeo de

seu ser como ente determinado pois ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na

medida em que partimos de seu encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de

descoberta perde seu sentido mais efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Entatildeo ldquodizer que o

Dasein estaacute e natildeo estaacute na verdade eacute compreender que o encobrimento (Verschlossenheit)

eacute [] a contraparte da aberturardquo (NUNES 2012 p197)

Depois dessa exposiccedilatildeo eacute necessaacuterio apresentar como a linguagem estaacute assentada

na constituiccedilatildeo proacutepria ao ser-aiacute em relaccedilatildeo agrave verdade Tentaremos mostrar como o

discurso (Rede) eacute para Heidegger o fundamento ontoloacutegico da linguagem mas ao

mesmo tempo como o proacuteprio fenocircmeno da linguagem jaacute sempre se apresenta como

falatoacuterio (Gerede) Essa eacute a tarefa do proacuteximo e uacuteltimo capiacutetulo de nosso trabalho

81 Cf HEIDEGGER 2012 sect44 p615

122

Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)

Em vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdos Sob a pele das palavras haacute cifras e coacutedigos O sol consola os doentes e natildeo os renova

As coisas Que tristes satildeo as coisas consideradas sem ecircnfase (A flor e a naacuteusea Carlos Drummond de Andrade)

Introduccedilatildeo

No capiacutetulo anterior descrevemos de que modo o fenocircmeno da linguagem eacute

apresentado pela primeira vez em Ser e Tempo como ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo e ainda

como a linguagem eacute derivada da mostraccedilatildeo preacutevia dos entes em seu ser a partir da relaccedilatildeo

primaacuteria ser-aiacute como ser-no-mundo O Dasein como ente privilegiado estaacute remetido ao

mundo e sempre jaacute possui uma compreensatildeo preacutevia do ser A compreensatildeo ou

entendimento (Verstehen) de ser eacute o fundamento originaacuterio da verdade agora

compreendida como desvelamento aleacutetheia Poreacutem desvelar eacute apontar para o que

permanece velado ou seja a contraparte da abertura eacute o velamento

Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a

ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo

material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos

que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas

que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela

dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se

estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o

123

que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes82rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que

somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em

fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo

Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por

Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um

fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo

incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como

descoberto e os entes sempre disponiacuteveis A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo

cotidiano Heidegger chama de ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou

ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que

esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas

tomadas como oacutebvias e sempre disponiacuteveis pelos nossos recursos linguiacutesticos

I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem

A anaacutelise do discurso (Rede) por Heidegger eacute apresentada no sect34 de Ser e Tempo e

eacute assim descrita

ldquoCom a enunciaccedilatildeo ficou visiacutevel um derivado extremo da interpretaccedilatildeo A

elucidaccedilatildeo da terceira significaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo (ou

manifestaccedilatildeo verbal) conduziu ao conceito de dizer e falar que intencionalmente

sem duacutevida natildeo fora considerado ateacute aquele momento O fato de que a linguagem

seja tematizada somente agora deve servir de indicaccedilatildeo de que esse fenocircmeno

tem suas raiacutezes na constituiccedilatildeo existenciaacuteria da abertura do Dasein O fundamento

ontoloacutegico-existenciaacuterio da linguagem eacute o discurso () O discurso eacute

existenciariamente de igual originariedade que o entenderrdquo (HEIDEGGER

2012 p453)

Esse trecho nos coloca diante de uma constataccedilatildeo reveladora Afinal o que

fundamenta a linguagem estaacute remetido a abertura primaacuteria de sentido Mas isso jaacute natildeo

estaacute claro a partir da descriccedilatildeo da enunciaccedilatildeo De certa forma sim contudo de maneira

indireta pois a enunciaccedilatildeo (Aussage) comunicativa estaacute remetida aos significados ou

seja ao entendimento jaacute articulado e interpretado Agora poreacutem o que Heidegger nos

82 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo

Wolf Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249

124

apresenta eacute o discurso como fundamento da interpretaccedilatildeo e da enunciaccedilatildeo De outra

forma o fundamento da linguagem na proacutepria abertura de sentido (Sinn) de maneira que

o discurso eacute o proacuteprio entendimento articulado que pode interpretar

ldquoO discurso eacute a articulaccedilatildeo da entendibilidade Por isso o discurso fundamenta a

interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo Ao que pode ser articulado na interpretaccedilatildeo e

mesmo mais originariamente jaacute no discurso demos o nome de sentido O

articulado na articulaccedilatildeo discursiva como tal denominamos de o-todo-da-

significaccedilatildeo e este pode ser decomposto em significaccedilotildees As significaccedilotildees como

o articulado do articulaacutevel satildeo sempre providas de sentido () A entendibilidade

do encontrar-se do ser-no-mundo exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER

2012 p455)

O tratamento sobre o discurso (Rede) em Ser e Tempo eacute pouco extensivo mas

cabe a noacutes tentar compreendecirc-lo em todo sua radicalidade O iniacutecio da filosofia grega

denominado como ldquofilosofia da naturezardquo eacute marcado pela tentativa de encontrar a ordem

imanente agrave totalidade substancial do mundo material Essa totalidade estaacute expressa na

palavra physis que nada tem a ver com a natureza empiacuterica e manipulaacutevel que

conhecemos hoje pelas ciecircncias naturais83 Essa totalidade soacute pode ser vista como tal em

sua constituiccedilatildeo una se suas partes estiverem organicamente reunidas sem as quais natildeo

haacute totalidade mas eacute a partir da totalidade que as partes ganham sentido Mesmo que

Heidegger natildeo trate o discurso nesses termos e ainda mesmo que o termo physis apoacutes a

viragem ganhe uma conotaccedilatildeo toda especiacutefica nos valemos dessa explicaccedilatildeo para tentar

compreender a especificidade do discurso Desse modo podemos observar o que estaacute em

jogo no trecho acima O discurso eacute a articulaccedilatildeo da abertura de sentido sem ele o todo

natildeo poderia ser decomposto e a totalidade seria apenas um todo indistinto Nesse sentido

que o discurso fundamenta a interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo E isso nos revela um pouco

mais

ldquoA tatildeo comum definiccedilatildeo do iniacutecio da filosofia como a substituiccedilatildeo da explicaccedilatildeo

miacutetica ou (como eacute o recorte nos manuais de histoacuteria da filosofia) a passagem do

mito ao logos eacute por demais simplista para descrever o que representou a histoacuteria

e filosoficamente essa origem Compreender a filosofia antiga a partir da relaccedilatildeo

entre logos e physis eacute de fato compreender que o iniacutecio da especulaccedilatildeo filosoacutefica

sobre o mundo eacute em grande parte acompanhado pela tradiccedilatildeo miacutetica grega de

unidade entre espiacuterito e natureza e ao mesmo tempo pelo iniacutecio de um certo

83 Cf GONCcedilALVES M 2006 pp7-11

125

estranhamento entre o ser humano pensante e o ser natural ou () a natureza em

sua totalidaderdquo (GONCcedilALVES 2006 p12)

Como vimos o loacutegos para Heidegger natildeo eacute algo que estaacute no Dasein e por isso ele

pode pensar a totalidade Loacutegos segundo Heidegger em seu sentido originaacuterio grego natildeo

eacute ratio Ao contraacuterio o loacutegos estaacute na totalidade ele eacute a articulaccedilatildeo da totalidade que se

mostra ao mostrar os entes ou os fenocircmenos (loacutegos eacute loacutegos apofacircntico) E por isso o ser-

aiacute o acessa inicialmente de modo praacutetico pois natildeo se separa dessa totalidade (por isso a

originariedade da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da

conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) significativamente articulada) Na realidade o ser-aiacute soacute se

afasta dessa totalidade quando natildeo acessa mais o loacutegos de maneira originaacuteria relativo agrave

derivaccedilatildeo como ente simplesmente dado (Vorhanden) fazendo emergir algo como

significado (Bedeutung) que ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da

enunciaccedilatildeo (Aussage)

Mas qual a relaccedilatildeo entre loacutegos e discurso (Rede) Precisamos ir ao sect7 de Ser e

Tempo ldquoQuando dizemos que o significado-fundamental de λόγος eacute discurso essa

traduccedilatildeo literal soacute eacute plenamente validada a partir da determinaccedilatildeo do que o discurso ele

mesmo significardquo (HEIDEGGER 2012 p113) Loacutegos e discurso satildeo portanto o mesmo

Mas isso soacute torna a questatildeo ainda mais difiacutecil Afinal o loacutegos como loacutegos apofacircntico natildeo

eacute o mostrar do ente em seu ser Como mostrar e dizer podem ser o mesmo

ldquoλόγος como discurso significa () algo assim como δηλοῦν tornar manifesto

aquilo de que lsquose discorrersquo no discurso Aristoacuteteles explicitou mais nitidamente

essa funccedilatildeo do discurso como αποφανέσται O λόγος faz ver algo (φαίνεισθαι) a

saber aquilo sobre o que se discorre e faz ver a quem discorre (voz media) e aos

que discorrem uns com os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p113)

Discurso eacute a mostraccedilatildeo (ἀπόφανσις) que torna-se clara (δηλοῦν) Lembremos que

a plurivocidade do ente na tradiccedilatildeo loacutegica estaacute assentada nas possibilidades semacircnticas

submetidas a um princiacutepio loacutegico fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado

ao princiacutepio de identidade Pensamos que o que Heidegger potildee em tela eacute que a

ldquoidentidaderdquo e a ldquonatildeo-contradiccedilatildeordquo natildeo satildeo princiacutepios loacutegicos mas o mostrar e o torna-

se claro dos fenocircmenos em seu ser na totalidade articulada Ou seja o sentido de ser dos

126

fenocircmenos o mostrar o existente como existente eacute o loacutegos que manifesta e diz a si

mesmo pois reporta-se a palavra legein tornar manifesto aquilo de que se fala num

discurso deixar que algo seja visto manifesto porque posicionado em relaccedilatildeo uns com

os outros Tentemos esboccedilar um exemplo mas natildeo esqueccedilamos a fragilidade das palavras

sedimentas e o obscurecimento que elas oferecem a problemaacutetica ontoloacutegica Quando no

nosso cotidiano uma mesa ldquode trabalhordquo sem os livros sem a cadeira sem as canetas e

sobretudo sem a intenccedilatildeo de ser usada para o trabalho natildeo possui qualquer sentido Ela

eacute apenas um pedaccedilo de madeira ou mesmo passa obtusa aos nossos olhos Do mesmo

modo os livros as canetas e a cadeira A articulaccedilatildeo preacutevia desses objetos ou em seu

sentido ontoloacutegico a articulaccedilatildeo desses fenocircmenos eacute o que faz com que cada um deles

possa ser visto como um ldquoistordquo Notemos como o exemplo nos reporta exatamente a noccedilatildeo

de Umwelt descrita por Heidegger O que o discurso indica eacute a articulaccedilatildeo preacutevia para

que as coisas apareccedilam como tais jaacute no mundo circundante Articulaccedilatildeo anterior a

qualquer interpretaccedilatildeo de um ldquoistordquo ou de algo como algo e consequentemente anterior

ao enunciado (Aussage) Assim o caraacuteter ontoloacutegico dessa articulaccedilatildeo sempre dada a

noacutes em um mundo jaacute descerrado em que pode-se travar atividades praacuteticas com os entes

e em uacuteltima instacircncia falar de ldquomesardquo ldquocadeirardquo ldquocanetardquo etc eacute dado pelo discurso (die

Rede) compreendido como sendo o significado fundamental de λόγος

Nesse sentido podemos ver tambeacutem o caraacuteter intencional do discurso Como

indicamos no capiacutetulo anterior loacutegos como loacutegos apofacircntico possui uma ligaccedilatildeo com os

entes na medida que diz o que de algum modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que ldquoalgo eacute xrdquo ou

que ldquoalgo natildeo eacute xrdquo eacute possiacutevel primariamente pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da

mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com No interior da estrutura do proacuteprio λόγος

ao mostrar que algo eacute diz tambeacutem como ele eacute ou como ele natildeo eacute

ldquoPara tanto tomar-se-aacute uma sentenccedila elementar como exemplo de realizaccedilatildeo do

discurso (λόγος) ldquoa caneta eacute azulrdquo Acabou-se de dizer que um dos elementos

constitutivos do falar (λέγειν) eacute o sobre-o-quecirc Este sobre-o-quecirc em direccedilatildeo ao

qual se realiza o movimento intencional de desvelamento se encontra

simplesmente dado como um todo discreto e a interpelaccedilatildeo discursiva destaca

dele certos elementos O que ocorre ao se proferir o enunciado do tipo ldquoa caneta

eacute azulrdquo eacute uma cisatildeo de um todo subsistente o discurso opera no uno indistinto a

fixaccedilatildeo de limite de certas determinaccedilotildees particulares de modo a destacar

componentes pertencentes a esse elemento temaacutetico da fala () Assim natildeo se

tem uma mostraccedilatildeo da totalidade do sobre-o-quecirc mas apenas de determinados

aspectos seus Juntamente com este movimento de distinccedilatildeo do discurso

denominado de cisatildeo (διαίρεσις) ocorre outro a siacutentese (σύνθεσις) Dissociando-

127

se do todo indistinto certos elementos a ele pertencentes estes natildeo satildeo

simplesmente colocados uns ao lado dos outros Ao fixar os limites das

determinaccedilotildees pertencentes ao uno discreto o discurso reuacutene os elementos que

foram por ele destacados posicionando-os uns com os outros Assim a

interpelaccedilatildeo discursiva que demarca um elemento temaacutetico como sendo caneta e

azul atribui a cor azul ao ente utilizaacutevel caneta sendo esses elementos

visualizados conjuntamente como um no enunciado ldquoa caneta eacute azulrdquo Atraveacutes da

siacutentese o que se dava como um todo indistinto eacute visualizado em sua unidade

destacada por determinados aspectos seus Com base nesses dois momentos a

siacutentese (σύνθεσις) e a cisatildeo (διαίρεσις) vecirc-se que o desencobrimento realizado

pelo discurso eacute uma articulaccedilatildeo delimitadora do quecirc para o qual ele se dirigerdquo

(SALGADO 2015 p145)

Contudo o discurso natildeo eacute apenas o ldquosobre-quecircrdquo a ele tambeacutem pertencem ldquoo dito

discursivamente como tal a comunicaccedilatildeo e o anuacutenciordquo (HEIDEGGER 2012 p459) Isto

porque ldquoo discurso eacute a articulaccedilatildeo significacional da entendibilidade [ou da compreensatildeo

(Verstehen)] do encontrar-se (befindlichen) no ser-no-mundordquo (HEIDEGGER 2012

p459) Ou seja natildeo eacute apenas aos entes e a um estado de coisas natildeo conforme ao ser-aiacute

que o discurso se reporta Mas a proacutepria abertura que possui sentido sendo o sentido

ldquoaquilo que a entendibilidade de algo se manteacutem Denominamos sentido o que eacute

articulaacutevel no abrir que entenderdquo (HEIDEGGER 2012 p429) O discurso como o

significado originaacuterio de loacutegos eacute o proacuteprio ser-no-mundo Pois na medida em que a

proacutepria abertura compreensiva se manteacutem por estar articulada pode sustentar em seu

acircmbito o que quer que seja entes sensaccedilotildees projetos etc E para fora dela bem natildeo haacute

nem mesmo fora Nesse sentido que ldquoa entendibilidade do encontrar-se do ser-no-mundo

exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER 2012 p455) e ldquoo todo-de-significaccedilatildeo da

entendibilidade acede agrave palavra Das significaccedilotildees nascem as palavras e natildeo satildeo as

palavras que entendidas como coisas se proveem de significaccedilotildeesrdquo (HEIDEGGER

2012 p455) A situaccedilatildeo insustentaacutevel de considerar as palavras como as portadoras

originaacuterias de significados pode ser exemplificada por um trecho da obra Cem anos de

solidatildeo de Gabriel Garciacutea Maacuterquez no momento em que Joseacute Arcadio Buendiacutea previu

que as inscriccedilotildees graacuteficas poderiam natildeo mais reportar agrave utilidade das coisas

ldquoFue Aureliano quien concibioacute la foacutermula que habiacutea de defenderlos durante varias

meses de las evasiones de la memoria La descubrioacute por casualidad Insomne

experto por haber sido uno de las primeros habiacutea aprendido a la perfeccioacuten el

arte de la plateriacutea Un diacutea estaba buscando el pequentildeo yunque que utilizaba para

laminar los metales y no recordoacute su nombre Su padre se lo dijo laquotasraquo Aureliano

128

escribioacute el nombre en un papel que pegoacute con goma en la base del yunquecito tas

Asiacute estuvo seguro de no olvidarlo en el futuro No se le ocurrioacute que fuera aquella

la primera manifestacioacuten del olvido porque el objeto teniacutea un nombre difiacutecil de

recordar Pero pocos diacuteas despueacutes descubrioacute que teniacutea dificultades para recordar

casi todas las cosas del laboratorio Entonces las marcoacute con el nombre respectivo

de modo que le bastaba con leer la inscripcioacuten para identificarlas Cuando su

padre le comunicoacute su alarma por haber olvidado hasta los hechos maacutes

impresionantes de su nintildeez Aureliano le explicoacute su meacutetodo y Joseacute Arcadio

Buendiacutea lo puso en praacutectica en toda la casa y maacutes tarde la impuso a todo el pueblo

Con un hisopo entintado marcoacute cada cosa con su nombre mesa silla reloj

puerta pared cama cacerola Fue al corral y marcoacute los animales y las plantas

vaca chivo puerca gallina yuca malanga guineo Paca a poca estudiando las

infinitas posibilidades del olvido se dio cuenta de que podiacutea llegar un diacutea en que

se reconocieran las cosas por sus inscripciones pero no se recordara su utilidad

Entonces fue maacutes expliacutecito El letrero que colgoacute en la cerviz de la vaca era una

muestra ejemplar de la forma en que los habitantes de Macondo estaban

dispuestas a luchar contra el olvido Eacutesta es la vaca hay que ordentildearla todas las

mantildeanas para que produzca leche y a la leche hay que herviriacutea para mezclarla

con el cafeacute y hacer cafeacute con lecherdquo (MAacuteRQUEZ 1999 p102)

A doenccedila da insocircnia em Macondo na obra de Maacuterquez e o esquecimento como

sua consequecircncia eacute ndash se nos permitem uma comparaccedilatildeo livre ndash como na cotidianidade

consideramos os entes disponiacuteveis e sempre presentes Partimos sempre desse

encobrimento oferecido pela liacutengua que a cada vez quer fixar os entes e assim as palavras

satildeo instrumentalizadas pois definem afinal nessa insocircnia o que cada coisa eacute O

esquecimento eacute portanto o desligamento da mostraccedilatildeo originaacuteria dos entes em seu ser

E em uacuteltima medida o esquecimento da verdade como desvelamento (Aleacutetheia) Dito de

outro modo aquilo que Heidegger jaacute havia indicado em 1923-1924 ldquoO que importa eacute

somente que essas coisas existem aiacute () Mas que falte um nome para essas coisas mostra

contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia84(HEIDEGGER

2006p31)

Mas o que consiste esse dizer falar do discurso Se ele eacute o fundamento ontoloacutegico

da linguagem certamente natildeo eacute o mesmo que profericcedilotildees verbais e nominais e sobretudo

natildeo diz respeito a natureza fiacutesica da produccedilatildeo e da percepccedilatildeo dos sons da fala humana

como compreende o estudo da foneacutetica Heidegger nos apresenta entatildeo como o dizer do

discurso pode ser visualizado de forma clara pelo ouvir

84 Cf Nota 45

129

ldquoA conexatildeo do discurso com o entender e com a entendibilidade se torna clara a

partir de uma possibilidade existenciaacuteria do discurso ele mesmo a saber a partir

do ouvir Natildeo eacute por acaso que ao natildeo ouvir lsquodireitorsquo dizemos natildeo lsquoter entendidorsquo

Para o discurso o ouvir eacute constitutivo E assim como a prolaccedilatildeo verbal se funda

no discurso a percepccedilatildeo acuacutestica tambeacutem se funda no ouvir () O Dasein ouve

porque entende Como entendedor ser-no-mundo com os outros ele eacute no seu

ouvir lsquoobedientersquo ao Dasein-com e a si mesmo e nessa audiecircncia obediente ele

se torna dependenterdquo (HEIDEGGER 2012 p461)

Essa dependecircncia diz respeito agrave articulaccedilatildeo jaacute aberta de um mundo descerrado O

discurso articula um mundo esse que sempre nos movimentamos e nos orientamos Sem

essa obediecircncia natildeo haveria qualquer possibilidade de accedilotildees e projetos do ser-aiacute E o

ouvir como possibilidade existenciaacuteria do discurso eacute a manifestaccedilatildeo de seu traccedilo

intencional que ilumina sua presenccedila na abertura de sentido Pois o ouvir eacute o fundamento

ontoloacutegico do escutar ldquofenomenicamente mais originaacuterio do que se determina lsquode

imediatorsquo em psicologia como ouvir ter sensaccedilotildees de sons e perceber ruiacutedosrdquo

(HEIDEGGER 2012 p461) De modo mais claro o fenocircmeno desde Husserl indica

aquilo que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute sempre uma doaccedilatildeo com

significado Assim a intencionalidade fenomenoloacutegica para Heidegger agora voltada ao

mundo e a facticidade como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em seu ser acontece

na e pela articulaccedilatildeo discursiva que ouve porque jaacute articulou a totalidade e por isso

entende tendo em vista que essa totalidade natildeo se apresenta como um todo indistinto Ou

seja o ser-aiacute em sua constituiccedilatildeo primaacuteria voltado agrave abertura compreensiva articulada

pelo discurso pode escutar a doaccedilatildeo fenomecircnica

ldquolsquoDe imediatorsquo nunca ouvimos barulhos e o conjunto de ruiacutedos mas o carro que

range a motocicleta O que se ouve eacute a coluna em marcha o vento norte o pica-

pau bicando o fogo crepitando Eacute preciso uma atitude muito artificial e

complicada para lsquoouviursquo um lsquobarulho purorsquo Que em primeiro lugar ouccedilamos

motocicletas e carros eacute a prova fenomecircnica de que o Dasein como ser-no-mundo

manteacutem-se cada vez junto ao utilizaacutevel do interior-do-mundo e de modo algum

imediatamente junto a lsquosensaccedilotildeesrsquo cuja concatenaccedilatildeo tivesse primeiramente de

ser formada para que se proporcionasse o trampolim a partir do qual o sujeito

saltaria para alcanccedilar finalmente um lsquomundorsquo O Dasein como essencialmente

entendedor eacute de pronto junto ao entendidordquo (HEIDEGGER 2012 p461)

A doaccedilatildeo fenomecircnica possibilitada pelo traccedilo intencional do discurso se estende

agrave escuta e ao calar de um outro ser-aiacute pois como ser-no-mundo que eacute sempre ser-com-

os-outros o Dasein jaacute estaacute ldquode antematildeo com o outro junto ao ente sobre o qual discorrerdquo

130

(HEIDEGGER 2012 p463) Por isso quando outra pessoa nos fala algo natildeo ouvimos

primeiramente os sons para depois agregaacute-los e formarmos palavras compreensiacuteveis Ou

ainda quando o outro silencia ainda expressa algo e tambeacutem pode lsquodar a entenderrsquo

ldquoOuvindo compreendemos o que o interlocutor diz E o dizer nos coloca de

imediato com o interlocutor junto ao ente a respeito do qual o discurso se

pronuncia O genuiacuteno silecircncio tambeacutem modo de ouvir e de dizer calando Essa

preeminecircncia do dizer se reflete nos componentes dos do discurso que se

estruturam a partir daquilo que acede agrave palavra do ente que ela torna manifesto

Dizer algo de certa maneira para algueacutem numa tonalidade ou disposiccedilatildeo de

acircnimo nisso consiste o fenocircmeno do discurso em sua completa estrutura

comunicativa-expressivardquo (NUNES 2012 p 170)

Poderiacuteamos dizer que a articulaccedilatildeo da compreensatildeo (Verstehen) pelo discurso

(Rede) na reuniatildeo dos elementos que foram por ele destacados posicionando-os

discursivamente opera como a harmonia de uma muacutesica que daacute aos fenocircmenos seu lugar

na melodia em funccedilatildeo do ritmo Sendo o ritmo o ldquomundordquo como abertura histoacuterica que

sustenta o sentido de ser de cada parte da melodia que continuaraacute agrave tona ou que teraacute

sentido

Portanto para o ser-aiacute estar lanccedilado em um mundo como projeto-jogado eacute estar

familiarizado atraveacutes da abertura que entende dispositivamente o horizonte de sentido E

esse horizonte eacute compartilhado por todos que convivem em um mesmo mundo faacutetico e eacute

neste sentido que a comunicaccedilatildeo o terceiro significado de enunciaccedilatildeo como vimos no

capiacutetulo anterior ldquoefetua lsquoa partilharsquo do co-encontrar-se e do entendimento do ser-comrdquo

(HEIDEGGER 2012 p457) O que eacute compartilhado natildeo eacute meramente um conteuacutedo

significativo de um lsquopacto-linguiacutesticorsquo assim como comunicar natildeo eacute trazer um desejo

uma expressatildeo uma afirmaccedilatildeo de lsquoforarsquo de um sujeito para o lsquointeriorrsquo de outro mas ldquosua

tendecircncia-de-ser consiste em pretender que o ouvinte participe do ser aberto por aquilo-

sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012 p 473) ou seja a partilha da

experiecircncia da abertura compreensiva jaacute articulada como horizonte de possibilidades que

vem agrave linguagem De outro modo

ldquoDado que o fundamento ontoloacutegico natildeo possui existecircncia agrave parte daquilo que

funda o discurso que eacute a condiccedilatildeo transcendental da linguagem relevando-se da

abertura do Dasein de seu ser-no-mundo tambeacutem eacute lsquolinguagem extensivarsquo (SZ

p61) Inversamente a linguagem como totalidade de palavras (Wortganzheit) de

uma liacutengua eacute o discurso pronunciado De onde se conclui que a primeira eacute a forma

131

estabilizada do segundo na perspectiva do ser-no-mundo da existecircncia cotidiana

que lhe impotildee a condiccedilatildeo de ente intramundano como utensiacutelio As palavras que

podem espedaccedilar-se e coisificar-se seriam o veiacuteculo dessa condiccedilatildeo instrumental

() E que eacute aceder agrave palavra senatildeo falar e que eacute falar senatildeo usar a linguagem

Satildeo pois equivalentes as duas afirmaccedilotildees de Heidegger- que ser no-mundo eacute

falante e que ele tem linguagem (Sprache)() Ambas concernem a um soacute

fenocircmeno captado no conceito aristoteacutelico de homem como ser capaz de falar ndash

zoacuteon loacutegon eacutechon- complemento agrave tese do zoacuteon politikoacuten (animal poliacutetico) - que

revela a interlocuccedilatildeo o lsquofalar uns com os outrosrsquo em que o cotidiano grego estava

politicamente enraizadordquo (NUNES 2012 p170)

Eacute um tanto embaraccediloso os caminhos conceituais que levam o discurso (die Rede)

agrave linguagem (die Sprache) e ainda como essa se apresenta sempre como falatoacuterio (das

Gerede) pela essecircncia mesma da comunicaccedilatildeo (Mitteilung) Pois a linguagem cotidiana

- o dizer uns com os outros em um mundo faacutetico - eacute um discurso que jaacute se expressou ou

seja o acontecimento da linguagem jaacute eacute articulado por um discurso preacutevio e o discurso

jaacute expresso eacute comunicaccedilatildeo Mesmo que a analiacutetica indique uma estratificaccedilatildeo e ainda a

fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da linguagem pelo discurso haacute um caraacuteter ciacuteclico

consequecircncia mesma do ciacuterculo hermenecircutico Se as palavras natildeo tecircm significados fixos

mas histoacutericos provenientes de uma abertura de sentido articulada que sustenta esses

significados Ainda assim os significados acumulam-se nas palavras e essas satildeo afinal a

maneira pela qual o mundo eacute dito nas relaccedilotildees interpessoais e nas relaccedilotildees das pessoas

com as coisas Desse modo se os significados acumulam-se nas palavras o discurso (die

Rede) sempre se manifesta na linguagem cotidiana E eacute na cotidianidade que a absorccedilatildeo

da linguagem eacute imediatamente tomada pela impessoalidade atraveacutes do uso instrumental

das palavras na tendecircncia de oferecer um mundo sempre estaacutevel Eacute essa uacuteltima descriccedilatildeo

que Heidegger chama de falatoacuterio (Gerede) Pois

ldquoO substantivo alematildeo Rede deriva-se diretamente do verbo reden que significa

falar O particiacutepio dos verbos em alematildeo eacute feito na maior parte das vezes por meio

da inserccedilatildeo da partiacutecula lsquogersquo() O que temos na cotidianidade mediana do ser-

aiacute eacute falatoacuterio natildeo porque podemos constatar empiricamente um esvaziamento da

linguagem impessoal e porque sempre eacute possiacutevel acompanhar a falta de

profundidade desses discursos Ao contraacuterio eacute falatoacuterio porque natildeo se realiza

senatildeo a partir de um ato jaacute concluiacutedordquo (CASANOVA 2006 p63)

Mas antes de passarmos agrave descriccedilatildeo do falatoacuterio eacute preciso indicar como esses

ldquoembaraccedilos conceituaisrdquo em torno do discurso indicam a ldquotransiccedilatildeo do pensamento

132

heideggeriano ndash em sua segunda fase nucleado em torno da linguagem- ldquo(NUNES 2012

p169) pois ldquoestampam-se na proacutepria equivocidade do termo designativo die Rede que

significa aleacutem de discurso conversaccedilatildeo e pronunciamentordquo (NUNES 2012 p169)

Essa equivocidade torna-se clara no fato que o discurso (die Rede) natildeo se funda em

qualquer ekstase determinada ou seja natildeo eacute possiacutevel encontrar na temporalidade do ser-

aiacute um momento constitutivo no qual ele emerge Dando assim em Ser e Tempo um

caraacuteter transcendental ao discurso

ldquoconotando o loacutegos grego retraduzido o discurso que nos daria a plena abertura

do Dasein em seu aiacute eacute incluindo portanto a disposiccedilatildeo de acircnimo eacute como modo

eminente de temporalizaccedilatildeo a que natildeo cabe o predomiacutenio de um ecircxtase

determinado o existentivo da linguagem o seu fundamento ontoloacutegicordquo

(NUNES 2012 p169)

Apresentamos no capiacutetulo anterior que no sect65 de Ser e Tempo o autor apresenta

o sentido ontoloacutegico da preocupaccedilatildeo (Sorge) na temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-

se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O

ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Futuro

(poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente (presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees

temporais como as que tomamos diariamente mas o caraacuteter essencial da

existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre adiantado (futuro) em

relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza as possibilidades na

facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva oferecida pela tradiccedilatildeo

histoacuterica ) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no presente esse

passado em seus comportamentos e projetos

No Quarto Capiacutetulo da Segunda Seccedilatildeo denominado Temporalidade e

cotidianidade Heidegger retoma a multiplicidade dos fenocircmenos da anaacutelise preparatoacuteria

da primeira seccedilatildeo para compreendecirc-los em sua unidade em funccedilatildeo da totalidade estrutural

fundante da Sorge E se a analiacutetica existenciaacuteria do ser-aiacute inicia sua investigaccedilatildeo a partir

da cotidianidade mediana tendo em vista que a impropriedade oferecida por suas

orientaccedilotildees eacute em suma a orientaccedilatildeo inicial do ser-aiacute para seus possiacuteveis modos de ser Eacute

necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos na cotidianidade a partir da

temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico

133

Nesse sentido no sect 68 item d de Ser e Tempo intitulado ldquoA temporalidade do

discursordquo Heidegger diz A plena abertura do aiacute constituiacuteda pelo entender o encontrar-

se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) recebe a articulaccedilatildeo pelo discurso

(Rede) Por isso o discurso natildeo se temporaliza primariamente numa ekstase determinada

(HEIDEGGER 2012 p949) e ainda o discurso eacute temporal em si mesmordquo

(HEIDEGGER2012 p949) Na continuidade do paraacutegrafo o autor prossegue dizendo

que natildeo obstante o discurso seja expresso na facticidade na linguagem e deste modo o

presente (Gegenwaumlrtige) desempenha uma funccedilatildeo constitutiva ainda assim

Mas porque o discurso cada vez discorre sobre o ente se bem que natildeo primaacuteria

e principalmente no sentido da enunciaccedilatildeo teoacuterica a anaacutelise da constituiccedilatildeo

temporal do discurso e a explicaccedilatildeo dos caracteres temporais das formaccedilotildees da

liacutengua soacute podem ser levados a cabo quando se tenha resolvido o problema da

conexatildeo de princiacutepio de ser e verdade a partir da problemaacutetica da

temporalidade Poder-se-ia delimitar entatildeo o sentido ontoloacutegico do lsquoeacutersquo que uma

superficial teoria da proposiccedilatildeo e do juiacutezo deformou em lsquocoacutepularsquo Soacute a partir da

temporalidade do discurso isto eacute a partir da temporalidade do Dasein em geral

pode-se elucidar a lsquoorigemrsquo e pode-se entender ontologicamente a possibilidade

de uma formaccedilatildeo-do-conceito (HEIDEGGER2012 p949 grifo nosso)

O problema reside no fato de que o Dasein em Ser e Tempo eacute apresentado como

o fundamento sem fundamento de outra forma a compreensatildeo enquanto acontecimento

de sentido primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode

custodiar o sentido de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento

Entatildeo na medida em que a temporalidade (Zeitlichkeit) eacute o sentido ontoloacutegico desse ente

privilegiado qualquer fenocircmeno exposto na analiacutetica preparatoacuteria precisaria encontrar

seu fundamento ontoloacutegico em alguma ekstase determinada futuro o ser-do-sido ou

presencizar Por exemplo o presente desempenha a funccedilatildeo constitutiva da linguagem

(Sprache) na medida em que o ser-aiacute lanccedilado em um mundo encontra-se em meio aos

entes e jaacute junto aos outros atualizando os significados sedimentados pela linguagem (pela

liacutengua) oferecidos no presente Isso poreacutem natildeo ocorre com o discurso (die Rede) que eacute

ldquotemporal em si mesmordquo Desse modo seu sentido ontoloacutegico ou aquilo que sustenta sua

origem compreendida como seu sentido de ser a partir do desvelamento natildeo eacute elucidado

em Ser e Tempo Pensamos que a partir dessa constataccedilatildeo pelo comprometimento

fenomenoloacutegico de Heidegger a estratificaccedilatildeo da linguagem presente em Ser e Tempo

natildeo pode mais manter-se apoacutes a viragem Pois o fenocircmeno da linguagem precisa ser

134

reconsiderado a partir de si mesmo para que seja possiacutevel encontrar seu fundamento

ontoloacutegico85

Esse breve momento da obra de 1927 acerca da temporalidade do discurso em

Ser e Tempo eacute de extrema importacircncia para pensarmos como o fenocircmeno da linguagem

possui jaacute um importante e amplo papel no interior do tratado Pois ele estaacute intimamente

ligado agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento (Aleacutetheia) revelando natildeo soacute um impasse

acerca da estratificaccedilatildeo da linguagem na obra bem como traz agrave tona que o encobrimento

como contraparte da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser ganha uma imagem peculiar

exatamente na manifestaccedilatildeo da linguagem E desse modo apesar da apresentaccedilatildeo do

discurso e de sua especificidade em Ser e Tempo encontramos apenas a descriccedilatildeo da

linguagem (Sprache) que chamamos de ldquonegativardquo como sedimentaccedilatildeo interpretativa

pelo falatoacuterio (Gerede) Eacute o que vamos expor a seguir

II- O Falatoacuterio (das Gerede)

Ainda no sect34 Heidegger alerta que a anaacutelise do discurso (Rede) perdeu de vista a

cotidianidade do ser-aiacute solo fenomecircnico que a analiacutetica se guia naquele momento Pois

as estruturas existenciaacuterias da abertura do ser-no-mundo entender (Verstehen) encontrar

(Befindlichkeit) discurso (Rede) e interpretar (Auslegen) na medida em que se manteacutem

pela abertura primaacuteria do ser-aiacute remetido ao mundo inicialmente no modo de ser de ldquoa-

genterdquo (das Man) devem ser compreendidas em seu modo especiacutefico na cotidianidade

mediana Como o ser-aiacute eacute de iniacutecio lanccedilado nas possibilidades faacuteticas de um mundo

sedimentado a anaacutelise propriamente fenomenoloacutegica deve se orientar pelos fenocircmenos

expressos nesse horizonte

ldquoDe imediato eacute preciso que fique visiacutevel a partir de alguns fenocircmenos

determinados a abertura de a-gente isto eacute pela elucidaccedilatildeo do modo-de-ser-

cotidiano de discurso visatildeo e interpretaccedilatildeo No relativo a esses fenocircmenos natildeo

eacute supeacuterfluo observar que a interpretaccedilatildeo tem um propoacutesito puramente ontoloacutegico

estando muito longe de uma criacutetica moralizante do Dasein cotidiano e estaacute muito

longe de qualquer aspiraccedilatildeo de lsquofilosofia da culturarsquordquo (HEIDEGGER 2012

p471)

85 Nesse sentido Cf LAFONT 1997 pp46-52

135

A anaacutelise do que Heidegger denomina ldquoA-genterdquo (das Man) eacute apresentada no

quarto capiacutetulo da primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo e tem em vista elucidar o ldquoser-no-mundo

como ser-comrdquo e ldquocomo ser-si-mesmordquo Essa descriccedilatildeo estaacute diretamente relacionada ao

conceito de queda ou decair (Verfallen) pois eacute esse solo imediato que o ser-aiacute se

movimenta e terceiriza seu ser agraves orientaccedilotildees cotidianas cada vez em fuga de seu ser-

proacuteprio mas condiccedilatildeo inexoraacutevel para que possa conquistaacute-lo E ainda como expresso

no trecho acima esses conceitos nada tem a ver com uma criacutetica moral como que uma

criacutetica agrave sociedade de massa A anaacutelise eacute uma elucidaccedilatildeo fenomenoloacutegica e por isso

ontoloacutegica O que estaacute em jogo nessa descriccedilatildeo eacute o acesso aos fenocircmenos como eles se

mostram para entatildeo chegar ao fundamento ontoloacutegico que sustenta seu sentido de ser

Desse modo a facticidade ou o mundo cotidiano eacute o maneira pela qual os fenocircmenos e

as possibilidades do ser-aiacute vecircm ao encontro O que anaacutelise sobre ldquoA-genterdquo (das Man)

realizada no sect25 ao sect27 potildee em tela eacute 1) o esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein 2) o

Dasein-com dos outros e o cotidiano ser-com 3) o cotidiano ser-si-mesmo e a-gente

Se no sect9 Heidegger expotildee o sentido formal do ser-aiacute como esse ente que a cada

vez noacutes mesmos somos e ainda como a essecircncia desse ente reside em sua existecircncia o

esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein deve agora voltar-se ao campo situacional histoacuterico

que extraiu esse conceito

ldquoNo presente contexto de uma analiacutetica existenciaacuteria do Dasein factual surge a

pergunta sobre se o referido modo de o eu se dar abre o Dasein em sua

cotidianidade supondo-se que em geral o abra () Pode-se sempre muito bem

dizer sobre esse ente em termos onticamente justificaacuteveis que lsquoeursquo o sou

Contudo a analiacutetica ontoloacutegica ao empregar essas proposiccedilotildees deve fazecirc-lo com

reservas de princiacutepio O lsquoeursquo somente deve ser entendido no sentido de um como

indicador formal e indiferente de algo que em sua concreta conexatildeo-de-ser

fenomecircnica talvez se desvende como o lsquoopostorsquo do que parecia lsquoNatildeo eursquo de

modo algum significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo [privado de

lsquoegoidadersquo] mas significa um determinado modo-de-ser do lsquoeursquo ele mesmo por

exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p337)

A interpretaccedilatildeo moderna da essecircncia do ser humano baseada na egoidade em um

ldquoeurdquo que se reconhece como tal e em uacuteltima medida fundamenta toda e qualquer

descriccedilatildeo dos entes obscurece o solo em que esse conceito aparece Referir-se ao ldquoeurdquo eacute

possiacutevel no trato diaacuterio e comum da existecircncia cotidiana (onticamente) na medida em que

136

o ldquoaiacuterdquo existe cooriginariamente Natildeo haacute sujeito sem mundo por esse motivo a

ldquolsquosubstacircnciarsquo do homem natildeo eacute o espiacuterito como a siacutentese de alma e corpo mas a

existecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p341) E desse modo se a existecircncia acontece em um

mundo ela natildeo se reconhece primariamente para depois reconhecer ldquomundordquo e os

ldquooutrosrdquo mas existindo o ser humano eacute as possibilidades disponiacuteveis em seu ldquoaiacuterdquo

compartilhando com os outros pois ldquonatildeo haacute afinal de pronto um eu isolado que se decirc sem

os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p337)

A abertura primaacuteria de sentido ou a abertura compreensiva-interpretativa sempre

disposta do ser-aiacute o remete ao mundo junto aos entes e aos outros que partilham a mesma

abertura compreensiva-interpretativa e assim noacutes temos mundo De outro modo

ningueacutem tem lsquoseu mundorsquo particular emergente da consciecircncia que se auto reconhece a

partir da qual lsquoenxergarsquo o mundo puacuteblico Tudo que algueacutem possa vir a pensar sentir

compor dizer etc eacute primariamente aquilo que o mundo puacuteblico compartilhado sustenta

como algo que tem sentido Natildeo sou porque penso antes penso porque sou Quando

tentamos pensar em qualquer significado que natildeo seja sustentado pelo sentido do mundo

puacuteblico natildeo encontramos o que possa ser dito ou pensado

Mas o que o autor quer dizer quando indica que o ldquonatildeo eursquo de modo algum

significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo mas significa um determinado modo-de-

ser do lsquoeursquo ele mesmo por exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012

p337) Imersos nas ocupaccedilotildees diaacuterias empreendidas com os outros o ser-aiacute ldquocomo

cotidiano ser-um-com-o-outro estaacute na sujeiccedilatildeo aos outros Ele natildeo eacute si-mesmo os outros

lhe retiram o ser () Nisso os outros natildeo satildeo determinadosrdquo (HEIDEGGER 2012

p363) Na liacutengua portuguesa essa indeterminaccedilatildeo eacute ilustrada pela partiacutecula ldquoserdquo como

iacutendice de indeterminaccedilatildeo do sujeito Por exemplo Necessita-se de empregados Nesse

lugar se eacute tratado muito bem etc O ldquosujeitordquo o ldquoeurdquo do ser-aiacute na cotidianidade natildeo eacute seu

ser-proacuteprio mas a perda de si pois compreende seu ser inicialmente pela imposiccedilatildeo

impessoal indeterminada de suas possibilidades e as realiza sob o domiacutenio dessa

orientaccedilatildeo estuda-se casa-se tem-se filhos etc Nas palavras do autor

ldquoO Dasein cotidiano tira a interpretaccedilatildeo preacute-ontoloacutegica de seu ser do imediato

modo-de-ser de a-gente A interpretaccedilatildeo ontoloacutegica segue de imediato essa

tendecircncia interpretativa e entende o Dasein a partir do mundo e o encontra como

ente do-interior-do-mundo E natildeo somente isso mas a ontologia lsquoimediatarsquo do

137

Dasein faz que se lhe decirc a partir do lsquomundorsquo o sentido de ser em relaccedilatildeo ao qual

esses entes lsquosujeitosrsquo satildeo entendidos Mas porque nessa absorccedilatildeo no mundo

passa-se por cima do fenocircmeno do mundo ele mesmo em seu lugar se introduz o

subsistente do-interior-do-mundo as coisas O ser do ente que eacute -lsquoaiacutersquo-com eacute

concebido como subsistecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p 373)

Como vimos esse modo de ser do ser-aiacute eacute consequecircncia do fato de natildeo termos

qualquer natureza Natildeo haacute como se retirar dessa condiccedilatildeo ontoloacutegica mesmo que

onticamente somos impelidos a cada vez determinarmos nosso ser de alguma forma

indicando noacutes mesmos e os outros como meros subsistentes por exemplo em expressotildees

como ldquoEu sou professorardquo ldquoEle eacute pairdquo ldquoNoacutes somos brasileirosrdquo etc E por isso ldquoo ser-

si-mesmo proacuteprio natildeo repousa sobre um estado-de-exceccedilatildeo de um sujeito desprendido de

a-gente mas eacute uma modificaccedilatildeo existencial de a-gente como um existenciaacuterio essencialrdquo

(HEIDEGGER 2012 p373) ou seja ser-si-mesmo-proacuteprio natildeo eacute se retirar dessa

indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica mas ter transparecircncia dessa condiccedilatildeo irremediaacutevel

A partir dessa explicaccedilatildeo retomemos a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein a partir do

sentido formal da preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-

em (-o-mundo) como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo

(HEIDEGGER 2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser

(existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que

foi lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio

aos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda) O que sustenta o

sentido de ser desse ente eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) pois a temporalidade descobre-

se como o sentido da preocupaccedilatildeo (Sorge) proacutepria ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-

se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute

possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Contudo a preocupaccedilatildeo

proacutepria natildeo eacute a noacutes de pronto transparente e natildeo eacute o modo que inicialmente e na maioria

das vezes estamos e nos orientamos no mundo Ser-no-mundo eacute a abertura compreensiva

disposta jaacute em meio ao mundo articulado e sedimentado portanto eacute constituiacuteda pelo

entender o encontrar-se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) (Cf

HEIDEGGER 2012 p949) Eacute necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos

nessa abertura primaacuteria ao mundo a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal

compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico O autor entatildeo nos apresenta que ldquoo

138

entender funda-se no futuro (adiantar-se ou aguardar) O encontrar-se temporaliza-se

primariamente no ser-do-sido (repeticcedilatildeo ou esquecimento) O decair tem raiz temporal

primariamente no presente (presencizar ou instante)rdquo (HEIDEGGER 2012 p951)

Aguardar (Gewaumlrtigen) esquecimento (Vergessenheit) e instante (Augenblck) satildeo

os modos impessoais de realizaccedilatildeo do ser do ser-aiacute na cotidianidade a partir de seu sentido

ontoloacutegico (Sorge) fundado na temporalidade (Zeitlichkeit) O futuro aparece como

espera na cotidianidade na medida em que estaacute submerso na familiaridade de um mundo

descerrado em que o ser-aiacute pode ocupar-se com os entes e travar relaccedilotildees com os outros

na normalidade da vida cotidiana Na familiaridade o ser-aiacute sabe o que esperar O passado

ou o ser-do-sido nada tem a ver com ldquofalta de lembranccedilardquo mas refere-se a imersatildeo na

dejecccedilatildeo ou no modo de ser-jogado do ser-aiacute Nesse sentido o ser-aiacute sempre ocupado abre-

se ao mundo mas fecha-se ao seu ser-proacuteprio esquecendo de si e de sua indeterminaccedilatildeo

em funccedilatildeo do que jaacute estaacute a cada de vez posto como possiacutevel no mundo O decair no modo

proacuteprio refere-se ao presente ou presencizar ou seja a transparecircncia ao ser-aiacute de sua

condiccedilatildeo de jogado em um presente aberto que a vida e a compreensatildeo de ser decorrem

Na cotidianidade poreacutem o decair como instante refere-se a incessante fala apariccedilatildeo e

apropriaccedilatildeo (natildeo como de si mesmo como ser-proacuteprio mas das possibilidades disponiacuteveis

publicamente) das coisas e de um estado de coisas Incessante porque atualiza as

possibilidades postas descerradas e sedimentadas no mundo movimentando a existecircncia

pela retroalimentaccedilatildeo daquilo que jaacute foi e eacute a cada vez compreendido sem pocircr em questatildeo

afinal aquilo que se compreende e o ente que pode compreender ou seja ente que noacutes

somos

Na anaacutelise preparatoacuteria ou na primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo o decair foi descrito

na ldquointerpretaccedilatildeo do falatoacuterio da curiosidade e da ambiguidaderdquo (HEIDDEGGER 2012

p941) Desse modo esclarecido como a queda ou o decair funda-se na temporalidade do

ser-aiacute portanto esclarecido seu fundamento ontoloacutegico a partir do ente que abre a

compreensatildeo de ser Podemos a partir de agora entender o fenocircmeno da linguagem na

cotidianidade do ser-aiacute e em seu modo de ser improacuteprio De outro modo compreender o

falatoacuterio como queda

A anaacutelise do falatoacuterio (das Gerede) eacute realizada no sect35 precedida exatamente pela

exposiccedilatildeo do discurso como fundamento ontoloacutegico da linguagem Essa linha de

139

apresentaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria antes revela que tambeacutem o fenocircmeno da linguagem parte

de seu encobrimento E revela que seu fundamento eacute a cada vez obliterado no uso comum

das liacutenguas e das palavras no cotidiano poreacutem

ldquoA expressatildeo lsquofalatoacuteriorsquo natildeo deve ser aqui empregada numa acepccedilatildeo pejorativa

Ela significa terminologicamente um fenocircmeno positivo que constitui o modo-

de-ser do entender e interpretar do Dasein cotidiano No mais das vezes o

discurso se expressa e jaacute se expressou em palavras O discurso eacute linguagemrdquo

(HEIDEGGER 2012 p471)

A anaacutelise da cotidianidade eacute um caraacuteter fenomecircnico positivo para a analiacutetica

existenciaacuteria pois eacute a partir dele a partir de um modo de ser improacuteprio que o ser-aiacute eacute

lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria das vezes Natildeo eacute apenas

lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade mas seu modo de ser

ontologicamente irremediaacutevel Nesse sentido apresentar a linguagem como manifestaccedilatildeo

uacuteltima da abertura histoacuterica remetida ao mundo que jaacute compreendeu jaacute articulou e jaacute

interpretou eacute apresentar um caminho agrave pergunta Como a linguagem que eacute essencialmente

generalizante pode afinal ser histoacuterica Questatildeo jaacute exposta nos primeiros escritos de

Heidegger que acaba por expor a origem dessa problemaacutetica em Ser e Tempo como por

exemplo essa passagem do texto de 1919

ldquoA objeccedilatildeo mais elementar mas carregada de suficiente perigosidade tinha a ver

com a linguagem Toda descriccedilatildeo eacute um lsquoconceber-em-palavrasrsquo - a lsquoexpressatildeo

verbalrsquo eacute generalizante Essa objeccedilatildeo eacute baseada na crenccedila de que toda linguagem

eacute jaacute em si mesma objetiva isto eacute viver em um significado implica eo ipso uma

concepccedilatildeo teoacuterica do que se entende que a realizaccedilatildeo do significado natildeo eacute mais

do que a exibiccedilatildeo do objeto () A universalidade do significado das palavras

assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia vividardquo86

(HEIDEGGER (GA5657) 2005 pp134-142)

Esse eacute tambeacutem o risco do uso das palavras e da linguagem na cotidianidade ou

do falatoacuterio A manifestaccedilatildeo da linguagem na expressatildeo eacute comunicaccedilatildeo e o enunciado

86 ldquoLa objecioacuten maacutes elemental pero cargada de suficiente peligrosidad teniacutea que ver con el lenguaje Toda

descripcioacuten es un laquoconcebir-en-palabrasraquo -la laquoexpresioacuten verbalraquo es generalizante Esta objecioacuten descansa

en la creencia de que todo lenguaje es ya en siacute mismo objetivante es decir que vivir en un significado

implica eo ipso una concepcioacuten teoreacutetica de lo que es significado que la plenificacioacuten del significado es

sin maacutes soacutelo una exhibicioacuten del objeto() La universalidad del significado de las palabras sentildeala

primariamente algo originario el caraacutecter mundano de la vivencia vivida rdquo Opcit pp134-142

140

como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se pode partilhar com outrem lsquover juntorsquo o mostrado no

modo do determinar Nesse sentido ldquoo discurso (Rede) que-se-expressa eacute comunicaccedilatildeordquo

(HEIDEGGER 2012 p473) E os conceitos-preacutevios oferecidos na comunicaccedilatildeo acabam

por determinar objetivamente as coisas e o estado de coisas ldquosem que tenham perto de si

tangiacutevel e visiacutevel o ente mostrado e determinadordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Dessa

forma ldquoo acircmbito dessa visatildeo compartilhada amplia-se Mas ao mesmo tempo na

repeticcedilatildeo o mostrado pode precisamente vir a se encobrir de novo () O ouvir-dizer eacute

tambeacutem um ser-no-mundo e ser em relaccedilatildeo ao que eacute ouvidordquo (HEIDEGGER 2012

p439)

A essecircncia do falatoacuterio eacute esse ouvir-dizer comunicado que pode ser repetido E

conforme a compreensatildeo mediana orienta-se pela expressatildeo da linguagem expressa ldquoo

discurso comunicado pode ser entendido amplamente sem que o ouvinte tenha de se pocircr

originariamente entendedor daquilo sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012

p473) A relaccedilatildeo com a linguagem torna-se nesse sentido meramente instrumental Um

exemplo paradigmaacutetico eacute a linguagem jornaliacutestica pois em seu traccedilo essencialmente

comunicativo e divulgador pode a cada vez informar sobre as coisas e um estado de

coisas sem que o leitor ou o ouvinte tenha de fato clareza acerca da compreensatildeo de tais

coisas mas pode repetir o que leu e o que ouviu com os outros e ser entendido A ldquofalta

de clarezardquo nesse exemplo natildeo diz respeito a algo como falta de ldquoacesso agraves fontesrdquo mas

deve ser compreendido em seu caraacuteter ontoloacutegico ou seja o que estaacute em jogo eacute o fato

que a linguagem repetida natildeo coloca em questatildeo seu proacuteprio fundamento A relaccedilatildeo entre

a cotidianidade impessoal e o uso da linguagem eacute algo tatildeo intriacutenseco que Heidegger em

1946 no texto Carta sobre o Humanismo diz

ldquoO que foi dito sobre o lsquoimpessoalrsquo em Ser e Tempo (1927) nos paraacutegrafos 27 e

35 de modo algum deve ser reduzido a um contributo secundaacuterio agrave sociologia

Mas o lsquoimpessoalrsquo tampouco se refere apenas agrave imagem oposto compreendida

de maneira eacutetico-existenciaacuteria do ser proacuteprio da pessoa Ao contraacuterio o que disse

ali conteacutem a indicaccedilatildeo agrave pertinecircncia inicial da palavra com o ser e essa

indicaccedilatildeo eacute pensada segundo a verdade do ser Essa relaccedilatildeo permanece oculta

sob o predomiacutenio da subjetividade que se apresenta como opiniatildeo puacuteblicardquo

(HEIDEGGER 2008 p330 grifo nosso)

141

A linguagem eacute portanto submetida ao que eacute compreensiacutevel na opiniatildeo puacuteblica e

aquilo que a cotidianidade mediana natildeo compreende eacute simplesmente descartado como

incompreensiacutevel Ou seja a proacutepria compreensatildeo (Verstehen) estaacute irremediavelmente

orientada agrave queda e essa mantecircm-se como tal no falatoacuterio Na tentativa de objetivar o

que as coisas satildeo e como elas satildeo tudo que eacute compreendido obscurece seu ldquocomordquo ou

seu mostrar que vem ao encontro no mundo histoacuterico pois ldquosoacute se procura ouvir o

discorrido como talrdquo (HEIDEGGER p473)

ldquoEm meio a essa dinacircmica retoma-se incessantemente uma atitude ontoloacutegica em

relaccedilatildeo aos entes intramundanos em geral e ao ser-aiacute em especiacutefico uma atitude

marcada fundamentalmente por uma opacidade primordial Todos satildeo a

princiacutepio homogeneizados a partir da noccedilatildeo de uma subsistecircncia por si todos

passam a ser desde o princiacutepio considerados como entes simplesmente dados e

detentores ao mesmo tempo de propriedades igualmente dadas() O falatoacuterio

tende entatildeo a coibir o aparecimento de uma outra forma discursiva que se

perfaccedila por meio de um real questionamento do ser do ente e de uma apropriaccedilatildeo

originaacuteria do ente consideradordquo (CASANOVA2006 p70)

O falatoacuterio como linguagem sedimentada e repetida eacute o que inicialmente orienta

o ser-aiacute em seu ldquoairdquo A cotidianidade mediana na qual estamos sempre imersos abre

inicialmente a compreensatildeo do mundo ao ser-aiacute mas ao abri-la acaba por fechaacute-la pois

desenraiza o ser-aiacute do solo originaacuterio dessa compreensatildeo de ser dos entes De outro modo

o loacutegos como discurso articula mundo e o abre agrave compreensatildeo o falatoacuterio como

linguagem sedimentada encobre esse mostrar originaacuterio O falatoacuterio diz e indica as coisas

e o estado de coisas mas natildeo os coloca em sua mostraccedilatildeo a partir de seu ser ou como

nos diz Carlos Drummond ldquoO sol consola os doentes e natildeo os renovardquo Nesse sentido

que a repeticcedilatildeo e a difusatildeo satildeo traccedilos essenciais do falatoacuterio pois movimentam a

existecircncia baseada na estabilidade do compreendido previamente articulado e

compartilhado na vida comum manifesto em uacuteltima medida pela linguagem e pelos

conceitos herdados

ldquoA falta-de-solo natildeo o impede de ingressar no que eacute puacuteblico mas favorece seu

ingresso O falatoacuterio eacute a possibilidade de tudo entender sem uma preacutevia

apropriaccedilatildeo da coisa O falatoacuterio jaacute protege por antecipaccedilatildeo contra o perigo de

malograr em tal apropriaccedilatildeo O falatoacuterio que qualquer um pode obter natildeo soacute

dispensa da tarefa de um entendimento autecircntico mas desenvolve uma

entendibilidade indiferente para a qual nada estaacute fechadordquo (HEDEGGER 2012

p475)

142

A objetividade promovida pelo falatoacuterio ou esse jaacute ser-interpretado natildeo eacute algo

que podemos negar e suspender A queda ou decair (Verfallen) constitui ldquoa plena abertura

do aiacuterdquo e o ldquoDasein nunca eacute capaz de rejeitar esse cotidiano ser-do-interpretado no qual

de imediato cresceurdquo (HEIDEGGER 2012 p477) Ele nos constitui porque eacute

inicialmente nosso ldquoaiacuterdquo e ldquotodo entendimento interpretaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo genuiacutenos

toda redescoberta se efetuam nele a partir dele e contrariamente a elerdquo (HEIDEGGER

2012 p477) ldquoTer mundordquo (abertura compreensiva) para o ser-aiacute que o constitui como

ente privilegiado eacute tambeacutem ser absorvido pelo mundo (queda) A verdade (Aleacutetheia)

como desvelamento eacute tambeacutem encobrimento Ser na verdade eacute tambeacutem estaacute na natildeo-

verdade Ouvir o loacutegos eacute tambeacutem se perder na linguagem

ldquoEacute soacute por isso que (sect34) Ser e Tempo conteacutem uma indicaccedilatildeo essencial da

linguagem tocando na questatildeo simples que pergunta em que modo do ser a

linguagem eacute sempre linguagem como tal O esvaziamento da linguagem que

avanccedila violentamente e se estende com rapidez por toda parte natildeo corroacutei apenas

a responsabilidade esteacutetica e moral em todos os usos da linguagem Proveacutem de

uma ameaccedila da essecircncia do ser humanordquo (HEIDEGGER 2008 p331)

Mas entatildeo qual o caminho Como ir agrave linguagem como tal Heidegger nos

adverte ldquoUm mero uso cuidado da linguagem ainda natildeo demonstra que escapamos desse

perigo essencialrdquo (HEIDEGGER 2008 p331) Na realidade reduzir o problema agrave essa

soluccedilatildeo poderia indicar que nem sequer vemos o perigo pois o esconderia sob agraves vestes

de usos como lsquosabedoriarsquo lsquoculturarsquo lsquoconhecimentorsquo etc ou seja a ldquosoluccedilatildeordquo ainda

estaria submetida ao domiacutenio puacuteblico do que eacute compreensiacutevel

Portanto se ldquoa linguagem ainda nos nega sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2008

p331) entatildeo ainda eacute necessaacuterio seguir a orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica

Diante da pergunta de Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na

cidade Soacutecrates responde ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso

irrdquo87 Para que afinal busquemos a relaccedilatildeo entre loacutegos e ser

87 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9

143

Conclusatildeo

O que vem agrave palavra Essa foi a questatildeo que nos guiou nesse trabalho Ela

atravessa outras perguntas por que falamos de uma determinada forma por exemplo

com sujeito e predicado Como eacute possiacutevel nossa comunicaccedilatildeo Como eacute possiacutevel falar que

algo eacute de tal e qual maneira

Fomos ao livro Ser e Tempo natildeo para dizer sobre o que um autor pensou fomos

ao Ser e Tempo para encontrar elementos que poderiam nos guiar nessas questotildees Entatildeo

a tarefa desse tratado revelou-se tambeacutem como um problema de linguagem Pois eacute a

tentativa de reformulaccedilatildeo da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido

depende justamente daquela reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido do

ser Vimos aiacute uma imbricada problemaacutetica a pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo (Sinn von

Sein) eacute tambeacutem a pergunta sobre o que pode sustentar sentido e significados e por isso

o que pode sustentar a linguagem Se natildeo nos incomodasse a tautologia poderiacuteamos

perguntar qual o sentido do sentido

A necessidade de recolocaccedilatildeo da pergunta estaacute diretamente relacionada agrave criacutetica

imanente de Heidegger agrave fenomenologia de Husserl Abordado sempre e a cada vez como

um ente o ser natildeo eacute no entanto um predicado real Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar

o ser como um ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel

e atributivo Ser natildeo eacute um ente o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo

com vistas agrave forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera

para ldquoQual o sentido de serrdquo Atraveacutes da apropriaccedilatildeo da hermenecircutica Heidegger potildee

em tela o caraacuteter histoacuterico do sentido de ser dos entes E dessa maneira indica como as

palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da

experiecircncia hermenecircutica Contudo diferentemente de como a concebeu Dilthey a

experiecircncia revelou-se natildeo como um meacutetodo de acesso ao caraacuteter histoacuterico do sentido e

144

dos significados mas compreensatildeo fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo circunspecta de

nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser

Poreacutem um problema central deveria ser abordado ldquocomo eacute possiacutevel a forma

loacutegicardquo ou ldquoPor que seguimos a foacutermula lsquosujeito e predicadorsquordquo Essa questatildeo nos levou

ateacute a maneira pela qual essa problemaacutetica foi abordada pelos neokantianos mais

especificamente agravequeles representantes da escola de Baden Esses reduziam a

possibilidade de verdade agrave forma do juiacutezo agrave identificaccedilatildeo entre ldquoWahrheit = wahrer Satz

= Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade) A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo

de verdade da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca

que era a dos neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa

concepccedilatildeo tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da

verdade em direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave

proposiccedilatildeo Com isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa

medida condicionando a ontologia agrave loacutegica

Foi esse mapa complexo dos problemas que foi desenhado nos dois primeiros

capiacutetulos os quais consideramos imprescindiacuteveis para uma exposiccedilatildeo completa da

estrutura ontoloacutegica da linguagem em Ser e Tempo Expondo o contexto das filosofias de

Dilthey Husserl e dos neokantianos de Baden bem como o posicionamento de Heidegger

frente a essas teorias a abordagem fenomenoloacutegico-hermenecircutica revelou-se como o

meacutetodo de acesso ao sentido de ser de todo ente Esse meacutetodo acaba ainda por demonstrar

que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um

campo de signos referenciais fechados que doam significado agraves coisas mas uma

manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez se faz presente na facticidade da

existecircncia concreta Last but not least revelou-se a diferenccedila entre uma concepccedilatildeo de

loacutegos proveniente da loacutegica e outra advinda do conceito de aleacutetheia

Foi a partir daiacute que ficaram claros os contornos dos dois uacuteltimos capiacutetulos desta

Dissertaccedilatildeo Tentamos mostrar como em Ser e Tempo a linguagem estaacute assentada em

duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado revelando a diferenccedila

entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm articulados pela imbricaccedilatildeo

radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno Poreacutem natildeo poderiacuteamos nos sentir satisfeitos

nessa descriccedilatildeo Heidegger nos adverte que estamos em fuga do solo em que o loacutegos se

145

mostra Pois o desvelamento enquanto Aleacutetheia eacute tambeacutem encobrimento por isso o

fenocircmeno sempre se nos mostra de maneira dissimulada Tambeacutem a partir de Ser e Tempo

tentamos evidenciar como a linguagem depende da constituiccedilatildeo proacutepria da verdade Ou

seja como o discurso (Rede) eacute apresentado como fundamento ontoloacutegico da linguagem

mas como o fenocircmeno mesmo da linguagem jaacute sempre se apresenta como falatoacuterio

(Gerede) O fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana enquanto comunicaccedilatildeo

ou seja discurso (die Rede) que jaacute se expressou e a cada vez se expressa eacute repetido e

difundido no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada

pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte

compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente Mas

como entes sem qualquer essecircncia preacutevia sem qualquer natureza definida somos a

proacutepria compreensatildeo (Verstehen) irremediavelmente orientada agrave queda sendo o falatoacuterio

a manifestaccedilatildeo uacuteltima dessa condiccedilatildeo

Esse foi o caminho do nosso trabalho que eacute apenas um iniacutecio Ele natildeo pretende

encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender o papel

da poesia na obra de Heidegger apoacutes os anos 1930 como uma tentativa de desvencilhar-

se do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Ou ainda se a estratificaccedilatildeo

da linguagem segundo a formulaccedilatildeo de Ser e Tempo precisou ser revista apoacutes a viragem

tendo em vista que em 1927 natildeo foi possiacutevel encontrar seu fundamento ontoloacutegico a partir

do Dasein

Por enquanto preferimos a tensatildeo e a suspensatildeo do estado de pergunta Preferimos

o pensar como caminho agraves respostas como soluccedilotildees afinal

ldquoCom seu dizer o pensar abre sulcos imperceptiacuteveis na linguagem Esses satildeo

ainda mais imperceptiacuteveis que os sulcos que a passos lentos o camponecircs abre pelo

campo aforardquo (HEIDEGGER 2008 p376)

146

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do Sul v 14 n 1 p 47-61 janmaio 2009

VATTIMO G Introduccedilatildeo a Heidegger Lisboa Ediccedilotildees 70 1989

VICO AG Categoriacuteas y experiecircncia antepredicativa em el entorno de Sein und Zeit In

Studia Heideggeriana Volume II Loacutegos ndashLoacutegica- Lenguagem Buenos Aires Sociedad

Iberoamericana de Estudios Heideggerianos 2012

WU R Heidegger e o neokantismo de Windelband e Rickert in Revista Estudos

Filosoacuteficos nordm 5 2010 ndash versatildeo eletrocircnica ndash ISSN 2177-2967

httpwwwufsjedubrrevistaestudosfilosoficos DFIME ndash UFSJ - Satildeo Joatildeo del-Rei-MG

pp 174 ndash 186

ZAHAVI D A fenomenologia de Husserl Trad Marco Casanova Rio de Janeiro RJ

ViaVerita 2015

  • INTRODUCcedilAtildeO
  • Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na filosofia
  • Introduccedilatildeo
  • I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico
  • II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias
  • II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica
  • III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos
  • Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica
  • Introduccedilatildeo
  • I - Os limites da filosofia dos valores
  • II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio
  • II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger
  • III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
  • III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger
  • Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e Tempo
  • Introduccedilatildeo
  • I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico
  • II A dupla abertura de sentido (Sinn)
  • III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)
  • II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung)
  • Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)
  • Introduccedilatildeo
  • I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem
  • II- O Falatoacuterio (das Gerede)
  • Conclusatildeo
  • Bibliografia