Christiane Costa de Matos Fernandes
A estrutura ontoloacutegica da linguagem e a queda no
falatoacuterio em Ser e Tempo
Brasil
2016
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Christiane Costa de Matos Fernandes
A estrutura ontoloacutegica da linguagem e a queda no
falatoacuterio em Ser e Tempo
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciecircncias
Humanas da Universidade Federal Minas Gerais
como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de
Mestre em Filosofia Universidade Federal de
Minas Gerais ndash UFMG Faculdade de Filosofia e
Ciecircncias Humanas Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em
Filosofia
Orientadora
Profa Dra Virginia de Arauacutejo Figueiredo
Brasil
2016
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100
F363e
2016
Fernandes Christiane Costa de Matos
A estrutura ontoloacutegica da linguagem e a queda no falatoacuterio em Ser e
tempo Christiane Costa de Matos Fernandes - 2016
150 f
Orientadora Virginia Arauacutejo Figueiredo
Coorientador Marco Antonio Casanova
Dissertaccedilatildeo (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas
Inclui bibliografia
1Filosofia ndash Teses 2 Heidegeer Martin 1889-1976 Ser e Tempo I
Figueiredo Virginia ArauacutejoII Casa Nova Marco Antonio dos Santos
IIUniversidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e
Ciecircncias Humanas IIITiacutetulo
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Banca Avaliadora
_________________________
Profa Dra Virginia de Arauacutejo Figueiredo-UFMG Orientadora
___________________________
Prof Dr Marco Antocircnio Casanova- UERJ Coorientador
___________________________
1ordm Examinador Prof Doutor Eduardo Soares Neves Silva - UFMG
___________________________
2ordmExaminador Prof Doutor Maacutercio Antocircnio de Paiva- PUCMG
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Agradecimentos
O trabalho que aqui apresento iniciou-se em Fevereiro de 2014 mas originou-se
haacute 12 anos atraacutes em meu primeiro semestre do curso de graduaccedilatildeo em filosofia na
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas da UFMG Jaacute nas primeiras aulas questionei
a possibilidade de continuar nesse caminho pois ele havia se tornando cada vez mais
exigente e difiacutecil No segundo semestre poreacutem cursei a mateacuteria ministrada pelo professor
Fernando Rey Puente onde ele tentava explicar aos alunos ainda iniciantes como eu As
Categorias de Aristoacuteteles Aquelas aulas foram decisivas para que eu compreendesse trecircs
coisas dedicaccedilatildeo e rigor satildeo o que minimamente podemos oferecer agrave filosofia (ainda
permaneccedilo na busca de realizar tais condiccedilotildees) o pensamento filosoacutefico uma vez
apresentado a noacutes natildeo oferece saiacuteda mas compromisso e ainda aprendi que se a partir
daquele momento eu ficasse imune ao ler um livro de filosofia era melhor deixaacute-la Por
isso meu primeiro agradecimento eacute a esse professor Tambeacutem natildeo poderia deixar de
agradecer ao professor Ernesto Perini Nas mateacuterias ministradas por ele que cursei durante
a graduaccedilatildeo natildeo soacute se revelava para mim a importacircncia da linguagem no interior dos
problemas filosoacuteficos como aprendi que o respeito com os alunos era uma maneira de
ensinaacute-los
Agradeccedilo tambeacutem a todos os funcionaacuterios da FAFICH de forma especial agrave Vilma
bibliotecaacuteria-chefe e ao Andreacute secretaacuterio da poacutes-graduaccedilatildeo Ambos pela solicitude com
que sempre me atenderam em todos os momentos que precisei
Agradeccedilo tambeacutem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e
Tecnoloacutegico (CNPq) pela concessatildeo da bolsa de estudos que permitiu nos uacuteltimos dois
anos minha dedicaccedilatildeo integral agrave pesquisa do mestrado
Agradeccedilo agravequeles que construiacute como amigos o viacutenculo com o mundo Dentre eles
alguns nomes natildeo posso deixar de citar Agradeccedilo agrave Thamara Chain pelos 22 anos de
amizade e compreensatildeo Agradeccedilo agrave Taiacutes Tourinho por ser vigilante acerca de minha
solidatildeo por vezes demasiada Agradeccedilo agrave Nathaacutelia de Aacutevila por me lembrar a natildeo ser tatildeo
seacuteria e que o caminho tambeacutem se faz com leveza Agradeccedilo agrave Carolina Faria pela partilha
do entusiasmo na descoberta promovida pelo estudo Tambeacutem agradeccedilo agrave Ana Godoi
Gustavo Machado e Gabriel Lago Essas pessoas me ensinaram o valor do debate (por
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vezes infindaacuteveis) e ainda que pensamento e vida satildeo o mesmo A uacutenica maneira que
encontrei para agradececirc-los eacute tornar puacuteblico o fato de que nossas conversas estatildeo em cada
linha dessa dissertaccedilatildeo
Agradeccedilo agrave minha orientadora Virginia Figueiredo pela confianccedila depositada em
mim ao me aceitar como orientanda Tambeacutem por seus comentaacuterios e ensinamentos
imprescindiacuteveis bem como pela leitura e revisatildeo impecaacutevel de meu trabalho Nesse
sentido tambeacutem ao meu coorientador Marco Antocircnio Casanova a quem agradeccedilo tendo
em vista que sem sua presenccedila algumas partes dessa dissertaccedilatildeo natildeo seriam possiacuteveis
Agradeccedilo minhas irmatildes Jana e Nanda por serem minhas primeiras e eternas
melhores amigas E por fim agradeccedilo agravequeles por quem o meu sentimento entre o amor
a gratidatildeo e a admiraccedilatildeo natildeo alcanccedila a palavra aos meus pais Adauto e Delza Esse
trabalho eacute para vocecircs
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VERBO SER
Carlos Drummond de Andrade
Que vai ser quando crescer
Vivem perguntando em redor Que eacute ser
Eacute ter um corpo um jeito um nome
Tenho os trecircs E sou
Tenho de mudar quando crescer Usar outro nome corpo e jeito
Ou a gente soacute principia a ser quando cresce
Eacute terriacutevel ser Doacutei Eacute bom Eacute triste
Ser pronunciado tatildeo depressa e cabe tantas coisas
Repito Ser Ser Ser Er R
Que vou ser quando crescer
Sou obrigado a Posso escolher
Natildeo daacute para entender Natildeo vou ser
Vou crescer assim mesmo
Sem ser Esquecer
ldquoAdmitamos que natildeo haja essa significaccedilatildeo indeterminada e que natildeo entendemos sempre o que lsquoserrsquo significa O que ocorreria nesse caso Apenas um nome e um verbo de menos em nossa linguagem De forma alguma Jaacute natildeo haveria simplesmente linguagem alguma Natildeo ocorreria que o ente se nos abrisse de modo a poder ser chamado e dito Pois dizer o ente como tal implica compreender de antematildeo o ente como ente isto eacute o seu ser Suposto que noacutes simplesmente natildeo compreendecircssemos o ser suposto que a palavra lsquoserrsquo natildeo tivesse nem mesmo aquela significaccedilatildeo flutuante entatildeo jaacute natildeo haveria absolutamente nenhuma palavra Noacutes mesmos nunca poderiacuteamos ser aqueles que falam Laacute natildeo poderiacuteamos ser o que somos Pois ser homem significa ser um dizenterdquo
Heidegger Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica
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Resumo
O presente trabalho tenta evidenciar a partir da obra Ser e Tempo de Martin
Heidegger como a linguagem (die Sprache) eacute a manifestaccedilatildeo uacuteltima da historicidade de
todo e qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como esses significados satildeo
sustentados por um campo de sentido tambeacutem histoacuterico A partir dessa primeira descriccedilatildeo
o trabalho visa esclarecer como a linguagem no uso cotidiano ou o falatoacuterio (das Gerede)
obscurece o caraacuteter histoacuterico do fenocircmeno da linguagem e dos significados que a sustenta
Portanto esta Dissertaccedilatildeo caminha em duas vias que se tocam a primeira pretende
descrever o que chamamos de estrutura ontoloacutegica da linguagem a partir do
redimensionamento da pergunta heideggeriana pelo ser a fim de indicar como as palavras
em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da experiecircncia
hermenecircutica ou seja atraveacutes da compreensatildeo ontoloacutegica preacutevia a linguagem a segunda
pretende mostrar o fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana como comunicaccedilatildeo
ou discurso (die Rede) a qual jaacute se expressou e a cada vez se expressa sempre repetida
e difundida no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada
pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte
compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente
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Abstract
The present thesis focuses on demonstrating in what manner language (die
Sprache) is the lattermost manifestation of the historicity of any meaning that can come
to words as well as through what agency those meanings are upheld by a conjointly
historical field of meaning insofar as stated by Martin Heidegger in his work ldquoBeing and
Timerdquo (Sein und Zeit) As of this writing our work aims at unraveling by what means
language in its trivial use or the talk (das Gerede) overshadows the historical aspect and
the meanings that withstand the phenomenon of language Hence the present work is
developed in two adjoining ways the first one endeavors to describe the ontological
structure of language deriving out of the resizing of Heideggers question of being that
has the aim of indicating how the words in context of enunciation inherit their meaning
from previous structures of the hermeneutic experience that is through the prior
ontological understanding of the language The second one aims at revealing the language
phenomenon in the median everydayness as communication or discourse (die Rede)
which has already been expressed and is still expressed always repeated and spread in
the talk that obliterates the comprehensive horizon by reducing all beings to an
undifferentiated homogenization and making them available to our linguistic resources
since it is the primary opening of the sense of being that any and all entities have
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Sumaacuterio INTRODUCcedilAtildeO 11
Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na
filosofia 15
Introduccedilatildeo 15
I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do
conhecimento como essencialmente histoacuterico 17
II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em
relaccedilatildeo agraves ciecircncias 22
II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica 29
III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos 33
Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica 42
Introduccedilatildeo 42
I - Os limites da filosofia dos valores 44
II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio 53
II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger 58
III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal 68
III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger 72
Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e
Tempo 80
Introduccedilatildeo 80
I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou
o ldquocomordquo hermenecircutico 88
II A dupla abertura de sentido (Sinn) 88
III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit) 103
II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung) 110
Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede) 122
Introduccedilatildeo 122
I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem 123
II- O Falatoacuterio (das Gerede) 134
Conclusatildeo 143
Bibliografia 146
11
INTRODUCcedilAtildeO
Estamos diante de um livro Ser e Tempo Abrimo-lo Com o que nos confronta
em sua primeira paacutegina Que natildeo temos desde Platatildeo ateacute hoje resposta agrave pergunta sobre
o que queremos dizer com a palavra lsquoentersquo Natildeo haacute como ficar imune diante da
constataccedilatildeo E se ateacute hoje essa palavra natildeo nos eacute transparente eacute porque aqueles que se
propuseram a andar no caminho do pensamento natildeo souberam perguntar sobre o ente e
isso porque natildeo souberam afinal perguntar sobre o ser Heidegger natildeo nos propotildee sair do
caminho mas uma nova maneira de caminhar Ele nos promete uma resposta Natildeo Ele
propotildee uma vez mais a pergunta pelo ser O objetivo do tratado eacute elaborar essa questatildeo
De que modo Ele agora pergunta Qual o sentido de ser
Nossa pesquisa poderia partir daiacute Iniciariacuteamos a exposiccedilatildeo de nosso trabalho
nessa pergunta e prosseguiriacuteamos em Ser e Tempo De modo algum Seria um
contrassenso para algueacutem que queira estudar a linguagem em Heidegger partir de uma
sentenccedila como se ela fosse oacutebvia Afinal por qual motivo Heidegger natildeo pergunta ldquoO
que eacute o serrdquo ou ldquoHaacute o serrdquo Fechamos Ser e Tempo Eacute preciso compreender como essa
pergunta ganhou uma determinada forma Mas para onde ir
Ser e Tempo eacute uma obra do seacuteculo XX uma obra de filosofia portanto jaacute eacute parte
de nossa tradiccedilatildeo jaacute temos uma preacute-compreensatildeo dela Sabemos previamente que ela
transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica e que o nosso autor expotildee seu caminho
em um texto de 1963 chamado ldquoMeu caminho na fenomenologiardquo Parece-nos um bom
iniacutecio e vamos ao texto Heidegger descreve o iniacutecio de seus estudos o contato com a
obra inaugural da fenomenologia de Husserl e com a tese de Brentano sobre Aristoacuteteles
aiacute se vecirc germinar ainda que de maneira imprecisa sua questatildeo central Mas isso se
mostrou insuficiente para compreender a pergunta posta em Ser e Tempo Recorremos
entatildeo aos textos de Husserl Jaacute na introduccedilatildeo do II volume agrave obra citada por Heidegger
ndash Investigaccedilotildees Loacutegicas - Husserl descreve a necessidade de a fenomenologia
posicionando-se contra a psicologia explicativa procurar sua fundamentaccedilatildeo da loacutegica
numa nova teoria do conhecimento objetiva Nossa jaacute citada preacute-compreensatildeo nos levou
a Dilthey ao descobrir que esse autor tambeacutem se opocircs ao meacutetodo da psicologia
explicativa Vamos tambeacutem aos seus textos Mas a pergunta aparece teraacute sido tatildeo grande
12
a influecircncia que a psicologia explicativa exercia naquela eacutepoca a ponto de exigir que
tantos pensadores sentissem a necessidade de se opor a ela e ao seu meacutetodo
Como se isso natildeo bastasse revelou-se que ambos os autores Dilthey e Husserl
travam diaacutelogo nem sempre expresso com o neokantismo Agrave revelia de todos julguei
que natildeo deveria desconsiderar mais essa referecircncia tendo em vista que um dos principais
nomes dessa corrente ndash Rickert- foi citado por Heidegger no importante (para esta
pesquisa) texto de 1963 ao qual me referi haacute pouco Entatildeo me perguntei o que une esses
trecircs nomes Dilthey Husserl e Rickert Estaacute posta a tarefa do primeiro capiacutetulo da
Dissertaccedilatildeo
Nele tentei compreender como a partir do desenvolvimento das ciecircncias positivas
particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma profunda discussatildeo acerca do sentido e
da possibilidade do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo busca uma
filosofia propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana procura a
autonomia da filosofia frente agrave ciecircncia positiva mas que serviria de base a toda e qualquer
ciecircncia Tambeacutem nesse contexto aparece a contribuiccedilatildeo de Dilthey a qual acrescenta o
caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e traz agrave tona o sentido do conhecimento como
essencialmente histoacuterico
Mas natildeo chegamos ao que nos propomos estamos ainda nos prolegocircmenos Por
qual motivo Heidegger pergunta Qual o sentido de ser Ser e Tempo continua fechado
Precisamos entatildeo reavaliar nossa preacute-compreensatildeo Se como dissemos Ser e Tempo
transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica eacute preciso analisar como essas influecircncias
aparecem no pensamento de Heidegger Vamos a algumas preleccedilotildees do autor anteriores
agrave obra central de nosso trabalho Eacute preciso indicar que nossa intenccedilatildeo natildeo eacute abordar as
preleccedilotildees como processos evolutivos como que para esclarecer em termos de causa e
efeito a publicaccedilatildeo posterior lsquomadurarsquo de Ser e Tempo Mas destacar como as questotildees
desses textos acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a
problemaacutetica cujo desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927
Estaacute posta a tarefa de nosso segundo capiacutetulo
Nele trata-se de compreender como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere
Heidegger no interior da referida discussatildeo pelo sentido do conhecimento Mas ao
mesmo tempo tentaremos mostrar como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva
(considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal)
e a introduccedilatildeo do elemento hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com
13
Heidegger a pergunta fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do
conhecimento e passou a ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto
nosso segundo capiacutetulo pretende analisar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger
no interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do
conhecimento ao sentido do ser
Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido
de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a
teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo
pelo sentido do ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir
da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para
uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no
curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER 2006 p122) o elemento
hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave fenomenologia
que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em
seu ser Podemos abrir novamente Ser e Tempo
Esse percurso foi necessaacuterio para que pudeacutessemos conquistar um solo
interpretativo e sobretudo alcanccedilar a pergunta pelo sentido de ser Pois ela a pergunta
estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura de sentido que precisamos explicitar
E assim no terceiro e central capiacutetulo da Dissertaccedilatildeo apresentar como em Ser e Tempo
o fenocircmeno da linguagem (Sprache) aparece no interior dessa compreensatildeo e em que
medida a linguagem eacute possiacutevel por uma estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Dito de
outro modo na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto
ontoloacutegico do conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e
qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido tambeacutem
histoacuterico em que algo pode se manter em seu significado Eacute nessa perspectiva que
procuramos a estrutura ontoloacutegica da linguagem
Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a
ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo
material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos
que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas
que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela
dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se
estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o
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que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes1rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que
somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em
fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo
Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por
Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um
fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo
incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como
descoberto A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo cotidiano Heidegger chama de
ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio
natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute
encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas tomadas como oacutebvias
Esse eacute o caminho do nosso trabalho mas eacute apenas o iniacutecio Ele natildeo pretende
encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender a
ldquopassagem para o poeacutetico2rdquo na obra de Heidegger como uma tentativa de desvencilhar-se
do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Por enquanto preferimos a tensatildeo
e a suspensatildeo do estado de pergunta Ser e Tempo continuaraacute aberto Tentaremos nos
manter fieis agrave orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica Diante da pergunta de
Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na cidade Soacutecrates responde
ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso irrdquo3
1 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo Wolf
Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249 2 Cf NUNES 2012 3 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9
15
Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo
sentido do conhecimento na filosofia
Chega um tempo em que natildeo se diz mais meu Deus () Chegou um tempo em que natildeo adianta morrer Chegou um tempo em que a vida eacute uma ordem
A vida apenas sem mistificaccedilatildeo (Os Ombros Suportam o Mundo Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
Conforme Merleau Ponty a fenomenologia surge como uma tentativa para
resolver um problema natildeo de uma seita mas talvez o problema do seacuteculo o problema
que se punha desde 1900 para todo o mundo e ainda eacute hoje colocado (PONTY M1973
Pag15) O problema refere-se agrave crise das ciecircncias humanas (Geistenwissenschaften) e agraves
ciecircncias naturais
Se o fundamento dos princiacutepios da geometria e da fiacutesica eram objetos de
investigaccedilatildeo de Husserl e o levou ao caminho da pesquisa de uma filosofia sem
pressupostos- bem como as investigaccedilotildees dos chamados neokantianos da escola de
Marburg que os levaram agrave tentativa de fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas - as
ciecircncias humanas tambeacutem se desenvolviam no auspiacutecio de sua proacutepria ambiguidade
A medida que se desenvolviam as pesquisas psicoloacutegicas socioloacutegicas
histoacutericas tendiam a nos apresentar todo pensamento toda opiniatildeo e em
particular toda filosofia como o resultado da accedilatildeo combinada das condiccedilotildees
psicoloacutegicas sociais histoacutericas anteriores A psicologia tendia para o que Husserl
denomina psicologismo a sociologia o sociologismo histoacuteria para o
historicismo Ora com isto elas acabavam por erradicar seus proacuteprios
fundamentos (PONTY1973 p15)
Na medida em que os princiacutepios orientadores do homem histoacuterico social e
psicoloacutegico satildeo elementos externos e imbricados de certa contingecircncia conforme os
resultados mesmos dessas pesquisas o pesquisador punha suas proacuteprias afirmaccedilotildees em
duacutevida pois o fundamento de todas elas eacute tambeacutem contingente e o valor de verdade de
suas conclusotildees fluido Contudo quando algo faz aparecer opositores observando e
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diagnosticando seus problemas fundamentais eacute porque encontra-se em evidecircncia e jaacute
atingiu certo grau de adesatildeo sendo necessaacuterio apontar elementos obliterados em sua
suposta evidecircncia
A autonomia das ciecircncias positivas frente aos sistemas filosoacuteficos em meados do
seacuteculo XIX na Alemanha acompanhava um crescente desprestiacutegio da metafiacutesica e da
filosofia da natureza sendo a reflexatildeo metodoloacutegica suplantada por novos procedimentos
-e uma nova visatildeo de mundo- em que vigoravam o conhecimento empiacuterico impessoal e
temporal
Se a filosofia jaacute natildeo parecia ter condiccedilotildees de responder agraves questotildees dessa nova
visatildeo de mundo cientiacutefica com as propostas da psicologia experimental - baseada no
modelo metodoloacutegico das ciecircncias naturais- ela a filosofia parecia estar condenada ao
ostracismo sendo capaz apenas de se colocar como curiosidade histoacuterica A psicologia
experimental ou explicativa considerava que um procedimento verdadeiramente
cientiacutefico deveria ser baseado na observaccedilatildeo empiacuterica ela era a interpretaccedilatildeo da verdade
atraveacutes de causas psiacutequicas responsaacuteveis pela efetuaccedilatildeo do juiacutezo(MACDOWEL 1993
p28)
O ponto crucial dessa posiccedilatildeo eacute o fato de que o estudo da loacutegica enquanto
estrutura do pensamento estaacute condicionado aos meacutetodos e princiacutepios da psicologia e
portanto condicionada a tipos de demonstraccedilotildees empiacutericas Uma investigaccedilatildeo dessa
espeacutecie - a loacutegica condicionada a demonstraccedilotildees empiacutericas - eacute a negaccedilatildeo da tarefa proacutepria
agrave filosofia (mesmo quando um ou outro pensador negue por exemplo a idealidade loacutegica
ainda assim o faz inserido nessa tarefa de investigaccedilatildeo) pois a loacutegica como doutrina
voltada para uma purificaccedilatildeo radical dos elementos materiais da linguagem e para uma
subsequente reconciliaccedilatildeo entre pensamento e verdade se mostra como expressatildeo
maacutexima do projeto originaacuterio da tradiccedilatildeo (CASANOVA Introduccedilatildeo In DILTHEY
2011p8)
Nesse contexto surgem reaccedilotildees ao modelo predominante das ciecircncias naturais
sobretudo em relaccedilatildeo agrave adesatildeo a este modelo pela psicologia e pelas ciecircncias humanas
Dentre essas reaccedilotildees destacamos o projeto da psicologia descritiva e analiacutetica de Dilthey
as contribuiccedilotildees da pesquisa sobre a validade do conhecimento das escolas neokantistas
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ndash destacando a filosofia dos valores de Windelband e Rickert - e o projeto husserliano de
uma filosofia sem pressupostos que se realizaria atraveacutes do meacutetodo fenomenoloacutegico
Ciente de que natildeo nos eacute possiacutevel aprofundar nessas complexas investigaccedilotildees nossa
intenccedilatildeo nesse primeiro momento de trabalho eacute apenas indicar os elementos
fundamentais de cada posiccedilatildeo e a partir deles compreender no capiacutetulo seguinte em
que medida essas reaccedilotildees se intercruzam e influenciam o autor privilegiado no texto
dessa dissertaccedilatildeo Este eacute o objetivo de nosso primeiro capiacutetulo
Nosso primeiro capiacutetulo eacute a tentativa de compreender como a partir do
desenvolvimento das ciecircncias positivas particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma
profunda discussatildeo acerca do sentido e possibilidade do conhecimento Nesse contexto o
neokantismo busca uma filosofia propriamente cientiacutefica ndash como reflexo da exigecircncia de
sua proacutepria eacutepoca ndash enquanto a fenomenologia husserliana busca a autonomia da filosofia
descontiacutenua agrave ciecircncia positiva mas que seria a base de toda e qualquer ciecircncia Tambeacutem
nesse contexto emerge como elemento fundamental para o desenvolvimento de nosso
trabalho a tarefa geral de Dilthey que mesmo imersa nas exigecircncias positivistas de seu
tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e potildee em tela o sentido
do conhecimento como essencialmente histoacuterico
I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias
do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente
histoacuterico
Dilthey contra a mera transposiccedilatildeo do meacutetodo das ciecircncias naturais agraves ciecircncias
do espiacuterito ldquose deu conta que a pretensatildeo de entender filosoficamente as disciplinas
histoacutericas soacute poderia levar-se a um porto seguro se reflexiona acerca do que eacute o objeto
das ditas ciecircnciasrdquo (HEIDEGGER 2006p33)
As ciecircncias naturais segundo Dilthey se relacionam com os objetos na medida
em que esses satildeo ou fatos simultacircneos ou sucessivos e aparecem agrave consciecircncia sempre
como dados externos assim recorrendo a uma hipoacutetese como recurso explicativo
condicionada agrave verificaccedilatildeo a partir de maior ou menor incidecircncia desses fatos Os
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resultados das ciecircncias naturais seriam portanto conclusotildees complementares que
tentariam explicar os fenocircmenos externos (observados como fenocircmenos particulares) e
ordenaacute-los pela funccedilatildeo explicativa da ciecircncia que movimenta da parte (fenocircmenos
unitaacuterios) ao todo (explicaccedilatildeo ordenadora)
Poreacutem os fenocircmenos das ciecircncias humanas aparecem internamente agrave consciecircncia
com realidade de uma lsquoconexatildeo vivarsquo sendo essa conexatildeo da vida psiacutequica
originariamente dada compreensivamente a qualquer homem histoacuterico vivente A anaacutelise
ou distinccedilatildeo dos elos particulares dessa conexatildeo eacute posterior pois o que se daacute
imediatamente agrave consciecircncia eacute a conexatildeo constante das proacuteprias vivecircncias e ldquoa vida natildeo
se faz senatildeo como conexatildeordquo (DILTHEY W2011 pag30) natildeo tendo sentido a partir
dessa evidecircncia falar em algo como deduccedilatildeo dos fenocircmenos psiacutequicos
Exige-se portanto agrave psicologia um outro procedimento pois satildeo somente os
dados da psicologia descritiva que poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar
para as ciecircncias humanas O que estaacute em jogo para Dilthey contra a psicologia
explicativa eacute mostrar como a teoria do conhecimento relativa agraves ciecircncias do espiacuterito e
tambeacutem agrave filosofia natildeo pode abrir matildeo da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica Poreacutem em funccedilatildeo
da especificidade de seus objetos reclama outros meacutetodos que natildeo aqueles das ciecircncias
naturais
Dilthey natildeo aceita os pressupostos do retorno agrave filosofia kantiana4 para a
fundamentaccedilatildeo de suas investigaccedilotildees pois a cisatildeo entre mateacuteria e forma proveniente
desse sistema natildeo serve agraves ciecircncias do espiacuterito e natildeo pode ser mais sustentada diante da
evidecircncia da vida conexa e estruturante da vivecircncia da consciecircncia
4 Sobre esse aspecto eacute importante apresentar duas consideraccedilotildees 1) No interior da biografia de
Schleiermacher de 1860 Dilthey destaca a importacircncia de alguns aspectos do texto de Kant ldquoA religiatildeo
nos limites da simples razatildeordquo (1793) para o desenvolvimento da hermenecircutica de Schleiermacher 2)
Contudo talvez sob influecircncia do debate neokantiano agrave eacutepoca Dilthey apresenta o essencial da filosofia
kantiana como sendo a Criacutetica da Razatildeo Pura ou seja a teoria do conhecimento referente agraves ciecircncias
naturais E nesse sentido que a divisatildeo entre mateacuteria e forma como exposta na primeira criacutetica natildeo eacute
suficiente agrave elaboraccedilatildeo da epistemologia das ciecircncias humanas Sobre esse assunto Cf Kant und die
philosophische Hermeneutik in Kant-Studien 66 (1975) pp 395-403 Traduccioacuten de Angela Ackermann
Pilaacuteri en GADAMER H-G Los caminos de Heidegger Herder Barcelona 2002 pp 57-66 Cf
Beckenkamp J Kant e a hermenecircutica moderna in Kriterion vol51 no121 Belo Horizonte Junho 2010 e
tambeacutem Cf REIS JC A ldquocriacutetica histoacuterica da razatildeordquo Dilthey versus Kant In Textos de histoacuteria UNB
vol10 nordm12 v 10 (2002) pp-159-179
19
ldquoA cisatildeo entre mateacuteria e forma do conhecimento que eacute levada a termo no sistema
kantiano tambeacutem natildeo pode ser hoje mantida Muito mais importante do que essa
cisatildeo satildeo as relaccedilotildees internas que subsistem por toda a parte entre a multiplicidade
das sensaccedilotildees como a mateacuteria do nosso conhecimento e a forma na qual
apreendemos a mateacuteriardquo (DILTHEY W2011 p37)
Para REIS (2003)5 Dilthey eacute associado ao historicismo como seu maior teoacuterico
Ainda como aponta REIS nem todos pesquisadores de sua obra concordam com este
veredito alguns ateacute mesmo questionam se Dilthey poderia ser considerado um
historicista pois em seu projeto de construccedilatildeo de uma epistemologia das ciecircncias
humanas ao se opor ao historicismo romacircntico Dilthey recairia em certo positivismo De
todo modo analisar detalhadamente esta discussatildeo natildeo nos eacute possiacutevel o que nos interessa
aqui eacute apontar que apesar de fazer coro com as caracteriacutesticas gerais deste movimento
Dilthey se destaca por sua busca propriamente epistemoloacutegica das ciecircncias humanas a
partir da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos se afastando em diversos pontos
do chamado ldquoirracionalismordquo romacircntico mas sem reduzir o historicismo agrave pura
epistemologia e sobretudo lanccedilando bases teoacutericas com pretensatildeo cientiacutefica para a
abordagem dos fenocircmenos histoacutericos
ldquoO aspecto positivista da sua teoria devia-se agrave atmosfera naturalista em que ele
viveu As ciecircncias naturais impuseram o seu padratildeo de rigor e objetividade No
seacuteculo XIX a morte da filosofia sistemaacutetica cedeu seu lugar a uma ldquofilosofia
cientiacuteficardquo Natildeo era uma filosofia especulativa mas ldquoestudos positivos com
intenccedilatildeo filosoacuteficardquo O filoacutesofo natildeo podia pensar em qualquer objeto sem recorrer
a estudos concretos ao estudo de fontes primaacuterias extraiacutedas do mundo real
Dilthey neste sentido quis que sua filosofia fosse cientiacutefica Eacute uma teoria do
conhecimento das ciecircncias morais que estudam as relaccedilotildees e eventos positivos
do mundo histoacuterico-social () Aiacute reside seu positivismo que segundo Aron ele
nunca superou e que eacute sua originalidade () Sua tese eacute as ciecircncias humanas
existem como lsquociecircncias e eacute vatildeo discutir o seu caraacuteter cientiacutefico em nome de uma
teoria preconcebida da ciecircnciarsquordquo (REIS 2003p32)
Dilthey se destaca no movimento historicista pela sua preocupaccedilatildeo com o meacutetodo para
as ciecircncias humanas consciente de sua especificidade ou da metodologia autocircnoma dessa
disciplina na medida em que histoacuteria e vida se encontram pela compreensatildeo sendo a vida
ao mesmo tempo histoacuterica e psicoloacutegica E o fato de natildeo haver um modelo universal
sistemaacutetico da histoacuteria natildeo reduz sua pesquisa em uma descriccedilatildeo caoacutetica dos eventos
5 Seguindo a interpretaccedilatildeo de Freunde e Ortega y Gasset Cf REIS JC 2003 p31
20
Vivecircncia compreensatildeo e expressatildeo eacute a triacuteade fundamental para o pensamento de
Dilthey e sua ldquocriacutetica da razatildeo histoacutericardquo consiste em delinear como a construccedilatildeo do
mundo histoacuterico no sujeito torna possiacutevel um saber sobre a realidade espiritual
apreendendo aiacute a partir da experiecircncia do mundo histoacuterico o princiacutepio real das ciecircncias
humanas A reconstruccedilatildeo do mundo da vida natildeo pode ser reduzida a uma soma de
elementos que possam descrevecirc-lo Mais do que isso a vida histoacuterica de um determinado
tempo eacute vivenciada por uma ligaccedilatildeo imediata entre o sujeito e seu tempo cada vivecircncia
sinaliza para a concretude objetiva do espiacuterito da eacutepoca O que importa nesta perspectiva
eacute que a realidade objetiva seja garantida pela proacutepria vivecircncia que eacute ldquoerigida agrave condiccedilatildeo
de categoria epistemoloacutegica fundamental em oposiccedilatildeo ao conceito de representaccedilatildeordquo
(AMARAL2004 p53) ou seja a objetividade da vivecircncia lhe eacute imanente A vivecircncia
(Erlebnis) natildeo eacute mera vida orgacircnica (Leben) mas o encontro indissociaacutevel entre a histoacuteria
e a vida dos homens Se por um lado natildeo eacute possiacutevel acompanhar o horizonte de sentido
de uma eacutepoca sem esta primeira experiecircncia viacutevida cujas expressotildees satildeo particulares por
outro lado eacute somente atraveacutes da compreensatildeo que a vivecircncia eacute alargada superando a
unilateralidade da experiecircncia singular
ldquoA compreensatildeo eacute um reencontro do eu no tu o espiacuterito encontra-se em niacuteveis
cada vez mais elevados da conexatildeo essa mesmidade do espiacuterito no eu no tu em
cada sujeito de uma comunidade em todo sistema da cultura por fim na
totalidade do espiacuterito e da histoacuteria universal torna possiacutevel a atuaccedilatildeo conjunta
das diversas capacidades nas ciecircncias humanas O sujeito do saber estaacute assim
unido com o seu objeto e esse objeto eacute o mesmo em todos os niacuteveis de sua
objetivaccedilatildeo Se a objetividade do mundo espiritual criada no sujeito eacute reconhecida
por este procedimento surge a pergunta sobre o quanto isso pode contribuir para
a resoluccedilatildeo do problema do conhecimento em geralrdquo (DILTHEY 2006p168)
A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo eacute ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da
hermenecircutica de Dilthey pois traz em si a categoria do significado como o nexo da
vivecircncia com a realidade concreta sem se apoiar em qualquer elemento transcendente agrave
proacutepria experiecircncia psicoloacutegica vivida
ldquoA categoria do significado designa a relaccedilatildeo entre as partes da vida e o todo
uma relaccedilatildeo que estaacute fundada na essecircncia da vida Soacute possuiacutemos essa conexatildeo
por meio da memoacuteria na qual podemos visualizar o transcurso vital do passado
Na memoacuteria faz-se valer entatildeo o significado como a forma de apreensatildeo da vida
Captamos o significado de um momento passado Ele eacute significativo na medida
em que nele se realiza um viacutenculo com o futuro por meio da accedilatildeo ou por meio de
um acontecimento exterior Ou na medida em que foi concebido o plano de uma
conduccedilatildeo futura da vida Ou na medida em que um plano de sua realizaccedilatildeo foi
21
levado a termo Ou ele eacute significativo para a vida conjunta na medida em que a
intervenccedilatildeo do indiviacuteduo se realiza nessa vida na qual sua essecircncia mais proacutepria
interveio na configuraccedilatildeo da humanidade Em todos esses e em outros casos o
momento particular possui significado por meio de sua conexatildeo com o todo por
meio da ligaccedilatildeo entre passado e futuro entre existecircncia particular e a
humanidaderdquo (DILTHEY 2006p224)
A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo deve ser entendida como ldquoos dois lados
do processo loacutegico dois lados que se interpenetram mutualmenterdquo (DILTHEY
2006p213) sendo a forma de compreender enquanto meacutetodo a ldquoinduccedilatildeo que deduz das
particularidades parcialmente determinadas para noacutes uma conexatildeo que define o todordquo
(DILTHEY 2006p214) Mas isso soacute eacute possiacutevel pelas categorias que residem na essecircncia
da proacutepria vida categorias que natildeo satildeo dadas a priori e nem podem ser formalizadas
logicamente Satildeo categorias preenchidas no interior de certa unidade espaccedilo-temporal
pois ldquoa vida encontra-se em uma relaccedilatildeo maximamente proacutexima com o preenchimento
do tempo() No tempo a vida existe na relaccedilatildeo das partes com uma conexatildeordquo
(DILTHEY 2006p219)
O conjunto das realizaccedilotildees da compreensatildeo enquanto conexotildees estruturais
objetivas ou objetivaccedilatildeo da proacutepria vida no mundo exterior eacute o conceito das ciecircncias
humanas e ldquotudo aquilo em que o homem por sua atuaccedilatildeo imprimiu sua marca constitui
o objeto das ciecircncias humanasrdquo (DILTHEY 2006 p112) Tendo em vista esse objeto a
tarefa do pesquisador ldquoconsiste na apreensatildeo do mundo do espiacuterito como uma conexatildeo
dos efeitos ou como uma conexatildeo contida em seus produtos duradourosrdquo (DILTHEY
2006p118) A conexatildeo dos efeitos dos produtos da ciecircncia histoacuterica natildeo eacute como o nexo
causal da natureza pois diferentemente da natureza as conexotildees da vida objetiva do
espiacuterito geram valores e realizam fins a vida histoacuterica natildeo eacute reproduccedilatildeo ciacuteclica de si
mesma ndash como a vida natural - mas eacute sempre criativa e ativa na produccedilatildeo desses valores
e bens como seu caraacuteter imanente mais proacuteprio
E eacute nessa apreensatildeo do tear da vida histoacuterica na qual o tempo a vivecircncia e
compreensatildeo estatildeo imbricados e se interpelam o significado ldquoeacute a categoria abrangente
sob a qual a vida se torna concebiacutevelrdquo (DILTHEY 2006p222)
ldquoDito de outro modo conceber algo atribuir valor e estabelecer fins para algo
satildeo atitudes vitais inter-dependentes que configuram as vivecircncias e assim sendo
nos ajudam a construir a proacutepria realidade em que vivemos Vivecircncia e realidade
22
satildeo como que tecidas conjuntamente graccedilas ao apoio da ldquocategoria do
significadordquo (AMARAL 2004p55)
As expressotildees da vivecircncia possuem sua objetividade na medida em que os objetos
as pessoas os valores e os juiacutezos apoiados nesta relaccedilatildeo enraiacutezam-se nos significados
comuns do mundo da vida significados esses que satildeo vivenciados e compreendidos
perfazendo a proacutepria construccedilatildeo do mundo histoacuterico ldquoe consequentemente de sua
compreensatildeo como tarefa basilar das ciecircncias do espiacuteritordquo (AMARAL 2004p57)
II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar
proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias6
Ainda na reaccedilatildeo contra o empirismo positivista do final do seacuteculo XIX e
sobretudo ao psicologismo desenvolveram-se as investigaccedilotildees dos chamados
neokantianos um ldquomovimento com profundas raiacutezes no seacuteculo dezenove [que] dominou
a academia filosoacutefica alematilde entre 1890 e 1920rdquo (CROWELL2001 p23)
Seguindo a exposiccedilatildeo de Crowell o movimento neokantiano pode ser dividido em
trecircs momentos profundamente relacionados com os acontecimentos histoacutericos poliacuteticos
e sociais da Alemanha na virada do seacuteculo XIX para XX Natildeo seraacute possiacutevel nos
aprofundarmos muito na especificidade de cada momento desse movimento bem como
nas suas relaccedilotildees com outras mateacuterias Como jaacute foi dito acima nossa proposta nessa
breve introduccedilatildeo eacute apenas mostrar a importacircncia desse movimento na formaccedilatildeo do
pensamento de Heidegger7 e indicar o contexto geral no qual nasce esse pensamento
6 O neokantismo eacute um movimento complexo e com muitas nuances Como nossa intenccedilatildeo eacute apresentar o
contexto no qual surge o pensamento de Heidegger natildeo pretendemos nos aprofundar e muito menos
desdobrar as divergecircncias entre seus representantes principais atraveacutes do acesso direto agraves suas obras
Portanto seguiremos nesse toacutepico a leitura de Crowell (2001) e Joseacute Rezende Juacutenior (2013) recorrendo
quando necessaacuterio a outros comentadores Destacamos os elementos centrais do pensamento de
Windelband e sobretudo de Rickert pois a partir da anaacutelise da preleccedilatildeo de 1919 de nosso autor ldquoA filosofia
e o problema da concepccedilatildeo de mundordquo ndash em que Heidegger investiga a possibilidade da filosofia como
ciecircncia originaacuteria ndash a posiccedilatildeo desses autores eacute decisiva para elaboraccedilatildeo dos problemas do meacutetodo de acesso
a imediatidade da vida e na primeira parte da referida preleccedilatildeo Heidegger expotildee os pressupostos e
problemas do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e sua dependecircncia ao material teoacuterico das ciecircncias particulares 7 Aleacutem do exposto em nota acima (6) seguimos a leitura de Gianni Vattimo em Introduccedilatildeo a Heidegger
No primeiro capiacutetulo Vattimo mostra a importacircncia dos anos de estudos universitaacuterios de Heidegger em
Freiburg sob orientaccedilatildeo de Heinrich Rickert para o desenvolvimento da questatildeo central de seu
pensamento a questatildeo do ser Segundo Vattimo em sua tese de livre docecircncia de 1916 Heidegger jaacute
23
contexto de uma disputa pela ldquoNova Filosofiardquo que dividiu a Fenomenologia de um lado
e os Neokantianos de outro
ldquoAmbos os movimentos reivindicam o tiacutetulo de filosofia cientiacutefica mas o
neokantismo difere da fenomenologia em manter uma continuidade entre a
ciecircncia positiva e filosofia A teoria da ciecircncia a epistemologia neokantiana
deseja fornecer fundamentos para os princiacutepios de base (lsquocientiacuteficosrsquo) da visatildeo de
mundo A Fenomenologia (aqui Husserl e o jovem Heidegger) ao contraacuterio
estabelece a autonomia da filosofia precisamente atraveacutes da descontinuidade com
a ciecircncia positiva e os objetos de formaccedilatildeo da visatildeo de mundordquo (CROWELL
2001p24)8
No primeiro periacuteodo (1871-1878) verifica-se ldquocerta continuidade entre o inqueacuterito
aprioriacutestico e empiacuterico A autonomia da filosofia vis-agrave-vis a ciecircncia positiva ainda natildeo
tornou a questatildeo decisivardquo (CROWELL 2001p26) Os neokantianos ainda estavam
dispostos a aceitar que as estruturas fundamentais da realidade revelavam seu caraacuteter
transcendental pois ainda constatavam a necessidade das formas universais atraveacutes das
quais podemos pensar as coisas singulares No projeto positivista a ciecircncia empiacuterica
estuda apenas o conteuacutedo de fato em uma restriccedilatildeo circunstancial dos fenocircmenos jaacute
compreendidos
ldquoTentando superar as aporias da Criacutetica da Razatildeo Pura o idealismo
transcendental neokantiano rejeitou a distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si Os
objetos satildeo totalmente imanentes agrave consciecircncia natildeo somente quanto a sua forma
mas tambeacutem agrave sua mateacuteria ieacute o seu elemento empiacuterico Destarte as categorias
jaacute natildeo constituem meramente o modo de aparecer da realidade mas o seu modo
de ser pois ela natildeo existe senatildeo enquanto presente agrave consciecircncia () Assim o
loacutegico como estudos das determinaccedilotildees fundamentais de vaacuterias regiotildees dos
objetos imanentes agrave consciecircncia ocupa com razatildeo ainda para Kant o lugar
reservado antigamente agrave metafiacutesica A tarefa proacutepria da filosofia consiste numa
Teoria das Ciecircncias ieacute no exame das estruturas a priori ao passo que estas
estudam o conteuacutedo empiacuterico das vaacuterias regiotildees dos objetosrdquo (MACDOWELL
Jp30)
manifestava elementos que o impulsionariam a ir aleacutem da loacutegica a recusa de considerar as categorias como
meras funccedilotildees do pensamento e ainda a exigecircncia de considerar o problema da historicidade e do tempo
Assim no interior da problemaacutetica neokantiana Heidegger jaacute se preocupava com questotildees que o
neokantismo mostrava-se incapaz de resolver Cf Vattimo G1987 pp 10-22
8 ldquoBoth movements lay claim to the mantle of ldquoscientific philosophyrdquo but neo-Kantianism differs from
phenomenology in maintaining a continuity between positive science and philosophy As theory of science
neo-Kantian epistemology wants to provide grounds for a principled (ldquoscientificrdquo) weltanschauung
Phenomenology (here Husserl and the early Heidegger) on the contrary establishes the autonomy of
philosophy precisely through a discontinuity with positive science and the aims of worldview formationrdquo
op cit p 24
24
Durante o segundo periacuteodo neokantiano entre 1878 e o final da Primeira Guerra
Mundial as escolas originadas desse movimento vatildeo acirrar suas diferenccedilas A escola de
Marburg (Cohen Natorp e Cassirer) se opocircs sobretudo agraves interpretaccedilotildees psicoloacutegicas
da Primeira Criacutetica de Kant O campo de investigaccedilatildeo dessa escola era direcionado agrave
fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas tais como a fiacutesica e a matemaacutetica pois o que
estaacute em jogo nessa obra segundo os pesquisadores de Marburg natildeo eacute qualquer
fundamentaccedilatildeo da estrutura psicoloacutegica do conhecimento nem sua origem mas o valor
loacutegico de sua verdade na medida em que ldquoo nosso conhecimento dos objetos reais conteacutem
um elemento que natildeo pode ser reduzido pura e simplesmente a intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo
(MCDOWELL J p29)
No mesmo sentido mas sobretudo em funccedilatildeo da superaccedilatildeo do psicologismo e do
relativismo histoacuterico a escola neokantista de Baden representada principalmente por
Windelband e seu disciacutepulo Rickert estende o retorno a Kant com o propoacutesito da
elaboraccedilatildeo de uma loacutegica das ciecircncias humanas O desenvolvimento da filosofia dos
valores (Werttheorie) realizado por essa escola reconhecia a necessidade de diferenciar o
conhecimento da natureza do conhecimento da cultura nesse uacuteltimo caso as leis
deveriam ser explicadas a partir dos valores que neles satildeo presentes Aqui sem duacutevida
existe um ponto de contato com o projeto de Dilthey que nos exige um breve excurso para
desenhar com linhas mais precisas a especificidade de cada projeto
A criacutetica agrave metafiacutesica inaugurada pela filosofia criacutetica de Kant (negando ao
conhecimento qualquer acesso a elementos suprassensiacuteveis) eacute absorvida por Dilthey e
pelos neokantianos contudo a epistemologia das ciecircncias histoacutericas como filosofia
criacutetica da histoacuteria ao recorrer a Kant deveria como aponta Reis (2002 p 166) ldquoou
substituir ou completar ou subordinar ou se coordenar agrave [criacutetica] de Kantrdquo e nesse sentido
eacute possiacutevel observar a fissura entre os projetos Poderiacuteamos dizer que para Dilthey eacute
necessaacuterio superar Kant pois as categorias abstratas do conhecimento satildeo tributaacuterias de
relaccedilotildees vitais primaacuterias como pensamento que emerge da proacutepria vida histoacuterica pois eacute
a vida histoacuterica em uacuteltima instacircncia que fornece ao pensamento unidade e sentido Jaacute
para os neokantianos de Baden poder-se-ia dizer que houve uma coordenaccedilatildeo com vistas
agrave complementaccedilatildeo agrave criacutetica kantiana tendo em vista que tanto para Windelband como
para Rickert a diferenccedila entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito era legiacutetima
25
para o primeiro como uma distinccedilatildeo metodoloacutegica para o segundo como distinccedilatildeo
loacutegica No interior dessa diferenccedila entre Dilthey e os neokantianos de Baden eacute possiacutevel
observar um ponto ainda mais fundamental mesmo com exigecircncias epistemoloacutegicas
objetivas em seu trabalho Dilthey natildeo aceita o pressuposto de um sujeito transcendental
e eacute antes a vivecircncia do sujeito particular histoacuterico que lhe fornece a base de sua pesquisa
jaacute para Windelband e Rickert o idealismo transcendental eacute mantido com o propoacutesito de
garantir o estatuto cientiacutefico de suas teses Assim enquanto Dilthey atraveacutes dos meacutetodos
proacuteprios faz emergir uma nova concepccedilatildeo de ciecircncia os representantes de Baden
movimentam-se em uma teoria preconcebida da ciecircncia Dito de outro modo ldquoenquanto
Dilthey buscava uma forma de liberar as ciecircncias do espiacuterito do meacutetodo das ciecircncias
naturais Windelband e Rickert procuravam uma definiccedilatildeo de ciecircncia que reconhecesse a
importacircncia dos valoresrdquo (WUR 2010p175)
De maneira geral retornando ao ponto central de nosso toacutepico poderiacuteamos
apontar que as duas escolas neokantianas se diferenciavam essencialmente acerca do
objeto de investigaccedilatildeo Na escola de Marburg Cohen direcionava suas pesquisas ao
chamado ldquofato da ciecircnciardquo e a filosofia seria uma reflexatildeo sobre o conhecimento
cientiacutefico concentrando-se na busca de uma metodologia capaz de descrever
matematicamente a constituiccedilatildeo seu objeto na medida em que seu valor de verdade
encontra-se sob bases loacutegico-matemaacuteticas Jaacute na escola de Baden influenciado pela
filosofia dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade
dos juiacutezos cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de
conciliar ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) A ciecircncia apenas
lida com questotildees de fato e se for necessaacuterio analisar a ldquovisatildeo de mundordquo seremos
obrigados a lidar com os deveres e sobretudo com valores
ldquoEsse enfoque nos valores por parte de Windelband levaraacute o neokantismo de
Baden ao desenvolvimento de uma teoria geral do juiacutezo segundo a qual os juiacutezos
cientiacuteficos (juiacutezos teoacutericos) constituem apenas um tipo de juiacutezo qual seja os
juiacutezos orientados pelo valor verdade Aleacutem dos juiacutezos teoacutericos haveria tambeacutem
juiacutezos natildeo teoacutericos como os juiacutezos eacuteticos esteacuteticos religiosos etc os quais
seriam orientados por outros tipos de valores como o bem o justo o belo o
sagrado etc e os quais diriam respeito a outras dimensotildees da experiecircncia
humana para aleacutem da ciecircncia como a moral o direito a arte a religiatildeo etc Com
isso Windelband procura reformar e ampliar o projeto de Kant Como na Criacutetica
da Razatildeo Pura Kant reduziu o papel da filosofia agrave anaacutelise do caraacuteter a priori dos
juiacutezos teoacutericos especiacuteficos das ciecircncias da natureza trata-se portanto de
completar a empresa kantiana com a anaacutelise do caraacuteter a priori dos outros tipos
26
de juiacutezos Mesmo dentro das ciecircncias eacute preciso distinguir tipos de juiacutezos o que
Windelband faraacute atraveacutes da distinccedilatildeo entre ciecircncias nomoloacutegicas e ciecircncias
ideograacuteficas e Rickert com a distinccedilatildeo entre ciecircncias naturais e ciecircncias
culturaisrdquo (RESENDE 2013p17)
Contudo se ambas escolas se diferenciam na circunspecccedilatildeo de seu objeto existe
um ponto de partida epistemoloacutegico comum o retorno a Kant que indica o lugar proacuteprio
da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias A investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo deve se voltar agrave pesquisa
cientiacutefica de como se daacute tal ou qual conhecimento mas analisar a validade do
conhecimento ou seja aquilo que torna a verdade do conhecimento possiacutevel e esse
problema eacute de ordem transcendental pois natildeo estaacute interessada nos processos cognitivos
mas na condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer processo de conhecimento
ldquoContemporacircneo de Hermann Cohen da escola de Marburg Windelband
enfatizou como este a primazia da abordagem epistemoloacutegica dando
continuidade ao projeto kantiano de limitaccedilatildeo do conhecimento buscando
assegurar a sua validade rejeitando a contingecircncia do histoacuterico e do psicoloacutegico
em prol de uma validade atemporal puramente loacutegica Cohen procurou assegurar
a validade loacutegica do conhecimento cientiacutefico na matemaacutetica procedimento que
Windelband analisa como deficiente pois embora a primeira Criacutetica possa
fundamentar a interpretaccedilatildeo de Cohen a segunda e a terceira Criacuteticas assim
como os textos sobre antropologia histoacuteria e poliacutetica requerem outra
fundamentaccedilatildeo que natildeo a matemaacuteticardquo (WU R2010p3)
A terceira fase do movimento ainda segundo Crowell inicia-se no fim da
Primeira Guerra Mundial e vai ateacute a intervenccedilatildeo Nacional Socialista no sistema
universitaacuterio alematildeo nos anos 30 ldquoRefletindo o colapso do otimismo cultural este
periacuteodo eacute caracterizado por um ataque ao idealismo acadecircmico em nome de
Lebensphilosophie (um termo geneacuterico invocando as teses filosoacuteficas lsquoagrave margemrsquo como
as de Nietzsche Bergson e Dilthey)rdquo (CROWELL2011p28) E nesse sentido as escolas
neokantianas precisaram enfrentar o conflito entre a realidade muacuteltipla e dispersa que no
mais das vezes escapa a qualquer tentativa de apreensatildeo conceitual e loacutegica e portanto
agrave consciecircncia transcendental como postulado que garante a cientificidade do projeto
filosoacutefico neokantista
ldquoNa escola de Baden Logik der Philosophie (1911) e Die Lehre vom Urteil [A
doutrina do juiacutezo] (1912) de Lask antecipam temas do terceiro periacuteodo
Abandonando a interpretaccedilatildeo imanente de Rickert do esquema forma-mateacuteria (e
tambeacutem a primazia da razatildeo praacutetica) Lask adota o ponto de partida da
transcendecircncia para dar uma interpretaccedilatildeo ontoloacutegica dos objetos como a unidade
da forma categorial e o material natildeo-loacutegico Objetos satildeo verdades em si mesmas
27
unidades de sentido natildeo cogniccedilotildees juiacutezos proposiccedilotildees Em contraste com
Cohen para quem o objeto eacute construiacutedo no juiacutezo cientiacutefico Lask argumenta que
lsquoos mais baacutesicos problemas da loacutegica revela eles mesmos somente se a cogniccedilatildeo
preacute-teoreacutetica estaacute inclusa na investigaccedilatildeorsquo Em Marburg N Hartmann oferece na
Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis [Fundamentacao para uma
Metafiacutesica do Conhecimento] (1921) uma teoria da relaccedilatildeo sujeito-objeto
ldquorealistardquo quase-fenomenoloacutegica intentada por uma justificaccedilatildeo ontoloacutegica para
o que eacute meramente pressuposto no idealismo loacutegico de Natorp a saber a
habilidade do sujeito para ldquotranscenderrdquo a sua proacutepria esfera Na filologia de
Kant H Heimsoeth comeccedila a descobrir os ldquomotivos metafiacutesicosrdquo da filosofia
criacutetica de Kant uma interpretaccedilatildeo perseguida no curso sobre Kant de Heidegger
1927-1928 e em Kant und das Problem der Metaphysikrdquo
(CROWELL2011p28)9
Eacute conhecida a interlocuccedilatildeo entre Rickert e a fenomenologia de Husserl tanto de
um lado pela criacutetica de Rickert agrave intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica e agrave identificaccedilatildeo entre sentido
(Sinn) e Significado (Bedeutung) nas Investigaccedilotildees Loacutegicas10 quanto por outro pela
criacutetica de Husserl a Rickert no que diz respeito agrave via predominantemente subjetiva das
9 ldquoIn the Baden school Laskrsquos Logik der Philosophie (1911) and Die Lehre vom Urteil (1912) anticipate
themes of the third period Abandoning Rickertrsquos immanentist interpretation of the formmaterial schema
(and so also the primacy of practical reason) Lask adopts the ldquostandpoint of transcendencerdquo to give an
ontological interpretation of the object as a unity of categorial form and alogical material Objects are
themselvesldquo truths unities of meaning not cognitions judgments propositionsrdquo Incontrast to Cohen for
whom the object is constructed in the scientific judgment Lask argues that ldquothe most basic problems of
logic reveal themselves only if pretheoretical cognition is included in the investigationrdquo In Marburg N
Hartmann offered the Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis (1921) a quasi-phenomenological
ldquorealisticrdquo theory of the subject-object relation intended to account ontologically for what is merely
presupposed in Natorprsquos logical idealism namely the subjectrsquos ability to ldquotranscendrdquo its own sphere In
Kant philology H Heimsoeth began to uncover the ldquometaphysical motivesrdquo of Kantrsquos critical philosophy
an interpretation pursued in Heideggerrsquos 1927ndash28 lecture course on Kant and in Kant und das Problem der
Metaphysikrdquoop citp28
10 Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas (sect15 da I Investigaccedilatildeo) contra a posiccedilatildeo de Frege Husserl considera os
termos Sentido (Sinn) e Significado (Bedeutung) como sinocircnimos ldquoSignificaccedilatildeo vale para noacutes aleacutem disso
como sinocircnimo de sentidordquo (HUSSERL 2012 p43) Contudo se em Ideias (1913) Husserl passa a assumir
uma camada de sentido preacutevia agrave significaccedilatildeo linguiacutestica - algo que ele natildeo soacute sugere como a ela se refere
explicitamente chamando-a de sentido preacute-expressivo- a significaccedilatildeo (Bedeutung) permanece
intimamente atrelada agrave expressatildeo (Ausdruck) que continua a ter um caraacuteter epistemoloacutegico relevante
(Cfsect124 Ideacuteias para uma fenomenologia pura e para uma fenomenologia fenomenoloacutegica) Apesar da
nova assunccedilatildeo essa camada preacute-expressiva natildeo passa a ter um teor de verdade superior agrave camada
expressiva pelo contraacuterio Husserl vai permanecer sempre comprometido com o status epistemoloacutegico da
consciecircncia e de seu acesso ao fenocircmeno Entatildeo aquilo que a consciecircncia manifesta linguisticamente
continua a ser o meio pelo qual a fenomenologia pode se realizar como ciecircncia rigorosa e somente a partir
da expressatildeo eacute possiacutevel falar em verdade na medida em que apenas a expressatildeo possui intenccedilatildeo de
significaccedilatildeo Isso porque apesar de sugerir esse sentido preacute-linguiacutestico Husserl continua voltando suas
anaacutelises agrave expressatildeo
28
primeiras publicaccedilotildees de Der Gegenstand der Erkentnnis (O objeto do conhecimento)11
Tambeacutem eacute conhecido o debate entre o idealismo criacutetico de Natorp e a fenomenologia de
Husserl
ldquoEm Ideen I (1913) Husserl afirma com um miacutenimo de ironia que ldquonoacutes somos
genuiacutenos positivistasrdquo (Hua III4639) Sob a tutela de Brentano a atitude inicial
de Husserl em direccedilatildeo ao apriorismo kantiano foi totalmente negativa e em
harmonia com o proacuteprio periacuteodo positivista inicial do neokantismo ele em vez
disso propocircs uma consideraccedilatildeo psicoloacutegica do a priori (egin Philosophie der
Arithmetik [1891]) Pelos anos de 1890 esse tipo de continuidade entre filosofia
e ciecircncia positiva foi abandonado em Marburg pelo idealismo transcendental
Husserl portanto permaneceu bem proacuteximo a Natorp que era o instrumental em
direccedilatildeo daquele caminho do psicologismo e mais tarde inspiraria o movimento
de Husserl da estaacutetica para a fenomenologia geneacutetica Pelos anos 1913 Husserl
tinha desenvolvido seu proacuteprio ldquoidealismo transcendentalrdquo fenomenoloacutegico mas
se manteve distinto em princiacutepio do Neokantismo de Marburg Enquanto esse
uacuteltimo definiu o caraacuteter cientiacutefico da filosofia em termos de
uma loacutegica transcendental uma apresentaccedilatildeo sistemaacutetica dos princiacutepios a priori
(ldquomeacutetodordquo) da ciecircncia empiacuterica o primeiro se manteve anti-sistemaacutetico modelo
empiacuterico do primeiro periacuteodo do seu fundador fundando sua teoria do a priori
sobre um recurso filosoacutefico para a intuiccedilatildeoEm seu tratamento da psicologia de
Natorp na primeira ediccedilatildeo das Investigaccedilotildees Loacutegicas(1900-1901) por exemplo
Husserl rejeita a doutrina de Natorp do puro ego da apercepccedilatildeo Na segunda
ediccedilatildeo contudo ele afirma que tem ldquouma vez conseguido encontraacute-lordquo tendo
aprendido ldquoa natildeo ser desviado de uma pura compreensatildeo do dado por meio de
formas corruptas do ego-metafiacutesicordquo (Hua XIX1374549) Se o Husserl mais
idealista natildeo mais associa o ego kantiano com o ldquocorrupto ego-metafiacutesicordquo do
idealismo especulativo sua anotaccedilatildeo ainda avanccedila em direccedilatildeo a uma afirmaccedilatildeo
bem anti-Natorpiana de ter encontrado o puro ego em uma ldquopura compreensatildeo
do dadordquo isto eacute em evidecircncia intuitiva Outra anotaccedilatildeo afirma que o puro ego eacute
ldquoapreendido na efetivaccedilatildeo de um cogito auto-evidenterdquo (Hua XIX1368544)
Natorp negou a fenomenalidade do ego ele nem pode ser objetivado nem
apresentado ele mesmo como um todo sem deixar de ser genuinamente ldquosujeitordquo
Para Husserl poreacutem esse argumento eacute meramente verbal o ego eacute aqui como um
fato um objeto em seu modo apropriado Afirmar o contraacuterio equivaleria
entregar o ego ao reino do mito (Hua XIX1373ndash76549ndash510)rdquo
(CROWELL2011 p31)12
11 Sobre a interlocuccedilatildeo entre Husserl e Rickert e como as criacuteticas e observaccedilotildees provocaram sucessivas
revisotildees dos trabalhos de ambos os autores Cf RESENDE J 2013 Primeira Parte pp 22-89
12ldquoIn Ideen I (1913) Husserl claims with only slight irony that ldquowe are the genuine positivistsrdquo (Hua
III4639) Under Brentanorsquos tutelage Husserlrsquos initial attitude toward Kantian apriorism had been
altogether negative and in harmony with neo-Kantianismrsquos own early positivist period he instead proposed
a psychological account of the a priori (egin Philosophie der Arithmetik [1891]) By the 1890s this kind
of continuitybetween philosophy and positive science had been abandoned in burg for transcendental
idealism Husserl nevertheless established close ties with Natorp who was instrumental in steering him
away from psychologism and would later inspire Husserlrsquos move from static to genetic phenomenology
By 1913 Husserl had developed his own phenomenological ldquotranscendental idealismrdquo but it remained
distinct in principle from Marburg neo-Kantianism While the latter defined the scientific character of
philosophy in terms of a transcendental logic a systematic presentation of the a priori principles (ldquomethodrdquo)
29
Contudo apesar do diaacutelogo entre esses autores o que nos interessa marcar a tiacutetulo
introdutoacuterio eacute a centralidade do debate que orientou a filosofia deste periacuteodo Seja pela
busca de juiacutezos loacutegicos-matemaacuteticos seja pela busca dos juiacutezos de valor a filosofia ainda
estaacute imersa nos problemas e na gramaacutetica da modernidade pois os debates se
movimentam no interior da teoria do conhecimento e cada escola a seu modo recorre ao
sujeito transcendental para assegurar a garantia de objetividade e validade do
conhecimento A discussatildeo inaugurada por Kant acerca da lsquocoisa em sirsquo e de seu acesso
como ideia da razatildeo redirecionam qualquer ontologia dos objetos agrave consciecircncia do
sujeito E em uacuteltima instacircncia a filosofia permanece imersa no pressuposto da existecircncia
de um fundamento uacuteltimo - baseado no sujeito e em suas possibilidades ligadas agrave
representaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos elementos do mundo externo- como condiccedilatildeo de
possibilidade que garante a seguranccedila e objetividade de todo conhecimento
II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica
Para Wilhelm Windelband (1848-1915) a filosofia deve investigar os valores das
representaccedilotildees ou seja em que medida uma representaccedilatildeo se torna uma proposiccedilatildeo
cientiacutefica Contra as teorias representacionistas do juiacutezo aqui jaacute eacute possiacutevel identificar a
clara separaccedilatildeo entre representaccedilatildeo - que seria a mera apariccedilatildeo de um objeto e suas
propriedades- e o juiacutezo ndash que possui valor de verdade e pode ser negado ou afirmado Os
juiacutezos (sejam loacutegicos esteacuteticos ou eacuteticos) natildeo satildeo neutros como a representaccedilatildeo pois
possuem embutido o que Windelband chama de apreciaccedilatildeo
ldquoTrata-se de uma distinccedilatildeo loacutegica que normalmente natildeo aparece no niacutevel da
gramaacutetica A mera conexatildeo neutra de representaccedilotildees (sujeito + predicado) eacute o que
se chama de juiacutezo jaacute o fato dessas representaccedilotildees constituiacuterem uma proposiccedilatildeo
com valor de verdade se deve agrave apreciaccedilatildeo O que Windelband quer mostrar eacute
of empirical science the former retained the antisystematic empirical cast of its founderrsquos early period
grounding its theory of the a priori on a philosophical appeal to intuition In his treatment of Natorprsquos
psychology in the first edition of the Logical Investigations (1900 1901) for example Husserl rejects
Natorprsquos doctrine of the pure ego of apperception In the second edition (1913) however he claims that he
has ldquosince managed to find itrdquo having learned ldquonot to be led astray from a pure grasp of the given through
corrupt forms of ego-metaphysicrdquo (Hua XIX1374549) If the more idealistic Husserl no longer associates
the Kantian ego with the ldquocorrupt ego-metaphysicrdquo of speculative idealism his note also advances the very
un-Natorpian claim to have found the pure ego in a ldquopure grasp of the givenrdquo that is in intuitive evidence
Another note states that the pure ego is ldquoapprehended in carrying out a self-evident cogitordquo (Hua
XIX1368544) Natorp had denied the phenomenality of the ego it can neither be objectified nor present
itself at all without ceasing to be genuinely ldquosubjectrdquo For Husserl however this argument is merely verbal
The ego is there as a fact an object in its own appropriate manner To claim otherwise is tantamount to
consigning the ego to the realm of myth (Hua XIX1373ndash76549ndash51)rdquo Op cit p31 Cf Tambeacutem
HEIDEGGER 2006 p 124
30
que nisso ordinariamente chamado de juiacutezo estaacute embutida uma apreciaccedilatildeo em
funccedilatildeo de um valor a qual natildeo se confunde com o conjunto de formaccedilotildees
conceituaisrdquo (RESENDE 2013p40)
O que estaacute em jogo nessa concepccedilatildeo eacute identificar que a apreciaccedilatildeo inerente a todo
juiacutezo natildeo diz nada acerca dos conteuacutedos representativos mas de sua pretensatildeo a um ideal
ou fim uacuteltimo como um horizonte estaacutevel do que eacute verdadeiro eacutetico ou esteacutetico e que
funcionam como paracircmetros avaliativos na accedilatildeo mesma de julgar O que estaacute implicado
nessa tese eacute a concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo As ciecircncias particulares possuem pretensatildeo de
valor universal mas essa universalidade natildeo eacute faacutetica e ldquosua necessidade natildeo eacute causal mas
apenas lsquodeve-serrsquo (sein-solle)Toda proposiccedilatildeo loacutegica eacutetica ou esteacutetica eacute impelida pelo
dever-ser universalrdquo(RESENDE2013p41) e mesmo que sua manifestaccedilatildeo seja
faticamente histoacuterica esse dever-ser da proposiccedilatildeo loacutegica deve ser reconhecido como
universal e incondicionalmente vaacutelido por qualquer ser racional ndash em uma clara assunccedilatildeo
da universalidade moral kantiana mas que agora permeia todos os juiacutezos e natildeo somente
os eacuteticos
Considerando os juiacutezos em funccedilatildeo de sua apreciaccedilatildeo Windelband descreve trecircs
tipos de juiacutezos Os juiacutezos satildeo teoacutericos (segundo a apreciaccedilatildeo verdadeirofalso) juiacutezos de
gosto (segundo a apreciaccedilatildeo belofeio) e os juiacutezos eacuteticos (segundo a apreciaccedilatildeo
bommau) Os fenocircmenos psiacutequicos satildeo as representaccedilotildees neutras em sua manifestaccedilatildeo
Assim como comportamentos da apreciaccedilatildeo os juiacutezos ganham sua forma loacutegica nas
figuras judicativas juiacutezos afirmativos juiacutezos negativos juiacutezos problemaacuteticos Essa uacuteltima
forma suspende a apreciaccedilatildeo mas pela pergunta ndash que natildeo eacute propriamente um juiacutezo-
condiciona a possibilidade de julgar portanto se refere a uma etapa mesmo que preacutevia
agrave tomada de posiccedilatildeo apreciativa
Aqui reside o ponto decisivo enquanto para Windelband a loacutegica claacutessica (de
Aristoacuteteles a Kant) se ocupou dos elementos meramente gramaticais - sendo os juiacutezos
coincidentes com as representaccedilotildees na medida que bastava afirmaacute-las ou negaacute-las - a
apreciaccedilatildeo por sua vez aparece como constituidora do conceito presente nas formaccedilotildees
gramaticais pois dizer algo eacute antes apreciar a sua posiccedilatildeo existencial (com fim ao ideal
da mateacuteria em questatildeo eacutetico esteacutetico etc) de forma a negaacute-las ou afirmaacute-las Em outras
palavras para que o conhecimento seja possiacutevel natildeo eacute suficiente a recepccedilatildeo passiva das
representaccedilotildees mas eacute fundamental uma atividade valorativa que constitui um conceito
31
no reconhecimento de seu conteuacutedo sentido e validade na sua pretensatildeo de necessidade
e universalidade Algo lsquoeacutersquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento e
ldquoa pesquisa desses valores com pretensotildees universais () eacute o objeto de estudo da
filosofiardquo (RESENDE 2013p41) Essa posiccedilatildeo seraacute retomada e desenvolvida por
Rickert
Assim como Windelband Heinrich Rickert (1863-1936) coloca o problema na
forma metodoloacutegica ou seja a pesquisa dos valores como meacutetodo de base para a filosofia
e busca assim determinar o criteacuterio de validade do conhecimento atraveacutes do elemento que
confere sua objetividade ou o que pode ser identificado como o crucial para a diferenccedila
entre os enunciados arbitraacuterios e as proposiccedilotildees vaacutelidas do conhecimento efetivo
elemento que Rickert denomina ldquoobjeto do conhecimentordquo como o tiacutetulo mesmo de sua
obra principal indica ldquoDie Gegenstand der Erkenntnisrdquo (revista em seis ediccedilotildees
diferentes entre 1892 e 1928)
Aprofundando as investigaccedilotildees de seu mestre Rickert difere conceitos
ontoloacutegicos de conceitos axioloacutegicos diferenccedila oculta na linguagem ordinaacuteria e que se
torna clara na observaccedilatildeo acerca da concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo ldquoEnquanto para Kant o
problema eacute a impossibilidade de explicar o fato de como a razatildeo teoacuterica pode ser praacutetica
para Rickert o problema eacute o fato de que a razatildeo jaacute eacute sempre praacutetica em seu uso teoacuterico
purordquo (RESENDE 2013p45) e isto natildeo pelo fato de juiacutezos teoacutericos dependerem da lei
moral mas pela convicccedilatildeo acerca dos conteuacutedos mesmos do conhecimento Se a
representaccedilatildeo satildeo processos psiacutequicos elementares e neutros a convicccedilatildeo soacute eacute possiacutevel
pela razatildeo praacutetica Para melhor visualizaccedilatildeo do problema quando digo ldquoS eacute Prdquo ou ldquoS eacute
um sujeitordquo (e aiacute estaacute tambeacutem seu conceito por exemplo ldquohomemrdquo) ou ainda ldquoP eacute um
predicadordquo (e tambeacutem utilizo um conceito por exemplo ldquoracionalrdquo) o que me autoriza
dizer ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo Segundo Rickert eacute a convicccedilatildeo praacutetica fundada no
sentimento (Gefuumlhl) de ldquovontade de verdaderdquo (Willen zur Wahrheit) que impele a busca
da verdade Eacute esse sentimento que possibilita a tomada de posiccedilatildeo que aprova ou
desaprova expresso por fim em um juiacutezo Somos impelidos pelo dever na medida em
que somos livres a buscar a verdade Mas eacute importante considerar que
ldquoApesar de o sentimento ser o paracircmetro para a tomada de posiccedilatildeo do juiacutezo o
dever natildeo deriva do sentimento pois isso seria derivar o dever do ser O dever
natildeo pode ser confundido com a necessidade causal do sentimento Na verdade
32
na proacutepria constataccedilatildeo do sentimento jaacute estaacute pressuposto o dever () Essa
verdade buscada natildeo eacute uma instacircncia ideal mas apenas um postulado um
inalcanccedilaacutevel ideal absoluto de verdade que funciona como moacutebil da atividade
cientiacutefica dos seres moraisrdquo (RESENDE 2013p46)
A razatildeo praacutetica busca a verdade como sua atividade mais proacutepria a partir do dever
impresso na sua proacutepria liberdade expresso no ato praacutetico de tomada de decisatildeo que
culmina na expressatildeo dos juiacutezos (na razatildeo teoacuterica) Se para Kant a accedilatildeo humana livre eacute
impelida a agir conforme a lei moral para Rickert a accedilatildeo humana em seu querer livre -
nem mecacircnico nem bioloacutegico - de um ideal de perfeiccedilatildeo da verdade eacute impelida a agir em
funccedilatildeo do conhecimento e da ciecircncia
Na tentativa de afastar as interpretaccedilotildees psicologistas ou idealistas (natildeo
cientiacuteficas) de sua teoria o valor de verdade para Rickert que eacute garantido pelo dever-ser
eacute observado na evidecircncia como manifestaccedilatildeo psiacutequica do dever mas que pelo seu caraacuteter
de necessidade ultrapassa o indiviacuteduo singular O sentimento de prazer ou desprazer dessa
evidecircncia na estrutura psiacutequica que posiciona o ato praacutetico de tomada de posiccedilatildeo eacute
reconhecido pela sua necessidade transcendente e eacute o elemento do esquema cognitivo que
ldquoestabelece a ponte entre os processos psiacutequicos reais em sua singularidade e
contingecircncia com a universalidade e necessidade transcendental do deverrdquo (RESENDE
2013p47) Mesmo com essas colocaccedilotildees e sobretudo com a postulaccedilatildeo que o dever natildeo
pode ser derivado do ser pelo seu caraacuteter mesmo de liberdade Rickert foi aproximado de
um certo ldquopsicologismo voluntaristardquo pois o valor de verdade na realidade soacute poderia ser
derivado dos processos psiacutequicos tendo em vista que ldquoo dever eacute uma norma psicoloacutegica
que soacute tem sentido lsquopararsquo um sujeito empiacutericordquo (RESENDE 2013p47) E ainda por
mais que sua meta fosse buscar a universalidade e necessidade dos valores ainda assim
esses valores estariam reduzidos ldquoagrave contingecircncia e temporalidade dos processos
psiacutequicos ou seja reduzindo o valor ao serrdquo (RESENDE 2013p48)
Mas como a filosofia dos valores desses autores lida com as pesquisas histoacutericas
enquanto criacutetica do historicismo Para Windelband as ciecircncias positivas satildeo ciecircncias
nomoteacuteticas ou seja operam por uma abstraccedilatildeo que busca o conhecimento universal
atraveacutes da estabilidade de suas leis Jaacute as ciecircncias histoacutericas satildeo ideograacuteficas cujo juiacutezos
natildeo descrevem uma coisa ou estados de coisa enquanto aquilo que eacute mas possuem como
objeto valores que possuem (ou natildeo) validade Validade oferecida em uacuteltima instacircncia
33
pelo juiacutezo em sua forma fundamental como juiacutezo apreciativo Analisar esses valores
requer uma metodologia proacutepria baseada na pesquisa da valoraccedilatildeo como forma de
conhecimento
Para Rickert a filosofia dos valores eacute o fundamento universal para os significados
da histoacuteria e aqui reside o ponto crucial a busca de um ideal absoluto (vontade de
verdade) deve atuar como medida para a realidade individual e histoacuterica sem a qual natildeo
podemos significar a interpretaccedilatildeo da vida histoacuterica e cultural na sua singularidade A
distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor
(Wert) segundo Rickert levaria a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo
de conceitos (Begriffsbildung) e que natildeo se trata de um conhecimento no campo
ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto pelo conceito determinado de maneira formal no
espaccedilo loacutegico-axioloacutegico
Um evento histoacuterico natildeo possui relevacircncia por si soacute eacute a partir da valoraccedilatildeo que
um fato histoacuterico se ldquodiferencia substancialmente de outros na heterogeneidade contiacutenua
a partir de sua individualidaderdquo (Wu R 2010p180) Ou seja o que doa sentido a um
fato histoacuterico na sua individualidade ndash que se destaca dos fluxos indistintos e
heterogecircneos dos acontecimentos - eacute uma realizaccedilatildeo teoacuterica que o valoriza e lhe confere
sentido A histoacuteria eacute portanto possiacutevel e existe como objeto capaz de ser analisado como
ciecircncia pelos valores atribuiacutedos teoricamente a seus eventos
III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos
A crise no modelo teoacuterico tradicional no final do seacuteculo XIX (que apontava
qualquer teoria filosoacutefica como uma lsquocrenccedila justificadarsquo) a reconduccedilatildeo pelos
psicologistas agrave articulaccedilatildeo de argumentos logicamente coerentes baseados na consciecircncia
particular - em que ateacute mesmo os princiacutepios loacutegicos seriam expressatildeo da forma de
conhecimento possiacutevel pela particularidade daquele que conhece- culminam no projeto
husserliano de uma filosofia pura e sem pressupostos
Para Husserl a psicologia baseada no modelo cientiacutefico das ciecircncias naturais leva
agrave particularizaccedilatildeo dos conteuacutedos do conhecimento e nesse modelo a psicologia natildeo
consegue lidar com a universalidade do conteuacutedo dos princiacutepios tornando a relaccedilatildeo entre
34
a realidade e o conhecimento incompatiacuteveis Por mais que a experiecircncia seja particular
as investigaccedilotildees de Husserl o levaram a considerar que a existecircncia humana estaacute em
contato com conteuacutedos que natildeo satildeo particularizaacuteveis A psicologia natildeo deixa clara a
transiccedilatildeo das conexotildees psicoloacutegicas do pensar e a unidade loacutegica de seu conteuacutedo O que
estaacute em jogo para Husserl eacute portanto a relaccedilatildeo entre a subjetividade do conhecer e a
objetividade do conteuacutedo de pensamento
A predominacircncia neokantiana no horizonte universitaacuterio alematildeo e sua maacutexima de
retorno a Kant mantecircm no interior da investigaccedilatildeo termos como por exemplo
lsquoapercepccedilatildeorsquo e lsquorepresentaccedilatildeorsquo Se o neokantismo se volta a Kant tambeacutem sucumbe a
seus limites e nesse movimento revela a insuficiecircncia da investigaccedilatildeo filosoacutefica
condicionada aos sistemas anteriores Para Husserl a filosofia como ciecircncia autocircnoma
requer natildeo um retorno a qualquer teoria mas agraves coisas que agora devem orientar o
pensamento
A tradiccedilatildeo filosoacutefica eacute marcada por uma pretensatildeo a busca da verdade para aleacutem
do que acontece na realidade dos fenocircmenos que nos satildeo acessiacuteveis Ao hipostasiar a
realidade do ser atraveacutes de posturas realistas ou idealistas para assim ter acesso aos
fenocircmenos a tradiccedilatildeo sempre considerou o ser do fenocircmeno para aleacutem do proacuteprio
fenocircmeno13 De maneira diversa Husserl busca os objetos nos proacuteprios campos
fenomecircnicos na medida em que aparecem na dimensatildeo do conhecimento a partir da
proacutepria atividade de pensamento ou seja o objeto que aparece na atividade de
pensamento soacute eacute encontrado na proacutepria atividade por isso natildeo haacute busca ou hipoacutestase
exterior agrave consciecircncia Mas isso natildeo se daacute porque a consciecircncia em seus atos produza ou
determine os significados dos objetos mas sim porque os atos das vivecircncias abrem espaccedilo
para que o objeto se determine no ato mesmo a partir de sua autonomia frente a qualquer
subjetividade particular de pensamento Mas o que queremos dizer com lsquoum objeto que
se determina no ato mesmorsquo Aqui eacute importante destacar sempre que possiacutevel um mal-
entendido em constante revisatildeo a filosofia de Husserl natildeo consiste em um sistema
fechado de proposiccedilotildees as quais poderiacuteamos encaminhar de forma retiliacutenea e deduzir suas
conclusotildees Aqui nessa breve introduccedilatildeo agraves intenccedilotildees do pensamento de Husserl
apresentamos em linhas gerais seu projeto e nos movimentamos a partir do segundo
13 Cf CASANOVA 2013 pp-76-80
35
volume das Investigaccedilotildees Loacutegicas de 1901 e das Ideacuteias para uma fenomenologia pura e
para uma filosofia fenomenoloacutegica publicadas em 1913
Depois dessas consideraccedilotildees atraveacutes das quais foi posta em jogo a noccedilatildeo de um objeto
que se determina no ato mesmo conforme jaacute explicitado nas Investigaccedilotildees eacute requerido
passar agrave explicaccedilatildeo da noccedilatildeo conforme elaborada na obra posterior Ideacuteias O
pensamento de Husserl eacute marcado por uma orientaccedilatildeo especiacutefica a fenomenoloacutegica Essa
orientaccedilatildeo natildeo desconsidera as vaacuterias formas pelas quais podemos ter acesso a objetos
seja pela vida corrente e cotidiana seja pela via cientiacutefica pois ambas estatildeo de acordo
com a orientaccedilatildeo natural A orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica por sua vez se deteacutem no objeto
intencional ou seja o objeto que visado se manifesta agrave consciecircncia conforme seu modo
de doaccedilatildeo fenomecircnico14 Natildeo se trata de um idealismo subjetivo conforme por exemplo
Berkeley mas de uma necessidade de acesso agraves coisas mesmas sem qualquer
pressuposiccedilatildeo sem qualquer movimento que ponha o conhecimento fora da realidade e
que ao mesmo tempo natildeo recaia na descriccedilatildeo ingecircnua da realidade como um conjunto de
impressotildees sensiacuteveis O fenocircmeno que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute
sempre uma doaccedilatildeo com sentidosignificado ldquopois se eacute verdade que os fenocircmenos se
datildeo a noacutes por intermeacutedio dos sentidos eles se datildeo sempre como dotados de um sentido
ou de uma essecircncia Eis porque () a intuiccedilatildeo seraacute uma intuiccedilatildeo da essecircncia ou do
sentidordquo (DARTIGUES 1973p21)
Ao contraacuterio dos neokantianos o modo como Husserl tratou a realidade tornou
improacuteprio o retorno agraves concepccedilotildees filosoacuteficas anteriores Elas natildeo forneciam mais um
caminho vaacutelido para o questionamento filosoacutefico Natildeo era mais suficiente o retorno a
qualquer sistema filosoacutefico fosse para renovaacute-lo - sob esse novo horizonte cientiacutefico -
fosse para retomar seus fundamentos com a finalidade de posicionar a filosofia como
braccedilo de apoio da ciecircncia A fenomenologia pura (puramente descritiva) pertence agrave
pesquisa de uma teoria do conhecimento objetiva na medida em que o modo de apariccedilatildeo
dos fenocircmenos nas vivecircncias do pensamento e do conhecimento seraacute sempre o objeto da
fenomenologia
14 Cf Ideacuteias I Capiacutetulo I
36
A concepccedilatildeo de fenocircmeno na modernidade ganhou diversas acepccedilotildees desde Bacon
ateacute Wolff passando por Descartes e Hobbes Segundo uma noccedilatildeo do senso comum
fenocircmeno eacute a experiecircncia pura e simples do fato considerada sobretudo como
manifestaccedilatildeo empiacuterica da realidade que natildeo pode ser equiparada agrave verdade15 Jaacute para Kant
- na delimitaccedilatildeo feita na primeira Criacutetica do espaccedilo do saber cientiacutefico possiacutevel -
fenocircmeno eacute o objeto especiacutefico do conhecimento humano que aparece sob condiccedilotildees
particulares da estrutura cognosciacutevel do homem a saber de um lado o objeto do
conhecimento depende das bases representativas que satildeo organizadas pelas categorias do
entendimento e de outro dos dados fornecidos pela sensibilidade Resumindo o objeto
de conhecimento para Kant estaacute delimitado pela relaccedilatildeo entre intuiccedilatildeo e conceito Kant
distingue o fenocircmeno - aquilo que eacute possiacutevel conhecer - do nocircumeno aquilo que natildeo se
conhece mas que pode ser pensado enquanto ideia da razatildeo como ldquocoisa em sirdquo Sem
jamais ultrapassar os dados da experiecircncia o sentido fenomenoloacutegico de fenocircmeno de
Husserl supera a distinccedilatildeo kantiana entre nocircumeno e fenocircmeno O fenocircmeno eacute algo que
manifesto revela em si mesmo seu conteuacutedo loacutegico ou essencial Mas a manifestaccedilatildeo do
fenocircmeno deve ser ldquodepuradardquo de qualquer psicologismo pois natildeo deve apenas ser
considerada como manifestaccedilatildeo particular A investigaccedilatildeo filosoacutefica ou melhor a
investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica aqui eacute exigida como meacutetodo para lsquopurificarrsquo o conteuacutedo
objetivo do ato subjetivo
ldquoO caminho que Husserl busca e comandaraacute ateacute em suas uacuteltimas obras a sua
concepccedilatildeo de fenomenologia eacute uma via meacutedia entre esses dois escolhos como
pensar segundo a sua natureza e em cada uma de suas nuanccedilas ndash e portanto sem
jamais ultrapassaacute-los ndash os dados da experiecircncia em sua totalidade Todo o
fenocircmeno e nada mais que o fenocircmeno poder-se-ia dizer O postulado que funda
tal empresa eacute que o fenocircmeno estaacute penetrado no pensamento de logos e que por
sua vez o logos se expotildee e soacute se expotildee no fenocircmeno Apenas sob essa condiccedilatildeo
eacute possiacutevel uma fenocircmeno-logiardquo (DARTIGUES 1973p20)
Aluno de Brentano Husserl ainda radicaliza a teoria da intencionalidade de seu
professor e natildeo mais considera que a consciecircncia se dirija pelo ato intencional agraves
representaccedilotildees empiacutericas da consciecircncia mas agrave objetividade das proacuteprias coisas
detectaacutevel no ato expressivo Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas Husserl apresenta a consciecircncia
como sempre ldquovoltada ardquo ou seja como uma consciecircncia intencional superando natildeo soacute
a noccedilatildeo de consciecircncia como o lsquolugarrsquo das representaccedilotildees que devem ser organizadas por
15 Cf AbbagnoN 2003 p436 Nesse sentido tambeacutem Cf Heidegger 2006 pp26-27
37
exemplo por aparatos internos a priori como tambeacutem qualquer orientaccedilatildeo psicologista
do conhecimento Se a fenomenologia recorre agrave psicologia eacute apenas para a investigaccedilatildeo
descritiva das vivecircncias intencionais e a psicologia descritiva na medida em que se
configura como descriccedilatildeo empiacuterica (cientiacutefica-natural) natildeo pode ser confundida com a
fenomenologia Esta ao contraacuterio mesmo repousando sobre a investigaccedilatildeo descritiva das
vivecircncias intencionais estrato mesmo da psicologia ainda assim possui como
particularidade a descriccedilatildeo pura excluindo qualquer concepccedilatildeo naturalista16
Mas afinal do que se trata nesta ldquodescriccedilatildeo purardquo Eacute na atividade compreensiva em
geral (descriccedilatildeo das vivecircncias intencionais) que Husserl buscaraacute a origem do
conhecimento na anaacutelise dos atos de constituiccedilatildeo de conhecimento dos objetos que ele
vai procurar descrever os movimentos ideais implicados em todo movimento intencional
As investigaccedilotildees gnosioloacutegicas da loacutegica pura expostas nas Investigaccedilotildees loacutegicas
querem lanccedilar as bases e fundamentos seguros como alternativas agraves teorias do
conhecimento empiristas ceacuteticas metafiacutesico-realista e psicologista pretendendo
fundamentar uma verdadeira teoria do conhecimento a partir da filosofia puramente
cientiacutefica Essa anaacutelise se realiza a partir das expressotildees levando em consideraccedilatildeo o
aspecto loacutegico da vivecircncia
ldquoA Fenomenologia analiacutetica de que o loacutegico necessita para os seus trabalhos de
preparaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo diz respeito entre outras coisas e desde logo agraves
lsquorepresentaccedilotildeesrsquo e mais precisamente agraves representaccedilotildees que satildeo expressas
Nestas complexotildees poreacutem o seu interesse primaacuterio vai para as vivecircncias que
estatildeo na funccedilatildeo de significaccedilatildeo as quais se pensam agraves lsquosimplesrsquo expressotildees No
entanto natildeo se pode descurar tambeacutem o lado linguiacutestico-sensiacutevel da complexatildeo
(aquilo que nela constitui a lsquosimplesrsquo expressatildeo) e o modo do seu entrelaccedilamento
com o ato de significar que o anima Eacute bem sabido quatildeo facilmente a anaacutelise das
significaccedilotildees costuma deixar-se guiar pela anaacutelise gramatical de um modo
completamente inadvertido Certamente que dada a dificuldade da anaacutelise direta
das significaccedilotildees seraacute bem-vindo todo e qualquer meio mesmo que imperfeito
de antecipar indiretamente os seus resultados [as significaccedilotildees que o anima] mas
mais ainda que por causa dessa ajuda positiva a anaacutelise gramatical torna-se
importante pelos enganos que traz consigo quando se substitui agrave anaacutelise
propriamente ditas das significaccedilotildeesrdquo (HUSSERL 2012p11)
16 Cf HusserlE Investigaccedilotildees Loacutegicas VolII Introduccedilatildeo sect 6- Aditamentos ndash 3ordm Aditamento
38
A anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a complexidade da vida
intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo eacute possiacutevel a partir da anaacutelise das estruturas
ideais que se apresentam nas vivecircncias da consciecircncia na forma das expressotildees
significativas E se ldquoos objetos para os quais a Loacutegica pura estaacute voltada satildeo desde logo
dados sob vestes gramaticaisrdquo (HUSSERL 2012p3) eacute porque esses dados satildeo embutidos
nas vivecircncias psiacutequicas concretas que ldquotanto em funccedilatildeo de intenccedilatildeo de significaccedilatildeo como
na do preenchimento de significaccedilatildeo () correspondem a certas expressotildees linguiacutesticas
e formam com elas uma unidade fenomenoloacutegicardquo (HUSSERL 2012p3)
O que estaacute em jogo como tarefa da fenomenologia eacute - a partir da unidade entre
intuiccedilatildeo (atividade da consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da
consciecircncia e o preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor
a unidade fenomenoloacutegica desses atos apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo
e preenchimento de significaccedilatildeo para assim encontrar suas distinccedilotildees ideais presentes na
significaccedilatildeo
ldquoDe fato sempre que se trata de conceitos juiacutezos raciociacutenios a Loacutegica pura tem
que ver exclusivamente com estas unidades ideais que denominamos aqui
significaccedilotildees e na medida em que nos esforccedilamos por extrair a essecircncia ideal das
significaccedilotildees dos seus viacutenculos psicoloacutegicos e gramaticais na medida em que
para aleacutem disso temos em vista clarificar as relaccedilotildees aprioriacutesticas de adequaccedilatildeo
agrave objetividade significativa fundadas nessa essecircncia estamos jaacute no domiacutenio da
Loacutegica purardquo(HUSSERL 2012p76)
Enquanto as ciecircncias se movem em direccedilatildeo agraves vaacuterias regiotildees de objetos na
tentativa de compreensatildeo da realidade do mundo Husserl compreende a orientaccedilatildeo
filosoacutefica como investigaccedilatildeo da possibilidade do conhecimento objetivo E nesse sentido
a filosofia de Husserl permanece nos limites de uma criacutetica ao conhecimento
transcendental sem que seu meacutetodo se comprometa com qualquer perspectiva ontoloacutegica
Natildeo porque negue a realidade externa mas porque a reflexatildeo fenomenoloacutegica segundo
Husserl deveria estar direcionada agrave anaacutelise das unidades significativas (Investigaccedilotildees
loacutegicas) e agrave descriccedilatildeo eideacutetica da consciecircncia (Ideacuteias) com o compromisso de esclarecer
a vivecircncia intencional de forma que assim fosse possiacutevel esclarecer as operaccedilotildees de toda
e qualquer consciecircncia inclusive nossa orientaccedilatildeo preacute-reflexiva natural
O vigor da ideia filosoacutefica de ciecircncia tal como elaborada por Husserl residia na
restriccedilatildeo da investigaccedilatildeo agrave coisa mesma A fenomenologia husserliana se restringiu agraves
39
coisas enquanto somos conscientes delas Portanto sem remeter-se ao primado da
autoconsciecircncia da filosofia moderna ela rompeu com a ideia de representaccedilatildeo e por
consequecircncia de adequaccedilatildeo Pois a consideraccedilatildeo a priori da consciecircncia de um sujeito no
modo de questionamento epistemoloacutegico moderno tradicional trazia consigo um
problema inerente a esta pressuposiccedilatildeo a saber a representaccedilatildeo dos elementos externos
pelo aparato interno do sujeito devia ser a cada vez avaliada em sua validade
epistemoloacutegica em sua adequaccedilatildeo agrave consciecircncia Esse problema derivado da
representaccedilatildeo eacute consequecircncia do modo de considerar o sujeito como outro frente ao
mundo A consequecircncia dessa cisatildeo eacute que as representaccedilotildees internas natildeo seriam
suficientes para confirmar a existecircncia do mundo exterior e incapazes de fornecer
elementos conclusivos acerca dos modos de acesso a esse mundo
Husserl aprendeu com Brentano a atitude de recusa a todo e qualquer pressuposto
Mesmo Brentano considerando as representaccedilotildees como uma das bases da atuaccedilatildeo
psiacutequica indica que ldquoa estrutura baacutesica do psiacutequico o que a toda vivecircncia seja inerente
algo objetual a denomina Brentano inexistecircncia intencional Intentio eacute uma expressatildeo
da escolaacutestica que significa dirigir-se a Brentano fala da inexistecircncia intencional do
objetordquo (HEIDEGGER 2006 p39) Nesse sentido a intencionalidade na fenomenologia
husserliana voltada agrave anaacutelise expressiva e natildeo agraves representaccedilotildees torna a questatildeo do
mundo interior ou exterior secundaacuteria O que estaacute em jogo eacute a orientaccedilatildeo da pesquisa pela
condiccedilatildeo do conhecimento que natildeo exclui o mundo e as orientaccedilotildees naturais A suspensatildeo
do mundo exterior na orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica deve-se ao fato de que nesse tipo de
investigaccedilatildeo natildeo se tem nada a dizer sobre ele E nesse sentido a fenomenologia
husserliana que oferece um novo vigor a filosofia do final do seacuteculo XIX apresenta
tambeacutem seu proacuteprio limite
ldquoEm verdade aquela ideia do conhecimento da essecircncia que deveria renovar o
campo do filosofar aquela anaacutelise descritiva do acircmbito imenso da lsquoconsciecircnciarsquo
que teria de anteceder todo conhecimento cientiacutefico e conter todos os seus
pressupostos a priori tinha um limite para aleacutem do qual nem mesmo a
fenomenologia poderia ultrapassar Mesmo um conhecimento fenomenoloacutegico
consumado de todas as essencialidades- dentre as quais tambeacutem se encontram no
campo moral o reino dos lsquovalores ndash natildeo poderia atingir a realidade efetiva do ente
efetivamente real a realidade efetiva da consciecircncia pensante tanto quanto a
realidade efetiva da experiecircncia que ela faz Por mais que a distinccedilatildeo entre o fato
e a essecircncia tenha demarcado o grande campo de pesquisa da fenomenologia ante
as ciecircncias particulares e liberado um trabalho metodologicamente
autoconsciente a factualidade do factual a facticidade a existecircncia natildeo se mostra
40
apenas como algo derradeiro tardio contingente determinado em termos de
conteuacutedo pela intelecccedilatildeo da essecircncia e abarcado segundo toda a sua determinaccedilatildeo
por ela Ao contraacuterio elas tambeacutem se mostram como algo primeiro algo que se
acha agrave base que natildeo pode ser alijado pelo pensamento que suporta por sua vez
todas as intelecccedilotildees da essecircnciardquo (GADAMER 2012p148)
A reduccedilatildeo fenomenoloacutegica natildeo visa reconduzir os fenocircmenos agrave unidade de um
elemento comum mas reconduzir a consciecircncia aos fenocircmenos que se datildeo por si mesmos
e na medida que assim o faz reconhece a existecircncia da base factual na qual o fenocircmeno
pode vir agrave consciecircncia e como um elefante na sala de estar natildeo pode mais ser ignorada
Em outras palavras a investigaccedilatildeo loacutegica o acesso agrave idealidade loacutegica de toda
significaccedilatildeo baseada - mas natildeo reduzida ndash nos atos das vivecircncias psiacutequicas concretas
aponta em uacuteltima instacircncia (mesmo na tentativa de desvio dessa situaccedilatildeo) para o caraacuteter
histoacuterico ou ocasional daquele que pode intencionar significaccedilotildees Mas Husserl natildeo havia
reconhecido esse problema ao diferenciar as expressotildees flutuantes das significaccedilotildees
ideais jaacute na primeira investigaccedilatildeo loacutegica17 O problema neste caso como aponta
Gadamer estaacute exatamente no agente do ato de pensamento pois a base que natildeo pode ser
afastada e que suporta as intelecccedilotildees da essecircncia estaacute necessariamente remetida agravequele
que na accedilatildeo do ato de intelecccedilatildeo eacute finito e histoacuterico ou seja a direccedilatildeo puramente teoacuterica
da fenomenologia de Husserl natildeo deixa de apontar a condiccedilatildeo histoacuterica daquele que pode
realizar qualquer teoria elemento que vai se tornar decisivo para a fenomenologia de
Heidegger
ldquoA doutrina do juiacutezo e de sua fundamentaccedilatildeo a anaacutelise claacutessica da percepccedilatildeo a
distinccedilatildeo loacutegica entre expressatildeo e significado mas sobretudo tambeacutem aquela
17 No sect26 da I Investigaccedilatildeo Loacutegica ldquoExpressotildees essencialmente ocasionais e expressotildees objetivasrdquo
Husserl analisa significaccedilotildees que podem variar de caso a caso ou significaccedilotildees variantes Ele diferencia as
ldquoexpressotildees essencialmente subjetivas e ocasionaisrdquo (por exemplo ldquoeu desejo sorte a vocecircrdquo ou ldquoisto [aqui
que vejo agora] eacute um catildeordquo) das ldquoexpressotildees objetivasrdquo nas quais o que estaacute em questatildeo eacute o teor sonoro
significativo sem necessidade de se ter agrave vista a pessoa que expressa ou a circunstacircncia da expressatildeo Desde
os paraacutegrafos iniciais da primeira investigaccedilatildeo Husserl se preocupa em indicar que a palavra possui ldquofunccedilatildeo
de significaccedilatildeordquo isso quer dizer que a significaccedilatildeo natildeo eacute sustentada pela palavra mas que ela remete a
significaccedilatildeo agrave coisa mesma e nesse sentido para Husserl a ocasionalidade da expressatildeo natildeo prejudica a
unidade ideal de cada uma das expressotildees Contudo o autor natildeo deixa de reconhecer a esfera das expressotildees
ocasionais referidas ao sujeito e sua especificidade como falante identificadas por determinaccedilotildees como
aqui laacute ontem amanhatilde e ainda construccedilotildees expressivas com artigos definidos Essas expressotildees trazem a
referecircncia ao proacuteprio falante e agrave sua situaccedilatildeo ldquode tal maneira que a significaccedilatildeo autecircntica da palavra se
constitui pela primeira vez com base na respectiva representaccedilatildeo desse lugar Por um lado a significaccedilatildeo
eacute sem duacutevida genericamente conceitual porquanto aqui denomina em geral um lugar enquanto tal mas
a este geral junta-se a representaccedilatildeo direta do lugar variando de caso para caso que sob dadas
circunstacircncias do discurso eacute apontada atraveacutes desta representaccedilatildeo conceitual indicativa do aqui e lhe estaacute
subordinadardquo (HUSSERL 2012 p71)
41
descriccedilatildeo incomparavelmente exata e penetrante da consciecircncia interna do tempo
na qual precisaria se construir todo sentido de duraccedilatildeo e de validade atemporal ndash
todos esses eram temas fenomenoloacutegicos de Husserl que emergiram de um
intuito fundamental puramente teoacuterico e que estavam cindidos por um hiato
ontoloacutegico do ponto de partida de Heidegger da experiecircncia pragmaacutetica da vida
da percepccedilatildeo dirigida pelo significado praacutetico do ente agrave matildeo da temporalidade
do ser-aiacute a temporalidade essa que se tomava como movimento da
existecircnciardquo(GADAMER 2012 p154)
Desse modo Heidegger busca um acesso agrave mostraccedilatildeo dos fenocircmenos a partir da
temporalidade existencial do homem e assim compreender como a significaccedilatildeo de todo
e qualquer ente estaacute remetida agrave facticidade (Faktizitaumlt) daquele ente em que algo como
um fenocircmeno pode vir ao encontro
A partir desta breve apresentaccedilatildeo vamos investigar no proacuteximo capiacutetulo (1) A
criacutetica feita por Heidegger a essas trecircs tentativas de superaccedilatildeo da crise da filosofia no
seacuteculo XIX a) a posiccedilatildeo essencialmente teoacuterica da filosofia dos valores e sua
impossibilidade de se apresentar como filosofia originaacuteria b) ao primado da consciecircncia
em Husserl c) a determinaccedilatildeo metodoloacutegica (teoacuterica) da hermenecircutica de Dilthey
Tentaremos compreender (2) como essa problemaacutetica da virada do seacuteculo XIX para o
seacuteculo XX forneceu os princiacutepios que motivaram o pensamento heideggeriano agrave busca
da filosofia como ciecircncia originaacuteria e a partir da anaacutelise dos limites das ditas teorias a
questatildeo do sentido do conhecimento se mostra articulada com outra questatildeo ainda mais
fundamental o sentido do ser e (3) como a recepccedilatildeo da fenomenologia de Husserl por
Heidegger - considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio do meacutetodo fenomenoloacutegico
como indicativo-formal - evidencia a imersatildeo de todo significado em um contexto
hermenecircutico historicamente dado
42
Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica
Mas a vida captada em sua forma irredutiacutevel jaacute sem ornato ou comentaacuterio meloacutedico vida a que aspiramos como paz no cansaccedilo (natildeo a morte) vida miacutenima essencial um iniacutecio um sono
menos que terra sem calor sem ciecircncia nem ironia o que se possa desejar de menos cruel a vida em que o ar natildeo respirado mas me envolva () Natildeo o morto nem o eterno ou o divino apenas o vivo o pequenino calado indiferente e solitaacuterio vivo Isso eu procuro (Vida Menor Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
No capiacutetulo anterior indicamos que o desenvolvimento das ciecircncias positivas
particulares no final do seacuteculo XIX emerge a discussatildeo acerca do sentido e possibilidade
do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo buscou uma filosofia
propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana a autonomia da filosofia
frente agrave ciecircncia positiva E a contribuiccedilatildeo de Dilthey cujo pensamento mesmo imerso
nas exigecircncias positivistas de seu tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda
interpretaccedilatildeo e apresenta o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico
Acreditamos que percorrendo esse caminho podemos compreender no presente capiacutetulo
como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere Heidegger no interior da referida
discussatildeo pelo sentido do conhecimento18 Mas ao mesmo tempo tentaremos mostrar
18 A inserccedilatildeo de Heidegger na discussatildeo pelo sentido do conhecimento que apontamos aqui eacute diferente da
proposta de Crowell (2001) Grosso modo o argumento central de Crowell que atravessa todo o livro eacute a
negaccedilatildeo de uma ruptura radical da abordagem hermenecircutica de Heidegger ndash inclusive no projeto da
ontologia fundamental de Ser e Tempo - frente agrave fenomenologia transcendental de Husserl Crowell
reconhece que os dois projetos natildeo satildeo idecircnticos no entanto no interior do desenvolvimento de seu
pensamento Heidegger teria dado certa continuidade ao projeto husserliano na medida em que ainda pensa
no caraacuteter cientiacutefico da filosofia fenomenoloacutegica (ver pp 129-132) Nossa intenccedilatildeo natildeo eacute travar uma
polecircmica com Crowell pois perderiacuteamos a centralidade do tema de nossa dissertaccedilatildeo Sobre aquele tema
mais especiacutefico conferir tambeacutem Gadamer Verdade e Meacutetodo [260] que faz referecircncia a ele dizendo que
a problemaacutetica de Ser e Tempo natildeo escapa por completo agrave reflexatildeo transcendental Natildeo temos duacutevida de
que Heidegger estaacute comprometido com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do sentido do
conhecimento na medida em que teve profundo contato natildeo soacute com o pensamento neokantiano ndash sobretudo
atraveacutes de Rickert - mas tambeacutem com a fenomenologia de Husserl Ora ambas as correntes estavam
43
como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva (considerando o modo de concepccedilatildeo
originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal) e a introduccedilatildeo do elemento
hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com Heidegger a pergunta
fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do conhecimento e passou a
ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto o argumento central de
nosso segundo capiacutetulo eacute que a abordagem hermenecircutica de Heidegger que se daacute no
interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do
conhecimento ao sentido do ser
Aqui nos eacute necessaacuteria uma breve consideraccedilatildeo Eacute puacuteblica a preocupaccedilatildeo filosoacutefica
de Heidegger com a ontologia jaacute desde seu contato com o livro de Brentano Percurso
descrito pelo proacuteprio autor em Meu caminho para a fenomenologia (Mein Weg in die
Phaumlnomenologie 1963)
ldquoA partir de algumas indicaccedilotildees extraiacutedas de revistas filosoacuteficas tinha averiguado
que o modo de pensar de Husserl fora bastante influenciado por Franz Brentano
cuja tese de doutoramento intitulada Da muacuteltipla significaccedilatildeo do ente em
Aristoacuteteles (1862) tinha sido justamente desde 1907 o guia e o criteacuterio das
minhas primeiras e desajeitadas tentativas de penetrar na filosofia De uma forma
bastante imprecisa o que me movia era a seguinte reflexatildeo lsquose o ente se diz com
significados muacuteltiplos qual seraacute entatildeo o significado fundamental e condutor O
que significa serrsquordquo (HEIDEGGER 2009 p3)
Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido
de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a
teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo
do sentido de ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir
da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para
uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no
curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER (GA20) 2006 p122)19
o elemento hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave
profundamente engajadas com o problema do conhecimento Nosso argumento central ndash defendido no
primeiro capiacutetulo ndash eacute o de que acontece uma virada A abordagem hermenecircutica de Heidegger faz mudar
a questatildeo pelo sentido do conhecimento para a questatildeo do sentido do ser dos entes em geral Revelando
assim o caraacuteter derivado (de uma situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento Cf STEIN E
2008 4ed pp21-30 19 ldquoLa pregunta por el ser surge de la criacutetica inmanente al curso da la propia investigacioacuten
fenomenoloacutegicaresponder en parte a ella constituye el verdadeiro assunto de estas leccionesrdquo opcit p122
44
fenomenologia que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos
fenocircmenos em seu ser Seraacute essa a direccedilatildeo de nosso capiacutetulo
Nele ainda natildeo entraremos na obra central de nosso trabalho abordaremos algumas
preleccedilotildees entre os anos de 1919 e 192520 para expor como a partir da discussatildeo acerca
do sentido do conhecimento e do lugar proacuteprio agrave filosofia Heidegger se posiciona frente
agraves tentativas de pensamento dos Neokantianos de Dilthey e de Husserl Nossa intenccedilatildeo
natildeo eacute interpretar as referidas preleccedilotildees como processos evolutivos de pensamento de
nosso autor como que para esclarecer em termos de causa e efeito a publicaccedilatildeo posterior
ldquomais madurardquo de Ser e Tempo Mas antes destacar como as questotildees desses textos
acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a problemaacutetica cujo
desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927
I - Os limites da filosofia dos valores
No primeiro semestre do poacutes-guerra num contexto de recuperaccedilatildeo da
normalidade da vida cotidiana que obviamente se estendia ao ensino universitaacuterio ocorre
a preleccedilatildeo A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo (GA5657) tiacutetulo
uma das primeiras liccedilotildees do jovem professor em Friburgo em 1919 as quais pretendiam
desenvolver e solucionar parcialmente a ideia de ciecircncia que persegue uma posiccedilatildeo
metodoloacutegica genuiacutena natildeo desfigurada ou seja natildeo afetada por nenhuma teoria e livre
dos prejuiacutezos herdados Para tanto exigia-se voltar agrave esfera da simples consciecircncia
imediata da vida
ldquoA ideia cientiacutefica perseguida eacute tal que uma vez alcanccedilada uma posiccedilatildeo
metodoloacutegica verdadeiramente genuiacutena somos forccedilados a sair e dar um passo
aleacutem de noacutes mesmos para voltar metodologicamente naquela esfera que sempre
permanece alheia a problemaacutetica da ciecircncia que se pretende fundarrdquo21
(HEIDEGGER (GA5657) 2005p 3)
20 HEIDEGGER GA17 GA 61 GA63 GA 5657 e GA62 As traduccedilotildees utilizadas encontram-se na
bibliografia ao final do trabalho 21 ldquoLa idea cientiacutefica que se persigue es de tal naturaleza que una vez alcanzamos una posicioacuten
metodoloacutegica realmente genuina nos vemos obligados a salir y dar un paso maacutes allaacute de nosotros mismos
para volver metodoloacutegicamente sobre aquella esfera que siempre permanece extrantildea a la problemaacutetica maacutes
propia de la ciencia que se pretende fundarrdquo Opcitp3
45
Essa transformaccedilatildeo do meacutetodo natildeo eacute algo arbitraacuterio ou advindo de uma posiccedilatildeo
filosoacutefica mas ldquose evidencia como uma necessidade que se funda na natureza objetiva do
problema como tal e que responde agrave especiacutefica constituiccedilatildeo dos problemas da ciecircncia em
geralrdquo22 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p3) A ciecircncia e seus modelos teoacutericos
irrompem na consciecircncia imediata da vida e a transformam na medida em que trazem
uma nova atitude da consciecircncia a qual se desenvolve no caraacuteter dinacircmico e moacutevel da
vida do espiacuterito ldquoContudo essa irrupccedilatildeo da ideia de ciecircncia no contexto da consciecircncia
natural da vida soacute se daacute em um sentido primordial e radical no marco de uma filosofia
entendida nos termos de ciecircncia originaacuteriardquo23 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p4)
Aqui eacute possiacutevel observar natildeo apenas o mesmo vocabulaacuterio husserliano mas
tambeacutem a mesma tarefa reconduzir a filosofia ao seu lugar de ciecircncia originaacuteria
diferenciando-se dos outros tipos de ciecircncias (biologia fiacutesica psicologia histoacuteria
antropologia etc) Como indica Jeacutesus Adriaacuten Escudero em sua nota de apresentaccedilatildeo agrave
traduccedilatildeo no texto de 1919 eacute possiacutevel observar a linguagem filosoacutefica dos Neokantianos
de Baden (Windelband e Rickert) de Natorp a linguagem fenomenoloacutegica de Husserl e
talvez as primeiras formulaccedilotildees de uma linguagem proacutepria por exemplo Welten
(mundiar) ou das Wie (O como) Mas para noacutes o decisivo eacute notar que se os princiacutepios
que motivam essa investigaccedilatildeo inserem Heidegger no debate de sua eacutepoca (no contexto
da busca de uma filosofia propriamente cientiacutefica) poreacutem no curso de seu pensamento e
na anaacutelise das posiccedilotildees filosoacuteficas que intentam o mesmo objetivo a abordagem da
filosofia como ciecircncia originaacuteria recoloca a problemaacutetica no aspecto propriamente
hermenecircutico e natildeo teoacuterico da vida Se a filosofia eacute ciecircncia originaacuteria eacute a partir desse
aspecto primaacuterio que ela deve se movimentar
Em A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo o modo de
reconduccedilatildeo a essa originariedade jaacute natildeo obedeceraacute aos mesmos moldes da fenomenologia
husserliana Jaacute nessa primeira liccedilatildeo Heidegger nos propotildee uma reconduccedilatildeo da filosofia
(ao seu lugar basilar de toda e qualquer ciecircncia teoacuterica e derivada) que eacute a reconduccedilatildeo agrave
22 ldquomaacutes bien se evidenciaraacute como una necesidad que se funda en la naturaleza objetiva del problema como
tal y que responde a la especiacutefica constitucioacuten de los problemas de la ciencia en generalrdquo Op cit p3 23 ldquoSin embargo esta irrupcioacuten de la idea de ciencia en el contexto de la conciencia natural de la vida soacutelo
se da en un sentido primordial y radical en el marco de una filosofiacutea entendida en teacuterminos de ciencia
originariardquo Opcitp4
46
vida humana na sua imediatidade como fenocircmeno primaacuterio e fundamental Mesmo que
natildeo estejam aiacute desenvolvidas eacute claro as posiccedilotildees de Ser e Tempo como por exemplo o
ldquoser-em-o mundo em geral como constituiccedilatildeo fundamental do Daseinrdquo teses expostas e
desenvolvidas principalmente nos sect12 e 13 da obra de 1927 jaacute era possiacutevel encontrar
alguns elementos da hermenecircutica da facticidade Em 1919 a direccedilatildeo dada a uma filosofia
era a de que devia ocupar-se da vida e assim a proacutepria renovaccedilatildeo da universidade naquele
contexto de reconstruccedilatildeo do poacutes-guerra ldquoimplica[va] um renascimento da autecircntica
consciecircncia cientiacutefica e de seus laccedilos com a vidardquo24 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p
5) Indicaccedilatildeo que se articula com as liccedilotildees posteriores do autor mas que ganha seu
esclarecimento radical em 1923 no Relatoacuterio Natorp na medida em que a apropriaccedilatildeo da
filosofia aristoteacutelica por Heidegger mostra que a vivecircncia e sua relaccedilatildeo de sentido com
todo ente ocorre na ocupaccedilatildeo praacutetica como condiccedilatildeo primaacuteria de conhecimento com o
mundo condiccedilatildeo essa que coincide com a situaccedilatildeo hermenecircutica de toda ontologia
Antes de expormos as linhas gerais do desenvolvimento do texto eacute necessaacuterio
tentar esclarecer o que Heidegger quer dizer com a expressatildeo ldquoconcepccedilatildeo de mundordquo
(Weltanschauung) Para a filosofia segundo nosso autor visatildeo de mundo cosmovisatildeo
ou concepccedilatildeo de mundo natildeo satildeo termos que funcionam como uma direccedilatildeo de
comportamento no interior do mundo direccedilatildeo essa justificada desenvolvida e capaz de
orientar os seres humanos Tambeacutem natildeo oferecem uma visatildeo teoacuterica geral da histoacuteria e
da realidade a partir da qual as ciecircncias pudessem desenvolver-se Assumindo uma
perspectiva bem geral esses satildeo os problemas das filosofias de Windelband e Rickert (e
em certa medida tambeacutem os de Dilthey) contra os quais Heidegger vai se opor nessa
liccedilatildeo Pois o que aiacute estaacute em jogo natildeo eacute a postulaccedilatildeo teoacuterica do que eacute a vida histoacuterica mas
a compreensatildeo do acircmbito fundamental da realidade imediata da vida que proporciona
algo como ldquovisatildeo de mundordquo E desse modo a relaccedilatildeo entre ldquofilosofiardquo e o ldquoproblema
da concepccedilatildeo de mundordquo na conjunccedilatildeo expressa ldquoerdquo natildeo significa a relaccedilatildeo de duas
esferas diferentes mas sim o mesmo acircmbito pois a concepccedilatildeo de mundo potildee em
evidecircncia a natureza e a busca da filosofia ldquoconcepccedilatildeo de mundo como tarefa da
24 ldquoLa renovacioacuten de la universidad implica un renacimiento de la auteacutentica conciencia cientiacutefica y de sus
lazos con la vidardquo Opcitp5
47
filosofia quer dizer uma consideraccedilatildeo histoacuterica da maneira em que a filosofia resolveu
em cada caso esta tarefardquo25 (HEIDEGGER (GA5657) 2005p9)
Como sugere a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Heidegger considera que a
fundamentaccedilatildeo sem preconceitos da filosofia como ciecircncia originaacuteria deve desenvolver-
se a partir de um processo metodoloacutegico ldquoA ideia de ciecircncia exige implicitamente um
desenvolvimento metodoloacutegico dos problemas e nos coloca a tarefa da explicaccedilatildeo
preliminar do verdadeiro problema [que nos ocupa]26rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005
p6) Essa explicaccedilatildeo se desenvolve natildeo como hipoacutetese a ser demonstrada mas a partir
da anaacutelise das filosofias precedentes e de suas preconcepccedilotildees que podem distorcer o tema
da investigaccedilatildeo como elas se aproximaram da vida e como se relacionam com a noccedilatildeo
de ciecircncia
Como mostramos anteriormente jaacute na escola de Baden influenciado pela filosofia
dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade dos juiacutezos
cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de conciliar
ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) Para a escola de Baden as
leis naturais levam agrave explicaccedilatildeo mas eacute a norma de um valor ideal a condiccedilatildeo de um
pensamento verdadeiro Rickert retoma as consideraccedilotildees de Windelband e potildee o
problema em uma base filosoacutefica radical como instrumento metodoloacutegico Entre os sectsect
de 6 e 9 do texto A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo jaacute esboccedilando
algumas consequecircncias problemaacuteticas Heidegger expotildee os elementos principais das
teorias desses autores E se pergunta se aquele meacutetodo que tem a pretensatildeo de clarificar
a relaccedilatildeo entre filosofia e visatildeo de mundo poderia se tornar um meacutetodo seguro para a
realizaccedilatildeo da filosofia como ciecircncia originaacuteria A partir do sect 10 Heidegger inicia a criacutetica
propriamente dita ao meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico do Neokantismo de Baden Um dos alvos
de sua investigaccedilatildeo foi como a ldquodoaccedilatildeo idealrdquo elemento central do meacutetodo na medida
em que eacute o conteuacutedo com pretensatildeo de necessidade e universalidade dos juiacutezos acaba por
revelar o desconhecimento da problemaacutetica acerca da ciecircncia originaacuteria por essa escola
Para tanto Heidegger faz ldquoa pergunta decisiva quais satildeo as formas e normas necessaacuterias
25 ldquoConcepcioacuten del mundo como tarea de la filosofiacutea es decir una consideracioacuten histoacuterica de la manera en
que la filosofiacutea ha resuelto en cada caso esta tareardquo Opcitp9 26 ldquoLa idea de ciencia exige impliacutecitamente un desarrollo metodoloacutegico de los problemas y nos plantea la
tarea de una explicacioacuten preliminar del verdadero problema [que nos ocupa]rdquo Opcit p6
48
que permitem ao pensamento alcanccedilar a validez universal e assim cumprir o propoacutesito
da verdade27rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p50)
A anaacutelise eacute feita em dois momentos a) Consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo b)
aplicaccedilatildeo do meacutetodo
Para a consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo o importante eacute delinear o aspecto
fundamental que sustenta seus paracircmetros Heidegger aponta que para a escola de Baden
as determinaccedilotildees necessaacuterias do pensamento satildeo aquelas que configuram o pensamento
agrave finalidade ideal (validez universal) como condiccedilatildeo de verdade pois o pensamento com
valor deve responder a um dever-ser Pois bem de posse desse elemento basilar eacute na
aplicaccedilatildeo do meacutetodo que se revelaratildeo os problemas
A aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico consiste em a partir do material
fornecido pelos processos psiacutequicos dirigir a visatildeo ao aspecto ideal do pensamento e a
partir daiacute determinando o proacuteprio material ordenando seus elementos em funccedilatildeo de seu
aspecto ideal Portanto ldquoO nuacutecleo de todo o meacutetodo baseia-se no ideal do pensamento
mais precisamente em trazer agrave presenccedila a doaccedilatildeo do ideal28rdquo (HEIDEGGER (GA5657)
2005 p51) Em suma o ideal eacute normativo e dirige a consciecircncia agrave finalidade do
pensamento
ldquoEstamos aqui perante o mesmo problema da circularidade O meacutetodo criacutetico-
teleoloacutegico afirmaria poder determinar o ideal do pensamento isto eacute a verdade
a partir dos pensamentos verdadeiros no entanto o que tenho ante mim satildeo
pensamentos verdadeiros (ocorrecircncias factuais no mundo) mas natildeo a verdade
pois esta eacute um ideal Por outro lado para ter pensamentos verdadeiros ante mim
eu preciso selecionar entre os pensamentos aqueles que satildeo verdadeiros o que
novamente eu soacute posso fazer se jaacute tenho de antematildeo o ideal a verdaderdquo
(RABELO 2013 p28)
A partir daiacute em seu estilo muitas vezes categoacuterico Heidegger demonstra ser
supeacuterfluo o sentido do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e o acusa de em uacuteltima instacircncia nem
mesmo conseguir esclarecer seus pressupostos deixando obscuras questotildees como ldquoa
doaccedilatildeo ideal possibilita uma relaccedilatildeo de apreciaccedilatildeo e de seleccedilatildeo com o material dado mas
27 ldquoAhora surge la pregunta decisiva iquestcuaacuteles son las formas y normas necesarias que permiten al
pensamiento alcanzar la validez universal y cumplir asiacute con el fin de la verdadrdquo Opcitp50
28 ldquoEl nuacutecleo de todo el meacutetodo descansa en el ideal del pensamiento con mayor precisioacuten en traer a la
presencia la donacioacuten del idealrdquo Opcitp51
49
como trago agrave minha consciecircncia o ideal de pensamentordquo ldquoo que significa validez
universal para esse pensamentordquo ldquoO que significa ser verdadeiro para o pensamento
para que ele seja universalmente vaacutelidordquo Nas palavras de nosso autor
ldquoA anaacutelise estrutural do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico mostra que este meacutetodo
pressupotildee em seu sentido mais proacuteprio e como condiccedilatildeo de sua proacutepria
possibilidade justamente aquilo que deve alcanccedilar Natildeo pode encontrar em si
mesmo seu proacuteprio fundamento posto que o ideal jaacute tem que estar dado como
criteacuterio de valoraccedilatildeo criacutetica da norma para levar a cabo a tarefa impliacutecita no
meacutetodordquo29 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p52)
Se a anaacutelise da natureza e aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico fizeram
despontar a primeira criacutetica acerca de sua impossibilidade Heidegger aprofunda sua
criacutetica tendo em vista o aspecto central de sua liccedilatildeo E portanto aponta o
desconhecimento acerca da problemaacutetica da ciecircncia originaacuteria por essa escola
ldquoJaacute vimos que o movimento do meacutetodo mais exatamente a implementaccedilatildeo do
mesmo inclui o ter presente o ideal o fim o dever-ser O ideal tem
evidentemente um conteuacutedo umas determinaccedilotildees substantivas Contudo eacute um
ideal natildeo eacute um conteuacutedo real e efetivo senatildeo um modo de dever-ser Frente a
todo ser o caraacuteter de obrigatoriedade [inerente ao dever-ser] encerra o momento
da idealidade e da validez supra-empiacuterica Assim pois o conceito do meacutetodo
teleoloacutegico pressupotildee algo mais essencial e algo essencialmente diferente a
doaccedilatildeo do dever ser e se tratando do dever absoluto entatildeo falariacuteamos da
objetividade originaacuteriardquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p53)30
A partir da constataccedilatildeo dessas implicaccedilotildees do meacutetodo Heidegger pergunta qual
eacute o correlato objetivo do dever-ser Em outras palavras qual sua orientaccedilatildeo vital Isso
permanece obscuro e mais ainda que a inclusatildeo do elemento do dever-ser no meacutetodo
aparentemente natildeo se mostre como um vieacutes meramente teoacuterico (na medida em que se
29 ldquoEl anaacutelisis estructural del meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico muestra que este meacutetodo presupone en su sentido
maacutes propio y como condicioacuten de su propia posibilidad justamente aquello que debe conseguir No puede
encontrar en siacute mismo su propio fundamento puesto que el ideal ya tiene que estar dado como criterio de
valoracioacuten criacutetica de la norma para llevar a cabo la tarea impliacutecita en el meacutetodordquo Opcitp52 30 ldquoYa vimos que la puesta en marcha del meacutetodo maacutes exactamente la implementacioacuten del mismo incluye
el tener presente el ideal el fin el deber-ser El ideal tiene evidentemente un contenido unas
determinaciones sustantivas Sin embargo es un ideal no es un contenido real y efectivo sino un modo del
deber- ser Frente a todo ser el caraacutecter de obligatoriedad [inherente al deber-ser] encierra el momento de
la idealidad y de la validez supraempiacuterica Asiacute pues en el concepto del meacutetodo teleoloacutegico se presupone
algo esencialmente maacutes y algo esencialmente diferente la donacioacuten del deber-ser y si se tratara del deber
absoluto entonces hablariacuteamos de la objetualidad originariardquo Opcitp53
50
trata da razatildeo praacutetica) natildeo eacute possiacutevel responder agrave demanda necessaacuteria de uma ciecircncia
originaacuteria pois eacute inconciliaacutevel com a urgecircncia da vida faacutetica
Nesse sentido nos parece que na filosofia criacutetica-transcendental de Rickert o
acesso aos elementos decisivos do meacutetodo em uacuteltima instacircncia eacute realizado a partir das
teorias das ciecircncias positivas Entatildeo a filosofia estaacute obrigada a se posicionar frente agraves
teorias dessas ciecircncias e natildeo propriamente a partir da orientaccedilatildeo vital O
desconhecimento acerca da filosofia como ciecircncia originaacuteria se torna aqui patente pois
ao se revelar que satildeo as teorias dessas ciecircncias que fornecem os elementos para os juiacutezos
valorativos relacionados ao dever-ser a filosofia se torna delas dependente e parece nelas
encontrar ateacute mesmo sua condiccedilatildeo de possibilidade
Heidegger ainda aponta em sua criacutetica um problema que decorre da tentativa de
estabelecer uma relaccedilatildeo entre valor judicativo e dever-ser Para ele na vivecircncia imediata
da vida as relaccedilotildees valorativas natildeo encontram a menor correspondecircncia com o dever-ser
Ouccedilamos as suas palavras
ldquoPela manhatilde entro em meu estuacutedio o sol banha meus livros etc estou alegre
Esta alegria natildeo responde em nenhum caso a um dever-ser A lsquoalegriarsquo como tal
natildeo se oferece a mim em uma vivecircncia marcada pelo dever-ser Devo trabalhar
devo sair para uma caminhada duas motivaccedilotildees duas possiacuteveis razotildees que em
si mesmas natildeo formam parte de meu sentimento de alegria senatildeo que o
pressupotildee Existe portanto um tipo de vivecircncia em que me sinto alegre em que
me daacute algo que tem valor como talrdquo 31(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)
A experiecircncia do valor eacute intransitiva natildeo um juiacutezo mas em seu sentido imanente
ldquoo meacutetodo teleoloacutegico implica indubitavelmente o momento da vivecircncia do dever-serrdquo
(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)32
Ateacute agora o que foi analisado foi o significado do meacutetodo criacutetico- teleoloacutegico e
suas implicaccedilotildees que apontaram para a existecircncia de fenocircmenos mais originaacuterios que
passam desapercebidos aos defensores desse meacutetodo E se o meacutetodo loacutegico-teleoloacutegico
31 ldquoiquestPero se me da todo valor como un deber-ser Evidentemente no Yo experimento las relaciones
valorati- vas sin que intervenga el maacutes miacutenimo momento del deber-ser Por la mantildeana entro en mi estudio
el sol bantildea mis libros etceacutetera estoy alegre Esta alegriacutea no responde en ninguacuten caso a un deber-ser La
laquoalegriacutearaquo como tal no se me da en una vivencia marcada por el deber- ser Debo trabajar debo salir de
paseo dos motivaciones dos posibles razones que en siacute mismas no forman parte de mi sentimiento de
alegriacutea sino que lo pre-supo- nen Existe por tanto un tipo de vivencia en el que me siento alegre en el
que se me da algo que tiene valor como talrdquo Opcitp55 32 ldquoEl meacutetodo teleoloacutegico implica indudablemente el momento de la vivencia del deber-serrdquo Opcitp55
51
estabelece a relaccedilatildeo necessaacuteria entre valor e dever-ser acarretando todas as possiacuteveis
criacuteticas jaacute expostas Heidegger natildeo deixa de reconhecer
ldquoUma coisa eacute evidente Rickert detectou um fenocircmeno significativo quando
identificou o objeto do conhecimento como um dever-ser e o desvencilhou dos
mecanismos psiacutequicos o fenocircmeno da motivaccedilatildeo um fenocircmeno que encontra
seu significado primaacuterio tanto nos problemas do conhecimento como em outros
acircmbitos Uma coisa eacute declarar-algo-como-valor [Fuumlr-Wert-Erklaumlren] e outra
muito distinta eacute tomar-algo-por-um-valor [Wertnehmen] Este tomar-algo-como-
um-valor se pode caracterizar como um fenocircmeno originaacuterio como uma
constituiccedilatildeo da vida em si e para si no entanto o declarar-algo-como-um valor
foi visto como algo derivado algo fundado na esfera teoreacutetica e esse mesmo
fenocircmeno teoreacutetico eacute um elemento constitutivo da vida vivida em si mesma
Pressupotildee levantar o veacuteu teoreacutetico do caraacuteter valorativo como tal A estratificaccedilatildeo
precisa desse fenocircmeno natildeo nos interessa nesse momentordquo
(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p57)33
O que estaacute em jogo aqui eacute a relaccedilatildeo entre verdade e valor pois para Rickert
ldquodistinto do processo psiacutequico real uma ocorrecircncia natural que poderia ser tratada
causalmente destaca-se a legalidade ideal do pensar verdadeiro que se deve obedecer
uma vez que se queira o ideal da verdaderdquo (RABELO 2013 p26) Desse modo algo eacute
capaz de ser analisado como verdadeiro atraveacutes dos valores atribuiacutedos teoricamente
(atraveacutes da anaacutelise do juiacutezo) ao seu material Ou seja a verdade eacute garantida na anaacutelise
judicativa que declara-algo-como-valor Por exemplo a distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na
realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor (Wert) segundo Rickert levaria
a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo de conceitos (Begriffsbildung)
e que natildeo se trata de um conhecimento no campo ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto
pelo conceito determinado de maneira formal no espaccedilo loacutegico-axioloacutegico Portanto
ldquoUma coisa eacute ldquoexplicar por valorrdquo (fuumlr-Wert-erklaumlren) outra eacute ldquotomar-por-valorrdquo
(wertnehmen) O primeiro eacute uma construccedilatildeo teoreacutetica o segundo uma vivecircncia
Estaacute em jogo aqui uma diferenccedila que se insinua na liacutengua alematilde a partir da
33 ldquoRickert detectoacute un fenoacutemeno significativo cuando identificoacute el objeto del conocimiento como un deber-
ser y lo deslindoacute de los mecanismos psiacutequicos el fenoacutemeno de la motivacioacuten un fenoacutemeno que encuentra
su significado primario tanto en el problema del conocimiento como en otros aacutembitos Una cosa es declarar-
algo-como-un-valor [Fuumlr-Wert- Erklaumlren] y otra muy distinta tomar-algo-por-un-valor [Wertnehmen]
Este tomar-algo-por-un-valor se puede caracterizar como un fenoacutemeno originario como una constitucioacuten
de la vida en y para siacute en cambio el decla- rar-algo-como-un-valor se ha de ver como algo derivado como
algo fundado en la esfera teoreacutetica9 y ese mismo fenoacutemeno teoreacutetico es un elemento constitutivo de la vida
vivida en siacute misma Presupone levantar el velo teoreacutetico del caraacutecter valorativo como tal La estratificacioacuten
precisa de este fenoacutemeno no nos interesa en estos momentosrdquo Opcitp57 Essa estratificaccedilatildeo a qual
Heidegger se refere jaacute indica em suas primeiras liccedilotildees o desdobramento posterior acerca da criacutetica agrave
primazia que a filosofia oferece a teoria em detrimento da compreensatildeo praacutetica
52
expressatildeo perceber wahrnehmen literalmente tomar-por-verdadeiro No mesmo
sentido imediato em que aquilo que me aparece na percepccedilatildeo sensiacutevel eacute tomado
como estando aiacute ele mesmo sem a necessidade de uma reflexatildeo aqui quer-se
saber se algo vivenciado eacute no proacuteprio vivenciar tomado como algo valoroso se
eacute experienciado enquanto valoroso ou se posteriormente lhe eacute adicionada esta
referecircncia a valoresrdquo (RABELO 2013 p27)
Desse modo para Rickert verdade e valor judicativo (teoacuterico) se comungam mas
essa comunhatildeo para Heidegger natildeo passa de uma constituiccedilatildeo metodoloacutegica externa e
derivada de uma filosofia teoacuterica Se para Rickert o tomar-algo-como-um-valor natildeo tem
ldquovalor de verdaderdquo como o declarar-algo-como-valor Para Heidegger a verdade do ser
(ser ndashverdadeiro) ou o ldquotomar-por-verdadeirordquo (a vivecircncia) independe do valor e nada
tem a ver com o dever-ser
ldquoDaacute-se o ser-verdadeiro como um valor De maneira alguma e nem se daacute no
segundo caso do juiacutezo histoacuterico [acerca da morte de Napoleatildeo I na ilha de Santa
Elena] Contudo o conteuacutedo objetivo desse juiacutezo tem a forma de um valor no
sentido de [que remete a algo] lsquohistoricamente significativorsquo um novo fenocircmeno
lsquovalorativorsquo que natildeo afeta o ser-verdadeiro como tal ao lanccedilar um papel
metodoloacutegico na constituiccedilatildeo da verdade histoacuterica O ser-verdadeiro (ἀ-λήθεια)
como tal natildeo lsquovalersquo Na alegria como alegria assumo valores na verdade
simplesmente vivo Natildeo apreendo o ser-verdadeiro na e atraveacutes de uma assunccedilatildeo
de valores34rdquo (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p58)
Essas uacuteltimas consideraccedilotildees revelam para Heidegger que o meacutetodo teleoloacutegico
estaacute impregnado de pressuposiccedilotildees pois a cada vez ldquoos fenocircmenos do dever-ser do valor
da assunccedilatildeo de um valor da pergunta se a verdade eacute um valor que descansa em uma
valoraccedilatildeo originaacuteria se fundam em uma determinaccedilatildeo valorativa que se realiza
subsequentementerdquo35 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p62) E essas pressuposiccedilotildees
trazem agrave vista o privileacutegio teoreacutetico dessa filosofia
34 ldquoiquestSe da el ser-verdadero como un valor De ninguna manera y tampoco se da en el segundo caso del
juicio histoacuterico [acerca de la muerte de Napoleoacuten I en la isla de Santa Elena] Sin embargo el contenido
objetivo de este juicio tiene la forma de un valor en el sentido de [que remite a algo] laquohistoacutericamente
significativoraquo un nuevo fenoacutemeno laquovalorativoraquo que no afecta al ser-verdadero como tal si bien juega un
papel metodoloacutegico en la constitucioacuten de la verdad histoacuterica El ser-verdadero (ἀ-λήθεια) como tal no
laquovaleraquo En la alegriacutea como alegriacutea asumo valores en la verdad como verdad simplemente vivo No
aprehendo el ser-verdadero en y a traveacutes de una asuncioacuten de valoresrdquo Opcitp58
35 ldquoAl ampliar el anaacutelisis salieron a escena nuevos presupuestos y pusieron de relieve que el meacutetodo
teleoloacutegico estaacute cargado de presuposiciones los fenoacutemenos del deber-ser de la donacioacuten del deber-ser del
valor de la asuncioacuten de un valor de la pregunta de si la verdad es un valor que descansa en uma valoracioacuten
originaria o de si se funda en una determinacioacuten valorativa que se realiza con lsquoposterioridadrsquordquo Opcitp62
53
ldquoO privileacutegio outorgado ao teoreacutetico repousa na convicccedilatildeo de que o teoreacutetico
representa o estrato baacutesico e fundamental que de alguma maneira funda todas as
esferas restantes Isso se potildee manifesto quando eacute falado por exemplo da
lsquoverdadersquo eacutetica artiacutestica ou religiosa Se diz que o teoreacutetico tem todos os demais
acircmbitos valorativos e eacute capaz de fazer isso na medida em que o teoreacutetico mesmo
se concebe como um valor Eacute necessaacuterio romper este primado do teoacuterico mas natildeo
com a finalidade de proclamar a primazia da praacutetica ou introduzir um outro
elemento que mostra os problemas a partir de uma nova perspectiva mas porque
o teoreacutetico mesmo enquanto tal remete a algo preacute -teoreacuteticordquo 36(HEIDEGGER
(GA5657) 2005 p70)
Para os neokantianos de Baden o ideal absoluto como medida da realidade
empiacuterica como condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do pensamento verdadeiro e ainda como
condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do significado histoacuterico reveste-se da transcendentalidade em
funccedilatildeo do rigor cientiacutefico Para eles o mundo do ser natildeo pode ser confundido com o
mundo do valor pois satildeo os valores como elementos transcendentais que orientam a
constituiccedilatildeo do indiviacuteduo histoacuterico de modo loacutegico A realidade - o espaccedilo ontoloacutegico ndash
estaacute condicionada agrave teoria e em uacuteltima instacircncia o proacuteprio teoreacutetico eacute concebido como
valor Inversatildeo que Heidegger detecta como propriamente afastada do acircmbito imediato
da vida e que como meacutetodo portanto natildeo pode fundar-se como ciecircncia originaacuteria
II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt37 originaacuterio
Diferentemente de Windelband e Rickert que subordinavam a verdade agrave
valoraccedilatildeo em funccedilatildeo do juiacutezo jaacute em 1919 Heidegger indicava a derivaccedilatildeo do teoreacutetico
de uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Apoacutes a investigaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-
36 ldquoAsimismo el privilegio otorgado a lo teoreacutetico reposa en la conviccioacuten de que lo teoreacutetico representa el
estrato baacutesico y fundamental que de alguna manera funda todas las esferas restantes Esto se pone de
manifiesto cuando uno habla por ejemplo de la laquoverdadraquo eacutetica artiacutestica o religiosa Se dice que lo teoreacutetico
tintildee todos los demaacutes aacutembitos valorativos y es capaz de hacer eso en la medida en que lo teoreacutetico mismo
se concibe como un valor Se ha de romper con esta primaciacutea de lo teoreacutetico pero no con el propoacutesito de
proclamar un primado de lo praacutectico o de introducir otro elemento que muestre los problemas desde una
nueva perspectiva sino porque lo teoreacutetico mismo y en cuanto tal remite a algo pre-teoreacuteticordquo Opcitp70
37 Como o verbo ldquodarrdquo em portuguecircs o ldquogebenrdquo em alematildeo pode ser utilizado como verbo bitransitivo no
sentido de dar algo a algueacutem (Ex ldquoIch gebe dir mein Buchrdquo ldquoEu te dou o meu livrordquo) Mas no caso do ldquoes
gibtrdquo eacute utilizado no sentido do verbo ldquohaverrdquo ou ldquoexistirrdquo como por exemplo ldquoEs gibt viele Woumlrter ldquoHaacute
muitas palavrasrdquo ou ldquoExistem muitas palavras) Portanto pensar num ldquoes gibtrdquo originaacuterio eacute referir-se agrave
existecircncia originaacuteria das coisas em outras palavras no modo de aparecimento do que haacute do existente em
seu sentido primaacuterio preacutevio a toda determinaccedilatildeo transitiva possiacutevel nos moldes gramaticais
54
teleoloacutegico em A ideacuteia da filosofia e o problema da visatildeo de mundo o autor apresenta
essa instacircncia primaacuteria como correlata a um ldquoes gibtrdquo originaacuterio haacute e o que haacute eacute mundo
ou melhor um dar-se mundo
Aqui reside a primeira exposiccedilatildeo de nosso argumento A abordagem hermenecircutica
de Heidegger no interior da fenomenologia foi decisiva para o acesso agrave questatildeo do sentido
do ser e no desenvolvimento da referida preleccedilatildeo esse movimento se torna patente
A criacutetica de Heidegger agrave teoria do conhecimento e agraves implicaccedilotildees dessa postura
propriamente teoacuterica em relaccedilatildeo agrave verdade conduz o autor agrave correlaccedilatildeo entre as vivecircncias
e a significaccedilatildeo fenomecircnica como cooriginaacuterias da imersatildeo num mundo que haacute se daacute
existe como mundo circundante As pressuposiccedilotildees da teoria do conhecimento e suas
postulaccedilotildees acerca do ldquosujeitordquo reverberam em uma seacuterie de problemas derivados que
nada dizem acerca das vivecircncias Assim questotildees Como eacute possiacutevel o acesso agrave realidade
exterior Em que medida minha vivecircncia subjetiva alcanccedila a vivecircncia de outro
sujeito Como passar da esfera subjetiva aos dados sensoriais do mundo Como
passar da esfera subjetiva ao conhecimento objetivo satildeo problematizaccedilotildees derivadas
da primazia teoacuterica dada pela filosofia e pelas ciecircncias que ignoram por completo que o
viver do mundo circundante natildeo eacute uma contingecircncia () somente em ocasiotildees
excepcionais estamos instalados em uma atitude teoreacutetica38 (HEIDEGGER(GA5657)
2005 p106)
Lembremos que o que estaacute em questatildeo nessa preleccedilatildeo eacute em que medida a filosofia
pode ser considerada como ciecircncia originaacuteria e qual eacute o seu modo de relaccedilatildeo com a visatildeo
de mundo Nesse sentido a filosofia se mostra como aquela ciecircncia que deve se afastar de
qualquer posiccedilatildeo preacutevia e assim dizer que o viver do mundo circundante natildeo eacute uma
contingecircncia eacute reconhecer aquilo que todo posicionamento teoacuterico quer a cada vez
afastar mas eacute em uacuteltima medida a condiccedilatildeo de possibilidade de sua proacutepria realizaccedilatildeo
teoacuterica Com outras palavras a possibilidade do conhecimento estaacute imersa em bases que
natildeo satildeo elas proacuteprias teoacutericas E nesse sentido quando uma ou outra teoria filosoacutefica
pretende investigar a possibilidade do conhecimento partindo de pressuposiccedilotildees teoacutericas
38 ldquoEl vivir del mundo circundante no es una contingencia sino que radica en la esencia de la vida en y para
siacute por el contrario soacutelo en ocasiones excepcionales estamos instalados en una actitud teoreacuteticardquo
Opcitp106
55
acaba por afundar-se em falsos problemas como ldquoa realidade do mundordquo e ldquoo acesso a
essa realidaderdquo Discussotildees vazias pois o mundo em sua realidade histoacuterica eacute o dar-se
originaacuterio e prescinde de toda e qualquer teorizaccedilatildeo
Na leitura de Heidegger o neokantismo decompotildee o acircmbito originaacuterio da
vivecircncia em conceitos teoacutericos que natildeo formam mais uma totalidade pois a
desvivifica transformando-a num objeto a-histoacuterico e portanto sem significado
O mundar (welten) soacute eacute apreensiacutevel pela visatildeo fenomenoloacutegica que ainda natildeo estaacute
contaminada pelos pressupostos teoreacuteticos que tornam essa experiecircncia uma
relaccedilatildeo objetificante () Heidegger se contrapotildee agrave metodologia teoreacutetica que
pretende objetificar e descrever as vivecircncias mas compreender e apreender as
conexotildees de significado em que jaacute se estaacute submerso A fenomenologia pretende
manifestar isso que se daacute em um soacute golpe o mundo circundante (Umweltliche)
caracteriacutestico do vivenciar primordial(WU R2010 p185)
Mas se a compartimentaccedilatildeo da realidade realizada pelas teorias filosoacuteficas recai
em discussotildees vazias e a vivecircncia primordial prescinde de conceitos teoacutericos isso natildeo
apontaria para um empirismo ou um realismo como possibilidades da filosofia A
filosofia eacute ainda busca e busca originaacuteria Nesse sentido o acesso fenomenoloacutegico ao
mundo circundante orientado pela proacutepria coisa na intuiccedilatildeo imediata eacute para Heidegger
o modo de abrir ldquocientificamenterdquo a esfera da vivecircncia resguardando a orientaccedilatildeo agrave vida
sem qualquer teoria preacutevia
O rigor da cientificidade cultivada na fenomenologia cobra sentido a partir
dessa atitude fundamental e natildeo se pode comparar com o rigor das ciecircncias
derivadas e natildeo originaacuterias Ao mesmo tempo resulta claro porque o problema do
meacutetodo joga um papel central na fenomenologia como em nenhuma outra ciecircncia
() Para o problema que nos ocupa a atitude fundamental da fenomenologia
aponta em uma direccedilatildeo decisiva natildeo construir um meacutetodo desde fora ou desde
acima natildeo idear um novo caminho teoreacutetico por meio de reflexotildees dialeacuteticasrdquo39
(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p133)
Desde o iniacutecio da preleccedilatildeo Heidegger estaacute em busca de um meacutetodo capaz de
alcanccedilar o primaacuterio que estaria na base de qualquer conhecimento Nesse sentido a
39 ldquoEl laquorigorraquo de la cientificidad cultivada en la fenomenologiacutea cobra sentido a partir de esta actitud
fundamental y no se puede comparar con el laquorigorraquo de las ciencias derivadas y no originarias Al mismo
tiempo resulta claro por queacute el problema del meacutetodo juega un papel tan central en la fenomenologiacutea como
en ninguna otra ciencia (Por esta razoacuten todo este curso gira realmente en torno a un problema
metodoloacutegico) Para el problema que nos ocupa la actitud fundamental de la fenomenologiacutea apunta en una
direccioacuten decisiva no construir un meacutetodo desde fuera o desde arriba no idear un nuevo camino teoreacutetico
por medio de reflexiones dialeacutecticasrdquo Opcit p133
56
fenomenologia como retorno agraves coisas mesmas se volta ao dar-se originaacuterio das coisas e
eacute atraveacutes delas que o meacutetodo pode vir a ser desenvolvido Ainda em 1919 natildeo foi exposta
em linhas precisas a fenomenologia como meacutetodo indicativo-formal elemento decisivo
no interior da fenomenologia-hermenecircutica de Heidegger O que iremos abordar mais
adiante
A tentativa de orientar-se pelo dado na vivecircncia pelo que eacute como eacute no mundo
circundante se afasta portanto de qualquer objetificaccedilatildeo A fenomenologia como
meacutetodo eacute a possibilidade de compreensatildeo dos significados que nos vem ao encontro no
mundo circundante e histoacuterico no qual jaacute se estaacute sempre imerso Mas se Heidegger
apresenta a fenomenologia como o meacutetodo que alcanccedila o que vem ao encontro sem
qualquer preacutevia teoria esse acesso natildeo se daacute segundo os mesmos paracircmetros de seu
mestre Husserl
Como vimos na fenomenologia husserliana o modo de aparecimento do
fenocircmeno eacute sempre uma doaccedilatildeo de significado mas o acesso aos fenocircmenos eacute sempre a
partir da anaacutelise dos atos intencionais das vivecircncias na consciecircncia Heidegger recusa o
pressuposto da consciecircncia e pretende que a doaccedilatildeo significativa seja originaacuteria da
vivecircncia imersa no mundo No uacuteltimo momento da preleccedilatildeo de 1919 o autor apresenta
o que seria cooriginaacuteria de qualquer orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica e base de qualquer
ciecircncia teoacuterica a intuiccedilatildeo hermenecircutica Assim a vivecircncia que se apropria do vivido eacute
a intuiccedilatildeo compreensiva a intuiccedilatildeo hermenecircutica () A universalidade do significado
das palavras assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia
vivida40 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 pp141-142) Ou seja a significaccedilatildeo
gramaticalmente revestida natildeo aponta para algo essencial apreendido no ato de
consciecircncia (como compreende Husserl) mas a significaccedilatildeo vivida no mundo
circundante
O princiacutepio dos princiacutepios husserlianos tudo o que se daacute originariamente na
intuiccedilatildeo [] haacute que tomaacute-lo simplesmente como se daacute (Husserl Ideen apud Heidegger
40 ldquoLa vivencia que se apropia de lo vivido es la intuicioacuten comprensiva la intuicioacuten hermeneacuteutica la
formacioacuten originariamente fenomenoloacutegica que vuelve hacia atraacutes mediante retroconceptos y que se
anticipa con ayuda de preconceptos y de la que queda excluida toda posicioacuten teoreacutetico-objetivante y
trascendente La universalidad del significado de las palabras sentildeala primariamente algo originario el
caraacutecter mundano de la vivencia vividardquo Opcitpp141142
57
(GA5657) 2005 p132) eacute dado no interior das conexotildees de significados no es gibt
originaacuterio no mundo que se daacute cooriginariamente agraves proacuteprias vivecircncias
Para Heidegger o uacutenico modo de apreender essa vivecircncia originaacuteria eacute retroceder
ao preacute-teoacuterico por uma abordagem fenomenoloacutegica que faz com que o mundar
do mundo se manifeste enquanto tal Alguns anos mais tarde isso constituiria o
nuacutecleo da ontologia fundamental na perspectiva da temporalidade cujo objetivo
de criacutetica natildeo seria mais de maneira tatildeo detida o neokantismo de Windelband e
Rickert mas a totalidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica da filosofia(WuR2010 p186)
Tendo em vista o ponto central da preleccedilatildeo aqui examinada eacute imprescindiacutevel
notar que em 1919 Heidegger estava debatendo com os problemas de seu tempo a
possibilidade do conhecimento o lugar da filosofia diante da autonomia das ciecircncias
particulares e a articulaccedilatildeo dessa problemaacutetica com a Lebensphilosophie Se ainda natildeo
haacute explicitamente a questatildeo do sentido de ser em geral a preleccedilatildeo possui elementos
decisivos para o desenvolvimento da ontologia fundamental O que queremos enfatizar eacute
como o modo de apariccedilatildeo dos fenocircmenos em seu significado prescinde de toda e qualquer
teorizaccedilatildeo Essa caracteriacutestica fundamental vai permanecer vigente nos desdobramentos
futuros do pensamento de Heidegger e vai se mostrar a cada vez mais intimamente
relacionada agrave ambiccedilatildeo heideggeriana de superar os pressupostos da tradiccedilatildeo filosoacutefica
moderna
ldquoA pergunta acerca da realidade do mundo externo deriva em parte de uma
compreensatildeo superficial da filosofia kantiana ou de outro modo de reflexotildees
colocadas por Descartes Eacute uma questatildeo que em todo momento de modo mais ou
menos expresso ocupou a teoria do conhecimento da modernidade assegurando-
se sempre contudo que naturalmente ningueacutem duvida da realidade do mundo
externo Pois o que nela sempre se daacute por suposto eacute que essa realidade essa
mundanidade do mundo eacute no fundo algo que talvez possa demonstrar-se ou
mais exatamente no caso de nos encontrarmos em condiccedilotildees ideais ao final
haviacuteamos demostrado [essa realidade] E contudo o ser-real do mundo natildeo soacute
natildeo necessita ser demosntrado nem sequer eacute algo que na falta de provas
rigorosas por isso deva ser unicamente objeto de crenccedilardquo41( HEIDEGGER
(GA20) 2006 p270)
41 ldquoLa pregunta acerca de la realidad del mundo externo se deriva en parte de uma comprensioacuten superficial
de la filosofia kantiana o mejor dicho de reflexiones que Descartes planteoacute Es uma cuestiacuteon que en todo
momento de modo maacutes o menos expreso ha ocupado a la teoriacutea del conocimiento de la modernidad
aseguraacutendose siempre no obstante de que naturalmente nadie dudara de la realidade del mundo externo
Pues lo que em ella se da por supuesto es que esa realidad esa mundanidad del mundo es em fondo algo
que quizaacute pueda demostrarse o maacutes exactamente es en caso de que nos encontraacuteramos em condiciones
ideales al final habriacuteamos demostrado Y sin embargo el ser-real del mundo no soacutelo no necessita ser
demostrado ni siquiera es algo que a falta de pruebas rigorosas por eso deba ser unicamente objeto de
creenciardquo Opcitp270
58
Assim a partir dessas consideraccedilotildees eacute possiacutevel indicar que a questatildeo do sentido
do ser em geral ou numa palavra a ldquoontologiardquo para Heidegger pode vir a ser atingida
quando se revela que a fenomenologia natildeo estaacute fundada na epistemologia (a partir da
consciecircncia) e que a hermenecircutica natildeo eacute apenas um instrumento metodoloacutegico de acesso
agrave histoacuteria em sua objetividade O que Heidegger pretende exprimir com o termo ldquointuiccedilatildeo
hermenecircuticardquo eacute a possibilidade de uma compreensatildeo imediata do mundo a qual natildeo estaacute
fundada nas vivecircncias subjetivas O es gibt originaacuterio eacute o mundo que se daacute como campo
hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Com outras palavras natildeo haacute
significados ideais eles aparecem a partir da situaccedilatildeo hermenecircutica compartilhada entre
os homens campo que chamamos de mundo e a compreensatildeo desse campo natildeo eacute
tributaacuteria das vivecircncias psiacutequicas Para tanto eacute preciso esclarecer como Heidegger supera
a consciecircncia husserliana enquanto lugar de apariccedilatildeo dos fenocircmenos e tambeacutem como a
noccedilatildeo heideggeriana de ldquointuiccedilatildeo hermenecircuticardquo pretende superar a vivecircncia psiacutequica de
Dilthey como categoria epistemoloacutegica fundamental Chegamos ao ponto onde se torna
necessaacuterio compreender mais detidamente a apropriaccedilatildeo de Heidegger da hermenecircutica
diltheyniana e da fenomenologia husserliana
II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger
Seguindo inicialmente as indicaccedilotildees expressas no primeiro curso proferido por
Heidegger em Marburg (inverno de 1923-1924) Introduccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo
fenomenoloacutegica (GA17) eacute possiacutevel observar a tentativa do autor de compreender a
fenomenologia como fenomenologia da existecircncia e assim se apropriar de maneira mais
originaacuteria da investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica
O curso se inicia com a interpretaccedilatildeo - mantida em seus principais elementos no
sect7 de Ser e Tempo - dos conceitos de fenocircmeno (φαινόμενον) e loacutegos (λόγος) em
Aristoacuteteles para assim pocircr em evidecircncia a interpretaccedilatildeo segundo a qual nos escritos do
filoacutesofo grego esses conceitos indicam a direccedilatildeo do pensamento e da investigaccedilatildeo
filosoacutefica para o ser do homem como ser-no-mundo
59
A perceptibilidade das coisas estaacute sob a condiccedilatildeo de um determinado ser deste
mundo mesmo O ser condiccedilatildeo se refere a um modo de ser do mundo mesmo Agrave
existecircncia no mundo pertence o ser subsistente do Sol justamente o que
pensamos quando afirmamos eacute de dia Desta forma falamos de um estado de
coisas que pertence ao ser do mundo mesmo Daiacute se segue que φαινόμενον natildeo
quer dizer em primeiro lugar nada mais que um destacado modo de presenccedila do
enterdquo42 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30)
Ainda seguindo a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles Heidegger diz que o conceito de
fenocircmeno na medida em que designa tudo o que mostra a si mesmo natildeo pode ser
reduzido ao que estaacute na presenccedila do dia ou seja que existem coisas que satildeo visiacuteveis na
obscuridade pois o que se mostra a si mesmo se mostra tanto na claridade como na
obscuridade43 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30) Para explicitar essa posiccedilatildeo o autor
recorre agraves categorias aristoteacutelicas essenciais do ente em ato e do ente em potecircncia (ogravev
ἐντελέχεια ogravev δύναμις) A obscuridade torna-se tambeacutem positiva a partir da
compreensatildeo dessas categorias em relaccedilatildeo ao fenocircmeno pois o ser da obscuridade
consiste em ser claridade possiacutevel44 (HEIDEGGER (GA17)2006 p31)
A originalidade do ver em Aristoacuteteles se mostra em natildeo se deixar enganar pelo
fato de que para as coisas que somente a noite deixa ver natildeo haacute nenhum nome
que as compreenda todas () O que importa eacute somente que essas coisas existam
aiacute elas satildeo vistas e sobre a base de seu conteuacutedo quiditativo tecircm a pretensatildeo de
serem tomadas por existentes Mas que falte um nome para essas coisas mostra
contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia45
(HEIDEGGER (GA17) 2006p31)
42 ldquoLa perceptibilidad de las cosas estaacute bajo la condicioacuten de un determinado ser de este mundo mismo El
ser condicioacuten se refiere a un modo de ser del mundo mismo A la existencia en el mundo pertenece el ser
subsistente del Sol justamente lo que mentamos cuando afirmamos es de diacutea De esta forma hablamos de
un estado de cosas que pertenece al ser del mundo mismo De aquiacute se sigue que φαινόμενον no quiere decir
en primer lugar nada maacutes que un destacado modo de presencia del enterdquo Op cit p30
43 ldquoEl concepto de φαινόμενον no estaacute limitado a la presencia de las cosas durante el diacutea va maacutes allaacute y
designa todo lo que se muestra em siacute mismo tanto se muestra en la claridad como en la oscuridadrdquo Op
citp30
44 ldquoEl ser de la oscuridad consiste en ser claridade posiblerdquo Opcitp31 45 ldquoLa originaridad del ver en Aristoacuteteles se muestra en que no se deja enganatilder por el hecho de que para las
cosas que soacutelo la noche deja ver no hay ninguacuten nombre que las comprenda a todas (por tanto para las
lucieacuternagas etc) () Lo que le importa es soacutelo que esas cosas existen ahiacute se las ve y sobre la base de su
contenido quiditativo tienen la pretensiacuteon de ser tomadas por existentes Pero que falte um nombre para
esas cosas muestra com todo que nuestra lengua (teoria de las categorias) es uma lengua del diacuteardquo
Opcitp32
60
Para compreendermos o que Heidegger trata nessa passagem eacute fundamental
relembrar a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica que indica algo crucial agrave nossa investigaccedilatildeo o
significado natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua
mostraccedilatildeo Para Husserl a anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a
complexidade da vida intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel a partir
da anaacutelise das estruturas ideais que se apresentam na forma das expressotildees significativas
revestidas gramaticalmente Jaacute para Heidegger parece natildeo haver uma estabilidade
significativa ideal Em outras palavras e como vimos no toacutepico anterior as significaccedilotildees
vecircm ao encontro a partir de sua mostraccedilatildeo intencionadas em meio agrave compreensatildeo
hermenecircutica do mundo circundante por isso as estruturas ideais buscadas por Husserl
a partir da atividade intencional da consciecircncia devem ser revistas em funccedilatildeo da
possibilidade hermenecircutica do mundo circundante A veste gramatical das significaccedilotildees
natildeo pode subordinar o que vem ao encontro no dar-se originaacuterio do mundo quer em
funccedilatildeo de uma linguagem que almeja a cada vez fixar categorialmente o que se mostra
quer em funccedilatildeo de qualquer idealidade essencial pressuposta E assim para Heidegger o
conceito de loacutegos em Aristoacuteteles revela um sentido mais originaacuterio
Um λόγος existe pois quando o falar eacute falar com o mundo existente Ao dizer
forno [Ofen] natildeo falo a partir de uma existecircncia [Dasein] senatildeo que mas bem
me ponho fora da existecircncia [Dasein] do mundo concreto penso algo mas para
esse pensar natildeo desempenha nenhum papel que existam fornos [Oumlfen] ou natildeo
Falar eacute um ser com o mundo eacute algo originaacuterio e se daacute antes dos juiacutezos A partir
daqui se torna compreensiacutevel o juiacutezo Na loacutegica eacute comum considerar como juiacutezos
palavras como fogo () De modo algum o λόγος implica uma pluralidade de
palavras A palavra originaacuteria eacute um nomear mas natildeo eacute um nomear de um mero
nome mas bem o dirigir-se com a fala a algo que se encontra no mundo tal como
se encontra46(HEIDEGGER (GA17) 2006 p39)
46 ldquoUn λόγος existe pues cuando el hablar es um hablar con el mundo existente Al decir lsquohornorsquo no hablo
desde una existencia sino que maacutes bien me pongo fuera de la existencia del mundo concreto miento algo
pero para este mentar no desempentildea ninguacuten papel el que haya hornos o no Hablar es un ser con el mundo
es algo originaacuterio y se da antes que los juicios A partir de aquiacute se vuelve compreensible el juicio En la
loacutegica es tradiciacuteon considerar como juicios palabras como lsquofuegorsquo (De ninguna manera se establece con
ello soacutelo la existencia [Dasein] del fuego sino tambiacuteen que la gente debe saltar de la cama) Em modo
algun el λόγος implica una pluralidad de palabras La palabra originaria era un nombrar pero no el nombrar
de un mero nombre maacutes bien el dirigirse con el habla a algo que se encuentra en el mundo tal como se lo
encuentrardquo Op cit p39 A palavra Dasein nesse trecho ainda natildeo parece se referir ao homem como ldquoser-aiacuterdquo mas usada no
significado tradicional da liacutengua alematilde compreendida como ldquoexistecircnciardquo pois Heidegger nos fala da
ldquoexistecircnciardquo do lsquofornorsquordquo existecircnciardquo do lsquofogorsquo
61
O nomear originaacuterio do loacutegos natildeo eacute como a significaccedilatildeo expressa pela linguagem
que recolhe o ente sob determinado aspecto em seu εἶδος (Cf HEIDEGGER (GA17)
2006 p43) Loacutegos eacute loacutegos apofacircntico (λόγος αποφατικός) eacute o mostrar do fenocircmeno a
respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que se mostra como algo de maneira indiferenciada
natildeo determinada Assim o significado mediante o λόγος eacute caracterizado como existindo
O significado mediante o nome eacute um mero mencionar em sentido formal no λόγος o
significado eacute o mostrar o existente como existente47(HEIDEGGER (GA17) 2006p41)
Esse mostrar do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes
sempre em meio a um campo hermenecircutico e assim cada significado proacuteprio ou
determinado do ente que se mostra refere-se ao que significa em relaccedilotildees com os outros
entes relaccedilatildeo anterior a qualquer experiecircncia predicativa
O modelo tradicional da hermenecircutica como meacutetodo interpretativo vinculado agrave
filologia e ao formato da linguagem escrita se altera e torna-se com Heidegger a
investigaccedilatildeo acerca da proacutepria interpretaccedilatildeo da mostraccedilatildeo de todos os entes como uma
praacutetica viva que remete ao ser dos entes em seu aparecer como ente Hermes o
mensageiro dos deuses agora eacute mensageiro da situaccedilatildeo interpretativa na medida em que
o ser dos entes se mostra aos homens no interior de suas vivecircncias imediata A
interpretaccedilatildeo de algo eacute dada mediante a escuta cuidadosa da mensagem dinacircmica que se
realiza no diaacutelogo entre os homens natildeo eacute mais algo inerte fixo a ser encontrado O λόγος
na fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν E assim ao contraacuterio
da tradiccedilatildeo filosoacutefica que identificou o loacutegos como a expressatildeo ajuizante possiacutevel atraveacutes
da ratio (ou o dizer as modalidades dos entes atraveacutes de palavras e sequecircncia de palavras
organizando-as como sujeito e predicado no juiacutezo predicativo) Heidegger interpreta o
sentido originaacuterio de loacutegos apofacircntico como condiccedilatildeo de possibilidade para a
significaccedilatildeo Esse aspecto eacute assim descrito por Gadamer
Heidegger recorreu a uma etimologia para a palavra logos ela designa a seleccedilatildeo
posicionadorardquo () Loacutegos eacute realmente o posicionar seletivo legein significa
seleccedilatildeo selecionar conjuntamente reunir de tal modo que tudo se decirc como
bagos da videira reunidos e protegidos como a colheita O que eacute assim reunido
da seleccedilatildeo natildeo satildeo certamente apenas as palavras que formam a proposiccedilatildeo Cada
palavra ela mesma jaacute eacute de tal modo que nela muitas coisas satildeo reunidas - na
47ldquoLo significado mediante el λόγος es caracterizado como existiendo Lo significado mediante el nombre
es un mero mencionar el sentido formal en el λόγος lo significado es el mostrar lo existente como
existenterdquo Opcitp41
62
unidade do eidos como diraacute Platatildeo quando ele questiona o eidos com vista ao
logos (GADAMER 2012p528)
O sentido originaacuterio de loacutegos como loacutegos apofacircntico estaacute estritamente
relacionado com o sentido originaacuterio de fenocircmeno A tradiccedilatildeo latina traduziu loacutegos
interpretando-o como razatildeo juiacutezo conceito definiccedilatildeo ou proposiccedilatildeo Poreacutem em grego
logos natildeo significa primariamente juiacutezo entendido como modo de uniatildeo ou de tomada
de posiccedilatildeo seja pela aceitaccedilatildeo ou negaccedilatildeo Logos reporta-se agrave palavra legein tornar
manifesto aquilo de que se fala num discurso Por isso deixa que algo seja visto
comunicando a outro o que eacute manifestado e assim ldquoas posiccedilotildees individuais satildeo
penetradas pela tendecircncia a significar de um λέγειν assim que aspira a manifestar uma
determinada situaccedilatildeo objetiva Natildeo se chega ao λόγος se quiser comeccedilar com o mero
nomear A funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar48rdquo (HEIDEGGER (GA17)
2006 p43) Mas o que se manifesta O fenocircmeno (φαινόμενον) aquilo que se mostra a
si mesmo
A interpretaccedilatildeo da palavra φαινόμενον realizada por Heidegger no primeiro curso
proferido em Marburg indica inicialmente a existecircncia do mundo na medida em que ele
se mostrar a si mesmo49 como orientaccedilatildeo do horizonte temaacutetico da fenomenologia Em
1925 no curso Prolegocircmenos para uma histoacuteria ao conceito de tempo (GA20) o
esclarecimento do sentido originaacuterio do conceito de fenocircmeno seraacute elaborado conforme
o sentido encontrado tambeacutem em Ser e Tempo sect7 Φαινόμενον eacute o particiacutepio (forma
nominal do verbo) de φαίνεισθαι que como voz meacutedia50 significa mostrar-se e no
48 ldquoLas posiciones individuales estaacuten penetradas por la tendencia a significar de un λέγειν asiacute que aspira a
manifestar una determinada situacioacuten objetiva No se llega al λόγος si se quisiera comezar com el mero
nombrar La funcioacuten originaria de significaciacuteon es el manifestarrdquo Opcitp43
49 CfHeidegger (GA17) 2006p61
50 Um esclarecimento sobre a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito de
fenocircmeno por conseguinte da noccedilatildeo de fenomenologia Obviamente natildeo podemos aprofundar-nos nesse
complexo recurso gramatical que exigiria anos de estudos e profundo conhecimento da liacutengua helecircnica
Iremos apenas indicar sua especificidade A estrutura das vozes verbais na liacutengua portuguesa eacute constituiacuteda
de 3 possibilidades a ativa a passiva e a reflexiva Algumas Gramaacuteticas sugerem uma proximidade entre
a voz meacutedia grega e a voz reflexiva no portuguecircs contudo a voz meacutedia natildeo se esgota nessa comparaccedilatildeo
Seguimos a orientaccedilatildeo de Caio Vieira Reis de Camargo (2013) que em seu artigo reuacutene definiccedilotildees
importantes para os estudos linguiacutesticos contemporacircneos acerca da voz meacutedia
ldquoa) lsquoA voz meacutedia denota que o sujeito estaacute de alguma maneira especial envolvido ou interessado na accedilatildeo
do verborsquo (GILDERSLEEVE 1900 p64) b) lsquoVerbos () que tecircm posiccedilatildeo na esfera do Sujeito nos quais
o Sujeito todo parece participanteimplicadorsquo (BRUGMANNB 1903 p104) c) lsquoNa voz ativa os verbos
63
particiacutepio o que se mostra O aparecer o mostrar do fenocircmeno estaacute relacionado com a
raiz de φαίνω φῶς em portuguecircs luz claridade Assim ldquoos φαινόμενα configuram a
totalidade do que se mostra o que os gregos simplesmente identificaram tambeacutem com τὰ
ὄντα o ente51rdquo (HEIDEGGER (GA20)2006 p109) Podemos entatildeo dizer a totalidade
do que se mostra satildeo os fenocircmenos e se a funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar
o loacutegos da fenomenologia natildeo eacute o significado de um ou outro ente mas o manifestar do
ente o sentido de ser dos entes Fenomenologia em sentido formal eacute ldquofazer ver a partir
dele mesmo o que se mostra tal como ele por si mesmo se mostrardquo (HEIDEGGER (GA2)
2012 p119) e assim a fenomenologia caminha em direccedilatildeo agrave ontologia
No capiacutetulo anterior pudemos observar que para Husserl o que estava em jogo
como tarefa da fenomenologia era - a partir da unidade entre intuiccedilatildeo (atividade da
consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da consciecircncia e o
preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor a unidade
fenomenoloacutegica desses atos a saber apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo e
preenchimento de significaccedilatildeo Para Heidegger a intencionalidade fenomenoloacutegica agora
voltada para o sentido de ser dos entes revela que o fenocircmeno vem ao encontro natildeo em
funccedilatildeo da intencionalidade da consciecircncia onde poderia ser depurado na sua significaccedilatildeo
denotam um processo que se realiza a partir de um sujeito e sem ele na meacutedia que eacute a diaacutetesis a definir
por oposiccedilatildeo o verbo indica um processo em que o sujeito eacute o foco o sujeito estaacute no interior do processorsquo
(BENVENISTE 1966 p172) d) lsquoEm indo-europeu e em grego as desinecircncias meacutedias indicam que o
sujeito estaacute interessado de uma maneira pessoal no processorsquo (MEILLET 1937 p244) e) lsquoAs implicaccedilotildees
da meacutedia (quando em oposiccedilatildeo com a ativa) satildeo que a accedilatildeo ou estado afeta o sujeito do verbo ou seus
interessesrsquo (LYONS 1969 p373) Nessas definiccedilotildees a princiacutepio haacute dois empregos da meacutedia a meacutedia
reflexiva direta (especialmente a de Gildersleeve e Meillet voltadas para a questatildeo do interesse do sujeito
oracional) e a meacutedia reciacuteproca que envolve mais as construccedilotildees passivas e intransitivas da meacutedia
(ressaltada por Brugmann e Benveniste com a noccedilatildeo de que o sujeito todo participa e que estaacute interno ao
processo) A definiccedilatildeo de Meillet por outro lado eacute a mais comumente utilizada principalmente em
gramaacuteticas e meacutetodos de ensino do grego antigo atribuindo agrave media a noccedilatildeo de interesse por parte do
sujeito sendo que esse traccedilo embora existente em alguns casos natildeo eacute uacutenico e nem sempre tatildeo evidenterdquo
(pp 185-186)
Quando dissemos que entender a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito
de fenocircmeno pensamos nessa especificidade de algo que na accedilatildeo no verbo (existir manifestar) constitui a
si mesmo no interior do processo O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento como fenocircmeno
Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar
por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na
estabilidade de uma esfera para aleacutem do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua
manifestaccedilatildeo o sentido de sua proacutepria existecircncia
51 ldquoLos φαινόμενα configuran la totalidad de lo que se muestra a siacute mismo lo que los griegos simplemente
indetificaban tambieacuten con τὰ ὄντα lo enterdquoOpcit p109
64
Mas o loacutegos como manifestar-se do fenocircmeno em seu sentido originaacuterio como existente
eacute intencionado no es gibt originaacuterio na concretude do mundo que se daacute
Mas como eacute possiacutevel chegar ao acontecimento de ser do fenocircmeno sem a base de
uma consciecircncia em funccedilatildeo da qual o fenocircmeno pode ser depurado Os estudos da Sexta
Investigaccedilatildeo Loacutegica de Husserl ao distinguir intuiccedilatildeo sensiacutevel da categorial ofereceram
a Heidegger um acesso agrave compreensatildeo do sentido muacuteltiplo do ente Nas palavras do autor
ldquoQuando a partir de 1919 eu proacuteprio ensinando e aprendendo proacuteximo de
Husserl me exercitei na visatildeo fenomenoloacutegica e simultaneamente pus agrave prova
nos Seminaacuterios uma leitura de Aristoacuteteles diferente da habitual retomei o meu
interesse pelas Investigaccedilotildees Loacutegicas muito especialmente pela sexta da
primeira ediccedilatildeo A distinccedilatildeo ali elaborada entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial
revelou-se-me em todo o seu alcance como capaz de determinar lsquoo muacuteltiplo
sentido do entersquordquo (HEIDEGGER2009 p8)
Vejamos brevemente o ponto crucial dessa parte da VI investigaccedilatildeo a qual
Heidegger se refere A questatildeo central eacute ldquoTodas as partes e formas da significaccedilatildeo
correspondem tambeacutem partes e formas da percepccedilatildeo52rdquo (HUSSERL 1975 p106) Em
outras palavras nos enunciados da percepccedilatildeo ldquoUm S eacute Prdquo ldquoEste S eacute Prdquo ldquoTodo S eacute Prdquo
etc cada um de seus elementos (ldquoumrdquo ldquoSrdquo ldquoeacuterdquo ldquoPrdquo) possui significaccedilotildees que
preenchem a percepccedilatildeo Husserl responde negativamente somente S e P possuem
significaccedilatildeo que preenchem a percepccedilatildeo pois existe uma diferenccedila categorial absoluta
entre a forma expressiva e o material expresso E os enunciados da percepccedilatildeo chegam
somente aos elementos materiais que estatildeo presentes nos termos do enunciado
ldquoRepete-se a mesma distinccedilatildeo entre lsquomaterialrsquo e lsquoformarsquo naquilo que
consideramos unitariamente como um lsquotermorsquo Mas em todo enunciado de
percepccedilatildeo e tambeacutem naturalmente em todos os enunciados que exprimem uma
intuiccedilatildeo num certo sentido primaacuterio chegamos finalmente aos uacuteltimos elementos
ndash denominamos elementos materiais ndash que estatildeo presentes nos termos e que
preenchem diretamente na intuiccedilatildeo (percepccedilatildeo imaginaccedilatildeo etc) ao passo que
as formas complementares apesar de exigirem preenchimento enquanto formas
de significaccedilatildeo natildeo encontram diretamente na percepccedilatildeo e nos atos a ela
coordenados nada que jamais lhes possa ser conformerdquo(HUSSERL 1975p110)
52 Percepccedilatildeo aqui compreendida natildeo como mera percepccedilatildeo mas como atos fundados na percepccedilatildeo com
possibilidade objetiva
65
Husserl acompanha Kant na determinaccedilatildeo que ldquoser natildeo eacute um predicado realrdquo pois
a flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo -tanto na funccedilatildeo atributiva (sapato preto) quanto na forma
predicativa (Este sapato eacute preto) ndash natildeo se preenche atraveacutes de qualquer percepccedilatildeo Para
Husserl embora a proposiccedilatildeo kantiana ldquose refira ao ser existencial ao ser do
lsquoposicionamento absolutorsquo () eacute sempre possiacutevel entretanto aplicaacute-la ao ser predicativo
e atributivordquo (HUSSERL1975 p111) Se o ser natildeo eacute nada de aderente ao objeto natildeo eacute
uma caracteriacutestica real interna nem externa e ainda se ldquona esfera da percepccedilatildeo sensiacutevel
e assim compreendida e correlativamente na da intuiccedilatildeo sensiacutevel em geral () uma
significaccedilatildeo como a palavra ser natildeo encontra nenhum correlato objetivo possiacutevelrdquo
(HUSSERL1975 p112) entatildeo como ser vem agrave forma enunciativa Para Husserl o ser
soacute pode ser apreendido no julgar natildeo que ele seja obtido internamente a partir da reflexatildeo
mas no ato de julgar que correlato agrave intuiccedilatildeo do juiacutezo forma a unidade do juiacutezo evidente
Em outras palavras se o ldquo ser eacute fenomenologicamente interpretado como um modo
determinado do ser dadordquo ( ZAHAVI2015p47) a descriccedilatildeo de um fenocircmeno ou de um
estado de coisas em sua ligaccedilatildeo e unidade pelo juiacutezo vai aleacutem da intuiccedilatildeo sensiacutevel e eacute
preciso ampliar o conceito de intuiccedilatildeo considerando-a como uma intuiccedilatildeo categorial
pois ldquomesmo uma argumentaccedilatildeo teoacuterica ou uma anaacutelise conceitual pode ser considerada
como intuiccedilatildeo na medida em que ela nos traz agrave daccedilatildeo originaacuteria um estado de coisas um
traccedilo essencial ou uma demonstraccedilatildeo abstratardquo( ZAHAVI2015p55) Contudo esse
deslocamento do lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel o conduz a forma loacutegico sem revelar
de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno53
Portanto com o propoacutesito de elucidar a apariccedilatildeo originaacuteria de qualquer fenocircmeno
e junto com Aristoacuteteles Heidegger conclui que era Aleacutetheia desvelamento aquilo que
segundo Husserl consistia num ato da consciecircncia O ser natildeo eacute um predicado real se
abordado a cada vez como um ente Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar o ser como um
ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel e atributivo Ser
natildeo eacute um ente54 o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo com vistas agrave
53 Cf NUNES Benedito 2013 pp63-67 54 A diferenccedila ontoloacutegica eacute tomada tematicamente ou seja exposta explicitamente em 1927 em Os
problemas fundamentais da fenomenologia (GA24) Parte II Capiacutetulo I Mesmo de um modo natildeo temaacutetico
a diferenccedila entre ser e ente foi decisiva para a compreensatildeo da constituiccedilatildeo existencial do ser-aiacute nos escritos
anteriores sobretudo em Ser e Tempo Seguimos a leitura de LAFONT (1997) ldquoDo factum -central para a
abordagem de Ser e tempo - de que nossa relaccedilatildeo com o mundo estaacute mediada simbolicamente (o fato de
que lsquonos movemos sempre jaacute em uma compreensatildeo de serrsquo e que a realidade soacute eacute possiacutevel em uma
66
forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera para ldquoQual o
sentido de serrdquo E ao sentido do ser temos acesso pelo meacutetodo fenomenoloacutegico a partir
da situaccedilatildeo na qual o desvelamento dos entes acontece isto eacute no fenocircmeno da existecircncia
Como aponta Stein a apresentaccedilatildeo do conceito de fenomenologia em Ser e
Tempo eacute feita de maneira provisoacuteria no sect 7 e soacute ganha sua explicitaccedilatildeo na dinacircmica da
proacutepria anaacutelise do ldquoobjetordquo Mas tambeacutem como jaacute vimos aqui a especificidade e o fator
determinante do meacutetodo fenomenoloacutegico jaacute estatildeo em desenvolvimento na deacutecada de 20
Cito Stein
ldquoa descoberta que Heidegger fez que existe um primado da tendecircncia para o
encobrimento ()Ao inveacutes de pensar como Husserl e outros filoacutesofos que diante
de noacutes a realidade se estende agrave espera da rede de nossos recursos metodoloacutegicos
que a aprisionem Heidegger afirma que o homem e o essencial nas coisas tendem
para o disfarce ou estatildeo efetivamente encobertos Por isso volta-se para o comordquo
(STEIN 1971p16)
E o que se encobre de maneira excepcional natildeo eacute um ou outro ente mas o ser do
ente e ldquoa fenomenologia eacute o modo de acesso ao que deve se tornar tema da ontologia A
ontologia soacute eacute possiacutevel como fenomenologiardquo (HEIDEGGER (GA2) 2012 p 123)
Fenocircmeno loacutegos e aleacutetheia estatildeo numa imbricaccedilatildeo indissociaacutevel Stein (2001
p79) chega a dizer que a aleacutetheia esconde em si o meacutetodo fenomenoloacutegico e que o retorno
originaacuterio agrave palavra grega resume o pensamento de Heidegger Para nosso trabalho o
importante eacute compreender que a fenomenologia como meacutetodo para a ontologia encontra
no sentido originaacuterio de aleacutetheia a possibilidade de trazer agrave luz o que sustenta qualquer
presenccedila dos entes ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o que aponta para o velamento (lethe) que
ficou para traacutes que mostra para aquilo que a sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila
da aleacutetheia que se torna possiacutevel a objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito
pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89) Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em
sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao encontro em seu significado) no desvelamento
originaacuterio de seu ser mas essa mostraccedilatildeo dos fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira
compreensatildeo de serrsquo) deduz Heidegger a universalidade da lsquopreacute-estrutura do compreenderrsquo (Als-Struktur)
que constitui o nuacutecleo fundamental de sua transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia O instrumento
decisivo do ponto de vista metodoloacutegico que o permite obter este ponto de vista eacute a substituiccedilatildeo da
dicotomia empiacutericotranscendental - proacutepria da filosofia transcendental- pela lsquodiferenccedila ontoloacutegicarsquordquo p29
67
dissimulada sempre atraveacutes de uma objetificaccedilatildeo de seu ser como ente determinado pois
ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na medida em que partimos de seu
encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de descoberta perde seu sentido mais
efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Dessa forma ldquoa fenomenologia no sentido heideggeriano
eacute a desconstruccedilatildeo do evidente e em uma tal desconstruccedilatildeo interessa mostrar que o
evidente eacute em verdade uma modificaccedilatildeo do fenocircmeno lsquoserrsquordquo (FIGAL 2005p47) E aqui
a fenomenologia encontra a hermenecircutica em sua relaccedilatildeo mais radical pois essa
desconstruccedilatildeo do evidente parte do proacuteprio evidente a situaccedilatildeo faacutetica Pois ldquoo ser soacute
pode chegar entatildeo a ser visualizado se essas dissimulaccedilotildees forem comprovadas como
dissimulaccedilotildeesrdquo (FIGAL 2005p47) ou seja na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo faacutetica que
compreende previamente todos os entes
A atualizaccedilatildeo da filosofia antiga sob bases fenomenoloacutegicas eacute chamada de
ldquofenomenologia como repeticcedilatildeordquo55 O retorno ao pensamento de Aristoacuteteles e Platatildeo
realizado por Heidegger ldquonatildeo significa simplesmente acolher uma vez mais um
questionamento filosoacutefico herdado a fim de integraacute-lo no discurso de uma filosofia atualrdquo
e tambeacutem natildeo se trata de ldquoinserir uma filosofia atual em uma tradiccedilatildeordquo (FIGAL 2005
p32) Mas eacute consequecircncia da orientaccedilatildeo do trabalho heideggeriano de uma lsquofilosofia
cientiacuteficarsquo sem pressupostos O comeccedilo da filosofia eacute o questionamento em curso vivo
promovido pela proacutepria questatildeo e natildeo por sistemas externos agraves proacuteprias coisas A
pergunta pelo ser em Heidegger se torna temaacutetica na medida em que o desdobramento da
criacutetica imanente ao modelo husserliano conduz agrave pergunta fundamental inaugurada no
iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo
Se por um lado Heidegger pode ser associado agrave tradiccedilatildeo fenomenoloacutegica por
outro natildeo se pode esquecer a criacutetica imanente que ele fez agrave fenomenologia de Husserl e
que o conduziu a pensar a fenomenologia como meacutetodo a indicar o mundo a existecircncia
e a facticidade como campo de aparecimento dos proacuteprios fenocircmenos tornando portanto
a fenomenologia hermenecircutica Eacute nessa compreensatildeo da tarefa fenomenoloacutegica como o
modo de acesso ao que deve ser tornar tema da ontologia que Heidegger rejeita o
pressuposto husserliano da consciecircncia como correlato do aparecimento dos fenocircmenos
55 Cf Figal 2005 pp29-42 e STEIN 2001 p98
68
Ele o recusa natildeo somente pelo fato de as relaccedilotildees intencionais enquanto processos
mentais da consciecircncia se movimentarem pela pesquisa de conteuacutedos quididativos mas
tambeacutem e sobretudo pelo fato de
ldquoa consciecircncia apresentar em si mesma um contexto ontoloacutegico fechado Essa
ponderaccedilatildeo [a de que a consciecircncia parece natildeo precisar de qualquer objeto
exterior para existir] acaba por indicar a consciecircncia eacute absoluta em funccedilatildeo da
qual em geral a realidade pode se anunciarrdquo (HEIDEGGER Prolegomena zur
Geschichte p 144 apud FIGAL2005 p30)
Para Heidegger a fenomenologia transcendental de Husserl permanece ainda no
horizonte da modernidade Ao colocar o ldquomundo entre parecircntesesrdquo privilegiando a
experiecircncia da consciecircncia essa fenomenologia permaneceria incapaz de levar em conta
a realidade sem uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica e em uacuteltima instacircncia levar em conta as
vivecircncias concretas Heidegger natildeo abre matildeo da fenomenologia husserliana mas
radicaliza seu princiacutepio ldquode volta agraves coisas mesmasrdquo acentuando a tarefa pela existecircncia
e a partir da existecircncia dos fenocircmenos e no desvelamento buscar o sentido do ser de
todo e qualquer fenocircmeno
III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
Falamos haacute pouco de Heidegger repetir a filosofia antiga como um desdobramento
da proacutepria pesquisa filosoacutefica entendida como ciecircncia originaacuteria e como pergunta pelo
sentido de ser Em Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles Introduccedilatildeo agrave pesquisa
fenomenoloacutegica (GA61) Heidegger desenvolve esse aspecto e indica a problemaacutetica
central e radical a ser enfrentada a partir de Aristoacuteteles a saber ldquodesde de Aristoacuteteles se
manteacutem uma influecircncia taacutecita nas vias da visatildeo e da fala lsquoarticulaccedilotildeesrsquo loacutegicardquo
(HEIDEGGGER (GA61) 2011p11) Antes de entrarmos nessa problemaacutetica apontada
por Heidegger tentemos compreender o que o autor quis dizer com aquela afirmaccedilatildeo
Cito Puente (2001)
ldquoPara Aristoacuteteles foi precisamente a negaccedilatildeo do movimento que levou
Parmecircnides ao postulado da univocidade do ente e seraacute portanto a partir da
afirmaccedilatildeo irrestrita do movimento () que o Estagirita procuraraacute expandir os
horizontes do ente para aleacutem da mera dicotomia estabelecida por Parmecircnides
entre Ente e natildeo-enterdquo (p25)
69
Seguindo a leitura de Puente Aristoacuteteles encontrou a plurivocidade ao afirmar o
movimento no acircmbito dos entes Aleacutem disso como veremos nos desdobramentos a
seguir ele o fez submetendo o acircmbito ontoloacutegico ao acircmbito loacutegico Submissatildeo essa que
foi adotada por toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica que passou a entender a loacutegica como uacutenica via
de acesso agrave ontologia Pois a polivocidade categorial inserida no interior da
quadriparticcedilatildeo semacircntico-ontoloacutegica estaacute por sua vez submetida ao princiacutepio loacutegico de
natildeo contradiccedilatildeo Dito de outro modo as categorias aristoteacutelicas substacircncia
(οὐσία substantia) quantidade (ποσόν quantitas) qualidade (ποιόν qualitas) relaccedilatildeo
(πρός τι relatio) lugar (ποῦ ubi) tempo (ποτέ quando) estado (κεῖσθαι situs) haacutebito
(ἔχειν habere) accedilatildeo (ποιεῖν actio) e paixatildeo (πάσχειν passio) satildeo parte das quatro
possibilidades semacircnticas categoria acidente verdade atopotecircncia Reiterando as
possibilidades semacircnticas de dizer o ente estatildeo submetidas a um princiacutepio loacutegico
fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado ao princiacutepio de identidade
Soacute eacute possiacutevel desenvolver uma ontologia acerca dos entes naturais e sair da univocidade
ontoloacutegica de Parmecircnides se a semacircntica respeitar a impossibilidade loacutegica de uma
simultaneidade de atribuiccedilotildees contraacuterias a um ente ao mesmo tempo Os vaacuterios modos de
dizer o ser ldquoa refutaccedilatildeo confutatoacuteria agrave tese parmenidiana pode ser analisada entatildeo como
o desdobramento loacutegico do pressuposto de Parmecircnidesrdquo (PUENTES2001 p25)
Nesse sentido enfrentar a via loacutegica no interior da filosofia eacute enfrentar a tradiccedilatildeo
que compreendeu que a filosofia devia ser definida bem como seus objetos de forma
conceitual sob princiacutepios loacutegicos Em outras palavras superar a tentativa de dizer
previamente tanto o que a filosofia eacute quanto o que eacute seu objeto de investigaccedilatildeo E em
uacuteltima instacircncia superar a concepccedilatildeo tradicional metafiacutesica que compreende toda
ontologia condicionada agrave loacutegica pois ao ter acesso ao ente atraveacutes das categorias
arrasta a compreensatildeo da verdade agrave semacircntica extensional com lugar privilegiado na
proposiccedilatildeo reduzindo a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo56
56 Aqui eacute pertinente destacar uma consideraccedilatildeo de Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro no prefaacutecio agrave traduccedilatildeo do
texto de Aristoacuteteles As categorias (trad Fernando Coelho Florianoacutepolis Ed Da UFSC 2014 p 9-10)
ldquo A grande questatildeo realmente capaz de colocar a tradiccedilatildeo em xeque eacute a de saber se a compreensatildeo do real
pelas categorias ontoloacutegicas de substacircncia qualidade quantidade tempo lugar etc eacute o que eacute porque as
categorias gramaticais de substantivo e sujeito adjetivo e predicadoetcjaacute se instalaram de antematildeo e
predeterminaram o escopo daquela compreensatildeo ndash metafiacutesica como lsquofeacute na gramaacuteticarsquo como aponta
Nietzsche ndash ou se ao contraacuterio o limite da gramaacutetica ocidental para dizer o real eacute que eacute por ser preacute-limitada
por sua compreensatildeo metafiacutesicardquo
70
Para Heidegger a filosofia deve sempre voltar-se para a vida faacutetica e cabe agrave
definiccedilatildeo filosoacutefica tornar expliacutecita a interpelaccedilatildeo A filosofia natildeo eacute portanto um
conjunto de mateacuterias determinadas (loacutegica ontologia poliacutetica esteacutetica etc) No sentido
formal57 da definiccedilatildeo (determinar o objeto em seu ser-o-que-como [ was-wie-sein]) a
filosofia eacute indicativa (anzeigend) cujo princiacutepio possui um caraacuteter bem especiacutefico
identificar a visatildeo preacutevia Mas o que eacute essa visatildeo preacutevia
ldquoNatildeo haacute aqui como contornar a facticidade do mundo que eacute o nosso e isto natildeo
porque ela definiria a nossa postura em relaccedilatildeo agraves coisas e funcionaria como um
matiz de ordem espiritual em nossa ligaccedilatildeo com o todo mas porque ela perpassa
originariamente o horizonte mesmo a partir do qual os entes se mostram como os
entes que satildeo Esse horizonte possui aleacutem disso um caraacuteter histoacuterico
sedimentado Ele natildeo se determina de maneira loacutegico-transcendental () mas se
constroacutei historicamente a partir de decisotildees de pensamento que vatildeo
paulatinamente determinando que se mostra ou natildeo como dotado de sentidordquo
(CASANOVA 2009 p47)
Assim contra o pensamento imperante da tradiccedilatildeo
ldquoO que se denomina filosoacutefico assim como os termos de acordo com os quais
problemas considerados filosoacuteficos satildeo levantados natildeo nasce nunca de uma
anaacutelise puramente loacutegica Ao contraacuterio tanto a designaccedilatildeo de algo como
filosoacutefico quanto o modo de colocaccedilatildeo dos problemas filosoacuteficos em geral
depende de estruturas faacuteticas que foram sendo lentamente decididas no interior
da tradiccedilatildeo Se desconsiderarmos uma tal dependecircncia o que fazemos eacute
simplesmente assumi-las como oacutebvias () que impedem um tratamento
originaacuterio dos fenocircmenosrdquo (CASANOVA 2009 p 47)
Seguindo Escudero no proacutelogo escrito agrave sua traduccedilatildeo do Relatoacuterio Natorp (2002
p11) para atingir a realidade primaacuteria da vida faacutetica Heidegger nos anos 1920 se
movimenta em duas decisotildees A primeira decisatildeo metodoloacutegica eacute desdobrada em dois
momentos a) o primeiro desconstrutivo descerrar o intricado mapa conceitual da
filosofia e voltar-se ao fenocircmeno da vida b) e o segundo construtivo fazer uma anaacutelise
formal dos diversos modos de efetivaccedilatildeo da vida em seu processo de realizaccedilatildeo histoacuterica
E a segunda decisatildeo a anaacutelise das estruturas ontoloacutegicas da vida que corresponde agrave
hermenecircutica fenomenoloacutegica do ser-aiacute precisamente agrave pergunta pelo sentido do ser no
57 A loacutegica para Heidegger eacute formalista natildeo formal Diz-se formal em relaccedilatildeo agrave indicaccedilatildeo formalista em
relaccedilatildeo a operacionalidade dos elementos da loacutegica Cf HEIDEGGER 2011 p28
71
interior mesmo do acontecimento preacute-teoacuterico da cotidianidade do ser-aiacute para assim ter
acesso ao sentido do ser em geral
Portanto o meacutetodo fenomenoloacutegico como indicativo-formal eacute parte do processo
metodoloacutegico construtivo para o acesso agrave vida faacutetica como maneira de fazer vir ao
encontro os fenocircmenos sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica bem como a maneira de
desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos categoriais de definiccedilatildeo
O elemento decisivo eacute a experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica no como do
aparecer de qualquer objeto e na medida em que este possa ser definido ldquodevem ser
hauridas do modo como o objeto se torna acessiacutevel originariamenterdquo (HEIDEGGER
(GA61) 2011 p28) Com outras palavras qualquer significado compreendido como
indicativo-formal e a expressatildeo linguiacutestica desse conceito satildeo proposiccedilotildees caracterizadas
como indicaccedilotildees hermenecircuticas A terminologia filosoacutefica e seu questionar mais
originaacuterio devem a cada vez indicar o campo situacional histoacuterico de onde extraem seus
conceitos Nas palavras de Heidegger (GA61) ldquoo decisivo eacute o desdobramento radical e
claro de uma situaccedilatildeo hermenecircutica como temporalizaccedilatildeo da proacutepria problemaacutetica
filosoacuteficardquo (2011 p11) Portanto a interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do conhecimento58
para Heidegger exige uma modificaccedilatildeo a pergunta se transforma em ldquocomordquo eacute o
conhecimento ldquoComordquo as coisas vecircm ao encontro e natildeo mais uma definiccedilatildeo que
responderia agrave questatildeo com pretensatildeo atemporal ldquoo que eacute o conhecimentordquo ou ldquoo que eacute
este enterdquo
Por conseguinte os indicadores formais tecircm a funccedilatildeo de explicitar e natildeo de
explicar pois seu caraacuteter indicativo formal potildee em tela atraveacutes de um conceito
inicialmente vazio e sem caraacuteter determinador elementos da proacutepria facticidade
(Faktizitaumlt) para que a anaacutelise hermenecircutica possa compreendecirc-los no interior mesmo da
facticidade e dessa forma encontrar o lugar vivo de cada elemento na estrutura
ontoloacutegica da realidade Mas qual a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo
situacional sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica e que revele tanto a situaccedilatildeo
58 Aqui vemos o compromisso de Heidegger com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do
sentido do conhecimento diligecircncia herdada da fenomenologia Poreacutem agora submetida a abordagem
ontoloacutegica E nesse sentido a abordagem hermenecircutica de Heidegger revela o caraacuteter derivado (de uma
situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento
72
compreensiva quanto descontrua a evidecircncia de toda determinaccedilatildeo conceitual dos entes
revelando antes o seu aparecer como ente Eacute o tema de nosso proacuteximo toacutepico
III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger
Segundo Heidegger ldquoo decisivo na investigaccedilatildeo de Dilthey natildeo eacute a teoria da ciecircncia
da histoacuteria senatildeo a tendecircncia em colocar a realidade histoacuterica agrave vista para a partir dela
esclarecer de que modo e maneira eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo59rdquo (HEIDEGGER (GA20)
2006 p34) Contudo Dilthey se movimenta no marco do questionamento de sua eacutepoca
buscando atraveacutes da vivecircncia da consciecircncia trazer agrave vista a realidade e a validade das
ciecircncias histoacutericas pois busca a partir da vida psiacutequica do sujeito histoacuterico o fundamento
para a garantia da objetividade dos elementos histoacutericos
Ao apresentar o imperativo das ciecircncias naturais e sua apropriaccedilatildeo da noccedilatildeo de
fenocircmeno no final do seacuteculo XIX em Ontologia (Hermenecircutica da facticidade) (GA63)
Heidegger apontou que na tentativa de superaccedilatildeo da metodologia cientiacutefica natural
apesar de ter negado sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito Dilthey se movimentou a partir
dessa orientaccedilatildeo pois seu projeto consistiu em lanccedilar as bases teoacutericas em uacuteltima anaacutelise
com pretensatildeo cientiacutefica para a abordagem dos fenocircmenos histoacutericos
ldquoO trabalho da filosofia concentra-se cada vez mais na teoria da ciecircncia na loacutegica
em seu sentido mais amplo e justamente com a loacutegica na psicologia Ambas
tomam a orientaccedilatildeo da ciecircncia natural e em particular da teoria do
conhecimento que vendo-se realizada na ciecircncia natural o conhecimento
verdadeiro busca as condiccedilotildees de tal conhecimento na consciecircncia Pretende-se
fazer o mesmo com a ciecircncia do espiacuterito dando supostamente um passo adiante
na direccedilatildeo que Kant havia delineado Aqui se considera que a tarefa principal
consiste na demarcaccedilatildeo serviram aqui de criteacuterio a ciecircncia natural embora per
negationem [] Ateacute mesmo Dilthey o qual estaacute propriamente arraigado na
histoacuteria e na teologia caracterizava a ciecircncia do espiacuterito como lsquocriacutetica da razatildeo
histoacutericarsquo apoiando-se naturalmente na problemaacutetica kantianardquo (HEIDEGGER
(GA63) 2012 p76)
Como dissemos Dilthey busca uma epistemologia das ciecircncias humanas a partir
da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos E a vivecircncia particular da consciecircncia
59 ldquoLo decisivo em el planteamiento de Dilthey no es la teoriacutea de la ciencia de la historia sino la tendencia
a poner la realidad de lo histoacuterico a la vista para a partir de ello aclarar de queacute modo y manera es posible
la interpretaciacuteonrdquo Opcit p34
73
como vida conexa e estruturante eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu
projeto Mesmo que Dilthey natildeo recorra agrave noccedilatildeo kantiana de sujeito transcendental ainda
estaacute subordinado agrave necessidade de fundamentaccedilatildeo uacuteltima ndash obrigatoriedade do
pensamento cientiacutefico criacutetico - por isso parte dos dados da psicologia descritiva
acreditando que eles poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar para as ciecircncias
humanas Dito de outro modo ainda que Dilthey tenha se negado a aplicar a metodologia
das ciecircncias naturais agraves ciecircncias humanas natildeo escapou ao ideal cientiacutefico de sua eacutepoca e
sucumbiu ao enrijecimento tradicional da estrutura do conhecimento como fundamento
Contudo Dilthey deu uma grande contribuiccedilatildeo agrave filosofia de sua eacutepoca ao pocircr a
realidade histoacuterica agrave vista e ao propocirc-la como ponto de partida para a anaacutelise que visa
esclarecer de que modo eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo Afastado da estrutura do conhecimento
como fundamento Heidegger indica a anaacutelise hermenecircutica como a forma de apreensatildeo
da abertura originaacuteria de sentido na qual se encontra o ser-aiacute enquanto ser-no-mundo e
como a preacute-compreensatildeo de seu ser e de todo e qualquer ente Com poucas palavras a
hermenecircutica fenomenoloacutegica (ou intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica no interior da situaccedilatildeo
hermenecircutica) constitui a condiccedilatildeo de possibilidade de toda investigaccedilatildeo ontoloacutegica
Aqui o termo ldquosentidordquo natildeo significa definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo mas a manifestaccedilatildeo do
ente em seu ser ou seja no modo como aquilo pode vir ao encontro e se manter como
ente e em uacuteltima instacircncia manter-se em seu significado Assim a apreensatildeo filosoacutefica
dessa abertura de sentido primaacuteria deve ser alcanccedilada na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo de
compreensatildeo dos entes no modo como os entes vecircm ao encontro sem qualquer teoria
pela formaccedilatildeo da posiccedilatildeo preacutevia Eacute por isso que ldquoo decisivo para a configuraccedilatildeo de uma
posiccedilatildeo preacutevia eacute ver o ser-aiacute em sua cotidianidade A cotidianidade caracteriza a
temporalidade do ser-aiacute (concepccedilatildeo preacutevia) Eacute inerente agrave cotidianidade certa medianidade
do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER (GA63) 2012 p90)
Indicamos alguns termos que ainda natildeo foram devidamente esclarecidos como
ser-aiacute ser-no-mundo temporalidade Trataremos mais detidamente desses termos baacutesicos
para a compreensatildeo da filosofia de Heidegger no proacuteximo capiacutetulo a partir da obra
principal de nossa dissertaccedilatildeo No momento faremos apenas esclarecimentos breves para
que possamos prosseguir a nossa apresentaccedilatildeo
74
Na tentativa de desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos
categoriais de definiccedilatildeo (gecircnero e diferenccedila especiacutefica) e a fim de acessar a mostraccedilatildeo
originaacuteria do fenocircmeno Heidegger usa a expressatildeo ser-aiacute (Dasein) para caracterizar
aquele ente que noacutes mesmos somos e indicar sua negatividade categorial pois o ser-aiacute soacute
eacute a partir do seu aiacute de sua existecircncia (mundo faacutetico no qual eacute lanccedilado) sem qualquer
categoria preacutevia que o defina Ponderaccedilatildeo apresentada pelo autor
ldquoAo chamar de homem o ser-aiacute que iraacute investigar coloca-se jaacute de antematildeo dentro
de uma determinada concepccedilatildeo categorial visto que o exame eacute levado a cabo
seguindo a direccedilatildeo da definiccedilatildeo tradicional de lsquoanimal racionalersquo () Tendo tal
definiccedilatildeo como direccedilatildeo define-se a descriccedilatildeo numa perspectiva determinada
sem que com ela se recuperem ativamente os motivos originaacuterios de tal maneira
de ver as coisasrdquo (HEIDEGGER(GA63) 2012 p34)
Mas entatildeo o que significa dizer que o ser-aiacute se encontra enquanto ser-no-mundo
Ao indicar o ser-aiacute Heidegger jaacute aponta a sua constituiccedilatildeo fundamental como ser-no-
mundo Mundo natildeo eacute um ente natildeo eacute o conjunto de entes nem eacute qualquer espacialidade
geomeacutetrica Ser-no-mundo eacute o encontro originaacuterio com a proacutepria facticidade (Faktizitaumlt)
e todas as possibilidades lanccediladas nesse encontro primordial ou como jaacute dissemos a
abertura de sentido na qual se encontra o ser-aiacute primariamente em seu mundo circundante
ldquoSer-no-mundo natildeo quer dizer aparecer entre outras coisas significa poreacutem
ocupar-se no circundante do mundo que vem ao encontro demorar-se nele O
modo proacuteprio de ser mesmo num mundo eacute o cuidado (sorge) () A vida se deixa
atingir ou fala consigo mesma mundanamente no e pelo cuidadordquo (HEIDEGGER
(GA63)2012 p107)
Se Dilthey compreende a categoria do significado como mediadora entre a
vivecircncia da consciecircncia e a realidade histoacuterica para Heidegger a significacircncia eacute a
articulaccedilatildeo do proacuteprio mundo que natildeo vem ao encontro a partir da consciecircncia mas da
ocupaccedilatildeo jaacute orientada pela facticidade (Faktizitaumlt) ldquoA significacircncia eacute um como do ser e
nele centra-se precisamente o categorial do mundo do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER(GA63)
2012 p91) E assim a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo situacional
sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica se daacute a partir da ocupaccedilatildeo do ser-aiacute que estaacute no mundo
propriamente como cuidado Cuidado natildeo quer dizer cuidado de si mas a disposiccedilatildeo agraves
coisas e a si em seu ser estar voltado para o ser dos entes E no caso da imediatidade da
vida a intencionalidade praacutetica que orienta a ocupaccedilatildeo
75
Para Heidegger trazer a realidade histoacuterica agrave vista eacute apropriar-se da situaccedilatildeo
hermenecircutica ou seja conquistar o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se
encontra o fenocircmeno da vida considerando que ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto
apropriaccedilatildeo compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo
(HEIDEGGER(GA62) 2002 p30) Em outras palavras o passado se manifesta sob a
interpretaccedilatildeo e abertura compreensiva possiacutevel no presente E portanto a partir da
abertura que dispotildee o presente lanccedilando suas possibilidades a tarefa da filosofia eacute
apropriar-se dessa compreensatildeo tendo em vista que ela atravessa o ser-aiacute em seu caraacuteter
ontoloacutegico que pode abrir-se a compreensatildeo de ser dos entes Eacute a partir daiacute que
ldquoVem agrave tona o papel paradigmaacutetico da filosofia platocircnico-aristoteacutelica para
Heidegger Segundo o filoacutesofo o que tem lugar em Platatildeo e Aristoacuteteles natildeo eacute algo
que diz respeito apenas ao interesse acadecircmico particular de um grupo de eruditos
especializados em suas obras Natildeo eacute filologia que nos fornece uma primeira via
de acesso aos elementos centrais de suas diversas compreensotildees nem tampouco
a filosofia acadecircmica que nos propicia pela primeira vez uma visatildeo clara do perfil
propriamente dito de seus escritos geniais Ao contraacuterio Platatildeo e Aristoacuteteles satildeo
decisivos para a constituiccedilatildeo das estruturas preacutevias de nossa interpretaccedilatildeo dos
entes porque temos neles a origem de boa parte dos horizontes investigativos
posteriormente sedimentadosrdquo (CASANOVA 2009 p59)
Heidegger entatildeo busca em Aristoacuteteles o ponto de partida natildeo soacute para as
interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas enquanto repeticcedilatildeo da pergunta ontoloacutegica fundamental
como tambeacutem para a interpretaccedilatildeo do uacutenico ente capaz de compreender o sentido do ser
dos entes o ser-aiacute Natildeo sem questionar a leitura tradicional da obra de Aristoacuteteles
Heidegger retomou a importante ldquodoutrinardquo do estagirita a qual estabelecia uma relaccedilatildeo
entre a sabedoria praacutetica (φρόνησις) a sabedoria (σοφία) e a vida do homem e seu modo
de existecircncia (βιος) De modo mais claro
ldquoAteacute Heidegger era comum tratar a obra de Aristoacuteteles a partir de um primado
da filosofa teoacuterica em relaccedilatildeo agrave filosofia praacutetica um primado que havia sido
preparado pelo modo tradicional de leitura do estagirita Partindo da concepccedilatildeo
aristoteacutelica da vida teoacuterica (βίος θεωρητικός) como a vida mais plena possiacutevel e
da filosofia como uma ciecircncia que natildeo se ateacutem aos entes em geral nem tampouco
a um ente especiacutefico mas que tem por uacutenico objeto o ser enquanto ser a
interpretaccedilatildeo tradicional do corpus aristoteacutelico cindiu radicalmente o acircmbito
praacutetico do acircmbito teoacuterico definindo o segundo como o uacutenico acircmbito da verdade
propriamente dita Com isso o acircmbito praacutetico foi relegado a um segundo plano
ao plano daquilo que dizia respeito apenas agrave melhor forma mundana de vidardquo
(CASANOVA 2009 p64)
76
O que estaacute em questatildeo para Heidegger natildeo eacute apenas identificar o fato de que nos
encontramos numa determinada tradiccedilatildeo definida por um extrato do conhecimento
historiograacutefico mas compreender radicalmente como nos situamos nessa tradiccedilatildeo No
texto de 1922 Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da
situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) comumente chamado de Natorp-Bericht ou Relatoacuterio-
Natorp Heidegger tenta explicitar a situaccedilatildeo hermenecircutica atraveacutes do como (wie) de todo
aparecer dos entes e das possibilidades do ser-aiacute na vida faacutetica Sendo o ser-aiacute aquele que
compreende a si mesmo e os outros entes sem qualquer preacutevia teorizaccedilatildeo em seu
acontecimento compreensivo Para tanto eacute necessaacuterio esclarecer as condiccedilotildees de
compreensatildeo e interpretaccedilatildeo ou conquistar o horizonte de sentido jaacute aberto no qual jaacute se
encontra o fenocircmeno da vida As condiccedilotildees satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a
direccedilatildeo da visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a
lsquovisibilidadersquo (Sichtweite)60 Satildeo essas condiccedilotildees que compotildeem a compreensatildeo e a
interpretaccedilatildeo ontoloacutegicas-temporais do ser-aiacute em relaccedilatildeo agraves suas possibilidades de ser e
em relaccedilatildeo aos entes que lhe vem ao encontro Essas condiccedilotildees natildeo satildeo lsquobarreirasrsquo para
o entendimento ao contraacuterio satildeo condiccedilotildees de abertura primaacuteria para qualquer
compreensatildeo ontoloacutegica Tentando esclarecer em (1) temos o acircmbito da realidade dada
em uma preacutevia abertura temporal de sentido em (2) a direccedilatildeo que jaacute determinou algo
ldquocomo-algordquo (Als-was) e ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu
lugar significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de
toda possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o
como do aparecer dos entes em seu ser e as possibilidades de comportamentos do ser-aiacute
eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto (1) e jaacute
interpretado (2) e por isso pode mover-se com pretensotildees de objetividade e definiccedilatildeo dos
entes
Eacute a partir dessas consideraccedilotildees que Heidegger desconstroacutei as noccedilotildees de
Aristoacuteteles engessadas pela tradiccedilatildeo de noucircs phroacutenesis e sophiacutea natildeo mais como
conceitos definidos a partir da leitura tematicamente eacutetica do Estagirita mas a partir da
orientaccedilatildeo da biacuteos ou seja da vida do homem e seu modo de existecircncia faacutetica No interior
do Relatoacuterio-Natorp a partir da interpretaccedilatildeo do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco de
60 Cf HEIDEGGER(GA62)2002 p29
77
Aristoacuteteles Heidegger apresenta essas virtudes dianoeacuteticas como ldquodiferentes
modalidades que permitem levar a cabo uma autecircntica custoacutedia do ser na verdade61rdquo
(HEIDEGGER (GA62) 2002 p60) O que quer dizer que se trata dos modos pelos quais
o ser-aiacute protege o ser dos entes enquanto desvelado (ἀλήθεια)
Para Heidegger o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona
um lsquoaquirsquordquo62 (HEIDEGGER(GA62) 2002 p66) essa virtude proacutepria do homem ldquose
realiza como ενέργεια como atividade () ou seja o νους abre um horizonte que sempre
responde a um modo concreto de tratar com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma
execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma determinaccedilatildeo63rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002
p66) O noucircs compreendido tradicionalmente como intelecto racional eacute proacuteprio do
homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica (homem (animal [gecircnero] + racional [diferenccedila
especiacutefica]) mas porque o homem ou melhor o ser-aiacute eacute o ente que pode custodiar abrir-
se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um compreender que jaacute interpreta
os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto na vida faacutetica que acontece
fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da
solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato praacutetico com os entes Essa
orientaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel porque no noucircs ldquoo loacutegos o legein eacute o modo atraveacutes do qual se
realiza o noein e como tal eacute um como tal eacute um διανοείσθαι um inteligir que decompotildee
e que apreende64rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002 p65) Vimos (II) que o λόγος na
fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν de interpretaccedilatildeo e natildeo diz
respeito agrave definiccedilatildeo linguiacutestica de um ou outro ente mas previamente a qualquer
determinaccedilatildeo gramatical ou categorial refere-se ao que manteacutem o ente como existente
portanto desvelado e interpretado em seu lsquocomo-entersquo Assim a relaccedilatildeo fundamental da
phroacutenesis - que prescreve o como o para-que do ente (utensiacutelio) - ao ser-aiacute eacute o
61 ldquoLa interpretacioacuten de este tratado prescindiendo provisionalmiente de la problemaacutetica especiacuteficamente
eacutetica permite comprender que las laquovirtudes dianoeacuteticasraquo son diferentes modalidades que permiten llevar a
cabo uma auteacutentica custodia del ser en la verdaderdquo Opcitp60 62 ldquoEl νους ofrece en general una perspectiva da algoproporciona un lsquoaquiacutersquordquoOp cit p66
63 ldquoEl νοῦς que es ίδιος άνθρωπος se realiza concretamente como ενέργεια como actividad como su
propia actividad es decir el νοῦς abre un horizonte que siempre responde a un modo concreto de tratar
con el mundo a traveacutes de una opercioacuten de una ejecucioacuten de una manipulacioacuten de una determinacioacutenrdquo
Opcitp66
64 ldquoel λόγος el λέγειν es el modo em el que se realiza el νοεῖν y como tal es un διανοείσθαι un inteligir
que decompone lo que apreenderdquo Opcit p65
78
desvelamento do ente no instante do proacuteprio trato da proacutepria atividade praacutetica sem
qualquer mediaccedilatildeo teoacuterica com o ente
Mas as atividades praacuteticas satildeo realizadas natildeo com fim em si mesmas mas com
vistas agrave execuccedilatildeo de um fim mobilizado pelo proacuteprio ser-aiacute em sua vida cotidiana e faacutetica
Assim o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se encontra o fenocircmeno da vida
parte do instante mesmo que potildee ao alcance da vista circunspecta o modo de
comportamento apropriado com o ente com vistas agrave execuccedilatildeo de um fim Desse modo
ldquoO ser da vida eacute considerado como uma atividade que encontra em si mesmo seu
fim o ser da vida se encontra nessa atividade quando a vida humana chegou a
seu fim com respeito a sua possibilidade de movimento mais proacutepria a
possibilidade de inteligir puro Essa atividade eacute proacutepria da εξις [do modo de ser]
que se conhece como σοφία Conforme seu caraacutecter intencional o compreender
puro natildeo custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo
forma parte do horizonte intencional da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso
pode ser de outra maneira O ser da vida humana deve ser considerado
unicamente desde a perspectiva da temporalizaccedilatildeo pura da σοφία como tal e em
razatildeo da autecircntica atividade a sua disposiccedilatildeordquo65 (HEIDEGGER (GA62) 2002
p71)
Assim o sentido do ser soacute pode ser abordado atraveacutes do ser-aiacute pois a pergunta
pelo ser do ser-aiacute possibilita a pergunta pelo sentido do ser em geral natildeo por um
fundamento teoacuterico mas como uma condiccedilatildeo ontoloacutegica O ser-aiacute eacute o ente que pode abrir-
se ao desvelamento dos entes e o faz a partir da proacutepria vida faacutetica sem qualquer
teorizaccedilatildeo preacutevia o ser-aiacute mobiliza o ser dos entes em geral em funccedilatildeo da proacutepria vida
ou seja dos modos possiacuteveis de ser a partir de sua temporalidade
Desde as primeiras investigaccedilotildees de Heidegger na deacutecada de 1920 daacute-se uma
profunda transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia a qual consiste na tentativa de
mostrar como eacute possiacutevel articular filosoficamente uma ciecircncia originaacuteria da vida ou em
mostrar como se daacute a realidade antes de qualquer consideraccedilatildeo cientiacutefica ajuizante isso
65 ldquoEl ser de la vida es considerado como uma actividad que encuentra em siacute mesma su fin el ser da la vida
se encuentra em esta actividad cuando la vida humana haacute llegado a su fin com respecto a su posibilidad de
movimento maacutes propia la posibilidad del inteligir puro Esta actividad es propia de la εξις [del modo de
ser] que se conoce como σοφία Conforme a su caraacutecter intencional el comprender puro no custodia la vida
humana en el modo de su ser faacutectico la vida humana no forma parte del horizonte intencional de la σοφία
ya que es un ente que en cada caso puede ser de otra manera El ser de la vida humana debe considerarse
unicamente desde la perspectiva de la temporalizacioacuten pura de la σοφία como tal y en razoacuten de la auteacutentica
actividad a su disposicioacutenrdquo Opcitp71
79
quer dizer antes de qualquer concepccedilatildeo teoacuterica de mundo Nesse sentido vimos que a
intencionalidade fenomenoloacutegica eacute intuiccedilatildeo compreensiva ou intuiccedilatildeo hermenecircutica em
meio ao mundo circundante que vem ao encontro E as coisas que vecircm ao encontro natildeo
respondem primariamente ao tradicional esquema sujeito-objeto mas resultam
compreensiacuteveis a partir da pertenccedila preacutevia a um mundo jaacute articulado ou a partir de um
estado de coisas preacute-compreendido na vida faacutetica que articula toda e qualquer
compreensatildeo do homem (das coisas e de si mesmo) desde sua existecircncia imediata no
mundo Dito de outro modo revela-se como compreensatildeo ontoloacutegica
Ao decidirmos apresentar as preleccedilotildees de Heidegger que antecederam a obra central
para o nosso trabalho foi nosso intuito elucidar os princiacutepios que provavelmente
motivaram a problemaacutetica exposta em Ser e Tempo A partir de agora nossa tarefa seraacute a
de tentar compreender a partir da obra de 1927 como o fenocircmeno da linguagem aparece
no interior dessa compreensatildeo e em que medida a linguagem eacute possiacutevel por uma
estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Eacute a tentativa de nosso proacuteximo capiacutetulo
80
Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da
linguagem (Sprache) em Ser e Tempo
ldquoa maacutequina do mundo se entreabriu para quem de a romper jaacute se esquivava e soacute de o ter pensado se carpiardquo (A maacutequina do mundo Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
Nos capiacutetulos anteriores descrevemos como do desenvolvimento das ciecircncias
positivas particulares no final do seacuteculo XIX emergiu a discussatildeo acerca do sentido e da
possibilidade do conhecimento No interior desse contexto destacamos o pensamento de
Husserl de Dilthey e as linhas gerais de alguns neokantianos de Baden A partir daiacute
descrevemos como a criacutetica heideggeriana agrave filosofia dos valores dos neokantianos
conduziu-o ao que ele proacuteprio chamou de lsquoes gibtrsquo originaacuterio como o campo
hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Para compreender a questatildeo pelo
sentido do ser em geral ie a proacutepria ontologia para Heidegger era necessaacuterio esclarecer
que a fenomenologia natildeo estava fundada na epistemologia (a partir da consciecircncia) e que
a hermenecircutica natildeo era apenas um instrumento metodoloacutegico capaz de nos dar acesso agrave
histoacuteria em sua objetividade mas muito mais do que isso ela era intuiccedilatildeo compreensiva
e imediata do mundo Assim a partir da criacutetica imanente que Heidegger fez ao meacutetodo
fenomenoloacutegico husserliano foi possiacutevel compreender como ele reconduziu a filosofia agrave
pergunta fundamental inaugurada no iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo a
pergunta pelo ser Aleacutem disso como o pensador desenvolveu a hermenecircutica voltada agrave
facticidade da vida natildeo em funccedilatildeo das vivecircncias da consciecircncia dos sujeitos histoacutericos
mas das vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico Todo esse percurso foi necessaacuterio para que
pudeacutessemos conquistar um solo interpretativo capaz de sustentar a anaacutelise do fenocircmeno
da linguagem tal como aparece em Ser e Tempo E ainda alcanccedilar a pergunta pelo
81
sentido de ser Pois ela a pergunta estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura
de sentido que precisamos explicitar
Contra a tradicional abordagem do problema da linguagem que mais comumente
focalizou as obras de Heidegger apoacutes a viragem (die Kehre)66 ie os escritos a partir
da deacutecada de 1930 neste capiacutetulo defenderemos que o fenocircmeno da linguagem (Sprache)
jaacute desempenha um papel decisivo em Ser e Tempo e que ele soacute se torna possiacutevel a partir
de uma das estruturas preacutevias existenciaacuterias examinadas na citada obra e que eacute a
estrutura de mostraccedilatildeo dos entes Assim embora admitindo que a questatildeo da linguagem
ainda natildeo estivesse posta de modo expliacutecito ou temaacutetico nosso trabalho pretende chamar
atenccedilatildeo para a inegaacutevel funccedilatildeo que a linguagem cumpre jaacute na obra de 1927
No sect 18 de Ser e Tempo Heidegger afirma que a significatividade funda a
possibilidade de significaccedilotildees e estas a possibilidade da linguagem
Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez
familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o
Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como
lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutengua
(HEIDEGGER 2012p261)
66 Apoacutes a Kehre nos anos 1930 a questatildeo do sentido de ser eacute reconduzida agrave histoacuteria e verdade do seer Este
movimento estaacute diretamente relacionado com o limite mesmo da obra de 1927 pois o processo de
singularizaccedilatildeo do ser-aiacute conforme elaborado em Ser e Tempo parece natildeo ser suficiente para a
movimentaccedilatildeo do horizonte histoacuterico e de sua semacircntica fechada Essa insuficiecircncia eacute levada agraves uacuteltimas
consequecircncias a partir dos anos 1930 e radicalizada com uma viragem em direccedilatildeo ao campo dos
acontecimentos histoacutericos Em Ser e tempo a negatividade proacutepria ao ser-aiacute apontava para a possibilidade
de mobilidade histoacuterica a partir da assunccedilatildeo como singularizaccedilatildeo de sua proacutepria negatividade e de sua
responsabilidade mais proacutepria como ser-aiacute de decisatildeo quanto aos caminhos de sua proacutepria existecircncia Jaacute
apoacutes a viragem a negatividade se mostraraacute natildeo somente a partir do ser-aiacute mas tambeacutem no assentamento
de toda abertura histoacuterica compreensiva uma negatividade que se mostraraacute na ausecircncia mesma de
fundamentos absolutos Caberia ademais considerar um aprofundamento das estruturas fenomenoloacutegicas
mais fundamentais no decorrer do pensamento de Heidegger Seraacute que em Ser e Tempo podemos defender
que a abertura que sustenta o sentido de ser do ser-aiacute como cuidado e temporalidade (Zeitlichkeit) estaria
afinal assentada no tempo histoacuterico Questatildeo afinal expressa na uacuteltima linha de Ser e tempo ldquoO tempo
(Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Seria entatildeo possiacutevel
pensar esse aprofundamento do gesto fenomenoloacutegico como a busca do limite de qualquer
intencionalidade Dito de outro modo apoacutes a Kehre o ser enquanto Ereignis (acontecimento apropriador)
poderia ser compreendido como o acircmbito sempre fugidio de toda e qualquer intencionalidade mas ao
mesmo tempo acircmbito no qual unicamente toda e qualquer intencionalidade pode acontecer Revelar-se-ia
o sentido fenomenoloacutegico do que Heidegger chama de clareira (die Lichtung)
82
Na seacutetima ediccedilatildeo de Ser e Tempo publicada em 1953 numa nota muito
esclarecedora acrescentada justamente a esta passagem acima citada Heidegger
evidenciou a diferenccedila entre a sua concepccedilatildeo da linguagem nos anos 20 e aquela apoacutes a
viragem Essa nota apareceu nas obras completas publicadas a partir de 1977 e tambeacutem
na traduccedilatildeo brasileira aqui utilizada Nessa nota muito importante para o objetivo desta
pesquisa o autor corrigiu sua proacutepria afirmaccedilatildeo (1927) de que a linguagem era derivada
Em 1953 ele declarou categoricamente que natildeo era verdadeiro que ldquoDasein-que-entende
[pudessecc] abrir como interpretante algo assim como lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais
[fundariamcc] novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo E que ldquoa liacutengua natildeo eacute
um pavimento sobreposto a outro senatildeo que eacute o desdobrar-se originaacuterio da verdade como
[aiacute] (HEIDEGGER 2012p261 nota c) Essa correccedilatildeo nos daacute uma prova de que a
concepccedilatildeo de linguagem em Ser e Tempo possuiacutea uma estratificaccedilatildeo que natildeo mais eacute aceita
apoacutes os anos 30 Poreacutem como aponta Stein o fenocircmeno da linguagem jaacute desempenhava
um importante e inegaacutevel papel no interior do tratado de 1927
Heidegger liga o questionamento de sua obra prima ao problema da linguagem
Ela assume papel condutor na elaboraccedilatildeo de seu meacutetodo e na realizaccedilatildeo analiacutetica
existencial No meacutetodo fenomenoloacutegico como interpretaccedilatildeo ou hermenecircutica
universal como apossamento de tudo o que foi transmitido pela tradiccedilatildeo atraveacutes
da linguagem como destruiccedilatildeo e revolvimento do chatildeo linguiacutestico da metafiacutesica
ocidental se descobre um imenso projeto de analiacutetica da linguagem Mas como
o meacutetodo fenomenoloacutegico visa o redimensionamento da questatildeo do ser natildeo numa
abstrata teoria do ser nem numa pesquisa historiograacutefica de questotildees ontoloacutegicas
mas numa imediata proximidade com a praacutexis humana como existecircncia e
facticidade a linguagem - o sentido a significaccedilatildeo - natildeo eacute analisada nun sistema
fechado de referecircncias mas ao niacutevel da historicidade Se no meacutetodo dialeacutetico
podemos encontrar uma certa miacutestica teleo-loacutegica (teleacuteo-troacutepica) a palavra no
meacutetodo do positivismo uma certa tecno-loacutegica da linguagem encontramos no
meacutetodo fenomenoloacutegico de Heidegger uma certa onto-loacutegica do dizer isto eacute uma
compreensatildeo da dimensatildeo preacute-ontoloacutegica da linguagem ligada a explicitaccedilatildeo do
mundo como horizonte de transcendecircncia (STEIN1971 p14)
Ser e Tempo possui certo caraacuteter preparatoacuterio pois eacute a tentativa de reformulaccedilatildeo
da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido depende justamente daquela
reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo O objetivo do tratado
eacute nos proacuteprios termos de Ser e Tempo a elaboraccedilatildeo concreta da pergunta pelo sentido
de ldquoserrdquo (Sinn von Sein) (HEIDEGGER2012 p31) No interior da elaboraccedilatildeo da proacutepria
83
pergunta a abordagem fenomenoloacutegica-hermenecircutica como meacutetodo de acesso ao sentido
de ser de todo ente acaba por demonstrar que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as
coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um campo de signos referenciais fechados que
doam significado agraves coisas mas uma manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez
se faz presente na facticidade da existecircncia concreta Nossa tentativa no presente capiacutetulo
eacute compreender como a partir da reelaboraccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ser e de seu
desenvolvimento nessa obra a linguagem se mostra enquanto manifestaccedilatildeo uacuteltima de um
horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo previamente
articulada dos entes e das possibilidades do ser-aiacute E dessa maneira indicar como as
palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da
experiecircncia hermenecircutica Mas antes de iniciarmos nosso capiacutetulo eacute necessaacuterio fazer
algumas consideraccedilotildees que se tornaram agora possiacuteveis apoacutes o desenvolvimento dos
capiacutetulos anteriores e as quais balizam nossa investigaccedilatildeo central
Certamente a fenomenologia husserliana tambeacutem natildeo atribui agrave linguagem um
aspecto referencial de acesso agraves coisas ao contraacuterio a assim chamada visatildeo das essecircncias
eacute a maneira de depurar o conteuacutedo linguiacutestico do conteuacutedo significativo preacute-linguiacutestico
Nas palavras de Gadamer (2010 p8)
A eleiccedilatildeo do modelo da visatildeo como modo do procedimento fenomenoloacutegico
indica que coisa mesma eacute preacute-conceptual e preacute-linguiacutestica A linguagem permite
articular o sentido da coisa mesma que contudo eacute independente da linguagem Eacute
aliaacutes apenas neste quadro que o exerciacutecio da eacutepoche se torna compreensiacutevel A
epocheacute eacute o que torna possiacutevel a reduccedilatildeo ao estado absolutamente desprovido de
preconceitos Mas o que eacute que torna a epocheacute possiacutevel A epocheacute eacute considerada
por Husserl como uma possibilidade de princiacutepio e como uma possibilidade
universal Mas esta possibilidade pressupotildee que se possa passar de uma plano
predicativo ndasho da linguagem ndash para um plano ante-predicativo - o da pura visatildeo
[] Por outro lado aquilo que se daacute de uma forma originaacuteria e na sua pureza daacute-
se como presenccedila absoluta numa figuraccedilatildeo atemporal Os fenoacutemenos no sentido
husserliano caracterizam-se por serem dados agrave consciecircncia de uma forma
absolutamente evidente e uacuteltima o fenoacutemeno eacute absoluta presenccedila a sua doaccedilatildeo
eacute plena
Husserl busca avanccedilar ateacute um plano imediato da experiecircncia que anteceda agrave
interpretaccedilatildeo como experiecircncia preacute-linguiacutestica a partir de intenccedilotildees linguiacutesticas Assim
busca na intencionalidade do fenocircmeno um estado desprovido de preconceito (epocheacute)
Heidegger alia-se a Husserl contra a tese de que o sentido ou o significado sejam
84
linguiacutesticos Contudo para o autor de Ser e Tempo toda experiecircncia jaacute inclui uma
interpretaccedilatildeo certamente natildeo linguiacutestica mas hermenecircutica e fundamentalmente praacutetica
Dessa forma intencionar um fenocircmeno a partir de um horizonte histoacuterico hermenecircutico eacute
considerar e apropriar-se do significado oferecido pelas condiccedilotildees preacutevias e em uacuteltima
anaacutelise por uma semacircntica sedimentada Dito de outro modo para Husserl a expressatildeo
linguiacutestica eacute a maneira de o pensamento intencionar significaccedilatildeo e a orientaccedilatildeo da
pesquisa pela condiccedilatildeo e possibilidade do conhecimento suspende todo posicionamento
ontoloacutegico da coisa mesma em prol do acesso epistemoloacutegico objetivo aos fenocircmenos Jaacute
na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto ontoloacutegico do
conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e qualquer significado
que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido que eacute tambeacutem histoacuterico e no qual
algo pode manter-se em seu significado Eacute nessa perspectiva que nos colocamos em busca
da estrutura ontoloacutegica da linguagem
Portanto eacute importante ter em vista que para Heidegger
(1) a experiecircncia hermenecircutica traz a significatividade (Bedeutsamkeit) que potildee a
descoberto todo e qualquer ente E na medida em que essa experiecircncia orienta o ponto
de partida da intencionalidade67 ela desvela o ente em seu ser o qual (ente) aparece
como algo No entanto essa significatividade se manteacutem em virtude de uma dupla
67 O termo ldquoDaseinrdquo eacute utilizado por Heidegger para afastar qualquer compreensatildeo de homem como
ldquosujeitordquo ldquoconsciecircnciardquo ldquoanimal racionalrdquo etc Desse modo poder-se-ia pensar que uma vez afastadas
essas interpretaccedilotildees tambeacutem o termo lsquointencionalidadersquo deveria ser desconsiderado pois a fenomenologia
husserliana o utiliza como ato de consciecircncia Natildeo eacute o caso Heidegger ainda manteacutem a orientaccedilatildeo
fenomenoloacutegica poreacutem a desloca da consciecircncia para a abertura compreensiva sendo ser-aiacutemundo a
relaccedilatildeo intencional primaacuteria e ainda essa compreensatildeo eacute fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo
circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser Ou sejavisatildeo natildeo teoacuterica
sem a primazia da consciecircncia A intencionalidade eacute pensada portanto natildeo como ato de consciecircncia mas
abertura compreensiva mobilizada por toda e qualquer performatizaccedilatildeo existencial Em Ser e Tempo o
termo lsquointencionalidadersquo e seus derivados aparecem apenas 4 vezes em 2 momentos 1) No sect10 ldquoAgrave essecircncia
da pessoa pertence o existir somente na execuccedilatildeo dos atos intencionais [intentionalen] e assim ela por
essecircncia natildeo eacute objeto () Em todo caso a pessoa eacute dada enquanto executora de atos intencionais
[intentionaler]ligados pela unidade de um sentidordquo (2012 p155) 2) No sect69 nota 10 ldquoA anaacutelise
intencional [intentionalen] da percepccedilatildeo e da intuiccedilatildeo em geral deveria sugerir essa caracterizaccedilatildeo
lsquotemporalrsquo do fenocircmeno Que e como a intencionalidade [Intentionalitaumlt] da lsquoconsciecircnciarsquo se funda na
temporalidade estaacutetica do Dasein ()rdquo Essa uacuteltima passagem eacute decisiva A intencionalidade eacute portanto
mantida por Heidegger mas deve ser compreendida em funccedilatildeo do sentido de ser do ser-aiacute a temporalidade
que abre compreensivamente o ser dos entes em geral Cf tambeacutem nota 70
85
abertura de sentido (Sinn) a abertura de mundo em funccedilatildeo do ser-aiacute e o sentido de ser
do ser-aiacute em funccedilatildeo da temporalidade de sua existecircncia
(2) a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados
(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Entatildeo o significado pode
vir a ganhar sua expressatildeo e forma predicativas a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo
(Aussage) em sua ligaccedilatildeo derivativa da interpretaccedilatildeo (Auslegung) Apresentando dessa
maneira o caraacuteter originaacuterio da verdade enquanto desvelamento (Aleacutetheia) e natildeo como
aderente ao juiacutezo proposicional como compreendeu a tradiccedilatildeo Eacute assim que se daacute
primariamente o acesso ao fenocircmeno da linguagem em seu sentido ontoloacutegico
Podemos antecipar aqui o que seraacute desenvolvido nesse capiacutetulo a linguagem estaacute
assentada em duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado68 que
revelam a diferenccedila entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm
articulados pela imbricaccedilatildeo radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno
Finalmente pedindo a paciecircncia do nosso leitor antes de comeccedilarmos o capiacutetulo
III vamos repetir um pouco o que jaacute foi adquirido nos dois primeiros capiacutetulos da
Dissertaccedilatildeo quando tentamos mostrar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger no
interior da fenomenologia (a partir de sua criacutetica imanente e radicalizaccedilatildeo do gesto
fenomenoloacutegico) foi decisiva para a virada da questatildeo compreendida como possibilidade
de acesso pelo sentido do conhecimento ao sentido do ser Agora a partir de Ser e Tempo
eacute possiacutevel considerar que houve um aprofundamento desse gesto fenomenoloacutegico Por
outra teria ocorrido um aprofundamento ou uma radicalizaccedilatildeo das estruturas
fenomenoloacutegicas De modo mais claro eacute possiacutevel compreender o percurso heideggeriano
como uma tentativa de lanccedilar a intencionalidade enquanto essecircncia mesma da
68 Diferentemente de VIGO (2012 p71) que considera 3 estruturas compreensatildeo (Verstehen) -
interpretaccedilatildeo (Auslegung) e enunciado (Aussage) noacutes consideraremos apenas duas tendo em vista que
julgamos natildeo ser a compreensatildeo uma estrutura autocircnoma e que portanto ela natildeo deve ser separada da
interpretaccedilatildeo Seguimos a letra do sect32 de Ser e Tempo ldquoNa interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo
diverso mas torna-se ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p421) Pensamos que conceder autonomia agrave
compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido primaacuterio ao natildeo remetecirc-la ao Dasein quem
compreendendo jaacute interpreta e custodia o sentido de ser dos entes jaacute estariacuteamos no campo dos
acontecimentos histoacutericos Portanto estariacuteamos ultrapassando os limites de Ser e Tempo ou mais
especificamente falando os limites da ldquoAnaliacutetica Existencialrdquo
86
fenomenologia num acircmbito fundamental que se abriria a toda e qualquer possibilidade
de intencionalidade Vejamos essas questotildees mais detidamente
Como jaacute indicado tanto em Heidegger como em Husserl existe um primado da
experiecircncia antepredicativa em detrimento da predicaccedilatildeo ou da experiecircncia
predicativamente articulada69 Jaacute na preleccedilatildeo de 1919 Heidegger apontava o lsquoes gibtrsquo
originaacuterio ou a concretude do mundo que se daacute como acircmbito fundamental no qual se abre
a possibilidade de intencionalidade Depois dela as preleccedilotildees dos anos 1920 passaram a
descrever a intencionalidade como uma noccedilatildeo praacutetica orientada pela ocupaccedilatildeo e com base
nisso descreveram a experiecircncia antepredicativa e histoacuterica do significado Mas foi
somente em Ser e Tempo que Heidegger elaborou uma ontologia fundamental a partir da
analiacutetica existenciaacuteria70 do ser-aiacute A ontologia fundamental eacute descrita como a necessidade
de pocircr em questatildeo o ente em que a compreensatildeo de ser enquanto questatildeo eacute possiacutevel ou
como expresso no Relatoacuterio Natorp o ente que pode custodiar abrir-se ao desvelamento
do ser dos entes Mas o que isso significa sob uma perspectiva fenomenoloacutegica
A descriccedilatildeo do ser-aiacute como existecircncia projetiva assentada em sua negatividade
proacutepria (negatividade entendida pelo fato de que o ser-aiacute soacute eacute a partir do seu aiacute de sua
69 Nesse sentido conferir tambeacutem VIGO 2012 p75 70 Na traduccedilatildeo de Ser e Tempo utilizada os termos Existenzial e Existenzielle satildeo traduzidos por
ldquoexistenciaacuteriordquo e ldquoexistencialrdquo respectivamente A diferenccedila foi estabelecida por Heidegger para marcar a
determinaccedilatildeo constitutiva da existecircncia (ou sua estrutura) cuja determinaccedilatildeo cabe agrave ontologia
(existenciaacuterio) da determinaccedilatildeo existencial (existencial) que trata de um assunto ocircntico do Dasein ou de
um conhecimento que conduz a si mesmo (HEIDEGGER 2012 sect4-9)
Apesar da consulta a outras traduccedilotildees (francesa de Emmanuel Martineau e espanhola de Jorge Rivera)
usaremos os termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho Em alguns momentos aleacutem da
traduccedilatildeo de Castilho que eacute bastante recente (2012) tambeacutem citaremos as palavras da traduccedilatildeo brasileira
anterior (com exceccedilatildeo da traduccedilatildeo de lsquoDaseinrsquo como lsquopresenccedilarsquo que natildeo seraacute utilizada nesse trabalho)
Acerca dos termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho haveraacute apenas duas exceccedilotildees a
primeira refere-se ao uso da palavra lsquoDaseinrsquo a qual Castilho Rivera e Martineau mantiveram no original
alematildeo obedecendo uma sugestatildeo do proacuteprio Heidegger Ser-aiacute eacute a traduccedilatildeo portuguesa do termo alematildeo
Dasein que no uso comum na liacutengua alematilde eacute usado como sinocircnimo para existecircncia mas que no texto
heideggeriano tem um significado peculiar tornando a traduccedilatildeo do termo problemaacutetica Em uma carta de
Heidegger a Jean Beaufret datada de 23 de Novembro de 1945 o autor daacute a seguinte informaccedilatildeo ldquolsquoDa-
sein eacute uma palavra-chave do meu pensar por isso ela eacute causa de graves erros de interpretaccedilatildeo natildeo significa
para mim exatamente eis-me mas se eacute que me posso exprimir num francecircs sem duacutevida impossiacutevel ser-
o-aiacute e o-laacute significa exatamente Aleacutetheia desvelamento-aberturardquo (Carta sobre o humanismo Martin
Heidegger - 2 ed rev Traduccedilatildeo de Rubens Eduardo Frias Satildeo Paulo Centauro ndash 2005 p 89) Algumas
vezes infieacuteis a Castilho e ao proacuteprio Heidegger utilizaremos tambeacutem a sua traduccedilatildeo ldquoser-aiacuterdquo para maior
fluidez do texto A segunda exceccedilatildeo refere-se agraves citaccedilotildees cuja opccedilatildeo por traduccedilotildees tradicionais resolvemos
natildeo alterar
87
existecircncia) sem qualquer categoria preacutevia que o defina potildee em tela que esse ente eacute
marcado pelo caraacuteter de poder-ser orientando-se segundo possibilidades existenciais que
natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas somente na morte como fim de todas as
possibilidades Isso se daacute porque o ser-aiacute eacute o limite fundamental no qual se abre a
possibilidade de intencionalidade ou o sentido do experimentado enquanto
experimentado71 ldquoSoacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a abertura do ser-no-
mundo lsquopode ser preenchidarsquo pelo ente que nele pode ser descobertordquo (HEIDEGGER
2012 p429) De outro modo se para Husserl a noccedilatildeo de intencionalidade faz com que a
cada vez que o pensamento se volte agrave consciecircncia ela descortina sua direccedilatildeo em relaccedilatildeo
ao fenocircmeno Para Heidegger poreacutem uma vez superada a primazia da consciecircncia a
cada vez que o pensamento se volta ao Dasein ele descortina sua direccedilatildeo ao mundo
fenocircmeno originaacuterio em que os entes podem vir ao encontro em seu ser bem como as
possibilidades de ser do proacuteprio Dasein
A ontologia fundamental aparece em sua necessidade porque o ser-aiacute mesmo natildeo
pode ser intencionado significativamente natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente
e por isso seu caraacuteter de poder-ser por isso ele poder mobilizar sentidos e atualizar
significaccedilotildees Assim o ser-aiacute eacute o ente que custodia e compreende o ser do ente jaacute em suas
atividades praacuteticas ou seja ele mobiliza a intencionalidade mas eacute o ente que a
intencionalidade natildeo pode alcanccedilar Na tentativa de apreendecirc-lo em seu ser a anaacutelise
conduz para fora para seu ldquoaiacuterdquo Assim Dasein eacute ser-aiacute eacute existecircncia que se projeta
lanccedilada no ldquoaiacuterdquo histoacuterico O Dasein como apresentado por Heidegger ldquoenvolve uma
dimensatildeo de ser (-sein) e por outro uma dimensatildeo locativa um aiacute (Da-)rdquo (CASANOVA
2006 p12) e isto deve-se ao fato que ldquoapenas ele [Dasein] se acha no ponto de
imbricaccedilatildeo de ser e mundordquo (CASANOVA 2006 p12)
71 Cf HEIDEGGER (GA62) 2002 p 71 ldquoConforme seu caraacutecter intencional o compreender puro natildeo
custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo forma parte do horizonte intencional
da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso pode ser de outra maneirardquo ldquoDas reine Verstehen bringt
nicht etwa nach seinem intentionalen Charakter das menschliche Leben im Wie seines faktischen Seins in
Verwahrung die σοφία hat es uumlberhaupt nicht zu ihrem intentionalen Worauf es ist ja ein Seiendes das ist
gerade dadurch daszlig es je anders sein kannrdquo (HEIDEGGER GA62 [pp385-386] grifo nosso)
88
Dessa forma a pergunta pelo sentido do ser seraacute elaborada conforme os trecircs
momentos constitutivos da questatildeo descritos no sect2 de Ser e Tempo
1- O perguntando ou aquilo de que se pergunta ser do ente
2- O interrogado ou aquilo a quequem se pergunta Dasein
3- O perguntado ou aquilo que se pergunta sentido do ser em geral
A pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2) perguntando
sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma ontologia
fundamental Isso esclarecido podemos iniciar propriamente nosso capiacutetulo e tema
central de nosso trabalho
I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado)
Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico
II A dupla abertura de sentido (Sinn)
Conforme descrito no sect9 de Ser e Tempo o ser-aiacute eacute o ente que a cada vez somos
(eu tu etc) ou seja a particular existecircncia finita e histoacuterica natildeo um conceito geneacuterico
em que as diferenccedilas especiacuteficas apareceriam na experiecircncia sensiacutevel Para esse ente ldquoo
ser ele mesmo eacute o que estaacute a cada vez em jogordquo (HEIDEGGER 2012 p139) Existir e
ser responsaacutevel pelo seu ser eacute o mesmo No que existe o ser-aiacute tem-que-ser (Zu-sein) a
ele natildeo eacute facultado a escolha de haver ou natildeo com seu ser uma vez sendo ele eacute e sendo
ele ldquose comporta em relaccedilatildeo ao seu ser como em realizaccedilatildeo de sua possibilidade mais
proacutepria O Dasein eacute cada vez sua possibilidade (Moglichkeit)rdquo (HEIDEGGER 2012
p141)
Por meio de toda e qualquer performatizaccedilatildeo (com relaccedilatildeo a si mesmo em relaccedilatildeo
aos outros e em relaccedilatildeo aos entes) o ser-aiacute enssencializa a si mesmo como existecircncia E
89
no que se enssencia (como existecircncia e natildeo categorialmente) o seu ser mesmo estaacute em
jogo pois eacute por essa determinaccedilatildeo ontoloacutegica negativa que o ser-aiacute pode conquistar seu
poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees cotidianas
Assim o desenvolvimento da analiacutetica existenciaacuteria aponta para a compreensatildeo do
sentido formal72 da constituiccedilatildeo da existecircncia do ser-aiacute ldquoO Dasein se determina cada vez
como ente a partir de uma possibilidade que ele eacute e que ao mesmo tempo e de alguma
maneira ele entende em seu serrdquo (HEIDEGGER 2012 p 143)
As orientaccedilotildees cotidianas ou a cotidianidade mediana ndash em que o ser-aiacute pode
perder-se no poder-ser improacuteprio - natildeo deve ser considerada pejorativamente como algo
a ser extirpado da existecircncia e da analiacutetica Ao contraacuterio em realidade natildeo pode A
impropriedade oferecida por essas orientaccedilotildees eacute em suma a maneira inicial em que o ser-
aiacute - como ser-no-mundo como ente lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ndash estaacute aberto para seus
possiacuteveis modos de ser Dessa forma a anaacutelise da cotidianidade tem um caraacuteter
fenomecircnico positivo para a analiacutetica existenciaacuteria pois eacute a partir desse modo de ser
improacuteprio que o ser-aiacute eacute lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria
das vezes Portanto natildeo eacute apenas lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade
A analiacutetica existenciaacuteria inicia entatildeo sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio E se
dissemos haacute pouco eacute que por meio da performatizaccedilatildeo que o ser-aiacute enssencia a si mesmo
como existecircncia e essa orientaccedilatildeo para qualquer performance natildeo eacute ilimitada Como as
possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha para um ato de vontade
do ser-aiacute mas satildeo mobilizadas na e pela existecircncia radicalmente histoacuterica o ser-aiacute pela
abertura primaacuteria remetido ao mundo eacute marcado pelo caraacuteter de poder-ser (Seinkonnen)
mas em funccedilatildeo de sua realizaccedilatildeo como possibilidade (Moglichkeit) De modo mais claro
ldquopor natildeo possuir nenhuma quididade [o ser-aiacute cc] eacute a realidade da possibilidade para a
possibilidade () Natildeo podendo ser puro poder-ser pois se assim o fosse o ser-aiacute jaacute seria
algo positivamente definidordquo (CABRAL 2015 p79) Dessa forma o ser-aiacute que a cada
vez deve conquistar o seu ser na radicalidade de sua finitude e historicidade eacute o ente que
pode pela sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica mobilizar sentido E por isso mobilizar na
72 Quando nos referirmos a ldquosentido formalrdquo no decorrer de nosso trabalho Cf Capiacutetulo II- Item III-
Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
90
concretude da vida faacutetica o sentido de ser dos entes os sentidos das relaccedilatildeo aos outros e
sentido de seu ser
ldquoO desvelamento do ser exige sempre um ponto de partida ocircntico Mas o ser-aiacute
eacute privilegiado e ontologicamente ocircntico por causa de sua preacutevia compreensatildeo de
ser Entatildeo o desvelamento do ser deveraacute ser tentado primordialmente a partir do
ser-aiacute mediante uma analiacutetica existencial de suas estruturas O sentido do ser
(preocupaccedilatildeo) dessas estruturas do ser-aiacute eacute a temporalidade Assim a analiacutetica das
estruturas deveraacute ser refeita no homem na temporalidaderdquo (STEIN 2001 p204)
A preacutevia compreensatildeo de ser do ser-aiacute sua negatividade quiditativa seu caraacuteter
de poder-ser e sua constituiccedilatildeo aberta lanccedilada e remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo eacute dada
como acontecimento compreensivo A compreensatildeo ou o entender (Verstehen) eacute uma
das estruturas existenciaacuterias desse ente ocircntico-ontoloacutegico73 e ldquoao interpretaacute-lo como
existenciaacuterio fundamental mostra-se que esse fenocircmeno eacute assim concebido como modus
fundamental do ser do Daseinrdquo (HEIDEGGER 2012 p407) Esse existenciaacuterio
fundamental natildeo refere a uma capacidade entre outras do ser-aiacute de apropriar-se de algo
pelo entendimento intelectivo natildeo eacute uma relaccedilatildeo entre sujeito-objeto mas a constituiccedilatildeo
fundamental do ser-aiacute como ser-no-mundo como relaccedilatildeo intencional primaacuteria e desse
modo o horizonte compreensivo do ser-aiacute com seu ser ldquoO ser-aiacute possui uma relaccedilatildeo
compreensiva com o seu ser porque eacute somente por meio da compreensatildeo que ele encontra
o campo de jogo no interior do qual pode conquistar esse seu serrdquo(CASANOVA 2006
p 13) O ldquoDardquo ou ldquoaiacuterdquo do Dasein e sua estrutura fundamental ser-no-mundo podem ser
esclarecidos em contraponto a concepccedilatildeo paradigmaacutetica da epistemologia moderna de
Kant por exemplo O entender (Verstehen) tal como Heidegger o apresenta natildeo se baseia
na associaccedilatildeo psicoloacutegica das representaccedilotildees ou ainda a abertura primaacuteria que conduz o
ser-aiacute agraves suas possibilidades em que seu ser estaacute em jogo natildeo eacute algo como apercepccedilatildeo
No paradigma epistemoloacutegico da modernidade em uacuteltima instacircncia o entendimento eacute
uma reconstruccedilatildeo interna dos elementos externos do mundo reconstruccedilatildeo essa que
depende das faculdades cognitivas do sujeito capazes de unificar o agregado de
experiecircncias externas O entendimento em Heidegger eacute a abertura primaacuteria uma relaccedilatildeo
intencional estruturante ser-aiacute eacute ser-no-mundo portanto o Dasein eacute sempre remetido ao
73 Ocircntico pelo fato de ser ainda um ente ontoloacutegico pelo fato de ser o ente que pode e sempre abre a
compreensatildeo de ser (Cf HEIDEGGER 2012 sect4-9)
91
ldquomundordquo projetado para ldquoforardquo e esse ldquoforardquo eacute sempre abertura compreensiva ao mundo
faacutetico como horizonte hermenecircutico de sentido
Essa abertura compreensiva fundamental descerra o poder-ser do ser-aiacute como
projeto O fato de o ser-aiacute ser lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ao seu poder -ser em um
campo de jogo para seus possiacuteveis modos de ser natildeo conduz a um determinismo
circunstancial o qual o ser-aiacute estaria fadado a reproduzir maquinalmente e atualizar
incessantemente Tambeacutem ldquoo projetar nada tem a ver com um comportar-se em relaccedilatildeo a
um plano ideado de acordo com o qual o Dasein organizaria o seu serrdquo (HEIDEGGER
2012 p413) mas originariamente ldquoele sempre jaacute se projetou e se projeta enquanto eacuterdquo
(HEIDEGGER 2012 p413) A noccedilatildeo de projeto repousa na abertura compreensiva do
ser-aiacute e na sua ligaccedilatildeo radical com suas possibilidades Logo no iniacutecio do sect32 essa noccedilatildeo
eacute explicitada
ldquoO Dasein como entender projeta seu ser em possibilidades Esse entendedor ser
para possibilidades eacute ele mesmo um poder-ser pelo efeito contraacuterio que as
possibilidades como abertas tecircm sobre o Dasein O projetar do entender tem uma
possibilidade proacutepria de desenvolvimento Chamamos interpretaccedilatildeo o
desenvolvimento do entender Na interpretaccedilatildeo o entender entendendo
apropria-se do seu entendido Na interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo
diverso mas torna-se ele mesmo () A interpretaccedilatildeo natildeo consiste em tomar
conhecimento do entendido mas em elaborar possibilidades projetadas no
entenderrdquo (HEIDEGGER 2012 p421)
Dissemos haacute pouco que as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como
disponiacuteveis agrave escolha e agrave espera de um ato de vontade do ser-aiacute (natildeo estatildeo suspensas como
que dadas a cada ser-aiacute ao nascer como gocircndolas de projetos de ser) mas satildeo mobilizadas
na e pela existecircncia E ainda que essa existecircncia seja sempre projetiva em um mundo
histoacuterico Desse modo o entender (Verstehen) acontece sempre como interpretaccedilatildeo
(Auslegung) a abertura ao mundo eacute um projeto de sentido do ser-aiacute que jaacute interpreta que
jaacute potildee em visatildeo o que entende Mas o que isso quer dizer Como Heidegger chega a esses
existenciaacuterios
Vimos no capiacutetulo anterior a partir da leitura do texto de 1922 Interpretaccedilotildees
fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) ou
Relatoacuterio-Natorp que o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona
92
um lsquoaquirsquordquo essa virtude proacutepria do homem ldquose realiza como ενέργεια como atividade
() ou seja o νους abre um horizonte que sempre responde a um modo concreto de tratar
com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma
determinaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2002 p66) Compreendido tradicionalmente como
intelecto propriamente racional o noucircs eacute proacuteprio do homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica
[homem (animal (gecircnero) + racional (diferenccedila especiacutefica)] mas porque o ser-aiacute eacute o ente
que pode custodiar abrir-se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um
compreender que jaacute interpreta os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto
na vida faacutetica que acontece fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis
enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato
praacutetico com os entes
Em Ser e Tempo Heidegger descreve as vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico e
tambeacutem como o fenocircmeno do mundo se mostra atraveacutes dos entes intramundanos A forma
imediata de esses entes se mostrarem daacute-se na lida praacutetica que o ser-aiacute trava com eles em
um mundo circundante ou em um mundo-ambiente (Umwelt) Eacute atraveacutes da ocupaccedilatildeo
com os entes que o ser-aiacute se movimenta inicialmente na compreensatildeo faacutetica de mundo eacute
aiacute que o Dasein visualiza os entes em sua serventia especiacutefica no quadro de um horizonte
ocupacional Esse horizonte possui certa anterioridade em relaccedilatildeo ao proacuteprio uso do
instrumento ou utensiacutelio (Zeug) particular e isto fica claro no sect 15 quando Heidegger
potildee em relevo o modo de ser dos utensiacutelios na delimitaccedilatildeo preacutevia do que seja sua
instrumentalidade ldquoEm termos rigorosos um instrumento nunca lsquoeacutersquo isolado Ao ser de
instrumento pertence sempre cada vez um todo-instrumental no qual esse instrumento
pode ser o que ele eacute Instrumento eacute por essecircncia lsquoalgo pararsquo (HEIDEGGER 2012
p211) Na essecircncia do instrumento estaacute sempre a referecircncia de algo para algo O ser do
utensiacutelio e seu significado que aparece no instante do trato portanto jaacute interpretado a
partir do uso nascem da totalidade utensiliar (Zeugganzheit) que o atravessa Mas esta
totalidade utensiliar se assenta num contexto ainda mais complexo Se o utensiacutelio eacute
confeccionado de acordo com a sua finalidade especiacutefica como ldquoalgo parardquo seu uso o
liga a outros utensiacutelios por exemplo o pincel que uso para pintar remete-se agrave tela que
uso para suporte da tinta Assim como a tela remete-se natildeo soacute a sua finalidade mas
tambeacutem aos materiais atraveacutes dos quais ela foi produzida madeira tecido e gesso E
ainda remete-se ao produtor da tela ou seja aos outros entes no modo de ser do ser-aiacute
93
Poreacutem essa descriccedilatildeo do instrumento em um mundo-ambiente (Umwelt) ainda eacute
insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica de todo ente em geral
Assim conforme o sect 17 Heidegger aponta que a estrutura do sinal (Zeichen) ldquofornece
um fio condutor ontoloacutegico para uma lsquocaracterizaccedilatildeorsquo de todo ente em geralrdquo
(HEIDEGGER2012 p 233) O sinal enquanto utensiacutelio tem em sua serventia especiacutefica
o mostrar e ao mostrar fornece o fenocircmeno da referecircncia natildeo somente de sua referecircncia
mas de todo e qualquer ente uma vez que a relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia explicita o
fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua finalidade
na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal enquanto
instrumento nos mostra o mundo circundante e potildee em relevo o caraacuteter da referecircncia
que natildeo deve ser confundida com o proacuteprio sinal pois natildeo eacute determinaccedilatildeo ocircntica de um
ou outro manual especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica do manual e fundamento
constitutivo da mundidade como rede referencial na qual o Dasein jaacute se encontra inserido
na abertura ao mundo Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo
circundante o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a
complexa rede de remissotildees referenciais e atraveacutes dela a totalidade conjuntural ou
conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)
ldquoO termo conjuntura tem como correlato na liacutengua alematilde a palavra Bewandtins
que designa primariamente a propriedade ou a constituiccedilatildeo de uma coisa e em
um segundo momento a circunstacircncia em que algo se mostra essencialmente
como algo Neste segundo caso o termo se mostra em sintonia com a expressatildeo
Bewendenlassen como o deixar (lassen) algo se conformar (bewenden) a uma
certa estrutura e se mostrar como o que eacute em meio a essa conformidaderdquo
(CASANOVA 2006 p37)
A noccedilatildeo de conjuntura no sect 18 eacute um dos momentos mais decisivos da primeira
parte de Ser e Tempo pois revela que a totalidade conjuntural eacute anterior a qualquer
determinaccedilatildeo particular dos entes intramundanos Eacute essa conjuntura que determina os
usos possiacuteveis a partir da conformidade dos entes nela inseridos revelando que o
utensiacutelio em si mesmo natildeo possui qualquer determinaccedilatildeo essencial mas a recebe do
campo de uso da conjuntura na qual estaacute inserido Mas natildeo eacute soacute isso a determinaccedilatildeo
essencial de um ente intramundando acontece tambeacutem em funccedilatildeo do ser-aiacute cujo lsquoem
vista dersquo ao final da remissatildeo natildeo mais remonta a um lsquopara quecircrsquo mas mobiliza e em
uacuteltima instacircncia determina as conformaccedilotildees dos entes intramundanos Isso revela que o
que estaacute em jogo natildeo eacute o que eacute algo mas antes em virtude de que se faz algo O ser-aiacute
94
pode agir relacionar-se com os outros e consigo mesmo pois sabe comportar-se no
campo fenomecircnico aberto que arrasta consigo sua possibilidade de ser De outra forma
toda e qualquer performatizaccedilatildeo do ser-aiacute em relaccedilatildeo aos entes remete em uacuteltima medida
agravequele que pode voltar-se aos entes e mobilizaacute-los
O que a conjuntura indica previamente eacute ldquoa articulaccedilatildeo originaacuteria com certas
possibilidades essenciais do ser-aiacute que permitem ao ser-aiacute projetar efetivamente o campo
de sua realizaccedilatildeo como poder-serrdquo (CASANOVA 2006 p36) Essa realizaccedilatildeo do poder-
ser do ser-aiacute mobiliza a conformaccedilatildeo dos entes em funccedilatildeo do sentido existencial do ser-
aiacute pois uma atividade qualquer natildeo eacute feita por ela mesma mas soacute tem sentido na intenccedilatildeo
de um ente que estaacute aberto agrave apreensatildeo do ser dos entes em geral Desse modo a primaacuteria
abertura compreensiva do ser-aiacute ao mundo eacute um projeto de sentido que jaacute interpreta e ao
fazecirc-lo realiza a cada vez a cada ato de sua existecircncia a cada performatizaccedilatildeo a
possibilidade de seu ser pondo em liberdade os entes no interior do mundo e as relaccedilotildees
com os outros no projeto lanccedilado (faacutetico) na e pela sua existecircncia E isso porque
ldquoQuando o ente do-interior-do-mundo eacute descoberto com o ser do Dasein isto eacute
quando veio ao entendimento dizemos que ele tem sentido Mas tomado
rigorosamente o que eacute entendido natildeo eacute o sentido mas o ente ou o ser Sentido eacute
aquilo em que a entendibilidade de algo se manteacutem () Sentido eacute aquilo-em-
relaccedilatildeo-a-quecirc do projeto estruturado pelo ter-preacutevio pelo ver-preacutevio e pelo
conceito preacutevio a partir de que algo pode ser entendido como algo Na medida
em que entender e interpretaccedilatildeo constituem a constituiccedilatildeo existenciaacuteria do lsquoaiacutersquo o
sentido deve ser concebido como arcabouccedilo existenciaacuterio-formal da abertura
pertencente ao entender O sentido eacute um existenciaacuterio do Dasein natildeo uma
propriedade presa ao ente que reside lsquoatraacutesrsquo dele ou flutua em algum lugar como
em um lsquoreino intermediaacuteriorsquo Soacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a
abertura do ser-no-mundo lsquopode ser preenchidarsquo () E quando perguntamos
pelo sentido de ser a investigaccedilatildeo natildeo se torna entatildeo profunda e natildeo excogita
nada que esteja atraacutes do ser mas pergunta por ele mesmo na medida em que ele
estaacute na entendibilidade do Dasein O sentido de ser nunca pode ser contraposto
ao ente ou ao ser como lsquofundorsquo que sustenta o ente porque o lsquofundamentorsquo soacute eacute
acessiacutevel como sentido mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta- de-
sentidordquo (HEIDEGGER 2012 pp 429-431)
Apelamos para essa longa citaccedilatildeo a fim de explicitar o que dissemos
anteriormente acerca da mobilizaccedilatildeo dos entes em seu ser em funccedilatildeo dos focos
existenciais do ser-aiacute Os entes somente vecircm ao encontro como entes que satildeo a partir da
intenccedilatildeo de um ente que estaacute aberto a compreensatildeo do ser dos entes em geral Com a
95
citaccedilatildeo pretendemos tambeacutem apontar para algo importante acerca do fundamento
histoacuterico dessa abertura O sentido de ser natildeo eacute algo a ser alcanccedilado teoricamente pois
natildeo eacute algo estaacutevel e fundante da realidade que responde ao esquema causa-efeito ele eacute
essencialmente histoacuterico e eacute trazido pela experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica
da existecircncia mesma do ser-aiacute Natildeo se pode ter lsquoserrsquo sem a compreensatildeo do sentido de
ser vinculando portanto lsquoserrsquo ao ser-aiacute ente cuja estrutura pertence agrave compreensatildeo de
ser Como nos adverte o autor de Ser e Tempo o Dasein eacute um ente certamente diferente
dos outros entes no interior do mundo e eacute o lsquoabismo da falta de sentidorsquo que remete agrave
totalidade do fenocircmeno do ser-aiacute como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge) a qual acontece
em funccedilatildeo do sentido da temporalidade (Zeitlichkeit) Eacute essa ldquosegundardquo abertura de
sentido que devemos explicitar a partir de agora
Indicamos acima que a indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica do ser-aiacute o conduz a conquistar
seu poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees
cotidianas Poreacutem ser-proacuteprio ou ser-improacuteprio natildeo satildeo categorias operacionalizaacuteveis em
funccedilatildeo de um ideal de vida Essas possibilidades repousam na existecircncia e revelam a
tensatildeo da condiccedilatildeo primaacuteria da abertura ao mundo do ser-aiacute como projeto- jogado e
ldquodessa tensatildeo eacute possiacutevel deduzir o modo como o ser-aiacute faticamente existe() o caraacuteter
mesmo do jogado do ser-aiacute implica a absorccedilatildeo imediata no mundo sedimentado ele
encontra a si mesmo na medida em que se perderdquo (CASANOVA 2009 p123) E por
isso quando a analiacutetica existenciaacuteria inicia sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio no qual
o ser-aiacute eacute lanccedilado ldquoisso natildeo significa por sua vez outra coisa senatildeo que ele [o ser-aiacute]
concretiza o poder ser que ele eacute a partir das possibilidades faacuteticas disponibilizadas pelo
mundordquo (CASANOVA 2009 p123)
A abertura compreensiva eacute uma compreensatildeo da proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica na qual
nos orientamos inicialmente e na qual satildeo dadas nossas possibilidades de ser natildeo de
maneira teoacuterica mas absorvidas nas praacuteticas nos projetos de sentido relaccedilatildeo com os
outros e lida com os entes Abertura essa que um passado tornou possiacutevel e se faz
radicalmente imperativa no presente atraveacutes da cotidianidade orientando o ser-aiacute e
fazendo emergir algo assim como um mundo Por exemplo a realizaccedilatildeo deste trabalho
como dissertaccedilatildeo acadecircmica apareceu como possibilidade para o projeto de sentido de
sua autora porque escrever sobre filosofia faz sentido este projeto de sentido veio ao
96
encontro de seu poder-ser natildeo meramente por um ato de escolha mas inicialmente porque
filosofia dissertaccedilatildeo e universidade satildeo elementos mantidos em seu significado oriundo
da tradiccedilatildeo ocidental natildeo por uma linha histoacuterica que a autora recupera e quer trazer ao
presente mas porque mais uma vez ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto apropriaccedilatildeo
compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo
(HEIDEGGER2002 p30)
E uma vez remetida ao mundo pela orientaccedilatildeo cotidiana a autora pode
estabelecer relaccedilotildees com os entes (livros computador papel etc) consigo mesmo (como
autora) e com os outros (leitores desse trabalho) que partilham essas possibilidades
sedimentadas Dessa forma a orientaccedilatildeo cotidiana primaacuteria revela ldquoexistir () eacute de iniacutecio
o mesmo que perder-se de sirdquo (CASANOVA 2009 p123) pois ldquoo ser-aiacute suspende a
irrealidade originaacuteria que eacute a sua e adquire ao mesmo tempo um modo de ser marcado
por uma aparecircncia de consistecircnciardquo (CASANOVA 2009 p123) Em outras palavras a
absorccedilatildeo na cotidianidade (o caraacuteter de jogado do projeto) oferece uma familiaridade ao
ser-aiacute na qual ele pode se movimentar pois oferece a confiabilidade ocircntica ao projeto de
sentido mas tambeacutem estabelece
ldquoUma relaccedilatildeo com o seu poder-ser que pode ser denominado como fuga uma vez
que a suspensatildeo [de sua irrealidade originaacuteria] promove exatamente uma
tranquilizaccedilatildeo em meio agrave supressatildeo de nadidade constitutiva de um ente marcado
pelo caraacuteter de poder-ser e o ocultamento de um tal caraacuteterrdquo (CASANOVA
2009 p123)
Em meio agrave familiaridade em que o ser-aiacute eacute jogado sua negatividade quiditativa e
seu traccedilo ontoloacutegico essencial como poder-ser satildeo obstruiacutedos agrave compreensatildeo do Dasein
em relaccedilatildeo ao seu ser Voltemos ao nosso exemplo as relaccedilotildees que a autora deste trabalho
pode exercer a partir de suas possibilidades a orientam como ser autora deste trabalho
como aquela que escreve ou ainda como aquela vinculada agrave universidade e assim por
diante Poreacutem nada poderia definir nossa existecircncia como fazem as orientaccedilotildees
cotidianas pois o Dasein que cada um de noacutes somos eacute marcado pela negatividade radical
frente a qualquer definiccedilatildeo ocircntica Como entatildeo essa fuga natildeo nos condena a reproduzir
maquinalmente e atualizar incessantemente as orientaccedilotildees cotidianas - Porque o ser-aiacute
97
mesmo jogado eacute ainda projeto e no limite de seu projeto ele pode se encontrar com seu
poder-ser mais proacuteprio como ser para a morte (das Sein zum Tod)74
Tal como as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha agrave
espera de um ato de vontade do ser-aiacute a conquista de seu ser-proacuteprio ou sua
singularizaccedilatildeo tambeacutem natildeo eacute produto de sua vontade A dinacircmica de singularizaccedilatildeo do
ser-aiacute eacute possiacutevel pela tonalidade afetiva ou o modo de encontrar-se (Befindlicheit)
fundamental da anguacutestia (Angst)
O entender (Verstehen) ou abertura compreensiva eacute sempre dispositiva na medida
em que a compreensatildeo natildeo se refere agrave capacidade ou agraves faculdades cognitivas do homem
ldquoO termo disposiccedilatildeo aponta diretamente para o modo como o ser-aiacute a cada vez se
descobre em meio a uma tal abertura Na medida em que o ser-aiacute eacute um ente
marcado essencialmente por seu caraacuteter existencial e natildeo se mostra senatildeo como
um poder ser ele natildeo pode aprender a abertura do ente na totalidade por meio de
alguma faculdade cognitiva de sua subjetividade () Befindlichkeit diz o
encontrar-se de uma certa maneirardquo (CASANOVA 2006p50)
Encontrar-se de certa maneira natildeo eacute uma espeacutecie de afeto psicoloacutegico que o ser-
aiacute projeta de dentro para fora nem uma relaccedilatildeo de fora para dentro que afeta o ser-aiacute Natildeo
eacute uma relaccedilatildeo causal Eacute uma afinaccedilatildeo (ajuste do tom) que deve ser compreendida
repousando na intenccedilatildeo primaacuteria do ser-aiacute como ser-no-mundo Como o autor explicita
ainda no sect29 ldquoO ser do estado-de-acircnimo do encontrar-se constitui existenciariamente a
abertura do Dasein para o mundordquo (HEIDEGGER 2012 p393) Eacute propositadamente que
se apela para a metaacutefora musical (ldquoafinaccedilatildeordquo) para tentar compreender esse ldquoestado de
acircnimo do encontrar-serdquo como por exemplo acontece quando uma muacutesica eacute tocada ela
afina a abertura compreensiva do ser-aiacute a um estado de acircnimo que noacutes poderiacuteamos chamar
de melancoacutelico A melancolia natildeo estaacute na muacutesica (natildeo haacute como pensar que as tonalidades
afetivas sejam propriedades de um ou outro ente na medida em que o ser de todo e
74 Aqui eacute importante considerar as palavras de Juliaacuten Mariacuteas na Conferecircncia do curso ldquoLos estilos de la
Filosofiacuteardquo Madrid 19992000 Ediccedilatildeo Jean Lauand Traduccedilatildeo Sylvio Horta ldquoa preposiccedilatildeo zu natildeo quer
dizer para mas a Isto eacute a expressatildeo sein zum Tod poderia ser traduzida por estar agrave morte (estar a
la muerte) Qual eacute a condiccedilatildeo dos homens - e das mulheres evidentemente - natildeo somente quando nos
atropela um caminhatildeo ou quando temos pneumonia dupla O homem estaacute agrave morte sempre estaacute na
possibilidade de morrer estaacute em potecircncia proacutexima de morrer estaacute exposto agrave morte e eacute isso justamente o
que quer dizer sein zum Tod estar aberto agrave morte estar nessa possibilidade proacutexima real eficazrdquo
98
qualquer ente eacute aberto em funccedilatildeo do ser-aiacute que os potildee em liberdade no interior do mundo)
como tambeacutem natildeo estaacute no Dasein (natildeo haacute nada de aderente a esse ente que venha agrave tona
sua abertura eacute sempre remetida ao mundo e ao encontro com os entes) Portanto a
melancolia como no exemplo eacute a modificaccedilatildeo da atmosfera promovida pelo proacuteprio
encontrar-se do ser-aiacute em meio aos entes
Mas por qual motivo a anguacutestia aparece em Ser e Tempo como a tonalidade afetiva
ou o modo fundamental de encontrar-se Enquanto os estados de acircnimo natildeo conforme agrave
anguacutestia constituem a abertura compreensiva do ser-aiacute para a lida e para as relaccedilotildees que
podem ser realizadas no interior do mundo em meio aos entes ldquoo diante-de-quecirc da
anguacutestia eacute o ser-no-mundo como talrdquo (HEIDEGGER 2012 p521) Na anguacutestia natildeo haacute
ente que venha ao encontro no qual o ser-aiacute possa se reportar e refugiar-se mas a si mesmo
em sua indeterminaccedilatildeo
ldquoNa anguacutestia o utilizaacutevel do mundo-ambiente e em geral o ente do-interior-do-
mundo se afundam O lsquomundorsquo jaacute nada pode oferecer nem tambeacutem o Dasein-
com com os outros A anguacutestia retira assim do Dasein a possibilidade de no
decair entender-se a partir do lsquomundorsquo e do puacuteblico ser-do-interpretado Ela
projeta o Dasein de volta naquilo por que ele se angustia seu proacuteprio poder ndashser-
no-mundo () Com o porquecirc do se angustiar a anguacutestia abre portanto o Dasein
como ser possiacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012 p525)
Na anguacutestia natildeo haacute a ldquosuspensatildeo de mundordquo como se o Dasein se retirasse dele
O que haacute eacute a suspensatildeo das orientaccedilotildees cotidianas que obliteram sua constituiccedilatildeo
primaacuteria Portanto ainda e agora radicalmente transparente como ser-no-mundo o
Dasein suspende a familiaridade em meio ao ente voltando-se a si mesmo como ser-
possiacutevel que mobiliza sentido e ldquotem mundordquo Lembremos que a necessidade da ontologia
fundamental como radicalizaccedilatildeo do gesto fenomenoloacutegico indica que o ser-aiacute mesmo
natildeo pode ser intencionado natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente e por isso seu
caraacuteter de poder-ser E se pela anguacutestia o ser-aiacute volta-se a si mesmo o que vem eacute essa
indeterminaccedilatildeo radical revelando em uacuteltima medida o ldquoabismo da falta de sentidordquo Esse
abismo natildeo leva a qualquer espeacutecie de niilismo natildeo eacute o que estaacute em jogo aqui ao
contraacuterio pois o ldquoo ser-aiacute se vecirc confrontado com o seu caraacuteter como poder-ser Dessa
confrontaccedilatildeo nasce ao mesmo tempo a possibilidade de assunccedilatildeo de si mesmo como
cuidado (Sorge)rdquo (CASANOVA 2009 p128)
99
Recuperemos por um instante os trecircs momentos constitutivos da questatildeo descritos
no sect2 de Ser e Tempo a pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2)
perguntando sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma
ontologia fundamental A ontologia fundamental como analiacutetica existenciaacuteria em seu
primeiro momento descreve as estruturas fundamentais do ser-aiacute com o propoacutesito de
chegar ao ser desse ente que compreende o sentido de ser (sect12 ao sect38) Contudo eacute
importante considerar que existe certa lsquoartificialidadersquo nesse processo de explicitaccedilatildeo das
estruturas do ser-aiacute Eacute importante manter o sentido de ldquoanaliacuteticardquo Pois o fenocircmeno
mesmo deve ser compreendido como um todo natildeo em funccedilatildeo das partes mas a partir de
sua proacutepria mostraccedilatildeo Em outras palavras a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein deve agora
ser recuperada e este ente deve ser assinalado de maneira propriamente fenomenoloacutegica
ou seja em sua totalidade enquanto fenocircmeno Eacute o que a segunda parte da analiacutetica deve
recuperar ldquoabrangendo os componentes que se interligam ndash a existencialidade a
facticidade e a quedardquo (NUNES 2012 p116)
A partir desses componentes Heidegger apresenta o sentido formal da
preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-em (-o-mundo)
como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo (HEIDEGGER
2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser (existencialidade ou
existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que foi
lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio aos
entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)
Poreacutem natildeo dissemos que o ser-aiacute eacute marcado pela negatividade quiditativa e que
existe segundo possibilidades as quais natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas na morte
como fim de todas as possibilidades Ou nas palavras de nosso autor ldquoE se a existecircncia
determina o ser do Dasein e sua essecircncia eacute constituiacuteda pelo poder-ser entatildeo o Dasein
podendo ser enquanto existir deve-ser cada vez algo de ainda natildeo sendordquo
(HEIDEGGER 2012 p645) Entatildeo essa interpretaccedilatildeo do ser do Dasein como um
fenocircmeno unitaacuterio como Sorge natildeo contradiz tal afirmaccedilatildeo Natildeo haacute qualquer
contradiccedilatildeo pois eacute exatamente
ldquoO cuidado como manifestaccedilatildeo da finitude que permite a Heidegger identificar
a morte como o chegar do Dasein ao fim () e ver nesse ente em sua totalidade
o ser para a morte() O Dasein chega pois a um fim mas que o determina desde
100
o princiacutepio como possibilidade do que viraacute a ser A morte natildeo eacute para ele portanto
o puro aniquilamento representaacutevel conforme a experiecircncia da caducidade ()
impessoal e necessaacuterio na seacuterie de causas naturais () Ontologicamente falando
o homem deixa de viver porque morre e morre porque lhe eacute inerente o morrer
enquanto poder-ser de cada qual () intrasferiacutevel e irrepresentaacutevel na relaccedilatildeo
com o ser a que a existecircncia estaacute concernidardquo (NUNES 2012 pp 117-119)
Como poder-ser (existenciariedade) o ser-aiacute adianta-se em relaccedilatildeo agrave sua
possibilidade mais proacutepria Seu ser-proacuteprio insuperaacutevel como ser-para-a-morte (porque
intransferiacutevel a qualquer outro) revela-se como a possibilidade para a impossibilidade
ou seja impossibilidade de sua existecircncia lanccedilada (facticidade) de ter um lsquoaiacutersquo sendo o
lsquoaiacutersquo a compreensatildeo dos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)
Mas eacute importante considerar que a preocupaccedilatildeo ou o cuidado natildeo eacute a totalidade alcanccedilada
por aquele que chegou agrave singularizaccedilatildeo pela tonalidade fundamental da anguacutestia ela eacute a
constituiccedilatildeo ontoloacutegica de todo e qualquer Dasein O que a singularizaccedilatildeo promove
como possibilidade aberta pela anguacutestia eacute a transparecircncia desse ser-proacuteprio cada vez
obliterado na cotidianidade Na cotidianidade a morte eacute vista como um ldquomero deixar de
viverrdquo transferido a cada vez ao outro que morreu ldquodessa vezrdquo75 em um tratamento
radicalmente impessoal pela indiferenccedila frente a esse poder-ser proacuteprio e irrevogaacutevel
A morte como fim de todas as possibilidades enquanto poder-ser extremo eacute
indeterminada mesmo que seja a certeza mais proacutepria Pois natildeo se chega agrave morte
pensando nela o que estaacute em jogo eacute a responsabilidade do ser-aiacute frente a essa
transparecircncia a assunccedilatildeo pelo ser-aiacute de sua nulidade que atravessando-o (sem qualquer
conteuacutedo prescritivo do que deve-se ou natildeo fazer) pode orientar o caminho de sua
existecircncia Existecircncia ainda faacutetica ainda em meio aos entes de um mundo sedimentado
Em outras palavras caminho que reconduz o ser-aiacute ao ldquoaiacuterdquo que ele tem que ser e que ele
radicalmente eacute O que a singularizaccedilatildeo aponta eacute ldquoLeben ist Tod und Tod ist auch ein
75 Heidegger indica a novela de LN Tolstoacutei ldquoA morte de Ivan Ilitchrdquo para ilustrar o fenocircmeno da morte
tratada impessoalmente e o abalo dessa impessoalidade (Cf HEIDEGGER 2012 p699) Poderiacuteamos
tambeacutem indicar a partir de nossa cotidianidade exemplos do tratamento impessoal acerca da morte as
estatiacutesticas dos ldquomortos nas estradasrdquo a notiacutecia da morte de alguma personalidade puacuteblica e ainda - para
natildeo confundirmos esse fenocircmeno com um mero ldquonoticiarrdquorsquo a morte - a maneira mesma que tratamos a
morte de algueacutem proacuteximo pois mesmo tomados pelo pesar o que constatamos eacute a ldquoperdardquo do outro Seria
possiacutevel restaurar a ponte mesmo que indicativa que Heidegger natildeo admite entre o fenocircmeno impessoal
da morte e nosso ser-proacuteprio como ser-para-a-morte Talvez algo acessiacutevel pela linguagem poeacutetica Aqui
eacute oportuno considerar os belos versos do poema Na morte de Henriqueta Lisboa ldquoNa morte nos
encontramos Sim na morte Tempo de consoacutercio e de viacutenculordquo In Flor da Morte Belo Horizonte Ed
UFMG 2004
101
Leben76rdquo Nessa indicaccedilatildeo ldquoO si-mesmo que como tal tem de pocircr o fundamento de si
mesmo nunca pode se assenhorar desse fundamento e tem de existindo assumir no
entanto o ser-fundamento Ser o proacuteprio fundamento dejectado eacute o poder-ser em jogo na
preocupaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p779) Eacute pela assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo
(Sorge) que o ser-aiacute pode compreender que os sentidos mobilizados em sua existecircncia satildeo
existenciariamente remetidos ao seu ser mesmo ente histoacuterico e finito radicalmente
marcado pela nulidade essencial Isso posto recuperamos uma vez mais agora com toda
a importacircncia as palavras de nosso autor ldquoo lsquofundamentorsquo soacute eacute acessiacutevel como sentido
mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta-de-sentidordquo (HEIDEGGER 2012 p431)
A transparecircncia de seu ser-proacuteprio ao ser-aiacute eacute assumir ldquoser como fundamento
dejectado da nulidade Mas a assunccedilatildeo da dejecccedilatildeo significa para o Dasein ser
propriamente como ele a cada vez jaacute erardquo (HEIDEGGGER 2012 p887) Em outras
palavras a assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute para o ser-aiacute reconhecer que ele
eacute existecircncia radicalmente faacutetica (Faktizitaumlt) ainda em meio aos entes de um mundo
sedimentado Desse modo ldquoentender o seu ser ainda e sempre ldquoem seu essencial ser-
culpadordquo (HEIDEGGER 2012 p887) A singularizaccedilatildeo do ser-aiacute natildeo promove um
distanciamento da vida cotidiana natildeo faz com que ele se retire da queda mas que a
assuma e assim assuma ldquoa responsabilidade pela necessidade de pagar uma diacutevida que
cada ser-aiacute tem para consigo mesmordquo (CASANOVA 2009 p136) Diacutevida de assumir
seu ser como existecircncia como projeto-jogado e como poder-ser proacuteprio marcado pela
possibilidade extrema da morte Essa culpa do ser-aiacute eacute a assunccedilatildeo de que ele jaacute sempre
desonerou seu ser ele jaacute sempre deixou seu ser sob tutela do mundo e das orientaccedilotildees
cotidianas - por sua condiccedilatildeo de soacute poder-ser a partir da absorccedilatildeo imediata no mundo
Essa culpa natildeo eacute a mesma das concepccedilotildees cristatildes Em Pascal por exemplo a culpa eacute
consequecircncia da perda de nossa primeira natureza em funccedilatildeo do pecado original77 Para
Heidegger a culpa eacute consequecircncia do fato de natildeo termos qualquer natureza Natildeo haacute como
se retirar dessa condiccedilatildeo eis nossa culpa essencial e nossa queda irremediaacutevel
76 ldquoA vida eacute morte e a morte eacute tambeacutem uma vidardquo HOumlLDERLIN Friedrich In lieblicher Blaumlue - Disponiacutevel
em httpswwwhsaugsburgde~harschgermanicaChronologie19JhHoelderlinhoe_0801html Acesso
em 21 marccedilo 2016 77 Cf por exemplo os aforismos 131 e 616 de Pascal nos Penseacutees Ediccedilatildeo e organizaccedilatildeo Lafumaacute
102
Mas se chegamos agrave totalidade originaacuteria do todo-estrutural do ser-aiacute ou em outras
palavras agrave assinalado constituiccedilatildeo propriamente fenomenoloacutegica do ser-aiacute como
preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute necessaacuterio considerar o sentido ontoloacutegico desse fenocircmeno
Lembramos mais uma vez o que eacute ldquosentidordquo para Heidegger ldquoSentido eacute aquilo em que a
entendibilidade de algo se manteacutemrdquo (2012 p429) Se o ser-aiacute pode ser indicado em sua
totalidade fenomecircnica (ainda que radicalmente diverso dos entes do interior do mundo)
eacute necessaacuterio como expresso no sect65 perguntar ldquoQue possibilita o ser do Dasein e assim
sua existecircncia factual (faktische)
O sentido de ser do Dasein como Sorge a compreensatildeo de sua nulidade essencial
a partir do fenocircmeno unitaacuterio de seu ser aponta para aquilo que pode sustentaacute-lo ldquoA
temporalidade descobre-se como o sentido da preocupaccedilatildeo proacutepriardquo (HEIDEGGER
2012 p889)
Na continuaccedilatildeo do sect65 o autor descreve como a preocupaccedilatildeo reside na
temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-
em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo
(HEIDEGGER 2012 p891) Futuro (poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente
(presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees temporais como as que tomamos diariamente mas
o caraacuteter essencial da existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre
adiantado (futuro) em relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza
as possibilidades na facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva da
proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica a cada vez presente na qual nos orientamos inicialmente em
nossos comportamentos) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no
presente esse passado em seus comportamentos e projetos E como adverte o autor
ldquoOs momentos da preocupaccedilatildeo natildeo se amontoam como a temporalidade ela
mesma natildeo vai tambeacutem lsquocom o temporsquo se compondo de futuro ser-do-sido e
presente A temporalidade natildeo lsquoeacutersquo em geral nenhum ente Ela natildeo eacute mas se
temporalizardquo (HEIDEGGER 2012 p893)
Ou seja a temporalidade acontece na existecircncia do ser-aiacute na unidade do
fenocircmeno que se mostrou como preocupaccedilatildeo ou cuidado (Sorge) E ainda acontece jaacute no
que o ser-aiacute entende (Verstehen) como o sentido ontoloacutegico desse acontecimento mesmo
da compreensatildeo Por isso ainda no iniacutecio desse toacutepico dissemos que a constituiccedilatildeo aberta
103
e remetida ao mundo (ao seu ldquoaiacuterdquo) do ser-aiacute eacute dada como acontecimento compreensivo
pois em seu sentido ontoloacutegico eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) que se temporaliza78
Assim finalmente chegamos agrave dupla abertura de sentido em Ser e Tempo a que
chamamos de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo a abertura compreensiva do ser-aiacute
remetida ao mundo e o sentido de ser do ser-aiacute a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) O
caraacuteter fundamental dessa estrutura se daacute pelo fato que eacute a partir dela que o ser-aiacute pode
conceder significaccedilotildees e por isso a primeira estrutura do que pode tornar manifesto o
fenocircmeno da linguagem Agora eacute necessaacuterio descrever a relaccedilatildeo entre mundo e
significatividade ainda como parte dessa primeira estrutura para que alcancemos a
segunda estrutura o fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) e a partir dele agrave linguagem
III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)
No toacutepico anterior apresentamos a constituiccedilatildeo aberta do ser-aiacute lanccedilada e
remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo Mas o que constitui algo assim como mundo O que
afinal quer dizer ldquomundordquo (Welt) Nesse sentido precisamos retomar a descriccedilatildeo
realizada anteriormente acerca da referecircncia e da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) Essa
retomada natildeo significa prolixidade mas consequecircncia inevitaacutevel da ligaccedilatildeo essencial
entre ser-aiacute e mundo E se antes a descriccedilatildeo foi explicitada para compreendermos a
abertura de sentido em funccedilatildeo do ser-aiacute agora seraacute exposta para compreendermos o
proacuteprio ldquoaiacuterdquo
Sem pressupor mundo como ente ou como espaccedilo a pesquisa fenomenoloacutegica
aproximou-se dos campos de mostraccedilatildeo de algo como lsquomundorsquo escapando de qualquer
preacutevia teorizaccedilatildeo Nessa direccedilatildeo vimos que algo como lsquomundorsquo se daacute inicialmente a
partir da abertura primaacuteria de sentido promovida pelo entender ou compreensatildeo
78 Como indicamos (nota 66) haacute uma questatildeo natildeo respondida em Ser e Tempo a temporalidade (Zeitlichkeit)
estaria afinal assentada no tempo histoacuterico da abertura Questatildeo expressa na uacuteltima linha daquela obra ldquoO
tempo (Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Essa questatildeo
aponta para o limite da obra de 1927 na medida em que o sentido de ser remetido e em funccedilatildeo de um ente
especiacutefico mesmo que privilegiado apresenta seus limites Natildeo aprofundaremos esse problema Nesse
sentido conferir inicialmente HEIDEGGER M Os problemas fundamentais da fenomenologia Trad
Marco Antocircnio Casanova Petroacutepolis RJ Vozes 2012 ndash Parte II (pp331-478) Conferir tambeacutem
CASANOVA (2009 pp 140-145) NUNES (2012 pp200-220) e STEIN (2001 pp297-309)
104
(Verstehen) Esse existenciaacuterio primaacuterio acontece sempre como interpretaccedilatildeo
(Auslegung) que jaacute potildee em visatildeo o que entende
A partir da lida praacutetica e natildeo teoacuterica que o ser-aiacute trava inicialmente com os entes
intramundanos (sect15) Heidegger chega a noccedilatildeo de mundo circundante ou mundo-
ambiente (Umwelt) Poreacutem a descriccedilatildeo do uso dos utensiacutelios (Zeug) em um mundo-
ambiente (Umwelt) eacute insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica
de todo ente em geral Assim conforme o sect 17 Heidegger descreve o fenocircmeno da
referecircncia a partir da descriccedilatildeo do sinal enquanto utensiacutelio que tem em sua serventia
especiacutefica o mostrar e ao fazecirc-lo conduz a compreensatildeo da instrumentalidade ou
utilizabilidade (Zuhandenheit) de todo e qualquer ente A relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia
explicita o fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua
finalidade na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal
enquanto instrumento nos mostra o mundo-circundante (Umwelt) e potildee em relevo o
caraacuteter da referecircncia que natildeo deve ser confundido com o proacuteprio sinal pois eacute a estrutura
ontoloacutegica do manual e fundamento constitutivo da mundidade como rede referencial na
qual o Dasein jaacute se encontra inserido na abertura primaacuteria remetida ao mundo na lida
praacutetica
O ldquomostrarrdquo do sinal tal como o ldquomartelarrdquo do martelo ou a emprego de todo e
qualquer ente natildeo satildeo propriedades essenciais presentes nos lsquoobjetosrsquo apreendidas pelo
ser-aiacute mas satildeo trazidas agrave luz na e pela estrutura da remissatildeo a partir do trato praacutetico E
ldquoser-remetido-ardquo como constituiccedilatildeo do utilizaacutevel eacute em uacuteltima medida ldquoconjuntar-se agraverdquo
nas palavras de Heidegger
ldquoConjuntaccedilatildeo eacute o ser do interior-do-mundo em relaccedilatildeo ao qual esse ente jaacute eacute e
de pronto cada vez posto-em-liberdade () Isto de que ele tenha uma
conjuntaccedilatildeo comjunto eacute a determinaccedilatildeo ontoloacutegica do ser desse ente e natildeo um
enunciado ocircntico sobre o enterdquo (HEIDEGGER 2012 p251)
Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo circundante (Umwelt)
o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a complexa rede de
remissotildees referenciais e revelando a totalidade conjuntural ou conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)
A totalidade conjuntural se mostra anterior a qualquer determinaccedilatildeo particular dos entes
intramundanos - uma vez que eacute a conjuntura mesma que determinaraacute os usos possiacuteveis a
partir da conformidade dos entes nela inseridos- revelando que o utensiacutelio em si mesmo
105
e em uacuteltima medida todo e qualquer ente no interior do mundo natildeo possui qualquer
determinaccedilatildeo essencial mas a recebe a partir do campo de uso da conjuntura na qual estaacute
inserido Como a partir daiacute se chega entatildeo agrave noccedilatildeo de algo como ldquomundordquo A conjuntura
como conformaccedilatildeo de todo e qualquer ente eacute dada em funccedilatildeo do que Heidegger chama
de significatividade (Bedeutsamkeit)
ldquoAo se manter na familiaridade com a abertura das relaccedilotildees o entender as potildee
diante de si como aquilo em que seu remeter se move O entender deixa-se
remeter nestas relaccedilotildees e por elas mesmas O caraacuteter relacional dessas relaccedilotildees
do remeter noacutes o aprendemos como significar Na familiaridade com essas
relaccedilotildees o Dasein lsquosignificarsquo a si mesmo daacute-se a entender originariamente seu
ser e poder-ser relativamente a seu ser-no-mundo [] O todo relacional desse
significar noacutes o denominamos significatividade Ela eacute o que constitui a estrutura
do mundordquo (HEIDEGGER2012p261)
Essa passagem traz o elemento crucial agrave nossa investigaccedilatildeo a significatividade
como a condiccedilatildeo mesma ou melhor a proacutepria lsquointeligibilidadersquo do mundo natildeo como
arcabouccedilo teoacuterico mas como acircmbito da interpretaccedilatildeo anterior a qualquer definiccedilatildeo
predicativa do ente A totalidade conjuntural que conforma os entes intramundanos
determina-os significativamente em seu ldquocomordquo ou seja os faz ver e aparecer como ente
como algo no interior da abertura de sentido do proacuteprio mundo Isto quer dizer que a
conjuntaccedilatildeo deixa ver o ente em seu ldquoser enterdquo como algo que lsquoeacutersquo a partir de um horizonte
ldquode tal maneira que ele se torna primeiramente acessiacutevel como ente do-interior-do-
mundordquo (HEIDEGGER 2012p255)
A abertura ou entendimento preacutevio no qual o ser-aiacute histoacuterico e finito faz o ente
vir ao encontro na conjuntura e o mobiliza conforme seu foco existencial mostra o
fenocircmeno do mundo e isso como jaacute apresentamos a partir da familiaridade em que o
Dasein se movimenta pelo seu caraacuteter de jogado O fenocircmeno do mundo eacute explicitado
por Heidegger na seguinte passagem
ldquoO Dasein se remete jaacute cada vez e sempre a partir de um em-vista-de-quecirc ao
com-quecirc de uma conjutaccedilatildeo isto eacute na medida em que eacute ele deixa jaacute cada vez e
sempre o ente vir-de-encontro como utilizaacutevel Aquilo-em-que o Dasein
previamente se entende no modus do remeter-se eacute aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do
preacutevio fazer o ente vir-de-encontro O em-quecirc do entender que se-remete como
aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do fazer o ente vir-de-encontro no modo-de-ser da
conjuntaccedilatildeo eacute o fenocircmeno do mundo E a estrutura daquilo a que o Dasein se
remete eacute o que constitui a mundidade do mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 257)
106
Mas essa passagem tambeacutem mostra uma diferenccedila que natildeo pode ser ignorada o
fenocircmeno do mundo e a mundidade (Weltlichkeit) do mundo O primeiro diz respeito agrave
mobilizaccedilatildeo de uma determinada conjuntura jaacute familiar a partir dos focos existenciais do
ser-aiacute possiacuteveis em um horizonte descerrado (aspecto ocircntico) a segunda indica o aspecto
estrutural ontoloacutegico do mundo Por isto a significatividade explicitada inicialmente
pelo fenocircmeno da referecircncia e trazida agrave tona pela noccedilatildeo de conjuntaccedilatildeo eacute chamada de
estrutura formal da mundidade pois natildeo diz respeito a uma estrutura deste ou daquele
ldquomundordquo especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica de algo como ldquomundordquo
A significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados
(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Quando um ente se mostra
na e pela ocupaccedilatildeo (Besorgen) vem agrave conjuntaccedilatildeo no momento mesmo do trato manual
e assim ele eacute posto em liberdade em seu ser como utilizaacutevel (Zuhandenes) e natildeo eacute- como
compreendeu a tradiccedilatildeo assentada na noccedilatildeo sujeito-objeto ndash uma lsquoresrsquo uma coisa um
ldquomaterial disponiacutevel no mundordquo Ou seja ele natildeo se mostra primariamente como um
subsistente (Vorhandener) jaacute que ldquofamiliaridade com o mundo natildeo exige
necessariamente uma transparecircncia teoacuterica das relaccedilotildees do mundo que constituem o
mundo como mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 259)
Para Heidegger (ao menos em Ser e Tempo) os entes no interior do mundo (entes
intramundanos) natildeo conforme ao modo de ser do Dasein satildeo de dois modos ou como
duas categorias como Zuhanden (agrave matildeo) que se mostra de modo originaacuterio no trato
praacutetico e como Vorhanden (ente simplesmente dado ou subsistente) que aparece de
modo derivado agrave mostraccedilatildeo praacutetica Trazendo agrave tona a gecircnese praacutetica do significado
Vigo (2012) chama a atenccedilatildeo acerca do tratamento pouco extensivo agraves categorias que
Heidegger oferece em 1927
ldquoHeidegger oferece tatildeo somente um tratamento muito fragmentaacuterio desses
aspectos que jaacute foi explicado pelo fato expressamente declarado do caraacuteter
preparatoacuterio em SZ Ela natildeo conteacutem mesmo remotamente a totalidade do que
deveria conter um modelo ontoloacutegico de aspiraccedilatildeo integral que abarca as
diferentes ontologias regionais e apresentar o repertoacuterio das categorias mais
relevantes para cada uma delas mostrando aleacutem disso as correspondentes
relaccedilotildees de dependecircncia etcrdquo (p113)
O caraacuteter preparatoacuterio e ainda formal de Ser e Tempo o qual apenas estabelece a
diferenccedila categorial entre Zuhanden e Vorhanden parece querer marcar uma diferenccedila
107
mais fundamental ainda vinculada agraves primeiras preleccedilotildees da deacutecada de 1920 nas quais a
derivaccedilatildeo do teoreacutetico era atribuiacuteda a uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Em Ser e
Tempo ldquoa diferenccedila entre o conhecimento matemaacutetico e o conhecimento filosoacuteficordquo ganha
um contorno definitivo como diferenccedila ldquoentre uma concepccedilatildeo de loacutegos provinda da loacutegica
e outra que adveacutem do conceito de aleacutetheiardquo (STEFANI 2009 p51)
Dessa forma qualquer ente tomado de forma teoacuterica com um significado
determinado eacute um modo de acesso ou um visar o ente de modo derivado pelo ser-aiacute (natildeo
podemos esquecer que a mobilizaccedilatildeo dos entes eacute realizada em funccedilatildeo dos focos
existenciais do Dasein o que foi chamado de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo) Em
outras palavras como a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que significado
(Bedeutung) mas sua condiccedilatildeo de possibilidade qualquer teoria ou modo de tratamento
teoacuterico de um ente subsistente (Vorhandenes) eacute tributaacuterio da sedimentaccedilatildeo de um mundo
da sedimentaccedilatildeo de uma totalidade conjuntural que vem ao encontro do ser-aiacute
originariamente na ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhandenes) Assim ldquoo mundo faacutetico
onde se desdobra a existecircncia do ser-aiacute eacute constituiacutedo pela solidificaccedilatildeo dos significados
dos entes intramundanos e pela sedimentaccedilatildeo dos sentidos em virtude dos quais o ser-aiacute
desdobra o poder-ser que ele eacuterdquo (CABRAL 2015 p94) O ser-aiacute como projeto jogado
mobiliza sentidos e atualiza essas significaccedilotildees calcificadas de um mundo histoacuterico Algo
como um conceito uma definiccedilatildeo ou um significado do ente eacute possiacutevel por essa abertura
de sentido interpretativa preacutevia e sedimentada articulada pela significatividade e dada de
maneira preacute-linguiacutestica
Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez
familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o
Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como
lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo
(HEIDEGGER 2012p261 grifo nosso)
Prestemos atenccedilatildeo agrave uacuteltima consideraccedilatildeo dessa passagem significaccedilotildees natildeo satildeo
palavras elas fundam palavras Lembremos a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica o significado
natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua mostraccedilatildeo
Vimos no capiacutetulo anterior que o loacutegos do fenocircmeno para Heidegger eacute loacutegos apofacircntico
(λόγος αποφατικός) o mostrar do fenocircmeno a respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que
se mostra como algo de maneira indiferenciada natildeo determinada E ainda esse mostrar
do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes sempre em meio a
108
um campo interpretativo Ou seja agora podemos dizer eacute o mostrar o ente como ente
(algo como algo) no interior do mundo Na abertura que entende (Verstehen) remetida ao
mundo originariamente na lida praacutetica algo vem ao encontro e na medida que se mostra
jaacute se mostra interpretado (Auslegung) como algo do interior do mundo Mundo
compreendido em seu aspecto ontoloacutegico natildeo como ente espaccedilo ou soma de coisas (res)
disponiacuteveis agrave nossa apreensatildeo Mas abertura compreensiva-interpretativa do ser-aiacute
estruturalmente articulada em sua totalidade- enquanto ldquomundordquo - pela significatividade
E eacute dessa articulaccedilatildeo que podem vir significados e dos significados palavras assim
ldquoPodemos dizer que o que estaacute em jogo na discussatildeo de Heidegger com a
concepccedilatildeo husserliana natildeo eacute outra coisa em definitivo que a questatildeo relativa ao
modo fenomenoloacutegico adequado de considerar a experiecircncia antepredicativa
como tal Trata-se de uma questatildeo metodicamente fundamental justamente na
medida em que concerne de modo direto a adequada determinaccedilatildeo do terminus a
quo79 para uma possiacutevel explicaccedilatildeo da origem do enunciado predicativo como
modo derivado e fundado da interpretaccedilatildeo Atado aos preconceitod da ontologia
tradicional que se orienta a partir da estrutura do loacutegos apofatikoacutes considerando
o mesmo como algo dado lsquopresente agrave vistarsquo (Vorhandener) Husserl faz
basicamente o mesmo que jaacute havia feito a teoria tradicional das categorias desde
Aristoacuteteles em diante a saber retroprojetar a estrutura do enunciado da forma S-
P para o acircmbito dos lsquoobjetosrsquo que natildeo eacute outro que dos entes intramundanos
considerados como dados meramente lsquopresente agrave vistarsquo (VIGO 2012 p96)
Se a discussatildeo de Heidegger com a concepccedilatildeo husserliana se torna patente eacute
importante destacar tambeacutem a discussatildeo com a concepccedilatildeo diltheyniana - tendo em vista
o esclarecimento da noccedilatildeo de ldquosignificatividaderdquo Vimos que a categoria do significado
como apresentada por Dilthey possui um aspecto decisivo a relaccedilatildeo entre vivecircncia e
compreensatildeo eacute o ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da hermenecircutica pois traz em si a
categoria do significado como o nexo da vivecircncia com a realidade concreta sem se
apoiar em qualquer elemento transcendente agrave proacutepria experiecircncia vivida Contudo como
observa Heidegger no sect43 de Ser e Tempo o viacutenculo de Dilthey agrave teoria do conhecimento
da eacutepoca compreendendo a vivecircncia como vivecircncia de consciecircncia ou ldquoa relaccedilatildeo-de-ser
da consciecircncia com o real ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p583) faz com que a lsquovidarsquo
seja apresentada de modo indiferenciado sem a compreensatildeo de sua sustentaccedilatildeo
ontoloacutegica jaacute que a vivecircncia particular da consciecircncia como vida conexa e estruturante
79Termo a partir do qual Ponto de partida
109
eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu projeto hermenecircutico Mas Heidegger
reconhece ldquoDilthey natildeo soacute acentua que a realidade nunca eacute dada de modo primaacuterio no
pensamento e na apreensatildeo mas indica sobretudo que o conhecer ele mesmo natildeo
consiste em julgar e que saber eacute uma lsquorelaccedilatildeo de serrsquordquo (HEIDEGGER 2012 p583)
Tentando tornar mais claro mesmo que para Dilthey o mundo natildeo apareccedila como um
conjunto de coisas prontas agrave apreensatildeo da razatildeo humana mais ainda que as coisas
enquanto res natildeo sejam tomadas como a realidade (Realitaumlt) o fato de o pressuposto da
vivecircncia provir da consciecircncia obscurece o fundamento ontoloacutegico de algo como ldquovidardquo
Por isso escapou a Dilthey a relaccedilatildeo primaacuteria entre ser-aiacute como ser-no-mundo em sua
radicalidade ontoloacutegica como relaccedilatildeo fundante de toda e qualquer compreensatildeo de ser
Talvez por esse motivo como observa DASTUR (2007)
ldquoNo trabalho publicado em 1927 Heidegger natildeo usa frequentemente termo
hermenecircutica que aparece apenas trecircs ou quatro vezes () - no paraacutegrafo 7 da
introduccedilatildeo quando eacute para definir a fenomenologia no paraacutegrafo 33 que trata da
enunciaccedilatildeo e no paraacutegrafo 45 que define o iniacutecio da segunda parte da tarefa de
uma interpretaccedilatildeo do Dasein - enquanto o termo Auslegung que significa tanto
interpretaccedilatildeo e explicaccedilatildeo eacute muito mais frequentemente utilizadordquo (p74)
E quando Heidegger retoma o termo ldquohermenecircuticardquo no sect33 ele ressalta o caraacuteter
existenciaacuterio de tal interpretaccedilatildeo
ldquoA enunciaccedilatildeo natildeo pode negar sua origem ontoloacutegica a partir da interpretaccedilatildeo
que-entende O ldquocomordquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor entendedor
(ἑρμηνεία) noacutes os chamamos lsquocomorsquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio para
diferenciaacute-lo do ldquocomordquo apofacircntico da enunciaccedilatildeo (Aussage)rdquo (HEIDEGGER
2012 p 447)
O que eacute essa diferenccedila entre o ldquocomordquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio e o ldquocomordquo
apofacircntico da enunciaccedilatildeo Eacute a diferenccedila entre Auslegung (interpretaccedilatildeo) e Aussage
(enunciado) A diferenccedila consiste no fato de que a originariedade da mostraccedilatildeo dos entes
em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) - pela
significatividade (Bedeutsamkeit) que a articula - e sua derivaccedilatildeo como ente
simplesmente dado (Vorhanden) ndash fazendo emergir algo como significado (Bedeutung)-
ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) em sua ligaccedilatildeo
derivativa agrave interpretaccedilatildeo (Auslegung) De outra maneira como a estrutura interpretativa
aberta pela compreensatildeo ou entendimento (Verstehen) transforma-se em proposiccedilatildeo
Na introduccedilatildeo desse capiacutetulo escrevemos que na fenomenologia heideggeriana veio agrave
110
tona o aspecto ontoloacutegico do conteuacutedo significativo Essa fenomenologia como ontologia
acabou por revelar de um lado a historicidade de todo e qualquer significado que pudesse
vir agrave palavra por outro que o campo de sentido no qual algo pode manter-se em seu
significado tambeacutem era histoacuterico Eacute necessaacuterio portanto a partir de agora mostrar como
o significado aberto pela compressatildeo-interpretativa (algo como algo) ganha sua forma
expressa inicialmente a partir do fenocircmeno da proposiccedilatildeo e a partir dessa derivaccedilatildeo
podemos ter acesso ao fenocircmeno da linguagem
II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da
interpretaccedilatildeo (Auslegung)
A anaacutelise da enunciaccedilatildeo (Aussage) conforme apresenta por Heidegger no sect33 de
Ser e Tempo constitui a segunda estrutura descrita na obra a qual nos permite
compreender o fenocircmeno da linguagem (Sprache) como a manifestaccedilatildeo uacuteltima de um
horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo dos entes previamente
articulada O fenocircmeno da linguagem aparece como resultado dos trecircs objetivos de sua
investigaccedilatildeo neste momento do tratado os quais listamos a seguir
1) Como a estrutura compreensiva-interpretativa (apresentada no toacutepico anterior)
sofre uma modificaccedilatildeo
2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos
3) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade
Como antecipamos e a partir da finalidade da anaacutelise acima apresentada
podemos dizer que o que estaacute em jogo nesse momento da analiacutetica eacute compreender que ldquoa
siacutentese predicativa fundamenta-se numa daccedilatildeo originaacuteria e eacute em funccedilatildeo da experiecircncia
antepredicativa que se opera a atribuiccedilatildeo do predicado ao sujeitordquo (NUNES 2012 p165)
Em outras palavras como a estrutura interpretativa aberta pela compressatildeo (algo como
algo) transforma-se em proposiccedilatildeo (Sujeito-predicado) E essa derivaccedilatildeo eacute elencada nas
trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo (Aussage)
1) Mostraccedilatildeo (Aufzeigung)
2) Predicaccedilatildeo (Praumldikation)
111
3) Comunicaccedilatildeo (Mitteilung)
Essas significaccedilotildees do termo Aussage ainda segundo Heidegger possuem caraacuteter
analiacutetico pois satildeo ldquotiradas do fenocircmeno que ela designa as quais delimitam em sua
conexatildeo e unidade a completa estrutura da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p437)
Essa unidade estaacute assentada nas condiccedilotildees preacutevias tendo em vista que ldquoa enunciaccedilatildeo natildeo
eacute um comportamento-que-flutua-no-ar e que possa por si mesmo abrir o ente
primariamente mas se comporta jaacute sempre sobre a base de ser-no-mundordquo
(HEIDEGGER 2012 p443)
Como vimos no capiacutetulo anterior as condiccedilotildees preacutevias conforme apresentadas no
Relatoacuterio Natorp satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a direccedilatildeo da
visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a ldquovisibilidaderdquo (Sichtweite) De
modo mais claro em (1) temos o acircmbito da realidade dada em uma preacutevia abertura
temporal de sentido em (2) temos a direccedilatildeo que jaacute determinou algo ldquocomo-algordquo (Als-
was) e jaacute ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu lugar
significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de toda
possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o como
do aparecer dos entes em seu ser seu significado e as possibilidades de comportamentos
do ser-aiacute eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto
(1) e jaacute interpretado (2) e por isso pode mover-se em pretensotildees de objetividade e
definiccedilatildeo Essas condiccedilotildees estatildeo articuladas com a interpretaccedilatildeo de Heidegger dos termos
respectivamente noucircs phroacutenesis e sophiacutea e assentadas na noccedilatildeo de verdade como
desvelamento (ἀλήθεια) Em Ser e Tempo Heidegger reelabora essas interpretaccedilotildees com
uma terminologia proacutepria respectivamente Vorhabe (ter-preacutevio) Vorsicht (ver-preacutevio)
e Vorgriff (conceito-preacutevio) e esse tripeacute
ldquoForma o arcabouccedilo projetivo do compreender que nos abre os entes ao sabor
dos nexos da referecircncia na conduta do trato atraveacutes dos quais se estende a rede
de significatividade () Eacute nessa conduta e portanto na experiecircncia
antepredicativa como a praacutexis maciccedila do mundo-da-vida em seu imediato e
frequente transcorrer cotidiano que Heidegger coloca a nascente do sentidordquo
(NUNES 2012 p168)
Como essas condiccedilotildees preacutevias devem ser compreendidas em vista do caraacuteter de
projeto-jogado do ser-aiacute natildeo eacute gratuita a designaccedilatildeo da abertura do ser-aiacute ao mundo como
112
ldquoabertura de sentido fundamentalrdquo A abertura compreensiva fundamental descerra o
poder-ser do ser-aiacute como projeto mas ao projetar-se ele eacute lanccedilado num ldquoaiacuterdquo histoacuterico O
seu poder-ser se lanccedila num campo de jogo jaacute descerrado interpretado e articulado por
essas condiccedilotildees E assim essas condiccedilotildees preacutevias ldquoreconduz[emcc]-nos ao ciacuterculo
hermenecircutico ontoloacutegico-histoacuterico que circunscreve por forccedila da finitude que faz do
homem um Daseinrdquo (NUNES 2012 p168) No que me lanccedilo ao mundo sou e o mundo
eacute como ele eacute como escreve Fernando Pessoa (2006 p177)
ldquoCreio no mundo como um malmequer
Porque o vejo Mas natildeo penso nele
Porque pensar eacute natildeo compreender
O Mundo natildeo se faz para pensarmos nele
(Pensar eacute estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordordquo
Talvez esses versos possam iluminar o que estaacute em questatildeo nesse paraacutegrafo
Poderiacuteamos nos questionar por qual motivo Heidegger natildeo passa da interpretaccedilatildeo
(Auslegung) ao discurso (Rede) pois este como veremos no proacuteximo capiacutetulo remete agrave
fala como fundamento ontoloacutegico da linguagem O sect 33 se refere a uma discussatildeo muito
especiacutefica mas que tem um lugar privilegiado na ontologia fundamental e estaacute
diretamente relacionada ao sect44 da mesma obra A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo de verdade
da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca que era a dos
neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa concepccedilatildeo
tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da verdade em
direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave proposiccedilatildeo Com
isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa medida
condicionando a ontologia agrave loacutegica
Courtine (1996) elabora essa problemaacutetica com clareza A partir de trecircs etapas
ele nos apresenta o caminho que conduz nosso autor da loacutegica agrave liacutengua A primeira etapa
diz respeito aos trabalhos de juventude de Heidegger ldquoainda marcados pela problemaacutetica
da validade como primeira elucidaccedilatildeo do ser no juiacutezordquo (COURTINE 1996 p14) Jaacute a
segunda etapa que Courtine denomina destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica consiste em regressar
da interpretaccedilatildeo ldquoescolarrdquo da loacutegica aristoteacutelica a uma problematizaccedilatildeo mais original do
loacutegos compreendido como modo de desvelamento Eacute nessa segunda etapa que estaacute
113
inserido o trabalho de Ser e Tempo sendo a passagem da primeira agrave segunda etapa
marcada pelo curso de 1925-1926 Logik die Frage nach der Wahrheit (GA21) A
terceira seria ainda uma etapa de destruiccedilatildeo mas de modo diferente marcada pelo que
Courtine denomina desorientaccedilatildeo ou ldquoabalordquo (erschuumlttern) e encontra sua imagem
expliacutecita no texto de 1935 ldquoIntroduccedilatildeo agrave metafiacutesicardquo
Portanto na primeira etapa a loacutegica para o jovem Heidegger eacute ainda apreendida
como loacutegica do ldquosentidordquo ou da ldquovalidaderdquo
ldquoA ideacuteia segundo a qual a Geltung a validade define o modo de ser proacuteprio das
proposiccedilotildees e das verdades vem como se sabe da loacutegica de Lotze Numa nota
das Neuere Forschungen uumlber Logik (GA I p23) Heidegger indicava a respeito
da Loacutegica de Lotze que acabava de ser reeditada sua loacutegica deve sempre ser
considerada como a obra fundamental da loacutegica moderna () E Heidegger que
ateacute aqui se exprimia como disciacutepulo fiel de Husserl terminava por acrescentar
esta questatildeo rica em posteridade para seu proacuteprio pensamento ldquoMas logo se
coloca a questatildeo o que eacute ndash sentidordquo (GA I p170)rdquo (COURTINE 1996 pp16-
17)
Vimos como o sentido (Sinn) em Ser e Tempo eacute apresentado sob uma perspectiva
radical relacionado agrave problematizaccedilatildeo mais original do lsquoloacutegosrsquo como mostraccedilatildeo do
fenocircmeno em seu ser e agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento Essa mudanccedila criacutetica
resulta da aparentemente simples interrogaccedilatildeo de Heidegger acerca da identificaccedilatildeo
ldquoWahrheit = wahrer Satz = Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade)rdquo
(COURTINE 1996 p 19) A criacutetica eacute assim expressa em Logik die Frage nach der
Wahrheit (GA21)
ldquoLotze que introduziu o conceito de lsquoGeltungrsquoem loacutegica emprega a expressatildeo
lsquoserrsquo no sentido estrito segundo o qual ser quer dizer a mesma coisa que
efetividade das coisas ser = lsquorealidadersquo (Vorhandenheit) [] Lotze natildeo conseguiu
superar o naturalismo na medida em que restringiu o significado do termo
veneraacutevel lsquoserrsquo ao ser real agrave realidade [] Na nossa terminologia utilizamos
inversamente ser no sentido amplo inserindo-nos na autecircntica tradiccedilatildeo da
filosofia grega de tal maneira que ser designa tanto a realidade quanto a
idealidade ou outras maneiras possiacuteveis de serrdquo (HEIDEGGER GA21 p62
apud COUTRINE 1996 p19)
Nesse sentido lembremos tambeacutem que para os neokantianos influenciados pela
filosofia dos valores de Lotze o conhecimento eacute possiacutevel como uma atividade valorativa
do juiacutezo (na forma ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo) Ou seja eacute o juiacutezo que reconhece o
conteuacutedo o sentido e a validade da verdade na sua pretensatildeo de necessidade e
114
universalidade algo ldquoeacuterdquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento Ora
o que a leitura de Ser e Tempo ateacute aqui jaacute demonstrou eacute que algo eacute natildeo porque um juiacutezo
loacutegico definiu seu conteuacutedo ontoloacutegico mas porque o ser-aiacute aquele que vai atribuir
sentido jaacute sempre se move numa preacute-compreensatildeo de ser a qual eacute fundamentalmente
praacutetica na visatildeo circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram
em seu ser Ora estabelecendo uma possiacutevel analogia parece que Heidegger desconfia
tanto do conhecimento teoacuterico-proposicional quanto Fernando Pessoa do ldquopensamentordquo
Assim reduzir qualquer ontologia agrave loacutegica atraveacutes do juiacutezo proposicional eacute como ldquoestar
doente dos olhosrdquo
No nosso entender o que Heidegger desenvolve no sect 33 soacute seraacute totalmente
elucidado se o relacionarmos com o sect 44 No sect 33 jaacute se anuncia que a forma fundamental
da predicaccedilatildeo (Praumldikation) sujeito e predicado (ldquoS eacute Prdquo) eacute derivada da mostraccedilatildeo
(Aufzeigung) originaacuteria compreensivo-interpretativa (algo como algo) e soacute por isso a
comunicaccedilatildeo (Mitteilung) uns com os outros na vida cotidiana pode expressar profericcedilotildees
como ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo ldquoHoje eacute um belo diardquo etc Antes de
entramos na apresentaccedilatildeo pormenorizada do sect33 e assim a relacionarmos ao sect44 eacute
necessaacuterio fazermos duas consideraccedilotildees
Essas camadas de derivaccedilatildeo evitam qualquer interpretaccedilatildeo relativista da noccedilatildeo de
linguagem em Heidegger Tentando escapar de uma leitura apressada devemos pensar
no acontecimento da verdade como um acontecimento compreensivo a partir de um ente
finito e histoacuterico o que eacute diferente de reduzi-lo a uma perspectiva historicista O que estaacute
em questatildeo por exemplo natildeo eacute se ldquocasardquo poderia se chamar ldquomesardquo (esse eacute um aspecto
ocircntico da linguagem) ou ainda que o fato de o enunciado possuir um fundamento
contingente ele seria menos verdadeiro Aleacutem disso haacute o fato de que o ente e as
possibilidades de ser do ser-aiacute vecircm agrave palavra por uma mostraccedilatildeo preacutevia de seu ser eacute o
ente que se mostra E na medida em que eacute mobilizado pelo ser-aiacute na interpretaccedilatildeo sua
mostraccedilatildeo pode ser modificada pela expressatildeo na forma predicativa A loacutegica deriva do
loacutegos a loacutegica natildeo eacute o lugar do loacutegos E o loacutegos eacute a maneira mesma de o ente se mostrar
e se ele se mostra para o ser-aiacute isso natildeo quer dizer que eacute o ser-aiacute que o determina Natildeo
Eacute o ser-aiacute que o potildee em liberdade O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento
como fenocircmeno Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a
115
expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional
compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na estabilidade de uma esfera para aleacutem
do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua manifestaccedilatildeo o sentido
de sua proacutepria existecircncia
Caberia ademais em uma pesquisa posterior investigar se a interpretaccedilatildeo do
loacutegos como loacutegos apofacircntico derivada da noccedilatildeo de intencionalidade essecircncia mesma da
fenomenologia ainda reconduz Heidegger a certo viacutenculo com a concepccedilatildeo tradicional
da linguagem na medida em que dizer eacute ainda dizer que algo eacute de tal ou qual maneira ou
seja ainda dizer na forma predicativa Dito de outra forma mesmo que Heidegger
demonstre o caraacuteter derivado da loacutegica ela continua a ser uma purificaccedilatildeo dos elementos
materiais da linguagem Isso significaria dizer que o problema heideggeriano da
linguagem ainda estava inserido no projeto da tradiccedilatildeo da filosofia ocidental 80
Retomemos agora as trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo
(Aussage) Na mostraccedilatildeo (Aufzeigung) como primeiro significado Heidegger reteacutem o
sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Essa forma do enunciado estaacute diretamente
relacionada ao ente que vem ao encontro no Vorhabe (ter-preacutevio) ou noucircs em que o ser-
aiacute originariamente pela ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhanden) movimenta-se e abre a
compreensatildeo em um mundo-ambiente (Umwelt) Mas toda compreensatildeo (Verstehen) jaacute
interpreta (Auslegung) o que entende e assim no trato praacutetico ou no ldquocomordquo
hermenecircutico-existenciaacuterio
ldquoA execuccedilatildeo originaacuteria da interpretaccedilatildeo natildeo consiste em uma proposiccedilatildeo-
enunciativa teoacuterica mas no fato de que no-ver-ao-redor da ocupaccedilatildeo se potildee de
lado ou se troca a ferramenta improacutepria lsquosem perder nisso uma soacute palavrarsquo Da
falta de palavras natildeo se deve concluir a falta de interpretaccedilatildeordquo (HEIDEGGER
2012 P445)
Na predicaccedilatildeo (Praumldikation) segundo significado da enunciaccedilatildeo fundado no
primeiro haacute a determinaccedilatildeo de um ente que modifica e restringe a mostraccedilatildeo de algo
como algo na forma sujeito-predicado Esse segundo significado estaacute diretamente
80 Cf Capiacutetulo I- Introduccedilatildeo
116
relacionado ao Vorsicht (ver-preacutevio) cuja base encontra-se no Vorhabe (ter-preacutevio) No
que o ser-aiacute vecirc algo e o determina ele restringe o utilizaacutevel (Zuhandenes) a um subsistente
(Vorhandener) com isso ele ldquovisa a um subsistente no utilizaacutevel Pelo olhar
contemplativo e para ele o utilizaacutevel se oculta como utilizaacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012
p445) Esse segundo momento da enunciaccedilatildeo estaacute ligado ao significado (Bedeutung) que
emerge a partir da significatividade (Bedeutsamkeit) e nesse sentido ldquoposiccedilatildeo-de-sujeito
posiccedilatildeo-de-predicado em unidade com o-pocircr satildeo inteiramente lsquoapofacircnticosrsquo no sentido
rigoroso da palavrardquo (HEIDEGGER 2012 p439) Aqui Heidegger ainda se refere a uma
categoria do ente que se mostra no interior do mundo Mas entatildeo como ocorre a
modificaccedilatildeo de algo como algo tomado como categoria subsistente (Vorhanden) na forma
loacutegica sujeito-predicado
ldquoAgora pela primeira vez se franqueia o acesso a algo assim como propriedades
O lsquoquecircrsquo da enunciaccedilatildeo determinante do subsistente eacute extraiacutedo do subsistente
como tal () A estrutura-de-como da interpretaccedilatildeo experimenta uma
modificaccedilatildeo O lsquocomorsquo em funccedilatildeo de apropriaccedilatildeo do entendido jaacute natildeo chega ateacute
uma totalidade-de-conjuntaccedilatildeo Ele foi separado de suas possibilidades de
articular as relaccedilotildees-de-remissatildeo da significatividade que constitui o ser-do-
mundo-ambiente O lsquocomorsquo eacute reprimido no plano uniforme do soacute subsistente ()
Esse nivelamento do lsquocomorsquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor em como
da determinaccedilatildeo-da-subsistecircncia eacute a prerrogativa da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER
2012 p447)
O ente tomado como subsistente (Vorhanden) eacute prerrogativa da predicaccedilatildeo Seu
recorte como algo que possui essa ou aquela propriedade torna possiacutevel algo como a
forma predicativa (ldquoS eacute Prdquo) O que estaacute em jogo poreacutem pois tornou-se paradigma da
tradiccedilatildeo eacute o nivelamento de todo e qualquer ente como algo sempre presente dotado de
propriedades e desse modo disponiacuteveis agrave apreensatildeo na forma predicativa Nesse
nivelamento todo ente eacute posto sob o domiacutenio da loacutegica que obscurece sua derivaccedilatildeo
essencial agrave mostraccedilatildeo do ente em seu ser em funccedilatildeo da relaccedilatildeo primaacuteria ser-aiacute como ser-
no-mundo e assim da verdade como desvelamento (ἀλήθεια)
A terceira forma do enunciado derivado do primeiro e do segundo significados eacute
apresentada por Heidegger como comunicaccedilatildeo (Mitteilung) A palavra alematilde jaacute indica o
caraacuteter puacuteblico do que inicialmente foi mostrado e pela predicaccedilatildeo foi determinado
teilung (partilha) mit (com) O enunciado como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se puder ser
partilhado com outrem ldquover juntordquo o mostrado jaacute determinado ldquolsquoCompartilhadorsquo eacute o
comum e transparente ser para o mostrado lsquoser pararsquo que deve ser firmemente mantido
117
como ser-no-mundo [] Agrave enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo entendida assim sentido
existenciaacuterio pertence o ser expressordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Essa terceira forma
estaacute relacionada ao Vorgriff (conceito-preacutevio) ou a significaccedilotildees calcificadas de um
mundo histoacuterico faacutetico
Natildeo podemos esquecer que a anaacutelise dos existenciaacuterios (entender interpretaccedilatildeo e
disposiccedilatildeo) estatildeo na anaacutelise do ldquoser-em como talrdquo (quinto capiacutetulo) antecedida pelo
capiacutetulo intitulado ldquoo ser-no-mundo como ser-com e como ser-si-mesmo lsquoA gentersquordquo
Nesse sentido e pelo caraacuteter programaacutetico de Ser e Tempo a anaacutelise da enunciaccedilatildeo ou
proposiccedilatildeo (Aussage) jaacute pressupotildee que ser-no-mundo eacute sempre ser-com-os-outros Desse
modo ser expresso na comunicaccedilatildeo eacute a primeira manifestaccedilatildeo acerca do fenocircmeno da
linguagem que Heidegger apresenta em Ser e Tempo Poreacutem no sect34 o autor indica que
a comunicaccedilatildeo enunciativa ou informativa (ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo
ldquoHoje eacute um belo diardquo etc) assentada na predicaccedilatildeo eacute um caso particular de comunicaccedilatildeo
(Cf HEIDEGGER 2012 p457) Mas aqui chegamos ao intuito principal de nosso
capiacutetulo descrever como a ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo fundada na predicaccedilatildeo que por
sua vez soacute eacute possiacutevel pela interpretaccedilatildeo apresenta o caraacuteter derivativo do enunciado
expresso em uacuteltima medida pela linguagem que comunica
A partir dessa apresentaccedilatildeo dos trecircs significados do enunciado (Aussage)
compreendemos sua definiccedilatildeo ldquoenunciaccedilatildeo eacute uma mostraccedilatildeo determinante que
comunicardquo (HEIDEGGER 2012 p443) Portanto chegamos agrave estrutura ontoloacutegica da
linguagem (Sprache) ou ao dizer puacuteblico acerca das coisas e do estado de coisas em um
mundo Ter chegado ao objetivo central de nosso capiacutetulo natildeo quer dizer que nossa tarefa
se encerra aqui Uma obra como Ser e Tempo nos exige mais A finalidade da investigaccedilatildeo
desse paraacutegrafo ainda natildeo foi esclarecida em seus dois uacuteltimos pontos
1) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos
2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade
Se Heidegger indica que no mostrar mesmo do fenocircmeno em seu loacutegos (algo como
algo) pode surgir a forma predicativa eacute necessaacuterio explicar como no proacuteprio loacutegos a
flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo eacute possiacutevel Nas palavras de nosso autor
118
ldquoQue funda a unidade desse juntar Ele reside como Platatildeo reconheceu em que o
λόγος eacute sempre um λόγος tivoacuteς Na perspectiva do ente manifesto no λόγος as
palavras satildeo reunidas em um todo verbal Aristoacuteteles viu mais radicalmente todo
λόγος eacute ao mesmo tempo σύνθεσis e διαίρεσηs A mostraccedilatildeo eacute um reunir e separar
Entretanto Aristoacuteteles natildeo desenvolveu a questatildeo ateacute perguntar Que fenocircmeno eacute
o que no interior da estrutura do λόγος possibilita e ao mesmo tempo exige a
caracterizaccedilatildeo de toda enunciaccedilatildeo como siacutentese e dieacuterese () O que com as
estruturas formais do lsquoligarrsquo e lsquosepararrsquo ou mais exatamente com a unidade de
ambos devia ser fenomenicamente encontrado eacute o fenocircmeno do lsquoalgo como algorsquordquo
(HEIDEGGER 2012 p449)
A criacutetica expliacutecita se volta contra Aristoacuteteles mas tambeacutem contra toda tradiccedilatildeo
que absorveu esse pressuposto E como natildeo podemos deixar de observar ateacute seu proacuteprio
mestre Husserl quando este estabeleceu a diferenccedila entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial
Essa distinccedilatildeo desalojou o lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel e o conduziu ao uso loacutegico
sem revelar de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno ou o desvelamento dos
entes em seu ser O fenocircmeno da linguagem enunciativa (Mitteilung) em funccedilatildeo de sua
derivaccedilatildeo da predicaccedilatildeo (Praumldikation) e essa por sua vez derivada da mostraccedilatildeo
(Aufzeigung) possui uma ligaccedilatildeo com os entes na medida em que diz o que de algum
modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que lsquoalgo eacute xrsquo ou que lsquoalgo natildeo eacute xrsquo eacute possiacutevel primariamente
pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com
No interior da estrutura do proacuteprio λόγος ao indicar-se que algo eacute diz-se tambeacutem como
ele eacute ou como ele natildeo eacute [esse traccedilo estaacute relacionado ao caraacuteter intencional do discurso
(die Rede) que examinaremos no proacuteximo capiacutetulo] Contudo a linguagem habitual que
manteacutem vigente os significados calcificados natildeo reconhece esse traccedilo para aleacutem da
gramaacutetica Aleacutem disso a proposiccedilatildeo loacutegica obscurece a estrutura do loacutegos que a
condiciona pelo fato de usurpar a verdade para o juiacutezo natildeo reconhecendo o lugar
originaacuterio da verdade Originariedade somente possiacutevel pela compreensatildeo da verdade
como Aleacutetheia O que nos conduz agrave segunda finalidade da investigaccedilatildeo do sect 33
Para explicarmos esse conceito originaacuterio de verdade eacute necessaacuterio que nos
reportemos ao sect44 Quando se diz ldquooriginariedaderdquo do fenocircmeno da verdade natildeo se diz
algo como lsquocausarsquo da verdade antes se refere agrave sua origem sem sentido objetivo
lsquoObjetividadersquo eacute um conceito derivado da verdade reportada ao juiacutezo Aqui a verdade
tambeacutem natildeo deve ser considerada para aleacutem de sua compreensatildeo histoacuterica Lembremos
de que natildeo haacute ldquoserrdquo sem a compreensatildeo do sentido de ser portanto eacute necessaacuterio vincular
119
sempre ldquoserrdquo ao ser-aiacute ente finito e histoacuterico Por conseguinte compreensatildeo de ser em
Ser e Tempo estaacute como a origem mesma da verdade compreendida como desvelamento
Como jaacute apontamos antes a enunciaccedilatildeo (Aussage) enquanto mostraccedilatildeo
(Aufzeigung) eacute a forma fundante dos modos possiacuteveis de enunciaccedilatildeo e nela Heidegger
reteacutem o sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Na mostraccedilatildeo nada se funda em
representaccedilotildees que se adequam a objetos como compreendeu a tradiccedilatildeo Para serem
verdadeiros e garantirem seu estatuto ontoloacutegico os entes natildeo precisam estar de em
acordo nem se submeterem agrave adequaccedilatildeo dos juiacutezos ou proposiccedilotildees dos homens A
derivaccedilatildeo da verdade como objetividade na ciecircncia ou em todo comportamento teoacuterico
natildeo pode negar a maneira pela qual o ente eacute posto em liberdade Conhecer
originariamente eacute deixar que o ente se mostre em seu ser dessa forma
ldquoSuponha-se que algueacutem de costas para a parede profira a seguinte enunciaccedilatildeo
verdadeira lsquoO quadro pendurado na parede estaacute tortorsquo Essa enunciaccedilatildeo se
comprova quando quem a enuncia se volta para a parede e percebe o quadro torto
ali dependurado Que eacute comprovado nessa comprovaccedilatildeo Eacute constatado algo
como uma concordacircncia do lsquoconhecimentorsquo ou do conhecido com a coisa
lsquocolocadarsquo na parede Sim e natildeo conforme se faccedila cada vez uma adequada
interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do que a expressatildeo lsquoo conhecidorsquo significa A que
se refere quem enuncia se natildeo julga o quadro na percepccedilatildeo mas soacute o representa
A algo como representaccedilotildees Certamente que natildeo se representaccedilatildeo deve aqui
significar representar como processo psiacutequico Tambeacutem natildeo se representaccedilotildees
tecircm o sentido do representado na medida em que visada uma imagem da coisa
real na parede Ao contraacuterio a enunciaccedilatildeo que soacute representa refere-se segundo
seu sentido mais proacuteprio ao quadro real na parede Soacute ele eacute visado e nada que
dele difira () O enunciar eacute um ser voltado para a coisa sendo ela mesma E que
eacute comprovado pela percepccedilatildeo Nada senatildeo que o percebido eacute o mesmo ente
visado na enunciaccedilatildeoConfirma-se que o ser enunciante para o enunciado eacute um
mostrar o ente que ele descobre o ente para o qual se volta Eacute comprovado o ser-
descobridor da enunciaccedilatildeo () o conhecer permanece referido unicamente ao
ente ele mesmo Eacute neste mesmo que se joga por assim dizer a confirmaccedilatildeo O
ente visado se mostra ele mesmo assim como ele eacute em si mesmo () A
enunciaccedilatildeo eacute verdadeira significa que ela descobre o ente em si mesmo Ela
enuncia mostra lsquofaz verrdquo (αποφανσις) o ente em seu ser-descoberto O ser
verdadeiro (verdade) da enunciaccedilatildeo se deve entender como um ser-descobridorrdquo
(Heidegger 2012 pp603-605)
O termo grego ldquoapophantikoacutesrdquo pela junccedilatildeo entre ldquoapordquo [ldquopara forardquo ldquomostrarrdquo
ldquotornar conhecidordquo] e ldquophaineinrdquo [ldquoexibir mostrarrdquo (derivado de lsquophosrsquo ldquoluzrdquo - mesma
raiz da palavra phainoacutemenon)] manteacutem sua forccedila quando articulado com as palavras
120
ldquoAuslegungrdquo e ldquoAussagerdquo Pois tal como ldquoapordquo ldquoausrdquo eacute o prefixo de liacutengua alematilde usado
nessas palavras com o sentido da preposiccedilatildeo aus que significa ldquopara forardquo ldquoderdquo Assim
uma vez interpretado (Auslegung) o ente enunciado (Aussage) jaacute mostrou jaacute trouxe a si
mesmo a conhecimento e desvelou-se como ente e nisso consiste sua verdade originaacuteria
(Aleacutetheia)
O retorno de Heidegger agrave ldquoforccedila das palavras mais elementaresrdquo ou agraves palavras
gregas como loacutegos dikeacute physis teacutechne e aleacutetheia eacute a tentativa de ir aleacutem da
sedimentaccedilatildeo histoacuterica das palavras Dito de outra forma voltar agrave origem dos termos
atraveacutes dos quais o pensamento filosoacutefico teria alcanccedilado lsquoas coisas mesmasrsquo coisas essas
que agora no presente permanecem veladas por camadas interpretativas cotidianas e
teoacutericas Sendo a concepccedilatildeo de que a proposiccedilatildeo eacute o lugar privilegiado da verdade uma
das maiores expressotildees da tradiccedilatildeo metafiacutesica Portanto eacute tarefa a que Ser e Tempo se
propotildee eacute a da descriccedilatildeo desse lugar originaacuterio ndash de mostraccedilatildeo - dos fenocircmenos
Mas se eacute o ser-aiacute na abertura de sentido fundamental que mobiliza os entes em seu
ser qual o papel desse ente marcado pela existecircncia em meio agrave verdade agora
compreendida como Aleacutetheia A compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido
primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode custodiar o sentido
de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento
ldquoO ser-verdadeiro como ser-descobridor soacute eacute de sua parte ontologicamente
possiacutevel sobre o fundmento do ser-no-mundo Este fenocircmeno no qual
reconhecemos uma constituiccedilatildeo fundamental do Dasein eacute o fundamento do
fenocircmeno originaacuterio da verdade () Na medida em que o Dasein eacute
essencialmente sua abertura e aberto abre e descobre ele eacute essencialmente
verdadeiro O Dasein eacute lsquona verdadersquordquo (HEIDEGGER 2012 pp607-611)
O ser-aiacute em sua unidade fenomecircnica como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge)
revelou-se como o fundamento sem fundamento da abertura compreensiva portanto
aquele que como ser-no-mundo pode abrir o sentido de ser de todo ente e de suas
possibilidades Poreacutem como projeto-jogado eacute tambeacutem aquele que pode perder-se e natildeo
tornar transparente essa condiccedilatildeo ontoloacutegica fundamental o que frequentemente jaacute faz
pois sempre jaacute custodiou seu ser no mundo suas orientaccedilotildees cotidianas as sedimentaccedilotildees
121
significativas e as concepccedilotildees de verdade calcificadas Por isso o Dasein eacute o ente que
tambeacutem estaacute na natildeo-verdade (Umwahrheit)81
Recuperemos o sentido efetivo de desvelamento ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o
que aponta para o velamento (lethe) que ficou para traacutes que mostra para aquilo que a
sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila da aleacutetheia que se torna possiacutevel a
objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89)
Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao
encontro em seu significado) no desvelamento originaacuterio de seu ser mas a mostraccedilatildeo dos
fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira dissimulada sempre em uma objetificaccedilatildeo de
seu ser como ente determinado pois ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na
medida em que partimos de seu encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de
descoberta perde seu sentido mais efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Entatildeo ldquodizer que o
Dasein estaacute e natildeo estaacute na verdade eacute compreender que o encobrimento (Verschlossenheit)
eacute [] a contraparte da aberturardquo (NUNES 2012 p197)
Depois dessa exposiccedilatildeo eacute necessaacuterio apresentar como a linguagem estaacute assentada
na constituiccedilatildeo proacutepria ao ser-aiacute em relaccedilatildeo agrave verdade Tentaremos mostrar como o
discurso (Rede) eacute para Heidegger o fundamento ontoloacutegico da linguagem mas ao
mesmo tempo como o proacuteprio fenocircmeno da linguagem jaacute sempre se apresenta como
falatoacuterio (Gerede) Essa eacute a tarefa do proacuteximo e uacuteltimo capiacutetulo de nosso trabalho
81 Cf HEIDEGGER 2012 sect44 p615
122
Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)
Em vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdos Sob a pele das palavras haacute cifras e coacutedigos O sol consola os doentes e natildeo os renova
As coisas Que tristes satildeo as coisas consideradas sem ecircnfase (A flor e a naacuteusea Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
No capiacutetulo anterior descrevemos de que modo o fenocircmeno da linguagem eacute
apresentado pela primeira vez em Ser e Tempo como ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo e ainda
como a linguagem eacute derivada da mostraccedilatildeo preacutevia dos entes em seu ser a partir da relaccedilatildeo
primaacuteria ser-aiacute como ser-no-mundo O Dasein como ente privilegiado estaacute remetido ao
mundo e sempre jaacute possui uma compreensatildeo preacutevia do ser A compreensatildeo ou
entendimento (Verstehen) de ser eacute o fundamento originaacuterio da verdade agora
compreendida como desvelamento aleacutetheia Poreacutem desvelar eacute apontar para o que
permanece velado ou seja a contraparte da abertura eacute o velamento
Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a
ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo
material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos
que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas
que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela
dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se
estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o
123
que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes82rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que
somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em
fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo
Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por
Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um
fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo
incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como
descoberto e os entes sempre disponiacuteveis A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo
cotidiano Heidegger chama de ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou
ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que
esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas
tomadas como oacutebvias e sempre disponiacuteveis pelos nossos recursos linguiacutesticos
I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem
A anaacutelise do discurso (Rede) por Heidegger eacute apresentada no sect34 de Ser e Tempo e
eacute assim descrita
ldquoCom a enunciaccedilatildeo ficou visiacutevel um derivado extremo da interpretaccedilatildeo A
elucidaccedilatildeo da terceira significaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo (ou
manifestaccedilatildeo verbal) conduziu ao conceito de dizer e falar que intencionalmente
sem duacutevida natildeo fora considerado ateacute aquele momento O fato de que a linguagem
seja tematizada somente agora deve servir de indicaccedilatildeo de que esse fenocircmeno
tem suas raiacutezes na constituiccedilatildeo existenciaacuteria da abertura do Dasein O fundamento
ontoloacutegico-existenciaacuterio da linguagem eacute o discurso () O discurso eacute
existenciariamente de igual originariedade que o entenderrdquo (HEIDEGGER
2012 p453)
Esse trecho nos coloca diante de uma constataccedilatildeo reveladora Afinal o que
fundamenta a linguagem estaacute remetido a abertura primaacuteria de sentido Mas isso jaacute natildeo
estaacute claro a partir da descriccedilatildeo da enunciaccedilatildeo De certa forma sim contudo de maneira
indireta pois a enunciaccedilatildeo (Aussage) comunicativa estaacute remetida aos significados ou
seja ao entendimento jaacute articulado e interpretado Agora poreacutem o que Heidegger nos
82 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo
Wolf Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249
124
apresenta eacute o discurso como fundamento da interpretaccedilatildeo e da enunciaccedilatildeo De outra
forma o fundamento da linguagem na proacutepria abertura de sentido (Sinn) de maneira que
o discurso eacute o proacuteprio entendimento articulado que pode interpretar
ldquoO discurso eacute a articulaccedilatildeo da entendibilidade Por isso o discurso fundamenta a
interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo Ao que pode ser articulado na interpretaccedilatildeo e
mesmo mais originariamente jaacute no discurso demos o nome de sentido O
articulado na articulaccedilatildeo discursiva como tal denominamos de o-todo-da-
significaccedilatildeo e este pode ser decomposto em significaccedilotildees As significaccedilotildees como
o articulado do articulaacutevel satildeo sempre providas de sentido () A entendibilidade
do encontrar-se do ser-no-mundo exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER
2012 p455)
O tratamento sobre o discurso (Rede) em Ser e Tempo eacute pouco extensivo mas
cabe a noacutes tentar compreendecirc-lo em todo sua radicalidade O iniacutecio da filosofia grega
denominado como ldquofilosofia da naturezardquo eacute marcado pela tentativa de encontrar a ordem
imanente agrave totalidade substancial do mundo material Essa totalidade estaacute expressa na
palavra physis que nada tem a ver com a natureza empiacuterica e manipulaacutevel que
conhecemos hoje pelas ciecircncias naturais83 Essa totalidade soacute pode ser vista como tal em
sua constituiccedilatildeo una se suas partes estiverem organicamente reunidas sem as quais natildeo
haacute totalidade mas eacute a partir da totalidade que as partes ganham sentido Mesmo que
Heidegger natildeo trate o discurso nesses termos e ainda mesmo que o termo physis apoacutes a
viragem ganhe uma conotaccedilatildeo toda especiacutefica nos valemos dessa explicaccedilatildeo para tentar
compreender a especificidade do discurso Desse modo podemos observar o que estaacute em
jogo no trecho acima O discurso eacute a articulaccedilatildeo da abertura de sentido sem ele o todo
natildeo poderia ser decomposto e a totalidade seria apenas um todo indistinto Nesse sentido
que o discurso fundamenta a interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo E isso nos revela um pouco
mais
ldquoA tatildeo comum definiccedilatildeo do iniacutecio da filosofia como a substituiccedilatildeo da explicaccedilatildeo
miacutetica ou (como eacute o recorte nos manuais de histoacuteria da filosofia) a passagem do
mito ao logos eacute por demais simplista para descrever o que representou a histoacuteria
e filosoficamente essa origem Compreender a filosofia antiga a partir da relaccedilatildeo
entre logos e physis eacute de fato compreender que o iniacutecio da especulaccedilatildeo filosoacutefica
sobre o mundo eacute em grande parte acompanhado pela tradiccedilatildeo miacutetica grega de
unidade entre espiacuterito e natureza e ao mesmo tempo pelo iniacutecio de um certo
83 Cf GONCcedilALVES M 2006 pp7-11
125
estranhamento entre o ser humano pensante e o ser natural ou () a natureza em
sua totalidaderdquo (GONCcedilALVES 2006 p12)
Como vimos o loacutegos para Heidegger natildeo eacute algo que estaacute no Dasein e por isso ele
pode pensar a totalidade Loacutegos segundo Heidegger em seu sentido originaacuterio grego natildeo
eacute ratio Ao contraacuterio o loacutegos estaacute na totalidade ele eacute a articulaccedilatildeo da totalidade que se
mostra ao mostrar os entes ou os fenocircmenos (loacutegos eacute loacutegos apofacircntico) E por isso o ser-
aiacute o acessa inicialmente de modo praacutetico pois natildeo se separa dessa totalidade (por isso a
originariedade da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da
conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) significativamente articulada) Na realidade o ser-aiacute soacute se
afasta dessa totalidade quando natildeo acessa mais o loacutegos de maneira originaacuteria relativo agrave
derivaccedilatildeo como ente simplesmente dado (Vorhanden) fazendo emergir algo como
significado (Bedeutung) que ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da
enunciaccedilatildeo (Aussage)
Mas qual a relaccedilatildeo entre loacutegos e discurso (Rede) Precisamos ir ao sect7 de Ser e
Tempo ldquoQuando dizemos que o significado-fundamental de λόγος eacute discurso essa
traduccedilatildeo literal soacute eacute plenamente validada a partir da determinaccedilatildeo do que o discurso ele
mesmo significardquo (HEIDEGGER 2012 p113) Loacutegos e discurso satildeo portanto o mesmo
Mas isso soacute torna a questatildeo ainda mais difiacutecil Afinal o loacutegos como loacutegos apofacircntico natildeo
eacute o mostrar do ente em seu ser Como mostrar e dizer podem ser o mesmo
ldquoλόγος como discurso significa () algo assim como δηλοῦν tornar manifesto
aquilo de que lsquose discorrersquo no discurso Aristoacuteteles explicitou mais nitidamente
essa funccedilatildeo do discurso como αποφανέσται O λόγος faz ver algo (φαίνεισθαι) a
saber aquilo sobre o que se discorre e faz ver a quem discorre (voz media) e aos
que discorrem uns com os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p113)
Discurso eacute a mostraccedilatildeo (ἀπόφανσις) que torna-se clara (δηλοῦν) Lembremos que
a plurivocidade do ente na tradiccedilatildeo loacutegica estaacute assentada nas possibilidades semacircnticas
submetidas a um princiacutepio loacutegico fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado
ao princiacutepio de identidade Pensamos que o que Heidegger potildee em tela eacute que a
ldquoidentidaderdquo e a ldquonatildeo-contradiccedilatildeordquo natildeo satildeo princiacutepios loacutegicos mas o mostrar e o torna-
se claro dos fenocircmenos em seu ser na totalidade articulada Ou seja o sentido de ser dos
126
fenocircmenos o mostrar o existente como existente eacute o loacutegos que manifesta e diz a si
mesmo pois reporta-se a palavra legein tornar manifesto aquilo de que se fala num
discurso deixar que algo seja visto manifesto porque posicionado em relaccedilatildeo uns com
os outros Tentemos esboccedilar um exemplo mas natildeo esqueccedilamos a fragilidade das palavras
sedimentas e o obscurecimento que elas oferecem a problemaacutetica ontoloacutegica Quando no
nosso cotidiano uma mesa ldquode trabalhordquo sem os livros sem a cadeira sem as canetas e
sobretudo sem a intenccedilatildeo de ser usada para o trabalho natildeo possui qualquer sentido Ela
eacute apenas um pedaccedilo de madeira ou mesmo passa obtusa aos nossos olhos Do mesmo
modo os livros as canetas e a cadeira A articulaccedilatildeo preacutevia desses objetos ou em seu
sentido ontoloacutegico a articulaccedilatildeo desses fenocircmenos eacute o que faz com que cada um deles
possa ser visto como um ldquoistordquo Notemos como o exemplo nos reporta exatamente a noccedilatildeo
de Umwelt descrita por Heidegger O que o discurso indica eacute a articulaccedilatildeo preacutevia para
que as coisas apareccedilam como tais jaacute no mundo circundante Articulaccedilatildeo anterior a
qualquer interpretaccedilatildeo de um ldquoistordquo ou de algo como algo e consequentemente anterior
ao enunciado (Aussage) Assim o caraacuteter ontoloacutegico dessa articulaccedilatildeo sempre dada a
noacutes em um mundo jaacute descerrado em que pode-se travar atividades praacuteticas com os entes
e em uacuteltima instacircncia falar de ldquomesardquo ldquocadeirardquo ldquocanetardquo etc eacute dado pelo discurso (die
Rede) compreendido como sendo o significado fundamental de λόγος
Nesse sentido podemos ver tambeacutem o caraacuteter intencional do discurso Como
indicamos no capiacutetulo anterior loacutegos como loacutegos apofacircntico possui uma ligaccedilatildeo com os
entes na medida que diz o que de algum modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que ldquoalgo eacute xrdquo ou
que ldquoalgo natildeo eacute xrdquo eacute possiacutevel primariamente pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da
mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com No interior da estrutura do proacuteprio λόγος
ao mostrar que algo eacute diz tambeacutem como ele eacute ou como ele natildeo eacute
ldquoPara tanto tomar-se-aacute uma sentenccedila elementar como exemplo de realizaccedilatildeo do
discurso (λόγος) ldquoa caneta eacute azulrdquo Acabou-se de dizer que um dos elementos
constitutivos do falar (λέγειν) eacute o sobre-o-quecirc Este sobre-o-quecirc em direccedilatildeo ao
qual se realiza o movimento intencional de desvelamento se encontra
simplesmente dado como um todo discreto e a interpelaccedilatildeo discursiva destaca
dele certos elementos O que ocorre ao se proferir o enunciado do tipo ldquoa caneta
eacute azulrdquo eacute uma cisatildeo de um todo subsistente o discurso opera no uno indistinto a
fixaccedilatildeo de limite de certas determinaccedilotildees particulares de modo a destacar
componentes pertencentes a esse elemento temaacutetico da fala () Assim natildeo se
tem uma mostraccedilatildeo da totalidade do sobre-o-quecirc mas apenas de determinados
aspectos seus Juntamente com este movimento de distinccedilatildeo do discurso
denominado de cisatildeo (διαίρεσις) ocorre outro a siacutentese (σύνθεσις) Dissociando-
127
se do todo indistinto certos elementos a ele pertencentes estes natildeo satildeo
simplesmente colocados uns ao lado dos outros Ao fixar os limites das
determinaccedilotildees pertencentes ao uno discreto o discurso reuacutene os elementos que
foram por ele destacados posicionando-os uns com os outros Assim a
interpelaccedilatildeo discursiva que demarca um elemento temaacutetico como sendo caneta e
azul atribui a cor azul ao ente utilizaacutevel caneta sendo esses elementos
visualizados conjuntamente como um no enunciado ldquoa caneta eacute azulrdquo Atraveacutes da
siacutentese o que se dava como um todo indistinto eacute visualizado em sua unidade
destacada por determinados aspectos seus Com base nesses dois momentos a
siacutentese (σύνθεσις) e a cisatildeo (διαίρεσις) vecirc-se que o desencobrimento realizado
pelo discurso eacute uma articulaccedilatildeo delimitadora do quecirc para o qual ele se dirigerdquo
(SALGADO 2015 p145)
Contudo o discurso natildeo eacute apenas o ldquosobre-quecircrdquo a ele tambeacutem pertencem ldquoo dito
discursivamente como tal a comunicaccedilatildeo e o anuacutenciordquo (HEIDEGGER 2012 p459) Isto
porque ldquoo discurso eacute a articulaccedilatildeo significacional da entendibilidade [ou da compreensatildeo
(Verstehen)] do encontrar-se (befindlichen) no ser-no-mundordquo (HEIDEGGER 2012
p459) Ou seja natildeo eacute apenas aos entes e a um estado de coisas natildeo conforme ao ser-aiacute
que o discurso se reporta Mas a proacutepria abertura que possui sentido sendo o sentido
ldquoaquilo que a entendibilidade de algo se manteacutem Denominamos sentido o que eacute
articulaacutevel no abrir que entenderdquo (HEIDEGGER 2012 p429) O discurso como o
significado originaacuterio de loacutegos eacute o proacuteprio ser-no-mundo Pois na medida em que a
proacutepria abertura compreensiva se manteacutem por estar articulada pode sustentar em seu
acircmbito o que quer que seja entes sensaccedilotildees projetos etc E para fora dela bem natildeo haacute
nem mesmo fora Nesse sentido que ldquoa entendibilidade do encontrar-se do ser-no-mundo
exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER 2012 p455) e ldquoo todo-de-significaccedilatildeo da
entendibilidade acede agrave palavra Das significaccedilotildees nascem as palavras e natildeo satildeo as
palavras que entendidas como coisas se proveem de significaccedilotildeesrdquo (HEIDEGGER
2012 p455) A situaccedilatildeo insustentaacutevel de considerar as palavras como as portadoras
originaacuterias de significados pode ser exemplificada por um trecho da obra Cem anos de
solidatildeo de Gabriel Garciacutea Maacuterquez no momento em que Joseacute Arcadio Buendiacutea previu
que as inscriccedilotildees graacuteficas poderiam natildeo mais reportar agrave utilidade das coisas
ldquoFue Aureliano quien concibioacute la foacutermula que habiacutea de defenderlos durante varias
meses de las evasiones de la memoria La descubrioacute por casualidad Insomne
experto por haber sido uno de las primeros habiacutea aprendido a la perfeccioacuten el
arte de la plateriacutea Un diacutea estaba buscando el pequentildeo yunque que utilizaba para
laminar los metales y no recordoacute su nombre Su padre se lo dijo laquotasraquo Aureliano
128
escribioacute el nombre en un papel que pegoacute con goma en la base del yunquecito tas
Asiacute estuvo seguro de no olvidarlo en el futuro No se le ocurrioacute que fuera aquella
la primera manifestacioacuten del olvido porque el objeto teniacutea un nombre difiacutecil de
recordar Pero pocos diacuteas despueacutes descubrioacute que teniacutea dificultades para recordar
casi todas las cosas del laboratorio Entonces las marcoacute con el nombre respectivo
de modo que le bastaba con leer la inscripcioacuten para identificarlas Cuando su
padre le comunicoacute su alarma por haber olvidado hasta los hechos maacutes
impresionantes de su nintildeez Aureliano le explicoacute su meacutetodo y Joseacute Arcadio
Buendiacutea lo puso en praacutectica en toda la casa y maacutes tarde la impuso a todo el pueblo
Con un hisopo entintado marcoacute cada cosa con su nombre mesa silla reloj
puerta pared cama cacerola Fue al corral y marcoacute los animales y las plantas
vaca chivo puerca gallina yuca malanga guineo Paca a poca estudiando las
infinitas posibilidades del olvido se dio cuenta de que podiacutea llegar un diacutea en que
se reconocieran las cosas por sus inscripciones pero no se recordara su utilidad
Entonces fue maacutes expliacutecito El letrero que colgoacute en la cerviz de la vaca era una
muestra ejemplar de la forma en que los habitantes de Macondo estaban
dispuestas a luchar contra el olvido Eacutesta es la vaca hay que ordentildearla todas las
mantildeanas para que produzca leche y a la leche hay que herviriacutea para mezclarla
con el cafeacute y hacer cafeacute con lecherdquo (MAacuteRQUEZ 1999 p102)
A doenccedila da insocircnia em Macondo na obra de Maacuterquez e o esquecimento como
sua consequecircncia eacute ndash se nos permitem uma comparaccedilatildeo livre ndash como na cotidianidade
consideramos os entes disponiacuteveis e sempre presentes Partimos sempre desse
encobrimento oferecido pela liacutengua que a cada vez quer fixar os entes e assim as palavras
satildeo instrumentalizadas pois definem afinal nessa insocircnia o que cada coisa eacute O
esquecimento eacute portanto o desligamento da mostraccedilatildeo originaacuteria dos entes em seu ser
E em uacuteltima medida o esquecimento da verdade como desvelamento (Aleacutetheia) Dito de
outro modo aquilo que Heidegger jaacute havia indicado em 1923-1924 ldquoO que importa eacute
somente que essas coisas existem aiacute () Mas que falte um nome para essas coisas mostra
contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia84(HEIDEGGER
2006p31)
Mas o que consiste esse dizer falar do discurso Se ele eacute o fundamento ontoloacutegico
da linguagem certamente natildeo eacute o mesmo que profericcedilotildees verbais e nominais e sobretudo
natildeo diz respeito a natureza fiacutesica da produccedilatildeo e da percepccedilatildeo dos sons da fala humana
como compreende o estudo da foneacutetica Heidegger nos apresenta entatildeo como o dizer do
discurso pode ser visualizado de forma clara pelo ouvir
84 Cf Nota 45
129
ldquoA conexatildeo do discurso com o entender e com a entendibilidade se torna clara a
partir de uma possibilidade existenciaacuteria do discurso ele mesmo a saber a partir
do ouvir Natildeo eacute por acaso que ao natildeo ouvir lsquodireitorsquo dizemos natildeo lsquoter entendidorsquo
Para o discurso o ouvir eacute constitutivo E assim como a prolaccedilatildeo verbal se funda
no discurso a percepccedilatildeo acuacutestica tambeacutem se funda no ouvir () O Dasein ouve
porque entende Como entendedor ser-no-mundo com os outros ele eacute no seu
ouvir lsquoobedientersquo ao Dasein-com e a si mesmo e nessa audiecircncia obediente ele
se torna dependenterdquo (HEIDEGGER 2012 p461)
Essa dependecircncia diz respeito agrave articulaccedilatildeo jaacute aberta de um mundo descerrado O
discurso articula um mundo esse que sempre nos movimentamos e nos orientamos Sem
essa obediecircncia natildeo haveria qualquer possibilidade de accedilotildees e projetos do ser-aiacute E o
ouvir como possibilidade existenciaacuteria do discurso eacute a manifestaccedilatildeo de seu traccedilo
intencional que ilumina sua presenccedila na abertura de sentido Pois o ouvir eacute o fundamento
ontoloacutegico do escutar ldquofenomenicamente mais originaacuterio do que se determina lsquode
imediatorsquo em psicologia como ouvir ter sensaccedilotildees de sons e perceber ruiacutedosrdquo
(HEIDEGGER 2012 p461) De modo mais claro o fenocircmeno desde Husserl indica
aquilo que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute sempre uma doaccedilatildeo com
significado Assim a intencionalidade fenomenoloacutegica para Heidegger agora voltada ao
mundo e a facticidade como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em seu ser acontece
na e pela articulaccedilatildeo discursiva que ouve porque jaacute articulou a totalidade e por isso
entende tendo em vista que essa totalidade natildeo se apresenta como um todo indistinto Ou
seja o ser-aiacute em sua constituiccedilatildeo primaacuteria voltado agrave abertura compreensiva articulada
pelo discurso pode escutar a doaccedilatildeo fenomecircnica
ldquolsquoDe imediatorsquo nunca ouvimos barulhos e o conjunto de ruiacutedos mas o carro que
range a motocicleta O que se ouve eacute a coluna em marcha o vento norte o pica-
pau bicando o fogo crepitando Eacute preciso uma atitude muito artificial e
complicada para lsquoouviursquo um lsquobarulho purorsquo Que em primeiro lugar ouccedilamos
motocicletas e carros eacute a prova fenomecircnica de que o Dasein como ser-no-mundo
manteacutem-se cada vez junto ao utilizaacutevel do interior-do-mundo e de modo algum
imediatamente junto a lsquosensaccedilotildeesrsquo cuja concatenaccedilatildeo tivesse primeiramente de
ser formada para que se proporcionasse o trampolim a partir do qual o sujeito
saltaria para alcanccedilar finalmente um lsquomundorsquo O Dasein como essencialmente
entendedor eacute de pronto junto ao entendidordquo (HEIDEGGER 2012 p461)
A doaccedilatildeo fenomecircnica possibilitada pelo traccedilo intencional do discurso se estende
agrave escuta e ao calar de um outro ser-aiacute pois como ser-no-mundo que eacute sempre ser-com-
os-outros o Dasein jaacute estaacute ldquode antematildeo com o outro junto ao ente sobre o qual discorrerdquo
130
(HEIDEGGER 2012 p463) Por isso quando outra pessoa nos fala algo natildeo ouvimos
primeiramente os sons para depois agregaacute-los e formarmos palavras compreensiacuteveis Ou
ainda quando o outro silencia ainda expressa algo e tambeacutem pode lsquodar a entenderrsquo
ldquoOuvindo compreendemos o que o interlocutor diz E o dizer nos coloca de
imediato com o interlocutor junto ao ente a respeito do qual o discurso se
pronuncia O genuiacuteno silecircncio tambeacutem modo de ouvir e de dizer calando Essa
preeminecircncia do dizer se reflete nos componentes dos do discurso que se
estruturam a partir daquilo que acede agrave palavra do ente que ela torna manifesto
Dizer algo de certa maneira para algueacutem numa tonalidade ou disposiccedilatildeo de
acircnimo nisso consiste o fenocircmeno do discurso em sua completa estrutura
comunicativa-expressivardquo (NUNES 2012 p 170)
Poderiacuteamos dizer que a articulaccedilatildeo da compreensatildeo (Verstehen) pelo discurso
(Rede) na reuniatildeo dos elementos que foram por ele destacados posicionando-os
discursivamente opera como a harmonia de uma muacutesica que daacute aos fenocircmenos seu lugar
na melodia em funccedilatildeo do ritmo Sendo o ritmo o ldquomundordquo como abertura histoacuterica que
sustenta o sentido de ser de cada parte da melodia que continuaraacute agrave tona ou que teraacute
sentido
Portanto para o ser-aiacute estar lanccedilado em um mundo como projeto-jogado eacute estar
familiarizado atraveacutes da abertura que entende dispositivamente o horizonte de sentido E
esse horizonte eacute compartilhado por todos que convivem em um mesmo mundo faacutetico e eacute
neste sentido que a comunicaccedilatildeo o terceiro significado de enunciaccedilatildeo como vimos no
capiacutetulo anterior ldquoefetua lsquoa partilharsquo do co-encontrar-se e do entendimento do ser-comrdquo
(HEIDEGGER 2012 p457) O que eacute compartilhado natildeo eacute meramente um conteuacutedo
significativo de um lsquopacto-linguiacutesticorsquo assim como comunicar natildeo eacute trazer um desejo
uma expressatildeo uma afirmaccedilatildeo de lsquoforarsquo de um sujeito para o lsquointeriorrsquo de outro mas ldquosua
tendecircncia-de-ser consiste em pretender que o ouvinte participe do ser aberto por aquilo-
sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012 p 473) ou seja a partilha da
experiecircncia da abertura compreensiva jaacute articulada como horizonte de possibilidades que
vem agrave linguagem De outro modo
ldquoDado que o fundamento ontoloacutegico natildeo possui existecircncia agrave parte daquilo que
funda o discurso que eacute a condiccedilatildeo transcendental da linguagem relevando-se da
abertura do Dasein de seu ser-no-mundo tambeacutem eacute lsquolinguagem extensivarsquo (SZ
p61) Inversamente a linguagem como totalidade de palavras (Wortganzheit) de
uma liacutengua eacute o discurso pronunciado De onde se conclui que a primeira eacute a forma
131
estabilizada do segundo na perspectiva do ser-no-mundo da existecircncia cotidiana
que lhe impotildee a condiccedilatildeo de ente intramundano como utensiacutelio As palavras que
podem espedaccedilar-se e coisificar-se seriam o veiacuteculo dessa condiccedilatildeo instrumental
() E que eacute aceder agrave palavra senatildeo falar e que eacute falar senatildeo usar a linguagem
Satildeo pois equivalentes as duas afirmaccedilotildees de Heidegger- que ser no-mundo eacute
falante e que ele tem linguagem (Sprache)() Ambas concernem a um soacute
fenocircmeno captado no conceito aristoteacutelico de homem como ser capaz de falar ndash
zoacuteon loacutegon eacutechon- complemento agrave tese do zoacuteon politikoacuten (animal poliacutetico) - que
revela a interlocuccedilatildeo o lsquofalar uns com os outrosrsquo em que o cotidiano grego estava
politicamente enraizadordquo (NUNES 2012 p170)
Eacute um tanto embaraccediloso os caminhos conceituais que levam o discurso (die Rede)
agrave linguagem (die Sprache) e ainda como essa se apresenta sempre como falatoacuterio (das
Gerede) pela essecircncia mesma da comunicaccedilatildeo (Mitteilung) Pois a linguagem cotidiana
- o dizer uns com os outros em um mundo faacutetico - eacute um discurso que jaacute se expressou ou
seja o acontecimento da linguagem jaacute eacute articulado por um discurso preacutevio e o discurso
jaacute expresso eacute comunicaccedilatildeo Mesmo que a analiacutetica indique uma estratificaccedilatildeo e ainda a
fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da linguagem pelo discurso haacute um caraacuteter ciacuteclico
consequecircncia mesma do ciacuterculo hermenecircutico Se as palavras natildeo tecircm significados fixos
mas histoacutericos provenientes de uma abertura de sentido articulada que sustenta esses
significados Ainda assim os significados acumulam-se nas palavras e essas satildeo afinal a
maneira pela qual o mundo eacute dito nas relaccedilotildees interpessoais e nas relaccedilotildees das pessoas
com as coisas Desse modo se os significados acumulam-se nas palavras o discurso (die
Rede) sempre se manifesta na linguagem cotidiana E eacute na cotidianidade que a absorccedilatildeo
da linguagem eacute imediatamente tomada pela impessoalidade atraveacutes do uso instrumental
das palavras na tendecircncia de oferecer um mundo sempre estaacutevel Eacute essa uacuteltima descriccedilatildeo
que Heidegger chama de falatoacuterio (Gerede) Pois
ldquoO substantivo alematildeo Rede deriva-se diretamente do verbo reden que significa
falar O particiacutepio dos verbos em alematildeo eacute feito na maior parte das vezes por meio
da inserccedilatildeo da partiacutecula lsquogersquo() O que temos na cotidianidade mediana do ser-
aiacute eacute falatoacuterio natildeo porque podemos constatar empiricamente um esvaziamento da
linguagem impessoal e porque sempre eacute possiacutevel acompanhar a falta de
profundidade desses discursos Ao contraacuterio eacute falatoacuterio porque natildeo se realiza
senatildeo a partir de um ato jaacute concluiacutedordquo (CASANOVA 2006 p63)
Mas antes de passarmos agrave descriccedilatildeo do falatoacuterio eacute preciso indicar como esses
ldquoembaraccedilos conceituaisrdquo em torno do discurso indicam a ldquotransiccedilatildeo do pensamento
132
heideggeriano ndash em sua segunda fase nucleado em torno da linguagem- ldquo(NUNES 2012
p169) pois ldquoestampam-se na proacutepria equivocidade do termo designativo die Rede que
significa aleacutem de discurso conversaccedilatildeo e pronunciamentordquo (NUNES 2012 p169)
Essa equivocidade torna-se clara no fato que o discurso (die Rede) natildeo se funda em
qualquer ekstase determinada ou seja natildeo eacute possiacutevel encontrar na temporalidade do ser-
aiacute um momento constitutivo no qual ele emerge Dando assim em Ser e Tempo um
caraacuteter transcendental ao discurso
ldquoconotando o loacutegos grego retraduzido o discurso que nos daria a plena abertura
do Dasein em seu aiacute eacute incluindo portanto a disposiccedilatildeo de acircnimo eacute como modo
eminente de temporalizaccedilatildeo a que natildeo cabe o predomiacutenio de um ecircxtase
determinado o existentivo da linguagem o seu fundamento ontoloacutegicordquo
(NUNES 2012 p169)
Apresentamos no capiacutetulo anterior que no sect65 de Ser e Tempo o autor apresenta
o sentido ontoloacutegico da preocupaccedilatildeo (Sorge) na temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-
se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O
ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Futuro
(poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente (presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees
temporais como as que tomamos diariamente mas o caraacuteter essencial da
existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre adiantado (futuro) em
relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza as possibilidades na
facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva oferecida pela tradiccedilatildeo
histoacuterica ) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no presente esse
passado em seus comportamentos e projetos
No Quarto Capiacutetulo da Segunda Seccedilatildeo denominado Temporalidade e
cotidianidade Heidegger retoma a multiplicidade dos fenocircmenos da anaacutelise preparatoacuteria
da primeira seccedilatildeo para compreendecirc-los em sua unidade em funccedilatildeo da totalidade estrutural
fundante da Sorge E se a analiacutetica existenciaacuteria do ser-aiacute inicia sua investigaccedilatildeo a partir
da cotidianidade mediana tendo em vista que a impropriedade oferecida por suas
orientaccedilotildees eacute em suma a orientaccedilatildeo inicial do ser-aiacute para seus possiacuteveis modos de ser Eacute
necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos na cotidianidade a partir da
temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico
133
Nesse sentido no sect 68 item d de Ser e Tempo intitulado ldquoA temporalidade do
discursordquo Heidegger diz A plena abertura do aiacute constituiacuteda pelo entender o encontrar-
se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) recebe a articulaccedilatildeo pelo discurso
(Rede) Por isso o discurso natildeo se temporaliza primariamente numa ekstase determinada
(HEIDEGGER 2012 p949) e ainda o discurso eacute temporal em si mesmordquo
(HEIDEGGER2012 p949) Na continuidade do paraacutegrafo o autor prossegue dizendo
que natildeo obstante o discurso seja expresso na facticidade na linguagem e deste modo o
presente (Gegenwaumlrtige) desempenha uma funccedilatildeo constitutiva ainda assim
Mas porque o discurso cada vez discorre sobre o ente se bem que natildeo primaacuteria
e principalmente no sentido da enunciaccedilatildeo teoacuterica a anaacutelise da constituiccedilatildeo
temporal do discurso e a explicaccedilatildeo dos caracteres temporais das formaccedilotildees da
liacutengua soacute podem ser levados a cabo quando se tenha resolvido o problema da
conexatildeo de princiacutepio de ser e verdade a partir da problemaacutetica da
temporalidade Poder-se-ia delimitar entatildeo o sentido ontoloacutegico do lsquoeacutersquo que uma
superficial teoria da proposiccedilatildeo e do juiacutezo deformou em lsquocoacutepularsquo Soacute a partir da
temporalidade do discurso isto eacute a partir da temporalidade do Dasein em geral
pode-se elucidar a lsquoorigemrsquo e pode-se entender ontologicamente a possibilidade
de uma formaccedilatildeo-do-conceito (HEIDEGGER2012 p949 grifo nosso)
O problema reside no fato de que o Dasein em Ser e Tempo eacute apresentado como
o fundamento sem fundamento de outra forma a compreensatildeo enquanto acontecimento
de sentido primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode
custodiar o sentido de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento
Entatildeo na medida em que a temporalidade (Zeitlichkeit) eacute o sentido ontoloacutegico desse ente
privilegiado qualquer fenocircmeno exposto na analiacutetica preparatoacuteria precisaria encontrar
seu fundamento ontoloacutegico em alguma ekstase determinada futuro o ser-do-sido ou
presencizar Por exemplo o presente desempenha a funccedilatildeo constitutiva da linguagem
(Sprache) na medida em que o ser-aiacute lanccedilado em um mundo encontra-se em meio aos
entes e jaacute junto aos outros atualizando os significados sedimentados pela linguagem (pela
liacutengua) oferecidos no presente Isso poreacutem natildeo ocorre com o discurso (die Rede) que eacute
ldquotemporal em si mesmordquo Desse modo seu sentido ontoloacutegico ou aquilo que sustenta sua
origem compreendida como seu sentido de ser a partir do desvelamento natildeo eacute elucidado
em Ser e Tempo Pensamos que a partir dessa constataccedilatildeo pelo comprometimento
fenomenoloacutegico de Heidegger a estratificaccedilatildeo da linguagem presente em Ser e Tempo
natildeo pode mais manter-se apoacutes a viragem Pois o fenocircmeno da linguagem precisa ser
134
reconsiderado a partir de si mesmo para que seja possiacutevel encontrar seu fundamento
ontoloacutegico85
Esse breve momento da obra de 1927 acerca da temporalidade do discurso em
Ser e Tempo eacute de extrema importacircncia para pensarmos como o fenocircmeno da linguagem
possui jaacute um importante e amplo papel no interior do tratado Pois ele estaacute intimamente
ligado agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento (Aleacutetheia) revelando natildeo soacute um impasse
acerca da estratificaccedilatildeo da linguagem na obra bem como traz agrave tona que o encobrimento
como contraparte da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser ganha uma imagem peculiar
exatamente na manifestaccedilatildeo da linguagem E desse modo apesar da apresentaccedilatildeo do
discurso e de sua especificidade em Ser e Tempo encontramos apenas a descriccedilatildeo da
linguagem (Sprache) que chamamos de ldquonegativardquo como sedimentaccedilatildeo interpretativa
pelo falatoacuterio (Gerede) Eacute o que vamos expor a seguir
II- O Falatoacuterio (das Gerede)
Ainda no sect34 Heidegger alerta que a anaacutelise do discurso (Rede) perdeu de vista a
cotidianidade do ser-aiacute solo fenomecircnico que a analiacutetica se guia naquele momento Pois
as estruturas existenciaacuterias da abertura do ser-no-mundo entender (Verstehen) encontrar
(Befindlichkeit) discurso (Rede) e interpretar (Auslegen) na medida em que se manteacutem
pela abertura primaacuteria do ser-aiacute remetido ao mundo inicialmente no modo de ser de ldquoa-
genterdquo (das Man) devem ser compreendidas em seu modo especiacutefico na cotidianidade
mediana Como o ser-aiacute eacute de iniacutecio lanccedilado nas possibilidades faacuteticas de um mundo
sedimentado a anaacutelise propriamente fenomenoloacutegica deve se orientar pelos fenocircmenos
expressos nesse horizonte
ldquoDe imediato eacute preciso que fique visiacutevel a partir de alguns fenocircmenos
determinados a abertura de a-gente isto eacute pela elucidaccedilatildeo do modo-de-ser-
cotidiano de discurso visatildeo e interpretaccedilatildeo No relativo a esses fenocircmenos natildeo
eacute supeacuterfluo observar que a interpretaccedilatildeo tem um propoacutesito puramente ontoloacutegico
estando muito longe de uma criacutetica moralizante do Dasein cotidiano e estaacute muito
longe de qualquer aspiraccedilatildeo de lsquofilosofia da culturarsquordquo (HEIDEGGER 2012
p471)
85 Nesse sentido Cf LAFONT 1997 pp46-52
135
A anaacutelise do que Heidegger denomina ldquoA-genterdquo (das Man) eacute apresentada no
quarto capiacutetulo da primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo e tem em vista elucidar o ldquoser-no-mundo
como ser-comrdquo e ldquocomo ser-si-mesmordquo Essa descriccedilatildeo estaacute diretamente relacionada ao
conceito de queda ou decair (Verfallen) pois eacute esse solo imediato que o ser-aiacute se
movimenta e terceiriza seu ser agraves orientaccedilotildees cotidianas cada vez em fuga de seu ser-
proacuteprio mas condiccedilatildeo inexoraacutevel para que possa conquistaacute-lo E ainda como expresso
no trecho acima esses conceitos nada tem a ver com uma criacutetica moral como que uma
criacutetica agrave sociedade de massa A anaacutelise eacute uma elucidaccedilatildeo fenomenoloacutegica e por isso
ontoloacutegica O que estaacute em jogo nessa descriccedilatildeo eacute o acesso aos fenocircmenos como eles se
mostram para entatildeo chegar ao fundamento ontoloacutegico que sustenta seu sentido de ser
Desse modo a facticidade ou o mundo cotidiano eacute o maneira pela qual os fenocircmenos e
as possibilidades do ser-aiacute vecircm ao encontro O que anaacutelise sobre ldquoA-genterdquo (das Man)
realizada no sect25 ao sect27 potildee em tela eacute 1) o esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein 2) o
Dasein-com dos outros e o cotidiano ser-com 3) o cotidiano ser-si-mesmo e a-gente
Se no sect9 Heidegger expotildee o sentido formal do ser-aiacute como esse ente que a cada
vez noacutes mesmos somos e ainda como a essecircncia desse ente reside em sua existecircncia o
esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein deve agora voltar-se ao campo situacional histoacuterico
que extraiu esse conceito
ldquoNo presente contexto de uma analiacutetica existenciaacuteria do Dasein factual surge a
pergunta sobre se o referido modo de o eu se dar abre o Dasein em sua
cotidianidade supondo-se que em geral o abra () Pode-se sempre muito bem
dizer sobre esse ente em termos onticamente justificaacuteveis que lsquoeursquo o sou
Contudo a analiacutetica ontoloacutegica ao empregar essas proposiccedilotildees deve fazecirc-lo com
reservas de princiacutepio O lsquoeursquo somente deve ser entendido no sentido de um como
indicador formal e indiferente de algo que em sua concreta conexatildeo-de-ser
fenomecircnica talvez se desvende como o lsquoopostorsquo do que parecia lsquoNatildeo eursquo de
modo algum significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo [privado de
lsquoegoidadersquo] mas significa um determinado modo-de-ser do lsquoeursquo ele mesmo por
exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p337)
A interpretaccedilatildeo moderna da essecircncia do ser humano baseada na egoidade em um
ldquoeurdquo que se reconhece como tal e em uacuteltima medida fundamenta toda e qualquer
descriccedilatildeo dos entes obscurece o solo em que esse conceito aparece Referir-se ao ldquoeurdquo eacute
possiacutevel no trato diaacuterio e comum da existecircncia cotidiana (onticamente) na medida em que
136
o ldquoaiacuterdquo existe cooriginariamente Natildeo haacute sujeito sem mundo por esse motivo a
ldquolsquosubstacircnciarsquo do homem natildeo eacute o espiacuterito como a siacutentese de alma e corpo mas a
existecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p341) E desse modo se a existecircncia acontece em um
mundo ela natildeo se reconhece primariamente para depois reconhecer ldquomundordquo e os
ldquooutrosrdquo mas existindo o ser humano eacute as possibilidades disponiacuteveis em seu ldquoaiacuterdquo
compartilhando com os outros pois ldquonatildeo haacute afinal de pronto um eu isolado que se decirc sem
os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p337)
A abertura primaacuteria de sentido ou a abertura compreensiva-interpretativa sempre
disposta do ser-aiacute o remete ao mundo junto aos entes e aos outros que partilham a mesma
abertura compreensiva-interpretativa e assim noacutes temos mundo De outro modo
ningueacutem tem lsquoseu mundorsquo particular emergente da consciecircncia que se auto reconhece a
partir da qual lsquoenxergarsquo o mundo puacuteblico Tudo que algueacutem possa vir a pensar sentir
compor dizer etc eacute primariamente aquilo que o mundo puacuteblico compartilhado sustenta
como algo que tem sentido Natildeo sou porque penso antes penso porque sou Quando
tentamos pensar em qualquer significado que natildeo seja sustentado pelo sentido do mundo
puacuteblico natildeo encontramos o que possa ser dito ou pensado
Mas o que o autor quer dizer quando indica que o ldquonatildeo eursquo de modo algum
significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo mas significa um determinado modo-de-
ser do lsquoeursquo ele mesmo por exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012
p337) Imersos nas ocupaccedilotildees diaacuterias empreendidas com os outros o ser-aiacute ldquocomo
cotidiano ser-um-com-o-outro estaacute na sujeiccedilatildeo aos outros Ele natildeo eacute si-mesmo os outros
lhe retiram o ser () Nisso os outros natildeo satildeo determinadosrdquo (HEIDEGGER 2012
p363) Na liacutengua portuguesa essa indeterminaccedilatildeo eacute ilustrada pela partiacutecula ldquoserdquo como
iacutendice de indeterminaccedilatildeo do sujeito Por exemplo Necessita-se de empregados Nesse
lugar se eacute tratado muito bem etc O ldquosujeitordquo o ldquoeurdquo do ser-aiacute na cotidianidade natildeo eacute seu
ser-proacuteprio mas a perda de si pois compreende seu ser inicialmente pela imposiccedilatildeo
impessoal indeterminada de suas possibilidades e as realiza sob o domiacutenio dessa
orientaccedilatildeo estuda-se casa-se tem-se filhos etc Nas palavras do autor
ldquoO Dasein cotidiano tira a interpretaccedilatildeo preacute-ontoloacutegica de seu ser do imediato
modo-de-ser de a-gente A interpretaccedilatildeo ontoloacutegica segue de imediato essa
tendecircncia interpretativa e entende o Dasein a partir do mundo e o encontra como
ente do-interior-do-mundo E natildeo somente isso mas a ontologia lsquoimediatarsquo do
137
Dasein faz que se lhe decirc a partir do lsquomundorsquo o sentido de ser em relaccedilatildeo ao qual
esses entes lsquosujeitosrsquo satildeo entendidos Mas porque nessa absorccedilatildeo no mundo
passa-se por cima do fenocircmeno do mundo ele mesmo em seu lugar se introduz o
subsistente do-interior-do-mundo as coisas O ser do ente que eacute -lsquoaiacutersquo-com eacute
concebido como subsistecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p 373)
Como vimos esse modo de ser do ser-aiacute eacute consequecircncia do fato de natildeo termos
qualquer natureza Natildeo haacute como se retirar dessa condiccedilatildeo ontoloacutegica mesmo que
onticamente somos impelidos a cada vez determinarmos nosso ser de alguma forma
indicando noacutes mesmos e os outros como meros subsistentes por exemplo em expressotildees
como ldquoEu sou professorardquo ldquoEle eacute pairdquo ldquoNoacutes somos brasileirosrdquo etc E por isso ldquoo ser-
si-mesmo proacuteprio natildeo repousa sobre um estado-de-exceccedilatildeo de um sujeito desprendido de
a-gente mas eacute uma modificaccedilatildeo existencial de a-gente como um existenciaacuterio essencialrdquo
(HEIDEGGER 2012 p373) ou seja ser-si-mesmo-proacuteprio natildeo eacute se retirar dessa
indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica mas ter transparecircncia dessa condiccedilatildeo irremediaacutevel
A partir dessa explicaccedilatildeo retomemos a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein a partir do
sentido formal da preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-
em (-o-mundo) como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo
(HEIDEGGER 2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser
(existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que
foi lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio
aos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda) O que sustenta o
sentido de ser desse ente eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) pois a temporalidade descobre-
se como o sentido da preocupaccedilatildeo (Sorge) proacutepria ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-
se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute
possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Contudo a preocupaccedilatildeo
proacutepria natildeo eacute a noacutes de pronto transparente e natildeo eacute o modo que inicialmente e na maioria
das vezes estamos e nos orientamos no mundo Ser-no-mundo eacute a abertura compreensiva
disposta jaacute em meio ao mundo articulado e sedimentado portanto eacute constituiacuteda pelo
entender o encontrar-se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) (Cf
HEIDEGGER 2012 p949) Eacute necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos
nessa abertura primaacuteria ao mundo a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal
compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico O autor entatildeo nos apresenta que ldquoo
138
entender funda-se no futuro (adiantar-se ou aguardar) O encontrar-se temporaliza-se
primariamente no ser-do-sido (repeticcedilatildeo ou esquecimento) O decair tem raiz temporal
primariamente no presente (presencizar ou instante)rdquo (HEIDEGGER 2012 p951)
Aguardar (Gewaumlrtigen) esquecimento (Vergessenheit) e instante (Augenblck) satildeo
os modos impessoais de realizaccedilatildeo do ser do ser-aiacute na cotidianidade a partir de seu sentido
ontoloacutegico (Sorge) fundado na temporalidade (Zeitlichkeit) O futuro aparece como
espera na cotidianidade na medida em que estaacute submerso na familiaridade de um mundo
descerrado em que o ser-aiacute pode ocupar-se com os entes e travar relaccedilotildees com os outros
na normalidade da vida cotidiana Na familiaridade o ser-aiacute sabe o que esperar O passado
ou o ser-do-sido nada tem a ver com ldquofalta de lembranccedilardquo mas refere-se a imersatildeo na
dejecccedilatildeo ou no modo de ser-jogado do ser-aiacute Nesse sentido o ser-aiacute sempre ocupado abre-
se ao mundo mas fecha-se ao seu ser-proacuteprio esquecendo de si e de sua indeterminaccedilatildeo
em funccedilatildeo do que jaacute estaacute a cada de vez posto como possiacutevel no mundo O decair no modo
proacuteprio refere-se ao presente ou presencizar ou seja a transparecircncia ao ser-aiacute de sua
condiccedilatildeo de jogado em um presente aberto que a vida e a compreensatildeo de ser decorrem
Na cotidianidade poreacutem o decair como instante refere-se a incessante fala apariccedilatildeo e
apropriaccedilatildeo (natildeo como de si mesmo como ser-proacuteprio mas das possibilidades disponiacuteveis
publicamente) das coisas e de um estado de coisas Incessante porque atualiza as
possibilidades postas descerradas e sedimentadas no mundo movimentando a existecircncia
pela retroalimentaccedilatildeo daquilo que jaacute foi e eacute a cada vez compreendido sem pocircr em questatildeo
afinal aquilo que se compreende e o ente que pode compreender ou seja ente que noacutes
somos
Na anaacutelise preparatoacuteria ou na primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo o decair foi descrito
na ldquointerpretaccedilatildeo do falatoacuterio da curiosidade e da ambiguidaderdquo (HEIDDEGGER 2012
p941) Desse modo esclarecido como a queda ou o decair funda-se na temporalidade do
ser-aiacute portanto esclarecido seu fundamento ontoloacutegico a partir do ente que abre a
compreensatildeo de ser Podemos a partir de agora entender o fenocircmeno da linguagem na
cotidianidade do ser-aiacute e em seu modo de ser improacuteprio De outro modo compreender o
falatoacuterio como queda
A anaacutelise do falatoacuterio (das Gerede) eacute realizada no sect35 precedida exatamente pela
exposiccedilatildeo do discurso como fundamento ontoloacutegico da linguagem Essa linha de
139
apresentaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria antes revela que tambeacutem o fenocircmeno da linguagem parte
de seu encobrimento E revela que seu fundamento eacute a cada vez obliterado no uso comum
das liacutenguas e das palavras no cotidiano poreacutem
ldquoA expressatildeo lsquofalatoacuteriorsquo natildeo deve ser aqui empregada numa acepccedilatildeo pejorativa
Ela significa terminologicamente um fenocircmeno positivo que constitui o modo-
de-ser do entender e interpretar do Dasein cotidiano No mais das vezes o
discurso se expressa e jaacute se expressou em palavras O discurso eacute linguagemrdquo
(HEIDEGGER 2012 p471)
A anaacutelise da cotidianidade eacute um caraacuteter fenomecircnico positivo para a analiacutetica
existenciaacuteria pois eacute a partir dele a partir de um modo de ser improacuteprio que o ser-aiacute eacute
lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria das vezes Natildeo eacute apenas
lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade mas seu modo de ser
ontologicamente irremediaacutevel Nesse sentido apresentar a linguagem como manifestaccedilatildeo
uacuteltima da abertura histoacuterica remetida ao mundo que jaacute compreendeu jaacute articulou e jaacute
interpretou eacute apresentar um caminho agrave pergunta Como a linguagem que eacute essencialmente
generalizante pode afinal ser histoacuterica Questatildeo jaacute exposta nos primeiros escritos de
Heidegger que acaba por expor a origem dessa problemaacutetica em Ser e Tempo como por
exemplo essa passagem do texto de 1919
ldquoA objeccedilatildeo mais elementar mas carregada de suficiente perigosidade tinha a ver
com a linguagem Toda descriccedilatildeo eacute um lsquoconceber-em-palavrasrsquo - a lsquoexpressatildeo
verbalrsquo eacute generalizante Essa objeccedilatildeo eacute baseada na crenccedila de que toda linguagem
eacute jaacute em si mesma objetiva isto eacute viver em um significado implica eo ipso uma
concepccedilatildeo teoacuterica do que se entende que a realizaccedilatildeo do significado natildeo eacute mais
do que a exibiccedilatildeo do objeto () A universalidade do significado das palavras
assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia vividardquo86
(HEIDEGGER (GA5657) 2005 pp134-142)
Esse eacute tambeacutem o risco do uso das palavras e da linguagem na cotidianidade ou
do falatoacuterio A manifestaccedilatildeo da linguagem na expressatildeo eacute comunicaccedilatildeo e o enunciado
86 ldquoLa objecioacuten maacutes elemental pero cargada de suficiente peligrosidad teniacutea que ver con el lenguaje Toda
descripcioacuten es un laquoconcebir-en-palabrasraquo -la laquoexpresioacuten verbalraquo es generalizante Esta objecioacuten descansa
en la creencia de que todo lenguaje es ya en siacute mismo objetivante es decir que vivir en un significado
implica eo ipso una concepcioacuten teoreacutetica de lo que es significado que la plenificacioacuten del significado es
sin maacutes soacutelo una exhibicioacuten del objeto() La universalidad del significado de las palabras sentildeala
primariamente algo originario el caraacutecter mundano de la vivencia vivida rdquo Opcit pp134-142
140
como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se pode partilhar com outrem lsquover juntorsquo o mostrado no
modo do determinar Nesse sentido ldquoo discurso (Rede) que-se-expressa eacute comunicaccedilatildeordquo
(HEIDEGGER 2012 p473) E os conceitos-preacutevios oferecidos na comunicaccedilatildeo acabam
por determinar objetivamente as coisas e o estado de coisas ldquosem que tenham perto de si
tangiacutevel e visiacutevel o ente mostrado e determinadordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Dessa
forma ldquoo acircmbito dessa visatildeo compartilhada amplia-se Mas ao mesmo tempo na
repeticcedilatildeo o mostrado pode precisamente vir a se encobrir de novo () O ouvir-dizer eacute
tambeacutem um ser-no-mundo e ser em relaccedilatildeo ao que eacute ouvidordquo (HEIDEGGER 2012
p439)
A essecircncia do falatoacuterio eacute esse ouvir-dizer comunicado que pode ser repetido E
conforme a compreensatildeo mediana orienta-se pela expressatildeo da linguagem expressa ldquoo
discurso comunicado pode ser entendido amplamente sem que o ouvinte tenha de se pocircr
originariamente entendedor daquilo sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012
p473) A relaccedilatildeo com a linguagem torna-se nesse sentido meramente instrumental Um
exemplo paradigmaacutetico eacute a linguagem jornaliacutestica pois em seu traccedilo essencialmente
comunicativo e divulgador pode a cada vez informar sobre as coisas e um estado de
coisas sem que o leitor ou o ouvinte tenha de fato clareza acerca da compreensatildeo de tais
coisas mas pode repetir o que leu e o que ouviu com os outros e ser entendido A ldquofalta
de clarezardquo nesse exemplo natildeo diz respeito a algo como falta de ldquoacesso agraves fontesrdquo mas
deve ser compreendido em seu caraacuteter ontoloacutegico ou seja o que estaacute em jogo eacute o fato
que a linguagem repetida natildeo coloca em questatildeo seu proacuteprio fundamento A relaccedilatildeo entre
a cotidianidade impessoal e o uso da linguagem eacute algo tatildeo intriacutenseco que Heidegger em
1946 no texto Carta sobre o Humanismo diz
ldquoO que foi dito sobre o lsquoimpessoalrsquo em Ser e Tempo (1927) nos paraacutegrafos 27 e
35 de modo algum deve ser reduzido a um contributo secundaacuterio agrave sociologia
Mas o lsquoimpessoalrsquo tampouco se refere apenas agrave imagem oposto compreendida
de maneira eacutetico-existenciaacuteria do ser proacuteprio da pessoa Ao contraacuterio o que disse
ali conteacutem a indicaccedilatildeo agrave pertinecircncia inicial da palavra com o ser e essa
indicaccedilatildeo eacute pensada segundo a verdade do ser Essa relaccedilatildeo permanece oculta
sob o predomiacutenio da subjetividade que se apresenta como opiniatildeo puacuteblicardquo
(HEIDEGGER 2008 p330 grifo nosso)
141
A linguagem eacute portanto submetida ao que eacute compreensiacutevel na opiniatildeo puacuteblica e
aquilo que a cotidianidade mediana natildeo compreende eacute simplesmente descartado como
incompreensiacutevel Ou seja a proacutepria compreensatildeo (Verstehen) estaacute irremediavelmente
orientada agrave queda e essa mantecircm-se como tal no falatoacuterio Na tentativa de objetivar o
que as coisas satildeo e como elas satildeo tudo que eacute compreendido obscurece seu ldquocomordquo ou
seu mostrar que vem ao encontro no mundo histoacuterico pois ldquosoacute se procura ouvir o
discorrido como talrdquo (HEIDEGGER p473)
ldquoEm meio a essa dinacircmica retoma-se incessantemente uma atitude ontoloacutegica em
relaccedilatildeo aos entes intramundanos em geral e ao ser-aiacute em especiacutefico uma atitude
marcada fundamentalmente por uma opacidade primordial Todos satildeo a
princiacutepio homogeneizados a partir da noccedilatildeo de uma subsistecircncia por si todos
passam a ser desde o princiacutepio considerados como entes simplesmente dados e
detentores ao mesmo tempo de propriedades igualmente dadas() O falatoacuterio
tende entatildeo a coibir o aparecimento de uma outra forma discursiva que se
perfaccedila por meio de um real questionamento do ser do ente e de uma apropriaccedilatildeo
originaacuteria do ente consideradordquo (CASANOVA2006 p70)
O falatoacuterio como linguagem sedimentada e repetida eacute o que inicialmente orienta
o ser-aiacute em seu ldquoairdquo A cotidianidade mediana na qual estamos sempre imersos abre
inicialmente a compreensatildeo do mundo ao ser-aiacute mas ao abri-la acaba por fechaacute-la pois
desenraiza o ser-aiacute do solo originaacuterio dessa compreensatildeo de ser dos entes De outro modo
o loacutegos como discurso articula mundo e o abre agrave compreensatildeo o falatoacuterio como
linguagem sedimentada encobre esse mostrar originaacuterio O falatoacuterio diz e indica as coisas
e o estado de coisas mas natildeo os coloca em sua mostraccedilatildeo a partir de seu ser ou como
nos diz Carlos Drummond ldquoO sol consola os doentes e natildeo os renovardquo Nesse sentido
que a repeticcedilatildeo e a difusatildeo satildeo traccedilos essenciais do falatoacuterio pois movimentam a
existecircncia baseada na estabilidade do compreendido previamente articulado e
compartilhado na vida comum manifesto em uacuteltima medida pela linguagem e pelos
conceitos herdados
ldquoA falta-de-solo natildeo o impede de ingressar no que eacute puacuteblico mas favorece seu
ingresso O falatoacuterio eacute a possibilidade de tudo entender sem uma preacutevia
apropriaccedilatildeo da coisa O falatoacuterio jaacute protege por antecipaccedilatildeo contra o perigo de
malograr em tal apropriaccedilatildeo O falatoacuterio que qualquer um pode obter natildeo soacute
dispensa da tarefa de um entendimento autecircntico mas desenvolve uma
entendibilidade indiferente para a qual nada estaacute fechadordquo (HEDEGGER 2012
p475)
142
A objetividade promovida pelo falatoacuterio ou esse jaacute ser-interpretado natildeo eacute algo
que podemos negar e suspender A queda ou decair (Verfallen) constitui ldquoa plena abertura
do aiacuterdquo e o ldquoDasein nunca eacute capaz de rejeitar esse cotidiano ser-do-interpretado no qual
de imediato cresceurdquo (HEIDEGGER 2012 p477) Ele nos constitui porque eacute
inicialmente nosso ldquoaiacuterdquo e ldquotodo entendimento interpretaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo genuiacutenos
toda redescoberta se efetuam nele a partir dele e contrariamente a elerdquo (HEIDEGGER
2012 p477) ldquoTer mundordquo (abertura compreensiva) para o ser-aiacute que o constitui como
ente privilegiado eacute tambeacutem ser absorvido pelo mundo (queda) A verdade (Aleacutetheia)
como desvelamento eacute tambeacutem encobrimento Ser na verdade eacute tambeacutem estaacute na natildeo-
verdade Ouvir o loacutegos eacute tambeacutem se perder na linguagem
ldquoEacute soacute por isso que (sect34) Ser e Tempo conteacutem uma indicaccedilatildeo essencial da
linguagem tocando na questatildeo simples que pergunta em que modo do ser a
linguagem eacute sempre linguagem como tal O esvaziamento da linguagem que
avanccedila violentamente e se estende com rapidez por toda parte natildeo corroacutei apenas
a responsabilidade esteacutetica e moral em todos os usos da linguagem Proveacutem de
uma ameaccedila da essecircncia do ser humanordquo (HEIDEGGER 2008 p331)
Mas entatildeo qual o caminho Como ir agrave linguagem como tal Heidegger nos
adverte ldquoUm mero uso cuidado da linguagem ainda natildeo demonstra que escapamos desse
perigo essencialrdquo (HEIDEGGER 2008 p331) Na realidade reduzir o problema agrave essa
soluccedilatildeo poderia indicar que nem sequer vemos o perigo pois o esconderia sob agraves vestes
de usos como lsquosabedoriarsquo lsquoculturarsquo lsquoconhecimentorsquo etc ou seja a ldquosoluccedilatildeordquo ainda
estaria submetida ao domiacutenio puacuteblico do que eacute compreensiacutevel
Portanto se ldquoa linguagem ainda nos nega sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2008
p331) entatildeo ainda eacute necessaacuterio seguir a orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica
Diante da pergunta de Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na
cidade Soacutecrates responde ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso
irrdquo87 Para que afinal busquemos a relaccedilatildeo entre loacutegos e ser
87 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9
143
Conclusatildeo
O que vem agrave palavra Essa foi a questatildeo que nos guiou nesse trabalho Ela
atravessa outras perguntas por que falamos de uma determinada forma por exemplo
com sujeito e predicado Como eacute possiacutevel nossa comunicaccedilatildeo Como eacute possiacutevel falar que
algo eacute de tal e qual maneira
Fomos ao livro Ser e Tempo natildeo para dizer sobre o que um autor pensou fomos
ao Ser e Tempo para encontrar elementos que poderiam nos guiar nessas questotildees Entatildeo
a tarefa desse tratado revelou-se tambeacutem como um problema de linguagem Pois eacute a
tentativa de reformulaccedilatildeo da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido
depende justamente daquela reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido do
ser Vimos aiacute uma imbricada problemaacutetica a pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo (Sinn von
Sein) eacute tambeacutem a pergunta sobre o que pode sustentar sentido e significados e por isso
o que pode sustentar a linguagem Se natildeo nos incomodasse a tautologia poderiacuteamos
perguntar qual o sentido do sentido
A necessidade de recolocaccedilatildeo da pergunta estaacute diretamente relacionada agrave criacutetica
imanente de Heidegger agrave fenomenologia de Husserl Abordado sempre e a cada vez como
um ente o ser natildeo eacute no entanto um predicado real Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar
o ser como um ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel
e atributivo Ser natildeo eacute um ente o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo
com vistas agrave forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera
para ldquoQual o sentido de serrdquo Atraveacutes da apropriaccedilatildeo da hermenecircutica Heidegger potildee
em tela o caraacuteter histoacuterico do sentido de ser dos entes E dessa maneira indica como as
palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da
experiecircncia hermenecircutica Contudo diferentemente de como a concebeu Dilthey a
experiecircncia revelou-se natildeo como um meacutetodo de acesso ao caraacuteter histoacuterico do sentido e
144
dos significados mas compreensatildeo fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo circunspecta de
nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser
Poreacutem um problema central deveria ser abordado ldquocomo eacute possiacutevel a forma
loacutegicardquo ou ldquoPor que seguimos a foacutermula lsquosujeito e predicadorsquordquo Essa questatildeo nos levou
ateacute a maneira pela qual essa problemaacutetica foi abordada pelos neokantianos mais
especificamente agravequeles representantes da escola de Baden Esses reduziam a
possibilidade de verdade agrave forma do juiacutezo agrave identificaccedilatildeo entre ldquoWahrheit = wahrer Satz
= Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade) A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo
de verdade da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca
que era a dos neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa
concepccedilatildeo tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da
verdade em direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave
proposiccedilatildeo Com isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa
medida condicionando a ontologia agrave loacutegica
Foi esse mapa complexo dos problemas que foi desenhado nos dois primeiros
capiacutetulos os quais consideramos imprescindiacuteveis para uma exposiccedilatildeo completa da
estrutura ontoloacutegica da linguagem em Ser e Tempo Expondo o contexto das filosofias de
Dilthey Husserl e dos neokantianos de Baden bem como o posicionamento de Heidegger
frente a essas teorias a abordagem fenomenoloacutegico-hermenecircutica revelou-se como o
meacutetodo de acesso ao sentido de ser de todo ente Esse meacutetodo acaba ainda por demonstrar
que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um
campo de signos referenciais fechados que doam significado agraves coisas mas uma
manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez se faz presente na facticidade da
existecircncia concreta Last but not least revelou-se a diferenccedila entre uma concepccedilatildeo de
loacutegos proveniente da loacutegica e outra advinda do conceito de aleacutetheia
Foi a partir daiacute que ficaram claros os contornos dos dois uacuteltimos capiacutetulos desta
Dissertaccedilatildeo Tentamos mostrar como em Ser e Tempo a linguagem estaacute assentada em
duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado revelando a diferenccedila
entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm articulados pela imbricaccedilatildeo
radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno Poreacutem natildeo poderiacuteamos nos sentir satisfeitos
nessa descriccedilatildeo Heidegger nos adverte que estamos em fuga do solo em que o loacutegos se
145
mostra Pois o desvelamento enquanto Aleacutetheia eacute tambeacutem encobrimento por isso o
fenocircmeno sempre se nos mostra de maneira dissimulada Tambeacutem a partir de Ser e Tempo
tentamos evidenciar como a linguagem depende da constituiccedilatildeo proacutepria da verdade Ou
seja como o discurso (Rede) eacute apresentado como fundamento ontoloacutegico da linguagem
mas como o fenocircmeno mesmo da linguagem jaacute sempre se apresenta como falatoacuterio
(Gerede) O fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana enquanto comunicaccedilatildeo
ou seja discurso (die Rede) que jaacute se expressou e a cada vez se expressa eacute repetido e
difundido no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada
pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte
compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente Mas
como entes sem qualquer essecircncia preacutevia sem qualquer natureza definida somos a
proacutepria compreensatildeo (Verstehen) irremediavelmente orientada agrave queda sendo o falatoacuterio
a manifestaccedilatildeo uacuteltima dessa condiccedilatildeo
Esse foi o caminho do nosso trabalho que eacute apenas um iniacutecio Ele natildeo pretende
encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender o papel
da poesia na obra de Heidegger apoacutes os anos 1930 como uma tentativa de desvencilhar-
se do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Ou ainda se a estratificaccedilatildeo
da linguagem segundo a formulaccedilatildeo de Ser e Tempo precisou ser revista apoacutes a viragem
tendo em vista que em 1927 natildeo foi possiacutevel encontrar seu fundamento ontoloacutegico a partir
do Dasein
Por enquanto preferimos a tensatildeo e a suspensatildeo do estado de pergunta Preferimos
o pensar como caminho agraves respostas como soluccedilotildees afinal
ldquoCom seu dizer o pensar abre sulcos imperceptiacuteveis na linguagem Esses satildeo
ainda mais imperceptiacuteveis que os sulcos que a passos lentos o camponecircs abre pelo
campo aforardquo (HEIDEGGER 2008 p376)
146
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Casanova Satildeo PauloEdUNESP2010
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Casanova1 ed Rio de Janeiro Forense 2005
GADAMERHG Hegel Husserl HeideggerTrad Marco Casanova PetropolisRJ
Vozes2012
______________ Fenomenologia Metafiacutesica e Hermenecircutica Trad Rui Alexandre
Graacutecio Covilhatilde Luso Sofia 2010
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Morujatildeo Adap para a liacutengua portuguesa falada no Brasil por Marco Antocircnio Casanova
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Loparic e Andreacutea Loparic Satildeo Paulo Ed Nova Cultural 2000 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)
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fenomenoloacutegica Introduccedilatildeo geral agrave fenomenologia pura Traduccedilatildeo de Marcio Suzuki
Satildeo Paulo Ed Ideacuteias e Letras 2006
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RABELO KB Indicaccedilatildeo Formal Dos conceitos na ciecircncia originaacuteria do jovem
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ZAHAVI D A fenomenologia de Husserl Trad Marco Casanova Rio de Janeiro RJ
ViaVerita 2015
- INTRODUCcedilAtildeO
- Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na filosofia
- Introduccedilatildeo
- I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico
- II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias
- II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica
- III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos
- Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica
- Introduccedilatildeo
- I - Os limites da filosofia dos valores
- II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio
- II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger
- III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
- III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger
- Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e Tempo
- Introduccedilatildeo
- I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico
- II A dupla abertura de sentido (Sinn)
- III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)
- II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung)
- Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)
- Introduccedilatildeo
- I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem
- II- O Falatoacuterio (das Gerede)
- Conclusatildeo
- Bibliografia
-
2
Christiane Costa de Matos Fernandes
A estrutura ontoloacutegica da linguagem e a queda no
falatoacuterio em Ser e Tempo
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciecircncias
Humanas da Universidade Federal Minas Gerais
como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de
Mestre em Filosofia Universidade Federal de
Minas Gerais ndash UFMG Faculdade de Filosofia e
Ciecircncias Humanas Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em
Filosofia
Orientadora
Profa Dra Virginia de Arauacutejo Figueiredo
Brasil
2016
3
100
F363e
2016
Fernandes Christiane Costa de Matos
A estrutura ontoloacutegica da linguagem e a queda no falatoacuterio em Ser e
tempo Christiane Costa de Matos Fernandes - 2016
150 f
Orientadora Virginia Arauacutejo Figueiredo
Coorientador Marco Antonio Casanova
Dissertaccedilatildeo (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas
Inclui bibliografia
1Filosofia ndash Teses 2 Heidegeer Martin 1889-1976 Ser e Tempo I
Figueiredo Virginia ArauacutejoII Casa Nova Marco Antonio dos Santos
IIUniversidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e
Ciecircncias Humanas IIITiacutetulo
4
Banca Avaliadora
_________________________
Profa Dra Virginia de Arauacutejo Figueiredo-UFMG Orientadora
___________________________
Prof Dr Marco Antocircnio Casanova- UERJ Coorientador
___________________________
1ordm Examinador Prof Doutor Eduardo Soares Neves Silva - UFMG
___________________________
2ordmExaminador Prof Doutor Maacutercio Antocircnio de Paiva- PUCMG
5
Agradecimentos
O trabalho que aqui apresento iniciou-se em Fevereiro de 2014 mas originou-se
haacute 12 anos atraacutes em meu primeiro semestre do curso de graduaccedilatildeo em filosofia na
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas da UFMG Jaacute nas primeiras aulas questionei
a possibilidade de continuar nesse caminho pois ele havia se tornando cada vez mais
exigente e difiacutecil No segundo semestre poreacutem cursei a mateacuteria ministrada pelo professor
Fernando Rey Puente onde ele tentava explicar aos alunos ainda iniciantes como eu As
Categorias de Aristoacuteteles Aquelas aulas foram decisivas para que eu compreendesse trecircs
coisas dedicaccedilatildeo e rigor satildeo o que minimamente podemos oferecer agrave filosofia (ainda
permaneccedilo na busca de realizar tais condiccedilotildees) o pensamento filosoacutefico uma vez
apresentado a noacutes natildeo oferece saiacuteda mas compromisso e ainda aprendi que se a partir
daquele momento eu ficasse imune ao ler um livro de filosofia era melhor deixaacute-la Por
isso meu primeiro agradecimento eacute a esse professor Tambeacutem natildeo poderia deixar de
agradecer ao professor Ernesto Perini Nas mateacuterias ministradas por ele que cursei durante
a graduaccedilatildeo natildeo soacute se revelava para mim a importacircncia da linguagem no interior dos
problemas filosoacuteficos como aprendi que o respeito com os alunos era uma maneira de
ensinaacute-los
Agradeccedilo tambeacutem a todos os funcionaacuterios da FAFICH de forma especial agrave Vilma
bibliotecaacuteria-chefe e ao Andreacute secretaacuterio da poacutes-graduaccedilatildeo Ambos pela solicitude com
que sempre me atenderam em todos os momentos que precisei
Agradeccedilo tambeacutem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e
Tecnoloacutegico (CNPq) pela concessatildeo da bolsa de estudos que permitiu nos uacuteltimos dois
anos minha dedicaccedilatildeo integral agrave pesquisa do mestrado
Agradeccedilo agravequeles que construiacute como amigos o viacutenculo com o mundo Dentre eles
alguns nomes natildeo posso deixar de citar Agradeccedilo agrave Thamara Chain pelos 22 anos de
amizade e compreensatildeo Agradeccedilo agrave Taiacutes Tourinho por ser vigilante acerca de minha
solidatildeo por vezes demasiada Agradeccedilo agrave Nathaacutelia de Aacutevila por me lembrar a natildeo ser tatildeo
seacuteria e que o caminho tambeacutem se faz com leveza Agradeccedilo agrave Carolina Faria pela partilha
do entusiasmo na descoberta promovida pelo estudo Tambeacutem agradeccedilo agrave Ana Godoi
Gustavo Machado e Gabriel Lago Essas pessoas me ensinaram o valor do debate (por
6
vezes infindaacuteveis) e ainda que pensamento e vida satildeo o mesmo A uacutenica maneira que
encontrei para agradececirc-los eacute tornar puacuteblico o fato de que nossas conversas estatildeo em cada
linha dessa dissertaccedilatildeo
Agradeccedilo agrave minha orientadora Virginia Figueiredo pela confianccedila depositada em
mim ao me aceitar como orientanda Tambeacutem por seus comentaacuterios e ensinamentos
imprescindiacuteveis bem como pela leitura e revisatildeo impecaacutevel de meu trabalho Nesse
sentido tambeacutem ao meu coorientador Marco Antocircnio Casanova a quem agradeccedilo tendo
em vista que sem sua presenccedila algumas partes dessa dissertaccedilatildeo natildeo seriam possiacuteveis
Agradeccedilo minhas irmatildes Jana e Nanda por serem minhas primeiras e eternas
melhores amigas E por fim agradeccedilo agravequeles por quem o meu sentimento entre o amor
a gratidatildeo e a admiraccedilatildeo natildeo alcanccedila a palavra aos meus pais Adauto e Delza Esse
trabalho eacute para vocecircs
7
VERBO SER
Carlos Drummond de Andrade
Que vai ser quando crescer
Vivem perguntando em redor Que eacute ser
Eacute ter um corpo um jeito um nome
Tenho os trecircs E sou
Tenho de mudar quando crescer Usar outro nome corpo e jeito
Ou a gente soacute principia a ser quando cresce
Eacute terriacutevel ser Doacutei Eacute bom Eacute triste
Ser pronunciado tatildeo depressa e cabe tantas coisas
Repito Ser Ser Ser Er R
Que vou ser quando crescer
Sou obrigado a Posso escolher
Natildeo daacute para entender Natildeo vou ser
Vou crescer assim mesmo
Sem ser Esquecer
ldquoAdmitamos que natildeo haja essa significaccedilatildeo indeterminada e que natildeo entendemos sempre o que lsquoserrsquo significa O que ocorreria nesse caso Apenas um nome e um verbo de menos em nossa linguagem De forma alguma Jaacute natildeo haveria simplesmente linguagem alguma Natildeo ocorreria que o ente se nos abrisse de modo a poder ser chamado e dito Pois dizer o ente como tal implica compreender de antematildeo o ente como ente isto eacute o seu ser Suposto que noacutes simplesmente natildeo compreendecircssemos o ser suposto que a palavra lsquoserrsquo natildeo tivesse nem mesmo aquela significaccedilatildeo flutuante entatildeo jaacute natildeo haveria absolutamente nenhuma palavra Noacutes mesmos nunca poderiacuteamos ser aqueles que falam Laacute natildeo poderiacuteamos ser o que somos Pois ser homem significa ser um dizenterdquo
Heidegger Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica
8
Resumo
O presente trabalho tenta evidenciar a partir da obra Ser e Tempo de Martin
Heidegger como a linguagem (die Sprache) eacute a manifestaccedilatildeo uacuteltima da historicidade de
todo e qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como esses significados satildeo
sustentados por um campo de sentido tambeacutem histoacuterico A partir dessa primeira descriccedilatildeo
o trabalho visa esclarecer como a linguagem no uso cotidiano ou o falatoacuterio (das Gerede)
obscurece o caraacuteter histoacuterico do fenocircmeno da linguagem e dos significados que a sustenta
Portanto esta Dissertaccedilatildeo caminha em duas vias que se tocam a primeira pretende
descrever o que chamamos de estrutura ontoloacutegica da linguagem a partir do
redimensionamento da pergunta heideggeriana pelo ser a fim de indicar como as palavras
em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da experiecircncia
hermenecircutica ou seja atraveacutes da compreensatildeo ontoloacutegica preacutevia a linguagem a segunda
pretende mostrar o fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana como comunicaccedilatildeo
ou discurso (die Rede) a qual jaacute se expressou e a cada vez se expressa sempre repetida
e difundida no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada
pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte
compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente
9
Abstract
The present thesis focuses on demonstrating in what manner language (die
Sprache) is the lattermost manifestation of the historicity of any meaning that can come
to words as well as through what agency those meanings are upheld by a conjointly
historical field of meaning insofar as stated by Martin Heidegger in his work ldquoBeing and
Timerdquo (Sein und Zeit) As of this writing our work aims at unraveling by what means
language in its trivial use or the talk (das Gerede) overshadows the historical aspect and
the meanings that withstand the phenomenon of language Hence the present work is
developed in two adjoining ways the first one endeavors to describe the ontological
structure of language deriving out of the resizing of Heideggers question of being that
has the aim of indicating how the words in context of enunciation inherit their meaning
from previous structures of the hermeneutic experience that is through the prior
ontological understanding of the language The second one aims at revealing the language
phenomenon in the median everydayness as communication or discourse (die Rede)
which has already been expressed and is still expressed always repeated and spread in
the talk that obliterates the comprehensive horizon by reducing all beings to an
undifferentiated homogenization and making them available to our linguistic resources
since it is the primary opening of the sense of being that any and all entities have
10
Sumaacuterio INTRODUCcedilAtildeO 11
Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na
filosofia 15
Introduccedilatildeo 15
I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do
conhecimento como essencialmente histoacuterico 17
II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em
relaccedilatildeo agraves ciecircncias 22
II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica 29
III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos 33
Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica 42
Introduccedilatildeo 42
I - Os limites da filosofia dos valores 44
II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio 53
II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger 58
III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal 68
III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger 72
Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e
Tempo 80
Introduccedilatildeo 80
I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou
o ldquocomordquo hermenecircutico 88
II A dupla abertura de sentido (Sinn) 88
III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit) 103
II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung) 110
Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede) 122
Introduccedilatildeo 122
I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem 123
II- O Falatoacuterio (das Gerede) 134
Conclusatildeo 143
Bibliografia 146
11
INTRODUCcedilAtildeO
Estamos diante de um livro Ser e Tempo Abrimo-lo Com o que nos confronta
em sua primeira paacutegina Que natildeo temos desde Platatildeo ateacute hoje resposta agrave pergunta sobre
o que queremos dizer com a palavra lsquoentersquo Natildeo haacute como ficar imune diante da
constataccedilatildeo E se ateacute hoje essa palavra natildeo nos eacute transparente eacute porque aqueles que se
propuseram a andar no caminho do pensamento natildeo souberam perguntar sobre o ente e
isso porque natildeo souberam afinal perguntar sobre o ser Heidegger natildeo nos propotildee sair do
caminho mas uma nova maneira de caminhar Ele nos promete uma resposta Natildeo Ele
propotildee uma vez mais a pergunta pelo ser O objetivo do tratado eacute elaborar essa questatildeo
De que modo Ele agora pergunta Qual o sentido de ser
Nossa pesquisa poderia partir daiacute Iniciariacuteamos a exposiccedilatildeo de nosso trabalho
nessa pergunta e prosseguiriacuteamos em Ser e Tempo De modo algum Seria um
contrassenso para algueacutem que queira estudar a linguagem em Heidegger partir de uma
sentenccedila como se ela fosse oacutebvia Afinal por qual motivo Heidegger natildeo pergunta ldquoO
que eacute o serrdquo ou ldquoHaacute o serrdquo Fechamos Ser e Tempo Eacute preciso compreender como essa
pergunta ganhou uma determinada forma Mas para onde ir
Ser e Tempo eacute uma obra do seacuteculo XX uma obra de filosofia portanto jaacute eacute parte
de nossa tradiccedilatildeo jaacute temos uma preacute-compreensatildeo dela Sabemos previamente que ela
transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica e que o nosso autor expotildee seu caminho
em um texto de 1963 chamado ldquoMeu caminho na fenomenologiardquo Parece-nos um bom
iniacutecio e vamos ao texto Heidegger descreve o iniacutecio de seus estudos o contato com a
obra inaugural da fenomenologia de Husserl e com a tese de Brentano sobre Aristoacuteteles
aiacute se vecirc germinar ainda que de maneira imprecisa sua questatildeo central Mas isso se
mostrou insuficiente para compreender a pergunta posta em Ser e Tempo Recorremos
entatildeo aos textos de Husserl Jaacute na introduccedilatildeo do II volume agrave obra citada por Heidegger
ndash Investigaccedilotildees Loacutegicas - Husserl descreve a necessidade de a fenomenologia
posicionando-se contra a psicologia explicativa procurar sua fundamentaccedilatildeo da loacutegica
numa nova teoria do conhecimento objetiva Nossa jaacute citada preacute-compreensatildeo nos levou
a Dilthey ao descobrir que esse autor tambeacutem se opocircs ao meacutetodo da psicologia
explicativa Vamos tambeacutem aos seus textos Mas a pergunta aparece teraacute sido tatildeo grande
12
a influecircncia que a psicologia explicativa exercia naquela eacutepoca a ponto de exigir que
tantos pensadores sentissem a necessidade de se opor a ela e ao seu meacutetodo
Como se isso natildeo bastasse revelou-se que ambos os autores Dilthey e Husserl
travam diaacutelogo nem sempre expresso com o neokantismo Agrave revelia de todos julguei
que natildeo deveria desconsiderar mais essa referecircncia tendo em vista que um dos principais
nomes dessa corrente ndash Rickert- foi citado por Heidegger no importante (para esta
pesquisa) texto de 1963 ao qual me referi haacute pouco Entatildeo me perguntei o que une esses
trecircs nomes Dilthey Husserl e Rickert Estaacute posta a tarefa do primeiro capiacutetulo da
Dissertaccedilatildeo
Nele tentei compreender como a partir do desenvolvimento das ciecircncias positivas
particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma profunda discussatildeo acerca do sentido e
da possibilidade do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo busca uma
filosofia propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana procura a
autonomia da filosofia frente agrave ciecircncia positiva mas que serviria de base a toda e qualquer
ciecircncia Tambeacutem nesse contexto aparece a contribuiccedilatildeo de Dilthey a qual acrescenta o
caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e traz agrave tona o sentido do conhecimento como
essencialmente histoacuterico
Mas natildeo chegamos ao que nos propomos estamos ainda nos prolegocircmenos Por
qual motivo Heidegger pergunta Qual o sentido de ser Ser e Tempo continua fechado
Precisamos entatildeo reavaliar nossa preacute-compreensatildeo Se como dissemos Ser e Tempo
transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica eacute preciso analisar como essas influecircncias
aparecem no pensamento de Heidegger Vamos a algumas preleccedilotildees do autor anteriores
agrave obra central de nosso trabalho Eacute preciso indicar que nossa intenccedilatildeo natildeo eacute abordar as
preleccedilotildees como processos evolutivos como que para esclarecer em termos de causa e
efeito a publicaccedilatildeo posterior lsquomadurarsquo de Ser e Tempo Mas destacar como as questotildees
desses textos acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a
problemaacutetica cujo desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927
Estaacute posta a tarefa de nosso segundo capiacutetulo
Nele trata-se de compreender como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere
Heidegger no interior da referida discussatildeo pelo sentido do conhecimento Mas ao
mesmo tempo tentaremos mostrar como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva
(considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal)
e a introduccedilatildeo do elemento hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com
13
Heidegger a pergunta fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do
conhecimento e passou a ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto
nosso segundo capiacutetulo pretende analisar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger
no interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do
conhecimento ao sentido do ser
Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido
de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a
teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo
pelo sentido do ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir
da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para
uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no
curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER 2006 p122) o elemento
hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave fenomenologia
que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em
seu ser Podemos abrir novamente Ser e Tempo
Esse percurso foi necessaacuterio para que pudeacutessemos conquistar um solo
interpretativo e sobretudo alcanccedilar a pergunta pelo sentido de ser Pois ela a pergunta
estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura de sentido que precisamos explicitar
E assim no terceiro e central capiacutetulo da Dissertaccedilatildeo apresentar como em Ser e Tempo
o fenocircmeno da linguagem (Sprache) aparece no interior dessa compreensatildeo e em que
medida a linguagem eacute possiacutevel por uma estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Dito de
outro modo na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto
ontoloacutegico do conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e
qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido tambeacutem
histoacuterico em que algo pode se manter em seu significado Eacute nessa perspectiva que
procuramos a estrutura ontoloacutegica da linguagem
Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a
ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo
material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos
que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas
que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela
dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se
estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o
14
que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes1rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que
somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em
fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo
Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por
Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um
fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo
incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como
descoberto A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo cotidiano Heidegger chama de
ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio
natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute
encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas tomadas como oacutebvias
Esse eacute o caminho do nosso trabalho mas eacute apenas o iniacutecio Ele natildeo pretende
encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender a
ldquopassagem para o poeacutetico2rdquo na obra de Heidegger como uma tentativa de desvencilhar-se
do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Por enquanto preferimos a tensatildeo
e a suspensatildeo do estado de pergunta Ser e Tempo continuaraacute aberto Tentaremos nos
manter fieis agrave orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica Diante da pergunta de
Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na cidade Soacutecrates responde
ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso irrdquo3
1 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo Wolf
Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249 2 Cf NUNES 2012 3 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9
15
Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo
sentido do conhecimento na filosofia
Chega um tempo em que natildeo se diz mais meu Deus () Chegou um tempo em que natildeo adianta morrer Chegou um tempo em que a vida eacute uma ordem
A vida apenas sem mistificaccedilatildeo (Os Ombros Suportam o Mundo Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
Conforme Merleau Ponty a fenomenologia surge como uma tentativa para
resolver um problema natildeo de uma seita mas talvez o problema do seacuteculo o problema
que se punha desde 1900 para todo o mundo e ainda eacute hoje colocado (PONTY M1973
Pag15) O problema refere-se agrave crise das ciecircncias humanas (Geistenwissenschaften) e agraves
ciecircncias naturais
Se o fundamento dos princiacutepios da geometria e da fiacutesica eram objetos de
investigaccedilatildeo de Husserl e o levou ao caminho da pesquisa de uma filosofia sem
pressupostos- bem como as investigaccedilotildees dos chamados neokantianos da escola de
Marburg que os levaram agrave tentativa de fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas - as
ciecircncias humanas tambeacutem se desenvolviam no auspiacutecio de sua proacutepria ambiguidade
A medida que se desenvolviam as pesquisas psicoloacutegicas socioloacutegicas
histoacutericas tendiam a nos apresentar todo pensamento toda opiniatildeo e em
particular toda filosofia como o resultado da accedilatildeo combinada das condiccedilotildees
psicoloacutegicas sociais histoacutericas anteriores A psicologia tendia para o que Husserl
denomina psicologismo a sociologia o sociologismo histoacuteria para o
historicismo Ora com isto elas acabavam por erradicar seus proacuteprios
fundamentos (PONTY1973 p15)
Na medida em que os princiacutepios orientadores do homem histoacuterico social e
psicoloacutegico satildeo elementos externos e imbricados de certa contingecircncia conforme os
resultados mesmos dessas pesquisas o pesquisador punha suas proacuteprias afirmaccedilotildees em
duacutevida pois o fundamento de todas elas eacute tambeacutem contingente e o valor de verdade de
suas conclusotildees fluido Contudo quando algo faz aparecer opositores observando e
16
diagnosticando seus problemas fundamentais eacute porque encontra-se em evidecircncia e jaacute
atingiu certo grau de adesatildeo sendo necessaacuterio apontar elementos obliterados em sua
suposta evidecircncia
A autonomia das ciecircncias positivas frente aos sistemas filosoacuteficos em meados do
seacuteculo XIX na Alemanha acompanhava um crescente desprestiacutegio da metafiacutesica e da
filosofia da natureza sendo a reflexatildeo metodoloacutegica suplantada por novos procedimentos
-e uma nova visatildeo de mundo- em que vigoravam o conhecimento empiacuterico impessoal e
temporal
Se a filosofia jaacute natildeo parecia ter condiccedilotildees de responder agraves questotildees dessa nova
visatildeo de mundo cientiacutefica com as propostas da psicologia experimental - baseada no
modelo metodoloacutegico das ciecircncias naturais- ela a filosofia parecia estar condenada ao
ostracismo sendo capaz apenas de se colocar como curiosidade histoacuterica A psicologia
experimental ou explicativa considerava que um procedimento verdadeiramente
cientiacutefico deveria ser baseado na observaccedilatildeo empiacuterica ela era a interpretaccedilatildeo da verdade
atraveacutes de causas psiacutequicas responsaacuteveis pela efetuaccedilatildeo do juiacutezo(MACDOWEL 1993
p28)
O ponto crucial dessa posiccedilatildeo eacute o fato de que o estudo da loacutegica enquanto
estrutura do pensamento estaacute condicionado aos meacutetodos e princiacutepios da psicologia e
portanto condicionada a tipos de demonstraccedilotildees empiacutericas Uma investigaccedilatildeo dessa
espeacutecie - a loacutegica condicionada a demonstraccedilotildees empiacutericas - eacute a negaccedilatildeo da tarefa proacutepria
agrave filosofia (mesmo quando um ou outro pensador negue por exemplo a idealidade loacutegica
ainda assim o faz inserido nessa tarefa de investigaccedilatildeo) pois a loacutegica como doutrina
voltada para uma purificaccedilatildeo radical dos elementos materiais da linguagem e para uma
subsequente reconciliaccedilatildeo entre pensamento e verdade se mostra como expressatildeo
maacutexima do projeto originaacuterio da tradiccedilatildeo (CASANOVA Introduccedilatildeo In DILTHEY
2011p8)
Nesse contexto surgem reaccedilotildees ao modelo predominante das ciecircncias naturais
sobretudo em relaccedilatildeo agrave adesatildeo a este modelo pela psicologia e pelas ciecircncias humanas
Dentre essas reaccedilotildees destacamos o projeto da psicologia descritiva e analiacutetica de Dilthey
as contribuiccedilotildees da pesquisa sobre a validade do conhecimento das escolas neokantistas
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ndash destacando a filosofia dos valores de Windelband e Rickert - e o projeto husserliano de
uma filosofia sem pressupostos que se realizaria atraveacutes do meacutetodo fenomenoloacutegico
Ciente de que natildeo nos eacute possiacutevel aprofundar nessas complexas investigaccedilotildees nossa
intenccedilatildeo nesse primeiro momento de trabalho eacute apenas indicar os elementos
fundamentais de cada posiccedilatildeo e a partir deles compreender no capiacutetulo seguinte em
que medida essas reaccedilotildees se intercruzam e influenciam o autor privilegiado no texto
dessa dissertaccedilatildeo Este eacute o objetivo de nosso primeiro capiacutetulo
Nosso primeiro capiacutetulo eacute a tentativa de compreender como a partir do
desenvolvimento das ciecircncias positivas particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma
profunda discussatildeo acerca do sentido e possibilidade do conhecimento Nesse contexto o
neokantismo busca uma filosofia propriamente cientiacutefica ndash como reflexo da exigecircncia de
sua proacutepria eacutepoca ndash enquanto a fenomenologia husserliana busca a autonomia da filosofia
descontiacutenua agrave ciecircncia positiva mas que seria a base de toda e qualquer ciecircncia Tambeacutem
nesse contexto emerge como elemento fundamental para o desenvolvimento de nosso
trabalho a tarefa geral de Dilthey que mesmo imersa nas exigecircncias positivistas de seu
tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e potildee em tela o sentido
do conhecimento como essencialmente histoacuterico
I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias
do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente
histoacuterico
Dilthey contra a mera transposiccedilatildeo do meacutetodo das ciecircncias naturais agraves ciecircncias
do espiacuterito ldquose deu conta que a pretensatildeo de entender filosoficamente as disciplinas
histoacutericas soacute poderia levar-se a um porto seguro se reflexiona acerca do que eacute o objeto
das ditas ciecircnciasrdquo (HEIDEGGER 2006p33)
As ciecircncias naturais segundo Dilthey se relacionam com os objetos na medida
em que esses satildeo ou fatos simultacircneos ou sucessivos e aparecem agrave consciecircncia sempre
como dados externos assim recorrendo a uma hipoacutetese como recurso explicativo
condicionada agrave verificaccedilatildeo a partir de maior ou menor incidecircncia desses fatos Os
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resultados das ciecircncias naturais seriam portanto conclusotildees complementares que
tentariam explicar os fenocircmenos externos (observados como fenocircmenos particulares) e
ordenaacute-los pela funccedilatildeo explicativa da ciecircncia que movimenta da parte (fenocircmenos
unitaacuterios) ao todo (explicaccedilatildeo ordenadora)
Poreacutem os fenocircmenos das ciecircncias humanas aparecem internamente agrave consciecircncia
com realidade de uma lsquoconexatildeo vivarsquo sendo essa conexatildeo da vida psiacutequica
originariamente dada compreensivamente a qualquer homem histoacuterico vivente A anaacutelise
ou distinccedilatildeo dos elos particulares dessa conexatildeo eacute posterior pois o que se daacute
imediatamente agrave consciecircncia eacute a conexatildeo constante das proacuteprias vivecircncias e ldquoa vida natildeo
se faz senatildeo como conexatildeordquo (DILTHEY W2011 pag30) natildeo tendo sentido a partir
dessa evidecircncia falar em algo como deduccedilatildeo dos fenocircmenos psiacutequicos
Exige-se portanto agrave psicologia um outro procedimento pois satildeo somente os
dados da psicologia descritiva que poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar
para as ciecircncias humanas O que estaacute em jogo para Dilthey contra a psicologia
explicativa eacute mostrar como a teoria do conhecimento relativa agraves ciecircncias do espiacuterito e
tambeacutem agrave filosofia natildeo pode abrir matildeo da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica Poreacutem em funccedilatildeo
da especificidade de seus objetos reclama outros meacutetodos que natildeo aqueles das ciecircncias
naturais
Dilthey natildeo aceita os pressupostos do retorno agrave filosofia kantiana4 para a
fundamentaccedilatildeo de suas investigaccedilotildees pois a cisatildeo entre mateacuteria e forma proveniente
desse sistema natildeo serve agraves ciecircncias do espiacuterito e natildeo pode ser mais sustentada diante da
evidecircncia da vida conexa e estruturante da vivecircncia da consciecircncia
4 Sobre esse aspecto eacute importante apresentar duas consideraccedilotildees 1) No interior da biografia de
Schleiermacher de 1860 Dilthey destaca a importacircncia de alguns aspectos do texto de Kant ldquoA religiatildeo
nos limites da simples razatildeordquo (1793) para o desenvolvimento da hermenecircutica de Schleiermacher 2)
Contudo talvez sob influecircncia do debate neokantiano agrave eacutepoca Dilthey apresenta o essencial da filosofia
kantiana como sendo a Criacutetica da Razatildeo Pura ou seja a teoria do conhecimento referente agraves ciecircncias
naturais E nesse sentido que a divisatildeo entre mateacuteria e forma como exposta na primeira criacutetica natildeo eacute
suficiente agrave elaboraccedilatildeo da epistemologia das ciecircncias humanas Sobre esse assunto Cf Kant und die
philosophische Hermeneutik in Kant-Studien 66 (1975) pp 395-403 Traduccioacuten de Angela Ackermann
Pilaacuteri en GADAMER H-G Los caminos de Heidegger Herder Barcelona 2002 pp 57-66 Cf
Beckenkamp J Kant e a hermenecircutica moderna in Kriterion vol51 no121 Belo Horizonte Junho 2010 e
tambeacutem Cf REIS JC A ldquocriacutetica histoacuterica da razatildeordquo Dilthey versus Kant In Textos de histoacuteria UNB
vol10 nordm12 v 10 (2002) pp-159-179
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ldquoA cisatildeo entre mateacuteria e forma do conhecimento que eacute levada a termo no sistema
kantiano tambeacutem natildeo pode ser hoje mantida Muito mais importante do que essa
cisatildeo satildeo as relaccedilotildees internas que subsistem por toda a parte entre a multiplicidade
das sensaccedilotildees como a mateacuteria do nosso conhecimento e a forma na qual
apreendemos a mateacuteriardquo (DILTHEY W2011 p37)
Para REIS (2003)5 Dilthey eacute associado ao historicismo como seu maior teoacuterico
Ainda como aponta REIS nem todos pesquisadores de sua obra concordam com este
veredito alguns ateacute mesmo questionam se Dilthey poderia ser considerado um
historicista pois em seu projeto de construccedilatildeo de uma epistemologia das ciecircncias
humanas ao se opor ao historicismo romacircntico Dilthey recairia em certo positivismo De
todo modo analisar detalhadamente esta discussatildeo natildeo nos eacute possiacutevel o que nos interessa
aqui eacute apontar que apesar de fazer coro com as caracteriacutesticas gerais deste movimento
Dilthey se destaca por sua busca propriamente epistemoloacutegica das ciecircncias humanas a
partir da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos se afastando em diversos pontos
do chamado ldquoirracionalismordquo romacircntico mas sem reduzir o historicismo agrave pura
epistemologia e sobretudo lanccedilando bases teoacutericas com pretensatildeo cientiacutefica para a
abordagem dos fenocircmenos histoacutericos
ldquoO aspecto positivista da sua teoria devia-se agrave atmosfera naturalista em que ele
viveu As ciecircncias naturais impuseram o seu padratildeo de rigor e objetividade No
seacuteculo XIX a morte da filosofia sistemaacutetica cedeu seu lugar a uma ldquofilosofia
cientiacuteficardquo Natildeo era uma filosofia especulativa mas ldquoestudos positivos com
intenccedilatildeo filosoacuteficardquo O filoacutesofo natildeo podia pensar em qualquer objeto sem recorrer
a estudos concretos ao estudo de fontes primaacuterias extraiacutedas do mundo real
Dilthey neste sentido quis que sua filosofia fosse cientiacutefica Eacute uma teoria do
conhecimento das ciecircncias morais que estudam as relaccedilotildees e eventos positivos
do mundo histoacuterico-social () Aiacute reside seu positivismo que segundo Aron ele
nunca superou e que eacute sua originalidade () Sua tese eacute as ciecircncias humanas
existem como lsquociecircncias e eacute vatildeo discutir o seu caraacuteter cientiacutefico em nome de uma
teoria preconcebida da ciecircnciarsquordquo (REIS 2003p32)
Dilthey se destaca no movimento historicista pela sua preocupaccedilatildeo com o meacutetodo para
as ciecircncias humanas consciente de sua especificidade ou da metodologia autocircnoma dessa
disciplina na medida em que histoacuteria e vida se encontram pela compreensatildeo sendo a vida
ao mesmo tempo histoacuterica e psicoloacutegica E o fato de natildeo haver um modelo universal
sistemaacutetico da histoacuteria natildeo reduz sua pesquisa em uma descriccedilatildeo caoacutetica dos eventos
5 Seguindo a interpretaccedilatildeo de Freunde e Ortega y Gasset Cf REIS JC 2003 p31
20
Vivecircncia compreensatildeo e expressatildeo eacute a triacuteade fundamental para o pensamento de
Dilthey e sua ldquocriacutetica da razatildeo histoacutericardquo consiste em delinear como a construccedilatildeo do
mundo histoacuterico no sujeito torna possiacutevel um saber sobre a realidade espiritual
apreendendo aiacute a partir da experiecircncia do mundo histoacuterico o princiacutepio real das ciecircncias
humanas A reconstruccedilatildeo do mundo da vida natildeo pode ser reduzida a uma soma de
elementos que possam descrevecirc-lo Mais do que isso a vida histoacuterica de um determinado
tempo eacute vivenciada por uma ligaccedilatildeo imediata entre o sujeito e seu tempo cada vivecircncia
sinaliza para a concretude objetiva do espiacuterito da eacutepoca O que importa nesta perspectiva
eacute que a realidade objetiva seja garantida pela proacutepria vivecircncia que eacute ldquoerigida agrave condiccedilatildeo
de categoria epistemoloacutegica fundamental em oposiccedilatildeo ao conceito de representaccedilatildeordquo
(AMARAL2004 p53) ou seja a objetividade da vivecircncia lhe eacute imanente A vivecircncia
(Erlebnis) natildeo eacute mera vida orgacircnica (Leben) mas o encontro indissociaacutevel entre a histoacuteria
e a vida dos homens Se por um lado natildeo eacute possiacutevel acompanhar o horizonte de sentido
de uma eacutepoca sem esta primeira experiecircncia viacutevida cujas expressotildees satildeo particulares por
outro lado eacute somente atraveacutes da compreensatildeo que a vivecircncia eacute alargada superando a
unilateralidade da experiecircncia singular
ldquoA compreensatildeo eacute um reencontro do eu no tu o espiacuterito encontra-se em niacuteveis
cada vez mais elevados da conexatildeo essa mesmidade do espiacuterito no eu no tu em
cada sujeito de uma comunidade em todo sistema da cultura por fim na
totalidade do espiacuterito e da histoacuteria universal torna possiacutevel a atuaccedilatildeo conjunta
das diversas capacidades nas ciecircncias humanas O sujeito do saber estaacute assim
unido com o seu objeto e esse objeto eacute o mesmo em todos os niacuteveis de sua
objetivaccedilatildeo Se a objetividade do mundo espiritual criada no sujeito eacute reconhecida
por este procedimento surge a pergunta sobre o quanto isso pode contribuir para
a resoluccedilatildeo do problema do conhecimento em geralrdquo (DILTHEY 2006p168)
A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo eacute ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da
hermenecircutica de Dilthey pois traz em si a categoria do significado como o nexo da
vivecircncia com a realidade concreta sem se apoiar em qualquer elemento transcendente agrave
proacutepria experiecircncia psicoloacutegica vivida
ldquoA categoria do significado designa a relaccedilatildeo entre as partes da vida e o todo
uma relaccedilatildeo que estaacute fundada na essecircncia da vida Soacute possuiacutemos essa conexatildeo
por meio da memoacuteria na qual podemos visualizar o transcurso vital do passado
Na memoacuteria faz-se valer entatildeo o significado como a forma de apreensatildeo da vida
Captamos o significado de um momento passado Ele eacute significativo na medida
em que nele se realiza um viacutenculo com o futuro por meio da accedilatildeo ou por meio de
um acontecimento exterior Ou na medida em que foi concebido o plano de uma
conduccedilatildeo futura da vida Ou na medida em que um plano de sua realizaccedilatildeo foi
21
levado a termo Ou ele eacute significativo para a vida conjunta na medida em que a
intervenccedilatildeo do indiviacuteduo se realiza nessa vida na qual sua essecircncia mais proacutepria
interveio na configuraccedilatildeo da humanidade Em todos esses e em outros casos o
momento particular possui significado por meio de sua conexatildeo com o todo por
meio da ligaccedilatildeo entre passado e futuro entre existecircncia particular e a
humanidaderdquo (DILTHEY 2006p224)
A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo deve ser entendida como ldquoos dois lados
do processo loacutegico dois lados que se interpenetram mutualmenterdquo (DILTHEY
2006p213) sendo a forma de compreender enquanto meacutetodo a ldquoinduccedilatildeo que deduz das
particularidades parcialmente determinadas para noacutes uma conexatildeo que define o todordquo
(DILTHEY 2006p214) Mas isso soacute eacute possiacutevel pelas categorias que residem na essecircncia
da proacutepria vida categorias que natildeo satildeo dadas a priori e nem podem ser formalizadas
logicamente Satildeo categorias preenchidas no interior de certa unidade espaccedilo-temporal
pois ldquoa vida encontra-se em uma relaccedilatildeo maximamente proacutexima com o preenchimento
do tempo() No tempo a vida existe na relaccedilatildeo das partes com uma conexatildeordquo
(DILTHEY 2006p219)
O conjunto das realizaccedilotildees da compreensatildeo enquanto conexotildees estruturais
objetivas ou objetivaccedilatildeo da proacutepria vida no mundo exterior eacute o conceito das ciecircncias
humanas e ldquotudo aquilo em que o homem por sua atuaccedilatildeo imprimiu sua marca constitui
o objeto das ciecircncias humanasrdquo (DILTHEY 2006 p112) Tendo em vista esse objeto a
tarefa do pesquisador ldquoconsiste na apreensatildeo do mundo do espiacuterito como uma conexatildeo
dos efeitos ou como uma conexatildeo contida em seus produtos duradourosrdquo (DILTHEY
2006p118) A conexatildeo dos efeitos dos produtos da ciecircncia histoacuterica natildeo eacute como o nexo
causal da natureza pois diferentemente da natureza as conexotildees da vida objetiva do
espiacuterito geram valores e realizam fins a vida histoacuterica natildeo eacute reproduccedilatildeo ciacuteclica de si
mesma ndash como a vida natural - mas eacute sempre criativa e ativa na produccedilatildeo desses valores
e bens como seu caraacuteter imanente mais proacuteprio
E eacute nessa apreensatildeo do tear da vida histoacuterica na qual o tempo a vivecircncia e
compreensatildeo estatildeo imbricados e se interpelam o significado ldquoeacute a categoria abrangente
sob a qual a vida se torna concebiacutevelrdquo (DILTHEY 2006p222)
ldquoDito de outro modo conceber algo atribuir valor e estabelecer fins para algo
satildeo atitudes vitais inter-dependentes que configuram as vivecircncias e assim sendo
nos ajudam a construir a proacutepria realidade em que vivemos Vivecircncia e realidade
22
satildeo como que tecidas conjuntamente graccedilas ao apoio da ldquocategoria do
significadordquo (AMARAL 2004p55)
As expressotildees da vivecircncia possuem sua objetividade na medida em que os objetos
as pessoas os valores e os juiacutezos apoiados nesta relaccedilatildeo enraiacutezam-se nos significados
comuns do mundo da vida significados esses que satildeo vivenciados e compreendidos
perfazendo a proacutepria construccedilatildeo do mundo histoacuterico ldquoe consequentemente de sua
compreensatildeo como tarefa basilar das ciecircncias do espiacuteritordquo (AMARAL 2004p57)
II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar
proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias6
Ainda na reaccedilatildeo contra o empirismo positivista do final do seacuteculo XIX e
sobretudo ao psicologismo desenvolveram-se as investigaccedilotildees dos chamados
neokantianos um ldquomovimento com profundas raiacutezes no seacuteculo dezenove [que] dominou
a academia filosoacutefica alematilde entre 1890 e 1920rdquo (CROWELL2001 p23)
Seguindo a exposiccedilatildeo de Crowell o movimento neokantiano pode ser dividido em
trecircs momentos profundamente relacionados com os acontecimentos histoacutericos poliacuteticos
e sociais da Alemanha na virada do seacuteculo XIX para XX Natildeo seraacute possiacutevel nos
aprofundarmos muito na especificidade de cada momento desse movimento bem como
nas suas relaccedilotildees com outras mateacuterias Como jaacute foi dito acima nossa proposta nessa
breve introduccedilatildeo eacute apenas mostrar a importacircncia desse movimento na formaccedilatildeo do
pensamento de Heidegger7 e indicar o contexto geral no qual nasce esse pensamento
6 O neokantismo eacute um movimento complexo e com muitas nuances Como nossa intenccedilatildeo eacute apresentar o
contexto no qual surge o pensamento de Heidegger natildeo pretendemos nos aprofundar e muito menos
desdobrar as divergecircncias entre seus representantes principais atraveacutes do acesso direto agraves suas obras
Portanto seguiremos nesse toacutepico a leitura de Crowell (2001) e Joseacute Rezende Juacutenior (2013) recorrendo
quando necessaacuterio a outros comentadores Destacamos os elementos centrais do pensamento de
Windelband e sobretudo de Rickert pois a partir da anaacutelise da preleccedilatildeo de 1919 de nosso autor ldquoA filosofia
e o problema da concepccedilatildeo de mundordquo ndash em que Heidegger investiga a possibilidade da filosofia como
ciecircncia originaacuteria ndash a posiccedilatildeo desses autores eacute decisiva para elaboraccedilatildeo dos problemas do meacutetodo de acesso
a imediatidade da vida e na primeira parte da referida preleccedilatildeo Heidegger expotildee os pressupostos e
problemas do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e sua dependecircncia ao material teoacuterico das ciecircncias particulares 7 Aleacutem do exposto em nota acima (6) seguimos a leitura de Gianni Vattimo em Introduccedilatildeo a Heidegger
No primeiro capiacutetulo Vattimo mostra a importacircncia dos anos de estudos universitaacuterios de Heidegger em
Freiburg sob orientaccedilatildeo de Heinrich Rickert para o desenvolvimento da questatildeo central de seu
pensamento a questatildeo do ser Segundo Vattimo em sua tese de livre docecircncia de 1916 Heidegger jaacute
23
contexto de uma disputa pela ldquoNova Filosofiardquo que dividiu a Fenomenologia de um lado
e os Neokantianos de outro
ldquoAmbos os movimentos reivindicam o tiacutetulo de filosofia cientiacutefica mas o
neokantismo difere da fenomenologia em manter uma continuidade entre a
ciecircncia positiva e filosofia A teoria da ciecircncia a epistemologia neokantiana
deseja fornecer fundamentos para os princiacutepios de base (lsquocientiacuteficosrsquo) da visatildeo de
mundo A Fenomenologia (aqui Husserl e o jovem Heidegger) ao contraacuterio
estabelece a autonomia da filosofia precisamente atraveacutes da descontinuidade com
a ciecircncia positiva e os objetos de formaccedilatildeo da visatildeo de mundordquo (CROWELL
2001p24)8
No primeiro periacuteodo (1871-1878) verifica-se ldquocerta continuidade entre o inqueacuterito
aprioriacutestico e empiacuterico A autonomia da filosofia vis-agrave-vis a ciecircncia positiva ainda natildeo
tornou a questatildeo decisivardquo (CROWELL 2001p26) Os neokantianos ainda estavam
dispostos a aceitar que as estruturas fundamentais da realidade revelavam seu caraacuteter
transcendental pois ainda constatavam a necessidade das formas universais atraveacutes das
quais podemos pensar as coisas singulares No projeto positivista a ciecircncia empiacuterica
estuda apenas o conteuacutedo de fato em uma restriccedilatildeo circunstancial dos fenocircmenos jaacute
compreendidos
ldquoTentando superar as aporias da Criacutetica da Razatildeo Pura o idealismo
transcendental neokantiano rejeitou a distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si Os
objetos satildeo totalmente imanentes agrave consciecircncia natildeo somente quanto a sua forma
mas tambeacutem agrave sua mateacuteria ieacute o seu elemento empiacuterico Destarte as categorias
jaacute natildeo constituem meramente o modo de aparecer da realidade mas o seu modo
de ser pois ela natildeo existe senatildeo enquanto presente agrave consciecircncia () Assim o
loacutegico como estudos das determinaccedilotildees fundamentais de vaacuterias regiotildees dos
objetos imanentes agrave consciecircncia ocupa com razatildeo ainda para Kant o lugar
reservado antigamente agrave metafiacutesica A tarefa proacutepria da filosofia consiste numa
Teoria das Ciecircncias ieacute no exame das estruturas a priori ao passo que estas
estudam o conteuacutedo empiacuterico das vaacuterias regiotildees dos objetosrdquo (MACDOWELL
Jp30)
manifestava elementos que o impulsionariam a ir aleacutem da loacutegica a recusa de considerar as categorias como
meras funccedilotildees do pensamento e ainda a exigecircncia de considerar o problema da historicidade e do tempo
Assim no interior da problemaacutetica neokantiana Heidegger jaacute se preocupava com questotildees que o
neokantismo mostrava-se incapaz de resolver Cf Vattimo G1987 pp 10-22
8 ldquoBoth movements lay claim to the mantle of ldquoscientific philosophyrdquo but neo-Kantianism differs from
phenomenology in maintaining a continuity between positive science and philosophy As theory of science
neo-Kantian epistemology wants to provide grounds for a principled (ldquoscientificrdquo) weltanschauung
Phenomenology (here Husserl and the early Heidegger) on the contrary establishes the autonomy of
philosophy precisely through a discontinuity with positive science and the aims of worldview formationrdquo
op cit p 24
24
Durante o segundo periacuteodo neokantiano entre 1878 e o final da Primeira Guerra
Mundial as escolas originadas desse movimento vatildeo acirrar suas diferenccedilas A escola de
Marburg (Cohen Natorp e Cassirer) se opocircs sobretudo agraves interpretaccedilotildees psicoloacutegicas
da Primeira Criacutetica de Kant O campo de investigaccedilatildeo dessa escola era direcionado agrave
fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas tais como a fiacutesica e a matemaacutetica pois o que
estaacute em jogo nessa obra segundo os pesquisadores de Marburg natildeo eacute qualquer
fundamentaccedilatildeo da estrutura psicoloacutegica do conhecimento nem sua origem mas o valor
loacutegico de sua verdade na medida em que ldquoo nosso conhecimento dos objetos reais conteacutem
um elemento que natildeo pode ser reduzido pura e simplesmente a intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo
(MCDOWELL J p29)
No mesmo sentido mas sobretudo em funccedilatildeo da superaccedilatildeo do psicologismo e do
relativismo histoacuterico a escola neokantista de Baden representada principalmente por
Windelband e seu disciacutepulo Rickert estende o retorno a Kant com o propoacutesito da
elaboraccedilatildeo de uma loacutegica das ciecircncias humanas O desenvolvimento da filosofia dos
valores (Werttheorie) realizado por essa escola reconhecia a necessidade de diferenciar o
conhecimento da natureza do conhecimento da cultura nesse uacuteltimo caso as leis
deveriam ser explicadas a partir dos valores que neles satildeo presentes Aqui sem duacutevida
existe um ponto de contato com o projeto de Dilthey que nos exige um breve excurso para
desenhar com linhas mais precisas a especificidade de cada projeto
A criacutetica agrave metafiacutesica inaugurada pela filosofia criacutetica de Kant (negando ao
conhecimento qualquer acesso a elementos suprassensiacuteveis) eacute absorvida por Dilthey e
pelos neokantianos contudo a epistemologia das ciecircncias histoacutericas como filosofia
criacutetica da histoacuteria ao recorrer a Kant deveria como aponta Reis (2002 p 166) ldquoou
substituir ou completar ou subordinar ou se coordenar agrave [criacutetica] de Kantrdquo e nesse sentido
eacute possiacutevel observar a fissura entre os projetos Poderiacuteamos dizer que para Dilthey eacute
necessaacuterio superar Kant pois as categorias abstratas do conhecimento satildeo tributaacuterias de
relaccedilotildees vitais primaacuterias como pensamento que emerge da proacutepria vida histoacuterica pois eacute
a vida histoacuterica em uacuteltima instacircncia que fornece ao pensamento unidade e sentido Jaacute
para os neokantianos de Baden poder-se-ia dizer que houve uma coordenaccedilatildeo com vistas
agrave complementaccedilatildeo agrave criacutetica kantiana tendo em vista que tanto para Windelband como
para Rickert a diferenccedila entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito era legiacutetima
25
para o primeiro como uma distinccedilatildeo metodoloacutegica para o segundo como distinccedilatildeo
loacutegica No interior dessa diferenccedila entre Dilthey e os neokantianos de Baden eacute possiacutevel
observar um ponto ainda mais fundamental mesmo com exigecircncias epistemoloacutegicas
objetivas em seu trabalho Dilthey natildeo aceita o pressuposto de um sujeito transcendental
e eacute antes a vivecircncia do sujeito particular histoacuterico que lhe fornece a base de sua pesquisa
jaacute para Windelband e Rickert o idealismo transcendental eacute mantido com o propoacutesito de
garantir o estatuto cientiacutefico de suas teses Assim enquanto Dilthey atraveacutes dos meacutetodos
proacuteprios faz emergir uma nova concepccedilatildeo de ciecircncia os representantes de Baden
movimentam-se em uma teoria preconcebida da ciecircncia Dito de outro modo ldquoenquanto
Dilthey buscava uma forma de liberar as ciecircncias do espiacuterito do meacutetodo das ciecircncias
naturais Windelband e Rickert procuravam uma definiccedilatildeo de ciecircncia que reconhecesse a
importacircncia dos valoresrdquo (WUR 2010p175)
De maneira geral retornando ao ponto central de nosso toacutepico poderiacuteamos
apontar que as duas escolas neokantianas se diferenciavam essencialmente acerca do
objeto de investigaccedilatildeo Na escola de Marburg Cohen direcionava suas pesquisas ao
chamado ldquofato da ciecircnciardquo e a filosofia seria uma reflexatildeo sobre o conhecimento
cientiacutefico concentrando-se na busca de uma metodologia capaz de descrever
matematicamente a constituiccedilatildeo seu objeto na medida em que seu valor de verdade
encontra-se sob bases loacutegico-matemaacuteticas Jaacute na escola de Baden influenciado pela
filosofia dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade
dos juiacutezos cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de
conciliar ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) A ciecircncia apenas
lida com questotildees de fato e se for necessaacuterio analisar a ldquovisatildeo de mundordquo seremos
obrigados a lidar com os deveres e sobretudo com valores
ldquoEsse enfoque nos valores por parte de Windelband levaraacute o neokantismo de
Baden ao desenvolvimento de uma teoria geral do juiacutezo segundo a qual os juiacutezos
cientiacuteficos (juiacutezos teoacutericos) constituem apenas um tipo de juiacutezo qual seja os
juiacutezos orientados pelo valor verdade Aleacutem dos juiacutezos teoacutericos haveria tambeacutem
juiacutezos natildeo teoacutericos como os juiacutezos eacuteticos esteacuteticos religiosos etc os quais
seriam orientados por outros tipos de valores como o bem o justo o belo o
sagrado etc e os quais diriam respeito a outras dimensotildees da experiecircncia
humana para aleacutem da ciecircncia como a moral o direito a arte a religiatildeo etc Com
isso Windelband procura reformar e ampliar o projeto de Kant Como na Criacutetica
da Razatildeo Pura Kant reduziu o papel da filosofia agrave anaacutelise do caraacuteter a priori dos
juiacutezos teoacutericos especiacuteficos das ciecircncias da natureza trata-se portanto de
completar a empresa kantiana com a anaacutelise do caraacuteter a priori dos outros tipos
26
de juiacutezos Mesmo dentro das ciecircncias eacute preciso distinguir tipos de juiacutezos o que
Windelband faraacute atraveacutes da distinccedilatildeo entre ciecircncias nomoloacutegicas e ciecircncias
ideograacuteficas e Rickert com a distinccedilatildeo entre ciecircncias naturais e ciecircncias
culturaisrdquo (RESENDE 2013p17)
Contudo se ambas escolas se diferenciam na circunspecccedilatildeo de seu objeto existe
um ponto de partida epistemoloacutegico comum o retorno a Kant que indica o lugar proacuteprio
da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias A investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo deve se voltar agrave pesquisa
cientiacutefica de como se daacute tal ou qual conhecimento mas analisar a validade do
conhecimento ou seja aquilo que torna a verdade do conhecimento possiacutevel e esse
problema eacute de ordem transcendental pois natildeo estaacute interessada nos processos cognitivos
mas na condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer processo de conhecimento
ldquoContemporacircneo de Hermann Cohen da escola de Marburg Windelband
enfatizou como este a primazia da abordagem epistemoloacutegica dando
continuidade ao projeto kantiano de limitaccedilatildeo do conhecimento buscando
assegurar a sua validade rejeitando a contingecircncia do histoacuterico e do psicoloacutegico
em prol de uma validade atemporal puramente loacutegica Cohen procurou assegurar
a validade loacutegica do conhecimento cientiacutefico na matemaacutetica procedimento que
Windelband analisa como deficiente pois embora a primeira Criacutetica possa
fundamentar a interpretaccedilatildeo de Cohen a segunda e a terceira Criacuteticas assim
como os textos sobre antropologia histoacuteria e poliacutetica requerem outra
fundamentaccedilatildeo que natildeo a matemaacuteticardquo (WU R2010p3)
A terceira fase do movimento ainda segundo Crowell inicia-se no fim da
Primeira Guerra Mundial e vai ateacute a intervenccedilatildeo Nacional Socialista no sistema
universitaacuterio alematildeo nos anos 30 ldquoRefletindo o colapso do otimismo cultural este
periacuteodo eacute caracterizado por um ataque ao idealismo acadecircmico em nome de
Lebensphilosophie (um termo geneacuterico invocando as teses filosoacuteficas lsquoagrave margemrsquo como
as de Nietzsche Bergson e Dilthey)rdquo (CROWELL2011p28) E nesse sentido as escolas
neokantianas precisaram enfrentar o conflito entre a realidade muacuteltipla e dispersa que no
mais das vezes escapa a qualquer tentativa de apreensatildeo conceitual e loacutegica e portanto
agrave consciecircncia transcendental como postulado que garante a cientificidade do projeto
filosoacutefico neokantista
ldquoNa escola de Baden Logik der Philosophie (1911) e Die Lehre vom Urteil [A
doutrina do juiacutezo] (1912) de Lask antecipam temas do terceiro periacuteodo
Abandonando a interpretaccedilatildeo imanente de Rickert do esquema forma-mateacuteria (e
tambeacutem a primazia da razatildeo praacutetica) Lask adota o ponto de partida da
transcendecircncia para dar uma interpretaccedilatildeo ontoloacutegica dos objetos como a unidade
da forma categorial e o material natildeo-loacutegico Objetos satildeo verdades em si mesmas
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unidades de sentido natildeo cogniccedilotildees juiacutezos proposiccedilotildees Em contraste com
Cohen para quem o objeto eacute construiacutedo no juiacutezo cientiacutefico Lask argumenta que
lsquoos mais baacutesicos problemas da loacutegica revela eles mesmos somente se a cogniccedilatildeo
preacute-teoreacutetica estaacute inclusa na investigaccedilatildeorsquo Em Marburg N Hartmann oferece na
Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis [Fundamentacao para uma
Metafiacutesica do Conhecimento] (1921) uma teoria da relaccedilatildeo sujeito-objeto
ldquorealistardquo quase-fenomenoloacutegica intentada por uma justificaccedilatildeo ontoloacutegica para
o que eacute meramente pressuposto no idealismo loacutegico de Natorp a saber a
habilidade do sujeito para ldquotranscenderrdquo a sua proacutepria esfera Na filologia de
Kant H Heimsoeth comeccedila a descobrir os ldquomotivos metafiacutesicosrdquo da filosofia
criacutetica de Kant uma interpretaccedilatildeo perseguida no curso sobre Kant de Heidegger
1927-1928 e em Kant und das Problem der Metaphysikrdquo
(CROWELL2011p28)9
Eacute conhecida a interlocuccedilatildeo entre Rickert e a fenomenologia de Husserl tanto de
um lado pela criacutetica de Rickert agrave intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica e agrave identificaccedilatildeo entre sentido
(Sinn) e Significado (Bedeutung) nas Investigaccedilotildees Loacutegicas10 quanto por outro pela
criacutetica de Husserl a Rickert no que diz respeito agrave via predominantemente subjetiva das
9 ldquoIn the Baden school Laskrsquos Logik der Philosophie (1911) and Die Lehre vom Urteil (1912) anticipate
themes of the third period Abandoning Rickertrsquos immanentist interpretation of the formmaterial schema
(and so also the primacy of practical reason) Lask adopts the ldquostandpoint of transcendencerdquo to give an
ontological interpretation of the object as a unity of categorial form and alogical material Objects are
themselvesldquo truths unities of meaning not cognitions judgments propositionsrdquo Incontrast to Cohen for
whom the object is constructed in the scientific judgment Lask argues that ldquothe most basic problems of
logic reveal themselves only if pretheoretical cognition is included in the investigationrdquo In Marburg N
Hartmann offered the Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis (1921) a quasi-phenomenological
ldquorealisticrdquo theory of the subject-object relation intended to account ontologically for what is merely
presupposed in Natorprsquos logical idealism namely the subjectrsquos ability to ldquotranscendrdquo its own sphere In
Kant philology H Heimsoeth began to uncover the ldquometaphysical motivesrdquo of Kantrsquos critical philosophy
an interpretation pursued in Heideggerrsquos 1927ndash28 lecture course on Kant and in Kant und das Problem der
Metaphysikrdquoop citp28
10 Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas (sect15 da I Investigaccedilatildeo) contra a posiccedilatildeo de Frege Husserl considera os
termos Sentido (Sinn) e Significado (Bedeutung) como sinocircnimos ldquoSignificaccedilatildeo vale para noacutes aleacutem disso
como sinocircnimo de sentidordquo (HUSSERL 2012 p43) Contudo se em Ideias (1913) Husserl passa a assumir
uma camada de sentido preacutevia agrave significaccedilatildeo linguiacutestica - algo que ele natildeo soacute sugere como a ela se refere
explicitamente chamando-a de sentido preacute-expressivo- a significaccedilatildeo (Bedeutung) permanece
intimamente atrelada agrave expressatildeo (Ausdruck) que continua a ter um caraacuteter epistemoloacutegico relevante
(Cfsect124 Ideacuteias para uma fenomenologia pura e para uma fenomenologia fenomenoloacutegica) Apesar da
nova assunccedilatildeo essa camada preacute-expressiva natildeo passa a ter um teor de verdade superior agrave camada
expressiva pelo contraacuterio Husserl vai permanecer sempre comprometido com o status epistemoloacutegico da
consciecircncia e de seu acesso ao fenocircmeno Entatildeo aquilo que a consciecircncia manifesta linguisticamente
continua a ser o meio pelo qual a fenomenologia pode se realizar como ciecircncia rigorosa e somente a partir
da expressatildeo eacute possiacutevel falar em verdade na medida em que apenas a expressatildeo possui intenccedilatildeo de
significaccedilatildeo Isso porque apesar de sugerir esse sentido preacute-linguiacutestico Husserl continua voltando suas
anaacutelises agrave expressatildeo
28
primeiras publicaccedilotildees de Der Gegenstand der Erkentnnis (O objeto do conhecimento)11
Tambeacutem eacute conhecido o debate entre o idealismo criacutetico de Natorp e a fenomenologia de
Husserl
ldquoEm Ideen I (1913) Husserl afirma com um miacutenimo de ironia que ldquonoacutes somos
genuiacutenos positivistasrdquo (Hua III4639) Sob a tutela de Brentano a atitude inicial
de Husserl em direccedilatildeo ao apriorismo kantiano foi totalmente negativa e em
harmonia com o proacuteprio periacuteodo positivista inicial do neokantismo ele em vez
disso propocircs uma consideraccedilatildeo psicoloacutegica do a priori (egin Philosophie der
Arithmetik [1891]) Pelos anos de 1890 esse tipo de continuidade entre filosofia
e ciecircncia positiva foi abandonado em Marburg pelo idealismo transcendental
Husserl portanto permaneceu bem proacuteximo a Natorp que era o instrumental em
direccedilatildeo daquele caminho do psicologismo e mais tarde inspiraria o movimento
de Husserl da estaacutetica para a fenomenologia geneacutetica Pelos anos 1913 Husserl
tinha desenvolvido seu proacuteprio ldquoidealismo transcendentalrdquo fenomenoloacutegico mas
se manteve distinto em princiacutepio do Neokantismo de Marburg Enquanto esse
uacuteltimo definiu o caraacuteter cientiacutefico da filosofia em termos de
uma loacutegica transcendental uma apresentaccedilatildeo sistemaacutetica dos princiacutepios a priori
(ldquomeacutetodordquo) da ciecircncia empiacuterica o primeiro se manteve anti-sistemaacutetico modelo
empiacuterico do primeiro periacuteodo do seu fundador fundando sua teoria do a priori
sobre um recurso filosoacutefico para a intuiccedilatildeoEm seu tratamento da psicologia de
Natorp na primeira ediccedilatildeo das Investigaccedilotildees Loacutegicas(1900-1901) por exemplo
Husserl rejeita a doutrina de Natorp do puro ego da apercepccedilatildeo Na segunda
ediccedilatildeo contudo ele afirma que tem ldquouma vez conseguido encontraacute-lordquo tendo
aprendido ldquoa natildeo ser desviado de uma pura compreensatildeo do dado por meio de
formas corruptas do ego-metafiacutesicordquo (Hua XIX1374549) Se o Husserl mais
idealista natildeo mais associa o ego kantiano com o ldquocorrupto ego-metafiacutesicordquo do
idealismo especulativo sua anotaccedilatildeo ainda avanccedila em direccedilatildeo a uma afirmaccedilatildeo
bem anti-Natorpiana de ter encontrado o puro ego em uma ldquopura compreensatildeo
do dadordquo isto eacute em evidecircncia intuitiva Outra anotaccedilatildeo afirma que o puro ego eacute
ldquoapreendido na efetivaccedilatildeo de um cogito auto-evidenterdquo (Hua XIX1368544)
Natorp negou a fenomenalidade do ego ele nem pode ser objetivado nem
apresentado ele mesmo como um todo sem deixar de ser genuinamente ldquosujeitordquo
Para Husserl poreacutem esse argumento eacute meramente verbal o ego eacute aqui como um
fato um objeto em seu modo apropriado Afirmar o contraacuterio equivaleria
entregar o ego ao reino do mito (Hua XIX1373ndash76549ndash510)rdquo
(CROWELL2011 p31)12
11 Sobre a interlocuccedilatildeo entre Husserl e Rickert e como as criacuteticas e observaccedilotildees provocaram sucessivas
revisotildees dos trabalhos de ambos os autores Cf RESENDE J 2013 Primeira Parte pp 22-89
12ldquoIn Ideen I (1913) Husserl claims with only slight irony that ldquowe are the genuine positivistsrdquo (Hua
III4639) Under Brentanorsquos tutelage Husserlrsquos initial attitude toward Kantian apriorism had been
altogether negative and in harmony with neo-Kantianismrsquos own early positivist period he instead proposed
a psychological account of the a priori (egin Philosophie der Arithmetik [1891]) By the 1890s this kind
of continuitybetween philosophy and positive science had been abandoned in burg for transcendental
idealism Husserl nevertheless established close ties with Natorp who was instrumental in steering him
away from psychologism and would later inspire Husserlrsquos move from static to genetic phenomenology
By 1913 Husserl had developed his own phenomenological ldquotranscendental idealismrdquo but it remained
distinct in principle from Marburg neo-Kantianism While the latter defined the scientific character of
philosophy in terms of a transcendental logic a systematic presentation of the a priori principles (ldquomethodrdquo)
29
Contudo apesar do diaacutelogo entre esses autores o que nos interessa marcar a tiacutetulo
introdutoacuterio eacute a centralidade do debate que orientou a filosofia deste periacuteodo Seja pela
busca de juiacutezos loacutegicos-matemaacuteticos seja pela busca dos juiacutezos de valor a filosofia ainda
estaacute imersa nos problemas e na gramaacutetica da modernidade pois os debates se
movimentam no interior da teoria do conhecimento e cada escola a seu modo recorre ao
sujeito transcendental para assegurar a garantia de objetividade e validade do
conhecimento A discussatildeo inaugurada por Kant acerca da lsquocoisa em sirsquo e de seu acesso
como ideia da razatildeo redirecionam qualquer ontologia dos objetos agrave consciecircncia do
sujeito E em uacuteltima instacircncia a filosofia permanece imersa no pressuposto da existecircncia
de um fundamento uacuteltimo - baseado no sujeito e em suas possibilidades ligadas agrave
representaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos elementos do mundo externo- como condiccedilatildeo de
possibilidade que garante a seguranccedila e objetividade de todo conhecimento
II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica
Para Wilhelm Windelband (1848-1915) a filosofia deve investigar os valores das
representaccedilotildees ou seja em que medida uma representaccedilatildeo se torna uma proposiccedilatildeo
cientiacutefica Contra as teorias representacionistas do juiacutezo aqui jaacute eacute possiacutevel identificar a
clara separaccedilatildeo entre representaccedilatildeo - que seria a mera apariccedilatildeo de um objeto e suas
propriedades- e o juiacutezo ndash que possui valor de verdade e pode ser negado ou afirmado Os
juiacutezos (sejam loacutegicos esteacuteticos ou eacuteticos) natildeo satildeo neutros como a representaccedilatildeo pois
possuem embutido o que Windelband chama de apreciaccedilatildeo
ldquoTrata-se de uma distinccedilatildeo loacutegica que normalmente natildeo aparece no niacutevel da
gramaacutetica A mera conexatildeo neutra de representaccedilotildees (sujeito + predicado) eacute o que
se chama de juiacutezo jaacute o fato dessas representaccedilotildees constituiacuterem uma proposiccedilatildeo
com valor de verdade se deve agrave apreciaccedilatildeo O que Windelband quer mostrar eacute
of empirical science the former retained the antisystematic empirical cast of its founderrsquos early period
grounding its theory of the a priori on a philosophical appeal to intuition In his treatment of Natorprsquos
psychology in the first edition of the Logical Investigations (1900 1901) for example Husserl rejects
Natorprsquos doctrine of the pure ego of apperception In the second edition (1913) however he claims that he
has ldquosince managed to find itrdquo having learned ldquonot to be led astray from a pure grasp of the given through
corrupt forms of ego-metaphysicrdquo (Hua XIX1374549) If the more idealistic Husserl no longer associates
the Kantian ego with the ldquocorrupt ego-metaphysicrdquo of speculative idealism his note also advances the very
un-Natorpian claim to have found the pure ego in a ldquopure grasp of the givenrdquo that is in intuitive evidence
Another note states that the pure ego is ldquoapprehended in carrying out a self-evident cogitordquo (Hua
XIX1368544) Natorp had denied the phenomenality of the ego it can neither be objectified nor present
itself at all without ceasing to be genuinely ldquosubjectrdquo For Husserl however this argument is merely verbal
The ego is there as a fact an object in its own appropriate manner To claim otherwise is tantamount to
consigning the ego to the realm of myth (Hua XIX1373ndash76549ndash51)rdquo Op cit p31 Cf Tambeacutem
HEIDEGGER 2006 p 124
30
que nisso ordinariamente chamado de juiacutezo estaacute embutida uma apreciaccedilatildeo em
funccedilatildeo de um valor a qual natildeo se confunde com o conjunto de formaccedilotildees
conceituaisrdquo (RESENDE 2013p40)
O que estaacute em jogo nessa concepccedilatildeo eacute identificar que a apreciaccedilatildeo inerente a todo
juiacutezo natildeo diz nada acerca dos conteuacutedos representativos mas de sua pretensatildeo a um ideal
ou fim uacuteltimo como um horizonte estaacutevel do que eacute verdadeiro eacutetico ou esteacutetico e que
funcionam como paracircmetros avaliativos na accedilatildeo mesma de julgar O que estaacute implicado
nessa tese eacute a concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo As ciecircncias particulares possuem pretensatildeo de
valor universal mas essa universalidade natildeo eacute faacutetica e ldquosua necessidade natildeo eacute causal mas
apenas lsquodeve-serrsquo (sein-solle)Toda proposiccedilatildeo loacutegica eacutetica ou esteacutetica eacute impelida pelo
dever-ser universalrdquo(RESENDE2013p41) e mesmo que sua manifestaccedilatildeo seja
faticamente histoacuterica esse dever-ser da proposiccedilatildeo loacutegica deve ser reconhecido como
universal e incondicionalmente vaacutelido por qualquer ser racional ndash em uma clara assunccedilatildeo
da universalidade moral kantiana mas que agora permeia todos os juiacutezos e natildeo somente
os eacuteticos
Considerando os juiacutezos em funccedilatildeo de sua apreciaccedilatildeo Windelband descreve trecircs
tipos de juiacutezos Os juiacutezos satildeo teoacutericos (segundo a apreciaccedilatildeo verdadeirofalso) juiacutezos de
gosto (segundo a apreciaccedilatildeo belofeio) e os juiacutezos eacuteticos (segundo a apreciaccedilatildeo
bommau) Os fenocircmenos psiacutequicos satildeo as representaccedilotildees neutras em sua manifestaccedilatildeo
Assim como comportamentos da apreciaccedilatildeo os juiacutezos ganham sua forma loacutegica nas
figuras judicativas juiacutezos afirmativos juiacutezos negativos juiacutezos problemaacuteticos Essa uacuteltima
forma suspende a apreciaccedilatildeo mas pela pergunta ndash que natildeo eacute propriamente um juiacutezo-
condiciona a possibilidade de julgar portanto se refere a uma etapa mesmo que preacutevia
agrave tomada de posiccedilatildeo apreciativa
Aqui reside o ponto decisivo enquanto para Windelband a loacutegica claacutessica (de
Aristoacuteteles a Kant) se ocupou dos elementos meramente gramaticais - sendo os juiacutezos
coincidentes com as representaccedilotildees na medida que bastava afirmaacute-las ou negaacute-las - a
apreciaccedilatildeo por sua vez aparece como constituidora do conceito presente nas formaccedilotildees
gramaticais pois dizer algo eacute antes apreciar a sua posiccedilatildeo existencial (com fim ao ideal
da mateacuteria em questatildeo eacutetico esteacutetico etc) de forma a negaacute-las ou afirmaacute-las Em outras
palavras para que o conhecimento seja possiacutevel natildeo eacute suficiente a recepccedilatildeo passiva das
representaccedilotildees mas eacute fundamental uma atividade valorativa que constitui um conceito
31
no reconhecimento de seu conteuacutedo sentido e validade na sua pretensatildeo de necessidade
e universalidade Algo lsquoeacutersquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento e
ldquoa pesquisa desses valores com pretensotildees universais () eacute o objeto de estudo da
filosofiardquo (RESENDE 2013p41) Essa posiccedilatildeo seraacute retomada e desenvolvida por
Rickert
Assim como Windelband Heinrich Rickert (1863-1936) coloca o problema na
forma metodoloacutegica ou seja a pesquisa dos valores como meacutetodo de base para a filosofia
e busca assim determinar o criteacuterio de validade do conhecimento atraveacutes do elemento que
confere sua objetividade ou o que pode ser identificado como o crucial para a diferenccedila
entre os enunciados arbitraacuterios e as proposiccedilotildees vaacutelidas do conhecimento efetivo
elemento que Rickert denomina ldquoobjeto do conhecimentordquo como o tiacutetulo mesmo de sua
obra principal indica ldquoDie Gegenstand der Erkenntnisrdquo (revista em seis ediccedilotildees
diferentes entre 1892 e 1928)
Aprofundando as investigaccedilotildees de seu mestre Rickert difere conceitos
ontoloacutegicos de conceitos axioloacutegicos diferenccedila oculta na linguagem ordinaacuteria e que se
torna clara na observaccedilatildeo acerca da concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo ldquoEnquanto para Kant o
problema eacute a impossibilidade de explicar o fato de como a razatildeo teoacuterica pode ser praacutetica
para Rickert o problema eacute o fato de que a razatildeo jaacute eacute sempre praacutetica em seu uso teoacuterico
purordquo (RESENDE 2013p45) e isto natildeo pelo fato de juiacutezos teoacutericos dependerem da lei
moral mas pela convicccedilatildeo acerca dos conteuacutedos mesmos do conhecimento Se a
representaccedilatildeo satildeo processos psiacutequicos elementares e neutros a convicccedilatildeo soacute eacute possiacutevel
pela razatildeo praacutetica Para melhor visualizaccedilatildeo do problema quando digo ldquoS eacute Prdquo ou ldquoS eacute
um sujeitordquo (e aiacute estaacute tambeacutem seu conceito por exemplo ldquohomemrdquo) ou ainda ldquoP eacute um
predicadordquo (e tambeacutem utilizo um conceito por exemplo ldquoracionalrdquo) o que me autoriza
dizer ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo Segundo Rickert eacute a convicccedilatildeo praacutetica fundada no
sentimento (Gefuumlhl) de ldquovontade de verdaderdquo (Willen zur Wahrheit) que impele a busca
da verdade Eacute esse sentimento que possibilita a tomada de posiccedilatildeo que aprova ou
desaprova expresso por fim em um juiacutezo Somos impelidos pelo dever na medida em
que somos livres a buscar a verdade Mas eacute importante considerar que
ldquoApesar de o sentimento ser o paracircmetro para a tomada de posiccedilatildeo do juiacutezo o
dever natildeo deriva do sentimento pois isso seria derivar o dever do ser O dever
natildeo pode ser confundido com a necessidade causal do sentimento Na verdade
32
na proacutepria constataccedilatildeo do sentimento jaacute estaacute pressuposto o dever () Essa
verdade buscada natildeo eacute uma instacircncia ideal mas apenas um postulado um
inalcanccedilaacutevel ideal absoluto de verdade que funciona como moacutebil da atividade
cientiacutefica dos seres moraisrdquo (RESENDE 2013p46)
A razatildeo praacutetica busca a verdade como sua atividade mais proacutepria a partir do dever
impresso na sua proacutepria liberdade expresso no ato praacutetico de tomada de decisatildeo que
culmina na expressatildeo dos juiacutezos (na razatildeo teoacuterica) Se para Kant a accedilatildeo humana livre eacute
impelida a agir conforme a lei moral para Rickert a accedilatildeo humana em seu querer livre -
nem mecacircnico nem bioloacutegico - de um ideal de perfeiccedilatildeo da verdade eacute impelida a agir em
funccedilatildeo do conhecimento e da ciecircncia
Na tentativa de afastar as interpretaccedilotildees psicologistas ou idealistas (natildeo
cientiacuteficas) de sua teoria o valor de verdade para Rickert que eacute garantido pelo dever-ser
eacute observado na evidecircncia como manifestaccedilatildeo psiacutequica do dever mas que pelo seu caraacuteter
de necessidade ultrapassa o indiviacuteduo singular O sentimento de prazer ou desprazer dessa
evidecircncia na estrutura psiacutequica que posiciona o ato praacutetico de tomada de posiccedilatildeo eacute
reconhecido pela sua necessidade transcendente e eacute o elemento do esquema cognitivo que
ldquoestabelece a ponte entre os processos psiacutequicos reais em sua singularidade e
contingecircncia com a universalidade e necessidade transcendental do deverrdquo (RESENDE
2013p47) Mesmo com essas colocaccedilotildees e sobretudo com a postulaccedilatildeo que o dever natildeo
pode ser derivado do ser pelo seu caraacuteter mesmo de liberdade Rickert foi aproximado de
um certo ldquopsicologismo voluntaristardquo pois o valor de verdade na realidade soacute poderia ser
derivado dos processos psiacutequicos tendo em vista que ldquoo dever eacute uma norma psicoloacutegica
que soacute tem sentido lsquopararsquo um sujeito empiacutericordquo (RESENDE 2013p47) E ainda por
mais que sua meta fosse buscar a universalidade e necessidade dos valores ainda assim
esses valores estariam reduzidos ldquoagrave contingecircncia e temporalidade dos processos
psiacutequicos ou seja reduzindo o valor ao serrdquo (RESENDE 2013p48)
Mas como a filosofia dos valores desses autores lida com as pesquisas histoacutericas
enquanto criacutetica do historicismo Para Windelband as ciecircncias positivas satildeo ciecircncias
nomoteacuteticas ou seja operam por uma abstraccedilatildeo que busca o conhecimento universal
atraveacutes da estabilidade de suas leis Jaacute as ciecircncias histoacutericas satildeo ideograacuteficas cujo juiacutezos
natildeo descrevem uma coisa ou estados de coisa enquanto aquilo que eacute mas possuem como
objeto valores que possuem (ou natildeo) validade Validade oferecida em uacuteltima instacircncia
33
pelo juiacutezo em sua forma fundamental como juiacutezo apreciativo Analisar esses valores
requer uma metodologia proacutepria baseada na pesquisa da valoraccedilatildeo como forma de
conhecimento
Para Rickert a filosofia dos valores eacute o fundamento universal para os significados
da histoacuteria e aqui reside o ponto crucial a busca de um ideal absoluto (vontade de
verdade) deve atuar como medida para a realidade individual e histoacuterica sem a qual natildeo
podemos significar a interpretaccedilatildeo da vida histoacuterica e cultural na sua singularidade A
distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor
(Wert) segundo Rickert levaria a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo
de conceitos (Begriffsbildung) e que natildeo se trata de um conhecimento no campo
ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto pelo conceito determinado de maneira formal no
espaccedilo loacutegico-axioloacutegico
Um evento histoacuterico natildeo possui relevacircncia por si soacute eacute a partir da valoraccedilatildeo que
um fato histoacuterico se ldquodiferencia substancialmente de outros na heterogeneidade contiacutenua
a partir de sua individualidaderdquo (Wu R 2010p180) Ou seja o que doa sentido a um
fato histoacuterico na sua individualidade ndash que se destaca dos fluxos indistintos e
heterogecircneos dos acontecimentos - eacute uma realizaccedilatildeo teoacuterica que o valoriza e lhe confere
sentido A histoacuteria eacute portanto possiacutevel e existe como objeto capaz de ser analisado como
ciecircncia pelos valores atribuiacutedos teoricamente a seus eventos
III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos
A crise no modelo teoacuterico tradicional no final do seacuteculo XIX (que apontava
qualquer teoria filosoacutefica como uma lsquocrenccedila justificadarsquo) a reconduccedilatildeo pelos
psicologistas agrave articulaccedilatildeo de argumentos logicamente coerentes baseados na consciecircncia
particular - em que ateacute mesmo os princiacutepios loacutegicos seriam expressatildeo da forma de
conhecimento possiacutevel pela particularidade daquele que conhece- culminam no projeto
husserliano de uma filosofia pura e sem pressupostos
Para Husserl a psicologia baseada no modelo cientiacutefico das ciecircncias naturais leva
agrave particularizaccedilatildeo dos conteuacutedos do conhecimento e nesse modelo a psicologia natildeo
consegue lidar com a universalidade do conteuacutedo dos princiacutepios tornando a relaccedilatildeo entre
34
a realidade e o conhecimento incompatiacuteveis Por mais que a experiecircncia seja particular
as investigaccedilotildees de Husserl o levaram a considerar que a existecircncia humana estaacute em
contato com conteuacutedos que natildeo satildeo particularizaacuteveis A psicologia natildeo deixa clara a
transiccedilatildeo das conexotildees psicoloacutegicas do pensar e a unidade loacutegica de seu conteuacutedo O que
estaacute em jogo para Husserl eacute portanto a relaccedilatildeo entre a subjetividade do conhecer e a
objetividade do conteuacutedo de pensamento
A predominacircncia neokantiana no horizonte universitaacuterio alematildeo e sua maacutexima de
retorno a Kant mantecircm no interior da investigaccedilatildeo termos como por exemplo
lsquoapercepccedilatildeorsquo e lsquorepresentaccedilatildeorsquo Se o neokantismo se volta a Kant tambeacutem sucumbe a
seus limites e nesse movimento revela a insuficiecircncia da investigaccedilatildeo filosoacutefica
condicionada aos sistemas anteriores Para Husserl a filosofia como ciecircncia autocircnoma
requer natildeo um retorno a qualquer teoria mas agraves coisas que agora devem orientar o
pensamento
A tradiccedilatildeo filosoacutefica eacute marcada por uma pretensatildeo a busca da verdade para aleacutem
do que acontece na realidade dos fenocircmenos que nos satildeo acessiacuteveis Ao hipostasiar a
realidade do ser atraveacutes de posturas realistas ou idealistas para assim ter acesso aos
fenocircmenos a tradiccedilatildeo sempre considerou o ser do fenocircmeno para aleacutem do proacuteprio
fenocircmeno13 De maneira diversa Husserl busca os objetos nos proacuteprios campos
fenomecircnicos na medida em que aparecem na dimensatildeo do conhecimento a partir da
proacutepria atividade de pensamento ou seja o objeto que aparece na atividade de
pensamento soacute eacute encontrado na proacutepria atividade por isso natildeo haacute busca ou hipoacutestase
exterior agrave consciecircncia Mas isso natildeo se daacute porque a consciecircncia em seus atos produza ou
determine os significados dos objetos mas sim porque os atos das vivecircncias abrem espaccedilo
para que o objeto se determine no ato mesmo a partir de sua autonomia frente a qualquer
subjetividade particular de pensamento Mas o que queremos dizer com lsquoum objeto que
se determina no ato mesmorsquo Aqui eacute importante destacar sempre que possiacutevel um mal-
entendido em constante revisatildeo a filosofia de Husserl natildeo consiste em um sistema
fechado de proposiccedilotildees as quais poderiacuteamos encaminhar de forma retiliacutenea e deduzir suas
conclusotildees Aqui nessa breve introduccedilatildeo agraves intenccedilotildees do pensamento de Husserl
apresentamos em linhas gerais seu projeto e nos movimentamos a partir do segundo
13 Cf CASANOVA 2013 pp-76-80
35
volume das Investigaccedilotildees Loacutegicas de 1901 e das Ideacuteias para uma fenomenologia pura e
para uma filosofia fenomenoloacutegica publicadas em 1913
Depois dessas consideraccedilotildees atraveacutes das quais foi posta em jogo a noccedilatildeo de um objeto
que se determina no ato mesmo conforme jaacute explicitado nas Investigaccedilotildees eacute requerido
passar agrave explicaccedilatildeo da noccedilatildeo conforme elaborada na obra posterior Ideacuteias O
pensamento de Husserl eacute marcado por uma orientaccedilatildeo especiacutefica a fenomenoloacutegica Essa
orientaccedilatildeo natildeo desconsidera as vaacuterias formas pelas quais podemos ter acesso a objetos
seja pela vida corrente e cotidiana seja pela via cientiacutefica pois ambas estatildeo de acordo
com a orientaccedilatildeo natural A orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica por sua vez se deteacutem no objeto
intencional ou seja o objeto que visado se manifesta agrave consciecircncia conforme seu modo
de doaccedilatildeo fenomecircnico14 Natildeo se trata de um idealismo subjetivo conforme por exemplo
Berkeley mas de uma necessidade de acesso agraves coisas mesmas sem qualquer
pressuposiccedilatildeo sem qualquer movimento que ponha o conhecimento fora da realidade e
que ao mesmo tempo natildeo recaia na descriccedilatildeo ingecircnua da realidade como um conjunto de
impressotildees sensiacuteveis O fenocircmeno que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute
sempre uma doaccedilatildeo com sentidosignificado ldquopois se eacute verdade que os fenocircmenos se
datildeo a noacutes por intermeacutedio dos sentidos eles se datildeo sempre como dotados de um sentido
ou de uma essecircncia Eis porque () a intuiccedilatildeo seraacute uma intuiccedilatildeo da essecircncia ou do
sentidordquo (DARTIGUES 1973p21)
Ao contraacuterio dos neokantianos o modo como Husserl tratou a realidade tornou
improacuteprio o retorno agraves concepccedilotildees filosoacuteficas anteriores Elas natildeo forneciam mais um
caminho vaacutelido para o questionamento filosoacutefico Natildeo era mais suficiente o retorno a
qualquer sistema filosoacutefico fosse para renovaacute-lo - sob esse novo horizonte cientiacutefico -
fosse para retomar seus fundamentos com a finalidade de posicionar a filosofia como
braccedilo de apoio da ciecircncia A fenomenologia pura (puramente descritiva) pertence agrave
pesquisa de uma teoria do conhecimento objetiva na medida em que o modo de apariccedilatildeo
dos fenocircmenos nas vivecircncias do pensamento e do conhecimento seraacute sempre o objeto da
fenomenologia
14 Cf Ideacuteias I Capiacutetulo I
36
A concepccedilatildeo de fenocircmeno na modernidade ganhou diversas acepccedilotildees desde Bacon
ateacute Wolff passando por Descartes e Hobbes Segundo uma noccedilatildeo do senso comum
fenocircmeno eacute a experiecircncia pura e simples do fato considerada sobretudo como
manifestaccedilatildeo empiacuterica da realidade que natildeo pode ser equiparada agrave verdade15 Jaacute para Kant
- na delimitaccedilatildeo feita na primeira Criacutetica do espaccedilo do saber cientiacutefico possiacutevel -
fenocircmeno eacute o objeto especiacutefico do conhecimento humano que aparece sob condiccedilotildees
particulares da estrutura cognosciacutevel do homem a saber de um lado o objeto do
conhecimento depende das bases representativas que satildeo organizadas pelas categorias do
entendimento e de outro dos dados fornecidos pela sensibilidade Resumindo o objeto
de conhecimento para Kant estaacute delimitado pela relaccedilatildeo entre intuiccedilatildeo e conceito Kant
distingue o fenocircmeno - aquilo que eacute possiacutevel conhecer - do nocircumeno aquilo que natildeo se
conhece mas que pode ser pensado enquanto ideia da razatildeo como ldquocoisa em sirdquo Sem
jamais ultrapassar os dados da experiecircncia o sentido fenomenoloacutegico de fenocircmeno de
Husserl supera a distinccedilatildeo kantiana entre nocircumeno e fenocircmeno O fenocircmeno eacute algo que
manifesto revela em si mesmo seu conteuacutedo loacutegico ou essencial Mas a manifestaccedilatildeo do
fenocircmeno deve ser ldquodepuradardquo de qualquer psicologismo pois natildeo deve apenas ser
considerada como manifestaccedilatildeo particular A investigaccedilatildeo filosoacutefica ou melhor a
investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica aqui eacute exigida como meacutetodo para lsquopurificarrsquo o conteuacutedo
objetivo do ato subjetivo
ldquoO caminho que Husserl busca e comandaraacute ateacute em suas uacuteltimas obras a sua
concepccedilatildeo de fenomenologia eacute uma via meacutedia entre esses dois escolhos como
pensar segundo a sua natureza e em cada uma de suas nuanccedilas ndash e portanto sem
jamais ultrapassaacute-los ndash os dados da experiecircncia em sua totalidade Todo o
fenocircmeno e nada mais que o fenocircmeno poder-se-ia dizer O postulado que funda
tal empresa eacute que o fenocircmeno estaacute penetrado no pensamento de logos e que por
sua vez o logos se expotildee e soacute se expotildee no fenocircmeno Apenas sob essa condiccedilatildeo
eacute possiacutevel uma fenocircmeno-logiardquo (DARTIGUES 1973p20)
Aluno de Brentano Husserl ainda radicaliza a teoria da intencionalidade de seu
professor e natildeo mais considera que a consciecircncia se dirija pelo ato intencional agraves
representaccedilotildees empiacutericas da consciecircncia mas agrave objetividade das proacuteprias coisas
detectaacutevel no ato expressivo Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas Husserl apresenta a consciecircncia
como sempre ldquovoltada ardquo ou seja como uma consciecircncia intencional superando natildeo soacute
a noccedilatildeo de consciecircncia como o lsquolugarrsquo das representaccedilotildees que devem ser organizadas por
15 Cf AbbagnoN 2003 p436 Nesse sentido tambeacutem Cf Heidegger 2006 pp26-27
37
exemplo por aparatos internos a priori como tambeacutem qualquer orientaccedilatildeo psicologista
do conhecimento Se a fenomenologia recorre agrave psicologia eacute apenas para a investigaccedilatildeo
descritiva das vivecircncias intencionais e a psicologia descritiva na medida em que se
configura como descriccedilatildeo empiacuterica (cientiacutefica-natural) natildeo pode ser confundida com a
fenomenologia Esta ao contraacuterio mesmo repousando sobre a investigaccedilatildeo descritiva das
vivecircncias intencionais estrato mesmo da psicologia ainda assim possui como
particularidade a descriccedilatildeo pura excluindo qualquer concepccedilatildeo naturalista16
Mas afinal do que se trata nesta ldquodescriccedilatildeo purardquo Eacute na atividade compreensiva em
geral (descriccedilatildeo das vivecircncias intencionais) que Husserl buscaraacute a origem do
conhecimento na anaacutelise dos atos de constituiccedilatildeo de conhecimento dos objetos que ele
vai procurar descrever os movimentos ideais implicados em todo movimento intencional
As investigaccedilotildees gnosioloacutegicas da loacutegica pura expostas nas Investigaccedilotildees loacutegicas
querem lanccedilar as bases e fundamentos seguros como alternativas agraves teorias do
conhecimento empiristas ceacuteticas metafiacutesico-realista e psicologista pretendendo
fundamentar uma verdadeira teoria do conhecimento a partir da filosofia puramente
cientiacutefica Essa anaacutelise se realiza a partir das expressotildees levando em consideraccedilatildeo o
aspecto loacutegico da vivecircncia
ldquoA Fenomenologia analiacutetica de que o loacutegico necessita para os seus trabalhos de
preparaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo diz respeito entre outras coisas e desde logo agraves
lsquorepresentaccedilotildeesrsquo e mais precisamente agraves representaccedilotildees que satildeo expressas
Nestas complexotildees poreacutem o seu interesse primaacuterio vai para as vivecircncias que
estatildeo na funccedilatildeo de significaccedilatildeo as quais se pensam agraves lsquosimplesrsquo expressotildees No
entanto natildeo se pode descurar tambeacutem o lado linguiacutestico-sensiacutevel da complexatildeo
(aquilo que nela constitui a lsquosimplesrsquo expressatildeo) e o modo do seu entrelaccedilamento
com o ato de significar que o anima Eacute bem sabido quatildeo facilmente a anaacutelise das
significaccedilotildees costuma deixar-se guiar pela anaacutelise gramatical de um modo
completamente inadvertido Certamente que dada a dificuldade da anaacutelise direta
das significaccedilotildees seraacute bem-vindo todo e qualquer meio mesmo que imperfeito
de antecipar indiretamente os seus resultados [as significaccedilotildees que o anima] mas
mais ainda que por causa dessa ajuda positiva a anaacutelise gramatical torna-se
importante pelos enganos que traz consigo quando se substitui agrave anaacutelise
propriamente ditas das significaccedilotildeesrdquo (HUSSERL 2012p11)
16 Cf HusserlE Investigaccedilotildees Loacutegicas VolII Introduccedilatildeo sect 6- Aditamentos ndash 3ordm Aditamento
38
A anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a complexidade da vida
intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo eacute possiacutevel a partir da anaacutelise das estruturas
ideais que se apresentam nas vivecircncias da consciecircncia na forma das expressotildees
significativas E se ldquoos objetos para os quais a Loacutegica pura estaacute voltada satildeo desde logo
dados sob vestes gramaticaisrdquo (HUSSERL 2012p3) eacute porque esses dados satildeo embutidos
nas vivecircncias psiacutequicas concretas que ldquotanto em funccedilatildeo de intenccedilatildeo de significaccedilatildeo como
na do preenchimento de significaccedilatildeo () correspondem a certas expressotildees linguiacutesticas
e formam com elas uma unidade fenomenoloacutegicardquo (HUSSERL 2012p3)
O que estaacute em jogo como tarefa da fenomenologia eacute - a partir da unidade entre
intuiccedilatildeo (atividade da consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da
consciecircncia e o preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor
a unidade fenomenoloacutegica desses atos apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo
e preenchimento de significaccedilatildeo para assim encontrar suas distinccedilotildees ideais presentes na
significaccedilatildeo
ldquoDe fato sempre que se trata de conceitos juiacutezos raciociacutenios a Loacutegica pura tem
que ver exclusivamente com estas unidades ideais que denominamos aqui
significaccedilotildees e na medida em que nos esforccedilamos por extrair a essecircncia ideal das
significaccedilotildees dos seus viacutenculos psicoloacutegicos e gramaticais na medida em que
para aleacutem disso temos em vista clarificar as relaccedilotildees aprioriacutesticas de adequaccedilatildeo
agrave objetividade significativa fundadas nessa essecircncia estamos jaacute no domiacutenio da
Loacutegica purardquo(HUSSERL 2012p76)
Enquanto as ciecircncias se movem em direccedilatildeo agraves vaacuterias regiotildees de objetos na
tentativa de compreensatildeo da realidade do mundo Husserl compreende a orientaccedilatildeo
filosoacutefica como investigaccedilatildeo da possibilidade do conhecimento objetivo E nesse sentido
a filosofia de Husserl permanece nos limites de uma criacutetica ao conhecimento
transcendental sem que seu meacutetodo se comprometa com qualquer perspectiva ontoloacutegica
Natildeo porque negue a realidade externa mas porque a reflexatildeo fenomenoloacutegica segundo
Husserl deveria estar direcionada agrave anaacutelise das unidades significativas (Investigaccedilotildees
loacutegicas) e agrave descriccedilatildeo eideacutetica da consciecircncia (Ideacuteias) com o compromisso de esclarecer
a vivecircncia intencional de forma que assim fosse possiacutevel esclarecer as operaccedilotildees de toda
e qualquer consciecircncia inclusive nossa orientaccedilatildeo preacute-reflexiva natural
O vigor da ideia filosoacutefica de ciecircncia tal como elaborada por Husserl residia na
restriccedilatildeo da investigaccedilatildeo agrave coisa mesma A fenomenologia husserliana se restringiu agraves
39
coisas enquanto somos conscientes delas Portanto sem remeter-se ao primado da
autoconsciecircncia da filosofia moderna ela rompeu com a ideia de representaccedilatildeo e por
consequecircncia de adequaccedilatildeo Pois a consideraccedilatildeo a priori da consciecircncia de um sujeito no
modo de questionamento epistemoloacutegico moderno tradicional trazia consigo um
problema inerente a esta pressuposiccedilatildeo a saber a representaccedilatildeo dos elementos externos
pelo aparato interno do sujeito devia ser a cada vez avaliada em sua validade
epistemoloacutegica em sua adequaccedilatildeo agrave consciecircncia Esse problema derivado da
representaccedilatildeo eacute consequecircncia do modo de considerar o sujeito como outro frente ao
mundo A consequecircncia dessa cisatildeo eacute que as representaccedilotildees internas natildeo seriam
suficientes para confirmar a existecircncia do mundo exterior e incapazes de fornecer
elementos conclusivos acerca dos modos de acesso a esse mundo
Husserl aprendeu com Brentano a atitude de recusa a todo e qualquer pressuposto
Mesmo Brentano considerando as representaccedilotildees como uma das bases da atuaccedilatildeo
psiacutequica indica que ldquoa estrutura baacutesica do psiacutequico o que a toda vivecircncia seja inerente
algo objetual a denomina Brentano inexistecircncia intencional Intentio eacute uma expressatildeo
da escolaacutestica que significa dirigir-se a Brentano fala da inexistecircncia intencional do
objetordquo (HEIDEGGER 2006 p39) Nesse sentido a intencionalidade na fenomenologia
husserliana voltada agrave anaacutelise expressiva e natildeo agraves representaccedilotildees torna a questatildeo do
mundo interior ou exterior secundaacuteria O que estaacute em jogo eacute a orientaccedilatildeo da pesquisa pela
condiccedilatildeo do conhecimento que natildeo exclui o mundo e as orientaccedilotildees naturais A suspensatildeo
do mundo exterior na orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica deve-se ao fato de que nesse tipo de
investigaccedilatildeo natildeo se tem nada a dizer sobre ele E nesse sentido a fenomenologia
husserliana que oferece um novo vigor a filosofia do final do seacuteculo XIX apresenta
tambeacutem seu proacuteprio limite
ldquoEm verdade aquela ideia do conhecimento da essecircncia que deveria renovar o
campo do filosofar aquela anaacutelise descritiva do acircmbito imenso da lsquoconsciecircnciarsquo
que teria de anteceder todo conhecimento cientiacutefico e conter todos os seus
pressupostos a priori tinha um limite para aleacutem do qual nem mesmo a
fenomenologia poderia ultrapassar Mesmo um conhecimento fenomenoloacutegico
consumado de todas as essencialidades- dentre as quais tambeacutem se encontram no
campo moral o reino dos lsquovalores ndash natildeo poderia atingir a realidade efetiva do ente
efetivamente real a realidade efetiva da consciecircncia pensante tanto quanto a
realidade efetiva da experiecircncia que ela faz Por mais que a distinccedilatildeo entre o fato
e a essecircncia tenha demarcado o grande campo de pesquisa da fenomenologia ante
as ciecircncias particulares e liberado um trabalho metodologicamente
autoconsciente a factualidade do factual a facticidade a existecircncia natildeo se mostra
40
apenas como algo derradeiro tardio contingente determinado em termos de
conteuacutedo pela intelecccedilatildeo da essecircncia e abarcado segundo toda a sua determinaccedilatildeo
por ela Ao contraacuterio elas tambeacutem se mostram como algo primeiro algo que se
acha agrave base que natildeo pode ser alijado pelo pensamento que suporta por sua vez
todas as intelecccedilotildees da essecircnciardquo (GADAMER 2012p148)
A reduccedilatildeo fenomenoloacutegica natildeo visa reconduzir os fenocircmenos agrave unidade de um
elemento comum mas reconduzir a consciecircncia aos fenocircmenos que se datildeo por si mesmos
e na medida que assim o faz reconhece a existecircncia da base factual na qual o fenocircmeno
pode vir agrave consciecircncia e como um elefante na sala de estar natildeo pode mais ser ignorada
Em outras palavras a investigaccedilatildeo loacutegica o acesso agrave idealidade loacutegica de toda
significaccedilatildeo baseada - mas natildeo reduzida ndash nos atos das vivecircncias psiacutequicas concretas
aponta em uacuteltima instacircncia (mesmo na tentativa de desvio dessa situaccedilatildeo) para o caraacuteter
histoacuterico ou ocasional daquele que pode intencionar significaccedilotildees Mas Husserl natildeo havia
reconhecido esse problema ao diferenciar as expressotildees flutuantes das significaccedilotildees
ideais jaacute na primeira investigaccedilatildeo loacutegica17 O problema neste caso como aponta
Gadamer estaacute exatamente no agente do ato de pensamento pois a base que natildeo pode ser
afastada e que suporta as intelecccedilotildees da essecircncia estaacute necessariamente remetida agravequele
que na accedilatildeo do ato de intelecccedilatildeo eacute finito e histoacuterico ou seja a direccedilatildeo puramente teoacuterica
da fenomenologia de Husserl natildeo deixa de apontar a condiccedilatildeo histoacuterica daquele que pode
realizar qualquer teoria elemento que vai se tornar decisivo para a fenomenologia de
Heidegger
ldquoA doutrina do juiacutezo e de sua fundamentaccedilatildeo a anaacutelise claacutessica da percepccedilatildeo a
distinccedilatildeo loacutegica entre expressatildeo e significado mas sobretudo tambeacutem aquela
17 No sect26 da I Investigaccedilatildeo Loacutegica ldquoExpressotildees essencialmente ocasionais e expressotildees objetivasrdquo
Husserl analisa significaccedilotildees que podem variar de caso a caso ou significaccedilotildees variantes Ele diferencia as
ldquoexpressotildees essencialmente subjetivas e ocasionaisrdquo (por exemplo ldquoeu desejo sorte a vocecircrdquo ou ldquoisto [aqui
que vejo agora] eacute um catildeordquo) das ldquoexpressotildees objetivasrdquo nas quais o que estaacute em questatildeo eacute o teor sonoro
significativo sem necessidade de se ter agrave vista a pessoa que expressa ou a circunstacircncia da expressatildeo Desde
os paraacutegrafos iniciais da primeira investigaccedilatildeo Husserl se preocupa em indicar que a palavra possui ldquofunccedilatildeo
de significaccedilatildeordquo isso quer dizer que a significaccedilatildeo natildeo eacute sustentada pela palavra mas que ela remete a
significaccedilatildeo agrave coisa mesma e nesse sentido para Husserl a ocasionalidade da expressatildeo natildeo prejudica a
unidade ideal de cada uma das expressotildees Contudo o autor natildeo deixa de reconhecer a esfera das expressotildees
ocasionais referidas ao sujeito e sua especificidade como falante identificadas por determinaccedilotildees como
aqui laacute ontem amanhatilde e ainda construccedilotildees expressivas com artigos definidos Essas expressotildees trazem a
referecircncia ao proacuteprio falante e agrave sua situaccedilatildeo ldquode tal maneira que a significaccedilatildeo autecircntica da palavra se
constitui pela primeira vez com base na respectiva representaccedilatildeo desse lugar Por um lado a significaccedilatildeo
eacute sem duacutevida genericamente conceitual porquanto aqui denomina em geral um lugar enquanto tal mas
a este geral junta-se a representaccedilatildeo direta do lugar variando de caso para caso que sob dadas
circunstacircncias do discurso eacute apontada atraveacutes desta representaccedilatildeo conceitual indicativa do aqui e lhe estaacute
subordinadardquo (HUSSERL 2012 p71)
41
descriccedilatildeo incomparavelmente exata e penetrante da consciecircncia interna do tempo
na qual precisaria se construir todo sentido de duraccedilatildeo e de validade atemporal ndash
todos esses eram temas fenomenoloacutegicos de Husserl que emergiram de um
intuito fundamental puramente teoacuterico e que estavam cindidos por um hiato
ontoloacutegico do ponto de partida de Heidegger da experiecircncia pragmaacutetica da vida
da percepccedilatildeo dirigida pelo significado praacutetico do ente agrave matildeo da temporalidade
do ser-aiacute a temporalidade essa que se tomava como movimento da
existecircnciardquo(GADAMER 2012 p154)
Desse modo Heidegger busca um acesso agrave mostraccedilatildeo dos fenocircmenos a partir da
temporalidade existencial do homem e assim compreender como a significaccedilatildeo de todo
e qualquer ente estaacute remetida agrave facticidade (Faktizitaumlt) daquele ente em que algo como
um fenocircmeno pode vir ao encontro
A partir desta breve apresentaccedilatildeo vamos investigar no proacuteximo capiacutetulo (1) A
criacutetica feita por Heidegger a essas trecircs tentativas de superaccedilatildeo da crise da filosofia no
seacuteculo XIX a) a posiccedilatildeo essencialmente teoacuterica da filosofia dos valores e sua
impossibilidade de se apresentar como filosofia originaacuteria b) ao primado da consciecircncia
em Husserl c) a determinaccedilatildeo metodoloacutegica (teoacuterica) da hermenecircutica de Dilthey
Tentaremos compreender (2) como essa problemaacutetica da virada do seacuteculo XIX para o
seacuteculo XX forneceu os princiacutepios que motivaram o pensamento heideggeriano agrave busca
da filosofia como ciecircncia originaacuteria e a partir da anaacutelise dos limites das ditas teorias a
questatildeo do sentido do conhecimento se mostra articulada com outra questatildeo ainda mais
fundamental o sentido do ser e (3) como a recepccedilatildeo da fenomenologia de Husserl por
Heidegger - considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio do meacutetodo fenomenoloacutegico
como indicativo-formal - evidencia a imersatildeo de todo significado em um contexto
hermenecircutico historicamente dado
42
Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica
Mas a vida captada em sua forma irredutiacutevel jaacute sem ornato ou comentaacuterio meloacutedico vida a que aspiramos como paz no cansaccedilo (natildeo a morte) vida miacutenima essencial um iniacutecio um sono
menos que terra sem calor sem ciecircncia nem ironia o que se possa desejar de menos cruel a vida em que o ar natildeo respirado mas me envolva () Natildeo o morto nem o eterno ou o divino apenas o vivo o pequenino calado indiferente e solitaacuterio vivo Isso eu procuro (Vida Menor Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
No capiacutetulo anterior indicamos que o desenvolvimento das ciecircncias positivas
particulares no final do seacuteculo XIX emerge a discussatildeo acerca do sentido e possibilidade
do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo buscou uma filosofia
propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana a autonomia da filosofia
frente agrave ciecircncia positiva E a contribuiccedilatildeo de Dilthey cujo pensamento mesmo imerso
nas exigecircncias positivistas de seu tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda
interpretaccedilatildeo e apresenta o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico
Acreditamos que percorrendo esse caminho podemos compreender no presente capiacutetulo
como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere Heidegger no interior da referida
discussatildeo pelo sentido do conhecimento18 Mas ao mesmo tempo tentaremos mostrar
18 A inserccedilatildeo de Heidegger na discussatildeo pelo sentido do conhecimento que apontamos aqui eacute diferente da
proposta de Crowell (2001) Grosso modo o argumento central de Crowell que atravessa todo o livro eacute a
negaccedilatildeo de uma ruptura radical da abordagem hermenecircutica de Heidegger ndash inclusive no projeto da
ontologia fundamental de Ser e Tempo - frente agrave fenomenologia transcendental de Husserl Crowell
reconhece que os dois projetos natildeo satildeo idecircnticos no entanto no interior do desenvolvimento de seu
pensamento Heidegger teria dado certa continuidade ao projeto husserliano na medida em que ainda pensa
no caraacuteter cientiacutefico da filosofia fenomenoloacutegica (ver pp 129-132) Nossa intenccedilatildeo natildeo eacute travar uma
polecircmica com Crowell pois perderiacuteamos a centralidade do tema de nossa dissertaccedilatildeo Sobre aquele tema
mais especiacutefico conferir tambeacutem Gadamer Verdade e Meacutetodo [260] que faz referecircncia a ele dizendo que
a problemaacutetica de Ser e Tempo natildeo escapa por completo agrave reflexatildeo transcendental Natildeo temos duacutevida de
que Heidegger estaacute comprometido com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do sentido do
conhecimento na medida em que teve profundo contato natildeo soacute com o pensamento neokantiano ndash sobretudo
atraveacutes de Rickert - mas tambeacutem com a fenomenologia de Husserl Ora ambas as correntes estavam
43
como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva (considerando o modo de concepccedilatildeo
originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal) e a introduccedilatildeo do elemento
hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com Heidegger a pergunta
fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do conhecimento e passou a
ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto o argumento central de
nosso segundo capiacutetulo eacute que a abordagem hermenecircutica de Heidegger que se daacute no
interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do
conhecimento ao sentido do ser
Aqui nos eacute necessaacuteria uma breve consideraccedilatildeo Eacute puacuteblica a preocupaccedilatildeo filosoacutefica
de Heidegger com a ontologia jaacute desde seu contato com o livro de Brentano Percurso
descrito pelo proacuteprio autor em Meu caminho para a fenomenologia (Mein Weg in die
Phaumlnomenologie 1963)
ldquoA partir de algumas indicaccedilotildees extraiacutedas de revistas filosoacuteficas tinha averiguado
que o modo de pensar de Husserl fora bastante influenciado por Franz Brentano
cuja tese de doutoramento intitulada Da muacuteltipla significaccedilatildeo do ente em
Aristoacuteteles (1862) tinha sido justamente desde 1907 o guia e o criteacuterio das
minhas primeiras e desajeitadas tentativas de penetrar na filosofia De uma forma
bastante imprecisa o que me movia era a seguinte reflexatildeo lsquose o ente se diz com
significados muacuteltiplos qual seraacute entatildeo o significado fundamental e condutor O
que significa serrsquordquo (HEIDEGGER 2009 p3)
Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido
de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a
teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo
do sentido de ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir
da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para
uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no
curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER (GA20) 2006 p122)19
o elemento hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave
profundamente engajadas com o problema do conhecimento Nosso argumento central ndash defendido no
primeiro capiacutetulo ndash eacute o de que acontece uma virada A abordagem hermenecircutica de Heidegger faz mudar
a questatildeo pelo sentido do conhecimento para a questatildeo do sentido do ser dos entes em geral Revelando
assim o caraacuteter derivado (de uma situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento Cf STEIN E
2008 4ed pp21-30 19 ldquoLa pregunta por el ser surge de la criacutetica inmanente al curso da la propia investigacioacuten
fenomenoloacutegicaresponder en parte a ella constituye el verdadeiro assunto de estas leccionesrdquo opcit p122
44
fenomenologia que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos
fenocircmenos em seu ser Seraacute essa a direccedilatildeo de nosso capiacutetulo
Nele ainda natildeo entraremos na obra central de nosso trabalho abordaremos algumas
preleccedilotildees entre os anos de 1919 e 192520 para expor como a partir da discussatildeo acerca
do sentido do conhecimento e do lugar proacuteprio agrave filosofia Heidegger se posiciona frente
agraves tentativas de pensamento dos Neokantianos de Dilthey e de Husserl Nossa intenccedilatildeo
natildeo eacute interpretar as referidas preleccedilotildees como processos evolutivos de pensamento de
nosso autor como que para esclarecer em termos de causa e efeito a publicaccedilatildeo posterior
ldquomais madurardquo de Ser e Tempo Mas antes destacar como as questotildees desses textos
acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a problemaacutetica cujo
desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927
I - Os limites da filosofia dos valores
No primeiro semestre do poacutes-guerra num contexto de recuperaccedilatildeo da
normalidade da vida cotidiana que obviamente se estendia ao ensino universitaacuterio ocorre
a preleccedilatildeo A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo (GA5657) tiacutetulo
uma das primeiras liccedilotildees do jovem professor em Friburgo em 1919 as quais pretendiam
desenvolver e solucionar parcialmente a ideia de ciecircncia que persegue uma posiccedilatildeo
metodoloacutegica genuiacutena natildeo desfigurada ou seja natildeo afetada por nenhuma teoria e livre
dos prejuiacutezos herdados Para tanto exigia-se voltar agrave esfera da simples consciecircncia
imediata da vida
ldquoA ideia cientiacutefica perseguida eacute tal que uma vez alcanccedilada uma posiccedilatildeo
metodoloacutegica verdadeiramente genuiacutena somos forccedilados a sair e dar um passo
aleacutem de noacutes mesmos para voltar metodologicamente naquela esfera que sempre
permanece alheia a problemaacutetica da ciecircncia que se pretende fundarrdquo21
(HEIDEGGER (GA5657) 2005p 3)
20 HEIDEGGER GA17 GA 61 GA63 GA 5657 e GA62 As traduccedilotildees utilizadas encontram-se na
bibliografia ao final do trabalho 21 ldquoLa idea cientiacutefica que se persigue es de tal naturaleza que una vez alcanzamos una posicioacuten
metodoloacutegica realmente genuina nos vemos obligados a salir y dar un paso maacutes allaacute de nosotros mismos
para volver metodoloacutegicamente sobre aquella esfera que siempre permanece extrantildea a la problemaacutetica maacutes
propia de la ciencia que se pretende fundarrdquo Opcitp3
45
Essa transformaccedilatildeo do meacutetodo natildeo eacute algo arbitraacuterio ou advindo de uma posiccedilatildeo
filosoacutefica mas ldquose evidencia como uma necessidade que se funda na natureza objetiva do
problema como tal e que responde agrave especiacutefica constituiccedilatildeo dos problemas da ciecircncia em
geralrdquo22 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p3) A ciecircncia e seus modelos teoacutericos
irrompem na consciecircncia imediata da vida e a transformam na medida em que trazem
uma nova atitude da consciecircncia a qual se desenvolve no caraacuteter dinacircmico e moacutevel da
vida do espiacuterito ldquoContudo essa irrupccedilatildeo da ideia de ciecircncia no contexto da consciecircncia
natural da vida soacute se daacute em um sentido primordial e radical no marco de uma filosofia
entendida nos termos de ciecircncia originaacuteriardquo23 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p4)
Aqui eacute possiacutevel observar natildeo apenas o mesmo vocabulaacuterio husserliano mas
tambeacutem a mesma tarefa reconduzir a filosofia ao seu lugar de ciecircncia originaacuteria
diferenciando-se dos outros tipos de ciecircncias (biologia fiacutesica psicologia histoacuteria
antropologia etc) Como indica Jeacutesus Adriaacuten Escudero em sua nota de apresentaccedilatildeo agrave
traduccedilatildeo no texto de 1919 eacute possiacutevel observar a linguagem filosoacutefica dos Neokantianos
de Baden (Windelband e Rickert) de Natorp a linguagem fenomenoloacutegica de Husserl e
talvez as primeiras formulaccedilotildees de uma linguagem proacutepria por exemplo Welten
(mundiar) ou das Wie (O como) Mas para noacutes o decisivo eacute notar que se os princiacutepios
que motivam essa investigaccedilatildeo inserem Heidegger no debate de sua eacutepoca (no contexto
da busca de uma filosofia propriamente cientiacutefica) poreacutem no curso de seu pensamento e
na anaacutelise das posiccedilotildees filosoacuteficas que intentam o mesmo objetivo a abordagem da
filosofia como ciecircncia originaacuteria recoloca a problemaacutetica no aspecto propriamente
hermenecircutico e natildeo teoacuterico da vida Se a filosofia eacute ciecircncia originaacuteria eacute a partir desse
aspecto primaacuterio que ela deve se movimentar
Em A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo o modo de
reconduccedilatildeo a essa originariedade jaacute natildeo obedeceraacute aos mesmos moldes da fenomenologia
husserliana Jaacute nessa primeira liccedilatildeo Heidegger nos propotildee uma reconduccedilatildeo da filosofia
(ao seu lugar basilar de toda e qualquer ciecircncia teoacuterica e derivada) que eacute a reconduccedilatildeo agrave
22 ldquomaacutes bien se evidenciaraacute como una necesidad que se funda en la naturaleza objetiva del problema como
tal y que responde a la especiacutefica constitucioacuten de los problemas de la ciencia en generalrdquo Op cit p3 23 ldquoSin embargo esta irrupcioacuten de la idea de ciencia en el contexto de la conciencia natural de la vida soacutelo
se da en un sentido primordial y radical en el marco de una filosofiacutea entendida en teacuterminos de ciencia
originariardquo Opcitp4
46
vida humana na sua imediatidade como fenocircmeno primaacuterio e fundamental Mesmo que
natildeo estejam aiacute desenvolvidas eacute claro as posiccedilotildees de Ser e Tempo como por exemplo o
ldquoser-em-o mundo em geral como constituiccedilatildeo fundamental do Daseinrdquo teses expostas e
desenvolvidas principalmente nos sect12 e 13 da obra de 1927 jaacute era possiacutevel encontrar
alguns elementos da hermenecircutica da facticidade Em 1919 a direccedilatildeo dada a uma filosofia
era a de que devia ocupar-se da vida e assim a proacutepria renovaccedilatildeo da universidade naquele
contexto de reconstruccedilatildeo do poacutes-guerra ldquoimplica[va] um renascimento da autecircntica
consciecircncia cientiacutefica e de seus laccedilos com a vidardquo24 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p
5) Indicaccedilatildeo que se articula com as liccedilotildees posteriores do autor mas que ganha seu
esclarecimento radical em 1923 no Relatoacuterio Natorp na medida em que a apropriaccedilatildeo da
filosofia aristoteacutelica por Heidegger mostra que a vivecircncia e sua relaccedilatildeo de sentido com
todo ente ocorre na ocupaccedilatildeo praacutetica como condiccedilatildeo primaacuteria de conhecimento com o
mundo condiccedilatildeo essa que coincide com a situaccedilatildeo hermenecircutica de toda ontologia
Antes de expormos as linhas gerais do desenvolvimento do texto eacute necessaacuterio
tentar esclarecer o que Heidegger quer dizer com a expressatildeo ldquoconcepccedilatildeo de mundordquo
(Weltanschauung) Para a filosofia segundo nosso autor visatildeo de mundo cosmovisatildeo
ou concepccedilatildeo de mundo natildeo satildeo termos que funcionam como uma direccedilatildeo de
comportamento no interior do mundo direccedilatildeo essa justificada desenvolvida e capaz de
orientar os seres humanos Tambeacutem natildeo oferecem uma visatildeo teoacuterica geral da histoacuteria e
da realidade a partir da qual as ciecircncias pudessem desenvolver-se Assumindo uma
perspectiva bem geral esses satildeo os problemas das filosofias de Windelband e Rickert (e
em certa medida tambeacutem os de Dilthey) contra os quais Heidegger vai se opor nessa
liccedilatildeo Pois o que aiacute estaacute em jogo natildeo eacute a postulaccedilatildeo teoacuterica do que eacute a vida histoacuterica mas
a compreensatildeo do acircmbito fundamental da realidade imediata da vida que proporciona
algo como ldquovisatildeo de mundordquo E desse modo a relaccedilatildeo entre ldquofilosofiardquo e o ldquoproblema
da concepccedilatildeo de mundordquo na conjunccedilatildeo expressa ldquoerdquo natildeo significa a relaccedilatildeo de duas
esferas diferentes mas sim o mesmo acircmbito pois a concepccedilatildeo de mundo potildee em
evidecircncia a natureza e a busca da filosofia ldquoconcepccedilatildeo de mundo como tarefa da
24 ldquoLa renovacioacuten de la universidad implica un renacimiento de la auteacutentica conciencia cientiacutefica y de sus
lazos con la vidardquo Opcitp5
47
filosofia quer dizer uma consideraccedilatildeo histoacuterica da maneira em que a filosofia resolveu
em cada caso esta tarefardquo25 (HEIDEGGER (GA5657) 2005p9)
Como sugere a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Heidegger considera que a
fundamentaccedilatildeo sem preconceitos da filosofia como ciecircncia originaacuteria deve desenvolver-
se a partir de um processo metodoloacutegico ldquoA ideia de ciecircncia exige implicitamente um
desenvolvimento metodoloacutegico dos problemas e nos coloca a tarefa da explicaccedilatildeo
preliminar do verdadeiro problema [que nos ocupa]26rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005
p6) Essa explicaccedilatildeo se desenvolve natildeo como hipoacutetese a ser demonstrada mas a partir
da anaacutelise das filosofias precedentes e de suas preconcepccedilotildees que podem distorcer o tema
da investigaccedilatildeo como elas se aproximaram da vida e como se relacionam com a noccedilatildeo
de ciecircncia
Como mostramos anteriormente jaacute na escola de Baden influenciado pela filosofia
dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade dos juiacutezos
cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de conciliar
ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) Para a escola de Baden as
leis naturais levam agrave explicaccedilatildeo mas eacute a norma de um valor ideal a condiccedilatildeo de um
pensamento verdadeiro Rickert retoma as consideraccedilotildees de Windelband e potildee o
problema em uma base filosoacutefica radical como instrumento metodoloacutegico Entre os sectsect
de 6 e 9 do texto A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo jaacute esboccedilando
algumas consequecircncias problemaacuteticas Heidegger expotildee os elementos principais das
teorias desses autores E se pergunta se aquele meacutetodo que tem a pretensatildeo de clarificar
a relaccedilatildeo entre filosofia e visatildeo de mundo poderia se tornar um meacutetodo seguro para a
realizaccedilatildeo da filosofia como ciecircncia originaacuteria A partir do sect 10 Heidegger inicia a criacutetica
propriamente dita ao meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico do Neokantismo de Baden Um dos alvos
de sua investigaccedilatildeo foi como a ldquodoaccedilatildeo idealrdquo elemento central do meacutetodo na medida
em que eacute o conteuacutedo com pretensatildeo de necessidade e universalidade dos juiacutezos acaba por
revelar o desconhecimento da problemaacutetica acerca da ciecircncia originaacuteria por essa escola
Para tanto Heidegger faz ldquoa pergunta decisiva quais satildeo as formas e normas necessaacuterias
25 ldquoConcepcioacuten del mundo como tarea de la filosofiacutea es decir una consideracioacuten histoacuterica de la manera en
que la filosofiacutea ha resuelto en cada caso esta tareardquo Opcitp9 26 ldquoLa idea de ciencia exige impliacutecitamente un desarrollo metodoloacutegico de los problemas y nos plantea la
tarea de una explicacioacuten preliminar del verdadero problema [que nos ocupa]rdquo Opcit p6
48
que permitem ao pensamento alcanccedilar a validez universal e assim cumprir o propoacutesito
da verdade27rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p50)
A anaacutelise eacute feita em dois momentos a) Consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo b)
aplicaccedilatildeo do meacutetodo
Para a consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo o importante eacute delinear o aspecto
fundamental que sustenta seus paracircmetros Heidegger aponta que para a escola de Baden
as determinaccedilotildees necessaacuterias do pensamento satildeo aquelas que configuram o pensamento
agrave finalidade ideal (validez universal) como condiccedilatildeo de verdade pois o pensamento com
valor deve responder a um dever-ser Pois bem de posse desse elemento basilar eacute na
aplicaccedilatildeo do meacutetodo que se revelaratildeo os problemas
A aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico consiste em a partir do material
fornecido pelos processos psiacutequicos dirigir a visatildeo ao aspecto ideal do pensamento e a
partir daiacute determinando o proacuteprio material ordenando seus elementos em funccedilatildeo de seu
aspecto ideal Portanto ldquoO nuacutecleo de todo o meacutetodo baseia-se no ideal do pensamento
mais precisamente em trazer agrave presenccedila a doaccedilatildeo do ideal28rdquo (HEIDEGGER (GA5657)
2005 p51) Em suma o ideal eacute normativo e dirige a consciecircncia agrave finalidade do
pensamento
ldquoEstamos aqui perante o mesmo problema da circularidade O meacutetodo criacutetico-
teleoloacutegico afirmaria poder determinar o ideal do pensamento isto eacute a verdade
a partir dos pensamentos verdadeiros no entanto o que tenho ante mim satildeo
pensamentos verdadeiros (ocorrecircncias factuais no mundo) mas natildeo a verdade
pois esta eacute um ideal Por outro lado para ter pensamentos verdadeiros ante mim
eu preciso selecionar entre os pensamentos aqueles que satildeo verdadeiros o que
novamente eu soacute posso fazer se jaacute tenho de antematildeo o ideal a verdaderdquo
(RABELO 2013 p28)
A partir daiacute em seu estilo muitas vezes categoacuterico Heidegger demonstra ser
supeacuterfluo o sentido do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e o acusa de em uacuteltima instacircncia nem
mesmo conseguir esclarecer seus pressupostos deixando obscuras questotildees como ldquoa
doaccedilatildeo ideal possibilita uma relaccedilatildeo de apreciaccedilatildeo e de seleccedilatildeo com o material dado mas
27 ldquoAhora surge la pregunta decisiva iquestcuaacuteles son las formas y normas necesarias que permiten al
pensamiento alcanzar la validez universal y cumplir asiacute con el fin de la verdadrdquo Opcitp50
28 ldquoEl nuacutecleo de todo el meacutetodo descansa en el ideal del pensamiento con mayor precisioacuten en traer a la
presencia la donacioacuten del idealrdquo Opcitp51
49
como trago agrave minha consciecircncia o ideal de pensamentordquo ldquoo que significa validez
universal para esse pensamentordquo ldquoO que significa ser verdadeiro para o pensamento
para que ele seja universalmente vaacutelidordquo Nas palavras de nosso autor
ldquoA anaacutelise estrutural do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico mostra que este meacutetodo
pressupotildee em seu sentido mais proacuteprio e como condiccedilatildeo de sua proacutepria
possibilidade justamente aquilo que deve alcanccedilar Natildeo pode encontrar em si
mesmo seu proacuteprio fundamento posto que o ideal jaacute tem que estar dado como
criteacuterio de valoraccedilatildeo criacutetica da norma para levar a cabo a tarefa impliacutecita no
meacutetodordquo29 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p52)
Se a anaacutelise da natureza e aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico fizeram
despontar a primeira criacutetica acerca de sua impossibilidade Heidegger aprofunda sua
criacutetica tendo em vista o aspecto central de sua liccedilatildeo E portanto aponta o
desconhecimento acerca da problemaacutetica da ciecircncia originaacuteria por essa escola
ldquoJaacute vimos que o movimento do meacutetodo mais exatamente a implementaccedilatildeo do
mesmo inclui o ter presente o ideal o fim o dever-ser O ideal tem
evidentemente um conteuacutedo umas determinaccedilotildees substantivas Contudo eacute um
ideal natildeo eacute um conteuacutedo real e efetivo senatildeo um modo de dever-ser Frente a
todo ser o caraacuteter de obrigatoriedade [inerente ao dever-ser] encerra o momento
da idealidade e da validez supra-empiacuterica Assim pois o conceito do meacutetodo
teleoloacutegico pressupotildee algo mais essencial e algo essencialmente diferente a
doaccedilatildeo do dever ser e se tratando do dever absoluto entatildeo falariacuteamos da
objetividade originaacuteriardquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p53)30
A partir da constataccedilatildeo dessas implicaccedilotildees do meacutetodo Heidegger pergunta qual
eacute o correlato objetivo do dever-ser Em outras palavras qual sua orientaccedilatildeo vital Isso
permanece obscuro e mais ainda que a inclusatildeo do elemento do dever-ser no meacutetodo
aparentemente natildeo se mostre como um vieacutes meramente teoacuterico (na medida em que se
29 ldquoEl anaacutelisis estructural del meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico muestra que este meacutetodo presupone en su sentido
maacutes propio y como condicioacuten de su propia posibilidad justamente aquello que debe conseguir No puede
encontrar en siacute mismo su propio fundamento puesto que el ideal ya tiene que estar dado como criterio de
valoracioacuten criacutetica de la norma para llevar a cabo la tarea impliacutecita en el meacutetodordquo Opcitp52 30 ldquoYa vimos que la puesta en marcha del meacutetodo maacutes exactamente la implementacioacuten del mismo incluye
el tener presente el ideal el fin el deber-ser El ideal tiene evidentemente un contenido unas
determinaciones sustantivas Sin embargo es un ideal no es un contenido real y efectivo sino un modo del
deber- ser Frente a todo ser el caraacutecter de obligatoriedad [inherente al deber-ser] encierra el momento de
la idealidad y de la validez supraempiacuterica Asiacute pues en el concepto del meacutetodo teleoloacutegico se presupone
algo esencialmente maacutes y algo esencialmente diferente la donacioacuten del deber-ser y si se tratara del deber
absoluto entonces hablariacuteamos de la objetualidad originariardquo Opcitp53
50
trata da razatildeo praacutetica) natildeo eacute possiacutevel responder agrave demanda necessaacuteria de uma ciecircncia
originaacuteria pois eacute inconciliaacutevel com a urgecircncia da vida faacutetica
Nesse sentido nos parece que na filosofia criacutetica-transcendental de Rickert o
acesso aos elementos decisivos do meacutetodo em uacuteltima instacircncia eacute realizado a partir das
teorias das ciecircncias positivas Entatildeo a filosofia estaacute obrigada a se posicionar frente agraves
teorias dessas ciecircncias e natildeo propriamente a partir da orientaccedilatildeo vital O
desconhecimento acerca da filosofia como ciecircncia originaacuteria se torna aqui patente pois
ao se revelar que satildeo as teorias dessas ciecircncias que fornecem os elementos para os juiacutezos
valorativos relacionados ao dever-ser a filosofia se torna delas dependente e parece nelas
encontrar ateacute mesmo sua condiccedilatildeo de possibilidade
Heidegger ainda aponta em sua criacutetica um problema que decorre da tentativa de
estabelecer uma relaccedilatildeo entre valor judicativo e dever-ser Para ele na vivecircncia imediata
da vida as relaccedilotildees valorativas natildeo encontram a menor correspondecircncia com o dever-ser
Ouccedilamos as suas palavras
ldquoPela manhatilde entro em meu estuacutedio o sol banha meus livros etc estou alegre
Esta alegria natildeo responde em nenhum caso a um dever-ser A lsquoalegriarsquo como tal
natildeo se oferece a mim em uma vivecircncia marcada pelo dever-ser Devo trabalhar
devo sair para uma caminhada duas motivaccedilotildees duas possiacuteveis razotildees que em
si mesmas natildeo formam parte de meu sentimento de alegria senatildeo que o
pressupotildee Existe portanto um tipo de vivecircncia em que me sinto alegre em que
me daacute algo que tem valor como talrdquo 31(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)
A experiecircncia do valor eacute intransitiva natildeo um juiacutezo mas em seu sentido imanente
ldquoo meacutetodo teleoloacutegico implica indubitavelmente o momento da vivecircncia do dever-serrdquo
(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)32
Ateacute agora o que foi analisado foi o significado do meacutetodo criacutetico- teleoloacutegico e
suas implicaccedilotildees que apontaram para a existecircncia de fenocircmenos mais originaacuterios que
passam desapercebidos aos defensores desse meacutetodo E se o meacutetodo loacutegico-teleoloacutegico
31 ldquoiquestPero se me da todo valor como un deber-ser Evidentemente no Yo experimento las relaciones
valorati- vas sin que intervenga el maacutes miacutenimo momento del deber-ser Por la mantildeana entro en mi estudio
el sol bantildea mis libros etceacutetera estoy alegre Esta alegriacutea no responde en ninguacuten caso a un deber-ser La
laquoalegriacutearaquo como tal no se me da en una vivencia marcada por el deber- ser Debo trabajar debo salir de
paseo dos motivaciones dos posibles razones que en siacute mismas no forman parte de mi sentimiento de
alegriacutea sino que lo pre-supo- nen Existe por tanto un tipo de vivencia en el que me siento alegre en el
que se me da algo que tiene valor como talrdquo Opcitp55 32 ldquoEl meacutetodo teleoloacutegico implica indudablemente el momento de la vivencia del deber-serrdquo Opcitp55
51
estabelece a relaccedilatildeo necessaacuteria entre valor e dever-ser acarretando todas as possiacuteveis
criacuteticas jaacute expostas Heidegger natildeo deixa de reconhecer
ldquoUma coisa eacute evidente Rickert detectou um fenocircmeno significativo quando
identificou o objeto do conhecimento como um dever-ser e o desvencilhou dos
mecanismos psiacutequicos o fenocircmeno da motivaccedilatildeo um fenocircmeno que encontra
seu significado primaacuterio tanto nos problemas do conhecimento como em outros
acircmbitos Uma coisa eacute declarar-algo-como-valor [Fuumlr-Wert-Erklaumlren] e outra
muito distinta eacute tomar-algo-por-um-valor [Wertnehmen] Este tomar-algo-como-
um-valor se pode caracterizar como um fenocircmeno originaacuterio como uma
constituiccedilatildeo da vida em si e para si no entanto o declarar-algo-como-um valor
foi visto como algo derivado algo fundado na esfera teoreacutetica e esse mesmo
fenocircmeno teoreacutetico eacute um elemento constitutivo da vida vivida em si mesma
Pressupotildee levantar o veacuteu teoreacutetico do caraacuteter valorativo como tal A estratificaccedilatildeo
precisa desse fenocircmeno natildeo nos interessa nesse momentordquo
(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p57)33
O que estaacute em jogo aqui eacute a relaccedilatildeo entre verdade e valor pois para Rickert
ldquodistinto do processo psiacutequico real uma ocorrecircncia natural que poderia ser tratada
causalmente destaca-se a legalidade ideal do pensar verdadeiro que se deve obedecer
uma vez que se queira o ideal da verdaderdquo (RABELO 2013 p26) Desse modo algo eacute
capaz de ser analisado como verdadeiro atraveacutes dos valores atribuiacutedos teoricamente
(atraveacutes da anaacutelise do juiacutezo) ao seu material Ou seja a verdade eacute garantida na anaacutelise
judicativa que declara-algo-como-valor Por exemplo a distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na
realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor (Wert) segundo Rickert levaria
a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo de conceitos (Begriffsbildung)
e que natildeo se trata de um conhecimento no campo ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto
pelo conceito determinado de maneira formal no espaccedilo loacutegico-axioloacutegico Portanto
ldquoUma coisa eacute ldquoexplicar por valorrdquo (fuumlr-Wert-erklaumlren) outra eacute ldquotomar-por-valorrdquo
(wertnehmen) O primeiro eacute uma construccedilatildeo teoreacutetica o segundo uma vivecircncia
Estaacute em jogo aqui uma diferenccedila que se insinua na liacutengua alematilde a partir da
33 ldquoRickert detectoacute un fenoacutemeno significativo cuando identificoacute el objeto del conocimiento como un deber-
ser y lo deslindoacute de los mecanismos psiacutequicos el fenoacutemeno de la motivacioacuten un fenoacutemeno que encuentra
su significado primario tanto en el problema del conocimiento como en otros aacutembitos Una cosa es declarar-
algo-como-un-valor [Fuumlr-Wert- Erklaumlren] y otra muy distinta tomar-algo-por-un-valor [Wertnehmen]
Este tomar-algo-por-un-valor se puede caracterizar como un fenoacutemeno originario como una constitucioacuten
de la vida en y para siacute en cambio el decla- rar-algo-como-un-valor se ha de ver como algo derivado como
algo fundado en la esfera teoreacutetica9 y ese mismo fenoacutemeno teoreacutetico es un elemento constitutivo de la vida
vivida en siacute misma Presupone levantar el velo teoreacutetico del caraacutecter valorativo como tal La estratificacioacuten
precisa de este fenoacutemeno no nos interesa en estos momentosrdquo Opcitp57 Essa estratificaccedilatildeo a qual
Heidegger se refere jaacute indica em suas primeiras liccedilotildees o desdobramento posterior acerca da criacutetica agrave
primazia que a filosofia oferece a teoria em detrimento da compreensatildeo praacutetica
52
expressatildeo perceber wahrnehmen literalmente tomar-por-verdadeiro No mesmo
sentido imediato em que aquilo que me aparece na percepccedilatildeo sensiacutevel eacute tomado
como estando aiacute ele mesmo sem a necessidade de uma reflexatildeo aqui quer-se
saber se algo vivenciado eacute no proacuteprio vivenciar tomado como algo valoroso se
eacute experienciado enquanto valoroso ou se posteriormente lhe eacute adicionada esta
referecircncia a valoresrdquo (RABELO 2013 p27)
Desse modo para Rickert verdade e valor judicativo (teoacuterico) se comungam mas
essa comunhatildeo para Heidegger natildeo passa de uma constituiccedilatildeo metodoloacutegica externa e
derivada de uma filosofia teoacuterica Se para Rickert o tomar-algo-como-um-valor natildeo tem
ldquovalor de verdaderdquo como o declarar-algo-como-valor Para Heidegger a verdade do ser
(ser ndashverdadeiro) ou o ldquotomar-por-verdadeirordquo (a vivecircncia) independe do valor e nada
tem a ver com o dever-ser
ldquoDaacute-se o ser-verdadeiro como um valor De maneira alguma e nem se daacute no
segundo caso do juiacutezo histoacuterico [acerca da morte de Napoleatildeo I na ilha de Santa
Elena] Contudo o conteuacutedo objetivo desse juiacutezo tem a forma de um valor no
sentido de [que remete a algo] lsquohistoricamente significativorsquo um novo fenocircmeno
lsquovalorativorsquo que natildeo afeta o ser-verdadeiro como tal ao lanccedilar um papel
metodoloacutegico na constituiccedilatildeo da verdade histoacuterica O ser-verdadeiro (ἀ-λήθεια)
como tal natildeo lsquovalersquo Na alegria como alegria assumo valores na verdade
simplesmente vivo Natildeo apreendo o ser-verdadeiro na e atraveacutes de uma assunccedilatildeo
de valores34rdquo (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p58)
Essas uacuteltimas consideraccedilotildees revelam para Heidegger que o meacutetodo teleoloacutegico
estaacute impregnado de pressuposiccedilotildees pois a cada vez ldquoos fenocircmenos do dever-ser do valor
da assunccedilatildeo de um valor da pergunta se a verdade eacute um valor que descansa em uma
valoraccedilatildeo originaacuteria se fundam em uma determinaccedilatildeo valorativa que se realiza
subsequentementerdquo35 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p62) E essas pressuposiccedilotildees
trazem agrave vista o privileacutegio teoreacutetico dessa filosofia
34 ldquoiquestSe da el ser-verdadero como un valor De ninguna manera y tampoco se da en el segundo caso del
juicio histoacuterico [acerca de la muerte de Napoleoacuten I en la isla de Santa Elena] Sin embargo el contenido
objetivo de este juicio tiene la forma de un valor en el sentido de [que remite a algo] laquohistoacutericamente
significativoraquo un nuevo fenoacutemeno laquovalorativoraquo que no afecta al ser-verdadero como tal si bien juega un
papel metodoloacutegico en la constitucioacuten de la verdad histoacuterica El ser-verdadero (ἀ-λήθεια) como tal no
laquovaleraquo En la alegriacutea como alegriacutea asumo valores en la verdad como verdad simplemente vivo No
aprehendo el ser-verdadero en y a traveacutes de una asuncioacuten de valoresrdquo Opcitp58
35 ldquoAl ampliar el anaacutelisis salieron a escena nuevos presupuestos y pusieron de relieve que el meacutetodo
teleoloacutegico estaacute cargado de presuposiciones los fenoacutemenos del deber-ser de la donacioacuten del deber-ser del
valor de la asuncioacuten de un valor de la pregunta de si la verdad es un valor que descansa en uma valoracioacuten
originaria o de si se funda en una determinacioacuten valorativa que se realiza con lsquoposterioridadrsquordquo Opcitp62
53
ldquoO privileacutegio outorgado ao teoreacutetico repousa na convicccedilatildeo de que o teoreacutetico
representa o estrato baacutesico e fundamental que de alguma maneira funda todas as
esferas restantes Isso se potildee manifesto quando eacute falado por exemplo da
lsquoverdadersquo eacutetica artiacutestica ou religiosa Se diz que o teoreacutetico tem todos os demais
acircmbitos valorativos e eacute capaz de fazer isso na medida em que o teoreacutetico mesmo
se concebe como um valor Eacute necessaacuterio romper este primado do teoacuterico mas natildeo
com a finalidade de proclamar a primazia da praacutetica ou introduzir um outro
elemento que mostra os problemas a partir de uma nova perspectiva mas porque
o teoreacutetico mesmo enquanto tal remete a algo preacute -teoreacuteticordquo 36(HEIDEGGER
(GA5657) 2005 p70)
Para os neokantianos de Baden o ideal absoluto como medida da realidade
empiacuterica como condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do pensamento verdadeiro e ainda como
condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do significado histoacuterico reveste-se da transcendentalidade em
funccedilatildeo do rigor cientiacutefico Para eles o mundo do ser natildeo pode ser confundido com o
mundo do valor pois satildeo os valores como elementos transcendentais que orientam a
constituiccedilatildeo do indiviacuteduo histoacuterico de modo loacutegico A realidade - o espaccedilo ontoloacutegico ndash
estaacute condicionada agrave teoria e em uacuteltima instacircncia o proacuteprio teoreacutetico eacute concebido como
valor Inversatildeo que Heidegger detecta como propriamente afastada do acircmbito imediato
da vida e que como meacutetodo portanto natildeo pode fundar-se como ciecircncia originaacuteria
II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt37 originaacuterio
Diferentemente de Windelband e Rickert que subordinavam a verdade agrave
valoraccedilatildeo em funccedilatildeo do juiacutezo jaacute em 1919 Heidegger indicava a derivaccedilatildeo do teoreacutetico
de uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Apoacutes a investigaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-
36 ldquoAsimismo el privilegio otorgado a lo teoreacutetico reposa en la conviccioacuten de que lo teoreacutetico representa el
estrato baacutesico y fundamental que de alguna manera funda todas las esferas restantes Esto se pone de
manifiesto cuando uno habla por ejemplo de la laquoverdadraquo eacutetica artiacutestica o religiosa Se dice que lo teoreacutetico
tintildee todos los demaacutes aacutembitos valorativos y es capaz de hacer eso en la medida en que lo teoreacutetico mismo
se concibe como un valor Se ha de romper con esta primaciacutea de lo teoreacutetico pero no con el propoacutesito de
proclamar un primado de lo praacutectico o de introducir otro elemento que muestre los problemas desde una
nueva perspectiva sino porque lo teoreacutetico mismo y en cuanto tal remite a algo pre-teoreacuteticordquo Opcitp70
37 Como o verbo ldquodarrdquo em portuguecircs o ldquogebenrdquo em alematildeo pode ser utilizado como verbo bitransitivo no
sentido de dar algo a algueacutem (Ex ldquoIch gebe dir mein Buchrdquo ldquoEu te dou o meu livrordquo) Mas no caso do ldquoes
gibtrdquo eacute utilizado no sentido do verbo ldquohaverrdquo ou ldquoexistirrdquo como por exemplo ldquoEs gibt viele Woumlrter ldquoHaacute
muitas palavrasrdquo ou ldquoExistem muitas palavras) Portanto pensar num ldquoes gibtrdquo originaacuterio eacute referir-se agrave
existecircncia originaacuteria das coisas em outras palavras no modo de aparecimento do que haacute do existente em
seu sentido primaacuterio preacutevio a toda determinaccedilatildeo transitiva possiacutevel nos moldes gramaticais
54
teleoloacutegico em A ideacuteia da filosofia e o problema da visatildeo de mundo o autor apresenta
essa instacircncia primaacuteria como correlata a um ldquoes gibtrdquo originaacuterio haacute e o que haacute eacute mundo
ou melhor um dar-se mundo
Aqui reside a primeira exposiccedilatildeo de nosso argumento A abordagem hermenecircutica
de Heidegger no interior da fenomenologia foi decisiva para o acesso agrave questatildeo do sentido
do ser e no desenvolvimento da referida preleccedilatildeo esse movimento se torna patente
A criacutetica de Heidegger agrave teoria do conhecimento e agraves implicaccedilotildees dessa postura
propriamente teoacuterica em relaccedilatildeo agrave verdade conduz o autor agrave correlaccedilatildeo entre as vivecircncias
e a significaccedilatildeo fenomecircnica como cooriginaacuterias da imersatildeo num mundo que haacute se daacute
existe como mundo circundante As pressuposiccedilotildees da teoria do conhecimento e suas
postulaccedilotildees acerca do ldquosujeitordquo reverberam em uma seacuterie de problemas derivados que
nada dizem acerca das vivecircncias Assim questotildees Como eacute possiacutevel o acesso agrave realidade
exterior Em que medida minha vivecircncia subjetiva alcanccedila a vivecircncia de outro
sujeito Como passar da esfera subjetiva aos dados sensoriais do mundo Como
passar da esfera subjetiva ao conhecimento objetivo satildeo problematizaccedilotildees derivadas
da primazia teoacuterica dada pela filosofia e pelas ciecircncias que ignoram por completo que o
viver do mundo circundante natildeo eacute uma contingecircncia () somente em ocasiotildees
excepcionais estamos instalados em uma atitude teoreacutetica38 (HEIDEGGER(GA5657)
2005 p106)
Lembremos que o que estaacute em questatildeo nessa preleccedilatildeo eacute em que medida a filosofia
pode ser considerada como ciecircncia originaacuteria e qual eacute o seu modo de relaccedilatildeo com a visatildeo
de mundo Nesse sentido a filosofia se mostra como aquela ciecircncia que deve se afastar de
qualquer posiccedilatildeo preacutevia e assim dizer que o viver do mundo circundante natildeo eacute uma
contingecircncia eacute reconhecer aquilo que todo posicionamento teoacuterico quer a cada vez
afastar mas eacute em uacuteltima medida a condiccedilatildeo de possibilidade de sua proacutepria realizaccedilatildeo
teoacuterica Com outras palavras a possibilidade do conhecimento estaacute imersa em bases que
natildeo satildeo elas proacuteprias teoacutericas E nesse sentido quando uma ou outra teoria filosoacutefica
pretende investigar a possibilidade do conhecimento partindo de pressuposiccedilotildees teoacutericas
38 ldquoEl vivir del mundo circundante no es una contingencia sino que radica en la esencia de la vida en y para
siacute por el contrario soacutelo en ocasiones excepcionales estamos instalados en una actitud teoreacuteticardquo
Opcitp106
55
acaba por afundar-se em falsos problemas como ldquoa realidade do mundordquo e ldquoo acesso a
essa realidaderdquo Discussotildees vazias pois o mundo em sua realidade histoacuterica eacute o dar-se
originaacuterio e prescinde de toda e qualquer teorizaccedilatildeo
Na leitura de Heidegger o neokantismo decompotildee o acircmbito originaacuterio da
vivecircncia em conceitos teoacutericos que natildeo formam mais uma totalidade pois a
desvivifica transformando-a num objeto a-histoacuterico e portanto sem significado
O mundar (welten) soacute eacute apreensiacutevel pela visatildeo fenomenoloacutegica que ainda natildeo estaacute
contaminada pelos pressupostos teoreacuteticos que tornam essa experiecircncia uma
relaccedilatildeo objetificante () Heidegger se contrapotildee agrave metodologia teoreacutetica que
pretende objetificar e descrever as vivecircncias mas compreender e apreender as
conexotildees de significado em que jaacute se estaacute submerso A fenomenologia pretende
manifestar isso que se daacute em um soacute golpe o mundo circundante (Umweltliche)
caracteriacutestico do vivenciar primordial(WU R2010 p185)
Mas se a compartimentaccedilatildeo da realidade realizada pelas teorias filosoacuteficas recai
em discussotildees vazias e a vivecircncia primordial prescinde de conceitos teoacutericos isso natildeo
apontaria para um empirismo ou um realismo como possibilidades da filosofia A
filosofia eacute ainda busca e busca originaacuteria Nesse sentido o acesso fenomenoloacutegico ao
mundo circundante orientado pela proacutepria coisa na intuiccedilatildeo imediata eacute para Heidegger
o modo de abrir ldquocientificamenterdquo a esfera da vivecircncia resguardando a orientaccedilatildeo agrave vida
sem qualquer teoria preacutevia
O rigor da cientificidade cultivada na fenomenologia cobra sentido a partir
dessa atitude fundamental e natildeo se pode comparar com o rigor das ciecircncias
derivadas e natildeo originaacuterias Ao mesmo tempo resulta claro porque o problema do
meacutetodo joga um papel central na fenomenologia como em nenhuma outra ciecircncia
() Para o problema que nos ocupa a atitude fundamental da fenomenologia
aponta em uma direccedilatildeo decisiva natildeo construir um meacutetodo desde fora ou desde
acima natildeo idear um novo caminho teoreacutetico por meio de reflexotildees dialeacuteticasrdquo39
(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p133)
Desde o iniacutecio da preleccedilatildeo Heidegger estaacute em busca de um meacutetodo capaz de
alcanccedilar o primaacuterio que estaria na base de qualquer conhecimento Nesse sentido a
39 ldquoEl laquorigorraquo de la cientificidad cultivada en la fenomenologiacutea cobra sentido a partir de esta actitud
fundamental y no se puede comparar con el laquorigorraquo de las ciencias derivadas y no originarias Al mismo
tiempo resulta claro por queacute el problema del meacutetodo juega un papel tan central en la fenomenologiacutea como
en ninguna otra ciencia (Por esta razoacuten todo este curso gira realmente en torno a un problema
metodoloacutegico) Para el problema que nos ocupa la actitud fundamental de la fenomenologiacutea apunta en una
direccioacuten decisiva no construir un meacutetodo desde fuera o desde arriba no idear un nuevo camino teoreacutetico
por medio de reflexiones dialeacutecticasrdquo Opcit p133
56
fenomenologia como retorno agraves coisas mesmas se volta ao dar-se originaacuterio das coisas e
eacute atraveacutes delas que o meacutetodo pode vir a ser desenvolvido Ainda em 1919 natildeo foi exposta
em linhas precisas a fenomenologia como meacutetodo indicativo-formal elemento decisivo
no interior da fenomenologia-hermenecircutica de Heidegger O que iremos abordar mais
adiante
A tentativa de orientar-se pelo dado na vivecircncia pelo que eacute como eacute no mundo
circundante se afasta portanto de qualquer objetificaccedilatildeo A fenomenologia como
meacutetodo eacute a possibilidade de compreensatildeo dos significados que nos vem ao encontro no
mundo circundante e histoacuterico no qual jaacute se estaacute sempre imerso Mas se Heidegger
apresenta a fenomenologia como o meacutetodo que alcanccedila o que vem ao encontro sem
qualquer preacutevia teoria esse acesso natildeo se daacute segundo os mesmos paracircmetros de seu
mestre Husserl
Como vimos na fenomenologia husserliana o modo de aparecimento do
fenocircmeno eacute sempre uma doaccedilatildeo de significado mas o acesso aos fenocircmenos eacute sempre a
partir da anaacutelise dos atos intencionais das vivecircncias na consciecircncia Heidegger recusa o
pressuposto da consciecircncia e pretende que a doaccedilatildeo significativa seja originaacuteria da
vivecircncia imersa no mundo No uacuteltimo momento da preleccedilatildeo de 1919 o autor apresenta
o que seria cooriginaacuteria de qualquer orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica e base de qualquer
ciecircncia teoacuterica a intuiccedilatildeo hermenecircutica Assim a vivecircncia que se apropria do vivido eacute
a intuiccedilatildeo compreensiva a intuiccedilatildeo hermenecircutica () A universalidade do significado
das palavras assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia
vivida40 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 pp141-142) Ou seja a significaccedilatildeo
gramaticalmente revestida natildeo aponta para algo essencial apreendido no ato de
consciecircncia (como compreende Husserl) mas a significaccedilatildeo vivida no mundo
circundante
O princiacutepio dos princiacutepios husserlianos tudo o que se daacute originariamente na
intuiccedilatildeo [] haacute que tomaacute-lo simplesmente como se daacute (Husserl Ideen apud Heidegger
40 ldquoLa vivencia que se apropia de lo vivido es la intuicioacuten comprensiva la intuicioacuten hermeneacuteutica la
formacioacuten originariamente fenomenoloacutegica que vuelve hacia atraacutes mediante retroconceptos y que se
anticipa con ayuda de preconceptos y de la que queda excluida toda posicioacuten teoreacutetico-objetivante y
trascendente La universalidad del significado de las palabras sentildeala primariamente algo originario el
caraacutecter mundano de la vivencia vividardquo Opcitpp141142
57
(GA5657) 2005 p132) eacute dado no interior das conexotildees de significados no es gibt
originaacuterio no mundo que se daacute cooriginariamente agraves proacuteprias vivecircncias
Para Heidegger o uacutenico modo de apreender essa vivecircncia originaacuteria eacute retroceder
ao preacute-teoacuterico por uma abordagem fenomenoloacutegica que faz com que o mundar
do mundo se manifeste enquanto tal Alguns anos mais tarde isso constituiria o
nuacutecleo da ontologia fundamental na perspectiva da temporalidade cujo objetivo
de criacutetica natildeo seria mais de maneira tatildeo detida o neokantismo de Windelband e
Rickert mas a totalidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica da filosofia(WuR2010 p186)
Tendo em vista o ponto central da preleccedilatildeo aqui examinada eacute imprescindiacutevel
notar que em 1919 Heidegger estava debatendo com os problemas de seu tempo a
possibilidade do conhecimento o lugar da filosofia diante da autonomia das ciecircncias
particulares e a articulaccedilatildeo dessa problemaacutetica com a Lebensphilosophie Se ainda natildeo
haacute explicitamente a questatildeo do sentido de ser em geral a preleccedilatildeo possui elementos
decisivos para o desenvolvimento da ontologia fundamental O que queremos enfatizar eacute
como o modo de apariccedilatildeo dos fenocircmenos em seu significado prescinde de toda e qualquer
teorizaccedilatildeo Essa caracteriacutestica fundamental vai permanecer vigente nos desdobramentos
futuros do pensamento de Heidegger e vai se mostrar a cada vez mais intimamente
relacionada agrave ambiccedilatildeo heideggeriana de superar os pressupostos da tradiccedilatildeo filosoacutefica
moderna
ldquoA pergunta acerca da realidade do mundo externo deriva em parte de uma
compreensatildeo superficial da filosofia kantiana ou de outro modo de reflexotildees
colocadas por Descartes Eacute uma questatildeo que em todo momento de modo mais ou
menos expresso ocupou a teoria do conhecimento da modernidade assegurando-
se sempre contudo que naturalmente ningueacutem duvida da realidade do mundo
externo Pois o que nela sempre se daacute por suposto eacute que essa realidade essa
mundanidade do mundo eacute no fundo algo que talvez possa demonstrar-se ou
mais exatamente no caso de nos encontrarmos em condiccedilotildees ideais ao final
haviacuteamos demostrado [essa realidade] E contudo o ser-real do mundo natildeo soacute
natildeo necessita ser demosntrado nem sequer eacute algo que na falta de provas
rigorosas por isso deva ser unicamente objeto de crenccedilardquo41( HEIDEGGER
(GA20) 2006 p270)
41 ldquoLa pregunta acerca de la realidad del mundo externo se deriva en parte de uma comprensioacuten superficial
de la filosofia kantiana o mejor dicho de reflexiones que Descartes planteoacute Es uma cuestiacuteon que en todo
momento de modo maacutes o menos expreso ha ocupado a la teoriacutea del conocimiento de la modernidad
aseguraacutendose siempre no obstante de que naturalmente nadie dudara de la realidade del mundo externo
Pues lo que em ella se da por supuesto es que esa realidad esa mundanidad del mundo es em fondo algo
que quizaacute pueda demostrarse o maacutes exactamente es en caso de que nos encontraacuteramos em condiciones
ideales al final habriacuteamos demostrado Y sin embargo el ser-real del mundo no soacutelo no necessita ser
demostrado ni siquiera es algo que a falta de pruebas rigorosas por eso deba ser unicamente objeto de
creenciardquo Opcitp270
58
Assim a partir dessas consideraccedilotildees eacute possiacutevel indicar que a questatildeo do sentido
do ser em geral ou numa palavra a ldquoontologiardquo para Heidegger pode vir a ser atingida
quando se revela que a fenomenologia natildeo estaacute fundada na epistemologia (a partir da
consciecircncia) e que a hermenecircutica natildeo eacute apenas um instrumento metodoloacutegico de acesso
agrave histoacuteria em sua objetividade O que Heidegger pretende exprimir com o termo ldquointuiccedilatildeo
hermenecircuticardquo eacute a possibilidade de uma compreensatildeo imediata do mundo a qual natildeo estaacute
fundada nas vivecircncias subjetivas O es gibt originaacuterio eacute o mundo que se daacute como campo
hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Com outras palavras natildeo haacute
significados ideais eles aparecem a partir da situaccedilatildeo hermenecircutica compartilhada entre
os homens campo que chamamos de mundo e a compreensatildeo desse campo natildeo eacute
tributaacuteria das vivecircncias psiacutequicas Para tanto eacute preciso esclarecer como Heidegger supera
a consciecircncia husserliana enquanto lugar de apariccedilatildeo dos fenocircmenos e tambeacutem como a
noccedilatildeo heideggeriana de ldquointuiccedilatildeo hermenecircuticardquo pretende superar a vivecircncia psiacutequica de
Dilthey como categoria epistemoloacutegica fundamental Chegamos ao ponto onde se torna
necessaacuterio compreender mais detidamente a apropriaccedilatildeo de Heidegger da hermenecircutica
diltheyniana e da fenomenologia husserliana
II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger
Seguindo inicialmente as indicaccedilotildees expressas no primeiro curso proferido por
Heidegger em Marburg (inverno de 1923-1924) Introduccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo
fenomenoloacutegica (GA17) eacute possiacutevel observar a tentativa do autor de compreender a
fenomenologia como fenomenologia da existecircncia e assim se apropriar de maneira mais
originaacuteria da investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica
O curso se inicia com a interpretaccedilatildeo - mantida em seus principais elementos no
sect7 de Ser e Tempo - dos conceitos de fenocircmeno (φαινόμενον) e loacutegos (λόγος) em
Aristoacuteteles para assim pocircr em evidecircncia a interpretaccedilatildeo segundo a qual nos escritos do
filoacutesofo grego esses conceitos indicam a direccedilatildeo do pensamento e da investigaccedilatildeo
filosoacutefica para o ser do homem como ser-no-mundo
59
A perceptibilidade das coisas estaacute sob a condiccedilatildeo de um determinado ser deste
mundo mesmo O ser condiccedilatildeo se refere a um modo de ser do mundo mesmo Agrave
existecircncia no mundo pertence o ser subsistente do Sol justamente o que
pensamos quando afirmamos eacute de dia Desta forma falamos de um estado de
coisas que pertence ao ser do mundo mesmo Daiacute se segue que φαινόμενον natildeo
quer dizer em primeiro lugar nada mais que um destacado modo de presenccedila do
enterdquo42 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30)
Ainda seguindo a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles Heidegger diz que o conceito de
fenocircmeno na medida em que designa tudo o que mostra a si mesmo natildeo pode ser
reduzido ao que estaacute na presenccedila do dia ou seja que existem coisas que satildeo visiacuteveis na
obscuridade pois o que se mostra a si mesmo se mostra tanto na claridade como na
obscuridade43 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30) Para explicitar essa posiccedilatildeo o autor
recorre agraves categorias aristoteacutelicas essenciais do ente em ato e do ente em potecircncia (ogravev
ἐντελέχεια ogravev δύναμις) A obscuridade torna-se tambeacutem positiva a partir da
compreensatildeo dessas categorias em relaccedilatildeo ao fenocircmeno pois o ser da obscuridade
consiste em ser claridade possiacutevel44 (HEIDEGGER (GA17)2006 p31)
A originalidade do ver em Aristoacuteteles se mostra em natildeo se deixar enganar pelo
fato de que para as coisas que somente a noite deixa ver natildeo haacute nenhum nome
que as compreenda todas () O que importa eacute somente que essas coisas existam
aiacute elas satildeo vistas e sobre a base de seu conteuacutedo quiditativo tecircm a pretensatildeo de
serem tomadas por existentes Mas que falte um nome para essas coisas mostra
contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia45
(HEIDEGGER (GA17) 2006p31)
42 ldquoLa perceptibilidad de las cosas estaacute bajo la condicioacuten de un determinado ser de este mundo mismo El
ser condicioacuten se refiere a un modo de ser del mundo mismo A la existencia en el mundo pertenece el ser
subsistente del Sol justamente lo que mentamos cuando afirmamos es de diacutea De esta forma hablamos de
un estado de cosas que pertenece al ser del mundo mismo De aquiacute se sigue que φαινόμενον no quiere decir
en primer lugar nada maacutes que un destacado modo de presencia del enterdquo Op cit p30
43 ldquoEl concepto de φαινόμενον no estaacute limitado a la presencia de las cosas durante el diacutea va maacutes allaacute y
designa todo lo que se muestra em siacute mismo tanto se muestra en la claridad como en la oscuridadrdquo Op
citp30
44 ldquoEl ser de la oscuridad consiste en ser claridade posiblerdquo Opcitp31 45 ldquoLa originaridad del ver en Aristoacuteteles se muestra en que no se deja enganatilder por el hecho de que para las
cosas que soacutelo la noche deja ver no hay ninguacuten nombre que las comprenda a todas (por tanto para las
lucieacuternagas etc) () Lo que le importa es soacutelo que esas cosas existen ahiacute se las ve y sobre la base de su
contenido quiditativo tienen la pretensiacuteon de ser tomadas por existentes Pero que falte um nombre para
esas cosas muestra com todo que nuestra lengua (teoria de las categorias) es uma lengua del diacuteardquo
Opcitp32
60
Para compreendermos o que Heidegger trata nessa passagem eacute fundamental
relembrar a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica que indica algo crucial agrave nossa investigaccedilatildeo o
significado natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua
mostraccedilatildeo Para Husserl a anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a
complexidade da vida intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel a partir
da anaacutelise das estruturas ideais que se apresentam na forma das expressotildees significativas
revestidas gramaticalmente Jaacute para Heidegger parece natildeo haver uma estabilidade
significativa ideal Em outras palavras e como vimos no toacutepico anterior as significaccedilotildees
vecircm ao encontro a partir de sua mostraccedilatildeo intencionadas em meio agrave compreensatildeo
hermenecircutica do mundo circundante por isso as estruturas ideais buscadas por Husserl
a partir da atividade intencional da consciecircncia devem ser revistas em funccedilatildeo da
possibilidade hermenecircutica do mundo circundante A veste gramatical das significaccedilotildees
natildeo pode subordinar o que vem ao encontro no dar-se originaacuterio do mundo quer em
funccedilatildeo de uma linguagem que almeja a cada vez fixar categorialmente o que se mostra
quer em funccedilatildeo de qualquer idealidade essencial pressuposta E assim para Heidegger o
conceito de loacutegos em Aristoacuteteles revela um sentido mais originaacuterio
Um λόγος existe pois quando o falar eacute falar com o mundo existente Ao dizer
forno [Ofen] natildeo falo a partir de uma existecircncia [Dasein] senatildeo que mas bem
me ponho fora da existecircncia [Dasein] do mundo concreto penso algo mas para
esse pensar natildeo desempenha nenhum papel que existam fornos [Oumlfen] ou natildeo
Falar eacute um ser com o mundo eacute algo originaacuterio e se daacute antes dos juiacutezos A partir
daqui se torna compreensiacutevel o juiacutezo Na loacutegica eacute comum considerar como juiacutezos
palavras como fogo () De modo algum o λόγος implica uma pluralidade de
palavras A palavra originaacuteria eacute um nomear mas natildeo eacute um nomear de um mero
nome mas bem o dirigir-se com a fala a algo que se encontra no mundo tal como
se encontra46(HEIDEGGER (GA17) 2006 p39)
46 ldquoUn λόγος existe pues cuando el hablar es um hablar con el mundo existente Al decir lsquohornorsquo no hablo
desde una existencia sino que maacutes bien me pongo fuera de la existencia del mundo concreto miento algo
pero para este mentar no desempentildea ninguacuten papel el que haya hornos o no Hablar es un ser con el mundo
es algo originaacuterio y se da antes que los juicios A partir de aquiacute se vuelve compreensible el juicio En la
loacutegica es tradiciacuteon considerar como juicios palabras como lsquofuegorsquo (De ninguna manera se establece con
ello soacutelo la existencia [Dasein] del fuego sino tambiacuteen que la gente debe saltar de la cama) Em modo
algun el λόγος implica una pluralidad de palabras La palabra originaria era un nombrar pero no el nombrar
de un mero nombre maacutes bien el dirigirse con el habla a algo que se encuentra en el mundo tal como se lo
encuentrardquo Op cit p39 A palavra Dasein nesse trecho ainda natildeo parece se referir ao homem como ldquoser-aiacuterdquo mas usada no
significado tradicional da liacutengua alematilde compreendida como ldquoexistecircnciardquo pois Heidegger nos fala da
ldquoexistecircnciardquo do lsquofornorsquordquo existecircnciardquo do lsquofogorsquo
61
O nomear originaacuterio do loacutegos natildeo eacute como a significaccedilatildeo expressa pela linguagem
que recolhe o ente sob determinado aspecto em seu εἶδος (Cf HEIDEGGER (GA17)
2006 p43) Loacutegos eacute loacutegos apofacircntico (λόγος αποφατικός) eacute o mostrar do fenocircmeno a
respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que se mostra como algo de maneira indiferenciada
natildeo determinada Assim o significado mediante o λόγος eacute caracterizado como existindo
O significado mediante o nome eacute um mero mencionar em sentido formal no λόγος o
significado eacute o mostrar o existente como existente47(HEIDEGGER (GA17) 2006p41)
Esse mostrar do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes
sempre em meio a um campo hermenecircutico e assim cada significado proacuteprio ou
determinado do ente que se mostra refere-se ao que significa em relaccedilotildees com os outros
entes relaccedilatildeo anterior a qualquer experiecircncia predicativa
O modelo tradicional da hermenecircutica como meacutetodo interpretativo vinculado agrave
filologia e ao formato da linguagem escrita se altera e torna-se com Heidegger a
investigaccedilatildeo acerca da proacutepria interpretaccedilatildeo da mostraccedilatildeo de todos os entes como uma
praacutetica viva que remete ao ser dos entes em seu aparecer como ente Hermes o
mensageiro dos deuses agora eacute mensageiro da situaccedilatildeo interpretativa na medida em que
o ser dos entes se mostra aos homens no interior de suas vivecircncias imediata A
interpretaccedilatildeo de algo eacute dada mediante a escuta cuidadosa da mensagem dinacircmica que se
realiza no diaacutelogo entre os homens natildeo eacute mais algo inerte fixo a ser encontrado O λόγος
na fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν E assim ao contraacuterio
da tradiccedilatildeo filosoacutefica que identificou o loacutegos como a expressatildeo ajuizante possiacutevel atraveacutes
da ratio (ou o dizer as modalidades dos entes atraveacutes de palavras e sequecircncia de palavras
organizando-as como sujeito e predicado no juiacutezo predicativo) Heidegger interpreta o
sentido originaacuterio de loacutegos apofacircntico como condiccedilatildeo de possibilidade para a
significaccedilatildeo Esse aspecto eacute assim descrito por Gadamer
Heidegger recorreu a uma etimologia para a palavra logos ela designa a seleccedilatildeo
posicionadorardquo () Loacutegos eacute realmente o posicionar seletivo legein significa
seleccedilatildeo selecionar conjuntamente reunir de tal modo que tudo se decirc como
bagos da videira reunidos e protegidos como a colheita O que eacute assim reunido
da seleccedilatildeo natildeo satildeo certamente apenas as palavras que formam a proposiccedilatildeo Cada
palavra ela mesma jaacute eacute de tal modo que nela muitas coisas satildeo reunidas - na
47ldquoLo significado mediante el λόγος es caracterizado como existiendo Lo significado mediante el nombre
es un mero mencionar el sentido formal en el λόγος lo significado es el mostrar lo existente como
existenterdquo Opcitp41
62
unidade do eidos como diraacute Platatildeo quando ele questiona o eidos com vista ao
logos (GADAMER 2012p528)
O sentido originaacuterio de loacutegos como loacutegos apofacircntico estaacute estritamente
relacionado com o sentido originaacuterio de fenocircmeno A tradiccedilatildeo latina traduziu loacutegos
interpretando-o como razatildeo juiacutezo conceito definiccedilatildeo ou proposiccedilatildeo Poreacutem em grego
logos natildeo significa primariamente juiacutezo entendido como modo de uniatildeo ou de tomada
de posiccedilatildeo seja pela aceitaccedilatildeo ou negaccedilatildeo Logos reporta-se agrave palavra legein tornar
manifesto aquilo de que se fala num discurso Por isso deixa que algo seja visto
comunicando a outro o que eacute manifestado e assim ldquoas posiccedilotildees individuais satildeo
penetradas pela tendecircncia a significar de um λέγειν assim que aspira a manifestar uma
determinada situaccedilatildeo objetiva Natildeo se chega ao λόγος se quiser comeccedilar com o mero
nomear A funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar48rdquo (HEIDEGGER (GA17)
2006 p43) Mas o que se manifesta O fenocircmeno (φαινόμενον) aquilo que se mostra a
si mesmo
A interpretaccedilatildeo da palavra φαινόμενον realizada por Heidegger no primeiro curso
proferido em Marburg indica inicialmente a existecircncia do mundo na medida em que ele
se mostrar a si mesmo49 como orientaccedilatildeo do horizonte temaacutetico da fenomenologia Em
1925 no curso Prolegocircmenos para uma histoacuteria ao conceito de tempo (GA20) o
esclarecimento do sentido originaacuterio do conceito de fenocircmeno seraacute elaborado conforme
o sentido encontrado tambeacutem em Ser e Tempo sect7 Φαινόμενον eacute o particiacutepio (forma
nominal do verbo) de φαίνεισθαι que como voz meacutedia50 significa mostrar-se e no
48 ldquoLas posiciones individuales estaacuten penetradas por la tendencia a significar de un λέγειν asiacute que aspira a
manifestar una determinada situacioacuten objetiva No se llega al λόγος si se quisiera comezar com el mero
nombrar La funcioacuten originaria de significaciacuteon es el manifestarrdquo Opcitp43
49 CfHeidegger (GA17) 2006p61
50 Um esclarecimento sobre a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito de
fenocircmeno por conseguinte da noccedilatildeo de fenomenologia Obviamente natildeo podemos aprofundar-nos nesse
complexo recurso gramatical que exigiria anos de estudos e profundo conhecimento da liacutengua helecircnica
Iremos apenas indicar sua especificidade A estrutura das vozes verbais na liacutengua portuguesa eacute constituiacuteda
de 3 possibilidades a ativa a passiva e a reflexiva Algumas Gramaacuteticas sugerem uma proximidade entre
a voz meacutedia grega e a voz reflexiva no portuguecircs contudo a voz meacutedia natildeo se esgota nessa comparaccedilatildeo
Seguimos a orientaccedilatildeo de Caio Vieira Reis de Camargo (2013) que em seu artigo reuacutene definiccedilotildees
importantes para os estudos linguiacutesticos contemporacircneos acerca da voz meacutedia
ldquoa) lsquoA voz meacutedia denota que o sujeito estaacute de alguma maneira especial envolvido ou interessado na accedilatildeo
do verborsquo (GILDERSLEEVE 1900 p64) b) lsquoVerbos () que tecircm posiccedilatildeo na esfera do Sujeito nos quais
o Sujeito todo parece participanteimplicadorsquo (BRUGMANNB 1903 p104) c) lsquoNa voz ativa os verbos
63
particiacutepio o que se mostra O aparecer o mostrar do fenocircmeno estaacute relacionado com a
raiz de φαίνω φῶς em portuguecircs luz claridade Assim ldquoos φαινόμενα configuram a
totalidade do que se mostra o que os gregos simplesmente identificaram tambeacutem com τὰ
ὄντα o ente51rdquo (HEIDEGGER (GA20)2006 p109) Podemos entatildeo dizer a totalidade
do que se mostra satildeo os fenocircmenos e se a funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar
o loacutegos da fenomenologia natildeo eacute o significado de um ou outro ente mas o manifestar do
ente o sentido de ser dos entes Fenomenologia em sentido formal eacute ldquofazer ver a partir
dele mesmo o que se mostra tal como ele por si mesmo se mostrardquo (HEIDEGGER (GA2)
2012 p119) e assim a fenomenologia caminha em direccedilatildeo agrave ontologia
No capiacutetulo anterior pudemos observar que para Husserl o que estava em jogo
como tarefa da fenomenologia era - a partir da unidade entre intuiccedilatildeo (atividade da
consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da consciecircncia e o
preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor a unidade
fenomenoloacutegica desses atos a saber apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo e
preenchimento de significaccedilatildeo Para Heidegger a intencionalidade fenomenoloacutegica agora
voltada para o sentido de ser dos entes revela que o fenocircmeno vem ao encontro natildeo em
funccedilatildeo da intencionalidade da consciecircncia onde poderia ser depurado na sua significaccedilatildeo
denotam um processo que se realiza a partir de um sujeito e sem ele na meacutedia que eacute a diaacutetesis a definir
por oposiccedilatildeo o verbo indica um processo em que o sujeito eacute o foco o sujeito estaacute no interior do processorsquo
(BENVENISTE 1966 p172) d) lsquoEm indo-europeu e em grego as desinecircncias meacutedias indicam que o
sujeito estaacute interessado de uma maneira pessoal no processorsquo (MEILLET 1937 p244) e) lsquoAs implicaccedilotildees
da meacutedia (quando em oposiccedilatildeo com a ativa) satildeo que a accedilatildeo ou estado afeta o sujeito do verbo ou seus
interessesrsquo (LYONS 1969 p373) Nessas definiccedilotildees a princiacutepio haacute dois empregos da meacutedia a meacutedia
reflexiva direta (especialmente a de Gildersleeve e Meillet voltadas para a questatildeo do interesse do sujeito
oracional) e a meacutedia reciacuteproca que envolve mais as construccedilotildees passivas e intransitivas da meacutedia
(ressaltada por Brugmann e Benveniste com a noccedilatildeo de que o sujeito todo participa e que estaacute interno ao
processo) A definiccedilatildeo de Meillet por outro lado eacute a mais comumente utilizada principalmente em
gramaacuteticas e meacutetodos de ensino do grego antigo atribuindo agrave media a noccedilatildeo de interesse por parte do
sujeito sendo que esse traccedilo embora existente em alguns casos natildeo eacute uacutenico e nem sempre tatildeo evidenterdquo
(pp 185-186)
Quando dissemos que entender a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito
de fenocircmeno pensamos nessa especificidade de algo que na accedilatildeo no verbo (existir manifestar) constitui a
si mesmo no interior do processo O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento como fenocircmeno
Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar
por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na
estabilidade de uma esfera para aleacutem do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua
manifestaccedilatildeo o sentido de sua proacutepria existecircncia
51 ldquoLos φαινόμενα configuran la totalidad de lo que se muestra a siacute mismo lo que los griegos simplemente
indetificaban tambieacuten con τὰ ὄντα lo enterdquoOpcit p109
64
Mas o loacutegos como manifestar-se do fenocircmeno em seu sentido originaacuterio como existente
eacute intencionado no es gibt originaacuterio na concretude do mundo que se daacute
Mas como eacute possiacutevel chegar ao acontecimento de ser do fenocircmeno sem a base de
uma consciecircncia em funccedilatildeo da qual o fenocircmeno pode ser depurado Os estudos da Sexta
Investigaccedilatildeo Loacutegica de Husserl ao distinguir intuiccedilatildeo sensiacutevel da categorial ofereceram
a Heidegger um acesso agrave compreensatildeo do sentido muacuteltiplo do ente Nas palavras do autor
ldquoQuando a partir de 1919 eu proacuteprio ensinando e aprendendo proacuteximo de
Husserl me exercitei na visatildeo fenomenoloacutegica e simultaneamente pus agrave prova
nos Seminaacuterios uma leitura de Aristoacuteteles diferente da habitual retomei o meu
interesse pelas Investigaccedilotildees Loacutegicas muito especialmente pela sexta da
primeira ediccedilatildeo A distinccedilatildeo ali elaborada entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial
revelou-se-me em todo o seu alcance como capaz de determinar lsquoo muacuteltiplo
sentido do entersquordquo (HEIDEGGER2009 p8)
Vejamos brevemente o ponto crucial dessa parte da VI investigaccedilatildeo a qual
Heidegger se refere A questatildeo central eacute ldquoTodas as partes e formas da significaccedilatildeo
correspondem tambeacutem partes e formas da percepccedilatildeo52rdquo (HUSSERL 1975 p106) Em
outras palavras nos enunciados da percepccedilatildeo ldquoUm S eacute Prdquo ldquoEste S eacute Prdquo ldquoTodo S eacute Prdquo
etc cada um de seus elementos (ldquoumrdquo ldquoSrdquo ldquoeacuterdquo ldquoPrdquo) possui significaccedilotildees que
preenchem a percepccedilatildeo Husserl responde negativamente somente S e P possuem
significaccedilatildeo que preenchem a percepccedilatildeo pois existe uma diferenccedila categorial absoluta
entre a forma expressiva e o material expresso E os enunciados da percepccedilatildeo chegam
somente aos elementos materiais que estatildeo presentes nos termos do enunciado
ldquoRepete-se a mesma distinccedilatildeo entre lsquomaterialrsquo e lsquoformarsquo naquilo que
consideramos unitariamente como um lsquotermorsquo Mas em todo enunciado de
percepccedilatildeo e tambeacutem naturalmente em todos os enunciados que exprimem uma
intuiccedilatildeo num certo sentido primaacuterio chegamos finalmente aos uacuteltimos elementos
ndash denominamos elementos materiais ndash que estatildeo presentes nos termos e que
preenchem diretamente na intuiccedilatildeo (percepccedilatildeo imaginaccedilatildeo etc) ao passo que
as formas complementares apesar de exigirem preenchimento enquanto formas
de significaccedilatildeo natildeo encontram diretamente na percepccedilatildeo e nos atos a ela
coordenados nada que jamais lhes possa ser conformerdquo(HUSSERL 1975p110)
52 Percepccedilatildeo aqui compreendida natildeo como mera percepccedilatildeo mas como atos fundados na percepccedilatildeo com
possibilidade objetiva
65
Husserl acompanha Kant na determinaccedilatildeo que ldquoser natildeo eacute um predicado realrdquo pois
a flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo -tanto na funccedilatildeo atributiva (sapato preto) quanto na forma
predicativa (Este sapato eacute preto) ndash natildeo se preenche atraveacutes de qualquer percepccedilatildeo Para
Husserl embora a proposiccedilatildeo kantiana ldquose refira ao ser existencial ao ser do
lsquoposicionamento absolutorsquo () eacute sempre possiacutevel entretanto aplicaacute-la ao ser predicativo
e atributivordquo (HUSSERL1975 p111) Se o ser natildeo eacute nada de aderente ao objeto natildeo eacute
uma caracteriacutestica real interna nem externa e ainda se ldquona esfera da percepccedilatildeo sensiacutevel
e assim compreendida e correlativamente na da intuiccedilatildeo sensiacutevel em geral () uma
significaccedilatildeo como a palavra ser natildeo encontra nenhum correlato objetivo possiacutevelrdquo
(HUSSERL1975 p112) entatildeo como ser vem agrave forma enunciativa Para Husserl o ser
soacute pode ser apreendido no julgar natildeo que ele seja obtido internamente a partir da reflexatildeo
mas no ato de julgar que correlato agrave intuiccedilatildeo do juiacutezo forma a unidade do juiacutezo evidente
Em outras palavras se o ldquo ser eacute fenomenologicamente interpretado como um modo
determinado do ser dadordquo ( ZAHAVI2015p47) a descriccedilatildeo de um fenocircmeno ou de um
estado de coisas em sua ligaccedilatildeo e unidade pelo juiacutezo vai aleacutem da intuiccedilatildeo sensiacutevel e eacute
preciso ampliar o conceito de intuiccedilatildeo considerando-a como uma intuiccedilatildeo categorial
pois ldquomesmo uma argumentaccedilatildeo teoacuterica ou uma anaacutelise conceitual pode ser considerada
como intuiccedilatildeo na medida em que ela nos traz agrave daccedilatildeo originaacuteria um estado de coisas um
traccedilo essencial ou uma demonstraccedilatildeo abstratardquo( ZAHAVI2015p55) Contudo esse
deslocamento do lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel o conduz a forma loacutegico sem revelar
de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno53
Portanto com o propoacutesito de elucidar a apariccedilatildeo originaacuteria de qualquer fenocircmeno
e junto com Aristoacuteteles Heidegger conclui que era Aleacutetheia desvelamento aquilo que
segundo Husserl consistia num ato da consciecircncia O ser natildeo eacute um predicado real se
abordado a cada vez como um ente Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar o ser como um
ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel e atributivo Ser
natildeo eacute um ente54 o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo com vistas agrave
53 Cf NUNES Benedito 2013 pp63-67 54 A diferenccedila ontoloacutegica eacute tomada tematicamente ou seja exposta explicitamente em 1927 em Os
problemas fundamentais da fenomenologia (GA24) Parte II Capiacutetulo I Mesmo de um modo natildeo temaacutetico
a diferenccedila entre ser e ente foi decisiva para a compreensatildeo da constituiccedilatildeo existencial do ser-aiacute nos escritos
anteriores sobretudo em Ser e Tempo Seguimos a leitura de LAFONT (1997) ldquoDo factum -central para a
abordagem de Ser e tempo - de que nossa relaccedilatildeo com o mundo estaacute mediada simbolicamente (o fato de
que lsquonos movemos sempre jaacute em uma compreensatildeo de serrsquo e que a realidade soacute eacute possiacutevel em uma
66
forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera para ldquoQual o
sentido de serrdquo E ao sentido do ser temos acesso pelo meacutetodo fenomenoloacutegico a partir
da situaccedilatildeo na qual o desvelamento dos entes acontece isto eacute no fenocircmeno da existecircncia
Como aponta Stein a apresentaccedilatildeo do conceito de fenomenologia em Ser e
Tempo eacute feita de maneira provisoacuteria no sect 7 e soacute ganha sua explicitaccedilatildeo na dinacircmica da
proacutepria anaacutelise do ldquoobjetordquo Mas tambeacutem como jaacute vimos aqui a especificidade e o fator
determinante do meacutetodo fenomenoloacutegico jaacute estatildeo em desenvolvimento na deacutecada de 20
Cito Stein
ldquoa descoberta que Heidegger fez que existe um primado da tendecircncia para o
encobrimento ()Ao inveacutes de pensar como Husserl e outros filoacutesofos que diante
de noacutes a realidade se estende agrave espera da rede de nossos recursos metodoloacutegicos
que a aprisionem Heidegger afirma que o homem e o essencial nas coisas tendem
para o disfarce ou estatildeo efetivamente encobertos Por isso volta-se para o comordquo
(STEIN 1971p16)
E o que se encobre de maneira excepcional natildeo eacute um ou outro ente mas o ser do
ente e ldquoa fenomenologia eacute o modo de acesso ao que deve se tornar tema da ontologia A
ontologia soacute eacute possiacutevel como fenomenologiardquo (HEIDEGGER (GA2) 2012 p 123)
Fenocircmeno loacutegos e aleacutetheia estatildeo numa imbricaccedilatildeo indissociaacutevel Stein (2001
p79) chega a dizer que a aleacutetheia esconde em si o meacutetodo fenomenoloacutegico e que o retorno
originaacuterio agrave palavra grega resume o pensamento de Heidegger Para nosso trabalho o
importante eacute compreender que a fenomenologia como meacutetodo para a ontologia encontra
no sentido originaacuterio de aleacutetheia a possibilidade de trazer agrave luz o que sustenta qualquer
presenccedila dos entes ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o que aponta para o velamento (lethe) que
ficou para traacutes que mostra para aquilo que a sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila
da aleacutetheia que se torna possiacutevel a objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito
pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89) Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em
sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao encontro em seu significado) no desvelamento
originaacuterio de seu ser mas essa mostraccedilatildeo dos fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira
compreensatildeo de serrsquo) deduz Heidegger a universalidade da lsquopreacute-estrutura do compreenderrsquo (Als-Struktur)
que constitui o nuacutecleo fundamental de sua transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia O instrumento
decisivo do ponto de vista metodoloacutegico que o permite obter este ponto de vista eacute a substituiccedilatildeo da
dicotomia empiacutericotranscendental - proacutepria da filosofia transcendental- pela lsquodiferenccedila ontoloacutegicarsquordquo p29
67
dissimulada sempre atraveacutes de uma objetificaccedilatildeo de seu ser como ente determinado pois
ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na medida em que partimos de seu
encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de descoberta perde seu sentido mais
efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Dessa forma ldquoa fenomenologia no sentido heideggeriano
eacute a desconstruccedilatildeo do evidente e em uma tal desconstruccedilatildeo interessa mostrar que o
evidente eacute em verdade uma modificaccedilatildeo do fenocircmeno lsquoserrsquordquo (FIGAL 2005p47) E aqui
a fenomenologia encontra a hermenecircutica em sua relaccedilatildeo mais radical pois essa
desconstruccedilatildeo do evidente parte do proacuteprio evidente a situaccedilatildeo faacutetica Pois ldquoo ser soacute
pode chegar entatildeo a ser visualizado se essas dissimulaccedilotildees forem comprovadas como
dissimulaccedilotildeesrdquo (FIGAL 2005p47) ou seja na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo faacutetica que
compreende previamente todos os entes
A atualizaccedilatildeo da filosofia antiga sob bases fenomenoloacutegicas eacute chamada de
ldquofenomenologia como repeticcedilatildeordquo55 O retorno ao pensamento de Aristoacuteteles e Platatildeo
realizado por Heidegger ldquonatildeo significa simplesmente acolher uma vez mais um
questionamento filosoacutefico herdado a fim de integraacute-lo no discurso de uma filosofia atualrdquo
e tambeacutem natildeo se trata de ldquoinserir uma filosofia atual em uma tradiccedilatildeordquo (FIGAL 2005
p32) Mas eacute consequecircncia da orientaccedilatildeo do trabalho heideggeriano de uma lsquofilosofia
cientiacuteficarsquo sem pressupostos O comeccedilo da filosofia eacute o questionamento em curso vivo
promovido pela proacutepria questatildeo e natildeo por sistemas externos agraves proacuteprias coisas A
pergunta pelo ser em Heidegger se torna temaacutetica na medida em que o desdobramento da
criacutetica imanente ao modelo husserliano conduz agrave pergunta fundamental inaugurada no
iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo
Se por um lado Heidegger pode ser associado agrave tradiccedilatildeo fenomenoloacutegica por
outro natildeo se pode esquecer a criacutetica imanente que ele fez agrave fenomenologia de Husserl e
que o conduziu a pensar a fenomenologia como meacutetodo a indicar o mundo a existecircncia
e a facticidade como campo de aparecimento dos proacuteprios fenocircmenos tornando portanto
a fenomenologia hermenecircutica Eacute nessa compreensatildeo da tarefa fenomenoloacutegica como o
modo de acesso ao que deve ser tornar tema da ontologia que Heidegger rejeita o
pressuposto husserliano da consciecircncia como correlato do aparecimento dos fenocircmenos
55 Cf Figal 2005 pp29-42 e STEIN 2001 p98
68
Ele o recusa natildeo somente pelo fato de as relaccedilotildees intencionais enquanto processos
mentais da consciecircncia se movimentarem pela pesquisa de conteuacutedos quididativos mas
tambeacutem e sobretudo pelo fato de
ldquoa consciecircncia apresentar em si mesma um contexto ontoloacutegico fechado Essa
ponderaccedilatildeo [a de que a consciecircncia parece natildeo precisar de qualquer objeto
exterior para existir] acaba por indicar a consciecircncia eacute absoluta em funccedilatildeo da
qual em geral a realidade pode se anunciarrdquo (HEIDEGGER Prolegomena zur
Geschichte p 144 apud FIGAL2005 p30)
Para Heidegger a fenomenologia transcendental de Husserl permanece ainda no
horizonte da modernidade Ao colocar o ldquomundo entre parecircntesesrdquo privilegiando a
experiecircncia da consciecircncia essa fenomenologia permaneceria incapaz de levar em conta
a realidade sem uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica e em uacuteltima instacircncia levar em conta as
vivecircncias concretas Heidegger natildeo abre matildeo da fenomenologia husserliana mas
radicaliza seu princiacutepio ldquode volta agraves coisas mesmasrdquo acentuando a tarefa pela existecircncia
e a partir da existecircncia dos fenocircmenos e no desvelamento buscar o sentido do ser de
todo e qualquer fenocircmeno
III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
Falamos haacute pouco de Heidegger repetir a filosofia antiga como um desdobramento
da proacutepria pesquisa filosoacutefica entendida como ciecircncia originaacuteria e como pergunta pelo
sentido de ser Em Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles Introduccedilatildeo agrave pesquisa
fenomenoloacutegica (GA61) Heidegger desenvolve esse aspecto e indica a problemaacutetica
central e radical a ser enfrentada a partir de Aristoacuteteles a saber ldquodesde de Aristoacuteteles se
manteacutem uma influecircncia taacutecita nas vias da visatildeo e da fala lsquoarticulaccedilotildeesrsquo loacutegicardquo
(HEIDEGGGER (GA61) 2011p11) Antes de entrarmos nessa problemaacutetica apontada
por Heidegger tentemos compreender o que o autor quis dizer com aquela afirmaccedilatildeo
Cito Puente (2001)
ldquoPara Aristoacuteteles foi precisamente a negaccedilatildeo do movimento que levou
Parmecircnides ao postulado da univocidade do ente e seraacute portanto a partir da
afirmaccedilatildeo irrestrita do movimento () que o Estagirita procuraraacute expandir os
horizontes do ente para aleacutem da mera dicotomia estabelecida por Parmecircnides
entre Ente e natildeo-enterdquo (p25)
69
Seguindo a leitura de Puente Aristoacuteteles encontrou a plurivocidade ao afirmar o
movimento no acircmbito dos entes Aleacutem disso como veremos nos desdobramentos a
seguir ele o fez submetendo o acircmbito ontoloacutegico ao acircmbito loacutegico Submissatildeo essa que
foi adotada por toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica que passou a entender a loacutegica como uacutenica via
de acesso agrave ontologia Pois a polivocidade categorial inserida no interior da
quadriparticcedilatildeo semacircntico-ontoloacutegica estaacute por sua vez submetida ao princiacutepio loacutegico de
natildeo contradiccedilatildeo Dito de outro modo as categorias aristoteacutelicas substacircncia
(οὐσία substantia) quantidade (ποσόν quantitas) qualidade (ποιόν qualitas) relaccedilatildeo
(πρός τι relatio) lugar (ποῦ ubi) tempo (ποτέ quando) estado (κεῖσθαι situs) haacutebito
(ἔχειν habere) accedilatildeo (ποιεῖν actio) e paixatildeo (πάσχειν passio) satildeo parte das quatro
possibilidades semacircnticas categoria acidente verdade atopotecircncia Reiterando as
possibilidades semacircnticas de dizer o ente estatildeo submetidas a um princiacutepio loacutegico
fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado ao princiacutepio de identidade
Soacute eacute possiacutevel desenvolver uma ontologia acerca dos entes naturais e sair da univocidade
ontoloacutegica de Parmecircnides se a semacircntica respeitar a impossibilidade loacutegica de uma
simultaneidade de atribuiccedilotildees contraacuterias a um ente ao mesmo tempo Os vaacuterios modos de
dizer o ser ldquoa refutaccedilatildeo confutatoacuteria agrave tese parmenidiana pode ser analisada entatildeo como
o desdobramento loacutegico do pressuposto de Parmecircnidesrdquo (PUENTES2001 p25)
Nesse sentido enfrentar a via loacutegica no interior da filosofia eacute enfrentar a tradiccedilatildeo
que compreendeu que a filosofia devia ser definida bem como seus objetos de forma
conceitual sob princiacutepios loacutegicos Em outras palavras superar a tentativa de dizer
previamente tanto o que a filosofia eacute quanto o que eacute seu objeto de investigaccedilatildeo E em
uacuteltima instacircncia superar a concepccedilatildeo tradicional metafiacutesica que compreende toda
ontologia condicionada agrave loacutegica pois ao ter acesso ao ente atraveacutes das categorias
arrasta a compreensatildeo da verdade agrave semacircntica extensional com lugar privilegiado na
proposiccedilatildeo reduzindo a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo56
56 Aqui eacute pertinente destacar uma consideraccedilatildeo de Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro no prefaacutecio agrave traduccedilatildeo do
texto de Aristoacuteteles As categorias (trad Fernando Coelho Florianoacutepolis Ed Da UFSC 2014 p 9-10)
ldquo A grande questatildeo realmente capaz de colocar a tradiccedilatildeo em xeque eacute a de saber se a compreensatildeo do real
pelas categorias ontoloacutegicas de substacircncia qualidade quantidade tempo lugar etc eacute o que eacute porque as
categorias gramaticais de substantivo e sujeito adjetivo e predicadoetcjaacute se instalaram de antematildeo e
predeterminaram o escopo daquela compreensatildeo ndash metafiacutesica como lsquofeacute na gramaacuteticarsquo como aponta
Nietzsche ndash ou se ao contraacuterio o limite da gramaacutetica ocidental para dizer o real eacute que eacute por ser preacute-limitada
por sua compreensatildeo metafiacutesicardquo
70
Para Heidegger a filosofia deve sempre voltar-se para a vida faacutetica e cabe agrave
definiccedilatildeo filosoacutefica tornar expliacutecita a interpelaccedilatildeo A filosofia natildeo eacute portanto um
conjunto de mateacuterias determinadas (loacutegica ontologia poliacutetica esteacutetica etc) No sentido
formal57 da definiccedilatildeo (determinar o objeto em seu ser-o-que-como [ was-wie-sein]) a
filosofia eacute indicativa (anzeigend) cujo princiacutepio possui um caraacuteter bem especiacutefico
identificar a visatildeo preacutevia Mas o que eacute essa visatildeo preacutevia
ldquoNatildeo haacute aqui como contornar a facticidade do mundo que eacute o nosso e isto natildeo
porque ela definiria a nossa postura em relaccedilatildeo agraves coisas e funcionaria como um
matiz de ordem espiritual em nossa ligaccedilatildeo com o todo mas porque ela perpassa
originariamente o horizonte mesmo a partir do qual os entes se mostram como os
entes que satildeo Esse horizonte possui aleacutem disso um caraacuteter histoacuterico
sedimentado Ele natildeo se determina de maneira loacutegico-transcendental () mas se
constroacutei historicamente a partir de decisotildees de pensamento que vatildeo
paulatinamente determinando que se mostra ou natildeo como dotado de sentidordquo
(CASANOVA 2009 p47)
Assim contra o pensamento imperante da tradiccedilatildeo
ldquoO que se denomina filosoacutefico assim como os termos de acordo com os quais
problemas considerados filosoacuteficos satildeo levantados natildeo nasce nunca de uma
anaacutelise puramente loacutegica Ao contraacuterio tanto a designaccedilatildeo de algo como
filosoacutefico quanto o modo de colocaccedilatildeo dos problemas filosoacuteficos em geral
depende de estruturas faacuteticas que foram sendo lentamente decididas no interior
da tradiccedilatildeo Se desconsiderarmos uma tal dependecircncia o que fazemos eacute
simplesmente assumi-las como oacutebvias () que impedem um tratamento
originaacuterio dos fenocircmenosrdquo (CASANOVA 2009 p 47)
Seguindo Escudero no proacutelogo escrito agrave sua traduccedilatildeo do Relatoacuterio Natorp (2002
p11) para atingir a realidade primaacuteria da vida faacutetica Heidegger nos anos 1920 se
movimenta em duas decisotildees A primeira decisatildeo metodoloacutegica eacute desdobrada em dois
momentos a) o primeiro desconstrutivo descerrar o intricado mapa conceitual da
filosofia e voltar-se ao fenocircmeno da vida b) e o segundo construtivo fazer uma anaacutelise
formal dos diversos modos de efetivaccedilatildeo da vida em seu processo de realizaccedilatildeo histoacuterica
E a segunda decisatildeo a anaacutelise das estruturas ontoloacutegicas da vida que corresponde agrave
hermenecircutica fenomenoloacutegica do ser-aiacute precisamente agrave pergunta pelo sentido do ser no
57 A loacutegica para Heidegger eacute formalista natildeo formal Diz-se formal em relaccedilatildeo agrave indicaccedilatildeo formalista em
relaccedilatildeo a operacionalidade dos elementos da loacutegica Cf HEIDEGGER 2011 p28
71
interior mesmo do acontecimento preacute-teoacuterico da cotidianidade do ser-aiacute para assim ter
acesso ao sentido do ser em geral
Portanto o meacutetodo fenomenoloacutegico como indicativo-formal eacute parte do processo
metodoloacutegico construtivo para o acesso agrave vida faacutetica como maneira de fazer vir ao
encontro os fenocircmenos sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica bem como a maneira de
desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos categoriais de definiccedilatildeo
O elemento decisivo eacute a experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica no como do
aparecer de qualquer objeto e na medida em que este possa ser definido ldquodevem ser
hauridas do modo como o objeto se torna acessiacutevel originariamenterdquo (HEIDEGGER
(GA61) 2011 p28) Com outras palavras qualquer significado compreendido como
indicativo-formal e a expressatildeo linguiacutestica desse conceito satildeo proposiccedilotildees caracterizadas
como indicaccedilotildees hermenecircuticas A terminologia filosoacutefica e seu questionar mais
originaacuterio devem a cada vez indicar o campo situacional histoacuterico de onde extraem seus
conceitos Nas palavras de Heidegger (GA61) ldquoo decisivo eacute o desdobramento radical e
claro de uma situaccedilatildeo hermenecircutica como temporalizaccedilatildeo da proacutepria problemaacutetica
filosoacuteficardquo (2011 p11) Portanto a interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do conhecimento58
para Heidegger exige uma modificaccedilatildeo a pergunta se transforma em ldquocomordquo eacute o
conhecimento ldquoComordquo as coisas vecircm ao encontro e natildeo mais uma definiccedilatildeo que
responderia agrave questatildeo com pretensatildeo atemporal ldquoo que eacute o conhecimentordquo ou ldquoo que eacute
este enterdquo
Por conseguinte os indicadores formais tecircm a funccedilatildeo de explicitar e natildeo de
explicar pois seu caraacuteter indicativo formal potildee em tela atraveacutes de um conceito
inicialmente vazio e sem caraacuteter determinador elementos da proacutepria facticidade
(Faktizitaumlt) para que a anaacutelise hermenecircutica possa compreendecirc-los no interior mesmo da
facticidade e dessa forma encontrar o lugar vivo de cada elemento na estrutura
ontoloacutegica da realidade Mas qual a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo
situacional sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica e que revele tanto a situaccedilatildeo
58 Aqui vemos o compromisso de Heidegger com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do
sentido do conhecimento diligecircncia herdada da fenomenologia Poreacutem agora submetida a abordagem
ontoloacutegica E nesse sentido a abordagem hermenecircutica de Heidegger revela o caraacuteter derivado (de uma
situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento
72
compreensiva quanto descontrua a evidecircncia de toda determinaccedilatildeo conceitual dos entes
revelando antes o seu aparecer como ente Eacute o tema de nosso proacuteximo toacutepico
III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger
Segundo Heidegger ldquoo decisivo na investigaccedilatildeo de Dilthey natildeo eacute a teoria da ciecircncia
da histoacuteria senatildeo a tendecircncia em colocar a realidade histoacuterica agrave vista para a partir dela
esclarecer de que modo e maneira eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo59rdquo (HEIDEGGER (GA20)
2006 p34) Contudo Dilthey se movimenta no marco do questionamento de sua eacutepoca
buscando atraveacutes da vivecircncia da consciecircncia trazer agrave vista a realidade e a validade das
ciecircncias histoacutericas pois busca a partir da vida psiacutequica do sujeito histoacuterico o fundamento
para a garantia da objetividade dos elementos histoacutericos
Ao apresentar o imperativo das ciecircncias naturais e sua apropriaccedilatildeo da noccedilatildeo de
fenocircmeno no final do seacuteculo XIX em Ontologia (Hermenecircutica da facticidade) (GA63)
Heidegger apontou que na tentativa de superaccedilatildeo da metodologia cientiacutefica natural
apesar de ter negado sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito Dilthey se movimentou a partir
dessa orientaccedilatildeo pois seu projeto consistiu em lanccedilar as bases teoacutericas em uacuteltima anaacutelise
com pretensatildeo cientiacutefica para a abordagem dos fenocircmenos histoacutericos
ldquoO trabalho da filosofia concentra-se cada vez mais na teoria da ciecircncia na loacutegica
em seu sentido mais amplo e justamente com a loacutegica na psicologia Ambas
tomam a orientaccedilatildeo da ciecircncia natural e em particular da teoria do
conhecimento que vendo-se realizada na ciecircncia natural o conhecimento
verdadeiro busca as condiccedilotildees de tal conhecimento na consciecircncia Pretende-se
fazer o mesmo com a ciecircncia do espiacuterito dando supostamente um passo adiante
na direccedilatildeo que Kant havia delineado Aqui se considera que a tarefa principal
consiste na demarcaccedilatildeo serviram aqui de criteacuterio a ciecircncia natural embora per
negationem [] Ateacute mesmo Dilthey o qual estaacute propriamente arraigado na
histoacuteria e na teologia caracterizava a ciecircncia do espiacuterito como lsquocriacutetica da razatildeo
histoacutericarsquo apoiando-se naturalmente na problemaacutetica kantianardquo (HEIDEGGER
(GA63) 2012 p76)
Como dissemos Dilthey busca uma epistemologia das ciecircncias humanas a partir
da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos E a vivecircncia particular da consciecircncia
59 ldquoLo decisivo em el planteamiento de Dilthey no es la teoriacutea de la ciencia de la historia sino la tendencia
a poner la realidad de lo histoacuterico a la vista para a partir de ello aclarar de queacute modo y manera es posible
la interpretaciacuteonrdquo Opcit p34
73
como vida conexa e estruturante eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu
projeto Mesmo que Dilthey natildeo recorra agrave noccedilatildeo kantiana de sujeito transcendental ainda
estaacute subordinado agrave necessidade de fundamentaccedilatildeo uacuteltima ndash obrigatoriedade do
pensamento cientiacutefico criacutetico - por isso parte dos dados da psicologia descritiva
acreditando que eles poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar para as ciecircncias
humanas Dito de outro modo ainda que Dilthey tenha se negado a aplicar a metodologia
das ciecircncias naturais agraves ciecircncias humanas natildeo escapou ao ideal cientiacutefico de sua eacutepoca e
sucumbiu ao enrijecimento tradicional da estrutura do conhecimento como fundamento
Contudo Dilthey deu uma grande contribuiccedilatildeo agrave filosofia de sua eacutepoca ao pocircr a
realidade histoacuterica agrave vista e ao propocirc-la como ponto de partida para a anaacutelise que visa
esclarecer de que modo eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo Afastado da estrutura do conhecimento
como fundamento Heidegger indica a anaacutelise hermenecircutica como a forma de apreensatildeo
da abertura originaacuteria de sentido na qual se encontra o ser-aiacute enquanto ser-no-mundo e
como a preacute-compreensatildeo de seu ser e de todo e qualquer ente Com poucas palavras a
hermenecircutica fenomenoloacutegica (ou intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica no interior da situaccedilatildeo
hermenecircutica) constitui a condiccedilatildeo de possibilidade de toda investigaccedilatildeo ontoloacutegica
Aqui o termo ldquosentidordquo natildeo significa definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo mas a manifestaccedilatildeo do
ente em seu ser ou seja no modo como aquilo pode vir ao encontro e se manter como
ente e em uacuteltima instacircncia manter-se em seu significado Assim a apreensatildeo filosoacutefica
dessa abertura de sentido primaacuteria deve ser alcanccedilada na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo de
compreensatildeo dos entes no modo como os entes vecircm ao encontro sem qualquer teoria
pela formaccedilatildeo da posiccedilatildeo preacutevia Eacute por isso que ldquoo decisivo para a configuraccedilatildeo de uma
posiccedilatildeo preacutevia eacute ver o ser-aiacute em sua cotidianidade A cotidianidade caracteriza a
temporalidade do ser-aiacute (concepccedilatildeo preacutevia) Eacute inerente agrave cotidianidade certa medianidade
do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER (GA63) 2012 p90)
Indicamos alguns termos que ainda natildeo foram devidamente esclarecidos como
ser-aiacute ser-no-mundo temporalidade Trataremos mais detidamente desses termos baacutesicos
para a compreensatildeo da filosofia de Heidegger no proacuteximo capiacutetulo a partir da obra
principal de nossa dissertaccedilatildeo No momento faremos apenas esclarecimentos breves para
que possamos prosseguir a nossa apresentaccedilatildeo
74
Na tentativa de desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos
categoriais de definiccedilatildeo (gecircnero e diferenccedila especiacutefica) e a fim de acessar a mostraccedilatildeo
originaacuteria do fenocircmeno Heidegger usa a expressatildeo ser-aiacute (Dasein) para caracterizar
aquele ente que noacutes mesmos somos e indicar sua negatividade categorial pois o ser-aiacute soacute
eacute a partir do seu aiacute de sua existecircncia (mundo faacutetico no qual eacute lanccedilado) sem qualquer
categoria preacutevia que o defina Ponderaccedilatildeo apresentada pelo autor
ldquoAo chamar de homem o ser-aiacute que iraacute investigar coloca-se jaacute de antematildeo dentro
de uma determinada concepccedilatildeo categorial visto que o exame eacute levado a cabo
seguindo a direccedilatildeo da definiccedilatildeo tradicional de lsquoanimal racionalersquo () Tendo tal
definiccedilatildeo como direccedilatildeo define-se a descriccedilatildeo numa perspectiva determinada
sem que com ela se recuperem ativamente os motivos originaacuterios de tal maneira
de ver as coisasrdquo (HEIDEGGER(GA63) 2012 p34)
Mas entatildeo o que significa dizer que o ser-aiacute se encontra enquanto ser-no-mundo
Ao indicar o ser-aiacute Heidegger jaacute aponta a sua constituiccedilatildeo fundamental como ser-no-
mundo Mundo natildeo eacute um ente natildeo eacute o conjunto de entes nem eacute qualquer espacialidade
geomeacutetrica Ser-no-mundo eacute o encontro originaacuterio com a proacutepria facticidade (Faktizitaumlt)
e todas as possibilidades lanccediladas nesse encontro primordial ou como jaacute dissemos a
abertura de sentido na qual se encontra o ser-aiacute primariamente em seu mundo circundante
ldquoSer-no-mundo natildeo quer dizer aparecer entre outras coisas significa poreacutem
ocupar-se no circundante do mundo que vem ao encontro demorar-se nele O
modo proacuteprio de ser mesmo num mundo eacute o cuidado (sorge) () A vida se deixa
atingir ou fala consigo mesma mundanamente no e pelo cuidadordquo (HEIDEGGER
(GA63)2012 p107)
Se Dilthey compreende a categoria do significado como mediadora entre a
vivecircncia da consciecircncia e a realidade histoacuterica para Heidegger a significacircncia eacute a
articulaccedilatildeo do proacuteprio mundo que natildeo vem ao encontro a partir da consciecircncia mas da
ocupaccedilatildeo jaacute orientada pela facticidade (Faktizitaumlt) ldquoA significacircncia eacute um como do ser e
nele centra-se precisamente o categorial do mundo do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER(GA63)
2012 p91) E assim a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo situacional
sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica se daacute a partir da ocupaccedilatildeo do ser-aiacute que estaacute no mundo
propriamente como cuidado Cuidado natildeo quer dizer cuidado de si mas a disposiccedilatildeo agraves
coisas e a si em seu ser estar voltado para o ser dos entes E no caso da imediatidade da
vida a intencionalidade praacutetica que orienta a ocupaccedilatildeo
75
Para Heidegger trazer a realidade histoacuterica agrave vista eacute apropriar-se da situaccedilatildeo
hermenecircutica ou seja conquistar o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se
encontra o fenocircmeno da vida considerando que ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto
apropriaccedilatildeo compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo
(HEIDEGGER(GA62) 2002 p30) Em outras palavras o passado se manifesta sob a
interpretaccedilatildeo e abertura compreensiva possiacutevel no presente E portanto a partir da
abertura que dispotildee o presente lanccedilando suas possibilidades a tarefa da filosofia eacute
apropriar-se dessa compreensatildeo tendo em vista que ela atravessa o ser-aiacute em seu caraacuteter
ontoloacutegico que pode abrir-se a compreensatildeo de ser dos entes Eacute a partir daiacute que
ldquoVem agrave tona o papel paradigmaacutetico da filosofia platocircnico-aristoteacutelica para
Heidegger Segundo o filoacutesofo o que tem lugar em Platatildeo e Aristoacuteteles natildeo eacute algo
que diz respeito apenas ao interesse acadecircmico particular de um grupo de eruditos
especializados em suas obras Natildeo eacute filologia que nos fornece uma primeira via
de acesso aos elementos centrais de suas diversas compreensotildees nem tampouco
a filosofia acadecircmica que nos propicia pela primeira vez uma visatildeo clara do perfil
propriamente dito de seus escritos geniais Ao contraacuterio Platatildeo e Aristoacuteteles satildeo
decisivos para a constituiccedilatildeo das estruturas preacutevias de nossa interpretaccedilatildeo dos
entes porque temos neles a origem de boa parte dos horizontes investigativos
posteriormente sedimentadosrdquo (CASANOVA 2009 p59)
Heidegger entatildeo busca em Aristoacuteteles o ponto de partida natildeo soacute para as
interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas enquanto repeticcedilatildeo da pergunta ontoloacutegica fundamental
como tambeacutem para a interpretaccedilatildeo do uacutenico ente capaz de compreender o sentido do ser
dos entes o ser-aiacute Natildeo sem questionar a leitura tradicional da obra de Aristoacuteteles
Heidegger retomou a importante ldquodoutrinardquo do estagirita a qual estabelecia uma relaccedilatildeo
entre a sabedoria praacutetica (φρόνησις) a sabedoria (σοφία) e a vida do homem e seu modo
de existecircncia (βιος) De modo mais claro
ldquoAteacute Heidegger era comum tratar a obra de Aristoacuteteles a partir de um primado
da filosofa teoacuterica em relaccedilatildeo agrave filosofia praacutetica um primado que havia sido
preparado pelo modo tradicional de leitura do estagirita Partindo da concepccedilatildeo
aristoteacutelica da vida teoacuterica (βίος θεωρητικός) como a vida mais plena possiacutevel e
da filosofia como uma ciecircncia que natildeo se ateacutem aos entes em geral nem tampouco
a um ente especiacutefico mas que tem por uacutenico objeto o ser enquanto ser a
interpretaccedilatildeo tradicional do corpus aristoteacutelico cindiu radicalmente o acircmbito
praacutetico do acircmbito teoacuterico definindo o segundo como o uacutenico acircmbito da verdade
propriamente dita Com isso o acircmbito praacutetico foi relegado a um segundo plano
ao plano daquilo que dizia respeito apenas agrave melhor forma mundana de vidardquo
(CASANOVA 2009 p64)
76
O que estaacute em questatildeo para Heidegger natildeo eacute apenas identificar o fato de que nos
encontramos numa determinada tradiccedilatildeo definida por um extrato do conhecimento
historiograacutefico mas compreender radicalmente como nos situamos nessa tradiccedilatildeo No
texto de 1922 Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da
situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) comumente chamado de Natorp-Bericht ou Relatoacuterio-
Natorp Heidegger tenta explicitar a situaccedilatildeo hermenecircutica atraveacutes do como (wie) de todo
aparecer dos entes e das possibilidades do ser-aiacute na vida faacutetica Sendo o ser-aiacute aquele que
compreende a si mesmo e os outros entes sem qualquer preacutevia teorizaccedilatildeo em seu
acontecimento compreensivo Para tanto eacute necessaacuterio esclarecer as condiccedilotildees de
compreensatildeo e interpretaccedilatildeo ou conquistar o horizonte de sentido jaacute aberto no qual jaacute se
encontra o fenocircmeno da vida As condiccedilotildees satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a
direccedilatildeo da visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a
lsquovisibilidadersquo (Sichtweite)60 Satildeo essas condiccedilotildees que compotildeem a compreensatildeo e a
interpretaccedilatildeo ontoloacutegicas-temporais do ser-aiacute em relaccedilatildeo agraves suas possibilidades de ser e
em relaccedilatildeo aos entes que lhe vem ao encontro Essas condiccedilotildees natildeo satildeo lsquobarreirasrsquo para
o entendimento ao contraacuterio satildeo condiccedilotildees de abertura primaacuteria para qualquer
compreensatildeo ontoloacutegica Tentando esclarecer em (1) temos o acircmbito da realidade dada
em uma preacutevia abertura temporal de sentido em (2) a direccedilatildeo que jaacute determinou algo
ldquocomo-algordquo (Als-was) e ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu
lugar significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de
toda possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o
como do aparecer dos entes em seu ser e as possibilidades de comportamentos do ser-aiacute
eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto (1) e jaacute
interpretado (2) e por isso pode mover-se com pretensotildees de objetividade e definiccedilatildeo dos
entes
Eacute a partir dessas consideraccedilotildees que Heidegger desconstroacutei as noccedilotildees de
Aristoacuteteles engessadas pela tradiccedilatildeo de noucircs phroacutenesis e sophiacutea natildeo mais como
conceitos definidos a partir da leitura tematicamente eacutetica do Estagirita mas a partir da
orientaccedilatildeo da biacuteos ou seja da vida do homem e seu modo de existecircncia faacutetica No interior
do Relatoacuterio-Natorp a partir da interpretaccedilatildeo do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco de
60 Cf HEIDEGGER(GA62)2002 p29
77
Aristoacuteteles Heidegger apresenta essas virtudes dianoeacuteticas como ldquodiferentes
modalidades que permitem levar a cabo uma autecircntica custoacutedia do ser na verdade61rdquo
(HEIDEGGER (GA62) 2002 p60) O que quer dizer que se trata dos modos pelos quais
o ser-aiacute protege o ser dos entes enquanto desvelado (ἀλήθεια)
Para Heidegger o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona
um lsquoaquirsquordquo62 (HEIDEGGER(GA62) 2002 p66) essa virtude proacutepria do homem ldquose
realiza como ενέργεια como atividade () ou seja o νους abre um horizonte que sempre
responde a um modo concreto de tratar com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma
execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma determinaccedilatildeo63rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002
p66) O noucircs compreendido tradicionalmente como intelecto racional eacute proacuteprio do
homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica (homem (animal [gecircnero] + racional [diferenccedila
especiacutefica]) mas porque o homem ou melhor o ser-aiacute eacute o ente que pode custodiar abrir-
se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um compreender que jaacute interpreta
os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto na vida faacutetica que acontece
fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da
solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato praacutetico com os entes Essa
orientaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel porque no noucircs ldquoo loacutegos o legein eacute o modo atraveacutes do qual se
realiza o noein e como tal eacute um como tal eacute um διανοείσθαι um inteligir que decompotildee
e que apreende64rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002 p65) Vimos (II) que o λόγος na
fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν de interpretaccedilatildeo e natildeo diz
respeito agrave definiccedilatildeo linguiacutestica de um ou outro ente mas previamente a qualquer
determinaccedilatildeo gramatical ou categorial refere-se ao que manteacutem o ente como existente
portanto desvelado e interpretado em seu lsquocomo-entersquo Assim a relaccedilatildeo fundamental da
phroacutenesis - que prescreve o como o para-que do ente (utensiacutelio) - ao ser-aiacute eacute o
61 ldquoLa interpretacioacuten de este tratado prescindiendo provisionalmiente de la problemaacutetica especiacuteficamente
eacutetica permite comprender que las laquovirtudes dianoeacuteticasraquo son diferentes modalidades que permiten llevar a
cabo uma auteacutentica custodia del ser en la verdaderdquo Opcitp60 62 ldquoEl νους ofrece en general una perspectiva da algoproporciona un lsquoaquiacutersquordquoOp cit p66
63 ldquoEl νοῦς que es ίδιος άνθρωπος se realiza concretamente como ενέργεια como actividad como su
propia actividad es decir el νοῦς abre un horizonte que siempre responde a un modo concreto de tratar
con el mundo a traveacutes de una opercioacuten de una ejecucioacuten de una manipulacioacuten de una determinacioacutenrdquo
Opcitp66
64 ldquoel λόγος el λέγειν es el modo em el que se realiza el νοεῖν y como tal es un διανοείσθαι un inteligir
que decompone lo que apreenderdquo Opcit p65
78
desvelamento do ente no instante do proacuteprio trato da proacutepria atividade praacutetica sem
qualquer mediaccedilatildeo teoacuterica com o ente
Mas as atividades praacuteticas satildeo realizadas natildeo com fim em si mesmas mas com
vistas agrave execuccedilatildeo de um fim mobilizado pelo proacuteprio ser-aiacute em sua vida cotidiana e faacutetica
Assim o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se encontra o fenocircmeno da vida
parte do instante mesmo que potildee ao alcance da vista circunspecta o modo de
comportamento apropriado com o ente com vistas agrave execuccedilatildeo de um fim Desse modo
ldquoO ser da vida eacute considerado como uma atividade que encontra em si mesmo seu
fim o ser da vida se encontra nessa atividade quando a vida humana chegou a
seu fim com respeito a sua possibilidade de movimento mais proacutepria a
possibilidade de inteligir puro Essa atividade eacute proacutepria da εξις [do modo de ser]
que se conhece como σοφία Conforme seu caraacutecter intencional o compreender
puro natildeo custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo
forma parte do horizonte intencional da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso
pode ser de outra maneira O ser da vida humana deve ser considerado
unicamente desde a perspectiva da temporalizaccedilatildeo pura da σοφία como tal e em
razatildeo da autecircntica atividade a sua disposiccedilatildeordquo65 (HEIDEGGER (GA62) 2002
p71)
Assim o sentido do ser soacute pode ser abordado atraveacutes do ser-aiacute pois a pergunta
pelo ser do ser-aiacute possibilita a pergunta pelo sentido do ser em geral natildeo por um
fundamento teoacuterico mas como uma condiccedilatildeo ontoloacutegica O ser-aiacute eacute o ente que pode abrir-
se ao desvelamento dos entes e o faz a partir da proacutepria vida faacutetica sem qualquer
teorizaccedilatildeo preacutevia o ser-aiacute mobiliza o ser dos entes em geral em funccedilatildeo da proacutepria vida
ou seja dos modos possiacuteveis de ser a partir de sua temporalidade
Desde as primeiras investigaccedilotildees de Heidegger na deacutecada de 1920 daacute-se uma
profunda transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia a qual consiste na tentativa de
mostrar como eacute possiacutevel articular filosoficamente uma ciecircncia originaacuteria da vida ou em
mostrar como se daacute a realidade antes de qualquer consideraccedilatildeo cientiacutefica ajuizante isso
65 ldquoEl ser de la vida es considerado como uma actividad que encuentra em siacute mesma su fin el ser da la vida
se encuentra em esta actividad cuando la vida humana haacute llegado a su fin com respecto a su posibilidad de
movimento maacutes propia la posibilidad del inteligir puro Esta actividad es propia de la εξις [del modo de
ser] que se conoce como σοφία Conforme a su caraacutecter intencional el comprender puro no custodia la vida
humana en el modo de su ser faacutectico la vida humana no forma parte del horizonte intencional de la σοφία
ya que es un ente que en cada caso puede ser de otra manera El ser de la vida humana debe considerarse
unicamente desde la perspectiva de la temporalizacioacuten pura de la σοφία como tal y en razoacuten de la auteacutentica
actividad a su disposicioacutenrdquo Opcitp71
79
quer dizer antes de qualquer concepccedilatildeo teoacuterica de mundo Nesse sentido vimos que a
intencionalidade fenomenoloacutegica eacute intuiccedilatildeo compreensiva ou intuiccedilatildeo hermenecircutica em
meio ao mundo circundante que vem ao encontro E as coisas que vecircm ao encontro natildeo
respondem primariamente ao tradicional esquema sujeito-objeto mas resultam
compreensiacuteveis a partir da pertenccedila preacutevia a um mundo jaacute articulado ou a partir de um
estado de coisas preacute-compreendido na vida faacutetica que articula toda e qualquer
compreensatildeo do homem (das coisas e de si mesmo) desde sua existecircncia imediata no
mundo Dito de outro modo revela-se como compreensatildeo ontoloacutegica
Ao decidirmos apresentar as preleccedilotildees de Heidegger que antecederam a obra central
para o nosso trabalho foi nosso intuito elucidar os princiacutepios que provavelmente
motivaram a problemaacutetica exposta em Ser e Tempo A partir de agora nossa tarefa seraacute a
de tentar compreender a partir da obra de 1927 como o fenocircmeno da linguagem aparece
no interior dessa compreensatildeo e em que medida a linguagem eacute possiacutevel por uma
estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Eacute a tentativa de nosso proacuteximo capiacutetulo
80
Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da
linguagem (Sprache) em Ser e Tempo
ldquoa maacutequina do mundo se entreabriu para quem de a romper jaacute se esquivava e soacute de o ter pensado se carpiardquo (A maacutequina do mundo Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
Nos capiacutetulos anteriores descrevemos como do desenvolvimento das ciecircncias
positivas particulares no final do seacuteculo XIX emergiu a discussatildeo acerca do sentido e da
possibilidade do conhecimento No interior desse contexto destacamos o pensamento de
Husserl de Dilthey e as linhas gerais de alguns neokantianos de Baden A partir daiacute
descrevemos como a criacutetica heideggeriana agrave filosofia dos valores dos neokantianos
conduziu-o ao que ele proacuteprio chamou de lsquoes gibtrsquo originaacuterio como o campo
hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Para compreender a questatildeo pelo
sentido do ser em geral ie a proacutepria ontologia para Heidegger era necessaacuterio esclarecer
que a fenomenologia natildeo estava fundada na epistemologia (a partir da consciecircncia) e que
a hermenecircutica natildeo era apenas um instrumento metodoloacutegico capaz de nos dar acesso agrave
histoacuteria em sua objetividade mas muito mais do que isso ela era intuiccedilatildeo compreensiva
e imediata do mundo Assim a partir da criacutetica imanente que Heidegger fez ao meacutetodo
fenomenoloacutegico husserliano foi possiacutevel compreender como ele reconduziu a filosofia agrave
pergunta fundamental inaugurada no iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo a
pergunta pelo ser Aleacutem disso como o pensador desenvolveu a hermenecircutica voltada agrave
facticidade da vida natildeo em funccedilatildeo das vivecircncias da consciecircncia dos sujeitos histoacutericos
mas das vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico Todo esse percurso foi necessaacuterio para que
pudeacutessemos conquistar um solo interpretativo capaz de sustentar a anaacutelise do fenocircmeno
da linguagem tal como aparece em Ser e Tempo E ainda alcanccedilar a pergunta pelo
81
sentido de ser Pois ela a pergunta estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura
de sentido que precisamos explicitar
Contra a tradicional abordagem do problema da linguagem que mais comumente
focalizou as obras de Heidegger apoacutes a viragem (die Kehre)66 ie os escritos a partir
da deacutecada de 1930 neste capiacutetulo defenderemos que o fenocircmeno da linguagem (Sprache)
jaacute desempenha um papel decisivo em Ser e Tempo e que ele soacute se torna possiacutevel a partir
de uma das estruturas preacutevias existenciaacuterias examinadas na citada obra e que eacute a
estrutura de mostraccedilatildeo dos entes Assim embora admitindo que a questatildeo da linguagem
ainda natildeo estivesse posta de modo expliacutecito ou temaacutetico nosso trabalho pretende chamar
atenccedilatildeo para a inegaacutevel funccedilatildeo que a linguagem cumpre jaacute na obra de 1927
No sect 18 de Ser e Tempo Heidegger afirma que a significatividade funda a
possibilidade de significaccedilotildees e estas a possibilidade da linguagem
Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez
familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o
Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como
lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutengua
(HEIDEGGER 2012p261)
66 Apoacutes a Kehre nos anos 1930 a questatildeo do sentido de ser eacute reconduzida agrave histoacuteria e verdade do seer Este
movimento estaacute diretamente relacionado com o limite mesmo da obra de 1927 pois o processo de
singularizaccedilatildeo do ser-aiacute conforme elaborado em Ser e Tempo parece natildeo ser suficiente para a
movimentaccedilatildeo do horizonte histoacuterico e de sua semacircntica fechada Essa insuficiecircncia eacute levada agraves uacuteltimas
consequecircncias a partir dos anos 1930 e radicalizada com uma viragem em direccedilatildeo ao campo dos
acontecimentos histoacutericos Em Ser e tempo a negatividade proacutepria ao ser-aiacute apontava para a possibilidade
de mobilidade histoacuterica a partir da assunccedilatildeo como singularizaccedilatildeo de sua proacutepria negatividade e de sua
responsabilidade mais proacutepria como ser-aiacute de decisatildeo quanto aos caminhos de sua proacutepria existecircncia Jaacute
apoacutes a viragem a negatividade se mostraraacute natildeo somente a partir do ser-aiacute mas tambeacutem no assentamento
de toda abertura histoacuterica compreensiva uma negatividade que se mostraraacute na ausecircncia mesma de
fundamentos absolutos Caberia ademais considerar um aprofundamento das estruturas fenomenoloacutegicas
mais fundamentais no decorrer do pensamento de Heidegger Seraacute que em Ser e Tempo podemos defender
que a abertura que sustenta o sentido de ser do ser-aiacute como cuidado e temporalidade (Zeitlichkeit) estaria
afinal assentada no tempo histoacuterico Questatildeo afinal expressa na uacuteltima linha de Ser e tempo ldquoO tempo
(Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Seria entatildeo possiacutevel
pensar esse aprofundamento do gesto fenomenoloacutegico como a busca do limite de qualquer
intencionalidade Dito de outro modo apoacutes a Kehre o ser enquanto Ereignis (acontecimento apropriador)
poderia ser compreendido como o acircmbito sempre fugidio de toda e qualquer intencionalidade mas ao
mesmo tempo acircmbito no qual unicamente toda e qualquer intencionalidade pode acontecer Revelar-se-ia
o sentido fenomenoloacutegico do que Heidegger chama de clareira (die Lichtung)
82
Na seacutetima ediccedilatildeo de Ser e Tempo publicada em 1953 numa nota muito
esclarecedora acrescentada justamente a esta passagem acima citada Heidegger
evidenciou a diferenccedila entre a sua concepccedilatildeo da linguagem nos anos 20 e aquela apoacutes a
viragem Essa nota apareceu nas obras completas publicadas a partir de 1977 e tambeacutem
na traduccedilatildeo brasileira aqui utilizada Nessa nota muito importante para o objetivo desta
pesquisa o autor corrigiu sua proacutepria afirmaccedilatildeo (1927) de que a linguagem era derivada
Em 1953 ele declarou categoricamente que natildeo era verdadeiro que ldquoDasein-que-entende
[pudessecc] abrir como interpretante algo assim como lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais
[fundariamcc] novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo E que ldquoa liacutengua natildeo eacute
um pavimento sobreposto a outro senatildeo que eacute o desdobrar-se originaacuterio da verdade como
[aiacute] (HEIDEGGER 2012p261 nota c) Essa correccedilatildeo nos daacute uma prova de que a
concepccedilatildeo de linguagem em Ser e Tempo possuiacutea uma estratificaccedilatildeo que natildeo mais eacute aceita
apoacutes os anos 30 Poreacutem como aponta Stein o fenocircmeno da linguagem jaacute desempenhava
um importante e inegaacutevel papel no interior do tratado de 1927
Heidegger liga o questionamento de sua obra prima ao problema da linguagem
Ela assume papel condutor na elaboraccedilatildeo de seu meacutetodo e na realizaccedilatildeo analiacutetica
existencial No meacutetodo fenomenoloacutegico como interpretaccedilatildeo ou hermenecircutica
universal como apossamento de tudo o que foi transmitido pela tradiccedilatildeo atraveacutes
da linguagem como destruiccedilatildeo e revolvimento do chatildeo linguiacutestico da metafiacutesica
ocidental se descobre um imenso projeto de analiacutetica da linguagem Mas como
o meacutetodo fenomenoloacutegico visa o redimensionamento da questatildeo do ser natildeo numa
abstrata teoria do ser nem numa pesquisa historiograacutefica de questotildees ontoloacutegicas
mas numa imediata proximidade com a praacutexis humana como existecircncia e
facticidade a linguagem - o sentido a significaccedilatildeo - natildeo eacute analisada nun sistema
fechado de referecircncias mas ao niacutevel da historicidade Se no meacutetodo dialeacutetico
podemos encontrar uma certa miacutestica teleo-loacutegica (teleacuteo-troacutepica) a palavra no
meacutetodo do positivismo uma certa tecno-loacutegica da linguagem encontramos no
meacutetodo fenomenoloacutegico de Heidegger uma certa onto-loacutegica do dizer isto eacute uma
compreensatildeo da dimensatildeo preacute-ontoloacutegica da linguagem ligada a explicitaccedilatildeo do
mundo como horizonte de transcendecircncia (STEIN1971 p14)
Ser e Tempo possui certo caraacuteter preparatoacuterio pois eacute a tentativa de reformulaccedilatildeo
da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido depende justamente daquela
reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo O objetivo do tratado
eacute nos proacuteprios termos de Ser e Tempo a elaboraccedilatildeo concreta da pergunta pelo sentido
de ldquoserrdquo (Sinn von Sein) (HEIDEGGER2012 p31) No interior da elaboraccedilatildeo da proacutepria
83
pergunta a abordagem fenomenoloacutegica-hermenecircutica como meacutetodo de acesso ao sentido
de ser de todo ente acaba por demonstrar que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as
coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um campo de signos referenciais fechados que
doam significado agraves coisas mas uma manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez
se faz presente na facticidade da existecircncia concreta Nossa tentativa no presente capiacutetulo
eacute compreender como a partir da reelaboraccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ser e de seu
desenvolvimento nessa obra a linguagem se mostra enquanto manifestaccedilatildeo uacuteltima de um
horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo previamente
articulada dos entes e das possibilidades do ser-aiacute E dessa maneira indicar como as
palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da
experiecircncia hermenecircutica Mas antes de iniciarmos nosso capiacutetulo eacute necessaacuterio fazer
algumas consideraccedilotildees que se tornaram agora possiacuteveis apoacutes o desenvolvimento dos
capiacutetulos anteriores e as quais balizam nossa investigaccedilatildeo central
Certamente a fenomenologia husserliana tambeacutem natildeo atribui agrave linguagem um
aspecto referencial de acesso agraves coisas ao contraacuterio a assim chamada visatildeo das essecircncias
eacute a maneira de depurar o conteuacutedo linguiacutestico do conteuacutedo significativo preacute-linguiacutestico
Nas palavras de Gadamer (2010 p8)
A eleiccedilatildeo do modelo da visatildeo como modo do procedimento fenomenoloacutegico
indica que coisa mesma eacute preacute-conceptual e preacute-linguiacutestica A linguagem permite
articular o sentido da coisa mesma que contudo eacute independente da linguagem Eacute
aliaacutes apenas neste quadro que o exerciacutecio da eacutepoche se torna compreensiacutevel A
epocheacute eacute o que torna possiacutevel a reduccedilatildeo ao estado absolutamente desprovido de
preconceitos Mas o que eacute que torna a epocheacute possiacutevel A epocheacute eacute considerada
por Husserl como uma possibilidade de princiacutepio e como uma possibilidade
universal Mas esta possibilidade pressupotildee que se possa passar de uma plano
predicativo ndasho da linguagem ndash para um plano ante-predicativo - o da pura visatildeo
[] Por outro lado aquilo que se daacute de uma forma originaacuteria e na sua pureza daacute-
se como presenccedila absoluta numa figuraccedilatildeo atemporal Os fenoacutemenos no sentido
husserliano caracterizam-se por serem dados agrave consciecircncia de uma forma
absolutamente evidente e uacuteltima o fenoacutemeno eacute absoluta presenccedila a sua doaccedilatildeo
eacute plena
Husserl busca avanccedilar ateacute um plano imediato da experiecircncia que anteceda agrave
interpretaccedilatildeo como experiecircncia preacute-linguiacutestica a partir de intenccedilotildees linguiacutesticas Assim
busca na intencionalidade do fenocircmeno um estado desprovido de preconceito (epocheacute)
Heidegger alia-se a Husserl contra a tese de que o sentido ou o significado sejam
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linguiacutesticos Contudo para o autor de Ser e Tempo toda experiecircncia jaacute inclui uma
interpretaccedilatildeo certamente natildeo linguiacutestica mas hermenecircutica e fundamentalmente praacutetica
Dessa forma intencionar um fenocircmeno a partir de um horizonte histoacuterico hermenecircutico eacute
considerar e apropriar-se do significado oferecido pelas condiccedilotildees preacutevias e em uacuteltima
anaacutelise por uma semacircntica sedimentada Dito de outro modo para Husserl a expressatildeo
linguiacutestica eacute a maneira de o pensamento intencionar significaccedilatildeo e a orientaccedilatildeo da
pesquisa pela condiccedilatildeo e possibilidade do conhecimento suspende todo posicionamento
ontoloacutegico da coisa mesma em prol do acesso epistemoloacutegico objetivo aos fenocircmenos Jaacute
na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto ontoloacutegico do
conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e qualquer significado
que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido que eacute tambeacutem histoacuterico e no qual
algo pode manter-se em seu significado Eacute nessa perspectiva que nos colocamos em busca
da estrutura ontoloacutegica da linguagem
Portanto eacute importante ter em vista que para Heidegger
(1) a experiecircncia hermenecircutica traz a significatividade (Bedeutsamkeit) que potildee a
descoberto todo e qualquer ente E na medida em que essa experiecircncia orienta o ponto
de partida da intencionalidade67 ela desvela o ente em seu ser o qual (ente) aparece
como algo No entanto essa significatividade se manteacutem em virtude de uma dupla
67 O termo ldquoDaseinrdquo eacute utilizado por Heidegger para afastar qualquer compreensatildeo de homem como
ldquosujeitordquo ldquoconsciecircnciardquo ldquoanimal racionalrdquo etc Desse modo poder-se-ia pensar que uma vez afastadas
essas interpretaccedilotildees tambeacutem o termo lsquointencionalidadersquo deveria ser desconsiderado pois a fenomenologia
husserliana o utiliza como ato de consciecircncia Natildeo eacute o caso Heidegger ainda manteacutem a orientaccedilatildeo
fenomenoloacutegica poreacutem a desloca da consciecircncia para a abertura compreensiva sendo ser-aiacutemundo a
relaccedilatildeo intencional primaacuteria e ainda essa compreensatildeo eacute fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo
circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser Ou sejavisatildeo natildeo teoacuterica
sem a primazia da consciecircncia A intencionalidade eacute pensada portanto natildeo como ato de consciecircncia mas
abertura compreensiva mobilizada por toda e qualquer performatizaccedilatildeo existencial Em Ser e Tempo o
termo lsquointencionalidadersquo e seus derivados aparecem apenas 4 vezes em 2 momentos 1) No sect10 ldquoAgrave essecircncia
da pessoa pertence o existir somente na execuccedilatildeo dos atos intencionais [intentionalen] e assim ela por
essecircncia natildeo eacute objeto () Em todo caso a pessoa eacute dada enquanto executora de atos intencionais
[intentionaler]ligados pela unidade de um sentidordquo (2012 p155) 2) No sect69 nota 10 ldquoA anaacutelise
intencional [intentionalen] da percepccedilatildeo e da intuiccedilatildeo em geral deveria sugerir essa caracterizaccedilatildeo
lsquotemporalrsquo do fenocircmeno Que e como a intencionalidade [Intentionalitaumlt] da lsquoconsciecircnciarsquo se funda na
temporalidade estaacutetica do Dasein ()rdquo Essa uacuteltima passagem eacute decisiva A intencionalidade eacute portanto
mantida por Heidegger mas deve ser compreendida em funccedilatildeo do sentido de ser do ser-aiacute a temporalidade
que abre compreensivamente o ser dos entes em geral Cf tambeacutem nota 70
85
abertura de sentido (Sinn) a abertura de mundo em funccedilatildeo do ser-aiacute e o sentido de ser
do ser-aiacute em funccedilatildeo da temporalidade de sua existecircncia
(2) a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados
(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Entatildeo o significado pode
vir a ganhar sua expressatildeo e forma predicativas a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo
(Aussage) em sua ligaccedilatildeo derivativa da interpretaccedilatildeo (Auslegung) Apresentando dessa
maneira o caraacuteter originaacuterio da verdade enquanto desvelamento (Aleacutetheia) e natildeo como
aderente ao juiacutezo proposicional como compreendeu a tradiccedilatildeo Eacute assim que se daacute
primariamente o acesso ao fenocircmeno da linguagem em seu sentido ontoloacutegico
Podemos antecipar aqui o que seraacute desenvolvido nesse capiacutetulo a linguagem estaacute
assentada em duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado68 que
revelam a diferenccedila entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm
articulados pela imbricaccedilatildeo radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno
Finalmente pedindo a paciecircncia do nosso leitor antes de comeccedilarmos o capiacutetulo
III vamos repetir um pouco o que jaacute foi adquirido nos dois primeiros capiacutetulos da
Dissertaccedilatildeo quando tentamos mostrar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger no
interior da fenomenologia (a partir de sua criacutetica imanente e radicalizaccedilatildeo do gesto
fenomenoloacutegico) foi decisiva para a virada da questatildeo compreendida como possibilidade
de acesso pelo sentido do conhecimento ao sentido do ser Agora a partir de Ser e Tempo
eacute possiacutevel considerar que houve um aprofundamento desse gesto fenomenoloacutegico Por
outra teria ocorrido um aprofundamento ou uma radicalizaccedilatildeo das estruturas
fenomenoloacutegicas De modo mais claro eacute possiacutevel compreender o percurso heideggeriano
como uma tentativa de lanccedilar a intencionalidade enquanto essecircncia mesma da
68 Diferentemente de VIGO (2012 p71) que considera 3 estruturas compreensatildeo (Verstehen) -
interpretaccedilatildeo (Auslegung) e enunciado (Aussage) noacutes consideraremos apenas duas tendo em vista que
julgamos natildeo ser a compreensatildeo uma estrutura autocircnoma e que portanto ela natildeo deve ser separada da
interpretaccedilatildeo Seguimos a letra do sect32 de Ser e Tempo ldquoNa interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo
diverso mas torna-se ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p421) Pensamos que conceder autonomia agrave
compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido primaacuterio ao natildeo remetecirc-la ao Dasein quem
compreendendo jaacute interpreta e custodia o sentido de ser dos entes jaacute estariacuteamos no campo dos
acontecimentos histoacutericos Portanto estariacuteamos ultrapassando os limites de Ser e Tempo ou mais
especificamente falando os limites da ldquoAnaliacutetica Existencialrdquo
86
fenomenologia num acircmbito fundamental que se abriria a toda e qualquer possibilidade
de intencionalidade Vejamos essas questotildees mais detidamente
Como jaacute indicado tanto em Heidegger como em Husserl existe um primado da
experiecircncia antepredicativa em detrimento da predicaccedilatildeo ou da experiecircncia
predicativamente articulada69 Jaacute na preleccedilatildeo de 1919 Heidegger apontava o lsquoes gibtrsquo
originaacuterio ou a concretude do mundo que se daacute como acircmbito fundamental no qual se abre
a possibilidade de intencionalidade Depois dela as preleccedilotildees dos anos 1920 passaram a
descrever a intencionalidade como uma noccedilatildeo praacutetica orientada pela ocupaccedilatildeo e com base
nisso descreveram a experiecircncia antepredicativa e histoacuterica do significado Mas foi
somente em Ser e Tempo que Heidegger elaborou uma ontologia fundamental a partir da
analiacutetica existenciaacuteria70 do ser-aiacute A ontologia fundamental eacute descrita como a necessidade
de pocircr em questatildeo o ente em que a compreensatildeo de ser enquanto questatildeo eacute possiacutevel ou
como expresso no Relatoacuterio Natorp o ente que pode custodiar abrir-se ao desvelamento
do ser dos entes Mas o que isso significa sob uma perspectiva fenomenoloacutegica
A descriccedilatildeo do ser-aiacute como existecircncia projetiva assentada em sua negatividade
proacutepria (negatividade entendida pelo fato de que o ser-aiacute soacute eacute a partir do seu aiacute de sua
69 Nesse sentido conferir tambeacutem VIGO 2012 p75 70 Na traduccedilatildeo de Ser e Tempo utilizada os termos Existenzial e Existenzielle satildeo traduzidos por
ldquoexistenciaacuteriordquo e ldquoexistencialrdquo respectivamente A diferenccedila foi estabelecida por Heidegger para marcar a
determinaccedilatildeo constitutiva da existecircncia (ou sua estrutura) cuja determinaccedilatildeo cabe agrave ontologia
(existenciaacuterio) da determinaccedilatildeo existencial (existencial) que trata de um assunto ocircntico do Dasein ou de
um conhecimento que conduz a si mesmo (HEIDEGGER 2012 sect4-9)
Apesar da consulta a outras traduccedilotildees (francesa de Emmanuel Martineau e espanhola de Jorge Rivera)
usaremos os termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho Em alguns momentos aleacutem da
traduccedilatildeo de Castilho que eacute bastante recente (2012) tambeacutem citaremos as palavras da traduccedilatildeo brasileira
anterior (com exceccedilatildeo da traduccedilatildeo de lsquoDaseinrsquo como lsquopresenccedilarsquo que natildeo seraacute utilizada nesse trabalho)
Acerca dos termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho haveraacute apenas duas exceccedilotildees a
primeira refere-se ao uso da palavra lsquoDaseinrsquo a qual Castilho Rivera e Martineau mantiveram no original
alematildeo obedecendo uma sugestatildeo do proacuteprio Heidegger Ser-aiacute eacute a traduccedilatildeo portuguesa do termo alematildeo
Dasein que no uso comum na liacutengua alematilde eacute usado como sinocircnimo para existecircncia mas que no texto
heideggeriano tem um significado peculiar tornando a traduccedilatildeo do termo problemaacutetica Em uma carta de
Heidegger a Jean Beaufret datada de 23 de Novembro de 1945 o autor daacute a seguinte informaccedilatildeo ldquolsquoDa-
sein eacute uma palavra-chave do meu pensar por isso ela eacute causa de graves erros de interpretaccedilatildeo natildeo significa
para mim exatamente eis-me mas se eacute que me posso exprimir num francecircs sem duacutevida impossiacutevel ser-
o-aiacute e o-laacute significa exatamente Aleacutetheia desvelamento-aberturardquo (Carta sobre o humanismo Martin
Heidegger - 2 ed rev Traduccedilatildeo de Rubens Eduardo Frias Satildeo Paulo Centauro ndash 2005 p 89) Algumas
vezes infieacuteis a Castilho e ao proacuteprio Heidegger utilizaremos tambeacutem a sua traduccedilatildeo ldquoser-aiacuterdquo para maior
fluidez do texto A segunda exceccedilatildeo refere-se agraves citaccedilotildees cuja opccedilatildeo por traduccedilotildees tradicionais resolvemos
natildeo alterar
87
existecircncia) sem qualquer categoria preacutevia que o defina potildee em tela que esse ente eacute
marcado pelo caraacuteter de poder-ser orientando-se segundo possibilidades existenciais que
natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas somente na morte como fim de todas as
possibilidades Isso se daacute porque o ser-aiacute eacute o limite fundamental no qual se abre a
possibilidade de intencionalidade ou o sentido do experimentado enquanto
experimentado71 ldquoSoacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a abertura do ser-no-
mundo lsquopode ser preenchidarsquo pelo ente que nele pode ser descobertordquo (HEIDEGGER
2012 p429) De outro modo se para Husserl a noccedilatildeo de intencionalidade faz com que a
cada vez que o pensamento se volte agrave consciecircncia ela descortina sua direccedilatildeo em relaccedilatildeo
ao fenocircmeno Para Heidegger poreacutem uma vez superada a primazia da consciecircncia a
cada vez que o pensamento se volta ao Dasein ele descortina sua direccedilatildeo ao mundo
fenocircmeno originaacuterio em que os entes podem vir ao encontro em seu ser bem como as
possibilidades de ser do proacuteprio Dasein
A ontologia fundamental aparece em sua necessidade porque o ser-aiacute mesmo natildeo
pode ser intencionado significativamente natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente
e por isso seu caraacuteter de poder-ser por isso ele poder mobilizar sentidos e atualizar
significaccedilotildees Assim o ser-aiacute eacute o ente que custodia e compreende o ser do ente jaacute em suas
atividades praacuteticas ou seja ele mobiliza a intencionalidade mas eacute o ente que a
intencionalidade natildeo pode alcanccedilar Na tentativa de apreendecirc-lo em seu ser a anaacutelise
conduz para fora para seu ldquoaiacuterdquo Assim Dasein eacute ser-aiacute eacute existecircncia que se projeta
lanccedilada no ldquoaiacuterdquo histoacuterico O Dasein como apresentado por Heidegger ldquoenvolve uma
dimensatildeo de ser (-sein) e por outro uma dimensatildeo locativa um aiacute (Da-)rdquo (CASANOVA
2006 p12) e isto deve-se ao fato que ldquoapenas ele [Dasein] se acha no ponto de
imbricaccedilatildeo de ser e mundordquo (CASANOVA 2006 p12)
71 Cf HEIDEGGER (GA62) 2002 p 71 ldquoConforme seu caraacutecter intencional o compreender puro natildeo
custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo forma parte do horizonte intencional
da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso pode ser de outra maneirardquo ldquoDas reine Verstehen bringt
nicht etwa nach seinem intentionalen Charakter das menschliche Leben im Wie seines faktischen Seins in
Verwahrung die σοφία hat es uumlberhaupt nicht zu ihrem intentionalen Worauf es ist ja ein Seiendes das ist
gerade dadurch daszlig es je anders sein kannrdquo (HEIDEGGER GA62 [pp385-386] grifo nosso)
88
Dessa forma a pergunta pelo sentido do ser seraacute elaborada conforme os trecircs
momentos constitutivos da questatildeo descritos no sect2 de Ser e Tempo
1- O perguntando ou aquilo de que se pergunta ser do ente
2- O interrogado ou aquilo a quequem se pergunta Dasein
3- O perguntado ou aquilo que se pergunta sentido do ser em geral
A pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2) perguntando
sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma ontologia
fundamental Isso esclarecido podemos iniciar propriamente nosso capiacutetulo e tema
central de nosso trabalho
I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado)
Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico
II A dupla abertura de sentido (Sinn)
Conforme descrito no sect9 de Ser e Tempo o ser-aiacute eacute o ente que a cada vez somos
(eu tu etc) ou seja a particular existecircncia finita e histoacuterica natildeo um conceito geneacuterico
em que as diferenccedilas especiacuteficas apareceriam na experiecircncia sensiacutevel Para esse ente ldquoo
ser ele mesmo eacute o que estaacute a cada vez em jogordquo (HEIDEGGER 2012 p139) Existir e
ser responsaacutevel pelo seu ser eacute o mesmo No que existe o ser-aiacute tem-que-ser (Zu-sein) a
ele natildeo eacute facultado a escolha de haver ou natildeo com seu ser uma vez sendo ele eacute e sendo
ele ldquose comporta em relaccedilatildeo ao seu ser como em realizaccedilatildeo de sua possibilidade mais
proacutepria O Dasein eacute cada vez sua possibilidade (Moglichkeit)rdquo (HEIDEGGER 2012
p141)
Por meio de toda e qualquer performatizaccedilatildeo (com relaccedilatildeo a si mesmo em relaccedilatildeo
aos outros e em relaccedilatildeo aos entes) o ser-aiacute enssencializa a si mesmo como existecircncia E
89
no que se enssencia (como existecircncia e natildeo categorialmente) o seu ser mesmo estaacute em
jogo pois eacute por essa determinaccedilatildeo ontoloacutegica negativa que o ser-aiacute pode conquistar seu
poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees cotidianas
Assim o desenvolvimento da analiacutetica existenciaacuteria aponta para a compreensatildeo do
sentido formal72 da constituiccedilatildeo da existecircncia do ser-aiacute ldquoO Dasein se determina cada vez
como ente a partir de uma possibilidade que ele eacute e que ao mesmo tempo e de alguma
maneira ele entende em seu serrdquo (HEIDEGGER 2012 p 143)
As orientaccedilotildees cotidianas ou a cotidianidade mediana ndash em que o ser-aiacute pode
perder-se no poder-ser improacuteprio - natildeo deve ser considerada pejorativamente como algo
a ser extirpado da existecircncia e da analiacutetica Ao contraacuterio em realidade natildeo pode A
impropriedade oferecida por essas orientaccedilotildees eacute em suma a maneira inicial em que o ser-
aiacute - como ser-no-mundo como ente lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ndash estaacute aberto para seus
possiacuteveis modos de ser Dessa forma a anaacutelise da cotidianidade tem um caraacuteter
fenomecircnico positivo para a analiacutetica existenciaacuteria pois eacute a partir desse modo de ser
improacuteprio que o ser-aiacute eacute lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria
das vezes Portanto natildeo eacute apenas lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade
A analiacutetica existenciaacuteria inicia entatildeo sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio E se
dissemos haacute pouco eacute que por meio da performatizaccedilatildeo que o ser-aiacute enssencia a si mesmo
como existecircncia e essa orientaccedilatildeo para qualquer performance natildeo eacute ilimitada Como as
possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha para um ato de vontade
do ser-aiacute mas satildeo mobilizadas na e pela existecircncia radicalmente histoacuterica o ser-aiacute pela
abertura primaacuteria remetido ao mundo eacute marcado pelo caraacuteter de poder-ser (Seinkonnen)
mas em funccedilatildeo de sua realizaccedilatildeo como possibilidade (Moglichkeit) De modo mais claro
ldquopor natildeo possuir nenhuma quididade [o ser-aiacute cc] eacute a realidade da possibilidade para a
possibilidade () Natildeo podendo ser puro poder-ser pois se assim o fosse o ser-aiacute jaacute seria
algo positivamente definidordquo (CABRAL 2015 p79) Dessa forma o ser-aiacute que a cada
vez deve conquistar o seu ser na radicalidade de sua finitude e historicidade eacute o ente que
pode pela sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica mobilizar sentido E por isso mobilizar na
72 Quando nos referirmos a ldquosentido formalrdquo no decorrer de nosso trabalho Cf Capiacutetulo II- Item III-
Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
90
concretude da vida faacutetica o sentido de ser dos entes os sentidos das relaccedilatildeo aos outros e
sentido de seu ser
ldquoO desvelamento do ser exige sempre um ponto de partida ocircntico Mas o ser-aiacute
eacute privilegiado e ontologicamente ocircntico por causa de sua preacutevia compreensatildeo de
ser Entatildeo o desvelamento do ser deveraacute ser tentado primordialmente a partir do
ser-aiacute mediante uma analiacutetica existencial de suas estruturas O sentido do ser
(preocupaccedilatildeo) dessas estruturas do ser-aiacute eacute a temporalidade Assim a analiacutetica das
estruturas deveraacute ser refeita no homem na temporalidaderdquo (STEIN 2001 p204)
A preacutevia compreensatildeo de ser do ser-aiacute sua negatividade quiditativa seu caraacuteter
de poder-ser e sua constituiccedilatildeo aberta lanccedilada e remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo eacute dada
como acontecimento compreensivo A compreensatildeo ou o entender (Verstehen) eacute uma
das estruturas existenciaacuterias desse ente ocircntico-ontoloacutegico73 e ldquoao interpretaacute-lo como
existenciaacuterio fundamental mostra-se que esse fenocircmeno eacute assim concebido como modus
fundamental do ser do Daseinrdquo (HEIDEGGER 2012 p407) Esse existenciaacuterio
fundamental natildeo refere a uma capacidade entre outras do ser-aiacute de apropriar-se de algo
pelo entendimento intelectivo natildeo eacute uma relaccedilatildeo entre sujeito-objeto mas a constituiccedilatildeo
fundamental do ser-aiacute como ser-no-mundo como relaccedilatildeo intencional primaacuteria e desse
modo o horizonte compreensivo do ser-aiacute com seu ser ldquoO ser-aiacute possui uma relaccedilatildeo
compreensiva com o seu ser porque eacute somente por meio da compreensatildeo que ele encontra
o campo de jogo no interior do qual pode conquistar esse seu serrdquo(CASANOVA 2006
p 13) O ldquoDardquo ou ldquoaiacuterdquo do Dasein e sua estrutura fundamental ser-no-mundo podem ser
esclarecidos em contraponto a concepccedilatildeo paradigmaacutetica da epistemologia moderna de
Kant por exemplo O entender (Verstehen) tal como Heidegger o apresenta natildeo se baseia
na associaccedilatildeo psicoloacutegica das representaccedilotildees ou ainda a abertura primaacuteria que conduz o
ser-aiacute agraves suas possibilidades em que seu ser estaacute em jogo natildeo eacute algo como apercepccedilatildeo
No paradigma epistemoloacutegico da modernidade em uacuteltima instacircncia o entendimento eacute
uma reconstruccedilatildeo interna dos elementos externos do mundo reconstruccedilatildeo essa que
depende das faculdades cognitivas do sujeito capazes de unificar o agregado de
experiecircncias externas O entendimento em Heidegger eacute a abertura primaacuteria uma relaccedilatildeo
intencional estruturante ser-aiacute eacute ser-no-mundo portanto o Dasein eacute sempre remetido ao
73 Ocircntico pelo fato de ser ainda um ente ontoloacutegico pelo fato de ser o ente que pode e sempre abre a
compreensatildeo de ser (Cf HEIDEGGER 2012 sect4-9)
91
ldquomundordquo projetado para ldquoforardquo e esse ldquoforardquo eacute sempre abertura compreensiva ao mundo
faacutetico como horizonte hermenecircutico de sentido
Essa abertura compreensiva fundamental descerra o poder-ser do ser-aiacute como
projeto O fato de o ser-aiacute ser lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ao seu poder -ser em um
campo de jogo para seus possiacuteveis modos de ser natildeo conduz a um determinismo
circunstancial o qual o ser-aiacute estaria fadado a reproduzir maquinalmente e atualizar
incessantemente Tambeacutem ldquoo projetar nada tem a ver com um comportar-se em relaccedilatildeo a
um plano ideado de acordo com o qual o Dasein organizaria o seu serrdquo (HEIDEGGER
2012 p413) mas originariamente ldquoele sempre jaacute se projetou e se projeta enquanto eacuterdquo
(HEIDEGGER 2012 p413) A noccedilatildeo de projeto repousa na abertura compreensiva do
ser-aiacute e na sua ligaccedilatildeo radical com suas possibilidades Logo no iniacutecio do sect32 essa noccedilatildeo
eacute explicitada
ldquoO Dasein como entender projeta seu ser em possibilidades Esse entendedor ser
para possibilidades eacute ele mesmo um poder-ser pelo efeito contraacuterio que as
possibilidades como abertas tecircm sobre o Dasein O projetar do entender tem uma
possibilidade proacutepria de desenvolvimento Chamamos interpretaccedilatildeo o
desenvolvimento do entender Na interpretaccedilatildeo o entender entendendo
apropria-se do seu entendido Na interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo
diverso mas torna-se ele mesmo () A interpretaccedilatildeo natildeo consiste em tomar
conhecimento do entendido mas em elaborar possibilidades projetadas no
entenderrdquo (HEIDEGGER 2012 p421)
Dissemos haacute pouco que as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como
disponiacuteveis agrave escolha e agrave espera de um ato de vontade do ser-aiacute (natildeo estatildeo suspensas como
que dadas a cada ser-aiacute ao nascer como gocircndolas de projetos de ser) mas satildeo mobilizadas
na e pela existecircncia E ainda que essa existecircncia seja sempre projetiva em um mundo
histoacuterico Desse modo o entender (Verstehen) acontece sempre como interpretaccedilatildeo
(Auslegung) a abertura ao mundo eacute um projeto de sentido do ser-aiacute que jaacute interpreta que
jaacute potildee em visatildeo o que entende Mas o que isso quer dizer Como Heidegger chega a esses
existenciaacuterios
Vimos no capiacutetulo anterior a partir da leitura do texto de 1922 Interpretaccedilotildees
fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) ou
Relatoacuterio-Natorp que o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona
92
um lsquoaquirsquordquo essa virtude proacutepria do homem ldquose realiza como ενέργεια como atividade
() ou seja o νους abre um horizonte que sempre responde a um modo concreto de tratar
com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma
determinaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2002 p66) Compreendido tradicionalmente como
intelecto propriamente racional o noucircs eacute proacuteprio do homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica
[homem (animal (gecircnero) + racional (diferenccedila especiacutefica)] mas porque o ser-aiacute eacute o ente
que pode custodiar abrir-se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um
compreender que jaacute interpreta os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto
na vida faacutetica que acontece fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis
enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato
praacutetico com os entes
Em Ser e Tempo Heidegger descreve as vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico e
tambeacutem como o fenocircmeno do mundo se mostra atraveacutes dos entes intramundanos A forma
imediata de esses entes se mostrarem daacute-se na lida praacutetica que o ser-aiacute trava com eles em
um mundo circundante ou em um mundo-ambiente (Umwelt) Eacute atraveacutes da ocupaccedilatildeo
com os entes que o ser-aiacute se movimenta inicialmente na compreensatildeo faacutetica de mundo eacute
aiacute que o Dasein visualiza os entes em sua serventia especiacutefica no quadro de um horizonte
ocupacional Esse horizonte possui certa anterioridade em relaccedilatildeo ao proacuteprio uso do
instrumento ou utensiacutelio (Zeug) particular e isto fica claro no sect 15 quando Heidegger
potildee em relevo o modo de ser dos utensiacutelios na delimitaccedilatildeo preacutevia do que seja sua
instrumentalidade ldquoEm termos rigorosos um instrumento nunca lsquoeacutersquo isolado Ao ser de
instrumento pertence sempre cada vez um todo-instrumental no qual esse instrumento
pode ser o que ele eacute Instrumento eacute por essecircncia lsquoalgo pararsquo (HEIDEGGER 2012
p211) Na essecircncia do instrumento estaacute sempre a referecircncia de algo para algo O ser do
utensiacutelio e seu significado que aparece no instante do trato portanto jaacute interpretado a
partir do uso nascem da totalidade utensiliar (Zeugganzheit) que o atravessa Mas esta
totalidade utensiliar se assenta num contexto ainda mais complexo Se o utensiacutelio eacute
confeccionado de acordo com a sua finalidade especiacutefica como ldquoalgo parardquo seu uso o
liga a outros utensiacutelios por exemplo o pincel que uso para pintar remete-se agrave tela que
uso para suporte da tinta Assim como a tela remete-se natildeo soacute a sua finalidade mas
tambeacutem aos materiais atraveacutes dos quais ela foi produzida madeira tecido e gesso E
ainda remete-se ao produtor da tela ou seja aos outros entes no modo de ser do ser-aiacute
93
Poreacutem essa descriccedilatildeo do instrumento em um mundo-ambiente (Umwelt) ainda eacute
insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica de todo ente em geral
Assim conforme o sect 17 Heidegger aponta que a estrutura do sinal (Zeichen) ldquofornece
um fio condutor ontoloacutegico para uma lsquocaracterizaccedilatildeorsquo de todo ente em geralrdquo
(HEIDEGGER2012 p 233) O sinal enquanto utensiacutelio tem em sua serventia especiacutefica
o mostrar e ao mostrar fornece o fenocircmeno da referecircncia natildeo somente de sua referecircncia
mas de todo e qualquer ente uma vez que a relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia explicita o
fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua finalidade
na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal enquanto
instrumento nos mostra o mundo circundante e potildee em relevo o caraacuteter da referecircncia
que natildeo deve ser confundida com o proacuteprio sinal pois natildeo eacute determinaccedilatildeo ocircntica de um
ou outro manual especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica do manual e fundamento
constitutivo da mundidade como rede referencial na qual o Dasein jaacute se encontra inserido
na abertura ao mundo Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo
circundante o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a
complexa rede de remissotildees referenciais e atraveacutes dela a totalidade conjuntural ou
conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)
ldquoO termo conjuntura tem como correlato na liacutengua alematilde a palavra Bewandtins
que designa primariamente a propriedade ou a constituiccedilatildeo de uma coisa e em
um segundo momento a circunstacircncia em que algo se mostra essencialmente
como algo Neste segundo caso o termo se mostra em sintonia com a expressatildeo
Bewendenlassen como o deixar (lassen) algo se conformar (bewenden) a uma
certa estrutura e se mostrar como o que eacute em meio a essa conformidaderdquo
(CASANOVA 2006 p37)
A noccedilatildeo de conjuntura no sect 18 eacute um dos momentos mais decisivos da primeira
parte de Ser e Tempo pois revela que a totalidade conjuntural eacute anterior a qualquer
determinaccedilatildeo particular dos entes intramundanos Eacute essa conjuntura que determina os
usos possiacuteveis a partir da conformidade dos entes nela inseridos revelando que o
utensiacutelio em si mesmo natildeo possui qualquer determinaccedilatildeo essencial mas a recebe do
campo de uso da conjuntura na qual estaacute inserido Mas natildeo eacute soacute isso a determinaccedilatildeo
essencial de um ente intramundando acontece tambeacutem em funccedilatildeo do ser-aiacute cujo lsquoem
vista dersquo ao final da remissatildeo natildeo mais remonta a um lsquopara quecircrsquo mas mobiliza e em
uacuteltima instacircncia determina as conformaccedilotildees dos entes intramundanos Isso revela que o
que estaacute em jogo natildeo eacute o que eacute algo mas antes em virtude de que se faz algo O ser-aiacute
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pode agir relacionar-se com os outros e consigo mesmo pois sabe comportar-se no
campo fenomecircnico aberto que arrasta consigo sua possibilidade de ser De outra forma
toda e qualquer performatizaccedilatildeo do ser-aiacute em relaccedilatildeo aos entes remete em uacuteltima medida
agravequele que pode voltar-se aos entes e mobilizaacute-los
O que a conjuntura indica previamente eacute ldquoa articulaccedilatildeo originaacuteria com certas
possibilidades essenciais do ser-aiacute que permitem ao ser-aiacute projetar efetivamente o campo
de sua realizaccedilatildeo como poder-serrdquo (CASANOVA 2006 p36) Essa realizaccedilatildeo do poder-
ser do ser-aiacute mobiliza a conformaccedilatildeo dos entes em funccedilatildeo do sentido existencial do ser-
aiacute pois uma atividade qualquer natildeo eacute feita por ela mesma mas soacute tem sentido na intenccedilatildeo
de um ente que estaacute aberto agrave apreensatildeo do ser dos entes em geral Desse modo a primaacuteria
abertura compreensiva do ser-aiacute ao mundo eacute um projeto de sentido que jaacute interpreta e ao
fazecirc-lo realiza a cada vez a cada ato de sua existecircncia a cada performatizaccedilatildeo a
possibilidade de seu ser pondo em liberdade os entes no interior do mundo e as relaccedilotildees
com os outros no projeto lanccedilado (faacutetico) na e pela sua existecircncia E isso porque
ldquoQuando o ente do-interior-do-mundo eacute descoberto com o ser do Dasein isto eacute
quando veio ao entendimento dizemos que ele tem sentido Mas tomado
rigorosamente o que eacute entendido natildeo eacute o sentido mas o ente ou o ser Sentido eacute
aquilo em que a entendibilidade de algo se manteacutem () Sentido eacute aquilo-em-
relaccedilatildeo-a-quecirc do projeto estruturado pelo ter-preacutevio pelo ver-preacutevio e pelo
conceito preacutevio a partir de que algo pode ser entendido como algo Na medida
em que entender e interpretaccedilatildeo constituem a constituiccedilatildeo existenciaacuteria do lsquoaiacutersquo o
sentido deve ser concebido como arcabouccedilo existenciaacuterio-formal da abertura
pertencente ao entender O sentido eacute um existenciaacuterio do Dasein natildeo uma
propriedade presa ao ente que reside lsquoatraacutesrsquo dele ou flutua em algum lugar como
em um lsquoreino intermediaacuteriorsquo Soacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a
abertura do ser-no-mundo lsquopode ser preenchidarsquo () E quando perguntamos
pelo sentido de ser a investigaccedilatildeo natildeo se torna entatildeo profunda e natildeo excogita
nada que esteja atraacutes do ser mas pergunta por ele mesmo na medida em que ele
estaacute na entendibilidade do Dasein O sentido de ser nunca pode ser contraposto
ao ente ou ao ser como lsquofundorsquo que sustenta o ente porque o lsquofundamentorsquo soacute eacute
acessiacutevel como sentido mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta- de-
sentidordquo (HEIDEGGER 2012 pp 429-431)
Apelamos para essa longa citaccedilatildeo a fim de explicitar o que dissemos
anteriormente acerca da mobilizaccedilatildeo dos entes em seu ser em funccedilatildeo dos focos
existenciais do ser-aiacute Os entes somente vecircm ao encontro como entes que satildeo a partir da
intenccedilatildeo de um ente que estaacute aberto a compreensatildeo do ser dos entes em geral Com a
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citaccedilatildeo pretendemos tambeacutem apontar para algo importante acerca do fundamento
histoacuterico dessa abertura O sentido de ser natildeo eacute algo a ser alcanccedilado teoricamente pois
natildeo eacute algo estaacutevel e fundante da realidade que responde ao esquema causa-efeito ele eacute
essencialmente histoacuterico e eacute trazido pela experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica
da existecircncia mesma do ser-aiacute Natildeo se pode ter lsquoserrsquo sem a compreensatildeo do sentido de
ser vinculando portanto lsquoserrsquo ao ser-aiacute ente cuja estrutura pertence agrave compreensatildeo de
ser Como nos adverte o autor de Ser e Tempo o Dasein eacute um ente certamente diferente
dos outros entes no interior do mundo e eacute o lsquoabismo da falta de sentidorsquo que remete agrave
totalidade do fenocircmeno do ser-aiacute como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge) a qual acontece
em funccedilatildeo do sentido da temporalidade (Zeitlichkeit) Eacute essa ldquosegundardquo abertura de
sentido que devemos explicitar a partir de agora
Indicamos acima que a indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica do ser-aiacute o conduz a conquistar
seu poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees
cotidianas Poreacutem ser-proacuteprio ou ser-improacuteprio natildeo satildeo categorias operacionalizaacuteveis em
funccedilatildeo de um ideal de vida Essas possibilidades repousam na existecircncia e revelam a
tensatildeo da condiccedilatildeo primaacuteria da abertura ao mundo do ser-aiacute como projeto- jogado e
ldquodessa tensatildeo eacute possiacutevel deduzir o modo como o ser-aiacute faticamente existe() o caraacuteter
mesmo do jogado do ser-aiacute implica a absorccedilatildeo imediata no mundo sedimentado ele
encontra a si mesmo na medida em que se perderdquo (CASANOVA 2009 p123) E por
isso quando a analiacutetica existenciaacuteria inicia sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio no qual
o ser-aiacute eacute lanccedilado ldquoisso natildeo significa por sua vez outra coisa senatildeo que ele [o ser-aiacute]
concretiza o poder ser que ele eacute a partir das possibilidades faacuteticas disponibilizadas pelo
mundordquo (CASANOVA 2009 p123)
A abertura compreensiva eacute uma compreensatildeo da proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica na qual
nos orientamos inicialmente e na qual satildeo dadas nossas possibilidades de ser natildeo de
maneira teoacuterica mas absorvidas nas praacuteticas nos projetos de sentido relaccedilatildeo com os
outros e lida com os entes Abertura essa que um passado tornou possiacutevel e se faz
radicalmente imperativa no presente atraveacutes da cotidianidade orientando o ser-aiacute e
fazendo emergir algo assim como um mundo Por exemplo a realizaccedilatildeo deste trabalho
como dissertaccedilatildeo acadecircmica apareceu como possibilidade para o projeto de sentido de
sua autora porque escrever sobre filosofia faz sentido este projeto de sentido veio ao
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encontro de seu poder-ser natildeo meramente por um ato de escolha mas inicialmente porque
filosofia dissertaccedilatildeo e universidade satildeo elementos mantidos em seu significado oriundo
da tradiccedilatildeo ocidental natildeo por uma linha histoacuterica que a autora recupera e quer trazer ao
presente mas porque mais uma vez ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto apropriaccedilatildeo
compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo
(HEIDEGGER2002 p30)
E uma vez remetida ao mundo pela orientaccedilatildeo cotidiana a autora pode
estabelecer relaccedilotildees com os entes (livros computador papel etc) consigo mesmo (como
autora) e com os outros (leitores desse trabalho) que partilham essas possibilidades
sedimentadas Dessa forma a orientaccedilatildeo cotidiana primaacuteria revela ldquoexistir () eacute de iniacutecio
o mesmo que perder-se de sirdquo (CASANOVA 2009 p123) pois ldquoo ser-aiacute suspende a
irrealidade originaacuteria que eacute a sua e adquire ao mesmo tempo um modo de ser marcado
por uma aparecircncia de consistecircnciardquo (CASANOVA 2009 p123) Em outras palavras a
absorccedilatildeo na cotidianidade (o caraacuteter de jogado do projeto) oferece uma familiaridade ao
ser-aiacute na qual ele pode se movimentar pois oferece a confiabilidade ocircntica ao projeto de
sentido mas tambeacutem estabelece
ldquoUma relaccedilatildeo com o seu poder-ser que pode ser denominado como fuga uma vez
que a suspensatildeo [de sua irrealidade originaacuteria] promove exatamente uma
tranquilizaccedilatildeo em meio agrave supressatildeo de nadidade constitutiva de um ente marcado
pelo caraacuteter de poder-ser e o ocultamento de um tal caraacuteterrdquo (CASANOVA
2009 p123)
Em meio agrave familiaridade em que o ser-aiacute eacute jogado sua negatividade quiditativa e
seu traccedilo ontoloacutegico essencial como poder-ser satildeo obstruiacutedos agrave compreensatildeo do Dasein
em relaccedilatildeo ao seu ser Voltemos ao nosso exemplo as relaccedilotildees que a autora deste trabalho
pode exercer a partir de suas possibilidades a orientam como ser autora deste trabalho
como aquela que escreve ou ainda como aquela vinculada agrave universidade e assim por
diante Poreacutem nada poderia definir nossa existecircncia como fazem as orientaccedilotildees
cotidianas pois o Dasein que cada um de noacutes somos eacute marcado pela negatividade radical
frente a qualquer definiccedilatildeo ocircntica Como entatildeo essa fuga natildeo nos condena a reproduzir
maquinalmente e atualizar incessantemente as orientaccedilotildees cotidianas - Porque o ser-aiacute
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mesmo jogado eacute ainda projeto e no limite de seu projeto ele pode se encontrar com seu
poder-ser mais proacuteprio como ser para a morte (das Sein zum Tod)74
Tal como as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha agrave
espera de um ato de vontade do ser-aiacute a conquista de seu ser-proacuteprio ou sua
singularizaccedilatildeo tambeacutem natildeo eacute produto de sua vontade A dinacircmica de singularizaccedilatildeo do
ser-aiacute eacute possiacutevel pela tonalidade afetiva ou o modo de encontrar-se (Befindlicheit)
fundamental da anguacutestia (Angst)
O entender (Verstehen) ou abertura compreensiva eacute sempre dispositiva na medida
em que a compreensatildeo natildeo se refere agrave capacidade ou agraves faculdades cognitivas do homem
ldquoO termo disposiccedilatildeo aponta diretamente para o modo como o ser-aiacute a cada vez se
descobre em meio a uma tal abertura Na medida em que o ser-aiacute eacute um ente
marcado essencialmente por seu caraacuteter existencial e natildeo se mostra senatildeo como
um poder ser ele natildeo pode aprender a abertura do ente na totalidade por meio de
alguma faculdade cognitiva de sua subjetividade () Befindlichkeit diz o
encontrar-se de uma certa maneirardquo (CASANOVA 2006p50)
Encontrar-se de certa maneira natildeo eacute uma espeacutecie de afeto psicoloacutegico que o ser-
aiacute projeta de dentro para fora nem uma relaccedilatildeo de fora para dentro que afeta o ser-aiacute Natildeo
eacute uma relaccedilatildeo causal Eacute uma afinaccedilatildeo (ajuste do tom) que deve ser compreendida
repousando na intenccedilatildeo primaacuteria do ser-aiacute como ser-no-mundo Como o autor explicita
ainda no sect29 ldquoO ser do estado-de-acircnimo do encontrar-se constitui existenciariamente a
abertura do Dasein para o mundordquo (HEIDEGGER 2012 p393) Eacute propositadamente que
se apela para a metaacutefora musical (ldquoafinaccedilatildeordquo) para tentar compreender esse ldquoestado de
acircnimo do encontrar-serdquo como por exemplo acontece quando uma muacutesica eacute tocada ela
afina a abertura compreensiva do ser-aiacute a um estado de acircnimo que noacutes poderiacuteamos chamar
de melancoacutelico A melancolia natildeo estaacute na muacutesica (natildeo haacute como pensar que as tonalidades
afetivas sejam propriedades de um ou outro ente na medida em que o ser de todo e
74 Aqui eacute importante considerar as palavras de Juliaacuten Mariacuteas na Conferecircncia do curso ldquoLos estilos de la
Filosofiacuteardquo Madrid 19992000 Ediccedilatildeo Jean Lauand Traduccedilatildeo Sylvio Horta ldquoa preposiccedilatildeo zu natildeo quer
dizer para mas a Isto eacute a expressatildeo sein zum Tod poderia ser traduzida por estar agrave morte (estar a
la muerte) Qual eacute a condiccedilatildeo dos homens - e das mulheres evidentemente - natildeo somente quando nos
atropela um caminhatildeo ou quando temos pneumonia dupla O homem estaacute agrave morte sempre estaacute na
possibilidade de morrer estaacute em potecircncia proacutexima de morrer estaacute exposto agrave morte e eacute isso justamente o
que quer dizer sein zum Tod estar aberto agrave morte estar nessa possibilidade proacutexima real eficazrdquo
98
qualquer ente eacute aberto em funccedilatildeo do ser-aiacute que os potildee em liberdade no interior do mundo)
como tambeacutem natildeo estaacute no Dasein (natildeo haacute nada de aderente a esse ente que venha agrave tona
sua abertura eacute sempre remetida ao mundo e ao encontro com os entes) Portanto a
melancolia como no exemplo eacute a modificaccedilatildeo da atmosfera promovida pelo proacuteprio
encontrar-se do ser-aiacute em meio aos entes
Mas por qual motivo a anguacutestia aparece em Ser e Tempo como a tonalidade afetiva
ou o modo fundamental de encontrar-se Enquanto os estados de acircnimo natildeo conforme agrave
anguacutestia constituem a abertura compreensiva do ser-aiacute para a lida e para as relaccedilotildees que
podem ser realizadas no interior do mundo em meio aos entes ldquoo diante-de-quecirc da
anguacutestia eacute o ser-no-mundo como talrdquo (HEIDEGGER 2012 p521) Na anguacutestia natildeo haacute
ente que venha ao encontro no qual o ser-aiacute possa se reportar e refugiar-se mas a si mesmo
em sua indeterminaccedilatildeo
ldquoNa anguacutestia o utilizaacutevel do mundo-ambiente e em geral o ente do-interior-do-
mundo se afundam O lsquomundorsquo jaacute nada pode oferecer nem tambeacutem o Dasein-
com com os outros A anguacutestia retira assim do Dasein a possibilidade de no
decair entender-se a partir do lsquomundorsquo e do puacuteblico ser-do-interpretado Ela
projeta o Dasein de volta naquilo por que ele se angustia seu proacuteprio poder ndashser-
no-mundo () Com o porquecirc do se angustiar a anguacutestia abre portanto o Dasein
como ser possiacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012 p525)
Na anguacutestia natildeo haacute a ldquosuspensatildeo de mundordquo como se o Dasein se retirasse dele
O que haacute eacute a suspensatildeo das orientaccedilotildees cotidianas que obliteram sua constituiccedilatildeo
primaacuteria Portanto ainda e agora radicalmente transparente como ser-no-mundo o
Dasein suspende a familiaridade em meio ao ente voltando-se a si mesmo como ser-
possiacutevel que mobiliza sentido e ldquotem mundordquo Lembremos que a necessidade da ontologia
fundamental como radicalizaccedilatildeo do gesto fenomenoloacutegico indica que o ser-aiacute mesmo
natildeo pode ser intencionado natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente e por isso seu
caraacuteter de poder-ser E se pela anguacutestia o ser-aiacute volta-se a si mesmo o que vem eacute essa
indeterminaccedilatildeo radical revelando em uacuteltima medida o ldquoabismo da falta de sentidordquo Esse
abismo natildeo leva a qualquer espeacutecie de niilismo natildeo eacute o que estaacute em jogo aqui ao
contraacuterio pois o ldquoo ser-aiacute se vecirc confrontado com o seu caraacuteter como poder-ser Dessa
confrontaccedilatildeo nasce ao mesmo tempo a possibilidade de assunccedilatildeo de si mesmo como
cuidado (Sorge)rdquo (CASANOVA 2009 p128)
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Recuperemos por um instante os trecircs momentos constitutivos da questatildeo descritos
no sect2 de Ser e Tempo a pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2)
perguntando sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma
ontologia fundamental A ontologia fundamental como analiacutetica existenciaacuteria em seu
primeiro momento descreve as estruturas fundamentais do ser-aiacute com o propoacutesito de
chegar ao ser desse ente que compreende o sentido de ser (sect12 ao sect38) Contudo eacute
importante considerar que existe certa lsquoartificialidadersquo nesse processo de explicitaccedilatildeo das
estruturas do ser-aiacute Eacute importante manter o sentido de ldquoanaliacuteticardquo Pois o fenocircmeno
mesmo deve ser compreendido como um todo natildeo em funccedilatildeo das partes mas a partir de
sua proacutepria mostraccedilatildeo Em outras palavras a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein deve agora
ser recuperada e este ente deve ser assinalado de maneira propriamente fenomenoloacutegica
ou seja em sua totalidade enquanto fenocircmeno Eacute o que a segunda parte da analiacutetica deve
recuperar ldquoabrangendo os componentes que se interligam ndash a existencialidade a
facticidade e a quedardquo (NUNES 2012 p116)
A partir desses componentes Heidegger apresenta o sentido formal da
preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-em (-o-mundo)
como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo (HEIDEGGER
2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser (existencialidade ou
existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que foi
lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio aos
entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)
Poreacutem natildeo dissemos que o ser-aiacute eacute marcado pela negatividade quiditativa e que
existe segundo possibilidades as quais natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas na morte
como fim de todas as possibilidades Ou nas palavras de nosso autor ldquoE se a existecircncia
determina o ser do Dasein e sua essecircncia eacute constituiacuteda pelo poder-ser entatildeo o Dasein
podendo ser enquanto existir deve-ser cada vez algo de ainda natildeo sendordquo
(HEIDEGGER 2012 p645) Entatildeo essa interpretaccedilatildeo do ser do Dasein como um
fenocircmeno unitaacuterio como Sorge natildeo contradiz tal afirmaccedilatildeo Natildeo haacute qualquer
contradiccedilatildeo pois eacute exatamente
ldquoO cuidado como manifestaccedilatildeo da finitude que permite a Heidegger identificar
a morte como o chegar do Dasein ao fim () e ver nesse ente em sua totalidade
o ser para a morte() O Dasein chega pois a um fim mas que o determina desde
100
o princiacutepio como possibilidade do que viraacute a ser A morte natildeo eacute para ele portanto
o puro aniquilamento representaacutevel conforme a experiecircncia da caducidade ()
impessoal e necessaacuterio na seacuterie de causas naturais () Ontologicamente falando
o homem deixa de viver porque morre e morre porque lhe eacute inerente o morrer
enquanto poder-ser de cada qual () intrasferiacutevel e irrepresentaacutevel na relaccedilatildeo
com o ser a que a existecircncia estaacute concernidardquo (NUNES 2012 pp 117-119)
Como poder-ser (existenciariedade) o ser-aiacute adianta-se em relaccedilatildeo agrave sua
possibilidade mais proacutepria Seu ser-proacuteprio insuperaacutevel como ser-para-a-morte (porque
intransferiacutevel a qualquer outro) revela-se como a possibilidade para a impossibilidade
ou seja impossibilidade de sua existecircncia lanccedilada (facticidade) de ter um lsquoaiacutersquo sendo o
lsquoaiacutersquo a compreensatildeo dos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)
Mas eacute importante considerar que a preocupaccedilatildeo ou o cuidado natildeo eacute a totalidade alcanccedilada
por aquele que chegou agrave singularizaccedilatildeo pela tonalidade fundamental da anguacutestia ela eacute a
constituiccedilatildeo ontoloacutegica de todo e qualquer Dasein O que a singularizaccedilatildeo promove
como possibilidade aberta pela anguacutestia eacute a transparecircncia desse ser-proacuteprio cada vez
obliterado na cotidianidade Na cotidianidade a morte eacute vista como um ldquomero deixar de
viverrdquo transferido a cada vez ao outro que morreu ldquodessa vezrdquo75 em um tratamento
radicalmente impessoal pela indiferenccedila frente a esse poder-ser proacuteprio e irrevogaacutevel
A morte como fim de todas as possibilidades enquanto poder-ser extremo eacute
indeterminada mesmo que seja a certeza mais proacutepria Pois natildeo se chega agrave morte
pensando nela o que estaacute em jogo eacute a responsabilidade do ser-aiacute frente a essa
transparecircncia a assunccedilatildeo pelo ser-aiacute de sua nulidade que atravessando-o (sem qualquer
conteuacutedo prescritivo do que deve-se ou natildeo fazer) pode orientar o caminho de sua
existecircncia Existecircncia ainda faacutetica ainda em meio aos entes de um mundo sedimentado
Em outras palavras caminho que reconduz o ser-aiacute ao ldquoaiacuterdquo que ele tem que ser e que ele
radicalmente eacute O que a singularizaccedilatildeo aponta eacute ldquoLeben ist Tod und Tod ist auch ein
75 Heidegger indica a novela de LN Tolstoacutei ldquoA morte de Ivan Ilitchrdquo para ilustrar o fenocircmeno da morte
tratada impessoalmente e o abalo dessa impessoalidade (Cf HEIDEGGER 2012 p699) Poderiacuteamos
tambeacutem indicar a partir de nossa cotidianidade exemplos do tratamento impessoal acerca da morte as
estatiacutesticas dos ldquomortos nas estradasrdquo a notiacutecia da morte de alguma personalidade puacuteblica e ainda - para
natildeo confundirmos esse fenocircmeno com um mero ldquonoticiarrdquorsquo a morte - a maneira mesma que tratamos a
morte de algueacutem proacuteximo pois mesmo tomados pelo pesar o que constatamos eacute a ldquoperdardquo do outro Seria
possiacutevel restaurar a ponte mesmo que indicativa que Heidegger natildeo admite entre o fenocircmeno impessoal
da morte e nosso ser-proacuteprio como ser-para-a-morte Talvez algo acessiacutevel pela linguagem poeacutetica Aqui
eacute oportuno considerar os belos versos do poema Na morte de Henriqueta Lisboa ldquoNa morte nos
encontramos Sim na morte Tempo de consoacutercio e de viacutenculordquo In Flor da Morte Belo Horizonte Ed
UFMG 2004
101
Leben76rdquo Nessa indicaccedilatildeo ldquoO si-mesmo que como tal tem de pocircr o fundamento de si
mesmo nunca pode se assenhorar desse fundamento e tem de existindo assumir no
entanto o ser-fundamento Ser o proacuteprio fundamento dejectado eacute o poder-ser em jogo na
preocupaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p779) Eacute pela assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo
(Sorge) que o ser-aiacute pode compreender que os sentidos mobilizados em sua existecircncia satildeo
existenciariamente remetidos ao seu ser mesmo ente histoacuterico e finito radicalmente
marcado pela nulidade essencial Isso posto recuperamos uma vez mais agora com toda
a importacircncia as palavras de nosso autor ldquoo lsquofundamentorsquo soacute eacute acessiacutevel como sentido
mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta-de-sentidordquo (HEIDEGGER 2012 p431)
A transparecircncia de seu ser-proacuteprio ao ser-aiacute eacute assumir ldquoser como fundamento
dejectado da nulidade Mas a assunccedilatildeo da dejecccedilatildeo significa para o Dasein ser
propriamente como ele a cada vez jaacute erardquo (HEIDEGGGER 2012 p887) Em outras
palavras a assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute para o ser-aiacute reconhecer que ele
eacute existecircncia radicalmente faacutetica (Faktizitaumlt) ainda em meio aos entes de um mundo
sedimentado Desse modo ldquoentender o seu ser ainda e sempre ldquoem seu essencial ser-
culpadordquo (HEIDEGGER 2012 p887) A singularizaccedilatildeo do ser-aiacute natildeo promove um
distanciamento da vida cotidiana natildeo faz com que ele se retire da queda mas que a
assuma e assim assuma ldquoa responsabilidade pela necessidade de pagar uma diacutevida que
cada ser-aiacute tem para consigo mesmordquo (CASANOVA 2009 p136) Diacutevida de assumir
seu ser como existecircncia como projeto-jogado e como poder-ser proacuteprio marcado pela
possibilidade extrema da morte Essa culpa do ser-aiacute eacute a assunccedilatildeo de que ele jaacute sempre
desonerou seu ser ele jaacute sempre deixou seu ser sob tutela do mundo e das orientaccedilotildees
cotidianas - por sua condiccedilatildeo de soacute poder-ser a partir da absorccedilatildeo imediata no mundo
Essa culpa natildeo eacute a mesma das concepccedilotildees cristatildes Em Pascal por exemplo a culpa eacute
consequecircncia da perda de nossa primeira natureza em funccedilatildeo do pecado original77 Para
Heidegger a culpa eacute consequecircncia do fato de natildeo termos qualquer natureza Natildeo haacute como
se retirar dessa condiccedilatildeo eis nossa culpa essencial e nossa queda irremediaacutevel
76 ldquoA vida eacute morte e a morte eacute tambeacutem uma vidardquo HOumlLDERLIN Friedrich In lieblicher Blaumlue - Disponiacutevel
em httpswwwhsaugsburgde~harschgermanicaChronologie19JhHoelderlinhoe_0801html Acesso
em 21 marccedilo 2016 77 Cf por exemplo os aforismos 131 e 616 de Pascal nos Penseacutees Ediccedilatildeo e organizaccedilatildeo Lafumaacute
102
Mas se chegamos agrave totalidade originaacuteria do todo-estrutural do ser-aiacute ou em outras
palavras agrave assinalado constituiccedilatildeo propriamente fenomenoloacutegica do ser-aiacute como
preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute necessaacuterio considerar o sentido ontoloacutegico desse fenocircmeno
Lembramos mais uma vez o que eacute ldquosentidordquo para Heidegger ldquoSentido eacute aquilo em que a
entendibilidade de algo se manteacutemrdquo (2012 p429) Se o ser-aiacute pode ser indicado em sua
totalidade fenomecircnica (ainda que radicalmente diverso dos entes do interior do mundo)
eacute necessaacuterio como expresso no sect65 perguntar ldquoQue possibilita o ser do Dasein e assim
sua existecircncia factual (faktische)
O sentido de ser do Dasein como Sorge a compreensatildeo de sua nulidade essencial
a partir do fenocircmeno unitaacuterio de seu ser aponta para aquilo que pode sustentaacute-lo ldquoA
temporalidade descobre-se como o sentido da preocupaccedilatildeo proacutepriardquo (HEIDEGGER
2012 p889)
Na continuaccedilatildeo do sect65 o autor descreve como a preocupaccedilatildeo reside na
temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-
em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo
(HEIDEGGER 2012 p891) Futuro (poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente
(presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees temporais como as que tomamos diariamente mas
o caraacuteter essencial da existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre
adiantado (futuro) em relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza
as possibilidades na facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva da
proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica a cada vez presente na qual nos orientamos inicialmente em
nossos comportamentos) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no
presente esse passado em seus comportamentos e projetos E como adverte o autor
ldquoOs momentos da preocupaccedilatildeo natildeo se amontoam como a temporalidade ela
mesma natildeo vai tambeacutem lsquocom o temporsquo se compondo de futuro ser-do-sido e
presente A temporalidade natildeo lsquoeacutersquo em geral nenhum ente Ela natildeo eacute mas se
temporalizardquo (HEIDEGGER 2012 p893)
Ou seja a temporalidade acontece na existecircncia do ser-aiacute na unidade do
fenocircmeno que se mostrou como preocupaccedilatildeo ou cuidado (Sorge) E ainda acontece jaacute no
que o ser-aiacute entende (Verstehen) como o sentido ontoloacutegico desse acontecimento mesmo
da compreensatildeo Por isso ainda no iniacutecio desse toacutepico dissemos que a constituiccedilatildeo aberta
103
e remetida ao mundo (ao seu ldquoaiacuterdquo) do ser-aiacute eacute dada como acontecimento compreensivo
pois em seu sentido ontoloacutegico eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) que se temporaliza78
Assim finalmente chegamos agrave dupla abertura de sentido em Ser e Tempo a que
chamamos de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo a abertura compreensiva do ser-aiacute
remetida ao mundo e o sentido de ser do ser-aiacute a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) O
caraacuteter fundamental dessa estrutura se daacute pelo fato que eacute a partir dela que o ser-aiacute pode
conceder significaccedilotildees e por isso a primeira estrutura do que pode tornar manifesto o
fenocircmeno da linguagem Agora eacute necessaacuterio descrever a relaccedilatildeo entre mundo e
significatividade ainda como parte dessa primeira estrutura para que alcancemos a
segunda estrutura o fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) e a partir dele agrave linguagem
III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)
No toacutepico anterior apresentamos a constituiccedilatildeo aberta do ser-aiacute lanccedilada e
remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo Mas o que constitui algo assim como mundo O que
afinal quer dizer ldquomundordquo (Welt) Nesse sentido precisamos retomar a descriccedilatildeo
realizada anteriormente acerca da referecircncia e da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) Essa
retomada natildeo significa prolixidade mas consequecircncia inevitaacutevel da ligaccedilatildeo essencial
entre ser-aiacute e mundo E se antes a descriccedilatildeo foi explicitada para compreendermos a
abertura de sentido em funccedilatildeo do ser-aiacute agora seraacute exposta para compreendermos o
proacuteprio ldquoaiacuterdquo
Sem pressupor mundo como ente ou como espaccedilo a pesquisa fenomenoloacutegica
aproximou-se dos campos de mostraccedilatildeo de algo como lsquomundorsquo escapando de qualquer
preacutevia teorizaccedilatildeo Nessa direccedilatildeo vimos que algo como lsquomundorsquo se daacute inicialmente a
partir da abertura primaacuteria de sentido promovida pelo entender ou compreensatildeo
78 Como indicamos (nota 66) haacute uma questatildeo natildeo respondida em Ser e Tempo a temporalidade (Zeitlichkeit)
estaria afinal assentada no tempo histoacuterico da abertura Questatildeo expressa na uacuteltima linha daquela obra ldquoO
tempo (Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Essa questatildeo
aponta para o limite da obra de 1927 na medida em que o sentido de ser remetido e em funccedilatildeo de um ente
especiacutefico mesmo que privilegiado apresenta seus limites Natildeo aprofundaremos esse problema Nesse
sentido conferir inicialmente HEIDEGGER M Os problemas fundamentais da fenomenologia Trad
Marco Antocircnio Casanova Petroacutepolis RJ Vozes 2012 ndash Parte II (pp331-478) Conferir tambeacutem
CASANOVA (2009 pp 140-145) NUNES (2012 pp200-220) e STEIN (2001 pp297-309)
104
(Verstehen) Esse existenciaacuterio primaacuterio acontece sempre como interpretaccedilatildeo
(Auslegung) que jaacute potildee em visatildeo o que entende
A partir da lida praacutetica e natildeo teoacuterica que o ser-aiacute trava inicialmente com os entes
intramundanos (sect15) Heidegger chega a noccedilatildeo de mundo circundante ou mundo-
ambiente (Umwelt) Poreacutem a descriccedilatildeo do uso dos utensiacutelios (Zeug) em um mundo-
ambiente (Umwelt) eacute insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica
de todo ente em geral Assim conforme o sect 17 Heidegger descreve o fenocircmeno da
referecircncia a partir da descriccedilatildeo do sinal enquanto utensiacutelio que tem em sua serventia
especiacutefica o mostrar e ao fazecirc-lo conduz a compreensatildeo da instrumentalidade ou
utilizabilidade (Zuhandenheit) de todo e qualquer ente A relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia
explicita o fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua
finalidade na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal
enquanto instrumento nos mostra o mundo-circundante (Umwelt) e potildee em relevo o
caraacuteter da referecircncia que natildeo deve ser confundido com o proacuteprio sinal pois eacute a estrutura
ontoloacutegica do manual e fundamento constitutivo da mundidade como rede referencial na
qual o Dasein jaacute se encontra inserido na abertura primaacuteria remetida ao mundo na lida
praacutetica
O ldquomostrarrdquo do sinal tal como o ldquomartelarrdquo do martelo ou a emprego de todo e
qualquer ente natildeo satildeo propriedades essenciais presentes nos lsquoobjetosrsquo apreendidas pelo
ser-aiacute mas satildeo trazidas agrave luz na e pela estrutura da remissatildeo a partir do trato praacutetico E
ldquoser-remetido-ardquo como constituiccedilatildeo do utilizaacutevel eacute em uacuteltima medida ldquoconjuntar-se agraverdquo
nas palavras de Heidegger
ldquoConjuntaccedilatildeo eacute o ser do interior-do-mundo em relaccedilatildeo ao qual esse ente jaacute eacute e
de pronto cada vez posto-em-liberdade () Isto de que ele tenha uma
conjuntaccedilatildeo comjunto eacute a determinaccedilatildeo ontoloacutegica do ser desse ente e natildeo um
enunciado ocircntico sobre o enterdquo (HEIDEGGER 2012 p251)
Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo circundante (Umwelt)
o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a complexa rede de
remissotildees referenciais e revelando a totalidade conjuntural ou conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)
A totalidade conjuntural se mostra anterior a qualquer determinaccedilatildeo particular dos entes
intramundanos - uma vez que eacute a conjuntura mesma que determinaraacute os usos possiacuteveis a
partir da conformidade dos entes nela inseridos- revelando que o utensiacutelio em si mesmo
105
e em uacuteltima medida todo e qualquer ente no interior do mundo natildeo possui qualquer
determinaccedilatildeo essencial mas a recebe a partir do campo de uso da conjuntura na qual estaacute
inserido Como a partir daiacute se chega entatildeo agrave noccedilatildeo de algo como ldquomundordquo A conjuntura
como conformaccedilatildeo de todo e qualquer ente eacute dada em funccedilatildeo do que Heidegger chama
de significatividade (Bedeutsamkeit)
ldquoAo se manter na familiaridade com a abertura das relaccedilotildees o entender as potildee
diante de si como aquilo em que seu remeter se move O entender deixa-se
remeter nestas relaccedilotildees e por elas mesmas O caraacuteter relacional dessas relaccedilotildees
do remeter noacutes o aprendemos como significar Na familiaridade com essas
relaccedilotildees o Dasein lsquosignificarsquo a si mesmo daacute-se a entender originariamente seu
ser e poder-ser relativamente a seu ser-no-mundo [] O todo relacional desse
significar noacutes o denominamos significatividade Ela eacute o que constitui a estrutura
do mundordquo (HEIDEGGER2012p261)
Essa passagem traz o elemento crucial agrave nossa investigaccedilatildeo a significatividade
como a condiccedilatildeo mesma ou melhor a proacutepria lsquointeligibilidadersquo do mundo natildeo como
arcabouccedilo teoacuterico mas como acircmbito da interpretaccedilatildeo anterior a qualquer definiccedilatildeo
predicativa do ente A totalidade conjuntural que conforma os entes intramundanos
determina-os significativamente em seu ldquocomordquo ou seja os faz ver e aparecer como ente
como algo no interior da abertura de sentido do proacuteprio mundo Isto quer dizer que a
conjuntaccedilatildeo deixa ver o ente em seu ldquoser enterdquo como algo que lsquoeacutersquo a partir de um horizonte
ldquode tal maneira que ele se torna primeiramente acessiacutevel como ente do-interior-do-
mundordquo (HEIDEGGER 2012p255)
A abertura ou entendimento preacutevio no qual o ser-aiacute histoacuterico e finito faz o ente
vir ao encontro na conjuntura e o mobiliza conforme seu foco existencial mostra o
fenocircmeno do mundo e isso como jaacute apresentamos a partir da familiaridade em que o
Dasein se movimenta pelo seu caraacuteter de jogado O fenocircmeno do mundo eacute explicitado
por Heidegger na seguinte passagem
ldquoO Dasein se remete jaacute cada vez e sempre a partir de um em-vista-de-quecirc ao
com-quecirc de uma conjutaccedilatildeo isto eacute na medida em que eacute ele deixa jaacute cada vez e
sempre o ente vir-de-encontro como utilizaacutevel Aquilo-em-que o Dasein
previamente se entende no modus do remeter-se eacute aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do
preacutevio fazer o ente vir-de-encontro O em-quecirc do entender que se-remete como
aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do fazer o ente vir-de-encontro no modo-de-ser da
conjuntaccedilatildeo eacute o fenocircmeno do mundo E a estrutura daquilo a que o Dasein se
remete eacute o que constitui a mundidade do mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 257)
106
Mas essa passagem tambeacutem mostra uma diferenccedila que natildeo pode ser ignorada o
fenocircmeno do mundo e a mundidade (Weltlichkeit) do mundo O primeiro diz respeito agrave
mobilizaccedilatildeo de uma determinada conjuntura jaacute familiar a partir dos focos existenciais do
ser-aiacute possiacuteveis em um horizonte descerrado (aspecto ocircntico) a segunda indica o aspecto
estrutural ontoloacutegico do mundo Por isto a significatividade explicitada inicialmente
pelo fenocircmeno da referecircncia e trazida agrave tona pela noccedilatildeo de conjuntaccedilatildeo eacute chamada de
estrutura formal da mundidade pois natildeo diz respeito a uma estrutura deste ou daquele
ldquomundordquo especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica de algo como ldquomundordquo
A significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados
(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Quando um ente se mostra
na e pela ocupaccedilatildeo (Besorgen) vem agrave conjuntaccedilatildeo no momento mesmo do trato manual
e assim ele eacute posto em liberdade em seu ser como utilizaacutevel (Zuhandenes) e natildeo eacute- como
compreendeu a tradiccedilatildeo assentada na noccedilatildeo sujeito-objeto ndash uma lsquoresrsquo uma coisa um
ldquomaterial disponiacutevel no mundordquo Ou seja ele natildeo se mostra primariamente como um
subsistente (Vorhandener) jaacute que ldquofamiliaridade com o mundo natildeo exige
necessariamente uma transparecircncia teoacuterica das relaccedilotildees do mundo que constituem o
mundo como mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 259)
Para Heidegger (ao menos em Ser e Tempo) os entes no interior do mundo (entes
intramundanos) natildeo conforme ao modo de ser do Dasein satildeo de dois modos ou como
duas categorias como Zuhanden (agrave matildeo) que se mostra de modo originaacuterio no trato
praacutetico e como Vorhanden (ente simplesmente dado ou subsistente) que aparece de
modo derivado agrave mostraccedilatildeo praacutetica Trazendo agrave tona a gecircnese praacutetica do significado
Vigo (2012) chama a atenccedilatildeo acerca do tratamento pouco extensivo agraves categorias que
Heidegger oferece em 1927
ldquoHeidegger oferece tatildeo somente um tratamento muito fragmentaacuterio desses
aspectos que jaacute foi explicado pelo fato expressamente declarado do caraacuteter
preparatoacuterio em SZ Ela natildeo conteacutem mesmo remotamente a totalidade do que
deveria conter um modelo ontoloacutegico de aspiraccedilatildeo integral que abarca as
diferentes ontologias regionais e apresentar o repertoacuterio das categorias mais
relevantes para cada uma delas mostrando aleacutem disso as correspondentes
relaccedilotildees de dependecircncia etcrdquo (p113)
O caraacuteter preparatoacuterio e ainda formal de Ser e Tempo o qual apenas estabelece a
diferenccedila categorial entre Zuhanden e Vorhanden parece querer marcar uma diferenccedila
107
mais fundamental ainda vinculada agraves primeiras preleccedilotildees da deacutecada de 1920 nas quais a
derivaccedilatildeo do teoreacutetico era atribuiacuteda a uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Em Ser e
Tempo ldquoa diferenccedila entre o conhecimento matemaacutetico e o conhecimento filosoacuteficordquo ganha
um contorno definitivo como diferenccedila ldquoentre uma concepccedilatildeo de loacutegos provinda da loacutegica
e outra que adveacutem do conceito de aleacutetheiardquo (STEFANI 2009 p51)
Dessa forma qualquer ente tomado de forma teoacuterica com um significado
determinado eacute um modo de acesso ou um visar o ente de modo derivado pelo ser-aiacute (natildeo
podemos esquecer que a mobilizaccedilatildeo dos entes eacute realizada em funccedilatildeo dos focos
existenciais do Dasein o que foi chamado de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo) Em
outras palavras como a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que significado
(Bedeutung) mas sua condiccedilatildeo de possibilidade qualquer teoria ou modo de tratamento
teoacuterico de um ente subsistente (Vorhandenes) eacute tributaacuterio da sedimentaccedilatildeo de um mundo
da sedimentaccedilatildeo de uma totalidade conjuntural que vem ao encontro do ser-aiacute
originariamente na ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhandenes) Assim ldquoo mundo faacutetico
onde se desdobra a existecircncia do ser-aiacute eacute constituiacutedo pela solidificaccedilatildeo dos significados
dos entes intramundanos e pela sedimentaccedilatildeo dos sentidos em virtude dos quais o ser-aiacute
desdobra o poder-ser que ele eacuterdquo (CABRAL 2015 p94) O ser-aiacute como projeto jogado
mobiliza sentidos e atualiza essas significaccedilotildees calcificadas de um mundo histoacuterico Algo
como um conceito uma definiccedilatildeo ou um significado do ente eacute possiacutevel por essa abertura
de sentido interpretativa preacutevia e sedimentada articulada pela significatividade e dada de
maneira preacute-linguiacutestica
Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez
familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o
Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como
lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo
(HEIDEGGER 2012p261 grifo nosso)
Prestemos atenccedilatildeo agrave uacuteltima consideraccedilatildeo dessa passagem significaccedilotildees natildeo satildeo
palavras elas fundam palavras Lembremos a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica o significado
natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua mostraccedilatildeo
Vimos no capiacutetulo anterior que o loacutegos do fenocircmeno para Heidegger eacute loacutegos apofacircntico
(λόγος αποφατικός) o mostrar do fenocircmeno a respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que
se mostra como algo de maneira indiferenciada natildeo determinada E ainda esse mostrar
do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes sempre em meio a
108
um campo interpretativo Ou seja agora podemos dizer eacute o mostrar o ente como ente
(algo como algo) no interior do mundo Na abertura que entende (Verstehen) remetida ao
mundo originariamente na lida praacutetica algo vem ao encontro e na medida que se mostra
jaacute se mostra interpretado (Auslegung) como algo do interior do mundo Mundo
compreendido em seu aspecto ontoloacutegico natildeo como ente espaccedilo ou soma de coisas (res)
disponiacuteveis agrave nossa apreensatildeo Mas abertura compreensiva-interpretativa do ser-aiacute
estruturalmente articulada em sua totalidade- enquanto ldquomundordquo - pela significatividade
E eacute dessa articulaccedilatildeo que podem vir significados e dos significados palavras assim
ldquoPodemos dizer que o que estaacute em jogo na discussatildeo de Heidegger com a
concepccedilatildeo husserliana natildeo eacute outra coisa em definitivo que a questatildeo relativa ao
modo fenomenoloacutegico adequado de considerar a experiecircncia antepredicativa
como tal Trata-se de uma questatildeo metodicamente fundamental justamente na
medida em que concerne de modo direto a adequada determinaccedilatildeo do terminus a
quo79 para uma possiacutevel explicaccedilatildeo da origem do enunciado predicativo como
modo derivado e fundado da interpretaccedilatildeo Atado aos preconceitod da ontologia
tradicional que se orienta a partir da estrutura do loacutegos apofatikoacutes considerando
o mesmo como algo dado lsquopresente agrave vistarsquo (Vorhandener) Husserl faz
basicamente o mesmo que jaacute havia feito a teoria tradicional das categorias desde
Aristoacuteteles em diante a saber retroprojetar a estrutura do enunciado da forma S-
P para o acircmbito dos lsquoobjetosrsquo que natildeo eacute outro que dos entes intramundanos
considerados como dados meramente lsquopresente agrave vistarsquo (VIGO 2012 p96)
Se a discussatildeo de Heidegger com a concepccedilatildeo husserliana se torna patente eacute
importante destacar tambeacutem a discussatildeo com a concepccedilatildeo diltheyniana - tendo em vista
o esclarecimento da noccedilatildeo de ldquosignificatividaderdquo Vimos que a categoria do significado
como apresentada por Dilthey possui um aspecto decisivo a relaccedilatildeo entre vivecircncia e
compreensatildeo eacute o ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da hermenecircutica pois traz em si a
categoria do significado como o nexo da vivecircncia com a realidade concreta sem se
apoiar em qualquer elemento transcendente agrave proacutepria experiecircncia vivida Contudo como
observa Heidegger no sect43 de Ser e Tempo o viacutenculo de Dilthey agrave teoria do conhecimento
da eacutepoca compreendendo a vivecircncia como vivecircncia de consciecircncia ou ldquoa relaccedilatildeo-de-ser
da consciecircncia com o real ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p583) faz com que a lsquovidarsquo
seja apresentada de modo indiferenciado sem a compreensatildeo de sua sustentaccedilatildeo
ontoloacutegica jaacute que a vivecircncia particular da consciecircncia como vida conexa e estruturante
79Termo a partir do qual Ponto de partida
109
eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu projeto hermenecircutico Mas Heidegger
reconhece ldquoDilthey natildeo soacute acentua que a realidade nunca eacute dada de modo primaacuterio no
pensamento e na apreensatildeo mas indica sobretudo que o conhecer ele mesmo natildeo
consiste em julgar e que saber eacute uma lsquorelaccedilatildeo de serrsquordquo (HEIDEGGER 2012 p583)
Tentando tornar mais claro mesmo que para Dilthey o mundo natildeo apareccedila como um
conjunto de coisas prontas agrave apreensatildeo da razatildeo humana mais ainda que as coisas
enquanto res natildeo sejam tomadas como a realidade (Realitaumlt) o fato de o pressuposto da
vivecircncia provir da consciecircncia obscurece o fundamento ontoloacutegico de algo como ldquovidardquo
Por isso escapou a Dilthey a relaccedilatildeo primaacuteria entre ser-aiacute como ser-no-mundo em sua
radicalidade ontoloacutegica como relaccedilatildeo fundante de toda e qualquer compreensatildeo de ser
Talvez por esse motivo como observa DASTUR (2007)
ldquoNo trabalho publicado em 1927 Heidegger natildeo usa frequentemente termo
hermenecircutica que aparece apenas trecircs ou quatro vezes () - no paraacutegrafo 7 da
introduccedilatildeo quando eacute para definir a fenomenologia no paraacutegrafo 33 que trata da
enunciaccedilatildeo e no paraacutegrafo 45 que define o iniacutecio da segunda parte da tarefa de
uma interpretaccedilatildeo do Dasein - enquanto o termo Auslegung que significa tanto
interpretaccedilatildeo e explicaccedilatildeo eacute muito mais frequentemente utilizadordquo (p74)
E quando Heidegger retoma o termo ldquohermenecircuticardquo no sect33 ele ressalta o caraacuteter
existenciaacuterio de tal interpretaccedilatildeo
ldquoA enunciaccedilatildeo natildeo pode negar sua origem ontoloacutegica a partir da interpretaccedilatildeo
que-entende O ldquocomordquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor entendedor
(ἑρμηνεία) noacutes os chamamos lsquocomorsquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio para
diferenciaacute-lo do ldquocomordquo apofacircntico da enunciaccedilatildeo (Aussage)rdquo (HEIDEGGER
2012 p 447)
O que eacute essa diferenccedila entre o ldquocomordquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio e o ldquocomordquo
apofacircntico da enunciaccedilatildeo Eacute a diferenccedila entre Auslegung (interpretaccedilatildeo) e Aussage
(enunciado) A diferenccedila consiste no fato de que a originariedade da mostraccedilatildeo dos entes
em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) - pela
significatividade (Bedeutsamkeit) que a articula - e sua derivaccedilatildeo como ente
simplesmente dado (Vorhanden) ndash fazendo emergir algo como significado (Bedeutung)-
ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) em sua ligaccedilatildeo
derivativa agrave interpretaccedilatildeo (Auslegung) De outra maneira como a estrutura interpretativa
aberta pela compreensatildeo ou entendimento (Verstehen) transforma-se em proposiccedilatildeo
Na introduccedilatildeo desse capiacutetulo escrevemos que na fenomenologia heideggeriana veio agrave
110
tona o aspecto ontoloacutegico do conteuacutedo significativo Essa fenomenologia como ontologia
acabou por revelar de um lado a historicidade de todo e qualquer significado que pudesse
vir agrave palavra por outro que o campo de sentido no qual algo pode manter-se em seu
significado tambeacutem era histoacuterico Eacute necessaacuterio portanto a partir de agora mostrar como
o significado aberto pela compressatildeo-interpretativa (algo como algo) ganha sua forma
expressa inicialmente a partir do fenocircmeno da proposiccedilatildeo e a partir dessa derivaccedilatildeo
podemos ter acesso ao fenocircmeno da linguagem
II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da
interpretaccedilatildeo (Auslegung)
A anaacutelise da enunciaccedilatildeo (Aussage) conforme apresenta por Heidegger no sect33 de
Ser e Tempo constitui a segunda estrutura descrita na obra a qual nos permite
compreender o fenocircmeno da linguagem (Sprache) como a manifestaccedilatildeo uacuteltima de um
horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo dos entes previamente
articulada O fenocircmeno da linguagem aparece como resultado dos trecircs objetivos de sua
investigaccedilatildeo neste momento do tratado os quais listamos a seguir
1) Como a estrutura compreensiva-interpretativa (apresentada no toacutepico anterior)
sofre uma modificaccedilatildeo
2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos
3) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade
Como antecipamos e a partir da finalidade da anaacutelise acima apresentada
podemos dizer que o que estaacute em jogo nesse momento da analiacutetica eacute compreender que ldquoa
siacutentese predicativa fundamenta-se numa daccedilatildeo originaacuteria e eacute em funccedilatildeo da experiecircncia
antepredicativa que se opera a atribuiccedilatildeo do predicado ao sujeitordquo (NUNES 2012 p165)
Em outras palavras como a estrutura interpretativa aberta pela compressatildeo (algo como
algo) transforma-se em proposiccedilatildeo (Sujeito-predicado) E essa derivaccedilatildeo eacute elencada nas
trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo (Aussage)
1) Mostraccedilatildeo (Aufzeigung)
2) Predicaccedilatildeo (Praumldikation)
111
3) Comunicaccedilatildeo (Mitteilung)
Essas significaccedilotildees do termo Aussage ainda segundo Heidegger possuem caraacuteter
analiacutetico pois satildeo ldquotiradas do fenocircmeno que ela designa as quais delimitam em sua
conexatildeo e unidade a completa estrutura da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p437)
Essa unidade estaacute assentada nas condiccedilotildees preacutevias tendo em vista que ldquoa enunciaccedilatildeo natildeo
eacute um comportamento-que-flutua-no-ar e que possa por si mesmo abrir o ente
primariamente mas se comporta jaacute sempre sobre a base de ser-no-mundordquo
(HEIDEGGER 2012 p443)
Como vimos no capiacutetulo anterior as condiccedilotildees preacutevias conforme apresentadas no
Relatoacuterio Natorp satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a direccedilatildeo da
visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a ldquovisibilidaderdquo (Sichtweite) De
modo mais claro em (1) temos o acircmbito da realidade dada em uma preacutevia abertura
temporal de sentido em (2) temos a direccedilatildeo que jaacute determinou algo ldquocomo-algordquo (Als-
was) e jaacute ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu lugar
significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de toda
possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o como
do aparecer dos entes em seu ser seu significado e as possibilidades de comportamentos
do ser-aiacute eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto
(1) e jaacute interpretado (2) e por isso pode mover-se em pretensotildees de objetividade e
definiccedilatildeo Essas condiccedilotildees estatildeo articuladas com a interpretaccedilatildeo de Heidegger dos termos
respectivamente noucircs phroacutenesis e sophiacutea e assentadas na noccedilatildeo de verdade como
desvelamento (ἀλήθεια) Em Ser e Tempo Heidegger reelabora essas interpretaccedilotildees com
uma terminologia proacutepria respectivamente Vorhabe (ter-preacutevio) Vorsicht (ver-preacutevio)
e Vorgriff (conceito-preacutevio) e esse tripeacute
ldquoForma o arcabouccedilo projetivo do compreender que nos abre os entes ao sabor
dos nexos da referecircncia na conduta do trato atraveacutes dos quais se estende a rede
de significatividade () Eacute nessa conduta e portanto na experiecircncia
antepredicativa como a praacutexis maciccedila do mundo-da-vida em seu imediato e
frequente transcorrer cotidiano que Heidegger coloca a nascente do sentidordquo
(NUNES 2012 p168)
Como essas condiccedilotildees preacutevias devem ser compreendidas em vista do caraacuteter de
projeto-jogado do ser-aiacute natildeo eacute gratuita a designaccedilatildeo da abertura do ser-aiacute ao mundo como
112
ldquoabertura de sentido fundamentalrdquo A abertura compreensiva fundamental descerra o
poder-ser do ser-aiacute como projeto mas ao projetar-se ele eacute lanccedilado num ldquoaiacuterdquo histoacuterico O
seu poder-ser se lanccedila num campo de jogo jaacute descerrado interpretado e articulado por
essas condiccedilotildees E assim essas condiccedilotildees preacutevias ldquoreconduz[emcc]-nos ao ciacuterculo
hermenecircutico ontoloacutegico-histoacuterico que circunscreve por forccedila da finitude que faz do
homem um Daseinrdquo (NUNES 2012 p168) No que me lanccedilo ao mundo sou e o mundo
eacute como ele eacute como escreve Fernando Pessoa (2006 p177)
ldquoCreio no mundo como um malmequer
Porque o vejo Mas natildeo penso nele
Porque pensar eacute natildeo compreender
O Mundo natildeo se faz para pensarmos nele
(Pensar eacute estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordordquo
Talvez esses versos possam iluminar o que estaacute em questatildeo nesse paraacutegrafo
Poderiacuteamos nos questionar por qual motivo Heidegger natildeo passa da interpretaccedilatildeo
(Auslegung) ao discurso (Rede) pois este como veremos no proacuteximo capiacutetulo remete agrave
fala como fundamento ontoloacutegico da linguagem O sect 33 se refere a uma discussatildeo muito
especiacutefica mas que tem um lugar privilegiado na ontologia fundamental e estaacute
diretamente relacionada ao sect44 da mesma obra A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo de verdade
da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca que era a dos
neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa concepccedilatildeo
tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da verdade em
direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave proposiccedilatildeo Com
isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa medida
condicionando a ontologia agrave loacutegica
Courtine (1996) elabora essa problemaacutetica com clareza A partir de trecircs etapas
ele nos apresenta o caminho que conduz nosso autor da loacutegica agrave liacutengua A primeira etapa
diz respeito aos trabalhos de juventude de Heidegger ldquoainda marcados pela problemaacutetica
da validade como primeira elucidaccedilatildeo do ser no juiacutezordquo (COURTINE 1996 p14) Jaacute a
segunda etapa que Courtine denomina destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica consiste em regressar
da interpretaccedilatildeo ldquoescolarrdquo da loacutegica aristoteacutelica a uma problematizaccedilatildeo mais original do
loacutegos compreendido como modo de desvelamento Eacute nessa segunda etapa que estaacute
113
inserido o trabalho de Ser e Tempo sendo a passagem da primeira agrave segunda etapa
marcada pelo curso de 1925-1926 Logik die Frage nach der Wahrheit (GA21) A
terceira seria ainda uma etapa de destruiccedilatildeo mas de modo diferente marcada pelo que
Courtine denomina desorientaccedilatildeo ou ldquoabalordquo (erschuumlttern) e encontra sua imagem
expliacutecita no texto de 1935 ldquoIntroduccedilatildeo agrave metafiacutesicardquo
Portanto na primeira etapa a loacutegica para o jovem Heidegger eacute ainda apreendida
como loacutegica do ldquosentidordquo ou da ldquovalidaderdquo
ldquoA ideacuteia segundo a qual a Geltung a validade define o modo de ser proacuteprio das
proposiccedilotildees e das verdades vem como se sabe da loacutegica de Lotze Numa nota
das Neuere Forschungen uumlber Logik (GA I p23) Heidegger indicava a respeito
da Loacutegica de Lotze que acabava de ser reeditada sua loacutegica deve sempre ser
considerada como a obra fundamental da loacutegica moderna () E Heidegger que
ateacute aqui se exprimia como disciacutepulo fiel de Husserl terminava por acrescentar
esta questatildeo rica em posteridade para seu proacuteprio pensamento ldquoMas logo se
coloca a questatildeo o que eacute ndash sentidordquo (GA I p170)rdquo (COURTINE 1996 pp16-
17)
Vimos como o sentido (Sinn) em Ser e Tempo eacute apresentado sob uma perspectiva
radical relacionado agrave problematizaccedilatildeo mais original do lsquoloacutegosrsquo como mostraccedilatildeo do
fenocircmeno em seu ser e agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento Essa mudanccedila criacutetica
resulta da aparentemente simples interrogaccedilatildeo de Heidegger acerca da identificaccedilatildeo
ldquoWahrheit = wahrer Satz = Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade)rdquo
(COURTINE 1996 p 19) A criacutetica eacute assim expressa em Logik die Frage nach der
Wahrheit (GA21)
ldquoLotze que introduziu o conceito de lsquoGeltungrsquoem loacutegica emprega a expressatildeo
lsquoserrsquo no sentido estrito segundo o qual ser quer dizer a mesma coisa que
efetividade das coisas ser = lsquorealidadersquo (Vorhandenheit) [] Lotze natildeo conseguiu
superar o naturalismo na medida em que restringiu o significado do termo
veneraacutevel lsquoserrsquo ao ser real agrave realidade [] Na nossa terminologia utilizamos
inversamente ser no sentido amplo inserindo-nos na autecircntica tradiccedilatildeo da
filosofia grega de tal maneira que ser designa tanto a realidade quanto a
idealidade ou outras maneiras possiacuteveis de serrdquo (HEIDEGGER GA21 p62
apud COUTRINE 1996 p19)
Nesse sentido lembremos tambeacutem que para os neokantianos influenciados pela
filosofia dos valores de Lotze o conhecimento eacute possiacutevel como uma atividade valorativa
do juiacutezo (na forma ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo) Ou seja eacute o juiacutezo que reconhece o
conteuacutedo o sentido e a validade da verdade na sua pretensatildeo de necessidade e
114
universalidade algo ldquoeacuterdquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento Ora
o que a leitura de Ser e Tempo ateacute aqui jaacute demonstrou eacute que algo eacute natildeo porque um juiacutezo
loacutegico definiu seu conteuacutedo ontoloacutegico mas porque o ser-aiacute aquele que vai atribuir
sentido jaacute sempre se move numa preacute-compreensatildeo de ser a qual eacute fundamentalmente
praacutetica na visatildeo circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram
em seu ser Ora estabelecendo uma possiacutevel analogia parece que Heidegger desconfia
tanto do conhecimento teoacuterico-proposicional quanto Fernando Pessoa do ldquopensamentordquo
Assim reduzir qualquer ontologia agrave loacutegica atraveacutes do juiacutezo proposicional eacute como ldquoestar
doente dos olhosrdquo
No nosso entender o que Heidegger desenvolve no sect 33 soacute seraacute totalmente
elucidado se o relacionarmos com o sect 44 No sect 33 jaacute se anuncia que a forma fundamental
da predicaccedilatildeo (Praumldikation) sujeito e predicado (ldquoS eacute Prdquo) eacute derivada da mostraccedilatildeo
(Aufzeigung) originaacuteria compreensivo-interpretativa (algo como algo) e soacute por isso a
comunicaccedilatildeo (Mitteilung) uns com os outros na vida cotidiana pode expressar profericcedilotildees
como ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo ldquoHoje eacute um belo diardquo etc Antes de
entramos na apresentaccedilatildeo pormenorizada do sect33 e assim a relacionarmos ao sect44 eacute
necessaacuterio fazermos duas consideraccedilotildees
Essas camadas de derivaccedilatildeo evitam qualquer interpretaccedilatildeo relativista da noccedilatildeo de
linguagem em Heidegger Tentando escapar de uma leitura apressada devemos pensar
no acontecimento da verdade como um acontecimento compreensivo a partir de um ente
finito e histoacuterico o que eacute diferente de reduzi-lo a uma perspectiva historicista O que estaacute
em questatildeo por exemplo natildeo eacute se ldquocasardquo poderia se chamar ldquomesardquo (esse eacute um aspecto
ocircntico da linguagem) ou ainda que o fato de o enunciado possuir um fundamento
contingente ele seria menos verdadeiro Aleacutem disso haacute o fato de que o ente e as
possibilidades de ser do ser-aiacute vecircm agrave palavra por uma mostraccedilatildeo preacutevia de seu ser eacute o
ente que se mostra E na medida em que eacute mobilizado pelo ser-aiacute na interpretaccedilatildeo sua
mostraccedilatildeo pode ser modificada pela expressatildeo na forma predicativa A loacutegica deriva do
loacutegos a loacutegica natildeo eacute o lugar do loacutegos E o loacutegos eacute a maneira mesma de o ente se mostrar
e se ele se mostra para o ser-aiacute isso natildeo quer dizer que eacute o ser-aiacute que o determina Natildeo
Eacute o ser-aiacute que o potildee em liberdade O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento
como fenocircmeno Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a
115
expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional
compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na estabilidade de uma esfera para aleacutem
do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua manifestaccedilatildeo o sentido
de sua proacutepria existecircncia
Caberia ademais em uma pesquisa posterior investigar se a interpretaccedilatildeo do
loacutegos como loacutegos apofacircntico derivada da noccedilatildeo de intencionalidade essecircncia mesma da
fenomenologia ainda reconduz Heidegger a certo viacutenculo com a concepccedilatildeo tradicional
da linguagem na medida em que dizer eacute ainda dizer que algo eacute de tal ou qual maneira ou
seja ainda dizer na forma predicativa Dito de outra forma mesmo que Heidegger
demonstre o caraacuteter derivado da loacutegica ela continua a ser uma purificaccedilatildeo dos elementos
materiais da linguagem Isso significaria dizer que o problema heideggeriano da
linguagem ainda estava inserido no projeto da tradiccedilatildeo da filosofia ocidental 80
Retomemos agora as trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo
(Aussage) Na mostraccedilatildeo (Aufzeigung) como primeiro significado Heidegger reteacutem o
sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Essa forma do enunciado estaacute diretamente
relacionada ao ente que vem ao encontro no Vorhabe (ter-preacutevio) ou noucircs em que o ser-
aiacute originariamente pela ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhanden) movimenta-se e abre a
compreensatildeo em um mundo-ambiente (Umwelt) Mas toda compreensatildeo (Verstehen) jaacute
interpreta (Auslegung) o que entende e assim no trato praacutetico ou no ldquocomordquo
hermenecircutico-existenciaacuterio
ldquoA execuccedilatildeo originaacuteria da interpretaccedilatildeo natildeo consiste em uma proposiccedilatildeo-
enunciativa teoacuterica mas no fato de que no-ver-ao-redor da ocupaccedilatildeo se potildee de
lado ou se troca a ferramenta improacutepria lsquosem perder nisso uma soacute palavrarsquo Da
falta de palavras natildeo se deve concluir a falta de interpretaccedilatildeordquo (HEIDEGGER
2012 P445)
Na predicaccedilatildeo (Praumldikation) segundo significado da enunciaccedilatildeo fundado no
primeiro haacute a determinaccedilatildeo de um ente que modifica e restringe a mostraccedilatildeo de algo
como algo na forma sujeito-predicado Esse segundo significado estaacute diretamente
80 Cf Capiacutetulo I- Introduccedilatildeo
116
relacionado ao Vorsicht (ver-preacutevio) cuja base encontra-se no Vorhabe (ter-preacutevio) No
que o ser-aiacute vecirc algo e o determina ele restringe o utilizaacutevel (Zuhandenes) a um subsistente
(Vorhandener) com isso ele ldquovisa a um subsistente no utilizaacutevel Pelo olhar
contemplativo e para ele o utilizaacutevel se oculta como utilizaacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012
p445) Esse segundo momento da enunciaccedilatildeo estaacute ligado ao significado (Bedeutung) que
emerge a partir da significatividade (Bedeutsamkeit) e nesse sentido ldquoposiccedilatildeo-de-sujeito
posiccedilatildeo-de-predicado em unidade com o-pocircr satildeo inteiramente lsquoapofacircnticosrsquo no sentido
rigoroso da palavrardquo (HEIDEGGER 2012 p439) Aqui Heidegger ainda se refere a uma
categoria do ente que se mostra no interior do mundo Mas entatildeo como ocorre a
modificaccedilatildeo de algo como algo tomado como categoria subsistente (Vorhanden) na forma
loacutegica sujeito-predicado
ldquoAgora pela primeira vez se franqueia o acesso a algo assim como propriedades
O lsquoquecircrsquo da enunciaccedilatildeo determinante do subsistente eacute extraiacutedo do subsistente
como tal () A estrutura-de-como da interpretaccedilatildeo experimenta uma
modificaccedilatildeo O lsquocomorsquo em funccedilatildeo de apropriaccedilatildeo do entendido jaacute natildeo chega ateacute
uma totalidade-de-conjuntaccedilatildeo Ele foi separado de suas possibilidades de
articular as relaccedilotildees-de-remissatildeo da significatividade que constitui o ser-do-
mundo-ambiente O lsquocomorsquo eacute reprimido no plano uniforme do soacute subsistente ()
Esse nivelamento do lsquocomorsquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor em como
da determinaccedilatildeo-da-subsistecircncia eacute a prerrogativa da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER
2012 p447)
O ente tomado como subsistente (Vorhanden) eacute prerrogativa da predicaccedilatildeo Seu
recorte como algo que possui essa ou aquela propriedade torna possiacutevel algo como a
forma predicativa (ldquoS eacute Prdquo) O que estaacute em jogo poreacutem pois tornou-se paradigma da
tradiccedilatildeo eacute o nivelamento de todo e qualquer ente como algo sempre presente dotado de
propriedades e desse modo disponiacuteveis agrave apreensatildeo na forma predicativa Nesse
nivelamento todo ente eacute posto sob o domiacutenio da loacutegica que obscurece sua derivaccedilatildeo
essencial agrave mostraccedilatildeo do ente em seu ser em funccedilatildeo da relaccedilatildeo primaacuteria ser-aiacute como ser-
no-mundo e assim da verdade como desvelamento (ἀλήθεια)
A terceira forma do enunciado derivado do primeiro e do segundo significados eacute
apresentada por Heidegger como comunicaccedilatildeo (Mitteilung) A palavra alematilde jaacute indica o
caraacuteter puacuteblico do que inicialmente foi mostrado e pela predicaccedilatildeo foi determinado
teilung (partilha) mit (com) O enunciado como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se puder ser
partilhado com outrem ldquover juntordquo o mostrado jaacute determinado ldquolsquoCompartilhadorsquo eacute o
comum e transparente ser para o mostrado lsquoser pararsquo que deve ser firmemente mantido
117
como ser-no-mundo [] Agrave enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo entendida assim sentido
existenciaacuterio pertence o ser expressordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Essa terceira forma
estaacute relacionada ao Vorgriff (conceito-preacutevio) ou a significaccedilotildees calcificadas de um
mundo histoacuterico faacutetico
Natildeo podemos esquecer que a anaacutelise dos existenciaacuterios (entender interpretaccedilatildeo e
disposiccedilatildeo) estatildeo na anaacutelise do ldquoser-em como talrdquo (quinto capiacutetulo) antecedida pelo
capiacutetulo intitulado ldquoo ser-no-mundo como ser-com e como ser-si-mesmo lsquoA gentersquordquo
Nesse sentido e pelo caraacuteter programaacutetico de Ser e Tempo a anaacutelise da enunciaccedilatildeo ou
proposiccedilatildeo (Aussage) jaacute pressupotildee que ser-no-mundo eacute sempre ser-com-os-outros Desse
modo ser expresso na comunicaccedilatildeo eacute a primeira manifestaccedilatildeo acerca do fenocircmeno da
linguagem que Heidegger apresenta em Ser e Tempo Poreacutem no sect34 o autor indica que
a comunicaccedilatildeo enunciativa ou informativa (ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo
ldquoHoje eacute um belo diardquo etc) assentada na predicaccedilatildeo eacute um caso particular de comunicaccedilatildeo
(Cf HEIDEGGER 2012 p457) Mas aqui chegamos ao intuito principal de nosso
capiacutetulo descrever como a ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo fundada na predicaccedilatildeo que por
sua vez soacute eacute possiacutevel pela interpretaccedilatildeo apresenta o caraacuteter derivativo do enunciado
expresso em uacuteltima medida pela linguagem que comunica
A partir dessa apresentaccedilatildeo dos trecircs significados do enunciado (Aussage)
compreendemos sua definiccedilatildeo ldquoenunciaccedilatildeo eacute uma mostraccedilatildeo determinante que
comunicardquo (HEIDEGGER 2012 p443) Portanto chegamos agrave estrutura ontoloacutegica da
linguagem (Sprache) ou ao dizer puacuteblico acerca das coisas e do estado de coisas em um
mundo Ter chegado ao objetivo central de nosso capiacutetulo natildeo quer dizer que nossa tarefa
se encerra aqui Uma obra como Ser e Tempo nos exige mais A finalidade da investigaccedilatildeo
desse paraacutegrafo ainda natildeo foi esclarecida em seus dois uacuteltimos pontos
1) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos
2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade
Se Heidegger indica que no mostrar mesmo do fenocircmeno em seu loacutegos (algo como
algo) pode surgir a forma predicativa eacute necessaacuterio explicar como no proacuteprio loacutegos a
flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo eacute possiacutevel Nas palavras de nosso autor
118
ldquoQue funda a unidade desse juntar Ele reside como Platatildeo reconheceu em que o
λόγος eacute sempre um λόγος tivoacuteς Na perspectiva do ente manifesto no λόγος as
palavras satildeo reunidas em um todo verbal Aristoacuteteles viu mais radicalmente todo
λόγος eacute ao mesmo tempo σύνθεσis e διαίρεσηs A mostraccedilatildeo eacute um reunir e separar
Entretanto Aristoacuteteles natildeo desenvolveu a questatildeo ateacute perguntar Que fenocircmeno eacute
o que no interior da estrutura do λόγος possibilita e ao mesmo tempo exige a
caracterizaccedilatildeo de toda enunciaccedilatildeo como siacutentese e dieacuterese () O que com as
estruturas formais do lsquoligarrsquo e lsquosepararrsquo ou mais exatamente com a unidade de
ambos devia ser fenomenicamente encontrado eacute o fenocircmeno do lsquoalgo como algorsquordquo
(HEIDEGGER 2012 p449)
A criacutetica expliacutecita se volta contra Aristoacuteteles mas tambeacutem contra toda tradiccedilatildeo
que absorveu esse pressuposto E como natildeo podemos deixar de observar ateacute seu proacuteprio
mestre Husserl quando este estabeleceu a diferenccedila entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial
Essa distinccedilatildeo desalojou o lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel e o conduziu ao uso loacutegico
sem revelar de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno ou o desvelamento dos
entes em seu ser O fenocircmeno da linguagem enunciativa (Mitteilung) em funccedilatildeo de sua
derivaccedilatildeo da predicaccedilatildeo (Praumldikation) e essa por sua vez derivada da mostraccedilatildeo
(Aufzeigung) possui uma ligaccedilatildeo com os entes na medida em que diz o que de algum
modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que lsquoalgo eacute xrsquo ou que lsquoalgo natildeo eacute xrsquo eacute possiacutevel primariamente
pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com
No interior da estrutura do proacuteprio λόγος ao indicar-se que algo eacute diz-se tambeacutem como
ele eacute ou como ele natildeo eacute [esse traccedilo estaacute relacionado ao caraacuteter intencional do discurso
(die Rede) que examinaremos no proacuteximo capiacutetulo] Contudo a linguagem habitual que
manteacutem vigente os significados calcificados natildeo reconhece esse traccedilo para aleacutem da
gramaacutetica Aleacutem disso a proposiccedilatildeo loacutegica obscurece a estrutura do loacutegos que a
condiciona pelo fato de usurpar a verdade para o juiacutezo natildeo reconhecendo o lugar
originaacuterio da verdade Originariedade somente possiacutevel pela compreensatildeo da verdade
como Aleacutetheia O que nos conduz agrave segunda finalidade da investigaccedilatildeo do sect 33
Para explicarmos esse conceito originaacuterio de verdade eacute necessaacuterio que nos
reportemos ao sect44 Quando se diz ldquooriginariedaderdquo do fenocircmeno da verdade natildeo se diz
algo como lsquocausarsquo da verdade antes se refere agrave sua origem sem sentido objetivo
lsquoObjetividadersquo eacute um conceito derivado da verdade reportada ao juiacutezo Aqui a verdade
tambeacutem natildeo deve ser considerada para aleacutem de sua compreensatildeo histoacuterica Lembremos
de que natildeo haacute ldquoserrdquo sem a compreensatildeo do sentido de ser portanto eacute necessaacuterio vincular
119
sempre ldquoserrdquo ao ser-aiacute ente finito e histoacuterico Por conseguinte compreensatildeo de ser em
Ser e Tempo estaacute como a origem mesma da verdade compreendida como desvelamento
Como jaacute apontamos antes a enunciaccedilatildeo (Aussage) enquanto mostraccedilatildeo
(Aufzeigung) eacute a forma fundante dos modos possiacuteveis de enunciaccedilatildeo e nela Heidegger
reteacutem o sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Na mostraccedilatildeo nada se funda em
representaccedilotildees que se adequam a objetos como compreendeu a tradiccedilatildeo Para serem
verdadeiros e garantirem seu estatuto ontoloacutegico os entes natildeo precisam estar de em
acordo nem se submeterem agrave adequaccedilatildeo dos juiacutezos ou proposiccedilotildees dos homens A
derivaccedilatildeo da verdade como objetividade na ciecircncia ou em todo comportamento teoacuterico
natildeo pode negar a maneira pela qual o ente eacute posto em liberdade Conhecer
originariamente eacute deixar que o ente se mostre em seu ser dessa forma
ldquoSuponha-se que algueacutem de costas para a parede profira a seguinte enunciaccedilatildeo
verdadeira lsquoO quadro pendurado na parede estaacute tortorsquo Essa enunciaccedilatildeo se
comprova quando quem a enuncia se volta para a parede e percebe o quadro torto
ali dependurado Que eacute comprovado nessa comprovaccedilatildeo Eacute constatado algo
como uma concordacircncia do lsquoconhecimentorsquo ou do conhecido com a coisa
lsquocolocadarsquo na parede Sim e natildeo conforme se faccedila cada vez uma adequada
interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do que a expressatildeo lsquoo conhecidorsquo significa A que
se refere quem enuncia se natildeo julga o quadro na percepccedilatildeo mas soacute o representa
A algo como representaccedilotildees Certamente que natildeo se representaccedilatildeo deve aqui
significar representar como processo psiacutequico Tambeacutem natildeo se representaccedilotildees
tecircm o sentido do representado na medida em que visada uma imagem da coisa
real na parede Ao contraacuterio a enunciaccedilatildeo que soacute representa refere-se segundo
seu sentido mais proacuteprio ao quadro real na parede Soacute ele eacute visado e nada que
dele difira () O enunciar eacute um ser voltado para a coisa sendo ela mesma E que
eacute comprovado pela percepccedilatildeo Nada senatildeo que o percebido eacute o mesmo ente
visado na enunciaccedilatildeoConfirma-se que o ser enunciante para o enunciado eacute um
mostrar o ente que ele descobre o ente para o qual se volta Eacute comprovado o ser-
descobridor da enunciaccedilatildeo () o conhecer permanece referido unicamente ao
ente ele mesmo Eacute neste mesmo que se joga por assim dizer a confirmaccedilatildeo O
ente visado se mostra ele mesmo assim como ele eacute em si mesmo () A
enunciaccedilatildeo eacute verdadeira significa que ela descobre o ente em si mesmo Ela
enuncia mostra lsquofaz verrdquo (αποφανσις) o ente em seu ser-descoberto O ser
verdadeiro (verdade) da enunciaccedilatildeo se deve entender como um ser-descobridorrdquo
(Heidegger 2012 pp603-605)
O termo grego ldquoapophantikoacutesrdquo pela junccedilatildeo entre ldquoapordquo [ldquopara forardquo ldquomostrarrdquo
ldquotornar conhecidordquo] e ldquophaineinrdquo [ldquoexibir mostrarrdquo (derivado de lsquophosrsquo ldquoluzrdquo - mesma
raiz da palavra phainoacutemenon)] manteacutem sua forccedila quando articulado com as palavras
120
ldquoAuslegungrdquo e ldquoAussagerdquo Pois tal como ldquoapordquo ldquoausrdquo eacute o prefixo de liacutengua alematilde usado
nessas palavras com o sentido da preposiccedilatildeo aus que significa ldquopara forardquo ldquoderdquo Assim
uma vez interpretado (Auslegung) o ente enunciado (Aussage) jaacute mostrou jaacute trouxe a si
mesmo a conhecimento e desvelou-se como ente e nisso consiste sua verdade originaacuteria
(Aleacutetheia)
O retorno de Heidegger agrave ldquoforccedila das palavras mais elementaresrdquo ou agraves palavras
gregas como loacutegos dikeacute physis teacutechne e aleacutetheia eacute a tentativa de ir aleacutem da
sedimentaccedilatildeo histoacuterica das palavras Dito de outra forma voltar agrave origem dos termos
atraveacutes dos quais o pensamento filosoacutefico teria alcanccedilado lsquoas coisas mesmasrsquo coisas essas
que agora no presente permanecem veladas por camadas interpretativas cotidianas e
teoacutericas Sendo a concepccedilatildeo de que a proposiccedilatildeo eacute o lugar privilegiado da verdade uma
das maiores expressotildees da tradiccedilatildeo metafiacutesica Portanto eacute tarefa a que Ser e Tempo se
propotildee eacute a da descriccedilatildeo desse lugar originaacuterio ndash de mostraccedilatildeo - dos fenocircmenos
Mas se eacute o ser-aiacute na abertura de sentido fundamental que mobiliza os entes em seu
ser qual o papel desse ente marcado pela existecircncia em meio agrave verdade agora
compreendida como Aleacutetheia A compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido
primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode custodiar o sentido
de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento
ldquoO ser-verdadeiro como ser-descobridor soacute eacute de sua parte ontologicamente
possiacutevel sobre o fundmento do ser-no-mundo Este fenocircmeno no qual
reconhecemos uma constituiccedilatildeo fundamental do Dasein eacute o fundamento do
fenocircmeno originaacuterio da verdade () Na medida em que o Dasein eacute
essencialmente sua abertura e aberto abre e descobre ele eacute essencialmente
verdadeiro O Dasein eacute lsquona verdadersquordquo (HEIDEGGER 2012 pp607-611)
O ser-aiacute em sua unidade fenomecircnica como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge)
revelou-se como o fundamento sem fundamento da abertura compreensiva portanto
aquele que como ser-no-mundo pode abrir o sentido de ser de todo ente e de suas
possibilidades Poreacutem como projeto-jogado eacute tambeacutem aquele que pode perder-se e natildeo
tornar transparente essa condiccedilatildeo ontoloacutegica fundamental o que frequentemente jaacute faz
pois sempre jaacute custodiou seu ser no mundo suas orientaccedilotildees cotidianas as sedimentaccedilotildees
121
significativas e as concepccedilotildees de verdade calcificadas Por isso o Dasein eacute o ente que
tambeacutem estaacute na natildeo-verdade (Umwahrheit)81
Recuperemos o sentido efetivo de desvelamento ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o
que aponta para o velamento (lethe) que ficou para traacutes que mostra para aquilo que a
sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila da aleacutetheia que se torna possiacutevel a
objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89)
Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao
encontro em seu significado) no desvelamento originaacuterio de seu ser mas a mostraccedilatildeo dos
fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira dissimulada sempre em uma objetificaccedilatildeo de
seu ser como ente determinado pois ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na
medida em que partimos de seu encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de
descoberta perde seu sentido mais efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Entatildeo ldquodizer que o
Dasein estaacute e natildeo estaacute na verdade eacute compreender que o encobrimento (Verschlossenheit)
eacute [] a contraparte da aberturardquo (NUNES 2012 p197)
Depois dessa exposiccedilatildeo eacute necessaacuterio apresentar como a linguagem estaacute assentada
na constituiccedilatildeo proacutepria ao ser-aiacute em relaccedilatildeo agrave verdade Tentaremos mostrar como o
discurso (Rede) eacute para Heidegger o fundamento ontoloacutegico da linguagem mas ao
mesmo tempo como o proacuteprio fenocircmeno da linguagem jaacute sempre se apresenta como
falatoacuterio (Gerede) Essa eacute a tarefa do proacuteximo e uacuteltimo capiacutetulo de nosso trabalho
81 Cf HEIDEGGER 2012 sect44 p615
122
Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)
Em vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdos Sob a pele das palavras haacute cifras e coacutedigos O sol consola os doentes e natildeo os renova
As coisas Que tristes satildeo as coisas consideradas sem ecircnfase (A flor e a naacuteusea Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
No capiacutetulo anterior descrevemos de que modo o fenocircmeno da linguagem eacute
apresentado pela primeira vez em Ser e Tempo como ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo e ainda
como a linguagem eacute derivada da mostraccedilatildeo preacutevia dos entes em seu ser a partir da relaccedilatildeo
primaacuteria ser-aiacute como ser-no-mundo O Dasein como ente privilegiado estaacute remetido ao
mundo e sempre jaacute possui uma compreensatildeo preacutevia do ser A compreensatildeo ou
entendimento (Verstehen) de ser eacute o fundamento originaacuterio da verdade agora
compreendida como desvelamento aleacutetheia Poreacutem desvelar eacute apontar para o que
permanece velado ou seja a contraparte da abertura eacute o velamento
Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a
ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo
material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos
que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas
que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela
dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se
estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o
123
que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes82rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que
somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em
fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo
Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por
Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um
fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo
incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como
descoberto e os entes sempre disponiacuteveis A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo
cotidiano Heidegger chama de ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou
ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que
esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas
tomadas como oacutebvias e sempre disponiacuteveis pelos nossos recursos linguiacutesticos
I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem
A anaacutelise do discurso (Rede) por Heidegger eacute apresentada no sect34 de Ser e Tempo e
eacute assim descrita
ldquoCom a enunciaccedilatildeo ficou visiacutevel um derivado extremo da interpretaccedilatildeo A
elucidaccedilatildeo da terceira significaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo (ou
manifestaccedilatildeo verbal) conduziu ao conceito de dizer e falar que intencionalmente
sem duacutevida natildeo fora considerado ateacute aquele momento O fato de que a linguagem
seja tematizada somente agora deve servir de indicaccedilatildeo de que esse fenocircmeno
tem suas raiacutezes na constituiccedilatildeo existenciaacuteria da abertura do Dasein O fundamento
ontoloacutegico-existenciaacuterio da linguagem eacute o discurso () O discurso eacute
existenciariamente de igual originariedade que o entenderrdquo (HEIDEGGER
2012 p453)
Esse trecho nos coloca diante de uma constataccedilatildeo reveladora Afinal o que
fundamenta a linguagem estaacute remetido a abertura primaacuteria de sentido Mas isso jaacute natildeo
estaacute claro a partir da descriccedilatildeo da enunciaccedilatildeo De certa forma sim contudo de maneira
indireta pois a enunciaccedilatildeo (Aussage) comunicativa estaacute remetida aos significados ou
seja ao entendimento jaacute articulado e interpretado Agora poreacutem o que Heidegger nos
82 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo
Wolf Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249
124
apresenta eacute o discurso como fundamento da interpretaccedilatildeo e da enunciaccedilatildeo De outra
forma o fundamento da linguagem na proacutepria abertura de sentido (Sinn) de maneira que
o discurso eacute o proacuteprio entendimento articulado que pode interpretar
ldquoO discurso eacute a articulaccedilatildeo da entendibilidade Por isso o discurso fundamenta a
interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo Ao que pode ser articulado na interpretaccedilatildeo e
mesmo mais originariamente jaacute no discurso demos o nome de sentido O
articulado na articulaccedilatildeo discursiva como tal denominamos de o-todo-da-
significaccedilatildeo e este pode ser decomposto em significaccedilotildees As significaccedilotildees como
o articulado do articulaacutevel satildeo sempre providas de sentido () A entendibilidade
do encontrar-se do ser-no-mundo exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER
2012 p455)
O tratamento sobre o discurso (Rede) em Ser e Tempo eacute pouco extensivo mas
cabe a noacutes tentar compreendecirc-lo em todo sua radicalidade O iniacutecio da filosofia grega
denominado como ldquofilosofia da naturezardquo eacute marcado pela tentativa de encontrar a ordem
imanente agrave totalidade substancial do mundo material Essa totalidade estaacute expressa na
palavra physis que nada tem a ver com a natureza empiacuterica e manipulaacutevel que
conhecemos hoje pelas ciecircncias naturais83 Essa totalidade soacute pode ser vista como tal em
sua constituiccedilatildeo una se suas partes estiverem organicamente reunidas sem as quais natildeo
haacute totalidade mas eacute a partir da totalidade que as partes ganham sentido Mesmo que
Heidegger natildeo trate o discurso nesses termos e ainda mesmo que o termo physis apoacutes a
viragem ganhe uma conotaccedilatildeo toda especiacutefica nos valemos dessa explicaccedilatildeo para tentar
compreender a especificidade do discurso Desse modo podemos observar o que estaacute em
jogo no trecho acima O discurso eacute a articulaccedilatildeo da abertura de sentido sem ele o todo
natildeo poderia ser decomposto e a totalidade seria apenas um todo indistinto Nesse sentido
que o discurso fundamenta a interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo E isso nos revela um pouco
mais
ldquoA tatildeo comum definiccedilatildeo do iniacutecio da filosofia como a substituiccedilatildeo da explicaccedilatildeo
miacutetica ou (como eacute o recorte nos manuais de histoacuteria da filosofia) a passagem do
mito ao logos eacute por demais simplista para descrever o que representou a histoacuteria
e filosoficamente essa origem Compreender a filosofia antiga a partir da relaccedilatildeo
entre logos e physis eacute de fato compreender que o iniacutecio da especulaccedilatildeo filosoacutefica
sobre o mundo eacute em grande parte acompanhado pela tradiccedilatildeo miacutetica grega de
unidade entre espiacuterito e natureza e ao mesmo tempo pelo iniacutecio de um certo
83 Cf GONCcedilALVES M 2006 pp7-11
125
estranhamento entre o ser humano pensante e o ser natural ou () a natureza em
sua totalidaderdquo (GONCcedilALVES 2006 p12)
Como vimos o loacutegos para Heidegger natildeo eacute algo que estaacute no Dasein e por isso ele
pode pensar a totalidade Loacutegos segundo Heidegger em seu sentido originaacuterio grego natildeo
eacute ratio Ao contraacuterio o loacutegos estaacute na totalidade ele eacute a articulaccedilatildeo da totalidade que se
mostra ao mostrar os entes ou os fenocircmenos (loacutegos eacute loacutegos apofacircntico) E por isso o ser-
aiacute o acessa inicialmente de modo praacutetico pois natildeo se separa dessa totalidade (por isso a
originariedade da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da
conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) significativamente articulada) Na realidade o ser-aiacute soacute se
afasta dessa totalidade quando natildeo acessa mais o loacutegos de maneira originaacuteria relativo agrave
derivaccedilatildeo como ente simplesmente dado (Vorhanden) fazendo emergir algo como
significado (Bedeutung) que ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da
enunciaccedilatildeo (Aussage)
Mas qual a relaccedilatildeo entre loacutegos e discurso (Rede) Precisamos ir ao sect7 de Ser e
Tempo ldquoQuando dizemos que o significado-fundamental de λόγος eacute discurso essa
traduccedilatildeo literal soacute eacute plenamente validada a partir da determinaccedilatildeo do que o discurso ele
mesmo significardquo (HEIDEGGER 2012 p113) Loacutegos e discurso satildeo portanto o mesmo
Mas isso soacute torna a questatildeo ainda mais difiacutecil Afinal o loacutegos como loacutegos apofacircntico natildeo
eacute o mostrar do ente em seu ser Como mostrar e dizer podem ser o mesmo
ldquoλόγος como discurso significa () algo assim como δηλοῦν tornar manifesto
aquilo de que lsquose discorrersquo no discurso Aristoacuteteles explicitou mais nitidamente
essa funccedilatildeo do discurso como αποφανέσται O λόγος faz ver algo (φαίνεισθαι) a
saber aquilo sobre o que se discorre e faz ver a quem discorre (voz media) e aos
que discorrem uns com os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p113)
Discurso eacute a mostraccedilatildeo (ἀπόφανσις) que torna-se clara (δηλοῦν) Lembremos que
a plurivocidade do ente na tradiccedilatildeo loacutegica estaacute assentada nas possibilidades semacircnticas
submetidas a um princiacutepio loacutegico fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado
ao princiacutepio de identidade Pensamos que o que Heidegger potildee em tela eacute que a
ldquoidentidaderdquo e a ldquonatildeo-contradiccedilatildeordquo natildeo satildeo princiacutepios loacutegicos mas o mostrar e o torna-
se claro dos fenocircmenos em seu ser na totalidade articulada Ou seja o sentido de ser dos
126
fenocircmenos o mostrar o existente como existente eacute o loacutegos que manifesta e diz a si
mesmo pois reporta-se a palavra legein tornar manifesto aquilo de que se fala num
discurso deixar que algo seja visto manifesto porque posicionado em relaccedilatildeo uns com
os outros Tentemos esboccedilar um exemplo mas natildeo esqueccedilamos a fragilidade das palavras
sedimentas e o obscurecimento que elas oferecem a problemaacutetica ontoloacutegica Quando no
nosso cotidiano uma mesa ldquode trabalhordquo sem os livros sem a cadeira sem as canetas e
sobretudo sem a intenccedilatildeo de ser usada para o trabalho natildeo possui qualquer sentido Ela
eacute apenas um pedaccedilo de madeira ou mesmo passa obtusa aos nossos olhos Do mesmo
modo os livros as canetas e a cadeira A articulaccedilatildeo preacutevia desses objetos ou em seu
sentido ontoloacutegico a articulaccedilatildeo desses fenocircmenos eacute o que faz com que cada um deles
possa ser visto como um ldquoistordquo Notemos como o exemplo nos reporta exatamente a noccedilatildeo
de Umwelt descrita por Heidegger O que o discurso indica eacute a articulaccedilatildeo preacutevia para
que as coisas apareccedilam como tais jaacute no mundo circundante Articulaccedilatildeo anterior a
qualquer interpretaccedilatildeo de um ldquoistordquo ou de algo como algo e consequentemente anterior
ao enunciado (Aussage) Assim o caraacuteter ontoloacutegico dessa articulaccedilatildeo sempre dada a
noacutes em um mundo jaacute descerrado em que pode-se travar atividades praacuteticas com os entes
e em uacuteltima instacircncia falar de ldquomesardquo ldquocadeirardquo ldquocanetardquo etc eacute dado pelo discurso (die
Rede) compreendido como sendo o significado fundamental de λόγος
Nesse sentido podemos ver tambeacutem o caraacuteter intencional do discurso Como
indicamos no capiacutetulo anterior loacutegos como loacutegos apofacircntico possui uma ligaccedilatildeo com os
entes na medida que diz o que de algum modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que ldquoalgo eacute xrdquo ou
que ldquoalgo natildeo eacute xrdquo eacute possiacutevel primariamente pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da
mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com No interior da estrutura do proacuteprio λόγος
ao mostrar que algo eacute diz tambeacutem como ele eacute ou como ele natildeo eacute
ldquoPara tanto tomar-se-aacute uma sentenccedila elementar como exemplo de realizaccedilatildeo do
discurso (λόγος) ldquoa caneta eacute azulrdquo Acabou-se de dizer que um dos elementos
constitutivos do falar (λέγειν) eacute o sobre-o-quecirc Este sobre-o-quecirc em direccedilatildeo ao
qual se realiza o movimento intencional de desvelamento se encontra
simplesmente dado como um todo discreto e a interpelaccedilatildeo discursiva destaca
dele certos elementos O que ocorre ao se proferir o enunciado do tipo ldquoa caneta
eacute azulrdquo eacute uma cisatildeo de um todo subsistente o discurso opera no uno indistinto a
fixaccedilatildeo de limite de certas determinaccedilotildees particulares de modo a destacar
componentes pertencentes a esse elemento temaacutetico da fala () Assim natildeo se
tem uma mostraccedilatildeo da totalidade do sobre-o-quecirc mas apenas de determinados
aspectos seus Juntamente com este movimento de distinccedilatildeo do discurso
denominado de cisatildeo (διαίρεσις) ocorre outro a siacutentese (σύνθεσις) Dissociando-
127
se do todo indistinto certos elementos a ele pertencentes estes natildeo satildeo
simplesmente colocados uns ao lado dos outros Ao fixar os limites das
determinaccedilotildees pertencentes ao uno discreto o discurso reuacutene os elementos que
foram por ele destacados posicionando-os uns com os outros Assim a
interpelaccedilatildeo discursiva que demarca um elemento temaacutetico como sendo caneta e
azul atribui a cor azul ao ente utilizaacutevel caneta sendo esses elementos
visualizados conjuntamente como um no enunciado ldquoa caneta eacute azulrdquo Atraveacutes da
siacutentese o que se dava como um todo indistinto eacute visualizado em sua unidade
destacada por determinados aspectos seus Com base nesses dois momentos a
siacutentese (σύνθεσις) e a cisatildeo (διαίρεσις) vecirc-se que o desencobrimento realizado
pelo discurso eacute uma articulaccedilatildeo delimitadora do quecirc para o qual ele se dirigerdquo
(SALGADO 2015 p145)
Contudo o discurso natildeo eacute apenas o ldquosobre-quecircrdquo a ele tambeacutem pertencem ldquoo dito
discursivamente como tal a comunicaccedilatildeo e o anuacutenciordquo (HEIDEGGER 2012 p459) Isto
porque ldquoo discurso eacute a articulaccedilatildeo significacional da entendibilidade [ou da compreensatildeo
(Verstehen)] do encontrar-se (befindlichen) no ser-no-mundordquo (HEIDEGGER 2012
p459) Ou seja natildeo eacute apenas aos entes e a um estado de coisas natildeo conforme ao ser-aiacute
que o discurso se reporta Mas a proacutepria abertura que possui sentido sendo o sentido
ldquoaquilo que a entendibilidade de algo se manteacutem Denominamos sentido o que eacute
articulaacutevel no abrir que entenderdquo (HEIDEGGER 2012 p429) O discurso como o
significado originaacuterio de loacutegos eacute o proacuteprio ser-no-mundo Pois na medida em que a
proacutepria abertura compreensiva se manteacutem por estar articulada pode sustentar em seu
acircmbito o que quer que seja entes sensaccedilotildees projetos etc E para fora dela bem natildeo haacute
nem mesmo fora Nesse sentido que ldquoa entendibilidade do encontrar-se do ser-no-mundo
exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER 2012 p455) e ldquoo todo-de-significaccedilatildeo da
entendibilidade acede agrave palavra Das significaccedilotildees nascem as palavras e natildeo satildeo as
palavras que entendidas como coisas se proveem de significaccedilotildeesrdquo (HEIDEGGER
2012 p455) A situaccedilatildeo insustentaacutevel de considerar as palavras como as portadoras
originaacuterias de significados pode ser exemplificada por um trecho da obra Cem anos de
solidatildeo de Gabriel Garciacutea Maacuterquez no momento em que Joseacute Arcadio Buendiacutea previu
que as inscriccedilotildees graacuteficas poderiam natildeo mais reportar agrave utilidade das coisas
ldquoFue Aureliano quien concibioacute la foacutermula que habiacutea de defenderlos durante varias
meses de las evasiones de la memoria La descubrioacute por casualidad Insomne
experto por haber sido uno de las primeros habiacutea aprendido a la perfeccioacuten el
arte de la plateriacutea Un diacutea estaba buscando el pequentildeo yunque que utilizaba para
laminar los metales y no recordoacute su nombre Su padre se lo dijo laquotasraquo Aureliano
128
escribioacute el nombre en un papel que pegoacute con goma en la base del yunquecito tas
Asiacute estuvo seguro de no olvidarlo en el futuro No se le ocurrioacute que fuera aquella
la primera manifestacioacuten del olvido porque el objeto teniacutea un nombre difiacutecil de
recordar Pero pocos diacuteas despueacutes descubrioacute que teniacutea dificultades para recordar
casi todas las cosas del laboratorio Entonces las marcoacute con el nombre respectivo
de modo que le bastaba con leer la inscripcioacuten para identificarlas Cuando su
padre le comunicoacute su alarma por haber olvidado hasta los hechos maacutes
impresionantes de su nintildeez Aureliano le explicoacute su meacutetodo y Joseacute Arcadio
Buendiacutea lo puso en praacutectica en toda la casa y maacutes tarde la impuso a todo el pueblo
Con un hisopo entintado marcoacute cada cosa con su nombre mesa silla reloj
puerta pared cama cacerola Fue al corral y marcoacute los animales y las plantas
vaca chivo puerca gallina yuca malanga guineo Paca a poca estudiando las
infinitas posibilidades del olvido se dio cuenta de que podiacutea llegar un diacutea en que
se reconocieran las cosas por sus inscripciones pero no se recordara su utilidad
Entonces fue maacutes expliacutecito El letrero que colgoacute en la cerviz de la vaca era una
muestra ejemplar de la forma en que los habitantes de Macondo estaban
dispuestas a luchar contra el olvido Eacutesta es la vaca hay que ordentildearla todas las
mantildeanas para que produzca leche y a la leche hay que herviriacutea para mezclarla
con el cafeacute y hacer cafeacute con lecherdquo (MAacuteRQUEZ 1999 p102)
A doenccedila da insocircnia em Macondo na obra de Maacuterquez e o esquecimento como
sua consequecircncia eacute ndash se nos permitem uma comparaccedilatildeo livre ndash como na cotidianidade
consideramos os entes disponiacuteveis e sempre presentes Partimos sempre desse
encobrimento oferecido pela liacutengua que a cada vez quer fixar os entes e assim as palavras
satildeo instrumentalizadas pois definem afinal nessa insocircnia o que cada coisa eacute O
esquecimento eacute portanto o desligamento da mostraccedilatildeo originaacuteria dos entes em seu ser
E em uacuteltima medida o esquecimento da verdade como desvelamento (Aleacutetheia) Dito de
outro modo aquilo que Heidegger jaacute havia indicado em 1923-1924 ldquoO que importa eacute
somente que essas coisas existem aiacute () Mas que falte um nome para essas coisas mostra
contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia84(HEIDEGGER
2006p31)
Mas o que consiste esse dizer falar do discurso Se ele eacute o fundamento ontoloacutegico
da linguagem certamente natildeo eacute o mesmo que profericcedilotildees verbais e nominais e sobretudo
natildeo diz respeito a natureza fiacutesica da produccedilatildeo e da percepccedilatildeo dos sons da fala humana
como compreende o estudo da foneacutetica Heidegger nos apresenta entatildeo como o dizer do
discurso pode ser visualizado de forma clara pelo ouvir
84 Cf Nota 45
129
ldquoA conexatildeo do discurso com o entender e com a entendibilidade se torna clara a
partir de uma possibilidade existenciaacuteria do discurso ele mesmo a saber a partir
do ouvir Natildeo eacute por acaso que ao natildeo ouvir lsquodireitorsquo dizemos natildeo lsquoter entendidorsquo
Para o discurso o ouvir eacute constitutivo E assim como a prolaccedilatildeo verbal se funda
no discurso a percepccedilatildeo acuacutestica tambeacutem se funda no ouvir () O Dasein ouve
porque entende Como entendedor ser-no-mundo com os outros ele eacute no seu
ouvir lsquoobedientersquo ao Dasein-com e a si mesmo e nessa audiecircncia obediente ele
se torna dependenterdquo (HEIDEGGER 2012 p461)
Essa dependecircncia diz respeito agrave articulaccedilatildeo jaacute aberta de um mundo descerrado O
discurso articula um mundo esse que sempre nos movimentamos e nos orientamos Sem
essa obediecircncia natildeo haveria qualquer possibilidade de accedilotildees e projetos do ser-aiacute E o
ouvir como possibilidade existenciaacuteria do discurso eacute a manifestaccedilatildeo de seu traccedilo
intencional que ilumina sua presenccedila na abertura de sentido Pois o ouvir eacute o fundamento
ontoloacutegico do escutar ldquofenomenicamente mais originaacuterio do que se determina lsquode
imediatorsquo em psicologia como ouvir ter sensaccedilotildees de sons e perceber ruiacutedosrdquo
(HEIDEGGER 2012 p461) De modo mais claro o fenocircmeno desde Husserl indica
aquilo que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute sempre uma doaccedilatildeo com
significado Assim a intencionalidade fenomenoloacutegica para Heidegger agora voltada ao
mundo e a facticidade como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em seu ser acontece
na e pela articulaccedilatildeo discursiva que ouve porque jaacute articulou a totalidade e por isso
entende tendo em vista que essa totalidade natildeo se apresenta como um todo indistinto Ou
seja o ser-aiacute em sua constituiccedilatildeo primaacuteria voltado agrave abertura compreensiva articulada
pelo discurso pode escutar a doaccedilatildeo fenomecircnica
ldquolsquoDe imediatorsquo nunca ouvimos barulhos e o conjunto de ruiacutedos mas o carro que
range a motocicleta O que se ouve eacute a coluna em marcha o vento norte o pica-
pau bicando o fogo crepitando Eacute preciso uma atitude muito artificial e
complicada para lsquoouviursquo um lsquobarulho purorsquo Que em primeiro lugar ouccedilamos
motocicletas e carros eacute a prova fenomecircnica de que o Dasein como ser-no-mundo
manteacutem-se cada vez junto ao utilizaacutevel do interior-do-mundo e de modo algum
imediatamente junto a lsquosensaccedilotildeesrsquo cuja concatenaccedilatildeo tivesse primeiramente de
ser formada para que se proporcionasse o trampolim a partir do qual o sujeito
saltaria para alcanccedilar finalmente um lsquomundorsquo O Dasein como essencialmente
entendedor eacute de pronto junto ao entendidordquo (HEIDEGGER 2012 p461)
A doaccedilatildeo fenomecircnica possibilitada pelo traccedilo intencional do discurso se estende
agrave escuta e ao calar de um outro ser-aiacute pois como ser-no-mundo que eacute sempre ser-com-
os-outros o Dasein jaacute estaacute ldquode antematildeo com o outro junto ao ente sobre o qual discorrerdquo
130
(HEIDEGGER 2012 p463) Por isso quando outra pessoa nos fala algo natildeo ouvimos
primeiramente os sons para depois agregaacute-los e formarmos palavras compreensiacuteveis Ou
ainda quando o outro silencia ainda expressa algo e tambeacutem pode lsquodar a entenderrsquo
ldquoOuvindo compreendemos o que o interlocutor diz E o dizer nos coloca de
imediato com o interlocutor junto ao ente a respeito do qual o discurso se
pronuncia O genuiacuteno silecircncio tambeacutem modo de ouvir e de dizer calando Essa
preeminecircncia do dizer se reflete nos componentes dos do discurso que se
estruturam a partir daquilo que acede agrave palavra do ente que ela torna manifesto
Dizer algo de certa maneira para algueacutem numa tonalidade ou disposiccedilatildeo de
acircnimo nisso consiste o fenocircmeno do discurso em sua completa estrutura
comunicativa-expressivardquo (NUNES 2012 p 170)
Poderiacuteamos dizer que a articulaccedilatildeo da compreensatildeo (Verstehen) pelo discurso
(Rede) na reuniatildeo dos elementos que foram por ele destacados posicionando-os
discursivamente opera como a harmonia de uma muacutesica que daacute aos fenocircmenos seu lugar
na melodia em funccedilatildeo do ritmo Sendo o ritmo o ldquomundordquo como abertura histoacuterica que
sustenta o sentido de ser de cada parte da melodia que continuaraacute agrave tona ou que teraacute
sentido
Portanto para o ser-aiacute estar lanccedilado em um mundo como projeto-jogado eacute estar
familiarizado atraveacutes da abertura que entende dispositivamente o horizonte de sentido E
esse horizonte eacute compartilhado por todos que convivem em um mesmo mundo faacutetico e eacute
neste sentido que a comunicaccedilatildeo o terceiro significado de enunciaccedilatildeo como vimos no
capiacutetulo anterior ldquoefetua lsquoa partilharsquo do co-encontrar-se e do entendimento do ser-comrdquo
(HEIDEGGER 2012 p457) O que eacute compartilhado natildeo eacute meramente um conteuacutedo
significativo de um lsquopacto-linguiacutesticorsquo assim como comunicar natildeo eacute trazer um desejo
uma expressatildeo uma afirmaccedilatildeo de lsquoforarsquo de um sujeito para o lsquointeriorrsquo de outro mas ldquosua
tendecircncia-de-ser consiste em pretender que o ouvinte participe do ser aberto por aquilo-
sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012 p 473) ou seja a partilha da
experiecircncia da abertura compreensiva jaacute articulada como horizonte de possibilidades que
vem agrave linguagem De outro modo
ldquoDado que o fundamento ontoloacutegico natildeo possui existecircncia agrave parte daquilo que
funda o discurso que eacute a condiccedilatildeo transcendental da linguagem relevando-se da
abertura do Dasein de seu ser-no-mundo tambeacutem eacute lsquolinguagem extensivarsquo (SZ
p61) Inversamente a linguagem como totalidade de palavras (Wortganzheit) de
uma liacutengua eacute o discurso pronunciado De onde se conclui que a primeira eacute a forma
131
estabilizada do segundo na perspectiva do ser-no-mundo da existecircncia cotidiana
que lhe impotildee a condiccedilatildeo de ente intramundano como utensiacutelio As palavras que
podem espedaccedilar-se e coisificar-se seriam o veiacuteculo dessa condiccedilatildeo instrumental
() E que eacute aceder agrave palavra senatildeo falar e que eacute falar senatildeo usar a linguagem
Satildeo pois equivalentes as duas afirmaccedilotildees de Heidegger- que ser no-mundo eacute
falante e que ele tem linguagem (Sprache)() Ambas concernem a um soacute
fenocircmeno captado no conceito aristoteacutelico de homem como ser capaz de falar ndash
zoacuteon loacutegon eacutechon- complemento agrave tese do zoacuteon politikoacuten (animal poliacutetico) - que
revela a interlocuccedilatildeo o lsquofalar uns com os outrosrsquo em que o cotidiano grego estava
politicamente enraizadordquo (NUNES 2012 p170)
Eacute um tanto embaraccediloso os caminhos conceituais que levam o discurso (die Rede)
agrave linguagem (die Sprache) e ainda como essa se apresenta sempre como falatoacuterio (das
Gerede) pela essecircncia mesma da comunicaccedilatildeo (Mitteilung) Pois a linguagem cotidiana
- o dizer uns com os outros em um mundo faacutetico - eacute um discurso que jaacute se expressou ou
seja o acontecimento da linguagem jaacute eacute articulado por um discurso preacutevio e o discurso
jaacute expresso eacute comunicaccedilatildeo Mesmo que a analiacutetica indique uma estratificaccedilatildeo e ainda a
fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da linguagem pelo discurso haacute um caraacuteter ciacuteclico
consequecircncia mesma do ciacuterculo hermenecircutico Se as palavras natildeo tecircm significados fixos
mas histoacutericos provenientes de uma abertura de sentido articulada que sustenta esses
significados Ainda assim os significados acumulam-se nas palavras e essas satildeo afinal a
maneira pela qual o mundo eacute dito nas relaccedilotildees interpessoais e nas relaccedilotildees das pessoas
com as coisas Desse modo se os significados acumulam-se nas palavras o discurso (die
Rede) sempre se manifesta na linguagem cotidiana E eacute na cotidianidade que a absorccedilatildeo
da linguagem eacute imediatamente tomada pela impessoalidade atraveacutes do uso instrumental
das palavras na tendecircncia de oferecer um mundo sempre estaacutevel Eacute essa uacuteltima descriccedilatildeo
que Heidegger chama de falatoacuterio (Gerede) Pois
ldquoO substantivo alematildeo Rede deriva-se diretamente do verbo reden que significa
falar O particiacutepio dos verbos em alematildeo eacute feito na maior parte das vezes por meio
da inserccedilatildeo da partiacutecula lsquogersquo() O que temos na cotidianidade mediana do ser-
aiacute eacute falatoacuterio natildeo porque podemos constatar empiricamente um esvaziamento da
linguagem impessoal e porque sempre eacute possiacutevel acompanhar a falta de
profundidade desses discursos Ao contraacuterio eacute falatoacuterio porque natildeo se realiza
senatildeo a partir de um ato jaacute concluiacutedordquo (CASANOVA 2006 p63)
Mas antes de passarmos agrave descriccedilatildeo do falatoacuterio eacute preciso indicar como esses
ldquoembaraccedilos conceituaisrdquo em torno do discurso indicam a ldquotransiccedilatildeo do pensamento
132
heideggeriano ndash em sua segunda fase nucleado em torno da linguagem- ldquo(NUNES 2012
p169) pois ldquoestampam-se na proacutepria equivocidade do termo designativo die Rede que
significa aleacutem de discurso conversaccedilatildeo e pronunciamentordquo (NUNES 2012 p169)
Essa equivocidade torna-se clara no fato que o discurso (die Rede) natildeo se funda em
qualquer ekstase determinada ou seja natildeo eacute possiacutevel encontrar na temporalidade do ser-
aiacute um momento constitutivo no qual ele emerge Dando assim em Ser e Tempo um
caraacuteter transcendental ao discurso
ldquoconotando o loacutegos grego retraduzido o discurso que nos daria a plena abertura
do Dasein em seu aiacute eacute incluindo portanto a disposiccedilatildeo de acircnimo eacute como modo
eminente de temporalizaccedilatildeo a que natildeo cabe o predomiacutenio de um ecircxtase
determinado o existentivo da linguagem o seu fundamento ontoloacutegicordquo
(NUNES 2012 p169)
Apresentamos no capiacutetulo anterior que no sect65 de Ser e Tempo o autor apresenta
o sentido ontoloacutegico da preocupaccedilatildeo (Sorge) na temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-
se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O
ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Futuro
(poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente (presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees
temporais como as que tomamos diariamente mas o caraacuteter essencial da
existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre adiantado (futuro) em
relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza as possibilidades na
facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva oferecida pela tradiccedilatildeo
histoacuterica ) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no presente esse
passado em seus comportamentos e projetos
No Quarto Capiacutetulo da Segunda Seccedilatildeo denominado Temporalidade e
cotidianidade Heidegger retoma a multiplicidade dos fenocircmenos da anaacutelise preparatoacuteria
da primeira seccedilatildeo para compreendecirc-los em sua unidade em funccedilatildeo da totalidade estrutural
fundante da Sorge E se a analiacutetica existenciaacuteria do ser-aiacute inicia sua investigaccedilatildeo a partir
da cotidianidade mediana tendo em vista que a impropriedade oferecida por suas
orientaccedilotildees eacute em suma a orientaccedilatildeo inicial do ser-aiacute para seus possiacuteveis modos de ser Eacute
necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos na cotidianidade a partir da
temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico
133
Nesse sentido no sect 68 item d de Ser e Tempo intitulado ldquoA temporalidade do
discursordquo Heidegger diz A plena abertura do aiacute constituiacuteda pelo entender o encontrar-
se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) recebe a articulaccedilatildeo pelo discurso
(Rede) Por isso o discurso natildeo se temporaliza primariamente numa ekstase determinada
(HEIDEGGER 2012 p949) e ainda o discurso eacute temporal em si mesmordquo
(HEIDEGGER2012 p949) Na continuidade do paraacutegrafo o autor prossegue dizendo
que natildeo obstante o discurso seja expresso na facticidade na linguagem e deste modo o
presente (Gegenwaumlrtige) desempenha uma funccedilatildeo constitutiva ainda assim
Mas porque o discurso cada vez discorre sobre o ente se bem que natildeo primaacuteria
e principalmente no sentido da enunciaccedilatildeo teoacuterica a anaacutelise da constituiccedilatildeo
temporal do discurso e a explicaccedilatildeo dos caracteres temporais das formaccedilotildees da
liacutengua soacute podem ser levados a cabo quando se tenha resolvido o problema da
conexatildeo de princiacutepio de ser e verdade a partir da problemaacutetica da
temporalidade Poder-se-ia delimitar entatildeo o sentido ontoloacutegico do lsquoeacutersquo que uma
superficial teoria da proposiccedilatildeo e do juiacutezo deformou em lsquocoacutepularsquo Soacute a partir da
temporalidade do discurso isto eacute a partir da temporalidade do Dasein em geral
pode-se elucidar a lsquoorigemrsquo e pode-se entender ontologicamente a possibilidade
de uma formaccedilatildeo-do-conceito (HEIDEGGER2012 p949 grifo nosso)
O problema reside no fato de que o Dasein em Ser e Tempo eacute apresentado como
o fundamento sem fundamento de outra forma a compreensatildeo enquanto acontecimento
de sentido primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode
custodiar o sentido de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento
Entatildeo na medida em que a temporalidade (Zeitlichkeit) eacute o sentido ontoloacutegico desse ente
privilegiado qualquer fenocircmeno exposto na analiacutetica preparatoacuteria precisaria encontrar
seu fundamento ontoloacutegico em alguma ekstase determinada futuro o ser-do-sido ou
presencizar Por exemplo o presente desempenha a funccedilatildeo constitutiva da linguagem
(Sprache) na medida em que o ser-aiacute lanccedilado em um mundo encontra-se em meio aos
entes e jaacute junto aos outros atualizando os significados sedimentados pela linguagem (pela
liacutengua) oferecidos no presente Isso poreacutem natildeo ocorre com o discurso (die Rede) que eacute
ldquotemporal em si mesmordquo Desse modo seu sentido ontoloacutegico ou aquilo que sustenta sua
origem compreendida como seu sentido de ser a partir do desvelamento natildeo eacute elucidado
em Ser e Tempo Pensamos que a partir dessa constataccedilatildeo pelo comprometimento
fenomenoloacutegico de Heidegger a estratificaccedilatildeo da linguagem presente em Ser e Tempo
natildeo pode mais manter-se apoacutes a viragem Pois o fenocircmeno da linguagem precisa ser
134
reconsiderado a partir de si mesmo para que seja possiacutevel encontrar seu fundamento
ontoloacutegico85
Esse breve momento da obra de 1927 acerca da temporalidade do discurso em
Ser e Tempo eacute de extrema importacircncia para pensarmos como o fenocircmeno da linguagem
possui jaacute um importante e amplo papel no interior do tratado Pois ele estaacute intimamente
ligado agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento (Aleacutetheia) revelando natildeo soacute um impasse
acerca da estratificaccedilatildeo da linguagem na obra bem como traz agrave tona que o encobrimento
como contraparte da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser ganha uma imagem peculiar
exatamente na manifestaccedilatildeo da linguagem E desse modo apesar da apresentaccedilatildeo do
discurso e de sua especificidade em Ser e Tempo encontramos apenas a descriccedilatildeo da
linguagem (Sprache) que chamamos de ldquonegativardquo como sedimentaccedilatildeo interpretativa
pelo falatoacuterio (Gerede) Eacute o que vamos expor a seguir
II- O Falatoacuterio (das Gerede)
Ainda no sect34 Heidegger alerta que a anaacutelise do discurso (Rede) perdeu de vista a
cotidianidade do ser-aiacute solo fenomecircnico que a analiacutetica se guia naquele momento Pois
as estruturas existenciaacuterias da abertura do ser-no-mundo entender (Verstehen) encontrar
(Befindlichkeit) discurso (Rede) e interpretar (Auslegen) na medida em que se manteacutem
pela abertura primaacuteria do ser-aiacute remetido ao mundo inicialmente no modo de ser de ldquoa-
genterdquo (das Man) devem ser compreendidas em seu modo especiacutefico na cotidianidade
mediana Como o ser-aiacute eacute de iniacutecio lanccedilado nas possibilidades faacuteticas de um mundo
sedimentado a anaacutelise propriamente fenomenoloacutegica deve se orientar pelos fenocircmenos
expressos nesse horizonte
ldquoDe imediato eacute preciso que fique visiacutevel a partir de alguns fenocircmenos
determinados a abertura de a-gente isto eacute pela elucidaccedilatildeo do modo-de-ser-
cotidiano de discurso visatildeo e interpretaccedilatildeo No relativo a esses fenocircmenos natildeo
eacute supeacuterfluo observar que a interpretaccedilatildeo tem um propoacutesito puramente ontoloacutegico
estando muito longe de uma criacutetica moralizante do Dasein cotidiano e estaacute muito
longe de qualquer aspiraccedilatildeo de lsquofilosofia da culturarsquordquo (HEIDEGGER 2012
p471)
85 Nesse sentido Cf LAFONT 1997 pp46-52
135
A anaacutelise do que Heidegger denomina ldquoA-genterdquo (das Man) eacute apresentada no
quarto capiacutetulo da primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo e tem em vista elucidar o ldquoser-no-mundo
como ser-comrdquo e ldquocomo ser-si-mesmordquo Essa descriccedilatildeo estaacute diretamente relacionada ao
conceito de queda ou decair (Verfallen) pois eacute esse solo imediato que o ser-aiacute se
movimenta e terceiriza seu ser agraves orientaccedilotildees cotidianas cada vez em fuga de seu ser-
proacuteprio mas condiccedilatildeo inexoraacutevel para que possa conquistaacute-lo E ainda como expresso
no trecho acima esses conceitos nada tem a ver com uma criacutetica moral como que uma
criacutetica agrave sociedade de massa A anaacutelise eacute uma elucidaccedilatildeo fenomenoloacutegica e por isso
ontoloacutegica O que estaacute em jogo nessa descriccedilatildeo eacute o acesso aos fenocircmenos como eles se
mostram para entatildeo chegar ao fundamento ontoloacutegico que sustenta seu sentido de ser
Desse modo a facticidade ou o mundo cotidiano eacute o maneira pela qual os fenocircmenos e
as possibilidades do ser-aiacute vecircm ao encontro O que anaacutelise sobre ldquoA-genterdquo (das Man)
realizada no sect25 ao sect27 potildee em tela eacute 1) o esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein 2) o
Dasein-com dos outros e o cotidiano ser-com 3) o cotidiano ser-si-mesmo e a-gente
Se no sect9 Heidegger expotildee o sentido formal do ser-aiacute como esse ente que a cada
vez noacutes mesmos somos e ainda como a essecircncia desse ente reside em sua existecircncia o
esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein deve agora voltar-se ao campo situacional histoacuterico
que extraiu esse conceito
ldquoNo presente contexto de uma analiacutetica existenciaacuteria do Dasein factual surge a
pergunta sobre se o referido modo de o eu se dar abre o Dasein em sua
cotidianidade supondo-se que em geral o abra () Pode-se sempre muito bem
dizer sobre esse ente em termos onticamente justificaacuteveis que lsquoeursquo o sou
Contudo a analiacutetica ontoloacutegica ao empregar essas proposiccedilotildees deve fazecirc-lo com
reservas de princiacutepio O lsquoeursquo somente deve ser entendido no sentido de um como
indicador formal e indiferente de algo que em sua concreta conexatildeo-de-ser
fenomecircnica talvez se desvende como o lsquoopostorsquo do que parecia lsquoNatildeo eursquo de
modo algum significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo [privado de
lsquoegoidadersquo] mas significa um determinado modo-de-ser do lsquoeursquo ele mesmo por
exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p337)
A interpretaccedilatildeo moderna da essecircncia do ser humano baseada na egoidade em um
ldquoeurdquo que se reconhece como tal e em uacuteltima medida fundamenta toda e qualquer
descriccedilatildeo dos entes obscurece o solo em que esse conceito aparece Referir-se ao ldquoeurdquo eacute
possiacutevel no trato diaacuterio e comum da existecircncia cotidiana (onticamente) na medida em que
136
o ldquoaiacuterdquo existe cooriginariamente Natildeo haacute sujeito sem mundo por esse motivo a
ldquolsquosubstacircnciarsquo do homem natildeo eacute o espiacuterito como a siacutentese de alma e corpo mas a
existecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p341) E desse modo se a existecircncia acontece em um
mundo ela natildeo se reconhece primariamente para depois reconhecer ldquomundordquo e os
ldquooutrosrdquo mas existindo o ser humano eacute as possibilidades disponiacuteveis em seu ldquoaiacuterdquo
compartilhando com os outros pois ldquonatildeo haacute afinal de pronto um eu isolado que se decirc sem
os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p337)
A abertura primaacuteria de sentido ou a abertura compreensiva-interpretativa sempre
disposta do ser-aiacute o remete ao mundo junto aos entes e aos outros que partilham a mesma
abertura compreensiva-interpretativa e assim noacutes temos mundo De outro modo
ningueacutem tem lsquoseu mundorsquo particular emergente da consciecircncia que se auto reconhece a
partir da qual lsquoenxergarsquo o mundo puacuteblico Tudo que algueacutem possa vir a pensar sentir
compor dizer etc eacute primariamente aquilo que o mundo puacuteblico compartilhado sustenta
como algo que tem sentido Natildeo sou porque penso antes penso porque sou Quando
tentamos pensar em qualquer significado que natildeo seja sustentado pelo sentido do mundo
puacuteblico natildeo encontramos o que possa ser dito ou pensado
Mas o que o autor quer dizer quando indica que o ldquonatildeo eursquo de modo algum
significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo mas significa um determinado modo-de-
ser do lsquoeursquo ele mesmo por exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012
p337) Imersos nas ocupaccedilotildees diaacuterias empreendidas com os outros o ser-aiacute ldquocomo
cotidiano ser-um-com-o-outro estaacute na sujeiccedilatildeo aos outros Ele natildeo eacute si-mesmo os outros
lhe retiram o ser () Nisso os outros natildeo satildeo determinadosrdquo (HEIDEGGER 2012
p363) Na liacutengua portuguesa essa indeterminaccedilatildeo eacute ilustrada pela partiacutecula ldquoserdquo como
iacutendice de indeterminaccedilatildeo do sujeito Por exemplo Necessita-se de empregados Nesse
lugar se eacute tratado muito bem etc O ldquosujeitordquo o ldquoeurdquo do ser-aiacute na cotidianidade natildeo eacute seu
ser-proacuteprio mas a perda de si pois compreende seu ser inicialmente pela imposiccedilatildeo
impessoal indeterminada de suas possibilidades e as realiza sob o domiacutenio dessa
orientaccedilatildeo estuda-se casa-se tem-se filhos etc Nas palavras do autor
ldquoO Dasein cotidiano tira a interpretaccedilatildeo preacute-ontoloacutegica de seu ser do imediato
modo-de-ser de a-gente A interpretaccedilatildeo ontoloacutegica segue de imediato essa
tendecircncia interpretativa e entende o Dasein a partir do mundo e o encontra como
ente do-interior-do-mundo E natildeo somente isso mas a ontologia lsquoimediatarsquo do
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Dasein faz que se lhe decirc a partir do lsquomundorsquo o sentido de ser em relaccedilatildeo ao qual
esses entes lsquosujeitosrsquo satildeo entendidos Mas porque nessa absorccedilatildeo no mundo
passa-se por cima do fenocircmeno do mundo ele mesmo em seu lugar se introduz o
subsistente do-interior-do-mundo as coisas O ser do ente que eacute -lsquoaiacutersquo-com eacute
concebido como subsistecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p 373)
Como vimos esse modo de ser do ser-aiacute eacute consequecircncia do fato de natildeo termos
qualquer natureza Natildeo haacute como se retirar dessa condiccedilatildeo ontoloacutegica mesmo que
onticamente somos impelidos a cada vez determinarmos nosso ser de alguma forma
indicando noacutes mesmos e os outros como meros subsistentes por exemplo em expressotildees
como ldquoEu sou professorardquo ldquoEle eacute pairdquo ldquoNoacutes somos brasileirosrdquo etc E por isso ldquoo ser-
si-mesmo proacuteprio natildeo repousa sobre um estado-de-exceccedilatildeo de um sujeito desprendido de
a-gente mas eacute uma modificaccedilatildeo existencial de a-gente como um existenciaacuterio essencialrdquo
(HEIDEGGER 2012 p373) ou seja ser-si-mesmo-proacuteprio natildeo eacute se retirar dessa
indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica mas ter transparecircncia dessa condiccedilatildeo irremediaacutevel
A partir dessa explicaccedilatildeo retomemos a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein a partir do
sentido formal da preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-
em (-o-mundo) como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo
(HEIDEGGER 2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser
(existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que
foi lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio
aos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda) O que sustenta o
sentido de ser desse ente eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) pois a temporalidade descobre-
se como o sentido da preocupaccedilatildeo (Sorge) proacutepria ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-
se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute
possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Contudo a preocupaccedilatildeo
proacutepria natildeo eacute a noacutes de pronto transparente e natildeo eacute o modo que inicialmente e na maioria
das vezes estamos e nos orientamos no mundo Ser-no-mundo eacute a abertura compreensiva
disposta jaacute em meio ao mundo articulado e sedimentado portanto eacute constituiacuteda pelo
entender o encontrar-se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) (Cf
HEIDEGGER 2012 p949) Eacute necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos
nessa abertura primaacuteria ao mundo a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal
compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico O autor entatildeo nos apresenta que ldquoo
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entender funda-se no futuro (adiantar-se ou aguardar) O encontrar-se temporaliza-se
primariamente no ser-do-sido (repeticcedilatildeo ou esquecimento) O decair tem raiz temporal
primariamente no presente (presencizar ou instante)rdquo (HEIDEGGER 2012 p951)
Aguardar (Gewaumlrtigen) esquecimento (Vergessenheit) e instante (Augenblck) satildeo
os modos impessoais de realizaccedilatildeo do ser do ser-aiacute na cotidianidade a partir de seu sentido
ontoloacutegico (Sorge) fundado na temporalidade (Zeitlichkeit) O futuro aparece como
espera na cotidianidade na medida em que estaacute submerso na familiaridade de um mundo
descerrado em que o ser-aiacute pode ocupar-se com os entes e travar relaccedilotildees com os outros
na normalidade da vida cotidiana Na familiaridade o ser-aiacute sabe o que esperar O passado
ou o ser-do-sido nada tem a ver com ldquofalta de lembranccedilardquo mas refere-se a imersatildeo na
dejecccedilatildeo ou no modo de ser-jogado do ser-aiacute Nesse sentido o ser-aiacute sempre ocupado abre-
se ao mundo mas fecha-se ao seu ser-proacuteprio esquecendo de si e de sua indeterminaccedilatildeo
em funccedilatildeo do que jaacute estaacute a cada de vez posto como possiacutevel no mundo O decair no modo
proacuteprio refere-se ao presente ou presencizar ou seja a transparecircncia ao ser-aiacute de sua
condiccedilatildeo de jogado em um presente aberto que a vida e a compreensatildeo de ser decorrem
Na cotidianidade poreacutem o decair como instante refere-se a incessante fala apariccedilatildeo e
apropriaccedilatildeo (natildeo como de si mesmo como ser-proacuteprio mas das possibilidades disponiacuteveis
publicamente) das coisas e de um estado de coisas Incessante porque atualiza as
possibilidades postas descerradas e sedimentadas no mundo movimentando a existecircncia
pela retroalimentaccedilatildeo daquilo que jaacute foi e eacute a cada vez compreendido sem pocircr em questatildeo
afinal aquilo que se compreende e o ente que pode compreender ou seja ente que noacutes
somos
Na anaacutelise preparatoacuteria ou na primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo o decair foi descrito
na ldquointerpretaccedilatildeo do falatoacuterio da curiosidade e da ambiguidaderdquo (HEIDDEGGER 2012
p941) Desse modo esclarecido como a queda ou o decair funda-se na temporalidade do
ser-aiacute portanto esclarecido seu fundamento ontoloacutegico a partir do ente que abre a
compreensatildeo de ser Podemos a partir de agora entender o fenocircmeno da linguagem na
cotidianidade do ser-aiacute e em seu modo de ser improacuteprio De outro modo compreender o
falatoacuterio como queda
A anaacutelise do falatoacuterio (das Gerede) eacute realizada no sect35 precedida exatamente pela
exposiccedilatildeo do discurso como fundamento ontoloacutegico da linguagem Essa linha de
139
apresentaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria antes revela que tambeacutem o fenocircmeno da linguagem parte
de seu encobrimento E revela que seu fundamento eacute a cada vez obliterado no uso comum
das liacutenguas e das palavras no cotidiano poreacutem
ldquoA expressatildeo lsquofalatoacuteriorsquo natildeo deve ser aqui empregada numa acepccedilatildeo pejorativa
Ela significa terminologicamente um fenocircmeno positivo que constitui o modo-
de-ser do entender e interpretar do Dasein cotidiano No mais das vezes o
discurso se expressa e jaacute se expressou em palavras O discurso eacute linguagemrdquo
(HEIDEGGER 2012 p471)
A anaacutelise da cotidianidade eacute um caraacuteter fenomecircnico positivo para a analiacutetica
existenciaacuteria pois eacute a partir dele a partir de um modo de ser improacuteprio que o ser-aiacute eacute
lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria das vezes Natildeo eacute apenas
lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade mas seu modo de ser
ontologicamente irremediaacutevel Nesse sentido apresentar a linguagem como manifestaccedilatildeo
uacuteltima da abertura histoacuterica remetida ao mundo que jaacute compreendeu jaacute articulou e jaacute
interpretou eacute apresentar um caminho agrave pergunta Como a linguagem que eacute essencialmente
generalizante pode afinal ser histoacuterica Questatildeo jaacute exposta nos primeiros escritos de
Heidegger que acaba por expor a origem dessa problemaacutetica em Ser e Tempo como por
exemplo essa passagem do texto de 1919
ldquoA objeccedilatildeo mais elementar mas carregada de suficiente perigosidade tinha a ver
com a linguagem Toda descriccedilatildeo eacute um lsquoconceber-em-palavrasrsquo - a lsquoexpressatildeo
verbalrsquo eacute generalizante Essa objeccedilatildeo eacute baseada na crenccedila de que toda linguagem
eacute jaacute em si mesma objetiva isto eacute viver em um significado implica eo ipso uma
concepccedilatildeo teoacuterica do que se entende que a realizaccedilatildeo do significado natildeo eacute mais
do que a exibiccedilatildeo do objeto () A universalidade do significado das palavras
assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia vividardquo86
(HEIDEGGER (GA5657) 2005 pp134-142)
Esse eacute tambeacutem o risco do uso das palavras e da linguagem na cotidianidade ou
do falatoacuterio A manifestaccedilatildeo da linguagem na expressatildeo eacute comunicaccedilatildeo e o enunciado
86 ldquoLa objecioacuten maacutes elemental pero cargada de suficiente peligrosidad teniacutea que ver con el lenguaje Toda
descripcioacuten es un laquoconcebir-en-palabrasraquo -la laquoexpresioacuten verbalraquo es generalizante Esta objecioacuten descansa
en la creencia de que todo lenguaje es ya en siacute mismo objetivante es decir que vivir en un significado
implica eo ipso una concepcioacuten teoreacutetica de lo que es significado que la plenificacioacuten del significado es
sin maacutes soacutelo una exhibicioacuten del objeto() La universalidad del significado de las palabras sentildeala
primariamente algo originario el caraacutecter mundano de la vivencia vivida rdquo Opcit pp134-142
140
como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se pode partilhar com outrem lsquover juntorsquo o mostrado no
modo do determinar Nesse sentido ldquoo discurso (Rede) que-se-expressa eacute comunicaccedilatildeordquo
(HEIDEGGER 2012 p473) E os conceitos-preacutevios oferecidos na comunicaccedilatildeo acabam
por determinar objetivamente as coisas e o estado de coisas ldquosem que tenham perto de si
tangiacutevel e visiacutevel o ente mostrado e determinadordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Dessa
forma ldquoo acircmbito dessa visatildeo compartilhada amplia-se Mas ao mesmo tempo na
repeticcedilatildeo o mostrado pode precisamente vir a se encobrir de novo () O ouvir-dizer eacute
tambeacutem um ser-no-mundo e ser em relaccedilatildeo ao que eacute ouvidordquo (HEIDEGGER 2012
p439)
A essecircncia do falatoacuterio eacute esse ouvir-dizer comunicado que pode ser repetido E
conforme a compreensatildeo mediana orienta-se pela expressatildeo da linguagem expressa ldquoo
discurso comunicado pode ser entendido amplamente sem que o ouvinte tenha de se pocircr
originariamente entendedor daquilo sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012
p473) A relaccedilatildeo com a linguagem torna-se nesse sentido meramente instrumental Um
exemplo paradigmaacutetico eacute a linguagem jornaliacutestica pois em seu traccedilo essencialmente
comunicativo e divulgador pode a cada vez informar sobre as coisas e um estado de
coisas sem que o leitor ou o ouvinte tenha de fato clareza acerca da compreensatildeo de tais
coisas mas pode repetir o que leu e o que ouviu com os outros e ser entendido A ldquofalta
de clarezardquo nesse exemplo natildeo diz respeito a algo como falta de ldquoacesso agraves fontesrdquo mas
deve ser compreendido em seu caraacuteter ontoloacutegico ou seja o que estaacute em jogo eacute o fato
que a linguagem repetida natildeo coloca em questatildeo seu proacuteprio fundamento A relaccedilatildeo entre
a cotidianidade impessoal e o uso da linguagem eacute algo tatildeo intriacutenseco que Heidegger em
1946 no texto Carta sobre o Humanismo diz
ldquoO que foi dito sobre o lsquoimpessoalrsquo em Ser e Tempo (1927) nos paraacutegrafos 27 e
35 de modo algum deve ser reduzido a um contributo secundaacuterio agrave sociologia
Mas o lsquoimpessoalrsquo tampouco se refere apenas agrave imagem oposto compreendida
de maneira eacutetico-existenciaacuteria do ser proacuteprio da pessoa Ao contraacuterio o que disse
ali conteacutem a indicaccedilatildeo agrave pertinecircncia inicial da palavra com o ser e essa
indicaccedilatildeo eacute pensada segundo a verdade do ser Essa relaccedilatildeo permanece oculta
sob o predomiacutenio da subjetividade que se apresenta como opiniatildeo puacuteblicardquo
(HEIDEGGER 2008 p330 grifo nosso)
141
A linguagem eacute portanto submetida ao que eacute compreensiacutevel na opiniatildeo puacuteblica e
aquilo que a cotidianidade mediana natildeo compreende eacute simplesmente descartado como
incompreensiacutevel Ou seja a proacutepria compreensatildeo (Verstehen) estaacute irremediavelmente
orientada agrave queda e essa mantecircm-se como tal no falatoacuterio Na tentativa de objetivar o
que as coisas satildeo e como elas satildeo tudo que eacute compreendido obscurece seu ldquocomordquo ou
seu mostrar que vem ao encontro no mundo histoacuterico pois ldquosoacute se procura ouvir o
discorrido como talrdquo (HEIDEGGER p473)
ldquoEm meio a essa dinacircmica retoma-se incessantemente uma atitude ontoloacutegica em
relaccedilatildeo aos entes intramundanos em geral e ao ser-aiacute em especiacutefico uma atitude
marcada fundamentalmente por uma opacidade primordial Todos satildeo a
princiacutepio homogeneizados a partir da noccedilatildeo de uma subsistecircncia por si todos
passam a ser desde o princiacutepio considerados como entes simplesmente dados e
detentores ao mesmo tempo de propriedades igualmente dadas() O falatoacuterio
tende entatildeo a coibir o aparecimento de uma outra forma discursiva que se
perfaccedila por meio de um real questionamento do ser do ente e de uma apropriaccedilatildeo
originaacuteria do ente consideradordquo (CASANOVA2006 p70)
O falatoacuterio como linguagem sedimentada e repetida eacute o que inicialmente orienta
o ser-aiacute em seu ldquoairdquo A cotidianidade mediana na qual estamos sempre imersos abre
inicialmente a compreensatildeo do mundo ao ser-aiacute mas ao abri-la acaba por fechaacute-la pois
desenraiza o ser-aiacute do solo originaacuterio dessa compreensatildeo de ser dos entes De outro modo
o loacutegos como discurso articula mundo e o abre agrave compreensatildeo o falatoacuterio como
linguagem sedimentada encobre esse mostrar originaacuterio O falatoacuterio diz e indica as coisas
e o estado de coisas mas natildeo os coloca em sua mostraccedilatildeo a partir de seu ser ou como
nos diz Carlos Drummond ldquoO sol consola os doentes e natildeo os renovardquo Nesse sentido
que a repeticcedilatildeo e a difusatildeo satildeo traccedilos essenciais do falatoacuterio pois movimentam a
existecircncia baseada na estabilidade do compreendido previamente articulado e
compartilhado na vida comum manifesto em uacuteltima medida pela linguagem e pelos
conceitos herdados
ldquoA falta-de-solo natildeo o impede de ingressar no que eacute puacuteblico mas favorece seu
ingresso O falatoacuterio eacute a possibilidade de tudo entender sem uma preacutevia
apropriaccedilatildeo da coisa O falatoacuterio jaacute protege por antecipaccedilatildeo contra o perigo de
malograr em tal apropriaccedilatildeo O falatoacuterio que qualquer um pode obter natildeo soacute
dispensa da tarefa de um entendimento autecircntico mas desenvolve uma
entendibilidade indiferente para a qual nada estaacute fechadordquo (HEDEGGER 2012
p475)
142
A objetividade promovida pelo falatoacuterio ou esse jaacute ser-interpretado natildeo eacute algo
que podemos negar e suspender A queda ou decair (Verfallen) constitui ldquoa plena abertura
do aiacuterdquo e o ldquoDasein nunca eacute capaz de rejeitar esse cotidiano ser-do-interpretado no qual
de imediato cresceurdquo (HEIDEGGER 2012 p477) Ele nos constitui porque eacute
inicialmente nosso ldquoaiacuterdquo e ldquotodo entendimento interpretaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo genuiacutenos
toda redescoberta se efetuam nele a partir dele e contrariamente a elerdquo (HEIDEGGER
2012 p477) ldquoTer mundordquo (abertura compreensiva) para o ser-aiacute que o constitui como
ente privilegiado eacute tambeacutem ser absorvido pelo mundo (queda) A verdade (Aleacutetheia)
como desvelamento eacute tambeacutem encobrimento Ser na verdade eacute tambeacutem estaacute na natildeo-
verdade Ouvir o loacutegos eacute tambeacutem se perder na linguagem
ldquoEacute soacute por isso que (sect34) Ser e Tempo conteacutem uma indicaccedilatildeo essencial da
linguagem tocando na questatildeo simples que pergunta em que modo do ser a
linguagem eacute sempre linguagem como tal O esvaziamento da linguagem que
avanccedila violentamente e se estende com rapidez por toda parte natildeo corroacutei apenas
a responsabilidade esteacutetica e moral em todos os usos da linguagem Proveacutem de
uma ameaccedila da essecircncia do ser humanordquo (HEIDEGGER 2008 p331)
Mas entatildeo qual o caminho Como ir agrave linguagem como tal Heidegger nos
adverte ldquoUm mero uso cuidado da linguagem ainda natildeo demonstra que escapamos desse
perigo essencialrdquo (HEIDEGGER 2008 p331) Na realidade reduzir o problema agrave essa
soluccedilatildeo poderia indicar que nem sequer vemos o perigo pois o esconderia sob agraves vestes
de usos como lsquosabedoriarsquo lsquoculturarsquo lsquoconhecimentorsquo etc ou seja a ldquosoluccedilatildeordquo ainda
estaria submetida ao domiacutenio puacuteblico do que eacute compreensiacutevel
Portanto se ldquoa linguagem ainda nos nega sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2008
p331) entatildeo ainda eacute necessaacuterio seguir a orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica
Diante da pergunta de Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na
cidade Soacutecrates responde ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso
irrdquo87 Para que afinal busquemos a relaccedilatildeo entre loacutegos e ser
87 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9
143
Conclusatildeo
O que vem agrave palavra Essa foi a questatildeo que nos guiou nesse trabalho Ela
atravessa outras perguntas por que falamos de uma determinada forma por exemplo
com sujeito e predicado Como eacute possiacutevel nossa comunicaccedilatildeo Como eacute possiacutevel falar que
algo eacute de tal e qual maneira
Fomos ao livro Ser e Tempo natildeo para dizer sobre o que um autor pensou fomos
ao Ser e Tempo para encontrar elementos que poderiam nos guiar nessas questotildees Entatildeo
a tarefa desse tratado revelou-se tambeacutem como um problema de linguagem Pois eacute a
tentativa de reformulaccedilatildeo da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido
depende justamente daquela reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido do
ser Vimos aiacute uma imbricada problemaacutetica a pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo (Sinn von
Sein) eacute tambeacutem a pergunta sobre o que pode sustentar sentido e significados e por isso
o que pode sustentar a linguagem Se natildeo nos incomodasse a tautologia poderiacuteamos
perguntar qual o sentido do sentido
A necessidade de recolocaccedilatildeo da pergunta estaacute diretamente relacionada agrave criacutetica
imanente de Heidegger agrave fenomenologia de Husserl Abordado sempre e a cada vez como
um ente o ser natildeo eacute no entanto um predicado real Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar
o ser como um ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel
e atributivo Ser natildeo eacute um ente o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo
com vistas agrave forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera
para ldquoQual o sentido de serrdquo Atraveacutes da apropriaccedilatildeo da hermenecircutica Heidegger potildee
em tela o caraacuteter histoacuterico do sentido de ser dos entes E dessa maneira indica como as
palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da
experiecircncia hermenecircutica Contudo diferentemente de como a concebeu Dilthey a
experiecircncia revelou-se natildeo como um meacutetodo de acesso ao caraacuteter histoacuterico do sentido e
144
dos significados mas compreensatildeo fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo circunspecta de
nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser
Poreacutem um problema central deveria ser abordado ldquocomo eacute possiacutevel a forma
loacutegicardquo ou ldquoPor que seguimos a foacutermula lsquosujeito e predicadorsquordquo Essa questatildeo nos levou
ateacute a maneira pela qual essa problemaacutetica foi abordada pelos neokantianos mais
especificamente agravequeles representantes da escola de Baden Esses reduziam a
possibilidade de verdade agrave forma do juiacutezo agrave identificaccedilatildeo entre ldquoWahrheit = wahrer Satz
= Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade) A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo
de verdade da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca
que era a dos neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa
concepccedilatildeo tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da
verdade em direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave
proposiccedilatildeo Com isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa
medida condicionando a ontologia agrave loacutegica
Foi esse mapa complexo dos problemas que foi desenhado nos dois primeiros
capiacutetulos os quais consideramos imprescindiacuteveis para uma exposiccedilatildeo completa da
estrutura ontoloacutegica da linguagem em Ser e Tempo Expondo o contexto das filosofias de
Dilthey Husserl e dos neokantianos de Baden bem como o posicionamento de Heidegger
frente a essas teorias a abordagem fenomenoloacutegico-hermenecircutica revelou-se como o
meacutetodo de acesso ao sentido de ser de todo ente Esse meacutetodo acaba ainda por demonstrar
que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um
campo de signos referenciais fechados que doam significado agraves coisas mas uma
manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez se faz presente na facticidade da
existecircncia concreta Last but not least revelou-se a diferenccedila entre uma concepccedilatildeo de
loacutegos proveniente da loacutegica e outra advinda do conceito de aleacutetheia
Foi a partir daiacute que ficaram claros os contornos dos dois uacuteltimos capiacutetulos desta
Dissertaccedilatildeo Tentamos mostrar como em Ser e Tempo a linguagem estaacute assentada em
duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado revelando a diferenccedila
entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm articulados pela imbricaccedilatildeo
radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno Poreacutem natildeo poderiacuteamos nos sentir satisfeitos
nessa descriccedilatildeo Heidegger nos adverte que estamos em fuga do solo em que o loacutegos se
145
mostra Pois o desvelamento enquanto Aleacutetheia eacute tambeacutem encobrimento por isso o
fenocircmeno sempre se nos mostra de maneira dissimulada Tambeacutem a partir de Ser e Tempo
tentamos evidenciar como a linguagem depende da constituiccedilatildeo proacutepria da verdade Ou
seja como o discurso (Rede) eacute apresentado como fundamento ontoloacutegico da linguagem
mas como o fenocircmeno mesmo da linguagem jaacute sempre se apresenta como falatoacuterio
(Gerede) O fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana enquanto comunicaccedilatildeo
ou seja discurso (die Rede) que jaacute se expressou e a cada vez se expressa eacute repetido e
difundido no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada
pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte
compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente Mas
como entes sem qualquer essecircncia preacutevia sem qualquer natureza definida somos a
proacutepria compreensatildeo (Verstehen) irremediavelmente orientada agrave queda sendo o falatoacuterio
a manifestaccedilatildeo uacuteltima dessa condiccedilatildeo
Esse foi o caminho do nosso trabalho que eacute apenas um iniacutecio Ele natildeo pretende
encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender o papel
da poesia na obra de Heidegger apoacutes os anos 1930 como uma tentativa de desvencilhar-
se do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Ou ainda se a estratificaccedilatildeo
da linguagem segundo a formulaccedilatildeo de Ser e Tempo precisou ser revista apoacutes a viragem
tendo em vista que em 1927 natildeo foi possiacutevel encontrar seu fundamento ontoloacutegico a partir
do Dasein
Por enquanto preferimos a tensatildeo e a suspensatildeo do estado de pergunta Preferimos
o pensar como caminho agraves respostas como soluccedilotildees afinal
ldquoCom seu dizer o pensar abre sulcos imperceptiacuteveis na linguagem Esses satildeo
ainda mais imperceptiacuteveis que os sulcos que a passos lentos o camponecircs abre pelo
campo aforardquo (HEIDEGGER 2008 p376)
146
Bibliografia
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Ernildo Stein Petroacutepolis Vozes 2008
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(GA5657)Trad Jesuacutes Adrian Escudero Barcelona Herder 2005
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Jaime AspiunzaMadrid Alianza 2006
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Morujatildeo Adap para a liacutengua portuguesa falada no Brasil por Marco Antocircnio Casanova
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Loparic e Andreacutea Loparic Satildeo Paulo Ed Nova Cultural 2000 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)
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ZAHAVI D A fenomenologia de Husserl Trad Marco Casanova Rio de Janeiro RJ
ViaVerita 2015
- INTRODUCcedilAtildeO
- Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na filosofia
- Introduccedilatildeo
- I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico
- II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias
- II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica
- III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos
- Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica
- Introduccedilatildeo
- I - Os limites da filosofia dos valores
- II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio
- II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger
- III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
- III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger
- Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e Tempo
- Introduccedilatildeo
- I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico
- II A dupla abertura de sentido (Sinn)
- III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)
- II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung)
- Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)
- Introduccedilatildeo
- I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem
- II- O Falatoacuterio (das Gerede)
- Conclusatildeo
- Bibliografia
-
3
100
F363e
2016
Fernandes Christiane Costa de Matos
A estrutura ontoloacutegica da linguagem e a queda no falatoacuterio em Ser e
tempo Christiane Costa de Matos Fernandes - 2016
150 f
Orientadora Virginia Arauacutejo Figueiredo
Coorientador Marco Antonio Casanova
Dissertaccedilatildeo (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas
Inclui bibliografia
1Filosofia ndash Teses 2 Heidegeer Martin 1889-1976 Ser e Tempo I
Figueiredo Virginia ArauacutejoII Casa Nova Marco Antonio dos Santos
IIUniversidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e
Ciecircncias Humanas IIITiacutetulo
4
Banca Avaliadora
_________________________
Profa Dra Virginia de Arauacutejo Figueiredo-UFMG Orientadora
___________________________
Prof Dr Marco Antocircnio Casanova- UERJ Coorientador
___________________________
1ordm Examinador Prof Doutor Eduardo Soares Neves Silva - UFMG
___________________________
2ordmExaminador Prof Doutor Maacutercio Antocircnio de Paiva- PUCMG
5
Agradecimentos
O trabalho que aqui apresento iniciou-se em Fevereiro de 2014 mas originou-se
haacute 12 anos atraacutes em meu primeiro semestre do curso de graduaccedilatildeo em filosofia na
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas da UFMG Jaacute nas primeiras aulas questionei
a possibilidade de continuar nesse caminho pois ele havia se tornando cada vez mais
exigente e difiacutecil No segundo semestre poreacutem cursei a mateacuteria ministrada pelo professor
Fernando Rey Puente onde ele tentava explicar aos alunos ainda iniciantes como eu As
Categorias de Aristoacuteteles Aquelas aulas foram decisivas para que eu compreendesse trecircs
coisas dedicaccedilatildeo e rigor satildeo o que minimamente podemos oferecer agrave filosofia (ainda
permaneccedilo na busca de realizar tais condiccedilotildees) o pensamento filosoacutefico uma vez
apresentado a noacutes natildeo oferece saiacuteda mas compromisso e ainda aprendi que se a partir
daquele momento eu ficasse imune ao ler um livro de filosofia era melhor deixaacute-la Por
isso meu primeiro agradecimento eacute a esse professor Tambeacutem natildeo poderia deixar de
agradecer ao professor Ernesto Perini Nas mateacuterias ministradas por ele que cursei durante
a graduaccedilatildeo natildeo soacute se revelava para mim a importacircncia da linguagem no interior dos
problemas filosoacuteficos como aprendi que o respeito com os alunos era uma maneira de
ensinaacute-los
Agradeccedilo tambeacutem a todos os funcionaacuterios da FAFICH de forma especial agrave Vilma
bibliotecaacuteria-chefe e ao Andreacute secretaacuterio da poacutes-graduaccedilatildeo Ambos pela solicitude com
que sempre me atenderam em todos os momentos que precisei
Agradeccedilo tambeacutem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e
Tecnoloacutegico (CNPq) pela concessatildeo da bolsa de estudos que permitiu nos uacuteltimos dois
anos minha dedicaccedilatildeo integral agrave pesquisa do mestrado
Agradeccedilo agravequeles que construiacute como amigos o viacutenculo com o mundo Dentre eles
alguns nomes natildeo posso deixar de citar Agradeccedilo agrave Thamara Chain pelos 22 anos de
amizade e compreensatildeo Agradeccedilo agrave Taiacutes Tourinho por ser vigilante acerca de minha
solidatildeo por vezes demasiada Agradeccedilo agrave Nathaacutelia de Aacutevila por me lembrar a natildeo ser tatildeo
seacuteria e que o caminho tambeacutem se faz com leveza Agradeccedilo agrave Carolina Faria pela partilha
do entusiasmo na descoberta promovida pelo estudo Tambeacutem agradeccedilo agrave Ana Godoi
Gustavo Machado e Gabriel Lago Essas pessoas me ensinaram o valor do debate (por
6
vezes infindaacuteveis) e ainda que pensamento e vida satildeo o mesmo A uacutenica maneira que
encontrei para agradececirc-los eacute tornar puacuteblico o fato de que nossas conversas estatildeo em cada
linha dessa dissertaccedilatildeo
Agradeccedilo agrave minha orientadora Virginia Figueiredo pela confianccedila depositada em
mim ao me aceitar como orientanda Tambeacutem por seus comentaacuterios e ensinamentos
imprescindiacuteveis bem como pela leitura e revisatildeo impecaacutevel de meu trabalho Nesse
sentido tambeacutem ao meu coorientador Marco Antocircnio Casanova a quem agradeccedilo tendo
em vista que sem sua presenccedila algumas partes dessa dissertaccedilatildeo natildeo seriam possiacuteveis
Agradeccedilo minhas irmatildes Jana e Nanda por serem minhas primeiras e eternas
melhores amigas E por fim agradeccedilo agravequeles por quem o meu sentimento entre o amor
a gratidatildeo e a admiraccedilatildeo natildeo alcanccedila a palavra aos meus pais Adauto e Delza Esse
trabalho eacute para vocecircs
7
VERBO SER
Carlos Drummond de Andrade
Que vai ser quando crescer
Vivem perguntando em redor Que eacute ser
Eacute ter um corpo um jeito um nome
Tenho os trecircs E sou
Tenho de mudar quando crescer Usar outro nome corpo e jeito
Ou a gente soacute principia a ser quando cresce
Eacute terriacutevel ser Doacutei Eacute bom Eacute triste
Ser pronunciado tatildeo depressa e cabe tantas coisas
Repito Ser Ser Ser Er R
Que vou ser quando crescer
Sou obrigado a Posso escolher
Natildeo daacute para entender Natildeo vou ser
Vou crescer assim mesmo
Sem ser Esquecer
ldquoAdmitamos que natildeo haja essa significaccedilatildeo indeterminada e que natildeo entendemos sempre o que lsquoserrsquo significa O que ocorreria nesse caso Apenas um nome e um verbo de menos em nossa linguagem De forma alguma Jaacute natildeo haveria simplesmente linguagem alguma Natildeo ocorreria que o ente se nos abrisse de modo a poder ser chamado e dito Pois dizer o ente como tal implica compreender de antematildeo o ente como ente isto eacute o seu ser Suposto que noacutes simplesmente natildeo compreendecircssemos o ser suposto que a palavra lsquoserrsquo natildeo tivesse nem mesmo aquela significaccedilatildeo flutuante entatildeo jaacute natildeo haveria absolutamente nenhuma palavra Noacutes mesmos nunca poderiacuteamos ser aqueles que falam Laacute natildeo poderiacuteamos ser o que somos Pois ser homem significa ser um dizenterdquo
Heidegger Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica
8
Resumo
O presente trabalho tenta evidenciar a partir da obra Ser e Tempo de Martin
Heidegger como a linguagem (die Sprache) eacute a manifestaccedilatildeo uacuteltima da historicidade de
todo e qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como esses significados satildeo
sustentados por um campo de sentido tambeacutem histoacuterico A partir dessa primeira descriccedilatildeo
o trabalho visa esclarecer como a linguagem no uso cotidiano ou o falatoacuterio (das Gerede)
obscurece o caraacuteter histoacuterico do fenocircmeno da linguagem e dos significados que a sustenta
Portanto esta Dissertaccedilatildeo caminha em duas vias que se tocam a primeira pretende
descrever o que chamamos de estrutura ontoloacutegica da linguagem a partir do
redimensionamento da pergunta heideggeriana pelo ser a fim de indicar como as palavras
em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da experiecircncia
hermenecircutica ou seja atraveacutes da compreensatildeo ontoloacutegica preacutevia a linguagem a segunda
pretende mostrar o fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana como comunicaccedilatildeo
ou discurso (die Rede) a qual jaacute se expressou e a cada vez se expressa sempre repetida
e difundida no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada
pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte
compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente
9
Abstract
The present thesis focuses on demonstrating in what manner language (die
Sprache) is the lattermost manifestation of the historicity of any meaning that can come
to words as well as through what agency those meanings are upheld by a conjointly
historical field of meaning insofar as stated by Martin Heidegger in his work ldquoBeing and
Timerdquo (Sein und Zeit) As of this writing our work aims at unraveling by what means
language in its trivial use or the talk (das Gerede) overshadows the historical aspect and
the meanings that withstand the phenomenon of language Hence the present work is
developed in two adjoining ways the first one endeavors to describe the ontological
structure of language deriving out of the resizing of Heideggers question of being that
has the aim of indicating how the words in context of enunciation inherit their meaning
from previous structures of the hermeneutic experience that is through the prior
ontological understanding of the language The second one aims at revealing the language
phenomenon in the median everydayness as communication or discourse (die Rede)
which has already been expressed and is still expressed always repeated and spread in
the talk that obliterates the comprehensive horizon by reducing all beings to an
undifferentiated homogenization and making them available to our linguistic resources
since it is the primary opening of the sense of being that any and all entities have
10
Sumaacuterio INTRODUCcedilAtildeO 11
Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na
filosofia 15
Introduccedilatildeo 15
I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do
conhecimento como essencialmente histoacuterico 17
II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em
relaccedilatildeo agraves ciecircncias 22
II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica 29
III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos 33
Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica 42
Introduccedilatildeo 42
I - Os limites da filosofia dos valores 44
II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio 53
II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger 58
III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal 68
III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger 72
Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e
Tempo 80
Introduccedilatildeo 80
I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou
o ldquocomordquo hermenecircutico 88
II A dupla abertura de sentido (Sinn) 88
III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit) 103
II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung) 110
Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede) 122
Introduccedilatildeo 122
I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem 123
II- O Falatoacuterio (das Gerede) 134
Conclusatildeo 143
Bibliografia 146
11
INTRODUCcedilAtildeO
Estamos diante de um livro Ser e Tempo Abrimo-lo Com o que nos confronta
em sua primeira paacutegina Que natildeo temos desde Platatildeo ateacute hoje resposta agrave pergunta sobre
o que queremos dizer com a palavra lsquoentersquo Natildeo haacute como ficar imune diante da
constataccedilatildeo E se ateacute hoje essa palavra natildeo nos eacute transparente eacute porque aqueles que se
propuseram a andar no caminho do pensamento natildeo souberam perguntar sobre o ente e
isso porque natildeo souberam afinal perguntar sobre o ser Heidegger natildeo nos propotildee sair do
caminho mas uma nova maneira de caminhar Ele nos promete uma resposta Natildeo Ele
propotildee uma vez mais a pergunta pelo ser O objetivo do tratado eacute elaborar essa questatildeo
De que modo Ele agora pergunta Qual o sentido de ser
Nossa pesquisa poderia partir daiacute Iniciariacuteamos a exposiccedilatildeo de nosso trabalho
nessa pergunta e prosseguiriacuteamos em Ser e Tempo De modo algum Seria um
contrassenso para algueacutem que queira estudar a linguagem em Heidegger partir de uma
sentenccedila como se ela fosse oacutebvia Afinal por qual motivo Heidegger natildeo pergunta ldquoO
que eacute o serrdquo ou ldquoHaacute o serrdquo Fechamos Ser e Tempo Eacute preciso compreender como essa
pergunta ganhou uma determinada forma Mas para onde ir
Ser e Tempo eacute uma obra do seacuteculo XX uma obra de filosofia portanto jaacute eacute parte
de nossa tradiccedilatildeo jaacute temos uma preacute-compreensatildeo dela Sabemos previamente que ela
transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica e que o nosso autor expotildee seu caminho
em um texto de 1963 chamado ldquoMeu caminho na fenomenologiardquo Parece-nos um bom
iniacutecio e vamos ao texto Heidegger descreve o iniacutecio de seus estudos o contato com a
obra inaugural da fenomenologia de Husserl e com a tese de Brentano sobre Aristoacuteteles
aiacute se vecirc germinar ainda que de maneira imprecisa sua questatildeo central Mas isso se
mostrou insuficiente para compreender a pergunta posta em Ser e Tempo Recorremos
entatildeo aos textos de Husserl Jaacute na introduccedilatildeo do II volume agrave obra citada por Heidegger
ndash Investigaccedilotildees Loacutegicas - Husserl descreve a necessidade de a fenomenologia
posicionando-se contra a psicologia explicativa procurar sua fundamentaccedilatildeo da loacutegica
numa nova teoria do conhecimento objetiva Nossa jaacute citada preacute-compreensatildeo nos levou
a Dilthey ao descobrir que esse autor tambeacutem se opocircs ao meacutetodo da psicologia
explicativa Vamos tambeacutem aos seus textos Mas a pergunta aparece teraacute sido tatildeo grande
12
a influecircncia que a psicologia explicativa exercia naquela eacutepoca a ponto de exigir que
tantos pensadores sentissem a necessidade de se opor a ela e ao seu meacutetodo
Como se isso natildeo bastasse revelou-se que ambos os autores Dilthey e Husserl
travam diaacutelogo nem sempre expresso com o neokantismo Agrave revelia de todos julguei
que natildeo deveria desconsiderar mais essa referecircncia tendo em vista que um dos principais
nomes dessa corrente ndash Rickert- foi citado por Heidegger no importante (para esta
pesquisa) texto de 1963 ao qual me referi haacute pouco Entatildeo me perguntei o que une esses
trecircs nomes Dilthey Husserl e Rickert Estaacute posta a tarefa do primeiro capiacutetulo da
Dissertaccedilatildeo
Nele tentei compreender como a partir do desenvolvimento das ciecircncias positivas
particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma profunda discussatildeo acerca do sentido e
da possibilidade do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo busca uma
filosofia propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana procura a
autonomia da filosofia frente agrave ciecircncia positiva mas que serviria de base a toda e qualquer
ciecircncia Tambeacutem nesse contexto aparece a contribuiccedilatildeo de Dilthey a qual acrescenta o
caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e traz agrave tona o sentido do conhecimento como
essencialmente histoacuterico
Mas natildeo chegamos ao que nos propomos estamos ainda nos prolegocircmenos Por
qual motivo Heidegger pergunta Qual o sentido de ser Ser e Tempo continua fechado
Precisamos entatildeo reavaliar nossa preacute-compreensatildeo Se como dissemos Ser e Tempo
transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica eacute preciso analisar como essas influecircncias
aparecem no pensamento de Heidegger Vamos a algumas preleccedilotildees do autor anteriores
agrave obra central de nosso trabalho Eacute preciso indicar que nossa intenccedilatildeo natildeo eacute abordar as
preleccedilotildees como processos evolutivos como que para esclarecer em termos de causa e
efeito a publicaccedilatildeo posterior lsquomadurarsquo de Ser e Tempo Mas destacar como as questotildees
desses textos acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a
problemaacutetica cujo desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927
Estaacute posta a tarefa de nosso segundo capiacutetulo
Nele trata-se de compreender como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere
Heidegger no interior da referida discussatildeo pelo sentido do conhecimento Mas ao
mesmo tempo tentaremos mostrar como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva
(considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal)
e a introduccedilatildeo do elemento hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com
13
Heidegger a pergunta fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do
conhecimento e passou a ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto
nosso segundo capiacutetulo pretende analisar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger
no interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do
conhecimento ao sentido do ser
Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido
de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a
teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo
pelo sentido do ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir
da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para
uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no
curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER 2006 p122) o elemento
hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave fenomenologia
que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em
seu ser Podemos abrir novamente Ser e Tempo
Esse percurso foi necessaacuterio para que pudeacutessemos conquistar um solo
interpretativo e sobretudo alcanccedilar a pergunta pelo sentido de ser Pois ela a pergunta
estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura de sentido que precisamos explicitar
E assim no terceiro e central capiacutetulo da Dissertaccedilatildeo apresentar como em Ser e Tempo
o fenocircmeno da linguagem (Sprache) aparece no interior dessa compreensatildeo e em que
medida a linguagem eacute possiacutevel por uma estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Dito de
outro modo na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto
ontoloacutegico do conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e
qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido tambeacutem
histoacuterico em que algo pode se manter em seu significado Eacute nessa perspectiva que
procuramos a estrutura ontoloacutegica da linguagem
Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a
ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo
material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos
que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas
que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela
dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se
estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o
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que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes1rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que
somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em
fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo
Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por
Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um
fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo
incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como
descoberto A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo cotidiano Heidegger chama de
ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio
natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute
encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas tomadas como oacutebvias
Esse eacute o caminho do nosso trabalho mas eacute apenas o iniacutecio Ele natildeo pretende
encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender a
ldquopassagem para o poeacutetico2rdquo na obra de Heidegger como uma tentativa de desvencilhar-se
do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Por enquanto preferimos a tensatildeo
e a suspensatildeo do estado de pergunta Ser e Tempo continuaraacute aberto Tentaremos nos
manter fieis agrave orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica Diante da pergunta de
Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na cidade Soacutecrates responde
ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso irrdquo3
1 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo Wolf
Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249 2 Cf NUNES 2012 3 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9
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Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo
sentido do conhecimento na filosofia
Chega um tempo em que natildeo se diz mais meu Deus () Chegou um tempo em que natildeo adianta morrer Chegou um tempo em que a vida eacute uma ordem
A vida apenas sem mistificaccedilatildeo (Os Ombros Suportam o Mundo Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
Conforme Merleau Ponty a fenomenologia surge como uma tentativa para
resolver um problema natildeo de uma seita mas talvez o problema do seacuteculo o problema
que se punha desde 1900 para todo o mundo e ainda eacute hoje colocado (PONTY M1973
Pag15) O problema refere-se agrave crise das ciecircncias humanas (Geistenwissenschaften) e agraves
ciecircncias naturais
Se o fundamento dos princiacutepios da geometria e da fiacutesica eram objetos de
investigaccedilatildeo de Husserl e o levou ao caminho da pesquisa de uma filosofia sem
pressupostos- bem como as investigaccedilotildees dos chamados neokantianos da escola de
Marburg que os levaram agrave tentativa de fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas - as
ciecircncias humanas tambeacutem se desenvolviam no auspiacutecio de sua proacutepria ambiguidade
A medida que se desenvolviam as pesquisas psicoloacutegicas socioloacutegicas
histoacutericas tendiam a nos apresentar todo pensamento toda opiniatildeo e em
particular toda filosofia como o resultado da accedilatildeo combinada das condiccedilotildees
psicoloacutegicas sociais histoacutericas anteriores A psicologia tendia para o que Husserl
denomina psicologismo a sociologia o sociologismo histoacuteria para o
historicismo Ora com isto elas acabavam por erradicar seus proacuteprios
fundamentos (PONTY1973 p15)
Na medida em que os princiacutepios orientadores do homem histoacuterico social e
psicoloacutegico satildeo elementos externos e imbricados de certa contingecircncia conforme os
resultados mesmos dessas pesquisas o pesquisador punha suas proacuteprias afirmaccedilotildees em
duacutevida pois o fundamento de todas elas eacute tambeacutem contingente e o valor de verdade de
suas conclusotildees fluido Contudo quando algo faz aparecer opositores observando e
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diagnosticando seus problemas fundamentais eacute porque encontra-se em evidecircncia e jaacute
atingiu certo grau de adesatildeo sendo necessaacuterio apontar elementos obliterados em sua
suposta evidecircncia
A autonomia das ciecircncias positivas frente aos sistemas filosoacuteficos em meados do
seacuteculo XIX na Alemanha acompanhava um crescente desprestiacutegio da metafiacutesica e da
filosofia da natureza sendo a reflexatildeo metodoloacutegica suplantada por novos procedimentos
-e uma nova visatildeo de mundo- em que vigoravam o conhecimento empiacuterico impessoal e
temporal
Se a filosofia jaacute natildeo parecia ter condiccedilotildees de responder agraves questotildees dessa nova
visatildeo de mundo cientiacutefica com as propostas da psicologia experimental - baseada no
modelo metodoloacutegico das ciecircncias naturais- ela a filosofia parecia estar condenada ao
ostracismo sendo capaz apenas de se colocar como curiosidade histoacuterica A psicologia
experimental ou explicativa considerava que um procedimento verdadeiramente
cientiacutefico deveria ser baseado na observaccedilatildeo empiacuterica ela era a interpretaccedilatildeo da verdade
atraveacutes de causas psiacutequicas responsaacuteveis pela efetuaccedilatildeo do juiacutezo(MACDOWEL 1993
p28)
O ponto crucial dessa posiccedilatildeo eacute o fato de que o estudo da loacutegica enquanto
estrutura do pensamento estaacute condicionado aos meacutetodos e princiacutepios da psicologia e
portanto condicionada a tipos de demonstraccedilotildees empiacutericas Uma investigaccedilatildeo dessa
espeacutecie - a loacutegica condicionada a demonstraccedilotildees empiacutericas - eacute a negaccedilatildeo da tarefa proacutepria
agrave filosofia (mesmo quando um ou outro pensador negue por exemplo a idealidade loacutegica
ainda assim o faz inserido nessa tarefa de investigaccedilatildeo) pois a loacutegica como doutrina
voltada para uma purificaccedilatildeo radical dos elementos materiais da linguagem e para uma
subsequente reconciliaccedilatildeo entre pensamento e verdade se mostra como expressatildeo
maacutexima do projeto originaacuterio da tradiccedilatildeo (CASANOVA Introduccedilatildeo In DILTHEY
2011p8)
Nesse contexto surgem reaccedilotildees ao modelo predominante das ciecircncias naturais
sobretudo em relaccedilatildeo agrave adesatildeo a este modelo pela psicologia e pelas ciecircncias humanas
Dentre essas reaccedilotildees destacamos o projeto da psicologia descritiva e analiacutetica de Dilthey
as contribuiccedilotildees da pesquisa sobre a validade do conhecimento das escolas neokantistas
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ndash destacando a filosofia dos valores de Windelband e Rickert - e o projeto husserliano de
uma filosofia sem pressupostos que se realizaria atraveacutes do meacutetodo fenomenoloacutegico
Ciente de que natildeo nos eacute possiacutevel aprofundar nessas complexas investigaccedilotildees nossa
intenccedilatildeo nesse primeiro momento de trabalho eacute apenas indicar os elementos
fundamentais de cada posiccedilatildeo e a partir deles compreender no capiacutetulo seguinte em
que medida essas reaccedilotildees se intercruzam e influenciam o autor privilegiado no texto
dessa dissertaccedilatildeo Este eacute o objetivo de nosso primeiro capiacutetulo
Nosso primeiro capiacutetulo eacute a tentativa de compreender como a partir do
desenvolvimento das ciecircncias positivas particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma
profunda discussatildeo acerca do sentido e possibilidade do conhecimento Nesse contexto o
neokantismo busca uma filosofia propriamente cientiacutefica ndash como reflexo da exigecircncia de
sua proacutepria eacutepoca ndash enquanto a fenomenologia husserliana busca a autonomia da filosofia
descontiacutenua agrave ciecircncia positiva mas que seria a base de toda e qualquer ciecircncia Tambeacutem
nesse contexto emerge como elemento fundamental para o desenvolvimento de nosso
trabalho a tarefa geral de Dilthey que mesmo imersa nas exigecircncias positivistas de seu
tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e potildee em tela o sentido
do conhecimento como essencialmente histoacuterico
I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias
do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente
histoacuterico
Dilthey contra a mera transposiccedilatildeo do meacutetodo das ciecircncias naturais agraves ciecircncias
do espiacuterito ldquose deu conta que a pretensatildeo de entender filosoficamente as disciplinas
histoacutericas soacute poderia levar-se a um porto seguro se reflexiona acerca do que eacute o objeto
das ditas ciecircnciasrdquo (HEIDEGGER 2006p33)
As ciecircncias naturais segundo Dilthey se relacionam com os objetos na medida
em que esses satildeo ou fatos simultacircneos ou sucessivos e aparecem agrave consciecircncia sempre
como dados externos assim recorrendo a uma hipoacutetese como recurso explicativo
condicionada agrave verificaccedilatildeo a partir de maior ou menor incidecircncia desses fatos Os
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resultados das ciecircncias naturais seriam portanto conclusotildees complementares que
tentariam explicar os fenocircmenos externos (observados como fenocircmenos particulares) e
ordenaacute-los pela funccedilatildeo explicativa da ciecircncia que movimenta da parte (fenocircmenos
unitaacuterios) ao todo (explicaccedilatildeo ordenadora)
Poreacutem os fenocircmenos das ciecircncias humanas aparecem internamente agrave consciecircncia
com realidade de uma lsquoconexatildeo vivarsquo sendo essa conexatildeo da vida psiacutequica
originariamente dada compreensivamente a qualquer homem histoacuterico vivente A anaacutelise
ou distinccedilatildeo dos elos particulares dessa conexatildeo eacute posterior pois o que se daacute
imediatamente agrave consciecircncia eacute a conexatildeo constante das proacuteprias vivecircncias e ldquoa vida natildeo
se faz senatildeo como conexatildeordquo (DILTHEY W2011 pag30) natildeo tendo sentido a partir
dessa evidecircncia falar em algo como deduccedilatildeo dos fenocircmenos psiacutequicos
Exige-se portanto agrave psicologia um outro procedimento pois satildeo somente os
dados da psicologia descritiva que poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar
para as ciecircncias humanas O que estaacute em jogo para Dilthey contra a psicologia
explicativa eacute mostrar como a teoria do conhecimento relativa agraves ciecircncias do espiacuterito e
tambeacutem agrave filosofia natildeo pode abrir matildeo da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica Poreacutem em funccedilatildeo
da especificidade de seus objetos reclama outros meacutetodos que natildeo aqueles das ciecircncias
naturais
Dilthey natildeo aceita os pressupostos do retorno agrave filosofia kantiana4 para a
fundamentaccedilatildeo de suas investigaccedilotildees pois a cisatildeo entre mateacuteria e forma proveniente
desse sistema natildeo serve agraves ciecircncias do espiacuterito e natildeo pode ser mais sustentada diante da
evidecircncia da vida conexa e estruturante da vivecircncia da consciecircncia
4 Sobre esse aspecto eacute importante apresentar duas consideraccedilotildees 1) No interior da biografia de
Schleiermacher de 1860 Dilthey destaca a importacircncia de alguns aspectos do texto de Kant ldquoA religiatildeo
nos limites da simples razatildeordquo (1793) para o desenvolvimento da hermenecircutica de Schleiermacher 2)
Contudo talvez sob influecircncia do debate neokantiano agrave eacutepoca Dilthey apresenta o essencial da filosofia
kantiana como sendo a Criacutetica da Razatildeo Pura ou seja a teoria do conhecimento referente agraves ciecircncias
naturais E nesse sentido que a divisatildeo entre mateacuteria e forma como exposta na primeira criacutetica natildeo eacute
suficiente agrave elaboraccedilatildeo da epistemologia das ciecircncias humanas Sobre esse assunto Cf Kant und die
philosophische Hermeneutik in Kant-Studien 66 (1975) pp 395-403 Traduccioacuten de Angela Ackermann
Pilaacuteri en GADAMER H-G Los caminos de Heidegger Herder Barcelona 2002 pp 57-66 Cf
Beckenkamp J Kant e a hermenecircutica moderna in Kriterion vol51 no121 Belo Horizonte Junho 2010 e
tambeacutem Cf REIS JC A ldquocriacutetica histoacuterica da razatildeordquo Dilthey versus Kant In Textos de histoacuteria UNB
vol10 nordm12 v 10 (2002) pp-159-179
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ldquoA cisatildeo entre mateacuteria e forma do conhecimento que eacute levada a termo no sistema
kantiano tambeacutem natildeo pode ser hoje mantida Muito mais importante do que essa
cisatildeo satildeo as relaccedilotildees internas que subsistem por toda a parte entre a multiplicidade
das sensaccedilotildees como a mateacuteria do nosso conhecimento e a forma na qual
apreendemos a mateacuteriardquo (DILTHEY W2011 p37)
Para REIS (2003)5 Dilthey eacute associado ao historicismo como seu maior teoacuterico
Ainda como aponta REIS nem todos pesquisadores de sua obra concordam com este
veredito alguns ateacute mesmo questionam se Dilthey poderia ser considerado um
historicista pois em seu projeto de construccedilatildeo de uma epistemologia das ciecircncias
humanas ao se opor ao historicismo romacircntico Dilthey recairia em certo positivismo De
todo modo analisar detalhadamente esta discussatildeo natildeo nos eacute possiacutevel o que nos interessa
aqui eacute apontar que apesar de fazer coro com as caracteriacutesticas gerais deste movimento
Dilthey se destaca por sua busca propriamente epistemoloacutegica das ciecircncias humanas a
partir da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos se afastando em diversos pontos
do chamado ldquoirracionalismordquo romacircntico mas sem reduzir o historicismo agrave pura
epistemologia e sobretudo lanccedilando bases teoacutericas com pretensatildeo cientiacutefica para a
abordagem dos fenocircmenos histoacutericos
ldquoO aspecto positivista da sua teoria devia-se agrave atmosfera naturalista em que ele
viveu As ciecircncias naturais impuseram o seu padratildeo de rigor e objetividade No
seacuteculo XIX a morte da filosofia sistemaacutetica cedeu seu lugar a uma ldquofilosofia
cientiacuteficardquo Natildeo era uma filosofia especulativa mas ldquoestudos positivos com
intenccedilatildeo filosoacuteficardquo O filoacutesofo natildeo podia pensar em qualquer objeto sem recorrer
a estudos concretos ao estudo de fontes primaacuterias extraiacutedas do mundo real
Dilthey neste sentido quis que sua filosofia fosse cientiacutefica Eacute uma teoria do
conhecimento das ciecircncias morais que estudam as relaccedilotildees e eventos positivos
do mundo histoacuterico-social () Aiacute reside seu positivismo que segundo Aron ele
nunca superou e que eacute sua originalidade () Sua tese eacute as ciecircncias humanas
existem como lsquociecircncias e eacute vatildeo discutir o seu caraacuteter cientiacutefico em nome de uma
teoria preconcebida da ciecircnciarsquordquo (REIS 2003p32)
Dilthey se destaca no movimento historicista pela sua preocupaccedilatildeo com o meacutetodo para
as ciecircncias humanas consciente de sua especificidade ou da metodologia autocircnoma dessa
disciplina na medida em que histoacuteria e vida se encontram pela compreensatildeo sendo a vida
ao mesmo tempo histoacuterica e psicoloacutegica E o fato de natildeo haver um modelo universal
sistemaacutetico da histoacuteria natildeo reduz sua pesquisa em uma descriccedilatildeo caoacutetica dos eventos
5 Seguindo a interpretaccedilatildeo de Freunde e Ortega y Gasset Cf REIS JC 2003 p31
20
Vivecircncia compreensatildeo e expressatildeo eacute a triacuteade fundamental para o pensamento de
Dilthey e sua ldquocriacutetica da razatildeo histoacutericardquo consiste em delinear como a construccedilatildeo do
mundo histoacuterico no sujeito torna possiacutevel um saber sobre a realidade espiritual
apreendendo aiacute a partir da experiecircncia do mundo histoacuterico o princiacutepio real das ciecircncias
humanas A reconstruccedilatildeo do mundo da vida natildeo pode ser reduzida a uma soma de
elementos que possam descrevecirc-lo Mais do que isso a vida histoacuterica de um determinado
tempo eacute vivenciada por uma ligaccedilatildeo imediata entre o sujeito e seu tempo cada vivecircncia
sinaliza para a concretude objetiva do espiacuterito da eacutepoca O que importa nesta perspectiva
eacute que a realidade objetiva seja garantida pela proacutepria vivecircncia que eacute ldquoerigida agrave condiccedilatildeo
de categoria epistemoloacutegica fundamental em oposiccedilatildeo ao conceito de representaccedilatildeordquo
(AMARAL2004 p53) ou seja a objetividade da vivecircncia lhe eacute imanente A vivecircncia
(Erlebnis) natildeo eacute mera vida orgacircnica (Leben) mas o encontro indissociaacutevel entre a histoacuteria
e a vida dos homens Se por um lado natildeo eacute possiacutevel acompanhar o horizonte de sentido
de uma eacutepoca sem esta primeira experiecircncia viacutevida cujas expressotildees satildeo particulares por
outro lado eacute somente atraveacutes da compreensatildeo que a vivecircncia eacute alargada superando a
unilateralidade da experiecircncia singular
ldquoA compreensatildeo eacute um reencontro do eu no tu o espiacuterito encontra-se em niacuteveis
cada vez mais elevados da conexatildeo essa mesmidade do espiacuterito no eu no tu em
cada sujeito de uma comunidade em todo sistema da cultura por fim na
totalidade do espiacuterito e da histoacuteria universal torna possiacutevel a atuaccedilatildeo conjunta
das diversas capacidades nas ciecircncias humanas O sujeito do saber estaacute assim
unido com o seu objeto e esse objeto eacute o mesmo em todos os niacuteveis de sua
objetivaccedilatildeo Se a objetividade do mundo espiritual criada no sujeito eacute reconhecida
por este procedimento surge a pergunta sobre o quanto isso pode contribuir para
a resoluccedilatildeo do problema do conhecimento em geralrdquo (DILTHEY 2006p168)
A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo eacute ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da
hermenecircutica de Dilthey pois traz em si a categoria do significado como o nexo da
vivecircncia com a realidade concreta sem se apoiar em qualquer elemento transcendente agrave
proacutepria experiecircncia psicoloacutegica vivida
ldquoA categoria do significado designa a relaccedilatildeo entre as partes da vida e o todo
uma relaccedilatildeo que estaacute fundada na essecircncia da vida Soacute possuiacutemos essa conexatildeo
por meio da memoacuteria na qual podemos visualizar o transcurso vital do passado
Na memoacuteria faz-se valer entatildeo o significado como a forma de apreensatildeo da vida
Captamos o significado de um momento passado Ele eacute significativo na medida
em que nele se realiza um viacutenculo com o futuro por meio da accedilatildeo ou por meio de
um acontecimento exterior Ou na medida em que foi concebido o plano de uma
conduccedilatildeo futura da vida Ou na medida em que um plano de sua realizaccedilatildeo foi
21
levado a termo Ou ele eacute significativo para a vida conjunta na medida em que a
intervenccedilatildeo do indiviacuteduo se realiza nessa vida na qual sua essecircncia mais proacutepria
interveio na configuraccedilatildeo da humanidade Em todos esses e em outros casos o
momento particular possui significado por meio de sua conexatildeo com o todo por
meio da ligaccedilatildeo entre passado e futuro entre existecircncia particular e a
humanidaderdquo (DILTHEY 2006p224)
A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo deve ser entendida como ldquoos dois lados
do processo loacutegico dois lados que se interpenetram mutualmenterdquo (DILTHEY
2006p213) sendo a forma de compreender enquanto meacutetodo a ldquoinduccedilatildeo que deduz das
particularidades parcialmente determinadas para noacutes uma conexatildeo que define o todordquo
(DILTHEY 2006p214) Mas isso soacute eacute possiacutevel pelas categorias que residem na essecircncia
da proacutepria vida categorias que natildeo satildeo dadas a priori e nem podem ser formalizadas
logicamente Satildeo categorias preenchidas no interior de certa unidade espaccedilo-temporal
pois ldquoa vida encontra-se em uma relaccedilatildeo maximamente proacutexima com o preenchimento
do tempo() No tempo a vida existe na relaccedilatildeo das partes com uma conexatildeordquo
(DILTHEY 2006p219)
O conjunto das realizaccedilotildees da compreensatildeo enquanto conexotildees estruturais
objetivas ou objetivaccedilatildeo da proacutepria vida no mundo exterior eacute o conceito das ciecircncias
humanas e ldquotudo aquilo em que o homem por sua atuaccedilatildeo imprimiu sua marca constitui
o objeto das ciecircncias humanasrdquo (DILTHEY 2006 p112) Tendo em vista esse objeto a
tarefa do pesquisador ldquoconsiste na apreensatildeo do mundo do espiacuterito como uma conexatildeo
dos efeitos ou como uma conexatildeo contida em seus produtos duradourosrdquo (DILTHEY
2006p118) A conexatildeo dos efeitos dos produtos da ciecircncia histoacuterica natildeo eacute como o nexo
causal da natureza pois diferentemente da natureza as conexotildees da vida objetiva do
espiacuterito geram valores e realizam fins a vida histoacuterica natildeo eacute reproduccedilatildeo ciacuteclica de si
mesma ndash como a vida natural - mas eacute sempre criativa e ativa na produccedilatildeo desses valores
e bens como seu caraacuteter imanente mais proacuteprio
E eacute nessa apreensatildeo do tear da vida histoacuterica na qual o tempo a vivecircncia e
compreensatildeo estatildeo imbricados e se interpelam o significado ldquoeacute a categoria abrangente
sob a qual a vida se torna concebiacutevelrdquo (DILTHEY 2006p222)
ldquoDito de outro modo conceber algo atribuir valor e estabelecer fins para algo
satildeo atitudes vitais inter-dependentes que configuram as vivecircncias e assim sendo
nos ajudam a construir a proacutepria realidade em que vivemos Vivecircncia e realidade
22
satildeo como que tecidas conjuntamente graccedilas ao apoio da ldquocategoria do
significadordquo (AMARAL 2004p55)
As expressotildees da vivecircncia possuem sua objetividade na medida em que os objetos
as pessoas os valores e os juiacutezos apoiados nesta relaccedilatildeo enraiacutezam-se nos significados
comuns do mundo da vida significados esses que satildeo vivenciados e compreendidos
perfazendo a proacutepria construccedilatildeo do mundo histoacuterico ldquoe consequentemente de sua
compreensatildeo como tarefa basilar das ciecircncias do espiacuteritordquo (AMARAL 2004p57)
II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar
proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias6
Ainda na reaccedilatildeo contra o empirismo positivista do final do seacuteculo XIX e
sobretudo ao psicologismo desenvolveram-se as investigaccedilotildees dos chamados
neokantianos um ldquomovimento com profundas raiacutezes no seacuteculo dezenove [que] dominou
a academia filosoacutefica alematilde entre 1890 e 1920rdquo (CROWELL2001 p23)
Seguindo a exposiccedilatildeo de Crowell o movimento neokantiano pode ser dividido em
trecircs momentos profundamente relacionados com os acontecimentos histoacutericos poliacuteticos
e sociais da Alemanha na virada do seacuteculo XIX para XX Natildeo seraacute possiacutevel nos
aprofundarmos muito na especificidade de cada momento desse movimento bem como
nas suas relaccedilotildees com outras mateacuterias Como jaacute foi dito acima nossa proposta nessa
breve introduccedilatildeo eacute apenas mostrar a importacircncia desse movimento na formaccedilatildeo do
pensamento de Heidegger7 e indicar o contexto geral no qual nasce esse pensamento
6 O neokantismo eacute um movimento complexo e com muitas nuances Como nossa intenccedilatildeo eacute apresentar o
contexto no qual surge o pensamento de Heidegger natildeo pretendemos nos aprofundar e muito menos
desdobrar as divergecircncias entre seus representantes principais atraveacutes do acesso direto agraves suas obras
Portanto seguiremos nesse toacutepico a leitura de Crowell (2001) e Joseacute Rezende Juacutenior (2013) recorrendo
quando necessaacuterio a outros comentadores Destacamos os elementos centrais do pensamento de
Windelband e sobretudo de Rickert pois a partir da anaacutelise da preleccedilatildeo de 1919 de nosso autor ldquoA filosofia
e o problema da concepccedilatildeo de mundordquo ndash em que Heidegger investiga a possibilidade da filosofia como
ciecircncia originaacuteria ndash a posiccedilatildeo desses autores eacute decisiva para elaboraccedilatildeo dos problemas do meacutetodo de acesso
a imediatidade da vida e na primeira parte da referida preleccedilatildeo Heidegger expotildee os pressupostos e
problemas do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e sua dependecircncia ao material teoacuterico das ciecircncias particulares 7 Aleacutem do exposto em nota acima (6) seguimos a leitura de Gianni Vattimo em Introduccedilatildeo a Heidegger
No primeiro capiacutetulo Vattimo mostra a importacircncia dos anos de estudos universitaacuterios de Heidegger em
Freiburg sob orientaccedilatildeo de Heinrich Rickert para o desenvolvimento da questatildeo central de seu
pensamento a questatildeo do ser Segundo Vattimo em sua tese de livre docecircncia de 1916 Heidegger jaacute
23
contexto de uma disputa pela ldquoNova Filosofiardquo que dividiu a Fenomenologia de um lado
e os Neokantianos de outro
ldquoAmbos os movimentos reivindicam o tiacutetulo de filosofia cientiacutefica mas o
neokantismo difere da fenomenologia em manter uma continuidade entre a
ciecircncia positiva e filosofia A teoria da ciecircncia a epistemologia neokantiana
deseja fornecer fundamentos para os princiacutepios de base (lsquocientiacuteficosrsquo) da visatildeo de
mundo A Fenomenologia (aqui Husserl e o jovem Heidegger) ao contraacuterio
estabelece a autonomia da filosofia precisamente atraveacutes da descontinuidade com
a ciecircncia positiva e os objetos de formaccedilatildeo da visatildeo de mundordquo (CROWELL
2001p24)8
No primeiro periacuteodo (1871-1878) verifica-se ldquocerta continuidade entre o inqueacuterito
aprioriacutestico e empiacuterico A autonomia da filosofia vis-agrave-vis a ciecircncia positiva ainda natildeo
tornou a questatildeo decisivardquo (CROWELL 2001p26) Os neokantianos ainda estavam
dispostos a aceitar que as estruturas fundamentais da realidade revelavam seu caraacuteter
transcendental pois ainda constatavam a necessidade das formas universais atraveacutes das
quais podemos pensar as coisas singulares No projeto positivista a ciecircncia empiacuterica
estuda apenas o conteuacutedo de fato em uma restriccedilatildeo circunstancial dos fenocircmenos jaacute
compreendidos
ldquoTentando superar as aporias da Criacutetica da Razatildeo Pura o idealismo
transcendental neokantiano rejeitou a distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si Os
objetos satildeo totalmente imanentes agrave consciecircncia natildeo somente quanto a sua forma
mas tambeacutem agrave sua mateacuteria ieacute o seu elemento empiacuterico Destarte as categorias
jaacute natildeo constituem meramente o modo de aparecer da realidade mas o seu modo
de ser pois ela natildeo existe senatildeo enquanto presente agrave consciecircncia () Assim o
loacutegico como estudos das determinaccedilotildees fundamentais de vaacuterias regiotildees dos
objetos imanentes agrave consciecircncia ocupa com razatildeo ainda para Kant o lugar
reservado antigamente agrave metafiacutesica A tarefa proacutepria da filosofia consiste numa
Teoria das Ciecircncias ieacute no exame das estruturas a priori ao passo que estas
estudam o conteuacutedo empiacuterico das vaacuterias regiotildees dos objetosrdquo (MACDOWELL
Jp30)
manifestava elementos que o impulsionariam a ir aleacutem da loacutegica a recusa de considerar as categorias como
meras funccedilotildees do pensamento e ainda a exigecircncia de considerar o problema da historicidade e do tempo
Assim no interior da problemaacutetica neokantiana Heidegger jaacute se preocupava com questotildees que o
neokantismo mostrava-se incapaz de resolver Cf Vattimo G1987 pp 10-22
8 ldquoBoth movements lay claim to the mantle of ldquoscientific philosophyrdquo but neo-Kantianism differs from
phenomenology in maintaining a continuity between positive science and philosophy As theory of science
neo-Kantian epistemology wants to provide grounds for a principled (ldquoscientificrdquo) weltanschauung
Phenomenology (here Husserl and the early Heidegger) on the contrary establishes the autonomy of
philosophy precisely through a discontinuity with positive science and the aims of worldview formationrdquo
op cit p 24
24
Durante o segundo periacuteodo neokantiano entre 1878 e o final da Primeira Guerra
Mundial as escolas originadas desse movimento vatildeo acirrar suas diferenccedilas A escola de
Marburg (Cohen Natorp e Cassirer) se opocircs sobretudo agraves interpretaccedilotildees psicoloacutegicas
da Primeira Criacutetica de Kant O campo de investigaccedilatildeo dessa escola era direcionado agrave
fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas tais como a fiacutesica e a matemaacutetica pois o que
estaacute em jogo nessa obra segundo os pesquisadores de Marburg natildeo eacute qualquer
fundamentaccedilatildeo da estrutura psicoloacutegica do conhecimento nem sua origem mas o valor
loacutegico de sua verdade na medida em que ldquoo nosso conhecimento dos objetos reais conteacutem
um elemento que natildeo pode ser reduzido pura e simplesmente a intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo
(MCDOWELL J p29)
No mesmo sentido mas sobretudo em funccedilatildeo da superaccedilatildeo do psicologismo e do
relativismo histoacuterico a escola neokantista de Baden representada principalmente por
Windelband e seu disciacutepulo Rickert estende o retorno a Kant com o propoacutesito da
elaboraccedilatildeo de uma loacutegica das ciecircncias humanas O desenvolvimento da filosofia dos
valores (Werttheorie) realizado por essa escola reconhecia a necessidade de diferenciar o
conhecimento da natureza do conhecimento da cultura nesse uacuteltimo caso as leis
deveriam ser explicadas a partir dos valores que neles satildeo presentes Aqui sem duacutevida
existe um ponto de contato com o projeto de Dilthey que nos exige um breve excurso para
desenhar com linhas mais precisas a especificidade de cada projeto
A criacutetica agrave metafiacutesica inaugurada pela filosofia criacutetica de Kant (negando ao
conhecimento qualquer acesso a elementos suprassensiacuteveis) eacute absorvida por Dilthey e
pelos neokantianos contudo a epistemologia das ciecircncias histoacutericas como filosofia
criacutetica da histoacuteria ao recorrer a Kant deveria como aponta Reis (2002 p 166) ldquoou
substituir ou completar ou subordinar ou se coordenar agrave [criacutetica] de Kantrdquo e nesse sentido
eacute possiacutevel observar a fissura entre os projetos Poderiacuteamos dizer que para Dilthey eacute
necessaacuterio superar Kant pois as categorias abstratas do conhecimento satildeo tributaacuterias de
relaccedilotildees vitais primaacuterias como pensamento que emerge da proacutepria vida histoacuterica pois eacute
a vida histoacuterica em uacuteltima instacircncia que fornece ao pensamento unidade e sentido Jaacute
para os neokantianos de Baden poder-se-ia dizer que houve uma coordenaccedilatildeo com vistas
agrave complementaccedilatildeo agrave criacutetica kantiana tendo em vista que tanto para Windelband como
para Rickert a diferenccedila entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito era legiacutetima
25
para o primeiro como uma distinccedilatildeo metodoloacutegica para o segundo como distinccedilatildeo
loacutegica No interior dessa diferenccedila entre Dilthey e os neokantianos de Baden eacute possiacutevel
observar um ponto ainda mais fundamental mesmo com exigecircncias epistemoloacutegicas
objetivas em seu trabalho Dilthey natildeo aceita o pressuposto de um sujeito transcendental
e eacute antes a vivecircncia do sujeito particular histoacuterico que lhe fornece a base de sua pesquisa
jaacute para Windelband e Rickert o idealismo transcendental eacute mantido com o propoacutesito de
garantir o estatuto cientiacutefico de suas teses Assim enquanto Dilthey atraveacutes dos meacutetodos
proacuteprios faz emergir uma nova concepccedilatildeo de ciecircncia os representantes de Baden
movimentam-se em uma teoria preconcebida da ciecircncia Dito de outro modo ldquoenquanto
Dilthey buscava uma forma de liberar as ciecircncias do espiacuterito do meacutetodo das ciecircncias
naturais Windelband e Rickert procuravam uma definiccedilatildeo de ciecircncia que reconhecesse a
importacircncia dos valoresrdquo (WUR 2010p175)
De maneira geral retornando ao ponto central de nosso toacutepico poderiacuteamos
apontar que as duas escolas neokantianas se diferenciavam essencialmente acerca do
objeto de investigaccedilatildeo Na escola de Marburg Cohen direcionava suas pesquisas ao
chamado ldquofato da ciecircnciardquo e a filosofia seria uma reflexatildeo sobre o conhecimento
cientiacutefico concentrando-se na busca de uma metodologia capaz de descrever
matematicamente a constituiccedilatildeo seu objeto na medida em que seu valor de verdade
encontra-se sob bases loacutegico-matemaacuteticas Jaacute na escola de Baden influenciado pela
filosofia dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade
dos juiacutezos cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de
conciliar ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) A ciecircncia apenas
lida com questotildees de fato e se for necessaacuterio analisar a ldquovisatildeo de mundordquo seremos
obrigados a lidar com os deveres e sobretudo com valores
ldquoEsse enfoque nos valores por parte de Windelband levaraacute o neokantismo de
Baden ao desenvolvimento de uma teoria geral do juiacutezo segundo a qual os juiacutezos
cientiacuteficos (juiacutezos teoacutericos) constituem apenas um tipo de juiacutezo qual seja os
juiacutezos orientados pelo valor verdade Aleacutem dos juiacutezos teoacutericos haveria tambeacutem
juiacutezos natildeo teoacutericos como os juiacutezos eacuteticos esteacuteticos religiosos etc os quais
seriam orientados por outros tipos de valores como o bem o justo o belo o
sagrado etc e os quais diriam respeito a outras dimensotildees da experiecircncia
humana para aleacutem da ciecircncia como a moral o direito a arte a religiatildeo etc Com
isso Windelband procura reformar e ampliar o projeto de Kant Como na Criacutetica
da Razatildeo Pura Kant reduziu o papel da filosofia agrave anaacutelise do caraacuteter a priori dos
juiacutezos teoacutericos especiacuteficos das ciecircncias da natureza trata-se portanto de
completar a empresa kantiana com a anaacutelise do caraacuteter a priori dos outros tipos
26
de juiacutezos Mesmo dentro das ciecircncias eacute preciso distinguir tipos de juiacutezos o que
Windelband faraacute atraveacutes da distinccedilatildeo entre ciecircncias nomoloacutegicas e ciecircncias
ideograacuteficas e Rickert com a distinccedilatildeo entre ciecircncias naturais e ciecircncias
culturaisrdquo (RESENDE 2013p17)
Contudo se ambas escolas se diferenciam na circunspecccedilatildeo de seu objeto existe
um ponto de partida epistemoloacutegico comum o retorno a Kant que indica o lugar proacuteprio
da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias A investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo deve se voltar agrave pesquisa
cientiacutefica de como se daacute tal ou qual conhecimento mas analisar a validade do
conhecimento ou seja aquilo que torna a verdade do conhecimento possiacutevel e esse
problema eacute de ordem transcendental pois natildeo estaacute interessada nos processos cognitivos
mas na condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer processo de conhecimento
ldquoContemporacircneo de Hermann Cohen da escola de Marburg Windelband
enfatizou como este a primazia da abordagem epistemoloacutegica dando
continuidade ao projeto kantiano de limitaccedilatildeo do conhecimento buscando
assegurar a sua validade rejeitando a contingecircncia do histoacuterico e do psicoloacutegico
em prol de uma validade atemporal puramente loacutegica Cohen procurou assegurar
a validade loacutegica do conhecimento cientiacutefico na matemaacutetica procedimento que
Windelband analisa como deficiente pois embora a primeira Criacutetica possa
fundamentar a interpretaccedilatildeo de Cohen a segunda e a terceira Criacuteticas assim
como os textos sobre antropologia histoacuteria e poliacutetica requerem outra
fundamentaccedilatildeo que natildeo a matemaacuteticardquo (WU R2010p3)
A terceira fase do movimento ainda segundo Crowell inicia-se no fim da
Primeira Guerra Mundial e vai ateacute a intervenccedilatildeo Nacional Socialista no sistema
universitaacuterio alematildeo nos anos 30 ldquoRefletindo o colapso do otimismo cultural este
periacuteodo eacute caracterizado por um ataque ao idealismo acadecircmico em nome de
Lebensphilosophie (um termo geneacuterico invocando as teses filosoacuteficas lsquoagrave margemrsquo como
as de Nietzsche Bergson e Dilthey)rdquo (CROWELL2011p28) E nesse sentido as escolas
neokantianas precisaram enfrentar o conflito entre a realidade muacuteltipla e dispersa que no
mais das vezes escapa a qualquer tentativa de apreensatildeo conceitual e loacutegica e portanto
agrave consciecircncia transcendental como postulado que garante a cientificidade do projeto
filosoacutefico neokantista
ldquoNa escola de Baden Logik der Philosophie (1911) e Die Lehre vom Urteil [A
doutrina do juiacutezo] (1912) de Lask antecipam temas do terceiro periacuteodo
Abandonando a interpretaccedilatildeo imanente de Rickert do esquema forma-mateacuteria (e
tambeacutem a primazia da razatildeo praacutetica) Lask adota o ponto de partida da
transcendecircncia para dar uma interpretaccedilatildeo ontoloacutegica dos objetos como a unidade
da forma categorial e o material natildeo-loacutegico Objetos satildeo verdades em si mesmas
27
unidades de sentido natildeo cogniccedilotildees juiacutezos proposiccedilotildees Em contraste com
Cohen para quem o objeto eacute construiacutedo no juiacutezo cientiacutefico Lask argumenta que
lsquoos mais baacutesicos problemas da loacutegica revela eles mesmos somente se a cogniccedilatildeo
preacute-teoreacutetica estaacute inclusa na investigaccedilatildeorsquo Em Marburg N Hartmann oferece na
Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis [Fundamentacao para uma
Metafiacutesica do Conhecimento] (1921) uma teoria da relaccedilatildeo sujeito-objeto
ldquorealistardquo quase-fenomenoloacutegica intentada por uma justificaccedilatildeo ontoloacutegica para
o que eacute meramente pressuposto no idealismo loacutegico de Natorp a saber a
habilidade do sujeito para ldquotranscenderrdquo a sua proacutepria esfera Na filologia de
Kant H Heimsoeth comeccedila a descobrir os ldquomotivos metafiacutesicosrdquo da filosofia
criacutetica de Kant uma interpretaccedilatildeo perseguida no curso sobre Kant de Heidegger
1927-1928 e em Kant und das Problem der Metaphysikrdquo
(CROWELL2011p28)9
Eacute conhecida a interlocuccedilatildeo entre Rickert e a fenomenologia de Husserl tanto de
um lado pela criacutetica de Rickert agrave intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica e agrave identificaccedilatildeo entre sentido
(Sinn) e Significado (Bedeutung) nas Investigaccedilotildees Loacutegicas10 quanto por outro pela
criacutetica de Husserl a Rickert no que diz respeito agrave via predominantemente subjetiva das
9 ldquoIn the Baden school Laskrsquos Logik der Philosophie (1911) and Die Lehre vom Urteil (1912) anticipate
themes of the third period Abandoning Rickertrsquos immanentist interpretation of the formmaterial schema
(and so also the primacy of practical reason) Lask adopts the ldquostandpoint of transcendencerdquo to give an
ontological interpretation of the object as a unity of categorial form and alogical material Objects are
themselvesldquo truths unities of meaning not cognitions judgments propositionsrdquo Incontrast to Cohen for
whom the object is constructed in the scientific judgment Lask argues that ldquothe most basic problems of
logic reveal themselves only if pretheoretical cognition is included in the investigationrdquo In Marburg N
Hartmann offered the Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis (1921) a quasi-phenomenological
ldquorealisticrdquo theory of the subject-object relation intended to account ontologically for what is merely
presupposed in Natorprsquos logical idealism namely the subjectrsquos ability to ldquotranscendrdquo its own sphere In
Kant philology H Heimsoeth began to uncover the ldquometaphysical motivesrdquo of Kantrsquos critical philosophy
an interpretation pursued in Heideggerrsquos 1927ndash28 lecture course on Kant and in Kant und das Problem der
Metaphysikrdquoop citp28
10 Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas (sect15 da I Investigaccedilatildeo) contra a posiccedilatildeo de Frege Husserl considera os
termos Sentido (Sinn) e Significado (Bedeutung) como sinocircnimos ldquoSignificaccedilatildeo vale para noacutes aleacutem disso
como sinocircnimo de sentidordquo (HUSSERL 2012 p43) Contudo se em Ideias (1913) Husserl passa a assumir
uma camada de sentido preacutevia agrave significaccedilatildeo linguiacutestica - algo que ele natildeo soacute sugere como a ela se refere
explicitamente chamando-a de sentido preacute-expressivo- a significaccedilatildeo (Bedeutung) permanece
intimamente atrelada agrave expressatildeo (Ausdruck) que continua a ter um caraacuteter epistemoloacutegico relevante
(Cfsect124 Ideacuteias para uma fenomenologia pura e para uma fenomenologia fenomenoloacutegica) Apesar da
nova assunccedilatildeo essa camada preacute-expressiva natildeo passa a ter um teor de verdade superior agrave camada
expressiva pelo contraacuterio Husserl vai permanecer sempre comprometido com o status epistemoloacutegico da
consciecircncia e de seu acesso ao fenocircmeno Entatildeo aquilo que a consciecircncia manifesta linguisticamente
continua a ser o meio pelo qual a fenomenologia pode se realizar como ciecircncia rigorosa e somente a partir
da expressatildeo eacute possiacutevel falar em verdade na medida em que apenas a expressatildeo possui intenccedilatildeo de
significaccedilatildeo Isso porque apesar de sugerir esse sentido preacute-linguiacutestico Husserl continua voltando suas
anaacutelises agrave expressatildeo
28
primeiras publicaccedilotildees de Der Gegenstand der Erkentnnis (O objeto do conhecimento)11
Tambeacutem eacute conhecido o debate entre o idealismo criacutetico de Natorp e a fenomenologia de
Husserl
ldquoEm Ideen I (1913) Husserl afirma com um miacutenimo de ironia que ldquonoacutes somos
genuiacutenos positivistasrdquo (Hua III4639) Sob a tutela de Brentano a atitude inicial
de Husserl em direccedilatildeo ao apriorismo kantiano foi totalmente negativa e em
harmonia com o proacuteprio periacuteodo positivista inicial do neokantismo ele em vez
disso propocircs uma consideraccedilatildeo psicoloacutegica do a priori (egin Philosophie der
Arithmetik [1891]) Pelos anos de 1890 esse tipo de continuidade entre filosofia
e ciecircncia positiva foi abandonado em Marburg pelo idealismo transcendental
Husserl portanto permaneceu bem proacuteximo a Natorp que era o instrumental em
direccedilatildeo daquele caminho do psicologismo e mais tarde inspiraria o movimento
de Husserl da estaacutetica para a fenomenologia geneacutetica Pelos anos 1913 Husserl
tinha desenvolvido seu proacuteprio ldquoidealismo transcendentalrdquo fenomenoloacutegico mas
se manteve distinto em princiacutepio do Neokantismo de Marburg Enquanto esse
uacuteltimo definiu o caraacuteter cientiacutefico da filosofia em termos de
uma loacutegica transcendental uma apresentaccedilatildeo sistemaacutetica dos princiacutepios a priori
(ldquomeacutetodordquo) da ciecircncia empiacuterica o primeiro se manteve anti-sistemaacutetico modelo
empiacuterico do primeiro periacuteodo do seu fundador fundando sua teoria do a priori
sobre um recurso filosoacutefico para a intuiccedilatildeoEm seu tratamento da psicologia de
Natorp na primeira ediccedilatildeo das Investigaccedilotildees Loacutegicas(1900-1901) por exemplo
Husserl rejeita a doutrina de Natorp do puro ego da apercepccedilatildeo Na segunda
ediccedilatildeo contudo ele afirma que tem ldquouma vez conseguido encontraacute-lordquo tendo
aprendido ldquoa natildeo ser desviado de uma pura compreensatildeo do dado por meio de
formas corruptas do ego-metafiacutesicordquo (Hua XIX1374549) Se o Husserl mais
idealista natildeo mais associa o ego kantiano com o ldquocorrupto ego-metafiacutesicordquo do
idealismo especulativo sua anotaccedilatildeo ainda avanccedila em direccedilatildeo a uma afirmaccedilatildeo
bem anti-Natorpiana de ter encontrado o puro ego em uma ldquopura compreensatildeo
do dadordquo isto eacute em evidecircncia intuitiva Outra anotaccedilatildeo afirma que o puro ego eacute
ldquoapreendido na efetivaccedilatildeo de um cogito auto-evidenterdquo (Hua XIX1368544)
Natorp negou a fenomenalidade do ego ele nem pode ser objetivado nem
apresentado ele mesmo como um todo sem deixar de ser genuinamente ldquosujeitordquo
Para Husserl poreacutem esse argumento eacute meramente verbal o ego eacute aqui como um
fato um objeto em seu modo apropriado Afirmar o contraacuterio equivaleria
entregar o ego ao reino do mito (Hua XIX1373ndash76549ndash510)rdquo
(CROWELL2011 p31)12
11 Sobre a interlocuccedilatildeo entre Husserl e Rickert e como as criacuteticas e observaccedilotildees provocaram sucessivas
revisotildees dos trabalhos de ambos os autores Cf RESENDE J 2013 Primeira Parte pp 22-89
12ldquoIn Ideen I (1913) Husserl claims with only slight irony that ldquowe are the genuine positivistsrdquo (Hua
III4639) Under Brentanorsquos tutelage Husserlrsquos initial attitude toward Kantian apriorism had been
altogether negative and in harmony with neo-Kantianismrsquos own early positivist period he instead proposed
a psychological account of the a priori (egin Philosophie der Arithmetik [1891]) By the 1890s this kind
of continuitybetween philosophy and positive science had been abandoned in burg for transcendental
idealism Husserl nevertheless established close ties with Natorp who was instrumental in steering him
away from psychologism and would later inspire Husserlrsquos move from static to genetic phenomenology
By 1913 Husserl had developed his own phenomenological ldquotranscendental idealismrdquo but it remained
distinct in principle from Marburg neo-Kantianism While the latter defined the scientific character of
philosophy in terms of a transcendental logic a systematic presentation of the a priori principles (ldquomethodrdquo)
29
Contudo apesar do diaacutelogo entre esses autores o que nos interessa marcar a tiacutetulo
introdutoacuterio eacute a centralidade do debate que orientou a filosofia deste periacuteodo Seja pela
busca de juiacutezos loacutegicos-matemaacuteticos seja pela busca dos juiacutezos de valor a filosofia ainda
estaacute imersa nos problemas e na gramaacutetica da modernidade pois os debates se
movimentam no interior da teoria do conhecimento e cada escola a seu modo recorre ao
sujeito transcendental para assegurar a garantia de objetividade e validade do
conhecimento A discussatildeo inaugurada por Kant acerca da lsquocoisa em sirsquo e de seu acesso
como ideia da razatildeo redirecionam qualquer ontologia dos objetos agrave consciecircncia do
sujeito E em uacuteltima instacircncia a filosofia permanece imersa no pressuposto da existecircncia
de um fundamento uacuteltimo - baseado no sujeito e em suas possibilidades ligadas agrave
representaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos elementos do mundo externo- como condiccedilatildeo de
possibilidade que garante a seguranccedila e objetividade de todo conhecimento
II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica
Para Wilhelm Windelband (1848-1915) a filosofia deve investigar os valores das
representaccedilotildees ou seja em que medida uma representaccedilatildeo se torna uma proposiccedilatildeo
cientiacutefica Contra as teorias representacionistas do juiacutezo aqui jaacute eacute possiacutevel identificar a
clara separaccedilatildeo entre representaccedilatildeo - que seria a mera apariccedilatildeo de um objeto e suas
propriedades- e o juiacutezo ndash que possui valor de verdade e pode ser negado ou afirmado Os
juiacutezos (sejam loacutegicos esteacuteticos ou eacuteticos) natildeo satildeo neutros como a representaccedilatildeo pois
possuem embutido o que Windelband chama de apreciaccedilatildeo
ldquoTrata-se de uma distinccedilatildeo loacutegica que normalmente natildeo aparece no niacutevel da
gramaacutetica A mera conexatildeo neutra de representaccedilotildees (sujeito + predicado) eacute o que
se chama de juiacutezo jaacute o fato dessas representaccedilotildees constituiacuterem uma proposiccedilatildeo
com valor de verdade se deve agrave apreciaccedilatildeo O que Windelband quer mostrar eacute
of empirical science the former retained the antisystematic empirical cast of its founderrsquos early period
grounding its theory of the a priori on a philosophical appeal to intuition In his treatment of Natorprsquos
psychology in the first edition of the Logical Investigations (1900 1901) for example Husserl rejects
Natorprsquos doctrine of the pure ego of apperception In the second edition (1913) however he claims that he
has ldquosince managed to find itrdquo having learned ldquonot to be led astray from a pure grasp of the given through
corrupt forms of ego-metaphysicrdquo (Hua XIX1374549) If the more idealistic Husserl no longer associates
the Kantian ego with the ldquocorrupt ego-metaphysicrdquo of speculative idealism his note also advances the very
un-Natorpian claim to have found the pure ego in a ldquopure grasp of the givenrdquo that is in intuitive evidence
Another note states that the pure ego is ldquoapprehended in carrying out a self-evident cogitordquo (Hua
XIX1368544) Natorp had denied the phenomenality of the ego it can neither be objectified nor present
itself at all without ceasing to be genuinely ldquosubjectrdquo For Husserl however this argument is merely verbal
The ego is there as a fact an object in its own appropriate manner To claim otherwise is tantamount to
consigning the ego to the realm of myth (Hua XIX1373ndash76549ndash51)rdquo Op cit p31 Cf Tambeacutem
HEIDEGGER 2006 p 124
30
que nisso ordinariamente chamado de juiacutezo estaacute embutida uma apreciaccedilatildeo em
funccedilatildeo de um valor a qual natildeo se confunde com o conjunto de formaccedilotildees
conceituaisrdquo (RESENDE 2013p40)
O que estaacute em jogo nessa concepccedilatildeo eacute identificar que a apreciaccedilatildeo inerente a todo
juiacutezo natildeo diz nada acerca dos conteuacutedos representativos mas de sua pretensatildeo a um ideal
ou fim uacuteltimo como um horizonte estaacutevel do que eacute verdadeiro eacutetico ou esteacutetico e que
funcionam como paracircmetros avaliativos na accedilatildeo mesma de julgar O que estaacute implicado
nessa tese eacute a concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo As ciecircncias particulares possuem pretensatildeo de
valor universal mas essa universalidade natildeo eacute faacutetica e ldquosua necessidade natildeo eacute causal mas
apenas lsquodeve-serrsquo (sein-solle)Toda proposiccedilatildeo loacutegica eacutetica ou esteacutetica eacute impelida pelo
dever-ser universalrdquo(RESENDE2013p41) e mesmo que sua manifestaccedilatildeo seja
faticamente histoacuterica esse dever-ser da proposiccedilatildeo loacutegica deve ser reconhecido como
universal e incondicionalmente vaacutelido por qualquer ser racional ndash em uma clara assunccedilatildeo
da universalidade moral kantiana mas que agora permeia todos os juiacutezos e natildeo somente
os eacuteticos
Considerando os juiacutezos em funccedilatildeo de sua apreciaccedilatildeo Windelband descreve trecircs
tipos de juiacutezos Os juiacutezos satildeo teoacutericos (segundo a apreciaccedilatildeo verdadeirofalso) juiacutezos de
gosto (segundo a apreciaccedilatildeo belofeio) e os juiacutezos eacuteticos (segundo a apreciaccedilatildeo
bommau) Os fenocircmenos psiacutequicos satildeo as representaccedilotildees neutras em sua manifestaccedilatildeo
Assim como comportamentos da apreciaccedilatildeo os juiacutezos ganham sua forma loacutegica nas
figuras judicativas juiacutezos afirmativos juiacutezos negativos juiacutezos problemaacuteticos Essa uacuteltima
forma suspende a apreciaccedilatildeo mas pela pergunta ndash que natildeo eacute propriamente um juiacutezo-
condiciona a possibilidade de julgar portanto se refere a uma etapa mesmo que preacutevia
agrave tomada de posiccedilatildeo apreciativa
Aqui reside o ponto decisivo enquanto para Windelband a loacutegica claacutessica (de
Aristoacuteteles a Kant) se ocupou dos elementos meramente gramaticais - sendo os juiacutezos
coincidentes com as representaccedilotildees na medida que bastava afirmaacute-las ou negaacute-las - a
apreciaccedilatildeo por sua vez aparece como constituidora do conceito presente nas formaccedilotildees
gramaticais pois dizer algo eacute antes apreciar a sua posiccedilatildeo existencial (com fim ao ideal
da mateacuteria em questatildeo eacutetico esteacutetico etc) de forma a negaacute-las ou afirmaacute-las Em outras
palavras para que o conhecimento seja possiacutevel natildeo eacute suficiente a recepccedilatildeo passiva das
representaccedilotildees mas eacute fundamental uma atividade valorativa que constitui um conceito
31
no reconhecimento de seu conteuacutedo sentido e validade na sua pretensatildeo de necessidade
e universalidade Algo lsquoeacutersquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento e
ldquoa pesquisa desses valores com pretensotildees universais () eacute o objeto de estudo da
filosofiardquo (RESENDE 2013p41) Essa posiccedilatildeo seraacute retomada e desenvolvida por
Rickert
Assim como Windelband Heinrich Rickert (1863-1936) coloca o problema na
forma metodoloacutegica ou seja a pesquisa dos valores como meacutetodo de base para a filosofia
e busca assim determinar o criteacuterio de validade do conhecimento atraveacutes do elemento que
confere sua objetividade ou o que pode ser identificado como o crucial para a diferenccedila
entre os enunciados arbitraacuterios e as proposiccedilotildees vaacutelidas do conhecimento efetivo
elemento que Rickert denomina ldquoobjeto do conhecimentordquo como o tiacutetulo mesmo de sua
obra principal indica ldquoDie Gegenstand der Erkenntnisrdquo (revista em seis ediccedilotildees
diferentes entre 1892 e 1928)
Aprofundando as investigaccedilotildees de seu mestre Rickert difere conceitos
ontoloacutegicos de conceitos axioloacutegicos diferenccedila oculta na linguagem ordinaacuteria e que se
torna clara na observaccedilatildeo acerca da concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo ldquoEnquanto para Kant o
problema eacute a impossibilidade de explicar o fato de como a razatildeo teoacuterica pode ser praacutetica
para Rickert o problema eacute o fato de que a razatildeo jaacute eacute sempre praacutetica em seu uso teoacuterico
purordquo (RESENDE 2013p45) e isto natildeo pelo fato de juiacutezos teoacutericos dependerem da lei
moral mas pela convicccedilatildeo acerca dos conteuacutedos mesmos do conhecimento Se a
representaccedilatildeo satildeo processos psiacutequicos elementares e neutros a convicccedilatildeo soacute eacute possiacutevel
pela razatildeo praacutetica Para melhor visualizaccedilatildeo do problema quando digo ldquoS eacute Prdquo ou ldquoS eacute
um sujeitordquo (e aiacute estaacute tambeacutem seu conceito por exemplo ldquohomemrdquo) ou ainda ldquoP eacute um
predicadordquo (e tambeacutem utilizo um conceito por exemplo ldquoracionalrdquo) o que me autoriza
dizer ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo Segundo Rickert eacute a convicccedilatildeo praacutetica fundada no
sentimento (Gefuumlhl) de ldquovontade de verdaderdquo (Willen zur Wahrheit) que impele a busca
da verdade Eacute esse sentimento que possibilita a tomada de posiccedilatildeo que aprova ou
desaprova expresso por fim em um juiacutezo Somos impelidos pelo dever na medida em
que somos livres a buscar a verdade Mas eacute importante considerar que
ldquoApesar de o sentimento ser o paracircmetro para a tomada de posiccedilatildeo do juiacutezo o
dever natildeo deriva do sentimento pois isso seria derivar o dever do ser O dever
natildeo pode ser confundido com a necessidade causal do sentimento Na verdade
32
na proacutepria constataccedilatildeo do sentimento jaacute estaacute pressuposto o dever () Essa
verdade buscada natildeo eacute uma instacircncia ideal mas apenas um postulado um
inalcanccedilaacutevel ideal absoluto de verdade que funciona como moacutebil da atividade
cientiacutefica dos seres moraisrdquo (RESENDE 2013p46)
A razatildeo praacutetica busca a verdade como sua atividade mais proacutepria a partir do dever
impresso na sua proacutepria liberdade expresso no ato praacutetico de tomada de decisatildeo que
culmina na expressatildeo dos juiacutezos (na razatildeo teoacuterica) Se para Kant a accedilatildeo humana livre eacute
impelida a agir conforme a lei moral para Rickert a accedilatildeo humana em seu querer livre -
nem mecacircnico nem bioloacutegico - de um ideal de perfeiccedilatildeo da verdade eacute impelida a agir em
funccedilatildeo do conhecimento e da ciecircncia
Na tentativa de afastar as interpretaccedilotildees psicologistas ou idealistas (natildeo
cientiacuteficas) de sua teoria o valor de verdade para Rickert que eacute garantido pelo dever-ser
eacute observado na evidecircncia como manifestaccedilatildeo psiacutequica do dever mas que pelo seu caraacuteter
de necessidade ultrapassa o indiviacuteduo singular O sentimento de prazer ou desprazer dessa
evidecircncia na estrutura psiacutequica que posiciona o ato praacutetico de tomada de posiccedilatildeo eacute
reconhecido pela sua necessidade transcendente e eacute o elemento do esquema cognitivo que
ldquoestabelece a ponte entre os processos psiacutequicos reais em sua singularidade e
contingecircncia com a universalidade e necessidade transcendental do deverrdquo (RESENDE
2013p47) Mesmo com essas colocaccedilotildees e sobretudo com a postulaccedilatildeo que o dever natildeo
pode ser derivado do ser pelo seu caraacuteter mesmo de liberdade Rickert foi aproximado de
um certo ldquopsicologismo voluntaristardquo pois o valor de verdade na realidade soacute poderia ser
derivado dos processos psiacutequicos tendo em vista que ldquoo dever eacute uma norma psicoloacutegica
que soacute tem sentido lsquopararsquo um sujeito empiacutericordquo (RESENDE 2013p47) E ainda por
mais que sua meta fosse buscar a universalidade e necessidade dos valores ainda assim
esses valores estariam reduzidos ldquoagrave contingecircncia e temporalidade dos processos
psiacutequicos ou seja reduzindo o valor ao serrdquo (RESENDE 2013p48)
Mas como a filosofia dos valores desses autores lida com as pesquisas histoacutericas
enquanto criacutetica do historicismo Para Windelband as ciecircncias positivas satildeo ciecircncias
nomoteacuteticas ou seja operam por uma abstraccedilatildeo que busca o conhecimento universal
atraveacutes da estabilidade de suas leis Jaacute as ciecircncias histoacutericas satildeo ideograacuteficas cujo juiacutezos
natildeo descrevem uma coisa ou estados de coisa enquanto aquilo que eacute mas possuem como
objeto valores que possuem (ou natildeo) validade Validade oferecida em uacuteltima instacircncia
33
pelo juiacutezo em sua forma fundamental como juiacutezo apreciativo Analisar esses valores
requer uma metodologia proacutepria baseada na pesquisa da valoraccedilatildeo como forma de
conhecimento
Para Rickert a filosofia dos valores eacute o fundamento universal para os significados
da histoacuteria e aqui reside o ponto crucial a busca de um ideal absoluto (vontade de
verdade) deve atuar como medida para a realidade individual e histoacuterica sem a qual natildeo
podemos significar a interpretaccedilatildeo da vida histoacuterica e cultural na sua singularidade A
distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor
(Wert) segundo Rickert levaria a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo
de conceitos (Begriffsbildung) e que natildeo se trata de um conhecimento no campo
ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto pelo conceito determinado de maneira formal no
espaccedilo loacutegico-axioloacutegico
Um evento histoacuterico natildeo possui relevacircncia por si soacute eacute a partir da valoraccedilatildeo que
um fato histoacuterico se ldquodiferencia substancialmente de outros na heterogeneidade contiacutenua
a partir de sua individualidaderdquo (Wu R 2010p180) Ou seja o que doa sentido a um
fato histoacuterico na sua individualidade ndash que se destaca dos fluxos indistintos e
heterogecircneos dos acontecimentos - eacute uma realizaccedilatildeo teoacuterica que o valoriza e lhe confere
sentido A histoacuteria eacute portanto possiacutevel e existe como objeto capaz de ser analisado como
ciecircncia pelos valores atribuiacutedos teoricamente a seus eventos
III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos
A crise no modelo teoacuterico tradicional no final do seacuteculo XIX (que apontava
qualquer teoria filosoacutefica como uma lsquocrenccedila justificadarsquo) a reconduccedilatildeo pelos
psicologistas agrave articulaccedilatildeo de argumentos logicamente coerentes baseados na consciecircncia
particular - em que ateacute mesmo os princiacutepios loacutegicos seriam expressatildeo da forma de
conhecimento possiacutevel pela particularidade daquele que conhece- culminam no projeto
husserliano de uma filosofia pura e sem pressupostos
Para Husserl a psicologia baseada no modelo cientiacutefico das ciecircncias naturais leva
agrave particularizaccedilatildeo dos conteuacutedos do conhecimento e nesse modelo a psicologia natildeo
consegue lidar com a universalidade do conteuacutedo dos princiacutepios tornando a relaccedilatildeo entre
34
a realidade e o conhecimento incompatiacuteveis Por mais que a experiecircncia seja particular
as investigaccedilotildees de Husserl o levaram a considerar que a existecircncia humana estaacute em
contato com conteuacutedos que natildeo satildeo particularizaacuteveis A psicologia natildeo deixa clara a
transiccedilatildeo das conexotildees psicoloacutegicas do pensar e a unidade loacutegica de seu conteuacutedo O que
estaacute em jogo para Husserl eacute portanto a relaccedilatildeo entre a subjetividade do conhecer e a
objetividade do conteuacutedo de pensamento
A predominacircncia neokantiana no horizonte universitaacuterio alematildeo e sua maacutexima de
retorno a Kant mantecircm no interior da investigaccedilatildeo termos como por exemplo
lsquoapercepccedilatildeorsquo e lsquorepresentaccedilatildeorsquo Se o neokantismo se volta a Kant tambeacutem sucumbe a
seus limites e nesse movimento revela a insuficiecircncia da investigaccedilatildeo filosoacutefica
condicionada aos sistemas anteriores Para Husserl a filosofia como ciecircncia autocircnoma
requer natildeo um retorno a qualquer teoria mas agraves coisas que agora devem orientar o
pensamento
A tradiccedilatildeo filosoacutefica eacute marcada por uma pretensatildeo a busca da verdade para aleacutem
do que acontece na realidade dos fenocircmenos que nos satildeo acessiacuteveis Ao hipostasiar a
realidade do ser atraveacutes de posturas realistas ou idealistas para assim ter acesso aos
fenocircmenos a tradiccedilatildeo sempre considerou o ser do fenocircmeno para aleacutem do proacuteprio
fenocircmeno13 De maneira diversa Husserl busca os objetos nos proacuteprios campos
fenomecircnicos na medida em que aparecem na dimensatildeo do conhecimento a partir da
proacutepria atividade de pensamento ou seja o objeto que aparece na atividade de
pensamento soacute eacute encontrado na proacutepria atividade por isso natildeo haacute busca ou hipoacutestase
exterior agrave consciecircncia Mas isso natildeo se daacute porque a consciecircncia em seus atos produza ou
determine os significados dos objetos mas sim porque os atos das vivecircncias abrem espaccedilo
para que o objeto se determine no ato mesmo a partir de sua autonomia frente a qualquer
subjetividade particular de pensamento Mas o que queremos dizer com lsquoum objeto que
se determina no ato mesmorsquo Aqui eacute importante destacar sempre que possiacutevel um mal-
entendido em constante revisatildeo a filosofia de Husserl natildeo consiste em um sistema
fechado de proposiccedilotildees as quais poderiacuteamos encaminhar de forma retiliacutenea e deduzir suas
conclusotildees Aqui nessa breve introduccedilatildeo agraves intenccedilotildees do pensamento de Husserl
apresentamos em linhas gerais seu projeto e nos movimentamos a partir do segundo
13 Cf CASANOVA 2013 pp-76-80
35
volume das Investigaccedilotildees Loacutegicas de 1901 e das Ideacuteias para uma fenomenologia pura e
para uma filosofia fenomenoloacutegica publicadas em 1913
Depois dessas consideraccedilotildees atraveacutes das quais foi posta em jogo a noccedilatildeo de um objeto
que se determina no ato mesmo conforme jaacute explicitado nas Investigaccedilotildees eacute requerido
passar agrave explicaccedilatildeo da noccedilatildeo conforme elaborada na obra posterior Ideacuteias O
pensamento de Husserl eacute marcado por uma orientaccedilatildeo especiacutefica a fenomenoloacutegica Essa
orientaccedilatildeo natildeo desconsidera as vaacuterias formas pelas quais podemos ter acesso a objetos
seja pela vida corrente e cotidiana seja pela via cientiacutefica pois ambas estatildeo de acordo
com a orientaccedilatildeo natural A orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica por sua vez se deteacutem no objeto
intencional ou seja o objeto que visado se manifesta agrave consciecircncia conforme seu modo
de doaccedilatildeo fenomecircnico14 Natildeo se trata de um idealismo subjetivo conforme por exemplo
Berkeley mas de uma necessidade de acesso agraves coisas mesmas sem qualquer
pressuposiccedilatildeo sem qualquer movimento que ponha o conhecimento fora da realidade e
que ao mesmo tempo natildeo recaia na descriccedilatildeo ingecircnua da realidade como um conjunto de
impressotildees sensiacuteveis O fenocircmeno que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute
sempre uma doaccedilatildeo com sentidosignificado ldquopois se eacute verdade que os fenocircmenos se
datildeo a noacutes por intermeacutedio dos sentidos eles se datildeo sempre como dotados de um sentido
ou de uma essecircncia Eis porque () a intuiccedilatildeo seraacute uma intuiccedilatildeo da essecircncia ou do
sentidordquo (DARTIGUES 1973p21)
Ao contraacuterio dos neokantianos o modo como Husserl tratou a realidade tornou
improacuteprio o retorno agraves concepccedilotildees filosoacuteficas anteriores Elas natildeo forneciam mais um
caminho vaacutelido para o questionamento filosoacutefico Natildeo era mais suficiente o retorno a
qualquer sistema filosoacutefico fosse para renovaacute-lo - sob esse novo horizonte cientiacutefico -
fosse para retomar seus fundamentos com a finalidade de posicionar a filosofia como
braccedilo de apoio da ciecircncia A fenomenologia pura (puramente descritiva) pertence agrave
pesquisa de uma teoria do conhecimento objetiva na medida em que o modo de apariccedilatildeo
dos fenocircmenos nas vivecircncias do pensamento e do conhecimento seraacute sempre o objeto da
fenomenologia
14 Cf Ideacuteias I Capiacutetulo I
36
A concepccedilatildeo de fenocircmeno na modernidade ganhou diversas acepccedilotildees desde Bacon
ateacute Wolff passando por Descartes e Hobbes Segundo uma noccedilatildeo do senso comum
fenocircmeno eacute a experiecircncia pura e simples do fato considerada sobretudo como
manifestaccedilatildeo empiacuterica da realidade que natildeo pode ser equiparada agrave verdade15 Jaacute para Kant
- na delimitaccedilatildeo feita na primeira Criacutetica do espaccedilo do saber cientiacutefico possiacutevel -
fenocircmeno eacute o objeto especiacutefico do conhecimento humano que aparece sob condiccedilotildees
particulares da estrutura cognosciacutevel do homem a saber de um lado o objeto do
conhecimento depende das bases representativas que satildeo organizadas pelas categorias do
entendimento e de outro dos dados fornecidos pela sensibilidade Resumindo o objeto
de conhecimento para Kant estaacute delimitado pela relaccedilatildeo entre intuiccedilatildeo e conceito Kant
distingue o fenocircmeno - aquilo que eacute possiacutevel conhecer - do nocircumeno aquilo que natildeo se
conhece mas que pode ser pensado enquanto ideia da razatildeo como ldquocoisa em sirdquo Sem
jamais ultrapassar os dados da experiecircncia o sentido fenomenoloacutegico de fenocircmeno de
Husserl supera a distinccedilatildeo kantiana entre nocircumeno e fenocircmeno O fenocircmeno eacute algo que
manifesto revela em si mesmo seu conteuacutedo loacutegico ou essencial Mas a manifestaccedilatildeo do
fenocircmeno deve ser ldquodepuradardquo de qualquer psicologismo pois natildeo deve apenas ser
considerada como manifestaccedilatildeo particular A investigaccedilatildeo filosoacutefica ou melhor a
investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica aqui eacute exigida como meacutetodo para lsquopurificarrsquo o conteuacutedo
objetivo do ato subjetivo
ldquoO caminho que Husserl busca e comandaraacute ateacute em suas uacuteltimas obras a sua
concepccedilatildeo de fenomenologia eacute uma via meacutedia entre esses dois escolhos como
pensar segundo a sua natureza e em cada uma de suas nuanccedilas ndash e portanto sem
jamais ultrapassaacute-los ndash os dados da experiecircncia em sua totalidade Todo o
fenocircmeno e nada mais que o fenocircmeno poder-se-ia dizer O postulado que funda
tal empresa eacute que o fenocircmeno estaacute penetrado no pensamento de logos e que por
sua vez o logos se expotildee e soacute se expotildee no fenocircmeno Apenas sob essa condiccedilatildeo
eacute possiacutevel uma fenocircmeno-logiardquo (DARTIGUES 1973p20)
Aluno de Brentano Husserl ainda radicaliza a teoria da intencionalidade de seu
professor e natildeo mais considera que a consciecircncia se dirija pelo ato intencional agraves
representaccedilotildees empiacutericas da consciecircncia mas agrave objetividade das proacuteprias coisas
detectaacutevel no ato expressivo Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas Husserl apresenta a consciecircncia
como sempre ldquovoltada ardquo ou seja como uma consciecircncia intencional superando natildeo soacute
a noccedilatildeo de consciecircncia como o lsquolugarrsquo das representaccedilotildees que devem ser organizadas por
15 Cf AbbagnoN 2003 p436 Nesse sentido tambeacutem Cf Heidegger 2006 pp26-27
37
exemplo por aparatos internos a priori como tambeacutem qualquer orientaccedilatildeo psicologista
do conhecimento Se a fenomenologia recorre agrave psicologia eacute apenas para a investigaccedilatildeo
descritiva das vivecircncias intencionais e a psicologia descritiva na medida em que se
configura como descriccedilatildeo empiacuterica (cientiacutefica-natural) natildeo pode ser confundida com a
fenomenologia Esta ao contraacuterio mesmo repousando sobre a investigaccedilatildeo descritiva das
vivecircncias intencionais estrato mesmo da psicologia ainda assim possui como
particularidade a descriccedilatildeo pura excluindo qualquer concepccedilatildeo naturalista16
Mas afinal do que se trata nesta ldquodescriccedilatildeo purardquo Eacute na atividade compreensiva em
geral (descriccedilatildeo das vivecircncias intencionais) que Husserl buscaraacute a origem do
conhecimento na anaacutelise dos atos de constituiccedilatildeo de conhecimento dos objetos que ele
vai procurar descrever os movimentos ideais implicados em todo movimento intencional
As investigaccedilotildees gnosioloacutegicas da loacutegica pura expostas nas Investigaccedilotildees loacutegicas
querem lanccedilar as bases e fundamentos seguros como alternativas agraves teorias do
conhecimento empiristas ceacuteticas metafiacutesico-realista e psicologista pretendendo
fundamentar uma verdadeira teoria do conhecimento a partir da filosofia puramente
cientiacutefica Essa anaacutelise se realiza a partir das expressotildees levando em consideraccedilatildeo o
aspecto loacutegico da vivecircncia
ldquoA Fenomenologia analiacutetica de que o loacutegico necessita para os seus trabalhos de
preparaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo diz respeito entre outras coisas e desde logo agraves
lsquorepresentaccedilotildeesrsquo e mais precisamente agraves representaccedilotildees que satildeo expressas
Nestas complexotildees poreacutem o seu interesse primaacuterio vai para as vivecircncias que
estatildeo na funccedilatildeo de significaccedilatildeo as quais se pensam agraves lsquosimplesrsquo expressotildees No
entanto natildeo se pode descurar tambeacutem o lado linguiacutestico-sensiacutevel da complexatildeo
(aquilo que nela constitui a lsquosimplesrsquo expressatildeo) e o modo do seu entrelaccedilamento
com o ato de significar que o anima Eacute bem sabido quatildeo facilmente a anaacutelise das
significaccedilotildees costuma deixar-se guiar pela anaacutelise gramatical de um modo
completamente inadvertido Certamente que dada a dificuldade da anaacutelise direta
das significaccedilotildees seraacute bem-vindo todo e qualquer meio mesmo que imperfeito
de antecipar indiretamente os seus resultados [as significaccedilotildees que o anima] mas
mais ainda que por causa dessa ajuda positiva a anaacutelise gramatical torna-se
importante pelos enganos que traz consigo quando se substitui agrave anaacutelise
propriamente ditas das significaccedilotildeesrdquo (HUSSERL 2012p11)
16 Cf HusserlE Investigaccedilotildees Loacutegicas VolII Introduccedilatildeo sect 6- Aditamentos ndash 3ordm Aditamento
38
A anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a complexidade da vida
intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo eacute possiacutevel a partir da anaacutelise das estruturas
ideais que se apresentam nas vivecircncias da consciecircncia na forma das expressotildees
significativas E se ldquoos objetos para os quais a Loacutegica pura estaacute voltada satildeo desde logo
dados sob vestes gramaticaisrdquo (HUSSERL 2012p3) eacute porque esses dados satildeo embutidos
nas vivecircncias psiacutequicas concretas que ldquotanto em funccedilatildeo de intenccedilatildeo de significaccedilatildeo como
na do preenchimento de significaccedilatildeo () correspondem a certas expressotildees linguiacutesticas
e formam com elas uma unidade fenomenoloacutegicardquo (HUSSERL 2012p3)
O que estaacute em jogo como tarefa da fenomenologia eacute - a partir da unidade entre
intuiccedilatildeo (atividade da consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da
consciecircncia e o preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor
a unidade fenomenoloacutegica desses atos apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo
e preenchimento de significaccedilatildeo para assim encontrar suas distinccedilotildees ideais presentes na
significaccedilatildeo
ldquoDe fato sempre que se trata de conceitos juiacutezos raciociacutenios a Loacutegica pura tem
que ver exclusivamente com estas unidades ideais que denominamos aqui
significaccedilotildees e na medida em que nos esforccedilamos por extrair a essecircncia ideal das
significaccedilotildees dos seus viacutenculos psicoloacutegicos e gramaticais na medida em que
para aleacutem disso temos em vista clarificar as relaccedilotildees aprioriacutesticas de adequaccedilatildeo
agrave objetividade significativa fundadas nessa essecircncia estamos jaacute no domiacutenio da
Loacutegica purardquo(HUSSERL 2012p76)
Enquanto as ciecircncias se movem em direccedilatildeo agraves vaacuterias regiotildees de objetos na
tentativa de compreensatildeo da realidade do mundo Husserl compreende a orientaccedilatildeo
filosoacutefica como investigaccedilatildeo da possibilidade do conhecimento objetivo E nesse sentido
a filosofia de Husserl permanece nos limites de uma criacutetica ao conhecimento
transcendental sem que seu meacutetodo se comprometa com qualquer perspectiva ontoloacutegica
Natildeo porque negue a realidade externa mas porque a reflexatildeo fenomenoloacutegica segundo
Husserl deveria estar direcionada agrave anaacutelise das unidades significativas (Investigaccedilotildees
loacutegicas) e agrave descriccedilatildeo eideacutetica da consciecircncia (Ideacuteias) com o compromisso de esclarecer
a vivecircncia intencional de forma que assim fosse possiacutevel esclarecer as operaccedilotildees de toda
e qualquer consciecircncia inclusive nossa orientaccedilatildeo preacute-reflexiva natural
O vigor da ideia filosoacutefica de ciecircncia tal como elaborada por Husserl residia na
restriccedilatildeo da investigaccedilatildeo agrave coisa mesma A fenomenologia husserliana se restringiu agraves
39
coisas enquanto somos conscientes delas Portanto sem remeter-se ao primado da
autoconsciecircncia da filosofia moderna ela rompeu com a ideia de representaccedilatildeo e por
consequecircncia de adequaccedilatildeo Pois a consideraccedilatildeo a priori da consciecircncia de um sujeito no
modo de questionamento epistemoloacutegico moderno tradicional trazia consigo um
problema inerente a esta pressuposiccedilatildeo a saber a representaccedilatildeo dos elementos externos
pelo aparato interno do sujeito devia ser a cada vez avaliada em sua validade
epistemoloacutegica em sua adequaccedilatildeo agrave consciecircncia Esse problema derivado da
representaccedilatildeo eacute consequecircncia do modo de considerar o sujeito como outro frente ao
mundo A consequecircncia dessa cisatildeo eacute que as representaccedilotildees internas natildeo seriam
suficientes para confirmar a existecircncia do mundo exterior e incapazes de fornecer
elementos conclusivos acerca dos modos de acesso a esse mundo
Husserl aprendeu com Brentano a atitude de recusa a todo e qualquer pressuposto
Mesmo Brentano considerando as representaccedilotildees como uma das bases da atuaccedilatildeo
psiacutequica indica que ldquoa estrutura baacutesica do psiacutequico o que a toda vivecircncia seja inerente
algo objetual a denomina Brentano inexistecircncia intencional Intentio eacute uma expressatildeo
da escolaacutestica que significa dirigir-se a Brentano fala da inexistecircncia intencional do
objetordquo (HEIDEGGER 2006 p39) Nesse sentido a intencionalidade na fenomenologia
husserliana voltada agrave anaacutelise expressiva e natildeo agraves representaccedilotildees torna a questatildeo do
mundo interior ou exterior secundaacuteria O que estaacute em jogo eacute a orientaccedilatildeo da pesquisa pela
condiccedilatildeo do conhecimento que natildeo exclui o mundo e as orientaccedilotildees naturais A suspensatildeo
do mundo exterior na orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica deve-se ao fato de que nesse tipo de
investigaccedilatildeo natildeo se tem nada a dizer sobre ele E nesse sentido a fenomenologia
husserliana que oferece um novo vigor a filosofia do final do seacuteculo XIX apresenta
tambeacutem seu proacuteprio limite
ldquoEm verdade aquela ideia do conhecimento da essecircncia que deveria renovar o
campo do filosofar aquela anaacutelise descritiva do acircmbito imenso da lsquoconsciecircnciarsquo
que teria de anteceder todo conhecimento cientiacutefico e conter todos os seus
pressupostos a priori tinha um limite para aleacutem do qual nem mesmo a
fenomenologia poderia ultrapassar Mesmo um conhecimento fenomenoloacutegico
consumado de todas as essencialidades- dentre as quais tambeacutem se encontram no
campo moral o reino dos lsquovalores ndash natildeo poderia atingir a realidade efetiva do ente
efetivamente real a realidade efetiva da consciecircncia pensante tanto quanto a
realidade efetiva da experiecircncia que ela faz Por mais que a distinccedilatildeo entre o fato
e a essecircncia tenha demarcado o grande campo de pesquisa da fenomenologia ante
as ciecircncias particulares e liberado um trabalho metodologicamente
autoconsciente a factualidade do factual a facticidade a existecircncia natildeo se mostra
40
apenas como algo derradeiro tardio contingente determinado em termos de
conteuacutedo pela intelecccedilatildeo da essecircncia e abarcado segundo toda a sua determinaccedilatildeo
por ela Ao contraacuterio elas tambeacutem se mostram como algo primeiro algo que se
acha agrave base que natildeo pode ser alijado pelo pensamento que suporta por sua vez
todas as intelecccedilotildees da essecircnciardquo (GADAMER 2012p148)
A reduccedilatildeo fenomenoloacutegica natildeo visa reconduzir os fenocircmenos agrave unidade de um
elemento comum mas reconduzir a consciecircncia aos fenocircmenos que se datildeo por si mesmos
e na medida que assim o faz reconhece a existecircncia da base factual na qual o fenocircmeno
pode vir agrave consciecircncia e como um elefante na sala de estar natildeo pode mais ser ignorada
Em outras palavras a investigaccedilatildeo loacutegica o acesso agrave idealidade loacutegica de toda
significaccedilatildeo baseada - mas natildeo reduzida ndash nos atos das vivecircncias psiacutequicas concretas
aponta em uacuteltima instacircncia (mesmo na tentativa de desvio dessa situaccedilatildeo) para o caraacuteter
histoacuterico ou ocasional daquele que pode intencionar significaccedilotildees Mas Husserl natildeo havia
reconhecido esse problema ao diferenciar as expressotildees flutuantes das significaccedilotildees
ideais jaacute na primeira investigaccedilatildeo loacutegica17 O problema neste caso como aponta
Gadamer estaacute exatamente no agente do ato de pensamento pois a base que natildeo pode ser
afastada e que suporta as intelecccedilotildees da essecircncia estaacute necessariamente remetida agravequele
que na accedilatildeo do ato de intelecccedilatildeo eacute finito e histoacuterico ou seja a direccedilatildeo puramente teoacuterica
da fenomenologia de Husserl natildeo deixa de apontar a condiccedilatildeo histoacuterica daquele que pode
realizar qualquer teoria elemento que vai se tornar decisivo para a fenomenologia de
Heidegger
ldquoA doutrina do juiacutezo e de sua fundamentaccedilatildeo a anaacutelise claacutessica da percepccedilatildeo a
distinccedilatildeo loacutegica entre expressatildeo e significado mas sobretudo tambeacutem aquela
17 No sect26 da I Investigaccedilatildeo Loacutegica ldquoExpressotildees essencialmente ocasionais e expressotildees objetivasrdquo
Husserl analisa significaccedilotildees que podem variar de caso a caso ou significaccedilotildees variantes Ele diferencia as
ldquoexpressotildees essencialmente subjetivas e ocasionaisrdquo (por exemplo ldquoeu desejo sorte a vocecircrdquo ou ldquoisto [aqui
que vejo agora] eacute um catildeordquo) das ldquoexpressotildees objetivasrdquo nas quais o que estaacute em questatildeo eacute o teor sonoro
significativo sem necessidade de se ter agrave vista a pessoa que expressa ou a circunstacircncia da expressatildeo Desde
os paraacutegrafos iniciais da primeira investigaccedilatildeo Husserl se preocupa em indicar que a palavra possui ldquofunccedilatildeo
de significaccedilatildeordquo isso quer dizer que a significaccedilatildeo natildeo eacute sustentada pela palavra mas que ela remete a
significaccedilatildeo agrave coisa mesma e nesse sentido para Husserl a ocasionalidade da expressatildeo natildeo prejudica a
unidade ideal de cada uma das expressotildees Contudo o autor natildeo deixa de reconhecer a esfera das expressotildees
ocasionais referidas ao sujeito e sua especificidade como falante identificadas por determinaccedilotildees como
aqui laacute ontem amanhatilde e ainda construccedilotildees expressivas com artigos definidos Essas expressotildees trazem a
referecircncia ao proacuteprio falante e agrave sua situaccedilatildeo ldquode tal maneira que a significaccedilatildeo autecircntica da palavra se
constitui pela primeira vez com base na respectiva representaccedilatildeo desse lugar Por um lado a significaccedilatildeo
eacute sem duacutevida genericamente conceitual porquanto aqui denomina em geral um lugar enquanto tal mas
a este geral junta-se a representaccedilatildeo direta do lugar variando de caso para caso que sob dadas
circunstacircncias do discurso eacute apontada atraveacutes desta representaccedilatildeo conceitual indicativa do aqui e lhe estaacute
subordinadardquo (HUSSERL 2012 p71)
41
descriccedilatildeo incomparavelmente exata e penetrante da consciecircncia interna do tempo
na qual precisaria se construir todo sentido de duraccedilatildeo e de validade atemporal ndash
todos esses eram temas fenomenoloacutegicos de Husserl que emergiram de um
intuito fundamental puramente teoacuterico e que estavam cindidos por um hiato
ontoloacutegico do ponto de partida de Heidegger da experiecircncia pragmaacutetica da vida
da percepccedilatildeo dirigida pelo significado praacutetico do ente agrave matildeo da temporalidade
do ser-aiacute a temporalidade essa que se tomava como movimento da
existecircnciardquo(GADAMER 2012 p154)
Desse modo Heidegger busca um acesso agrave mostraccedilatildeo dos fenocircmenos a partir da
temporalidade existencial do homem e assim compreender como a significaccedilatildeo de todo
e qualquer ente estaacute remetida agrave facticidade (Faktizitaumlt) daquele ente em que algo como
um fenocircmeno pode vir ao encontro
A partir desta breve apresentaccedilatildeo vamos investigar no proacuteximo capiacutetulo (1) A
criacutetica feita por Heidegger a essas trecircs tentativas de superaccedilatildeo da crise da filosofia no
seacuteculo XIX a) a posiccedilatildeo essencialmente teoacuterica da filosofia dos valores e sua
impossibilidade de se apresentar como filosofia originaacuteria b) ao primado da consciecircncia
em Husserl c) a determinaccedilatildeo metodoloacutegica (teoacuterica) da hermenecircutica de Dilthey
Tentaremos compreender (2) como essa problemaacutetica da virada do seacuteculo XIX para o
seacuteculo XX forneceu os princiacutepios que motivaram o pensamento heideggeriano agrave busca
da filosofia como ciecircncia originaacuteria e a partir da anaacutelise dos limites das ditas teorias a
questatildeo do sentido do conhecimento se mostra articulada com outra questatildeo ainda mais
fundamental o sentido do ser e (3) como a recepccedilatildeo da fenomenologia de Husserl por
Heidegger - considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio do meacutetodo fenomenoloacutegico
como indicativo-formal - evidencia a imersatildeo de todo significado em um contexto
hermenecircutico historicamente dado
42
Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica
Mas a vida captada em sua forma irredutiacutevel jaacute sem ornato ou comentaacuterio meloacutedico vida a que aspiramos como paz no cansaccedilo (natildeo a morte) vida miacutenima essencial um iniacutecio um sono
menos que terra sem calor sem ciecircncia nem ironia o que se possa desejar de menos cruel a vida em que o ar natildeo respirado mas me envolva () Natildeo o morto nem o eterno ou o divino apenas o vivo o pequenino calado indiferente e solitaacuterio vivo Isso eu procuro (Vida Menor Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
No capiacutetulo anterior indicamos que o desenvolvimento das ciecircncias positivas
particulares no final do seacuteculo XIX emerge a discussatildeo acerca do sentido e possibilidade
do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo buscou uma filosofia
propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana a autonomia da filosofia
frente agrave ciecircncia positiva E a contribuiccedilatildeo de Dilthey cujo pensamento mesmo imerso
nas exigecircncias positivistas de seu tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda
interpretaccedilatildeo e apresenta o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico
Acreditamos que percorrendo esse caminho podemos compreender no presente capiacutetulo
como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere Heidegger no interior da referida
discussatildeo pelo sentido do conhecimento18 Mas ao mesmo tempo tentaremos mostrar
18 A inserccedilatildeo de Heidegger na discussatildeo pelo sentido do conhecimento que apontamos aqui eacute diferente da
proposta de Crowell (2001) Grosso modo o argumento central de Crowell que atravessa todo o livro eacute a
negaccedilatildeo de uma ruptura radical da abordagem hermenecircutica de Heidegger ndash inclusive no projeto da
ontologia fundamental de Ser e Tempo - frente agrave fenomenologia transcendental de Husserl Crowell
reconhece que os dois projetos natildeo satildeo idecircnticos no entanto no interior do desenvolvimento de seu
pensamento Heidegger teria dado certa continuidade ao projeto husserliano na medida em que ainda pensa
no caraacuteter cientiacutefico da filosofia fenomenoloacutegica (ver pp 129-132) Nossa intenccedilatildeo natildeo eacute travar uma
polecircmica com Crowell pois perderiacuteamos a centralidade do tema de nossa dissertaccedilatildeo Sobre aquele tema
mais especiacutefico conferir tambeacutem Gadamer Verdade e Meacutetodo [260] que faz referecircncia a ele dizendo que
a problemaacutetica de Ser e Tempo natildeo escapa por completo agrave reflexatildeo transcendental Natildeo temos duacutevida de
que Heidegger estaacute comprometido com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do sentido do
conhecimento na medida em que teve profundo contato natildeo soacute com o pensamento neokantiano ndash sobretudo
atraveacutes de Rickert - mas tambeacutem com a fenomenologia de Husserl Ora ambas as correntes estavam
43
como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva (considerando o modo de concepccedilatildeo
originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal) e a introduccedilatildeo do elemento
hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com Heidegger a pergunta
fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do conhecimento e passou a
ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto o argumento central de
nosso segundo capiacutetulo eacute que a abordagem hermenecircutica de Heidegger que se daacute no
interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do
conhecimento ao sentido do ser
Aqui nos eacute necessaacuteria uma breve consideraccedilatildeo Eacute puacuteblica a preocupaccedilatildeo filosoacutefica
de Heidegger com a ontologia jaacute desde seu contato com o livro de Brentano Percurso
descrito pelo proacuteprio autor em Meu caminho para a fenomenologia (Mein Weg in die
Phaumlnomenologie 1963)
ldquoA partir de algumas indicaccedilotildees extraiacutedas de revistas filosoacuteficas tinha averiguado
que o modo de pensar de Husserl fora bastante influenciado por Franz Brentano
cuja tese de doutoramento intitulada Da muacuteltipla significaccedilatildeo do ente em
Aristoacuteteles (1862) tinha sido justamente desde 1907 o guia e o criteacuterio das
minhas primeiras e desajeitadas tentativas de penetrar na filosofia De uma forma
bastante imprecisa o que me movia era a seguinte reflexatildeo lsquose o ente se diz com
significados muacuteltiplos qual seraacute entatildeo o significado fundamental e condutor O
que significa serrsquordquo (HEIDEGGER 2009 p3)
Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido
de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a
teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo
do sentido de ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir
da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para
uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no
curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER (GA20) 2006 p122)19
o elemento hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave
profundamente engajadas com o problema do conhecimento Nosso argumento central ndash defendido no
primeiro capiacutetulo ndash eacute o de que acontece uma virada A abordagem hermenecircutica de Heidegger faz mudar
a questatildeo pelo sentido do conhecimento para a questatildeo do sentido do ser dos entes em geral Revelando
assim o caraacuteter derivado (de uma situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento Cf STEIN E
2008 4ed pp21-30 19 ldquoLa pregunta por el ser surge de la criacutetica inmanente al curso da la propia investigacioacuten
fenomenoloacutegicaresponder en parte a ella constituye el verdadeiro assunto de estas leccionesrdquo opcit p122
44
fenomenologia que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos
fenocircmenos em seu ser Seraacute essa a direccedilatildeo de nosso capiacutetulo
Nele ainda natildeo entraremos na obra central de nosso trabalho abordaremos algumas
preleccedilotildees entre os anos de 1919 e 192520 para expor como a partir da discussatildeo acerca
do sentido do conhecimento e do lugar proacuteprio agrave filosofia Heidegger se posiciona frente
agraves tentativas de pensamento dos Neokantianos de Dilthey e de Husserl Nossa intenccedilatildeo
natildeo eacute interpretar as referidas preleccedilotildees como processos evolutivos de pensamento de
nosso autor como que para esclarecer em termos de causa e efeito a publicaccedilatildeo posterior
ldquomais madurardquo de Ser e Tempo Mas antes destacar como as questotildees desses textos
acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a problemaacutetica cujo
desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927
I - Os limites da filosofia dos valores
No primeiro semestre do poacutes-guerra num contexto de recuperaccedilatildeo da
normalidade da vida cotidiana que obviamente se estendia ao ensino universitaacuterio ocorre
a preleccedilatildeo A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo (GA5657) tiacutetulo
uma das primeiras liccedilotildees do jovem professor em Friburgo em 1919 as quais pretendiam
desenvolver e solucionar parcialmente a ideia de ciecircncia que persegue uma posiccedilatildeo
metodoloacutegica genuiacutena natildeo desfigurada ou seja natildeo afetada por nenhuma teoria e livre
dos prejuiacutezos herdados Para tanto exigia-se voltar agrave esfera da simples consciecircncia
imediata da vida
ldquoA ideia cientiacutefica perseguida eacute tal que uma vez alcanccedilada uma posiccedilatildeo
metodoloacutegica verdadeiramente genuiacutena somos forccedilados a sair e dar um passo
aleacutem de noacutes mesmos para voltar metodologicamente naquela esfera que sempre
permanece alheia a problemaacutetica da ciecircncia que se pretende fundarrdquo21
(HEIDEGGER (GA5657) 2005p 3)
20 HEIDEGGER GA17 GA 61 GA63 GA 5657 e GA62 As traduccedilotildees utilizadas encontram-se na
bibliografia ao final do trabalho 21 ldquoLa idea cientiacutefica que se persigue es de tal naturaleza que una vez alcanzamos una posicioacuten
metodoloacutegica realmente genuina nos vemos obligados a salir y dar un paso maacutes allaacute de nosotros mismos
para volver metodoloacutegicamente sobre aquella esfera que siempre permanece extrantildea a la problemaacutetica maacutes
propia de la ciencia que se pretende fundarrdquo Opcitp3
45
Essa transformaccedilatildeo do meacutetodo natildeo eacute algo arbitraacuterio ou advindo de uma posiccedilatildeo
filosoacutefica mas ldquose evidencia como uma necessidade que se funda na natureza objetiva do
problema como tal e que responde agrave especiacutefica constituiccedilatildeo dos problemas da ciecircncia em
geralrdquo22 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p3) A ciecircncia e seus modelos teoacutericos
irrompem na consciecircncia imediata da vida e a transformam na medida em que trazem
uma nova atitude da consciecircncia a qual se desenvolve no caraacuteter dinacircmico e moacutevel da
vida do espiacuterito ldquoContudo essa irrupccedilatildeo da ideia de ciecircncia no contexto da consciecircncia
natural da vida soacute se daacute em um sentido primordial e radical no marco de uma filosofia
entendida nos termos de ciecircncia originaacuteriardquo23 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p4)
Aqui eacute possiacutevel observar natildeo apenas o mesmo vocabulaacuterio husserliano mas
tambeacutem a mesma tarefa reconduzir a filosofia ao seu lugar de ciecircncia originaacuteria
diferenciando-se dos outros tipos de ciecircncias (biologia fiacutesica psicologia histoacuteria
antropologia etc) Como indica Jeacutesus Adriaacuten Escudero em sua nota de apresentaccedilatildeo agrave
traduccedilatildeo no texto de 1919 eacute possiacutevel observar a linguagem filosoacutefica dos Neokantianos
de Baden (Windelband e Rickert) de Natorp a linguagem fenomenoloacutegica de Husserl e
talvez as primeiras formulaccedilotildees de uma linguagem proacutepria por exemplo Welten
(mundiar) ou das Wie (O como) Mas para noacutes o decisivo eacute notar que se os princiacutepios
que motivam essa investigaccedilatildeo inserem Heidegger no debate de sua eacutepoca (no contexto
da busca de uma filosofia propriamente cientiacutefica) poreacutem no curso de seu pensamento e
na anaacutelise das posiccedilotildees filosoacuteficas que intentam o mesmo objetivo a abordagem da
filosofia como ciecircncia originaacuteria recoloca a problemaacutetica no aspecto propriamente
hermenecircutico e natildeo teoacuterico da vida Se a filosofia eacute ciecircncia originaacuteria eacute a partir desse
aspecto primaacuterio que ela deve se movimentar
Em A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo o modo de
reconduccedilatildeo a essa originariedade jaacute natildeo obedeceraacute aos mesmos moldes da fenomenologia
husserliana Jaacute nessa primeira liccedilatildeo Heidegger nos propotildee uma reconduccedilatildeo da filosofia
(ao seu lugar basilar de toda e qualquer ciecircncia teoacuterica e derivada) que eacute a reconduccedilatildeo agrave
22 ldquomaacutes bien se evidenciaraacute como una necesidad que se funda en la naturaleza objetiva del problema como
tal y que responde a la especiacutefica constitucioacuten de los problemas de la ciencia en generalrdquo Op cit p3 23 ldquoSin embargo esta irrupcioacuten de la idea de ciencia en el contexto de la conciencia natural de la vida soacutelo
se da en un sentido primordial y radical en el marco de una filosofiacutea entendida en teacuterminos de ciencia
originariardquo Opcitp4
46
vida humana na sua imediatidade como fenocircmeno primaacuterio e fundamental Mesmo que
natildeo estejam aiacute desenvolvidas eacute claro as posiccedilotildees de Ser e Tempo como por exemplo o
ldquoser-em-o mundo em geral como constituiccedilatildeo fundamental do Daseinrdquo teses expostas e
desenvolvidas principalmente nos sect12 e 13 da obra de 1927 jaacute era possiacutevel encontrar
alguns elementos da hermenecircutica da facticidade Em 1919 a direccedilatildeo dada a uma filosofia
era a de que devia ocupar-se da vida e assim a proacutepria renovaccedilatildeo da universidade naquele
contexto de reconstruccedilatildeo do poacutes-guerra ldquoimplica[va] um renascimento da autecircntica
consciecircncia cientiacutefica e de seus laccedilos com a vidardquo24 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p
5) Indicaccedilatildeo que se articula com as liccedilotildees posteriores do autor mas que ganha seu
esclarecimento radical em 1923 no Relatoacuterio Natorp na medida em que a apropriaccedilatildeo da
filosofia aristoteacutelica por Heidegger mostra que a vivecircncia e sua relaccedilatildeo de sentido com
todo ente ocorre na ocupaccedilatildeo praacutetica como condiccedilatildeo primaacuteria de conhecimento com o
mundo condiccedilatildeo essa que coincide com a situaccedilatildeo hermenecircutica de toda ontologia
Antes de expormos as linhas gerais do desenvolvimento do texto eacute necessaacuterio
tentar esclarecer o que Heidegger quer dizer com a expressatildeo ldquoconcepccedilatildeo de mundordquo
(Weltanschauung) Para a filosofia segundo nosso autor visatildeo de mundo cosmovisatildeo
ou concepccedilatildeo de mundo natildeo satildeo termos que funcionam como uma direccedilatildeo de
comportamento no interior do mundo direccedilatildeo essa justificada desenvolvida e capaz de
orientar os seres humanos Tambeacutem natildeo oferecem uma visatildeo teoacuterica geral da histoacuteria e
da realidade a partir da qual as ciecircncias pudessem desenvolver-se Assumindo uma
perspectiva bem geral esses satildeo os problemas das filosofias de Windelband e Rickert (e
em certa medida tambeacutem os de Dilthey) contra os quais Heidegger vai se opor nessa
liccedilatildeo Pois o que aiacute estaacute em jogo natildeo eacute a postulaccedilatildeo teoacuterica do que eacute a vida histoacuterica mas
a compreensatildeo do acircmbito fundamental da realidade imediata da vida que proporciona
algo como ldquovisatildeo de mundordquo E desse modo a relaccedilatildeo entre ldquofilosofiardquo e o ldquoproblema
da concepccedilatildeo de mundordquo na conjunccedilatildeo expressa ldquoerdquo natildeo significa a relaccedilatildeo de duas
esferas diferentes mas sim o mesmo acircmbito pois a concepccedilatildeo de mundo potildee em
evidecircncia a natureza e a busca da filosofia ldquoconcepccedilatildeo de mundo como tarefa da
24 ldquoLa renovacioacuten de la universidad implica un renacimiento de la auteacutentica conciencia cientiacutefica y de sus
lazos con la vidardquo Opcitp5
47
filosofia quer dizer uma consideraccedilatildeo histoacuterica da maneira em que a filosofia resolveu
em cada caso esta tarefardquo25 (HEIDEGGER (GA5657) 2005p9)
Como sugere a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Heidegger considera que a
fundamentaccedilatildeo sem preconceitos da filosofia como ciecircncia originaacuteria deve desenvolver-
se a partir de um processo metodoloacutegico ldquoA ideia de ciecircncia exige implicitamente um
desenvolvimento metodoloacutegico dos problemas e nos coloca a tarefa da explicaccedilatildeo
preliminar do verdadeiro problema [que nos ocupa]26rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005
p6) Essa explicaccedilatildeo se desenvolve natildeo como hipoacutetese a ser demonstrada mas a partir
da anaacutelise das filosofias precedentes e de suas preconcepccedilotildees que podem distorcer o tema
da investigaccedilatildeo como elas se aproximaram da vida e como se relacionam com a noccedilatildeo
de ciecircncia
Como mostramos anteriormente jaacute na escola de Baden influenciado pela filosofia
dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade dos juiacutezos
cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de conciliar
ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) Para a escola de Baden as
leis naturais levam agrave explicaccedilatildeo mas eacute a norma de um valor ideal a condiccedilatildeo de um
pensamento verdadeiro Rickert retoma as consideraccedilotildees de Windelband e potildee o
problema em uma base filosoacutefica radical como instrumento metodoloacutegico Entre os sectsect
de 6 e 9 do texto A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo jaacute esboccedilando
algumas consequecircncias problemaacuteticas Heidegger expotildee os elementos principais das
teorias desses autores E se pergunta se aquele meacutetodo que tem a pretensatildeo de clarificar
a relaccedilatildeo entre filosofia e visatildeo de mundo poderia se tornar um meacutetodo seguro para a
realizaccedilatildeo da filosofia como ciecircncia originaacuteria A partir do sect 10 Heidegger inicia a criacutetica
propriamente dita ao meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico do Neokantismo de Baden Um dos alvos
de sua investigaccedilatildeo foi como a ldquodoaccedilatildeo idealrdquo elemento central do meacutetodo na medida
em que eacute o conteuacutedo com pretensatildeo de necessidade e universalidade dos juiacutezos acaba por
revelar o desconhecimento da problemaacutetica acerca da ciecircncia originaacuteria por essa escola
Para tanto Heidegger faz ldquoa pergunta decisiva quais satildeo as formas e normas necessaacuterias
25 ldquoConcepcioacuten del mundo como tarea de la filosofiacutea es decir una consideracioacuten histoacuterica de la manera en
que la filosofiacutea ha resuelto en cada caso esta tareardquo Opcitp9 26 ldquoLa idea de ciencia exige impliacutecitamente un desarrollo metodoloacutegico de los problemas y nos plantea la
tarea de una explicacioacuten preliminar del verdadero problema [que nos ocupa]rdquo Opcit p6
48
que permitem ao pensamento alcanccedilar a validez universal e assim cumprir o propoacutesito
da verdade27rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p50)
A anaacutelise eacute feita em dois momentos a) Consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo b)
aplicaccedilatildeo do meacutetodo
Para a consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo o importante eacute delinear o aspecto
fundamental que sustenta seus paracircmetros Heidegger aponta que para a escola de Baden
as determinaccedilotildees necessaacuterias do pensamento satildeo aquelas que configuram o pensamento
agrave finalidade ideal (validez universal) como condiccedilatildeo de verdade pois o pensamento com
valor deve responder a um dever-ser Pois bem de posse desse elemento basilar eacute na
aplicaccedilatildeo do meacutetodo que se revelaratildeo os problemas
A aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico consiste em a partir do material
fornecido pelos processos psiacutequicos dirigir a visatildeo ao aspecto ideal do pensamento e a
partir daiacute determinando o proacuteprio material ordenando seus elementos em funccedilatildeo de seu
aspecto ideal Portanto ldquoO nuacutecleo de todo o meacutetodo baseia-se no ideal do pensamento
mais precisamente em trazer agrave presenccedila a doaccedilatildeo do ideal28rdquo (HEIDEGGER (GA5657)
2005 p51) Em suma o ideal eacute normativo e dirige a consciecircncia agrave finalidade do
pensamento
ldquoEstamos aqui perante o mesmo problema da circularidade O meacutetodo criacutetico-
teleoloacutegico afirmaria poder determinar o ideal do pensamento isto eacute a verdade
a partir dos pensamentos verdadeiros no entanto o que tenho ante mim satildeo
pensamentos verdadeiros (ocorrecircncias factuais no mundo) mas natildeo a verdade
pois esta eacute um ideal Por outro lado para ter pensamentos verdadeiros ante mim
eu preciso selecionar entre os pensamentos aqueles que satildeo verdadeiros o que
novamente eu soacute posso fazer se jaacute tenho de antematildeo o ideal a verdaderdquo
(RABELO 2013 p28)
A partir daiacute em seu estilo muitas vezes categoacuterico Heidegger demonstra ser
supeacuterfluo o sentido do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e o acusa de em uacuteltima instacircncia nem
mesmo conseguir esclarecer seus pressupostos deixando obscuras questotildees como ldquoa
doaccedilatildeo ideal possibilita uma relaccedilatildeo de apreciaccedilatildeo e de seleccedilatildeo com o material dado mas
27 ldquoAhora surge la pregunta decisiva iquestcuaacuteles son las formas y normas necesarias que permiten al
pensamiento alcanzar la validez universal y cumplir asiacute con el fin de la verdadrdquo Opcitp50
28 ldquoEl nuacutecleo de todo el meacutetodo descansa en el ideal del pensamiento con mayor precisioacuten en traer a la
presencia la donacioacuten del idealrdquo Opcitp51
49
como trago agrave minha consciecircncia o ideal de pensamentordquo ldquoo que significa validez
universal para esse pensamentordquo ldquoO que significa ser verdadeiro para o pensamento
para que ele seja universalmente vaacutelidordquo Nas palavras de nosso autor
ldquoA anaacutelise estrutural do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico mostra que este meacutetodo
pressupotildee em seu sentido mais proacuteprio e como condiccedilatildeo de sua proacutepria
possibilidade justamente aquilo que deve alcanccedilar Natildeo pode encontrar em si
mesmo seu proacuteprio fundamento posto que o ideal jaacute tem que estar dado como
criteacuterio de valoraccedilatildeo criacutetica da norma para levar a cabo a tarefa impliacutecita no
meacutetodordquo29 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p52)
Se a anaacutelise da natureza e aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico fizeram
despontar a primeira criacutetica acerca de sua impossibilidade Heidegger aprofunda sua
criacutetica tendo em vista o aspecto central de sua liccedilatildeo E portanto aponta o
desconhecimento acerca da problemaacutetica da ciecircncia originaacuteria por essa escola
ldquoJaacute vimos que o movimento do meacutetodo mais exatamente a implementaccedilatildeo do
mesmo inclui o ter presente o ideal o fim o dever-ser O ideal tem
evidentemente um conteuacutedo umas determinaccedilotildees substantivas Contudo eacute um
ideal natildeo eacute um conteuacutedo real e efetivo senatildeo um modo de dever-ser Frente a
todo ser o caraacuteter de obrigatoriedade [inerente ao dever-ser] encerra o momento
da idealidade e da validez supra-empiacuterica Assim pois o conceito do meacutetodo
teleoloacutegico pressupotildee algo mais essencial e algo essencialmente diferente a
doaccedilatildeo do dever ser e se tratando do dever absoluto entatildeo falariacuteamos da
objetividade originaacuteriardquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p53)30
A partir da constataccedilatildeo dessas implicaccedilotildees do meacutetodo Heidegger pergunta qual
eacute o correlato objetivo do dever-ser Em outras palavras qual sua orientaccedilatildeo vital Isso
permanece obscuro e mais ainda que a inclusatildeo do elemento do dever-ser no meacutetodo
aparentemente natildeo se mostre como um vieacutes meramente teoacuterico (na medida em que se
29 ldquoEl anaacutelisis estructural del meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico muestra que este meacutetodo presupone en su sentido
maacutes propio y como condicioacuten de su propia posibilidad justamente aquello que debe conseguir No puede
encontrar en siacute mismo su propio fundamento puesto que el ideal ya tiene que estar dado como criterio de
valoracioacuten criacutetica de la norma para llevar a cabo la tarea impliacutecita en el meacutetodordquo Opcitp52 30 ldquoYa vimos que la puesta en marcha del meacutetodo maacutes exactamente la implementacioacuten del mismo incluye
el tener presente el ideal el fin el deber-ser El ideal tiene evidentemente un contenido unas
determinaciones sustantivas Sin embargo es un ideal no es un contenido real y efectivo sino un modo del
deber- ser Frente a todo ser el caraacutecter de obligatoriedad [inherente al deber-ser] encierra el momento de
la idealidad y de la validez supraempiacuterica Asiacute pues en el concepto del meacutetodo teleoloacutegico se presupone
algo esencialmente maacutes y algo esencialmente diferente la donacioacuten del deber-ser y si se tratara del deber
absoluto entonces hablariacuteamos de la objetualidad originariardquo Opcitp53
50
trata da razatildeo praacutetica) natildeo eacute possiacutevel responder agrave demanda necessaacuteria de uma ciecircncia
originaacuteria pois eacute inconciliaacutevel com a urgecircncia da vida faacutetica
Nesse sentido nos parece que na filosofia criacutetica-transcendental de Rickert o
acesso aos elementos decisivos do meacutetodo em uacuteltima instacircncia eacute realizado a partir das
teorias das ciecircncias positivas Entatildeo a filosofia estaacute obrigada a se posicionar frente agraves
teorias dessas ciecircncias e natildeo propriamente a partir da orientaccedilatildeo vital O
desconhecimento acerca da filosofia como ciecircncia originaacuteria se torna aqui patente pois
ao se revelar que satildeo as teorias dessas ciecircncias que fornecem os elementos para os juiacutezos
valorativos relacionados ao dever-ser a filosofia se torna delas dependente e parece nelas
encontrar ateacute mesmo sua condiccedilatildeo de possibilidade
Heidegger ainda aponta em sua criacutetica um problema que decorre da tentativa de
estabelecer uma relaccedilatildeo entre valor judicativo e dever-ser Para ele na vivecircncia imediata
da vida as relaccedilotildees valorativas natildeo encontram a menor correspondecircncia com o dever-ser
Ouccedilamos as suas palavras
ldquoPela manhatilde entro em meu estuacutedio o sol banha meus livros etc estou alegre
Esta alegria natildeo responde em nenhum caso a um dever-ser A lsquoalegriarsquo como tal
natildeo se oferece a mim em uma vivecircncia marcada pelo dever-ser Devo trabalhar
devo sair para uma caminhada duas motivaccedilotildees duas possiacuteveis razotildees que em
si mesmas natildeo formam parte de meu sentimento de alegria senatildeo que o
pressupotildee Existe portanto um tipo de vivecircncia em que me sinto alegre em que
me daacute algo que tem valor como talrdquo 31(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)
A experiecircncia do valor eacute intransitiva natildeo um juiacutezo mas em seu sentido imanente
ldquoo meacutetodo teleoloacutegico implica indubitavelmente o momento da vivecircncia do dever-serrdquo
(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)32
Ateacute agora o que foi analisado foi o significado do meacutetodo criacutetico- teleoloacutegico e
suas implicaccedilotildees que apontaram para a existecircncia de fenocircmenos mais originaacuterios que
passam desapercebidos aos defensores desse meacutetodo E se o meacutetodo loacutegico-teleoloacutegico
31 ldquoiquestPero se me da todo valor como un deber-ser Evidentemente no Yo experimento las relaciones
valorati- vas sin que intervenga el maacutes miacutenimo momento del deber-ser Por la mantildeana entro en mi estudio
el sol bantildea mis libros etceacutetera estoy alegre Esta alegriacutea no responde en ninguacuten caso a un deber-ser La
laquoalegriacutearaquo como tal no se me da en una vivencia marcada por el deber- ser Debo trabajar debo salir de
paseo dos motivaciones dos posibles razones que en siacute mismas no forman parte de mi sentimiento de
alegriacutea sino que lo pre-supo- nen Existe por tanto un tipo de vivencia en el que me siento alegre en el
que se me da algo que tiene valor como talrdquo Opcitp55 32 ldquoEl meacutetodo teleoloacutegico implica indudablemente el momento de la vivencia del deber-serrdquo Opcitp55
51
estabelece a relaccedilatildeo necessaacuteria entre valor e dever-ser acarretando todas as possiacuteveis
criacuteticas jaacute expostas Heidegger natildeo deixa de reconhecer
ldquoUma coisa eacute evidente Rickert detectou um fenocircmeno significativo quando
identificou o objeto do conhecimento como um dever-ser e o desvencilhou dos
mecanismos psiacutequicos o fenocircmeno da motivaccedilatildeo um fenocircmeno que encontra
seu significado primaacuterio tanto nos problemas do conhecimento como em outros
acircmbitos Uma coisa eacute declarar-algo-como-valor [Fuumlr-Wert-Erklaumlren] e outra
muito distinta eacute tomar-algo-por-um-valor [Wertnehmen] Este tomar-algo-como-
um-valor se pode caracterizar como um fenocircmeno originaacuterio como uma
constituiccedilatildeo da vida em si e para si no entanto o declarar-algo-como-um valor
foi visto como algo derivado algo fundado na esfera teoreacutetica e esse mesmo
fenocircmeno teoreacutetico eacute um elemento constitutivo da vida vivida em si mesma
Pressupotildee levantar o veacuteu teoreacutetico do caraacuteter valorativo como tal A estratificaccedilatildeo
precisa desse fenocircmeno natildeo nos interessa nesse momentordquo
(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p57)33
O que estaacute em jogo aqui eacute a relaccedilatildeo entre verdade e valor pois para Rickert
ldquodistinto do processo psiacutequico real uma ocorrecircncia natural que poderia ser tratada
causalmente destaca-se a legalidade ideal do pensar verdadeiro que se deve obedecer
uma vez que se queira o ideal da verdaderdquo (RABELO 2013 p26) Desse modo algo eacute
capaz de ser analisado como verdadeiro atraveacutes dos valores atribuiacutedos teoricamente
(atraveacutes da anaacutelise do juiacutezo) ao seu material Ou seja a verdade eacute garantida na anaacutelise
judicativa que declara-algo-como-valor Por exemplo a distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na
realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor (Wert) segundo Rickert levaria
a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo de conceitos (Begriffsbildung)
e que natildeo se trata de um conhecimento no campo ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto
pelo conceito determinado de maneira formal no espaccedilo loacutegico-axioloacutegico Portanto
ldquoUma coisa eacute ldquoexplicar por valorrdquo (fuumlr-Wert-erklaumlren) outra eacute ldquotomar-por-valorrdquo
(wertnehmen) O primeiro eacute uma construccedilatildeo teoreacutetica o segundo uma vivecircncia
Estaacute em jogo aqui uma diferenccedila que se insinua na liacutengua alematilde a partir da
33 ldquoRickert detectoacute un fenoacutemeno significativo cuando identificoacute el objeto del conocimiento como un deber-
ser y lo deslindoacute de los mecanismos psiacutequicos el fenoacutemeno de la motivacioacuten un fenoacutemeno que encuentra
su significado primario tanto en el problema del conocimiento como en otros aacutembitos Una cosa es declarar-
algo-como-un-valor [Fuumlr-Wert- Erklaumlren] y otra muy distinta tomar-algo-por-un-valor [Wertnehmen]
Este tomar-algo-por-un-valor se puede caracterizar como un fenoacutemeno originario como una constitucioacuten
de la vida en y para siacute en cambio el decla- rar-algo-como-un-valor se ha de ver como algo derivado como
algo fundado en la esfera teoreacutetica9 y ese mismo fenoacutemeno teoreacutetico es un elemento constitutivo de la vida
vivida en siacute misma Presupone levantar el velo teoreacutetico del caraacutecter valorativo como tal La estratificacioacuten
precisa de este fenoacutemeno no nos interesa en estos momentosrdquo Opcitp57 Essa estratificaccedilatildeo a qual
Heidegger se refere jaacute indica em suas primeiras liccedilotildees o desdobramento posterior acerca da criacutetica agrave
primazia que a filosofia oferece a teoria em detrimento da compreensatildeo praacutetica
52
expressatildeo perceber wahrnehmen literalmente tomar-por-verdadeiro No mesmo
sentido imediato em que aquilo que me aparece na percepccedilatildeo sensiacutevel eacute tomado
como estando aiacute ele mesmo sem a necessidade de uma reflexatildeo aqui quer-se
saber se algo vivenciado eacute no proacuteprio vivenciar tomado como algo valoroso se
eacute experienciado enquanto valoroso ou se posteriormente lhe eacute adicionada esta
referecircncia a valoresrdquo (RABELO 2013 p27)
Desse modo para Rickert verdade e valor judicativo (teoacuterico) se comungam mas
essa comunhatildeo para Heidegger natildeo passa de uma constituiccedilatildeo metodoloacutegica externa e
derivada de uma filosofia teoacuterica Se para Rickert o tomar-algo-como-um-valor natildeo tem
ldquovalor de verdaderdquo como o declarar-algo-como-valor Para Heidegger a verdade do ser
(ser ndashverdadeiro) ou o ldquotomar-por-verdadeirordquo (a vivecircncia) independe do valor e nada
tem a ver com o dever-ser
ldquoDaacute-se o ser-verdadeiro como um valor De maneira alguma e nem se daacute no
segundo caso do juiacutezo histoacuterico [acerca da morte de Napoleatildeo I na ilha de Santa
Elena] Contudo o conteuacutedo objetivo desse juiacutezo tem a forma de um valor no
sentido de [que remete a algo] lsquohistoricamente significativorsquo um novo fenocircmeno
lsquovalorativorsquo que natildeo afeta o ser-verdadeiro como tal ao lanccedilar um papel
metodoloacutegico na constituiccedilatildeo da verdade histoacuterica O ser-verdadeiro (ἀ-λήθεια)
como tal natildeo lsquovalersquo Na alegria como alegria assumo valores na verdade
simplesmente vivo Natildeo apreendo o ser-verdadeiro na e atraveacutes de uma assunccedilatildeo
de valores34rdquo (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p58)
Essas uacuteltimas consideraccedilotildees revelam para Heidegger que o meacutetodo teleoloacutegico
estaacute impregnado de pressuposiccedilotildees pois a cada vez ldquoos fenocircmenos do dever-ser do valor
da assunccedilatildeo de um valor da pergunta se a verdade eacute um valor que descansa em uma
valoraccedilatildeo originaacuteria se fundam em uma determinaccedilatildeo valorativa que se realiza
subsequentementerdquo35 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p62) E essas pressuposiccedilotildees
trazem agrave vista o privileacutegio teoreacutetico dessa filosofia
34 ldquoiquestSe da el ser-verdadero como un valor De ninguna manera y tampoco se da en el segundo caso del
juicio histoacuterico [acerca de la muerte de Napoleoacuten I en la isla de Santa Elena] Sin embargo el contenido
objetivo de este juicio tiene la forma de un valor en el sentido de [que remite a algo] laquohistoacutericamente
significativoraquo un nuevo fenoacutemeno laquovalorativoraquo que no afecta al ser-verdadero como tal si bien juega un
papel metodoloacutegico en la constitucioacuten de la verdad histoacuterica El ser-verdadero (ἀ-λήθεια) como tal no
laquovaleraquo En la alegriacutea como alegriacutea asumo valores en la verdad como verdad simplemente vivo No
aprehendo el ser-verdadero en y a traveacutes de una asuncioacuten de valoresrdquo Opcitp58
35 ldquoAl ampliar el anaacutelisis salieron a escena nuevos presupuestos y pusieron de relieve que el meacutetodo
teleoloacutegico estaacute cargado de presuposiciones los fenoacutemenos del deber-ser de la donacioacuten del deber-ser del
valor de la asuncioacuten de un valor de la pregunta de si la verdad es un valor que descansa en uma valoracioacuten
originaria o de si se funda en una determinacioacuten valorativa que se realiza con lsquoposterioridadrsquordquo Opcitp62
53
ldquoO privileacutegio outorgado ao teoreacutetico repousa na convicccedilatildeo de que o teoreacutetico
representa o estrato baacutesico e fundamental que de alguma maneira funda todas as
esferas restantes Isso se potildee manifesto quando eacute falado por exemplo da
lsquoverdadersquo eacutetica artiacutestica ou religiosa Se diz que o teoreacutetico tem todos os demais
acircmbitos valorativos e eacute capaz de fazer isso na medida em que o teoreacutetico mesmo
se concebe como um valor Eacute necessaacuterio romper este primado do teoacuterico mas natildeo
com a finalidade de proclamar a primazia da praacutetica ou introduzir um outro
elemento que mostra os problemas a partir de uma nova perspectiva mas porque
o teoreacutetico mesmo enquanto tal remete a algo preacute -teoreacuteticordquo 36(HEIDEGGER
(GA5657) 2005 p70)
Para os neokantianos de Baden o ideal absoluto como medida da realidade
empiacuterica como condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do pensamento verdadeiro e ainda como
condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do significado histoacuterico reveste-se da transcendentalidade em
funccedilatildeo do rigor cientiacutefico Para eles o mundo do ser natildeo pode ser confundido com o
mundo do valor pois satildeo os valores como elementos transcendentais que orientam a
constituiccedilatildeo do indiviacuteduo histoacuterico de modo loacutegico A realidade - o espaccedilo ontoloacutegico ndash
estaacute condicionada agrave teoria e em uacuteltima instacircncia o proacuteprio teoreacutetico eacute concebido como
valor Inversatildeo que Heidegger detecta como propriamente afastada do acircmbito imediato
da vida e que como meacutetodo portanto natildeo pode fundar-se como ciecircncia originaacuteria
II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt37 originaacuterio
Diferentemente de Windelband e Rickert que subordinavam a verdade agrave
valoraccedilatildeo em funccedilatildeo do juiacutezo jaacute em 1919 Heidegger indicava a derivaccedilatildeo do teoreacutetico
de uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Apoacutes a investigaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-
36 ldquoAsimismo el privilegio otorgado a lo teoreacutetico reposa en la conviccioacuten de que lo teoreacutetico representa el
estrato baacutesico y fundamental que de alguna manera funda todas las esferas restantes Esto se pone de
manifiesto cuando uno habla por ejemplo de la laquoverdadraquo eacutetica artiacutestica o religiosa Se dice que lo teoreacutetico
tintildee todos los demaacutes aacutembitos valorativos y es capaz de hacer eso en la medida en que lo teoreacutetico mismo
se concibe como un valor Se ha de romper con esta primaciacutea de lo teoreacutetico pero no con el propoacutesito de
proclamar un primado de lo praacutectico o de introducir otro elemento que muestre los problemas desde una
nueva perspectiva sino porque lo teoreacutetico mismo y en cuanto tal remite a algo pre-teoreacuteticordquo Opcitp70
37 Como o verbo ldquodarrdquo em portuguecircs o ldquogebenrdquo em alematildeo pode ser utilizado como verbo bitransitivo no
sentido de dar algo a algueacutem (Ex ldquoIch gebe dir mein Buchrdquo ldquoEu te dou o meu livrordquo) Mas no caso do ldquoes
gibtrdquo eacute utilizado no sentido do verbo ldquohaverrdquo ou ldquoexistirrdquo como por exemplo ldquoEs gibt viele Woumlrter ldquoHaacute
muitas palavrasrdquo ou ldquoExistem muitas palavras) Portanto pensar num ldquoes gibtrdquo originaacuterio eacute referir-se agrave
existecircncia originaacuteria das coisas em outras palavras no modo de aparecimento do que haacute do existente em
seu sentido primaacuterio preacutevio a toda determinaccedilatildeo transitiva possiacutevel nos moldes gramaticais
54
teleoloacutegico em A ideacuteia da filosofia e o problema da visatildeo de mundo o autor apresenta
essa instacircncia primaacuteria como correlata a um ldquoes gibtrdquo originaacuterio haacute e o que haacute eacute mundo
ou melhor um dar-se mundo
Aqui reside a primeira exposiccedilatildeo de nosso argumento A abordagem hermenecircutica
de Heidegger no interior da fenomenologia foi decisiva para o acesso agrave questatildeo do sentido
do ser e no desenvolvimento da referida preleccedilatildeo esse movimento se torna patente
A criacutetica de Heidegger agrave teoria do conhecimento e agraves implicaccedilotildees dessa postura
propriamente teoacuterica em relaccedilatildeo agrave verdade conduz o autor agrave correlaccedilatildeo entre as vivecircncias
e a significaccedilatildeo fenomecircnica como cooriginaacuterias da imersatildeo num mundo que haacute se daacute
existe como mundo circundante As pressuposiccedilotildees da teoria do conhecimento e suas
postulaccedilotildees acerca do ldquosujeitordquo reverberam em uma seacuterie de problemas derivados que
nada dizem acerca das vivecircncias Assim questotildees Como eacute possiacutevel o acesso agrave realidade
exterior Em que medida minha vivecircncia subjetiva alcanccedila a vivecircncia de outro
sujeito Como passar da esfera subjetiva aos dados sensoriais do mundo Como
passar da esfera subjetiva ao conhecimento objetivo satildeo problematizaccedilotildees derivadas
da primazia teoacuterica dada pela filosofia e pelas ciecircncias que ignoram por completo que o
viver do mundo circundante natildeo eacute uma contingecircncia () somente em ocasiotildees
excepcionais estamos instalados em uma atitude teoreacutetica38 (HEIDEGGER(GA5657)
2005 p106)
Lembremos que o que estaacute em questatildeo nessa preleccedilatildeo eacute em que medida a filosofia
pode ser considerada como ciecircncia originaacuteria e qual eacute o seu modo de relaccedilatildeo com a visatildeo
de mundo Nesse sentido a filosofia se mostra como aquela ciecircncia que deve se afastar de
qualquer posiccedilatildeo preacutevia e assim dizer que o viver do mundo circundante natildeo eacute uma
contingecircncia eacute reconhecer aquilo que todo posicionamento teoacuterico quer a cada vez
afastar mas eacute em uacuteltima medida a condiccedilatildeo de possibilidade de sua proacutepria realizaccedilatildeo
teoacuterica Com outras palavras a possibilidade do conhecimento estaacute imersa em bases que
natildeo satildeo elas proacuteprias teoacutericas E nesse sentido quando uma ou outra teoria filosoacutefica
pretende investigar a possibilidade do conhecimento partindo de pressuposiccedilotildees teoacutericas
38 ldquoEl vivir del mundo circundante no es una contingencia sino que radica en la esencia de la vida en y para
siacute por el contrario soacutelo en ocasiones excepcionales estamos instalados en una actitud teoreacuteticardquo
Opcitp106
55
acaba por afundar-se em falsos problemas como ldquoa realidade do mundordquo e ldquoo acesso a
essa realidaderdquo Discussotildees vazias pois o mundo em sua realidade histoacuterica eacute o dar-se
originaacuterio e prescinde de toda e qualquer teorizaccedilatildeo
Na leitura de Heidegger o neokantismo decompotildee o acircmbito originaacuterio da
vivecircncia em conceitos teoacutericos que natildeo formam mais uma totalidade pois a
desvivifica transformando-a num objeto a-histoacuterico e portanto sem significado
O mundar (welten) soacute eacute apreensiacutevel pela visatildeo fenomenoloacutegica que ainda natildeo estaacute
contaminada pelos pressupostos teoreacuteticos que tornam essa experiecircncia uma
relaccedilatildeo objetificante () Heidegger se contrapotildee agrave metodologia teoreacutetica que
pretende objetificar e descrever as vivecircncias mas compreender e apreender as
conexotildees de significado em que jaacute se estaacute submerso A fenomenologia pretende
manifestar isso que se daacute em um soacute golpe o mundo circundante (Umweltliche)
caracteriacutestico do vivenciar primordial(WU R2010 p185)
Mas se a compartimentaccedilatildeo da realidade realizada pelas teorias filosoacuteficas recai
em discussotildees vazias e a vivecircncia primordial prescinde de conceitos teoacutericos isso natildeo
apontaria para um empirismo ou um realismo como possibilidades da filosofia A
filosofia eacute ainda busca e busca originaacuteria Nesse sentido o acesso fenomenoloacutegico ao
mundo circundante orientado pela proacutepria coisa na intuiccedilatildeo imediata eacute para Heidegger
o modo de abrir ldquocientificamenterdquo a esfera da vivecircncia resguardando a orientaccedilatildeo agrave vida
sem qualquer teoria preacutevia
O rigor da cientificidade cultivada na fenomenologia cobra sentido a partir
dessa atitude fundamental e natildeo se pode comparar com o rigor das ciecircncias
derivadas e natildeo originaacuterias Ao mesmo tempo resulta claro porque o problema do
meacutetodo joga um papel central na fenomenologia como em nenhuma outra ciecircncia
() Para o problema que nos ocupa a atitude fundamental da fenomenologia
aponta em uma direccedilatildeo decisiva natildeo construir um meacutetodo desde fora ou desde
acima natildeo idear um novo caminho teoreacutetico por meio de reflexotildees dialeacuteticasrdquo39
(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p133)
Desde o iniacutecio da preleccedilatildeo Heidegger estaacute em busca de um meacutetodo capaz de
alcanccedilar o primaacuterio que estaria na base de qualquer conhecimento Nesse sentido a
39 ldquoEl laquorigorraquo de la cientificidad cultivada en la fenomenologiacutea cobra sentido a partir de esta actitud
fundamental y no se puede comparar con el laquorigorraquo de las ciencias derivadas y no originarias Al mismo
tiempo resulta claro por queacute el problema del meacutetodo juega un papel tan central en la fenomenologiacutea como
en ninguna otra ciencia (Por esta razoacuten todo este curso gira realmente en torno a un problema
metodoloacutegico) Para el problema que nos ocupa la actitud fundamental de la fenomenologiacutea apunta en una
direccioacuten decisiva no construir un meacutetodo desde fuera o desde arriba no idear un nuevo camino teoreacutetico
por medio de reflexiones dialeacutecticasrdquo Opcit p133
56
fenomenologia como retorno agraves coisas mesmas se volta ao dar-se originaacuterio das coisas e
eacute atraveacutes delas que o meacutetodo pode vir a ser desenvolvido Ainda em 1919 natildeo foi exposta
em linhas precisas a fenomenologia como meacutetodo indicativo-formal elemento decisivo
no interior da fenomenologia-hermenecircutica de Heidegger O que iremos abordar mais
adiante
A tentativa de orientar-se pelo dado na vivecircncia pelo que eacute como eacute no mundo
circundante se afasta portanto de qualquer objetificaccedilatildeo A fenomenologia como
meacutetodo eacute a possibilidade de compreensatildeo dos significados que nos vem ao encontro no
mundo circundante e histoacuterico no qual jaacute se estaacute sempre imerso Mas se Heidegger
apresenta a fenomenologia como o meacutetodo que alcanccedila o que vem ao encontro sem
qualquer preacutevia teoria esse acesso natildeo se daacute segundo os mesmos paracircmetros de seu
mestre Husserl
Como vimos na fenomenologia husserliana o modo de aparecimento do
fenocircmeno eacute sempre uma doaccedilatildeo de significado mas o acesso aos fenocircmenos eacute sempre a
partir da anaacutelise dos atos intencionais das vivecircncias na consciecircncia Heidegger recusa o
pressuposto da consciecircncia e pretende que a doaccedilatildeo significativa seja originaacuteria da
vivecircncia imersa no mundo No uacuteltimo momento da preleccedilatildeo de 1919 o autor apresenta
o que seria cooriginaacuteria de qualquer orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica e base de qualquer
ciecircncia teoacuterica a intuiccedilatildeo hermenecircutica Assim a vivecircncia que se apropria do vivido eacute
a intuiccedilatildeo compreensiva a intuiccedilatildeo hermenecircutica () A universalidade do significado
das palavras assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia
vivida40 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 pp141-142) Ou seja a significaccedilatildeo
gramaticalmente revestida natildeo aponta para algo essencial apreendido no ato de
consciecircncia (como compreende Husserl) mas a significaccedilatildeo vivida no mundo
circundante
O princiacutepio dos princiacutepios husserlianos tudo o que se daacute originariamente na
intuiccedilatildeo [] haacute que tomaacute-lo simplesmente como se daacute (Husserl Ideen apud Heidegger
40 ldquoLa vivencia que se apropia de lo vivido es la intuicioacuten comprensiva la intuicioacuten hermeneacuteutica la
formacioacuten originariamente fenomenoloacutegica que vuelve hacia atraacutes mediante retroconceptos y que se
anticipa con ayuda de preconceptos y de la que queda excluida toda posicioacuten teoreacutetico-objetivante y
trascendente La universalidad del significado de las palabras sentildeala primariamente algo originario el
caraacutecter mundano de la vivencia vividardquo Opcitpp141142
57
(GA5657) 2005 p132) eacute dado no interior das conexotildees de significados no es gibt
originaacuterio no mundo que se daacute cooriginariamente agraves proacuteprias vivecircncias
Para Heidegger o uacutenico modo de apreender essa vivecircncia originaacuteria eacute retroceder
ao preacute-teoacuterico por uma abordagem fenomenoloacutegica que faz com que o mundar
do mundo se manifeste enquanto tal Alguns anos mais tarde isso constituiria o
nuacutecleo da ontologia fundamental na perspectiva da temporalidade cujo objetivo
de criacutetica natildeo seria mais de maneira tatildeo detida o neokantismo de Windelband e
Rickert mas a totalidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica da filosofia(WuR2010 p186)
Tendo em vista o ponto central da preleccedilatildeo aqui examinada eacute imprescindiacutevel
notar que em 1919 Heidegger estava debatendo com os problemas de seu tempo a
possibilidade do conhecimento o lugar da filosofia diante da autonomia das ciecircncias
particulares e a articulaccedilatildeo dessa problemaacutetica com a Lebensphilosophie Se ainda natildeo
haacute explicitamente a questatildeo do sentido de ser em geral a preleccedilatildeo possui elementos
decisivos para o desenvolvimento da ontologia fundamental O que queremos enfatizar eacute
como o modo de apariccedilatildeo dos fenocircmenos em seu significado prescinde de toda e qualquer
teorizaccedilatildeo Essa caracteriacutestica fundamental vai permanecer vigente nos desdobramentos
futuros do pensamento de Heidegger e vai se mostrar a cada vez mais intimamente
relacionada agrave ambiccedilatildeo heideggeriana de superar os pressupostos da tradiccedilatildeo filosoacutefica
moderna
ldquoA pergunta acerca da realidade do mundo externo deriva em parte de uma
compreensatildeo superficial da filosofia kantiana ou de outro modo de reflexotildees
colocadas por Descartes Eacute uma questatildeo que em todo momento de modo mais ou
menos expresso ocupou a teoria do conhecimento da modernidade assegurando-
se sempre contudo que naturalmente ningueacutem duvida da realidade do mundo
externo Pois o que nela sempre se daacute por suposto eacute que essa realidade essa
mundanidade do mundo eacute no fundo algo que talvez possa demonstrar-se ou
mais exatamente no caso de nos encontrarmos em condiccedilotildees ideais ao final
haviacuteamos demostrado [essa realidade] E contudo o ser-real do mundo natildeo soacute
natildeo necessita ser demosntrado nem sequer eacute algo que na falta de provas
rigorosas por isso deva ser unicamente objeto de crenccedilardquo41( HEIDEGGER
(GA20) 2006 p270)
41 ldquoLa pregunta acerca de la realidad del mundo externo se deriva en parte de uma comprensioacuten superficial
de la filosofia kantiana o mejor dicho de reflexiones que Descartes planteoacute Es uma cuestiacuteon que en todo
momento de modo maacutes o menos expreso ha ocupado a la teoriacutea del conocimiento de la modernidad
aseguraacutendose siempre no obstante de que naturalmente nadie dudara de la realidade del mundo externo
Pues lo que em ella se da por supuesto es que esa realidad esa mundanidad del mundo es em fondo algo
que quizaacute pueda demostrarse o maacutes exactamente es en caso de que nos encontraacuteramos em condiciones
ideales al final habriacuteamos demostrado Y sin embargo el ser-real del mundo no soacutelo no necessita ser
demostrado ni siquiera es algo que a falta de pruebas rigorosas por eso deba ser unicamente objeto de
creenciardquo Opcitp270
58
Assim a partir dessas consideraccedilotildees eacute possiacutevel indicar que a questatildeo do sentido
do ser em geral ou numa palavra a ldquoontologiardquo para Heidegger pode vir a ser atingida
quando se revela que a fenomenologia natildeo estaacute fundada na epistemologia (a partir da
consciecircncia) e que a hermenecircutica natildeo eacute apenas um instrumento metodoloacutegico de acesso
agrave histoacuteria em sua objetividade O que Heidegger pretende exprimir com o termo ldquointuiccedilatildeo
hermenecircuticardquo eacute a possibilidade de uma compreensatildeo imediata do mundo a qual natildeo estaacute
fundada nas vivecircncias subjetivas O es gibt originaacuterio eacute o mundo que se daacute como campo
hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Com outras palavras natildeo haacute
significados ideais eles aparecem a partir da situaccedilatildeo hermenecircutica compartilhada entre
os homens campo que chamamos de mundo e a compreensatildeo desse campo natildeo eacute
tributaacuteria das vivecircncias psiacutequicas Para tanto eacute preciso esclarecer como Heidegger supera
a consciecircncia husserliana enquanto lugar de apariccedilatildeo dos fenocircmenos e tambeacutem como a
noccedilatildeo heideggeriana de ldquointuiccedilatildeo hermenecircuticardquo pretende superar a vivecircncia psiacutequica de
Dilthey como categoria epistemoloacutegica fundamental Chegamos ao ponto onde se torna
necessaacuterio compreender mais detidamente a apropriaccedilatildeo de Heidegger da hermenecircutica
diltheyniana e da fenomenologia husserliana
II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger
Seguindo inicialmente as indicaccedilotildees expressas no primeiro curso proferido por
Heidegger em Marburg (inverno de 1923-1924) Introduccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo
fenomenoloacutegica (GA17) eacute possiacutevel observar a tentativa do autor de compreender a
fenomenologia como fenomenologia da existecircncia e assim se apropriar de maneira mais
originaacuteria da investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica
O curso se inicia com a interpretaccedilatildeo - mantida em seus principais elementos no
sect7 de Ser e Tempo - dos conceitos de fenocircmeno (φαινόμενον) e loacutegos (λόγος) em
Aristoacuteteles para assim pocircr em evidecircncia a interpretaccedilatildeo segundo a qual nos escritos do
filoacutesofo grego esses conceitos indicam a direccedilatildeo do pensamento e da investigaccedilatildeo
filosoacutefica para o ser do homem como ser-no-mundo
59
A perceptibilidade das coisas estaacute sob a condiccedilatildeo de um determinado ser deste
mundo mesmo O ser condiccedilatildeo se refere a um modo de ser do mundo mesmo Agrave
existecircncia no mundo pertence o ser subsistente do Sol justamente o que
pensamos quando afirmamos eacute de dia Desta forma falamos de um estado de
coisas que pertence ao ser do mundo mesmo Daiacute se segue que φαινόμενον natildeo
quer dizer em primeiro lugar nada mais que um destacado modo de presenccedila do
enterdquo42 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30)
Ainda seguindo a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles Heidegger diz que o conceito de
fenocircmeno na medida em que designa tudo o que mostra a si mesmo natildeo pode ser
reduzido ao que estaacute na presenccedila do dia ou seja que existem coisas que satildeo visiacuteveis na
obscuridade pois o que se mostra a si mesmo se mostra tanto na claridade como na
obscuridade43 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30) Para explicitar essa posiccedilatildeo o autor
recorre agraves categorias aristoteacutelicas essenciais do ente em ato e do ente em potecircncia (ogravev
ἐντελέχεια ogravev δύναμις) A obscuridade torna-se tambeacutem positiva a partir da
compreensatildeo dessas categorias em relaccedilatildeo ao fenocircmeno pois o ser da obscuridade
consiste em ser claridade possiacutevel44 (HEIDEGGER (GA17)2006 p31)
A originalidade do ver em Aristoacuteteles se mostra em natildeo se deixar enganar pelo
fato de que para as coisas que somente a noite deixa ver natildeo haacute nenhum nome
que as compreenda todas () O que importa eacute somente que essas coisas existam
aiacute elas satildeo vistas e sobre a base de seu conteuacutedo quiditativo tecircm a pretensatildeo de
serem tomadas por existentes Mas que falte um nome para essas coisas mostra
contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia45
(HEIDEGGER (GA17) 2006p31)
42 ldquoLa perceptibilidad de las cosas estaacute bajo la condicioacuten de un determinado ser de este mundo mismo El
ser condicioacuten se refiere a un modo de ser del mundo mismo A la existencia en el mundo pertenece el ser
subsistente del Sol justamente lo que mentamos cuando afirmamos es de diacutea De esta forma hablamos de
un estado de cosas que pertenece al ser del mundo mismo De aquiacute se sigue que φαινόμενον no quiere decir
en primer lugar nada maacutes que un destacado modo de presencia del enterdquo Op cit p30
43 ldquoEl concepto de φαινόμενον no estaacute limitado a la presencia de las cosas durante el diacutea va maacutes allaacute y
designa todo lo que se muestra em siacute mismo tanto se muestra en la claridad como en la oscuridadrdquo Op
citp30
44 ldquoEl ser de la oscuridad consiste en ser claridade posiblerdquo Opcitp31 45 ldquoLa originaridad del ver en Aristoacuteteles se muestra en que no se deja enganatilder por el hecho de que para las
cosas que soacutelo la noche deja ver no hay ninguacuten nombre que las comprenda a todas (por tanto para las
lucieacuternagas etc) () Lo que le importa es soacutelo que esas cosas existen ahiacute se las ve y sobre la base de su
contenido quiditativo tienen la pretensiacuteon de ser tomadas por existentes Pero que falte um nombre para
esas cosas muestra com todo que nuestra lengua (teoria de las categorias) es uma lengua del diacuteardquo
Opcitp32
60
Para compreendermos o que Heidegger trata nessa passagem eacute fundamental
relembrar a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica que indica algo crucial agrave nossa investigaccedilatildeo o
significado natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua
mostraccedilatildeo Para Husserl a anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a
complexidade da vida intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel a partir
da anaacutelise das estruturas ideais que se apresentam na forma das expressotildees significativas
revestidas gramaticalmente Jaacute para Heidegger parece natildeo haver uma estabilidade
significativa ideal Em outras palavras e como vimos no toacutepico anterior as significaccedilotildees
vecircm ao encontro a partir de sua mostraccedilatildeo intencionadas em meio agrave compreensatildeo
hermenecircutica do mundo circundante por isso as estruturas ideais buscadas por Husserl
a partir da atividade intencional da consciecircncia devem ser revistas em funccedilatildeo da
possibilidade hermenecircutica do mundo circundante A veste gramatical das significaccedilotildees
natildeo pode subordinar o que vem ao encontro no dar-se originaacuterio do mundo quer em
funccedilatildeo de uma linguagem que almeja a cada vez fixar categorialmente o que se mostra
quer em funccedilatildeo de qualquer idealidade essencial pressuposta E assim para Heidegger o
conceito de loacutegos em Aristoacuteteles revela um sentido mais originaacuterio
Um λόγος existe pois quando o falar eacute falar com o mundo existente Ao dizer
forno [Ofen] natildeo falo a partir de uma existecircncia [Dasein] senatildeo que mas bem
me ponho fora da existecircncia [Dasein] do mundo concreto penso algo mas para
esse pensar natildeo desempenha nenhum papel que existam fornos [Oumlfen] ou natildeo
Falar eacute um ser com o mundo eacute algo originaacuterio e se daacute antes dos juiacutezos A partir
daqui se torna compreensiacutevel o juiacutezo Na loacutegica eacute comum considerar como juiacutezos
palavras como fogo () De modo algum o λόγος implica uma pluralidade de
palavras A palavra originaacuteria eacute um nomear mas natildeo eacute um nomear de um mero
nome mas bem o dirigir-se com a fala a algo que se encontra no mundo tal como
se encontra46(HEIDEGGER (GA17) 2006 p39)
46 ldquoUn λόγος existe pues cuando el hablar es um hablar con el mundo existente Al decir lsquohornorsquo no hablo
desde una existencia sino que maacutes bien me pongo fuera de la existencia del mundo concreto miento algo
pero para este mentar no desempentildea ninguacuten papel el que haya hornos o no Hablar es un ser con el mundo
es algo originaacuterio y se da antes que los juicios A partir de aquiacute se vuelve compreensible el juicio En la
loacutegica es tradiciacuteon considerar como juicios palabras como lsquofuegorsquo (De ninguna manera se establece con
ello soacutelo la existencia [Dasein] del fuego sino tambiacuteen que la gente debe saltar de la cama) Em modo
algun el λόγος implica una pluralidad de palabras La palabra originaria era un nombrar pero no el nombrar
de un mero nombre maacutes bien el dirigirse con el habla a algo que se encuentra en el mundo tal como se lo
encuentrardquo Op cit p39 A palavra Dasein nesse trecho ainda natildeo parece se referir ao homem como ldquoser-aiacuterdquo mas usada no
significado tradicional da liacutengua alematilde compreendida como ldquoexistecircnciardquo pois Heidegger nos fala da
ldquoexistecircnciardquo do lsquofornorsquordquo existecircnciardquo do lsquofogorsquo
61
O nomear originaacuterio do loacutegos natildeo eacute como a significaccedilatildeo expressa pela linguagem
que recolhe o ente sob determinado aspecto em seu εἶδος (Cf HEIDEGGER (GA17)
2006 p43) Loacutegos eacute loacutegos apofacircntico (λόγος αποφατικός) eacute o mostrar do fenocircmeno a
respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que se mostra como algo de maneira indiferenciada
natildeo determinada Assim o significado mediante o λόγος eacute caracterizado como existindo
O significado mediante o nome eacute um mero mencionar em sentido formal no λόγος o
significado eacute o mostrar o existente como existente47(HEIDEGGER (GA17) 2006p41)
Esse mostrar do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes
sempre em meio a um campo hermenecircutico e assim cada significado proacuteprio ou
determinado do ente que se mostra refere-se ao que significa em relaccedilotildees com os outros
entes relaccedilatildeo anterior a qualquer experiecircncia predicativa
O modelo tradicional da hermenecircutica como meacutetodo interpretativo vinculado agrave
filologia e ao formato da linguagem escrita se altera e torna-se com Heidegger a
investigaccedilatildeo acerca da proacutepria interpretaccedilatildeo da mostraccedilatildeo de todos os entes como uma
praacutetica viva que remete ao ser dos entes em seu aparecer como ente Hermes o
mensageiro dos deuses agora eacute mensageiro da situaccedilatildeo interpretativa na medida em que
o ser dos entes se mostra aos homens no interior de suas vivecircncias imediata A
interpretaccedilatildeo de algo eacute dada mediante a escuta cuidadosa da mensagem dinacircmica que se
realiza no diaacutelogo entre os homens natildeo eacute mais algo inerte fixo a ser encontrado O λόγος
na fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν E assim ao contraacuterio
da tradiccedilatildeo filosoacutefica que identificou o loacutegos como a expressatildeo ajuizante possiacutevel atraveacutes
da ratio (ou o dizer as modalidades dos entes atraveacutes de palavras e sequecircncia de palavras
organizando-as como sujeito e predicado no juiacutezo predicativo) Heidegger interpreta o
sentido originaacuterio de loacutegos apofacircntico como condiccedilatildeo de possibilidade para a
significaccedilatildeo Esse aspecto eacute assim descrito por Gadamer
Heidegger recorreu a uma etimologia para a palavra logos ela designa a seleccedilatildeo
posicionadorardquo () Loacutegos eacute realmente o posicionar seletivo legein significa
seleccedilatildeo selecionar conjuntamente reunir de tal modo que tudo se decirc como
bagos da videira reunidos e protegidos como a colheita O que eacute assim reunido
da seleccedilatildeo natildeo satildeo certamente apenas as palavras que formam a proposiccedilatildeo Cada
palavra ela mesma jaacute eacute de tal modo que nela muitas coisas satildeo reunidas - na
47ldquoLo significado mediante el λόγος es caracterizado como existiendo Lo significado mediante el nombre
es un mero mencionar el sentido formal en el λόγος lo significado es el mostrar lo existente como
existenterdquo Opcitp41
62
unidade do eidos como diraacute Platatildeo quando ele questiona o eidos com vista ao
logos (GADAMER 2012p528)
O sentido originaacuterio de loacutegos como loacutegos apofacircntico estaacute estritamente
relacionado com o sentido originaacuterio de fenocircmeno A tradiccedilatildeo latina traduziu loacutegos
interpretando-o como razatildeo juiacutezo conceito definiccedilatildeo ou proposiccedilatildeo Poreacutem em grego
logos natildeo significa primariamente juiacutezo entendido como modo de uniatildeo ou de tomada
de posiccedilatildeo seja pela aceitaccedilatildeo ou negaccedilatildeo Logos reporta-se agrave palavra legein tornar
manifesto aquilo de que se fala num discurso Por isso deixa que algo seja visto
comunicando a outro o que eacute manifestado e assim ldquoas posiccedilotildees individuais satildeo
penetradas pela tendecircncia a significar de um λέγειν assim que aspira a manifestar uma
determinada situaccedilatildeo objetiva Natildeo se chega ao λόγος se quiser comeccedilar com o mero
nomear A funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar48rdquo (HEIDEGGER (GA17)
2006 p43) Mas o que se manifesta O fenocircmeno (φαινόμενον) aquilo que se mostra a
si mesmo
A interpretaccedilatildeo da palavra φαινόμενον realizada por Heidegger no primeiro curso
proferido em Marburg indica inicialmente a existecircncia do mundo na medida em que ele
se mostrar a si mesmo49 como orientaccedilatildeo do horizonte temaacutetico da fenomenologia Em
1925 no curso Prolegocircmenos para uma histoacuteria ao conceito de tempo (GA20) o
esclarecimento do sentido originaacuterio do conceito de fenocircmeno seraacute elaborado conforme
o sentido encontrado tambeacutem em Ser e Tempo sect7 Φαινόμενον eacute o particiacutepio (forma
nominal do verbo) de φαίνεισθαι que como voz meacutedia50 significa mostrar-se e no
48 ldquoLas posiciones individuales estaacuten penetradas por la tendencia a significar de un λέγειν asiacute que aspira a
manifestar una determinada situacioacuten objetiva No se llega al λόγος si se quisiera comezar com el mero
nombrar La funcioacuten originaria de significaciacuteon es el manifestarrdquo Opcitp43
49 CfHeidegger (GA17) 2006p61
50 Um esclarecimento sobre a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito de
fenocircmeno por conseguinte da noccedilatildeo de fenomenologia Obviamente natildeo podemos aprofundar-nos nesse
complexo recurso gramatical que exigiria anos de estudos e profundo conhecimento da liacutengua helecircnica
Iremos apenas indicar sua especificidade A estrutura das vozes verbais na liacutengua portuguesa eacute constituiacuteda
de 3 possibilidades a ativa a passiva e a reflexiva Algumas Gramaacuteticas sugerem uma proximidade entre
a voz meacutedia grega e a voz reflexiva no portuguecircs contudo a voz meacutedia natildeo se esgota nessa comparaccedilatildeo
Seguimos a orientaccedilatildeo de Caio Vieira Reis de Camargo (2013) que em seu artigo reuacutene definiccedilotildees
importantes para os estudos linguiacutesticos contemporacircneos acerca da voz meacutedia
ldquoa) lsquoA voz meacutedia denota que o sujeito estaacute de alguma maneira especial envolvido ou interessado na accedilatildeo
do verborsquo (GILDERSLEEVE 1900 p64) b) lsquoVerbos () que tecircm posiccedilatildeo na esfera do Sujeito nos quais
o Sujeito todo parece participanteimplicadorsquo (BRUGMANNB 1903 p104) c) lsquoNa voz ativa os verbos
63
particiacutepio o que se mostra O aparecer o mostrar do fenocircmeno estaacute relacionado com a
raiz de φαίνω φῶς em portuguecircs luz claridade Assim ldquoos φαινόμενα configuram a
totalidade do que se mostra o que os gregos simplesmente identificaram tambeacutem com τὰ
ὄντα o ente51rdquo (HEIDEGGER (GA20)2006 p109) Podemos entatildeo dizer a totalidade
do que se mostra satildeo os fenocircmenos e se a funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar
o loacutegos da fenomenologia natildeo eacute o significado de um ou outro ente mas o manifestar do
ente o sentido de ser dos entes Fenomenologia em sentido formal eacute ldquofazer ver a partir
dele mesmo o que se mostra tal como ele por si mesmo se mostrardquo (HEIDEGGER (GA2)
2012 p119) e assim a fenomenologia caminha em direccedilatildeo agrave ontologia
No capiacutetulo anterior pudemos observar que para Husserl o que estava em jogo
como tarefa da fenomenologia era - a partir da unidade entre intuiccedilatildeo (atividade da
consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da consciecircncia e o
preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor a unidade
fenomenoloacutegica desses atos a saber apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo e
preenchimento de significaccedilatildeo Para Heidegger a intencionalidade fenomenoloacutegica agora
voltada para o sentido de ser dos entes revela que o fenocircmeno vem ao encontro natildeo em
funccedilatildeo da intencionalidade da consciecircncia onde poderia ser depurado na sua significaccedilatildeo
denotam um processo que se realiza a partir de um sujeito e sem ele na meacutedia que eacute a diaacutetesis a definir
por oposiccedilatildeo o verbo indica um processo em que o sujeito eacute o foco o sujeito estaacute no interior do processorsquo
(BENVENISTE 1966 p172) d) lsquoEm indo-europeu e em grego as desinecircncias meacutedias indicam que o
sujeito estaacute interessado de uma maneira pessoal no processorsquo (MEILLET 1937 p244) e) lsquoAs implicaccedilotildees
da meacutedia (quando em oposiccedilatildeo com a ativa) satildeo que a accedilatildeo ou estado afeta o sujeito do verbo ou seus
interessesrsquo (LYONS 1969 p373) Nessas definiccedilotildees a princiacutepio haacute dois empregos da meacutedia a meacutedia
reflexiva direta (especialmente a de Gildersleeve e Meillet voltadas para a questatildeo do interesse do sujeito
oracional) e a meacutedia reciacuteproca que envolve mais as construccedilotildees passivas e intransitivas da meacutedia
(ressaltada por Brugmann e Benveniste com a noccedilatildeo de que o sujeito todo participa e que estaacute interno ao
processo) A definiccedilatildeo de Meillet por outro lado eacute a mais comumente utilizada principalmente em
gramaacuteticas e meacutetodos de ensino do grego antigo atribuindo agrave media a noccedilatildeo de interesse por parte do
sujeito sendo que esse traccedilo embora existente em alguns casos natildeo eacute uacutenico e nem sempre tatildeo evidenterdquo
(pp 185-186)
Quando dissemos que entender a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito
de fenocircmeno pensamos nessa especificidade de algo que na accedilatildeo no verbo (existir manifestar) constitui a
si mesmo no interior do processo O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento como fenocircmeno
Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar
por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na
estabilidade de uma esfera para aleacutem do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua
manifestaccedilatildeo o sentido de sua proacutepria existecircncia
51 ldquoLos φαινόμενα configuran la totalidad de lo que se muestra a siacute mismo lo que los griegos simplemente
indetificaban tambieacuten con τὰ ὄντα lo enterdquoOpcit p109
64
Mas o loacutegos como manifestar-se do fenocircmeno em seu sentido originaacuterio como existente
eacute intencionado no es gibt originaacuterio na concretude do mundo que se daacute
Mas como eacute possiacutevel chegar ao acontecimento de ser do fenocircmeno sem a base de
uma consciecircncia em funccedilatildeo da qual o fenocircmeno pode ser depurado Os estudos da Sexta
Investigaccedilatildeo Loacutegica de Husserl ao distinguir intuiccedilatildeo sensiacutevel da categorial ofereceram
a Heidegger um acesso agrave compreensatildeo do sentido muacuteltiplo do ente Nas palavras do autor
ldquoQuando a partir de 1919 eu proacuteprio ensinando e aprendendo proacuteximo de
Husserl me exercitei na visatildeo fenomenoloacutegica e simultaneamente pus agrave prova
nos Seminaacuterios uma leitura de Aristoacuteteles diferente da habitual retomei o meu
interesse pelas Investigaccedilotildees Loacutegicas muito especialmente pela sexta da
primeira ediccedilatildeo A distinccedilatildeo ali elaborada entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial
revelou-se-me em todo o seu alcance como capaz de determinar lsquoo muacuteltiplo
sentido do entersquordquo (HEIDEGGER2009 p8)
Vejamos brevemente o ponto crucial dessa parte da VI investigaccedilatildeo a qual
Heidegger se refere A questatildeo central eacute ldquoTodas as partes e formas da significaccedilatildeo
correspondem tambeacutem partes e formas da percepccedilatildeo52rdquo (HUSSERL 1975 p106) Em
outras palavras nos enunciados da percepccedilatildeo ldquoUm S eacute Prdquo ldquoEste S eacute Prdquo ldquoTodo S eacute Prdquo
etc cada um de seus elementos (ldquoumrdquo ldquoSrdquo ldquoeacuterdquo ldquoPrdquo) possui significaccedilotildees que
preenchem a percepccedilatildeo Husserl responde negativamente somente S e P possuem
significaccedilatildeo que preenchem a percepccedilatildeo pois existe uma diferenccedila categorial absoluta
entre a forma expressiva e o material expresso E os enunciados da percepccedilatildeo chegam
somente aos elementos materiais que estatildeo presentes nos termos do enunciado
ldquoRepete-se a mesma distinccedilatildeo entre lsquomaterialrsquo e lsquoformarsquo naquilo que
consideramos unitariamente como um lsquotermorsquo Mas em todo enunciado de
percepccedilatildeo e tambeacutem naturalmente em todos os enunciados que exprimem uma
intuiccedilatildeo num certo sentido primaacuterio chegamos finalmente aos uacuteltimos elementos
ndash denominamos elementos materiais ndash que estatildeo presentes nos termos e que
preenchem diretamente na intuiccedilatildeo (percepccedilatildeo imaginaccedilatildeo etc) ao passo que
as formas complementares apesar de exigirem preenchimento enquanto formas
de significaccedilatildeo natildeo encontram diretamente na percepccedilatildeo e nos atos a ela
coordenados nada que jamais lhes possa ser conformerdquo(HUSSERL 1975p110)
52 Percepccedilatildeo aqui compreendida natildeo como mera percepccedilatildeo mas como atos fundados na percepccedilatildeo com
possibilidade objetiva
65
Husserl acompanha Kant na determinaccedilatildeo que ldquoser natildeo eacute um predicado realrdquo pois
a flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo -tanto na funccedilatildeo atributiva (sapato preto) quanto na forma
predicativa (Este sapato eacute preto) ndash natildeo se preenche atraveacutes de qualquer percepccedilatildeo Para
Husserl embora a proposiccedilatildeo kantiana ldquose refira ao ser existencial ao ser do
lsquoposicionamento absolutorsquo () eacute sempre possiacutevel entretanto aplicaacute-la ao ser predicativo
e atributivordquo (HUSSERL1975 p111) Se o ser natildeo eacute nada de aderente ao objeto natildeo eacute
uma caracteriacutestica real interna nem externa e ainda se ldquona esfera da percepccedilatildeo sensiacutevel
e assim compreendida e correlativamente na da intuiccedilatildeo sensiacutevel em geral () uma
significaccedilatildeo como a palavra ser natildeo encontra nenhum correlato objetivo possiacutevelrdquo
(HUSSERL1975 p112) entatildeo como ser vem agrave forma enunciativa Para Husserl o ser
soacute pode ser apreendido no julgar natildeo que ele seja obtido internamente a partir da reflexatildeo
mas no ato de julgar que correlato agrave intuiccedilatildeo do juiacutezo forma a unidade do juiacutezo evidente
Em outras palavras se o ldquo ser eacute fenomenologicamente interpretado como um modo
determinado do ser dadordquo ( ZAHAVI2015p47) a descriccedilatildeo de um fenocircmeno ou de um
estado de coisas em sua ligaccedilatildeo e unidade pelo juiacutezo vai aleacutem da intuiccedilatildeo sensiacutevel e eacute
preciso ampliar o conceito de intuiccedilatildeo considerando-a como uma intuiccedilatildeo categorial
pois ldquomesmo uma argumentaccedilatildeo teoacuterica ou uma anaacutelise conceitual pode ser considerada
como intuiccedilatildeo na medida em que ela nos traz agrave daccedilatildeo originaacuteria um estado de coisas um
traccedilo essencial ou uma demonstraccedilatildeo abstratardquo( ZAHAVI2015p55) Contudo esse
deslocamento do lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel o conduz a forma loacutegico sem revelar
de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno53
Portanto com o propoacutesito de elucidar a apariccedilatildeo originaacuteria de qualquer fenocircmeno
e junto com Aristoacuteteles Heidegger conclui que era Aleacutetheia desvelamento aquilo que
segundo Husserl consistia num ato da consciecircncia O ser natildeo eacute um predicado real se
abordado a cada vez como um ente Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar o ser como um
ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel e atributivo Ser
natildeo eacute um ente54 o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo com vistas agrave
53 Cf NUNES Benedito 2013 pp63-67 54 A diferenccedila ontoloacutegica eacute tomada tematicamente ou seja exposta explicitamente em 1927 em Os
problemas fundamentais da fenomenologia (GA24) Parte II Capiacutetulo I Mesmo de um modo natildeo temaacutetico
a diferenccedila entre ser e ente foi decisiva para a compreensatildeo da constituiccedilatildeo existencial do ser-aiacute nos escritos
anteriores sobretudo em Ser e Tempo Seguimos a leitura de LAFONT (1997) ldquoDo factum -central para a
abordagem de Ser e tempo - de que nossa relaccedilatildeo com o mundo estaacute mediada simbolicamente (o fato de
que lsquonos movemos sempre jaacute em uma compreensatildeo de serrsquo e que a realidade soacute eacute possiacutevel em uma
66
forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera para ldquoQual o
sentido de serrdquo E ao sentido do ser temos acesso pelo meacutetodo fenomenoloacutegico a partir
da situaccedilatildeo na qual o desvelamento dos entes acontece isto eacute no fenocircmeno da existecircncia
Como aponta Stein a apresentaccedilatildeo do conceito de fenomenologia em Ser e
Tempo eacute feita de maneira provisoacuteria no sect 7 e soacute ganha sua explicitaccedilatildeo na dinacircmica da
proacutepria anaacutelise do ldquoobjetordquo Mas tambeacutem como jaacute vimos aqui a especificidade e o fator
determinante do meacutetodo fenomenoloacutegico jaacute estatildeo em desenvolvimento na deacutecada de 20
Cito Stein
ldquoa descoberta que Heidegger fez que existe um primado da tendecircncia para o
encobrimento ()Ao inveacutes de pensar como Husserl e outros filoacutesofos que diante
de noacutes a realidade se estende agrave espera da rede de nossos recursos metodoloacutegicos
que a aprisionem Heidegger afirma que o homem e o essencial nas coisas tendem
para o disfarce ou estatildeo efetivamente encobertos Por isso volta-se para o comordquo
(STEIN 1971p16)
E o que se encobre de maneira excepcional natildeo eacute um ou outro ente mas o ser do
ente e ldquoa fenomenologia eacute o modo de acesso ao que deve se tornar tema da ontologia A
ontologia soacute eacute possiacutevel como fenomenologiardquo (HEIDEGGER (GA2) 2012 p 123)
Fenocircmeno loacutegos e aleacutetheia estatildeo numa imbricaccedilatildeo indissociaacutevel Stein (2001
p79) chega a dizer que a aleacutetheia esconde em si o meacutetodo fenomenoloacutegico e que o retorno
originaacuterio agrave palavra grega resume o pensamento de Heidegger Para nosso trabalho o
importante eacute compreender que a fenomenologia como meacutetodo para a ontologia encontra
no sentido originaacuterio de aleacutetheia a possibilidade de trazer agrave luz o que sustenta qualquer
presenccedila dos entes ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o que aponta para o velamento (lethe) que
ficou para traacutes que mostra para aquilo que a sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila
da aleacutetheia que se torna possiacutevel a objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito
pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89) Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em
sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao encontro em seu significado) no desvelamento
originaacuterio de seu ser mas essa mostraccedilatildeo dos fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira
compreensatildeo de serrsquo) deduz Heidegger a universalidade da lsquopreacute-estrutura do compreenderrsquo (Als-Struktur)
que constitui o nuacutecleo fundamental de sua transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia O instrumento
decisivo do ponto de vista metodoloacutegico que o permite obter este ponto de vista eacute a substituiccedilatildeo da
dicotomia empiacutericotranscendental - proacutepria da filosofia transcendental- pela lsquodiferenccedila ontoloacutegicarsquordquo p29
67
dissimulada sempre atraveacutes de uma objetificaccedilatildeo de seu ser como ente determinado pois
ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na medida em que partimos de seu
encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de descoberta perde seu sentido mais
efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Dessa forma ldquoa fenomenologia no sentido heideggeriano
eacute a desconstruccedilatildeo do evidente e em uma tal desconstruccedilatildeo interessa mostrar que o
evidente eacute em verdade uma modificaccedilatildeo do fenocircmeno lsquoserrsquordquo (FIGAL 2005p47) E aqui
a fenomenologia encontra a hermenecircutica em sua relaccedilatildeo mais radical pois essa
desconstruccedilatildeo do evidente parte do proacuteprio evidente a situaccedilatildeo faacutetica Pois ldquoo ser soacute
pode chegar entatildeo a ser visualizado se essas dissimulaccedilotildees forem comprovadas como
dissimulaccedilotildeesrdquo (FIGAL 2005p47) ou seja na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo faacutetica que
compreende previamente todos os entes
A atualizaccedilatildeo da filosofia antiga sob bases fenomenoloacutegicas eacute chamada de
ldquofenomenologia como repeticcedilatildeordquo55 O retorno ao pensamento de Aristoacuteteles e Platatildeo
realizado por Heidegger ldquonatildeo significa simplesmente acolher uma vez mais um
questionamento filosoacutefico herdado a fim de integraacute-lo no discurso de uma filosofia atualrdquo
e tambeacutem natildeo se trata de ldquoinserir uma filosofia atual em uma tradiccedilatildeordquo (FIGAL 2005
p32) Mas eacute consequecircncia da orientaccedilatildeo do trabalho heideggeriano de uma lsquofilosofia
cientiacuteficarsquo sem pressupostos O comeccedilo da filosofia eacute o questionamento em curso vivo
promovido pela proacutepria questatildeo e natildeo por sistemas externos agraves proacuteprias coisas A
pergunta pelo ser em Heidegger se torna temaacutetica na medida em que o desdobramento da
criacutetica imanente ao modelo husserliano conduz agrave pergunta fundamental inaugurada no
iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo
Se por um lado Heidegger pode ser associado agrave tradiccedilatildeo fenomenoloacutegica por
outro natildeo se pode esquecer a criacutetica imanente que ele fez agrave fenomenologia de Husserl e
que o conduziu a pensar a fenomenologia como meacutetodo a indicar o mundo a existecircncia
e a facticidade como campo de aparecimento dos proacuteprios fenocircmenos tornando portanto
a fenomenologia hermenecircutica Eacute nessa compreensatildeo da tarefa fenomenoloacutegica como o
modo de acesso ao que deve ser tornar tema da ontologia que Heidegger rejeita o
pressuposto husserliano da consciecircncia como correlato do aparecimento dos fenocircmenos
55 Cf Figal 2005 pp29-42 e STEIN 2001 p98
68
Ele o recusa natildeo somente pelo fato de as relaccedilotildees intencionais enquanto processos
mentais da consciecircncia se movimentarem pela pesquisa de conteuacutedos quididativos mas
tambeacutem e sobretudo pelo fato de
ldquoa consciecircncia apresentar em si mesma um contexto ontoloacutegico fechado Essa
ponderaccedilatildeo [a de que a consciecircncia parece natildeo precisar de qualquer objeto
exterior para existir] acaba por indicar a consciecircncia eacute absoluta em funccedilatildeo da
qual em geral a realidade pode se anunciarrdquo (HEIDEGGER Prolegomena zur
Geschichte p 144 apud FIGAL2005 p30)
Para Heidegger a fenomenologia transcendental de Husserl permanece ainda no
horizonte da modernidade Ao colocar o ldquomundo entre parecircntesesrdquo privilegiando a
experiecircncia da consciecircncia essa fenomenologia permaneceria incapaz de levar em conta
a realidade sem uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica e em uacuteltima instacircncia levar em conta as
vivecircncias concretas Heidegger natildeo abre matildeo da fenomenologia husserliana mas
radicaliza seu princiacutepio ldquode volta agraves coisas mesmasrdquo acentuando a tarefa pela existecircncia
e a partir da existecircncia dos fenocircmenos e no desvelamento buscar o sentido do ser de
todo e qualquer fenocircmeno
III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
Falamos haacute pouco de Heidegger repetir a filosofia antiga como um desdobramento
da proacutepria pesquisa filosoacutefica entendida como ciecircncia originaacuteria e como pergunta pelo
sentido de ser Em Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles Introduccedilatildeo agrave pesquisa
fenomenoloacutegica (GA61) Heidegger desenvolve esse aspecto e indica a problemaacutetica
central e radical a ser enfrentada a partir de Aristoacuteteles a saber ldquodesde de Aristoacuteteles se
manteacutem uma influecircncia taacutecita nas vias da visatildeo e da fala lsquoarticulaccedilotildeesrsquo loacutegicardquo
(HEIDEGGGER (GA61) 2011p11) Antes de entrarmos nessa problemaacutetica apontada
por Heidegger tentemos compreender o que o autor quis dizer com aquela afirmaccedilatildeo
Cito Puente (2001)
ldquoPara Aristoacuteteles foi precisamente a negaccedilatildeo do movimento que levou
Parmecircnides ao postulado da univocidade do ente e seraacute portanto a partir da
afirmaccedilatildeo irrestrita do movimento () que o Estagirita procuraraacute expandir os
horizontes do ente para aleacutem da mera dicotomia estabelecida por Parmecircnides
entre Ente e natildeo-enterdquo (p25)
69
Seguindo a leitura de Puente Aristoacuteteles encontrou a plurivocidade ao afirmar o
movimento no acircmbito dos entes Aleacutem disso como veremos nos desdobramentos a
seguir ele o fez submetendo o acircmbito ontoloacutegico ao acircmbito loacutegico Submissatildeo essa que
foi adotada por toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica que passou a entender a loacutegica como uacutenica via
de acesso agrave ontologia Pois a polivocidade categorial inserida no interior da
quadriparticcedilatildeo semacircntico-ontoloacutegica estaacute por sua vez submetida ao princiacutepio loacutegico de
natildeo contradiccedilatildeo Dito de outro modo as categorias aristoteacutelicas substacircncia
(οὐσία substantia) quantidade (ποσόν quantitas) qualidade (ποιόν qualitas) relaccedilatildeo
(πρός τι relatio) lugar (ποῦ ubi) tempo (ποτέ quando) estado (κεῖσθαι situs) haacutebito
(ἔχειν habere) accedilatildeo (ποιεῖν actio) e paixatildeo (πάσχειν passio) satildeo parte das quatro
possibilidades semacircnticas categoria acidente verdade atopotecircncia Reiterando as
possibilidades semacircnticas de dizer o ente estatildeo submetidas a um princiacutepio loacutegico
fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado ao princiacutepio de identidade
Soacute eacute possiacutevel desenvolver uma ontologia acerca dos entes naturais e sair da univocidade
ontoloacutegica de Parmecircnides se a semacircntica respeitar a impossibilidade loacutegica de uma
simultaneidade de atribuiccedilotildees contraacuterias a um ente ao mesmo tempo Os vaacuterios modos de
dizer o ser ldquoa refutaccedilatildeo confutatoacuteria agrave tese parmenidiana pode ser analisada entatildeo como
o desdobramento loacutegico do pressuposto de Parmecircnidesrdquo (PUENTES2001 p25)
Nesse sentido enfrentar a via loacutegica no interior da filosofia eacute enfrentar a tradiccedilatildeo
que compreendeu que a filosofia devia ser definida bem como seus objetos de forma
conceitual sob princiacutepios loacutegicos Em outras palavras superar a tentativa de dizer
previamente tanto o que a filosofia eacute quanto o que eacute seu objeto de investigaccedilatildeo E em
uacuteltima instacircncia superar a concepccedilatildeo tradicional metafiacutesica que compreende toda
ontologia condicionada agrave loacutegica pois ao ter acesso ao ente atraveacutes das categorias
arrasta a compreensatildeo da verdade agrave semacircntica extensional com lugar privilegiado na
proposiccedilatildeo reduzindo a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo56
56 Aqui eacute pertinente destacar uma consideraccedilatildeo de Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro no prefaacutecio agrave traduccedilatildeo do
texto de Aristoacuteteles As categorias (trad Fernando Coelho Florianoacutepolis Ed Da UFSC 2014 p 9-10)
ldquo A grande questatildeo realmente capaz de colocar a tradiccedilatildeo em xeque eacute a de saber se a compreensatildeo do real
pelas categorias ontoloacutegicas de substacircncia qualidade quantidade tempo lugar etc eacute o que eacute porque as
categorias gramaticais de substantivo e sujeito adjetivo e predicadoetcjaacute se instalaram de antematildeo e
predeterminaram o escopo daquela compreensatildeo ndash metafiacutesica como lsquofeacute na gramaacuteticarsquo como aponta
Nietzsche ndash ou se ao contraacuterio o limite da gramaacutetica ocidental para dizer o real eacute que eacute por ser preacute-limitada
por sua compreensatildeo metafiacutesicardquo
70
Para Heidegger a filosofia deve sempre voltar-se para a vida faacutetica e cabe agrave
definiccedilatildeo filosoacutefica tornar expliacutecita a interpelaccedilatildeo A filosofia natildeo eacute portanto um
conjunto de mateacuterias determinadas (loacutegica ontologia poliacutetica esteacutetica etc) No sentido
formal57 da definiccedilatildeo (determinar o objeto em seu ser-o-que-como [ was-wie-sein]) a
filosofia eacute indicativa (anzeigend) cujo princiacutepio possui um caraacuteter bem especiacutefico
identificar a visatildeo preacutevia Mas o que eacute essa visatildeo preacutevia
ldquoNatildeo haacute aqui como contornar a facticidade do mundo que eacute o nosso e isto natildeo
porque ela definiria a nossa postura em relaccedilatildeo agraves coisas e funcionaria como um
matiz de ordem espiritual em nossa ligaccedilatildeo com o todo mas porque ela perpassa
originariamente o horizonte mesmo a partir do qual os entes se mostram como os
entes que satildeo Esse horizonte possui aleacutem disso um caraacuteter histoacuterico
sedimentado Ele natildeo se determina de maneira loacutegico-transcendental () mas se
constroacutei historicamente a partir de decisotildees de pensamento que vatildeo
paulatinamente determinando que se mostra ou natildeo como dotado de sentidordquo
(CASANOVA 2009 p47)
Assim contra o pensamento imperante da tradiccedilatildeo
ldquoO que se denomina filosoacutefico assim como os termos de acordo com os quais
problemas considerados filosoacuteficos satildeo levantados natildeo nasce nunca de uma
anaacutelise puramente loacutegica Ao contraacuterio tanto a designaccedilatildeo de algo como
filosoacutefico quanto o modo de colocaccedilatildeo dos problemas filosoacuteficos em geral
depende de estruturas faacuteticas que foram sendo lentamente decididas no interior
da tradiccedilatildeo Se desconsiderarmos uma tal dependecircncia o que fazemos eacute
simplesmente assumi-las como oacutebvias () que impedem um tratamento
originaacuterio dos fenocircmenosrdquo (CASANOVA 2009 p 47)
Seguindo Escudero no proacutelogo escrito agrave sua traduccedilatildeo do Relatoacuterio Natorp (2002
p11) para atingir a realidade primaacuteria da vida faacutetica Heidegger nos anos 1920 se
movimenta em duas decisotildees A primeira decisatildeo metodoloacutegica eacute desdobrada em dois
momentos a) o primeiro desconstrutivo descerrar o intricado mapa conceitual da
filosofia e voltar-se ao fenocircmeno da vida b) e o segundo construtivo fazer uma anaacutelise
formal dos diversos modos de efetivaccedilatildeo da vida em seu processo de realizaccedilatildeo histoacuterica
E a segunda decisatildeo a anaacutelise das estruturas ontoloacutegicas da vida que corresponde agrave
hermenecircutica fenomenoloacutegica do ser-aiacute precisamente agrave pergunta pelo sentido do ser no
57 A loacutegica para Heidegger eacute formalista natildeo formal Diz-se formal em relaccedilatildeo agrave indicaccedilatildeo formalista em
relaccedilatildeo a operacionalidade dos elementos da loacutegica Cf HEIDEGGER 2011 p28
71
interior mesmo do acontecimento preacute-teoacuterico da cotidianidade do ser-aiacute para assim ter
acesso ao sentido do ser em geral
Portanto o meacutetodo fenomenoloacutegico como indicativo-formal eacute parte do processo
metodoloacutegico construtivo para o acesso agrave vida faacutetica como maneira de fazer vir ao
encontro os fenocircmenos sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica bem como a maneira de
desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos categoriais de definiccedilatildeo
O elemento decisivo eacute a experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica no como do
aparecer de qualquer objeto e na medida em que este possa ser definido ldquodevem ser
hauridas do modo como o objeto se torna acessiacutevel originariamenterdquo (HEIDEGGER
(GA61) 2011 p28) Com outras palavras qualquer significado compreendido como
indicativo-formal e a expressatildeo linguiacutestica desse conceito satildeo proposiccedilotildees caracterizadas
como indicaccedilotildees hermenecircuticas A terminologia filosoacutefica e seu questionar mais
originaacuterio devem a cada vez indicar o campo situacional histoacuterico de onde extraem seus
conceitos Nas palavras de Heidegger (GA61) ldquoo decisivo eacute o desdobramento radical e
claro de uma situaccedilatildeo hermenecircutica como temporalizaccedilatildeo da proacutepria problemaacutetica
filosoacuteficardquo (2011 p11) Portanto a interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do conhecimento58
para Heidegger exige uma modificaccedilatildeo a pergunta se transforma em ldquocomordquo eacute o
conhecimento ldquoComordquo as coisas vecircm ao encontro e natildeo mais uma definiccedilatildeo que
responderia agrave questatildeo com pretensatildeo atemporal ldquoo que eacute o conhecimentordquo ou ldquoo que eacute
este enterdquo
Por conseguinte os indicadores formais tecircm a funccedilatildeo de explicitar e natildeo de
explicar pois seu caraacuteter indicativo formal potildee em tela atraveacutes de um conceito
inicialmente vazio e sem caraacuteter determinador elementos da proacutepria facticidade
(Faktizitaumlt) para que a anaacutelise hermenecircutica possa compreendecirc-los no interior mesmo da
facticidade e dessa forma encontrar o lugar vivo de cada elemento na estrutura
ontoloacutegica da realidade Mas qual a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo
situacional sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica e que revele tanto a situaccedilatildeo
58 Aqui vemos o compromisso de Heidegger com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do
sentido do conhecimento diligecircncia herdada da fenomenologia Poreacutem agora submetida a abordagem
ontoloacutegica E nesse sentido a abordagem hermenecircutica de Heidegger revela o caraacuteter derivado (de uma
situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento
72
compreensiva quanto descontrua a evidecircncia de toda determinaccedilatildeo conceitual dos entes
revelando antes o seu aparecer como ente Eacute o tema de nosso proacuteximo toacutepico
III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger
Segundo Heidegger ldquoo decisivo na investigaccedilatildeo de Dilthey natildeo eacute a teoria da ciecircncia
da histoacuteria senatildeo a tendecircncia em colocar a realidade histoacuterica agrave vista para a partir dela
esclarecer de que modo e maneira eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo59rdquo (HEIDEGGER (GA20)
2006 p34) Contudo Dilthey se movimenta no marco do questionamento de sua eacutepoca
buscando atraveacutes da vivecircncia da consciecircncia trazer agrave vista a realidade e a validade das
ciecircncias histoacutericas pois busca a partir da vida psiacutequica do sujeito histoacuterico o fundamento
para a garantia da objetividade dos elementos histoacutericos
Ao apresentar o imperativo das ciecircncias naturais e sua apropriaccedilatildeo da noccedilatildeo de
fenocircmeno no final do seacuteculo XIX em Ontologia (Hermenecircutica da facticidade) (GA63)
Heidegger apontou que na tentativa de superaccedilatildeo da metodologia cientiacutefica natural
apesar de ter negado sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito Dilthey se movimentou a partir
dessa orientaccedilatildeo pois seu projeto consistiu em lanccedilar as bases teoacutericas em uacuteltima anaacutelise
com pretensatildeo cientiacutefica para a abordagem dos fenocircmenos histoacutericos
ldquoO trabalho da filosofia concentra-se cada vez mais na teoria da ciecircncia na loacutegica
em seu sentido mais amplo e justamente com a loacutegica na psicologia Ambas
tomam a orientaccedilatildeo da ciecircncia natural e em particular da teoria do
conhecimento que vendo-se realizada na ciecircncia natural o conhecimento
verdadeiro busca as condiccedilotildees de tal conhecimento na consciecircncia Pretende-se
fazer o mesmo com a ciecircncia do espiacuterito dando supostamente um passo adiante
na direccedilatildeo que Kant havia delineado Aqui se considera que a tarefa principal
consiste na demarcaccedilatildeo serviram aqui de criteacuterio a ciecircncia natural embora per
negationem [] Ateacute mesmo Dilthey o qual estaacute propriamente arraigado na
histoacuteria e na teologia caracterizava a ciecircncia do espiacuterito como lsquocriacutetica da razatildeo
histoacutericarsquo apoiando-se naturalmente na problemaacutetica kantianardquo (HEIDEGGER
(GA63) 2012 p76)
Como dissemos Dilthey busca uma epistemologia das ciecircncias humanas a partir
da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos E a vivecircncia particular da consciecircncia
59 ldquoLo decisivo em el planteamiento de Dilthey no es la teoriacutea de la ciencia de la historia sino la tendencia
a poner la realidad de lo histoacuterico a la vista para a partir de ello aclarar de queacute modo y manera es posible
la interpretaciacuteonrdquo Opcit p34
73
como vida conexa e estruturante eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu
projeto Mesmo que Dilthey natildeo recorra agrave noccedilatildeo kantiana de sujeito transcendental ainda
estaacute subordinado agrave necessidade de fundamentaccedilatildeo uacuteltima ndash obrigatoriedade do
pensamento cientiacutefico criacutetico - por isso parte dos dados da psicologia descritiva
acreditando que eles poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar para as ciecircncias
humanas Dito de outro modo ainda que Dilthey tenha se negado a aplicar a metodologia
das ciecircncias naturais agraves ciecircncias humanas natildeo escapou ao ideal cientiacutefico de sua eacutepoca e
sucumbiu ao enrijecimento tradicional da estrutura do conhecimento como fundamento
Contudo Dilthey deu uma grande contribuiccedilatildeo agrave filosofia de sua eacutepoca ao pocircr a
realidade histoacuterica agrave vista e ao propocirc-la como ponto de partida para a anaacutelise que visa
esclarecer de que modo eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo Afastado da estrutura do conhecimento
como fundamento Heidegger indica a anaacutelise hermenecircutica como a forma de apreensatildeo
da abertura originaacuteria de sentido na qual se encontra o ser-aiacute enquanto ser-no-mundo e
como a preacute-compreensatildeo de seu ser e de todo e qualquer ente Com poucas palavras a
hermenecircutica fenomenoloacutegica (ou intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica no interior da situaccedilatildeo
hermenecircutica) constitui a condiccedilatildeo de possibilidade de toda investigaccedilatildeo ontoloacutegica
Aqui o termo ldquosentidordquo natildeo significa definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo mas a manifestaccedilatildeo do
ente em seu ser ou seja no modo como aquilo pode vir ao encontro e se manter como
ente e em uacuteltima instacircncia manter-se em seu significado Assim a apreensatildeo filosoacutefica
dessa abertura de sentido primaacuteria deve ser alcanccedilada na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo de
compreensatildeo dos entes no modo como os entes vecircm ao encontro sem qualquer teoria
pela formaccedilatildeo da posiccedilatildeo preacutevia Eacute por isso que ldquoo decisivo para a configuraccedilatildeo de uma
posiccedilatildeo preacutevia eacute ver o ser-aiacute em sua cotidianidade A cotidianidade caracteriza a
temporalidade do ser-aiacute (concepccedilatildeo preacutevia) Eacute inerente agrave cotidianidade certa medianidade
do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER (GA63) 2012 p90)
Indicamos alguns termos que ainda natildeo foram devidamente esclarecidos como
ser-aiacute ser-no-mundo temporalidade Trataremos mais detidamente desses termos baacutesicos
para a compreensatildeo da filosofia de Heidegger no proacuteximo capiacutetulo a partir da obra
principal de nossa dissertaccedilatildeo No momento faremos apenas esclarecimentos breves para
que possamos prosseguir a nossa apresentaccedilatildeo
74
Na tentativa de desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos
categoriais de definiccedilatildeo (gecircnero e diferenccedila especiacutefica) e a fim de acessar a mostraccedilatildeo
originaacuteria do fenocircmeno Heidegger usa a expressatildeo ser-aiacute (Dasein) para caracterizar
aquele ente que noacutes mesmos somos e indicar sua negatividade categorial pois o ser-aiacute soacute
eacute a partir do seu aiacute de sua existecircncia (mundo faacutetico no qual eacute lanccedilado) sem qualquer
categoria preacutevia que o defina Ponderaccedilatildeo apresentada pelo autor
ldquoAo chamar de homem o ser-aiacute que iraacute investigar coloca-se jaacute de antematildeo dentro
de uma determinada concepccedilatildeo categorial visto que o exame eacute levado a cabo
seguindo a direccedilatildeo da definiccedilatildeo tradicional de lsquoanimal racionalersquo () Tendo tal
definiccedilatildeo como direccedilatildeo define-se a descriccedilatildeo numa perspectiva determinada
sem que com ela se recuperem ativamente os motivos originaacuterios de tal maneira
de ver as coisasrdquo (HEIDEGGER(GA63) 2012 p34)
Mas entatildeo o que significa dizer que o ser-aiacute se encontra enquanto ser-no-mundo
Ao indicar o ser-aiacute Heidegger jaacute aponta a sua constituiccedilatildeo fundamental como ser-no-
mundo Mundo natildeo eacute um ente natildeo eacute o conjunto de entes nem eacute qualquer espacialidade
geomeacutetrica Ser-no-mundo eacute o encontro originaacuterio com a proacutepria facticidade (Faktizitaumlt)
e todas as possibilidades lanccediladas nesse encontro primordial ou como jaacute dissemos a
abertura de sentido na qual se encontra o ser-aiacute primariamente em seu mundo circundante
ldquoSer-no-mundo natildeo quer dizer aparecer entre outras coisas significa poreacutem
ocupar-se no circundante do mundo que vem ao encontro demorar-se nele O
modo proacuteprio de ser mesmo num mundo eacute o cuidado (sorge) () A vida se deixa
atingir ou fala consigo mesma mundanamente no e pelo cuidadordquo (HEIDEGGER
(GA63)2012 p107)
Se Dilthey compreende a categoria do significado como mediadora entre a
vivecircncia da consciecircncia e a realidade histoacuterica para Heidegger a significacircncia eacute a
articulaccedilatildeo do proacuteprio mundo que natildeo vem ao encontro a partir da consciecircncia mas da
ocupaccedilatildeo jaacute orientada pela facticidade (Faktizitaumlt) ldquoA significacircncia eacute um como do ser e
nele centra-se precisamente o categorial do mundo do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER(GA63)
2012 p91) E assim a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo situacional
sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica se daacute a partir da ocupaccedilatildeo do ser-aiacute que estaacute no mundo
propriamente como cuidado Cuidado natildeo quer dizer cuidado de si mas a disposiccedilatildeo agraves
coisas e a si em seu ser estar voltado para o ser dos entes E no caso da imediatidade da
vida a intencionalidade praacutetica que orienta a ocupaccedilatildeo
75
Para Heidegger trazer a realidade histoacuterica agrave vista eacute apropriar-se da situaccedilatildeo
hermenecircutica ou seja conquistar o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se
encontra o fenocircmeno da vida considerando que ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto
apropriaccedilatildeo compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo
(HEIDEGGER(GA62) 2002 p30) Em outras palavras o passado se manifesta sob a
interpretaccedilatildeo e abertura compreensiva possiacutevel no presente E portanto a partir da
abertura que dispotildee o presente lanccedilando suas possibilidades a tarefa da filosofia eacute
apropriar-se dessa compreensatildeo tendo em vista que ela atravessa o ser-aiacute em seu caraacuteter
ontoloacutegico que pode abrir-se a compreensatildeo de ser dos entes Eacute a partir daiacute que
ldquoVem agrave tona o papel paradigmaacutetico da filosofia platocircnico-aristoteacutelica para
Heidegger Segundo o filoacutesofo o que tem lugar em Platatildeo e Aristoacuteteles natildeo eacute algo
que diz respeito apenas ao interesse acadecircmico particular de um grupo de eruditos
especializados em suas obras Natildeo eacute filologia que nos fornece uma primeira via
de acesso aos elementos centrais de suas diversas compreensotildees nem tampouco
a filosofia acadecircmica que nos propicia pela primeira vez uma visatildeo clara do perfil
propriamente dito de seus escritos geniais Ao contraacuterio Platatildeo e Aristoacuteteles satildeo
decisivos para a constituiccedilatildeo das estruturas preacutevias de nossa interpretaccedilatildeo dos
entes porque temos neles a origem de boa parte dos horizontes investigativos
posteriormente sedimentadosrdquo (CASANOVA 2009 p59)
Heidegger entatildeo busca em Aristoacuteteles o ponto de partida natildeo soacute para as
interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas enquanto repeticcedilatildeo da pergunta ontoloacutegica fundamental
como tambeacutem para a interpretaccedilatildeo do uacutenico ente capaz de compreender o sentido do ser
dos entes o ser-aiacute Natildeo sem questionar a leitura tradicional da obra de Aristoacuteteles
Heidegger retomou a importante ldquodoutrinardquo do estagirita a qual estabelecia uma relaccedilatildeo
entre a sabedoria praacutetica (φρόνησις) a sabedoria (σοφία) e a vida do homem e seu modo
de existecircncia (βιος) De modo mais claro
ldquoAteacute Heidegger era comum tratar a obra de Aristoacuteteles a partir de um primado
da filosofa teoacuterica em relaccedilatildeo agrave filosofia praacutetica um primado que havia sido
preparado pelo modo tradicional de leitura do estagirita Partindo da concepccedilatildeo
aristoteacutelica da vida teoacuterica (βίος θεωρητικός) como a vida mais plena possiacutevel e
da filosofia como uma ciecircncia que natildeo se ateacutem aos entes em geral nem tampouco
a um ente especiacutefico mas que tem por uacutenico objeto o ser enquanto ser a
interpretaccedilatildeo tradicional do corpus aristoteacutelico cindiu radicalmente o acircmbito
praacutetico do acircmbito teoacuterico definindo o segundo como o uacutenico acircmbito da verdade
propriamente dita Com isso o acircmbito praacutetico foi relegado a um segundo plano
ao plano daquilo que dizia respeito apenas agrave melhor forma mundana de vidardquo
(CASANOVA 2009 p64)
76
O que estaacute em questatildeo para Heidegger natildeo eacute apenas identificar o fato de que nos
encontramos numa determinada tradiccedilatildeo definida por um extrato do conhecimento
historiograacutefico mas compreender radicalmente como nos situamos nessa tradiccedilatildeo No
texto de 1922 Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da
situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) comumente chamado de Natorp-Bericht ou Relatoacuterio-
Natorp Heidegger tenta explicitar a situaccedilatildeo hermenecircutica atraveacutes do como (wie) de todo
aparecer dos entes e das possibilidades do ser-aiacute na vida faacutetica Sendo o ser-aiacute aquele que
compreende a si mesmo e os outros entes sem qualquer preacutevia teorizaccedilatildeo em seu
acontecimento compreensivo Para tanto eacute necessaacuterio esclarecer as condiccedilotildees de
compreensatildeo e interpretaccedilatildeo ou conquistar o horizonte de sentido jaacute aberto no qual jaacute se
encontra o fenocircmeno da vida As condiccedilotildees satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a
direccedilatildeo da visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a
lsquovisibilidadersquo (Sichtweite)60 Satildeo essas condiccedilotildees que compotildeem a compreensatildeo e a
interpretaccedilatildeo ontoloacutegicas-temporais do ser-aiacute em relaccedilatildeo agraves suas possibilidades de ser e
em relaccedilatildeo aos entes que lhe vem ao encontro Essas condiccedilotildees natildeo satildeo lsquobarreirasrsquo para
o entendimento ao contraacuterio satildeo condiccedilotildees de abertura primaacuteria para qualquer
compreensatildeo ontoloacutegica Tentando esclarecer em (1) temos o acircmbito da realidade dada
em uma preacutevia abertura temporal de sentido em (2) a direccedilatildeo que jaacute determinou algo
ldquocomo-algordquo (Als-was) e ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu
lugar significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de
toda possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o
como do aparecer dos entes em seu ser e as possibilidades de comportamentos do ser-aiacute
eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto (1) e jaacute
interpretado (2) e por isso pode mover-se com pretensotildees de objetividade e definiccedilatildeo dos
entes
Eacute a partir dessas consideraccedilotildees que Heidegger desconstroacutei as noccedilotildees de
Aristoacuteteles engessadas pela tradiccedilatildeo de noucircs phroacutenesis e sophiacutea natildeo mais como
conceitos definidos a partir da leitura tematicamente eacutetica do Estagirita mas a partir da
orientaccedilatildeo da biacuteos ou seja da vida do homem e seu modo de existecircncia faacutetica No interior
do Relatoacuterio-Natorp a partir da interpretaccedilatildeo do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco de
60 Cf HEIDEGGER(GA62)2002 p29
77
Aristoacuteteles Heidegger apresenta essas virtudes dianoeacuteticas como ldquodiferentes
modalidades que permitem levar a cabo uma autecircntica custoacutedia do ser na verdade61rdquo
(HEIDEGGER (GA62) 2002 p60) O que quer dizer que se trata dos modos pelos quais
o ser-aiacute protege o ser dos entes enquanto desvelado (ἀλήθεια)
Para Heidegger o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona
um lsquoaquirsquordquo62 (HEIDEGGER(GA62) 2002 p66) essa virtude proacutepria do homem ldquose
realiza como ενέργεια como atividade () ou seja o νους abre um horizonte que sempre
responde a um modo concreto de tratar com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma
execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma determinaccedilatildeo63rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002
p66) O noucircs compreendido tradicionalmente como intelecto racional eacute proacuteprio do
homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica (homem (animal [gecircnero] + racional [diferenccedila
especiacutefica]) mas porque o homem ou melhor o ser-aiacute eacute o ente que pode custodiar abrir-
se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um compreender que jaacute interpreta
os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto na vida faacutetica que acontece
fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da
solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato praacutetico com os entes Essa
orientaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel porque no noucircs ldquoo loacutegos o legein eacute o modo atraveacutes do qual se
realiza o noein e como tal eacute um como tal eacute um διανοείσθαι um inteligir que decompotildee
e que apreende64rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002 p65) Vimos (II) que o λόγος na
fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν de interpretaccedilatildeo e natildeo diz
respeito agrave definiccedilatildeo linguiacutestica de um ou outro ente mas previamente a qualquer
determinaccedilatildeo gramatical ou categorial refere-se ao que manteacutem o ente como existente
portanto desvelado e interpretado em seu lsquocomo-entersquo Assim a relaccedilatildeo fundamental da
phroacutenesis - que prescreve o como o para-que do ente (utensiacutelio) - ao ser-aiacute eacute o
61 ldquoLa interpretacioacuten de este tratado prescindiendo provisionalmiente de la problemaacutetica especiacuteficamente
eacutetica permite comprender que las laquovirtudes dianoeacuteticasraquo son diferentes modalidades que permiten llevar a
cabo uma auteacutentica custodia del ser en la verdaderdquo Opcitp60 62 ldquoEl νους ofrece en general una perspectiva da algoproporciona un lsquoaquiacutersquordquoOp cit p66
63 ldquoEl νοῦς que es ίδιος άνθρωπος se realiza concretamente como ενέργεια como actividad como su
propia actividad es decir el νοῦς abre un horizonte que siempre responde a un modo concreto de tratar
con el mundo a traveacutes de una opercioacuten de una ejecucioacuten de una manipulacioacuten de una determinacioacutenrdquo
Opcitp66
64 ldquoel λόγος el λέγειν es el modo em el que se realiza el νοεῖν y como tal es un διανοείσθαι un inteligir
que decompone lo que apreenderdquo Opcit p65
78
desvelamento do ente no instante do proacuteprio trato da proacutepria atividade praacutetica sem
qualquer mediaccedilatildeo teoacuterica com o ente
Mas as atividades praacuteticas satildeo realizadas natildeo com fim em si mesmas mas com
vistas agrave execuccedilatildeo de um fim mobilizado pelo proacuteprio ser-aiacute em sua vida cotidiana e faacutetica
Assim o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se encontra o fenocircmeno da vida
parte do instante mesmo que potildee ao alcance da vista circunspecta o modo de
comportamento apropriado com o ente com vistas agrave execuccedilatildeo de um fim Desse modo
ldquoO ser da vida eacute considerado como uma atividade que encontra em si mesmo seu
fim o ser da vida se encontra nessa atividade quando a vida humana chegou a
seu fim com respeito a sua possibilidade de movimento mais proacutepria a
possibilidade de inteligir puro Essa atividade eacute proacutepria da εξις [do modo de ser]
que se conhece como σοφία Conforme seu caraacutecter intencional o compreender
puro natildeo custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo
forma parte do horizonte intencional da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso
pode ser de outra maneira O ser da vida humana deve ser considerado
unicamente desde a perspectiva da temporalizaccedilatildeo pura da σοφία como tal e em
razatildeo da autecircntica atividade a sua disposiccedilatildeordquo65 (HEIDEGGER (GA62) 2002
p71)
Assim o sentido do ser soacute pode ser abordado atraveacutes do ser-aiacute pois a pergunta
pelo ser do ser-aiacute possibilita a pergunta pelo sentido do ser em geral natildeo por um
fundamento teoacuterico mas como uma condiccedilatildeo ontoloacutegica O ser-aiacute eacute o ente que pode abrir-
se ao desvelamento dos entes e o faz a partir da proacutepria vida faacutetica sem qualquer
teorizaccedilatildeo preacutevia o ser-aiacute mobiliza o ser dos entes em geral em funccedilatildeo da proacutepria vida
ou seja dos modos possiacuteveis de ser a partir de sua temporalidade
Desde as primeiras investigaccedilotildees de Heidegger na deacutecada de 1920 daacute-se uma
profunda transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia a qual consiste na tentativa de
mostrar como eacute possiacutevel articular filosoficamente uma ciecircncia originaacuteria da vida ou em
mostrar como se daacute a realidade antes de qualquer consideraccedilatildeo cientiacutefica ajuizante isso
65 ldquoEl ser de la vida es considerado como uma actividad que encuentra em siacute mesma su fin el ser da la vida
se encuentra em esta actividad cuando la vida humana haacute llegado a su fin com respecto a su posibilidad de
movimento maacutes propia la posibilidad del inteligir puro Esta actividad es propia de la εξις [del modo de
ser] que se conoce como σοφία Conforme a su caraacutecter intencional el comprender puro no custodia la vida
humana en el modo de su ser faacutectico la vida humana no forma parte del horizonte intencional de la σοφία
ya que es un ente que en cada caso puede ser de otra manera El ser de la vida humana debe considerarse
unicamente desde la perspectiva de la temporalizacioacuten pura de la σοφία como tal y en razoacuten de la auteacutentica
actividad a su disposicioacutenrdquo Opcitp71
79
quer dizer antes de qualquer concepccedilatildeo teoacuterica de mundo Nesse sentido vimos que a
intencionalidade fenomenoloacutegica eacute intuiccedilatildeo compreensiva ou intuiccedilatildeo hermenecircutica em
meio ao mundo circundante que vem ao encontro E as coisas que vecircm ao encontro natildeo
respondem primariamente ao tradicional esquema sujeito-objeto mas resultam
compreensiacuteveis a partir da pertenccedila preacutevia a um mundo jaacute articulado ou a partir de um
estado de coisas preacute-compreendido na vida faacutetica que articula toda e qualquer
compreensatildeo do homem (das coisas e de si mesmo) desde sua existecircncia imediata no
mundo Dito de outro modo revela-se como compreensatildeo ontoloacutegica
Ao decidirmos apresentar as preleccedilotildees de Heidegger que antecederam a obra central
para o nosso trabalho foi nosso intuito elucidar os princiacutepios que provavelmente
motivaram a problemaacutetica exposta em Ser e Tempo A partir de agora nossa tarefa seraacute a
de tentar compreender a partir da obra de 1927 como o fenocircmeno da linguagem aparece
no interior dessa compreensatildeo e em que medida a linguagem eacute possiacutevel por uma
estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Eacute a tentativa de nosso proacuteximo capiacutetulo
80
Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da
linguagem (Sprache) em Ser e Tempo
ldquoa maacutequina do mundo se entreabriu para quem de a romper jaacute se esquivava e soacute de o ter pensado se carpiardquo (A maacutequina do mundo Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
Nos capiacutetulos anteriores descrevemos como do desenvolvimento das ciecircncias
positivas particulares no final do seacuteculo XIX emergiu a discussatildeo acerca do sentido e da
possibilidade do conhecimento No interior desse contexto destacamos o pensamento de
Husserl de Dilthey e as linhas gerais de alguns neokantianos de Baden A partir daiacute
descrevemos como a criacutetica heideggeriana agrave filosofia dos valores dos neokantianos
conduziu-o ao que ele proacuteprio chamou de lsquoes gibtrsquo originaacuterio como o campo
hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Para compreender a questatildeo pelo
sentido do ser em geral ie a proacutepria ontologia para Heidegger era necessaacuterio esclarecer
que a fenomenologia natildeo estava fundada na epistemologia (a partir da consciecircncia) e que
a hermenecircutica natildeo era apenas um instrumento metodoloacutegico capaz de nos dar acesso agrave
histoacuteria em sua objetividade mas muito mais do que isso ela era intuiccedilatildeo compreensiva
e imediata do mundo Assim a partir da criacutetica imanente que Heidegger fez ao meacutetodo
fenomenoloacutegico husserliano foi possiacutevel compreender como ele reconduziu a filosofia agrave
pergunta fundamental inaugurada no iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo a
pergunta pelo ser Aleacutem disso como o pensador desenvolveu a hermenecircutica voltada agrave
facticidade da vida natildeo em funccedilatildeo das vivecircncias da consciecircncia dos sujeitos histoacutericos
mas das vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico Todo esse percurso foi necessaacuterio para que
pudeacutessemos conquistar um solo interpretativo capaz de sustentar a anaacutelise do fenocircmeno
da linguagem tal como aparece em Ser e Tempo E ainda alcanccedilar a pergunta pelo
81
sentido de ser Pois ela a pergunta estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura
de sentido que precisamos explicitar
Contra a tradicional abordagem do problema da linguagem que mais comumente
focalizou as obras de Heidegger apoacutes a viragem (die Kehre)66 ie os escritos a partir
da deacutecada de 1930 neste capiacutetulo defenderemos que o fenocircmeno da linguagem (Sprache)
jaacute desempenha um papel decisivo em Ser e Tempo e que ele soacute se torna possiacutevel a partir
de uma das estruturas preacutevias existenciaacuterias examinadas na citada obra e que eacute a
estrutura de mostraccedilatildeo dos entes Assim embora admitindo que a questatildeo da linguagem
ainda natildeo estivesse posta de modo expliacutecito ou temaacutetico nosso trabalho pretende chamar
atenccedilatildeo para a inegaacutevel funccedilatildeo que a linguagem cumpre jaacute na obra de 1927
No sect 18 de Ser e Tempo Heidegger afirma que a significatividade funda a
possibilidade de significaccedilotildees e estas a possibilidade da linguagem
Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez
familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o
Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como
lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutengua
(HEIDEGGER 2012p261)
66 Apoacutes a Kehre nos anos 1930 a questatildeo do sentido de ser eacute reconduzida agrave histoacuteria e verdade do seer Este
movimento estaacute diretamente relacionado com o limite mesmo da obra de 1927 pois o processo de
singularizaccedilatildeo do ser-aiacute conforme elaborado em Ser e Tempo parece natildeo ser suficiente para a
movimentaccedilatildeo do horizonte histoacuterico e de sua semacircntica fechada Essa insuficiecircncia eacute levada agraves uacuteltimas
consequecircncias a partir dos anos 1930 e radicalizada com uma viragem em direccedilatildeo ao campo dos
acontecimentos histoacutericos Em Ser e tempo a negatividade proacutepria ao ser-aiacute apontava para a possibilidade
de mobilidade histoacuterica a partir da assunccedilatildeo como singularizaccedilatildeo de sua proacutepria negatividade e de sua
responsabilidade mais proacutepria como ser-aiacute de decisatildeo quanto aos caminhos de sua proacutepria existecircncia Jaacute
apoacutes a viragem a negatividade se mostraraacute natildeo somente a partir do ser-aiacute mas tambeacutem no assentamento
de toda abertura histoacuterica compreensiva uma negatividade que se mostraraacute na ausecircncia mesma de
fundamentos absolutos Caberia ademais considerar um aprofundamento das estruturas fenomenoloacutegicas
mais fundamentais no decorrer do pensamento de Heidegger Seraacute que em Ser e Tempo podemos defender
que a abertura que sustenta o sentido de ser do ser-aiacute como cuidado e temporalidade (Zeitlichkeit) estaria
afinal assentada no tempo histoacuterico Questatildeo afinal expressa na uacuteltima linha de Ser e tempo ldquoO tempo
(Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Seria entatildeo possiacutevel
pensar esse aprofundamento do gesto fenomenoloacutegico como a busca do limite de qualquer
intencionalidade Dito de outro modo apoacutes a Kehre o ser enquanto Ereignis (acontecimento apropriador)
poderia ser compreendido como o acircmbito sempre fugidio de toda e qualquer intencionalidade mas ao
mesmo tempo acircmbito no qual unicamente toda e qualquer intencionalidade pode acontecer Revelar-se-ia
o sentido fenomenoloacutegico do que Heidegger chama de clareira (die Lichtung)
82
Na seacutetima ediccedilatildeo de Ser e Tempo publicada em 1953 numa nota muito
esclarecedora acrescentada justamente a esta passagem acima citada Heidegger
evidenciou a diferenccedila entre a sua concepccedilatildeo da linguagem nos anos 20 e aquela apoacutes a
viragem Essa nota apareceu nas obras completas publicadas a partir de 1977 e tambeacutem
na traduccedilatildeo brasileira aqui utilizada Nessa nota muito importante para o objetivo desta
pesquisa o autor corrigiu sua proacutepria afirmaccedilatildeo (1927) de que a linguagem era derivada
Em 1953 ele declarou categoricamente que natildeo era verdadeiro que ldquoDasein-que-entende
[pudessecc] abrir como interpretante algo assim como lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais
[fundariamcc] novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo E que ldquoa liacutengua natildeo eacute
um pavimento sobreposto a outro senatildeo que eacute o desdobrar-se originaacuterio da verdade como
[aiacute] (HEIDEGGER 2012p261 nota c) Essa correccedilatildeo nos daacute uma prova de que a
concepccedilatildeo de linguagem em Ser e Tempo possuiacutea uma estratificaccedilatildeo que natildeo mais eacute aceita
apoacutes os anos 30 Poreacutem como aponta Stein o fenocircmeno da linguagem jaacute desempenhava
um importante e inegaacutevel papel no interior do tratado de 1927
Heidegger liga o questionamento de sua obra prima ao problema da linguagem
Ela assume papel condutor na elaboraccedilatildeo de seu meacutetodo e na realizaccedilatildeo analiacutetica
existencial No meacutetodo fenomenoloacutegico como interpretaccedilatildeo ou hermenecircutica
universal como apossamento de tudo o que foi transmitido pela tradiccedilatildeo atraveacutes
da linguagem como destruiccedilatildeo e revolvimento do chatildeo linguiacutestico da metafiacutesica
ocidental se descobre um imenso projeto de analiacutetica da linguagem Mas como
o meacutetodo fenomenoloacutegico visa o redimensionamento da questatildeo do ser natildeo numa
abstrata teoria do ser nem numa pesquisa historiograacutefica de questotildees ontoloacutegicas
mas numa imediata proximidade com a praacutexis humana como existecircncia e
facticidade a linguagem - o sentido a significaccedilatildeo - natildeo eacute analisada nun sistema
fechado de referecircncias mas ao niacutevel da historicidade Se no meacutetodo dialeacutetico
podemos encontrar uma certa miacutestica teleo-loacutegica (teleacuteo-troacutepica) a palavra no
meacutetodo do positivismo uma certa tecno-loacutegica da linguagem encontramos no
meacutetodo fenomenoloacutegico de Heidegger uma certa onto-loacutegica do dizer isto eacute uma
compreensatildeo da dimensatildeo preacute-ontoloacutegica da linguagem ligada a explicitaccedilatildeo do
mundo como horizonte de transcendecircncia (STEIN1971 p14)
Ser e Tempo possui certo caraacuteter preparatoacuterio pois eacute a tentativa de reformulaccedilatildeo
da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido depende justamente daquela
reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo O objetivo do tratado
eacute nos proacuteprios termos de Ser e Tempo a elaboraccedilatildeo concreta da pergunta pelo sentido
de ldquoserrdquo (Sinn von Sein) (HEIDEGGER2012 p31) No interior da elaboraccedilatildeo da proacutepria
83
pergunta a abordagem fenomenoloacutegica-hermenecircutica como meacutetodo de acesso ao sentido
de ser de todo ente acaba por demonstrar que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as
coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um campo de signos referenciais fechados que
doam significado agraves coisas mas uma manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez
se faz presente na facticidade da existecircncia concreta Nossa tentativa no presente capiacutetulo
eacute compreender como a partir da reelaboraccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ser e de seu
desenvolvimento nessa obra a linguagem se mostra enquanto manifestaccedilatildeo uacuteltima de um
horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo previamente
articulada dos entes e das possibilidades do ser-aiacute E dessa maneira indicar como as
palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da
experiecircncia hermenecircutica Mas antes de iniciarmos nosso capiacutetulo eacute necessaacuterio fazer
algumas consideraccedilotildees que se tornaram agora possiacuteveis apoacutes o desenvolvimento dos
capiacutetulos anteriores e as quais balizam nossa investigaccedilatildeo central
Certamente a fenomenologia husserliana tambeacutem natildeo atribui agrave linguagem um
aspecto referencial de acesso agraves coisas ao contraacuterio a assim chamada visatildeo das essecircncias
eacute a maneira de depurar o conteuacutedo linguiacutestico do conteuacutedo significativo preacute-linguiacutestico
Nas palavras de Gadamer (2010 p8)
A eleiccedilatildeo do modelo da visatildeo como modo do procedimento fenomenoloacutegico
indica que coisa mesma eacute preacute-conceptual e preacute-linguiacutestica A linguagem permite
articular o sentido da coisa mesma que contudo eacute independente da linguagem Eacute
aliaacutes apenas neste quadro que o exerciacutecio da eacutepoche se torna compreensiacutevel A
epocheacute eacute o que torna possiacutevel a reduccedilatildeo ao estado absolutamente desprovido de
preconceitos Mas o que eacute que torna a epocheacute possiacutevel A epocheacute eacute considerada
por Husserl como uma possibilidade de princiacutepio e como uma possibilidade
universal Mas esta possibilidade pressupotildee que se possa passar de uma plano
predicativo ndasho da linguagem ndash para um plano ante-predicativo - o da pura visatildeo
[] Por outro lado aquilo que se daacute de uma forma originaacuteria e na sua pureza daacute-
se como presenccedila absoluta numa figuraccedilatildeo atemporal Os fenoacutemenos no sentido
husserliano caracterizam-se por serem dados agrave consciecircncia de uma forma
absolutamente evidente e uacuteltima o fenoacutemeno eacute absoluta presenccedila a sua doaccedilatildeo
eacute plena
Husserl busca avanccedilar ateacute um plano imediato da experiecircncia que anteceda agrave
interpretaccedilatildeo como experiecircncia preacute-linguiacutestica a partir de intenccedilotildees linguiacutesticas Assim
busca na intencionalidade do fenocircmeno um estado desprovido de preconceito (epocheacute)
Heidegger alia-se a Husserl contra a tese de que o sentido ou o significado sejam
84
linguiacutesticos Contudo para o autor de Ser e Tempo toda experiecircncia jaacute inclui uma
interpretaccedilatildeo certamente natildeo linguiacutestica mas hermenecircutica e fundamentalmente praacutetica
Dessa forma intencionar um fenocircmeno a partir de um horizonte histoacuterico hermenecircutico eacute
considerar e apropriar-se do significado oferecido pelas condiccedilotildees preacutevias e em uacuteltima
anaacutelise por uma semacircntica sedimentada Dito de outro modo para Husserl a expressatildeo
linguiacutestica eacute a maneira de o pensamento intencionar significaccedilatildeo e a orientaccedilatildeo da
pesquisa pela condiccedilatildeo e possibilidade do conhecimento suspende todo posicionamento
ontoloacutegico da coisa mesma em prol do acesso epistemoloacutegico objetivo aos fenocircmenos Jaacute
na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto ontoloacutegico do
conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e qualquer significado
que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido que eacute tambeacutem histoacuterico e no qual
algo pode manter-se em seu significado Eacute nessa perspectiva que nos colocamos em busca
da estrutura ontoloacutegica da linguagem
Portanto eacute importante ter em vista que para Heidegger
(1) a experiecircncia hermenecircutica traz a significatividade (Bedeutsamkeit) que potildee a
descoberto todo e qualquer ente E na medida em que essa experiecircncia orienta o ponto
de partida da intencionalidade67 ela desvela o ente em seu ser o qual (ente) aparece
como algo No entanto essa significatividade se manteacutem em virtude de uma dupla
67 O termo ldquoDaseinrdquo eacute utilizado por Heidegger para afastar qualquer compreensatildeo de homem como
ldquosujeitordquo ldquoconsciecircnciardquo ldquoanimal racionalrdquo etc Desse modo poder-se-ia pensar que uma vez afastadas
essas interpretaccedilotildees tambeacutem o termo lsquointencionalidadersquo deveria ser desconsiderado pois a fenomenologia
husserliana o utiliza como ato de consciecircncia Natildeo eacute o caso Heidegger ainda manteacutem a orientaccedilatildeo
fenomenoloacutegica poreacutem a desloca da consciecircncia para a abertura compreensiva sendo ser-aiacutemundo a
relaccedilatildeo intencional primaacuteria e ainda essa compreensatildeo eacute fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo
circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser Ou sejavisatildeo natildeo teoacuterica
sem a primazia da consciecircncia A intencionalidade eacute pensada portanto natildeo como ato de consciecircncia mas
abertura compreensiva mobilizada por toda e qualquer performatizaccedilatildeo existencial Em Ser e Tempo o
termo lsquointencionalidadersquo e seus derivados aparecem apenas 4 vezes em 2 momentos 1) No sect10 ldquoAgrave essecircncia
da pessoa pertence o existir somente na execuccedilatildeo dos atos intencionais [intentionalen] e assim ela por
essecircncia natildeo eacute objeto () Em todo caso a pessoa eacute dada enquanto executora de atos intencionais
[intentionaler]ligados pela unidade de um sentidordquo (2012 p155) 2) No sect69 nota 10 ldquoA anaacutelise
intencional [intentionalen] da percepccedilatildeo e da intuiccedilatildeo em geral deveria sugerir essa caracterizaccedilatildeo
lsquotemporalrsquo do fenocircmeno Que e como a intencionalidade [Intentionalitaumlt] da lsquoconsciecircnciarsquo se funda na
temporalidade estaacutetica do Dasein ()rdquo Essa uacuteltima passagem eacute decisiva A intencionalidade eacute portanto
mantida por Heidegger mas deve ser compreendida em funccedilatildeo do sentido de ser do ser-aiacute a temporalidade
que abre compreensivamente o ser dos entes em geral Cf tambeacutem nota 70
85
abertura de sentido (Sinn) a abertura de mundo em funccedilatildeo do ser-aiacute e o sentido de ser
do ser-aiacute em funccedilatildeo da temporalidade de sua existecircncia
(2) a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados
(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Entatildeo o significado pode
vir a ganhar sua expressatildeo e forma predicativas a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo
(Aussage) em sua ligaccedilatildeo derivativa da interpretaccedilatildeo (Auslegung) Apresentando dessa
maneira o caraacuteter originaacuterio da verdade enquanto desvelamento (Aleacutetheia) e natildeo como
aderente ao juiacutezo proposicional como compreendeu a tradiccedilatildeo Eacute assim que se daacute
primariamente o acesso ao fenocircmeno da linguagem em seu sentido ontoloacutegico
Podemos antecipar aqui o que seraacute desenvolvido nesse capiacutetulo a linguagem estaacute
assentada em duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado68 que
revelam a diferenccedila entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm
articulados pela imbricaccedilatildeo radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno
Finalmente pedindo a paciecircncia do nosso leitor antes de comeccedilarmos o capiacutetulo
III vamos repetir um pouco o que jaacute foi adquirido nos dois primeiros capiacutetulos da
Dissertaccedilatildeo quando tentamos mostrar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger no
interior da fenomenologia (a partir de sua criacutetica imanente e radicalizaccedilatildeo do gesto
fenomenoloacutegico) foi decisiva para a virada da questatildeo compreendida como possibilidade
de acesso pelo sentido do conhecimento ao sentido do ser Agora a partir de Ser e Tempo
eacute possiacutevel considerar que houve um aprofundamento desse gesto fenomenoloacutegico Por
outra teria ocorrido um aprofundamento ou uma radicalizaccedilatildeo das estruturas
fenomenoloacutegicas De modo mais claro eacute possiacutevel compreender o percurso heideggeriano
como uma tentativa de lanccedilar a intencionalidade enquanto essecircncia mesma da
68 Diferentemente de VIGO (2012 p71) que considera 3 estruturas compreensatildeo (Verstehen) -
interpretaccedilatildeo (Auslegung) e enunciado (Aussage) noacutes consideraremos apenas duas tendo em vista que
julgamos natildeo ser a compreensatildeo uma estrutura autocircnoma e que portanto ela natildeo deve ser separada da
interpretaccedilatildeo Seguimos a letra do sect32 de Ser e Tempo ldquoNa interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo
diverso mas torna-se ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p421) Pensamos que conceder autonomia agrave
compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido primaacuterio ao natildeo remetecirc-la ao Dasein quem
compreendendo jaacute interpreta e custodia o sentido de ser dos entes jaacute estariacuteamos no campo dos
acontecimentos histoacutericos Portanto estariacuteamos ultrapassando os limites de Ser e Tempo ou mais
especificamente falando os limites da ldquoAnaliacutetica Existencialrdquo
86
fenomenologia num acircmbito fundamental que se abriria a toda e qualquer possibilidade
de intencionalidade Vejamos essas questotildees mais detidamente
Como jaacute indicado tanto em Heidegger como em Husserl existe um primado da
experiecircncia antepredicativa em detrimento da predicaccedilatildeo ou da experiecircncia
predicativamente articulada69 Jaacute na preleccedilatildeo de 1919 Heidegger apontava o lsquoes gibtrsquo
originaacuterio ou a concretude do mundo que se daacute como acircmbito fundamental no qual se abre
a possibilidade de intencionalidade Depois dela as preleccedilotildees dos anos 1920 passaram a
descrever a intencionalidade como uma noccedilatildeo praacutetica orientada pela ocupaccedilatildeo e com base
nisso descreveram a experiecircncia antepredicativa e histoacuterica do significado Mas foi
somente em Ser e Tempo que Heidegger elaborou uma ontologia fundamental a partir da
analiacutetica existenciaacuteria70 do ser-aiacute A ontologia fundamental eacute descrita como a necessidade
de pocircr em questatildeo o ente em que a compreensatildeo de ser enquanto questatildeo eacute possiacutevel ou
como expresso no Relatoacuterio Natorp o ente que pode custodiar abrir-se ao desvelamento
do ser dos entes Mas o que isso significa sob uma perspectiva fenomenoloacutegica
A descriccedilatildeo do ser-aiacute como existecircncia projetiva assentada em sua negatividade
proacutepria (negatividade entendida pelo fato de que o ser-aiacute soacute eacute a partir do seu aiacute de sua
69 Nesse sentido conferir tambeacutem VIGO 2012 p75 70 Na traduccedilatildeo de Ser e Tempo utilizada os termos Existenzial e Existenzielle satildeo traduzidos por
ldquoexistenciaacuteriordquo e ldquoexistencialrdquo respectivamente A diferenccedila foi estabelecida por Heidegger para marcar a
determinaccedilatildeo constitutiva da existecircncia (ou sua estrutura) cuja determinaccedilatildeo cabe agrave ontologia
(existenciaacuterio) da determinaccedilatildeo existencial (existencial) que trata de um assunto ocircntico do Dasein ou de
um conhecimento que conduz a si mesmo (HEIDEGGER 2012 sect4-9)
Apesar da consulta a outras traduccedilotildees (francesa de Emmanuel Martineau e espanhola de Jorge Rivera)
usaremos os termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho Em alguns momentos aleacutem da
traduccedilatildeo de Castilho que eacute bastante recente (2012) tambeacutem citaremos as palavras da traduccedilatildeo brasileira
anterior (com exceccedilatildeo da traduccedilatildeo de lsquoDaseinrsquo como lsquopresenccedilarsquo que natildeo seraacute utilizada nesse trabalho)
Acerca dos termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho haveraacute apenas duas exceccedilotildees a
primeira refere-se ao uso da palavra lsquoDaseinrsquo a qual Castilho Rivera e Martineau mantiveram no original
alematildeo obedecendo uma sugestatildeo do proacuteprio Heidegger Ser-aiacute eacute a traduccedilatildeo portuguesa do termo alematildeo
Dasein que no uso comum na liacutengua alematilde eacute usado como sinocircnimo para existecircncia mas que no texto
heideggeriano tem um significado peculiar tornando a traduccedilatildeo do termo problemaacutetica Em uma carta de
Heidegger a Jean Beaufret datada de 23 de Novembro de 1945 o autor daacute a seguinte informaccedilatildeo ldquolsquoDa-
sein eacute uma palavra-chave do meu pensar por isso ela eacute causa de graves erros de interpretaccedilatildeo natildeo significa
para mim exatamente eis-me mas se eacute que me posso exprimir num francecircs sem duacutevida impossiacutevel ser-
o-aiacute e o-laacute significa exatamente Aleacutetheia desvelamento-aberturardquo (Carta sobre o humanismo Martin
Heidegger - 2 ed rev Traduccedilatildeo de Rubens Eduardo Frias Satildeo Paulo Centauro ndash 2005 p 89) Algumas
vezes infieacuteis a Castilho e ao proacuteprio Heidegger utilizaremos tambeacutem a sua traduccedilatildeo ldquoser-aiacuterdquo para maior
fluidez do texto A segunda exceccedilatildeo refere-se agraves citaccedilotildees cuja opccedilatildeo por traduccedilotildees tradicionais resolvemos
natildeo alterar
87
existecircncia) sem qualquer categoria preacutevia que o defina potildee em tela que esse ente eacute
marcado pelo caraacuteter de poder-ser orientando-se segundo possibilidades existenciais que
natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas somente na morte como fim de todas as
possibilidades Isso se daacute porque o ser-aiacute eacute o limite fundamental no qual se abre a
possibilidade de intencionalidade ou o sentido do experimentado enquanto
experimentado71 ldquoSoacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a abertura do ser-no-
mundo lsquopode ser preenchidarsquo pelo ente que nele pode ser descobertordquo (HEIDEGGER
2012 p429) De outro modo se para Husserl a noccedilatildeo de intencionalidade faz com que a
cada vez que o pensamento se volte agrave consciecircncia ela descortina sua direccedilatildeo em relaccedilatildeo
ao fenocircmeno Para Heidegger poreacutem uma vez superada a primazia da consciecircncia a
cada vez que o pensamento se volta ao Dasein ele descortina sua direccedilatildeo ao mundo
fenocircmeno originaacuterio em que os entes podem vir ao encontro em seu ser bem como as
possibilidades de ser do proacuteprio Dasein
A ontologia fundamental aparece em sua necessidade porque o ser-aiacute mesmo natildeo
pode ser intencionado significativamente natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente
e por isso seu caraacuteter de poder-ser por isso ele poder mobilizar sentidos e atualizar
significaccedilotildees Assim o ser-aiacute eacute o ente que custodia e compreende o ser do ente jaacute em suas
atividades praacuteticas ou seja ele mobiliza a intencionalidade mas eacute o ente que a
intencionalidade natildeo pode alcanccedilar Na tentativa de apreendecirc-lo em seu ser a anaacutelise
conduz para fora para seu ldquoaiacuterdquo Assim Dasein eacute ser-aiacute eacute existecircncia que se projeta
lanccedilada no ldquoaiacuterdquo histoacuterico O Dasein como apresentado por Heidegger ldquoenvolve uma
dimensatildeo de ser (-sein) e por outro uma dimensatildeo locativa um aiacute (Da-)rdquo (CASANOVA
2006 p12) e isto deve-se ao fato que ldquoapenas ele [Dasein] se acha no ponto de
imbricaccedilatildeo de ser e mundordquo (CASANOVA 2006 p12)
71 Cf HEIDEGGER (GA62) 2002 p 71 ldquoConforme seu caraacutecter intencional o compreender puro natildeo
custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo forma parte do horizonte intencional
da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso pode ser de outra maneirardquo ldquoDas reine Verstehen bringt
nicht etwa nach seinem intentionalen Charakter das menschliche Leben im Wie seines faktischen Seins in
Verwahrung die σοφία hat es uumlberhaupt nicht zu ihrem intentionalen Worauf es ist ja ein Seiendes das ist
gerade dadurch daszlig es je anders sein kannrdquo (HEIDEGGER GA62 [pp385-386] grifo nosso)
88
Dessa forma a pergunta pelo sentido do ser seraacute elaborada conforme os trecircs
momentos constitutivos da questatildeo descritos no sect2 de Ser e Tempo
1- O perguntando ou aquilo de que se pergunta ser do ente
2- O interrogado ou aquilo a quequem se pergunta Dasein
3- O perguntado ou aquilo que se pergunta sentido do ser em geral
A pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2) perguntando
sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma ontologia
fundamental Isso esclarecido podemos iniciar propriamente nosso capiacutetulo e tema
central de nosso trabalho
I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado)
Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico
II A dupla abertura de sentido (Sinn)
Conforme descrito no sect9 de Ser e Tempo o ser-aiacute eacute o ente que a cada vez somos
(eu tu etc) ou seja a particular existecircncia finita e histoacuterica natildeo um conceito geneacuterico
em que as diferenccedilas especiacuteficas apareceriam na experiecircncia sensiacutevel Para esse ente ldquoo
ser ele mesmo eacute o que estaacute a cada vez em jogordquo (HEIDEGGER 2012 p139) Existir e
ser responsaacutevel pelo seu ser eacute o mesmo No que existe o ser-aiacute tem-que-ser (Zu-sein) a
ele natildeo eacute facultado a escolha de haver ou natildeo com seu ser uma vez sendo ele eacute e sendo
ele ldquose comporta em relaccedilatildeo ao seu ser como em realizaccedilatildeo de sua possibilidade mais
proacutepria O Dasein eacute cada vez sua possibilidade (Moglichkeit)rdquo (HEIDEGGER 2012
p141)
Por meio de toda e qualquer performatizaccedilatildeo (com relaccedilatildeo a si mesmo em relaccedilatildeo
aos outros e em relaccedilatildeo aos entes) o ser-aiacute enssencializa a si mesmo como existecircncia E
89
no que se enssencia (como existecircncia e natildeo categorialmente) o seu ser mesmo estaacute em
jogo pois eacute por essa determinaccedilatildeo ontoloacutegica negativa que o ser-aiacute pode conquistar seu
poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees cotidianas
Assim o desenvolvimento da analiacutetica existenciaacuteria aponta para a compreensatildeo do
sentido formal72 da constituiccedilatildeo da existecircncia do ser-aiacute ldquoO Dasein se determina cada vez
como ente a partir de uma possibilidade que ele eacute e que ao mesmo tempo e de alguma
maneira ele entende em seu serrdquo (HEIDEGGER 2012 p 143)
As orientaccedilotildees cotidianas ou a cotidianidade mediana ndash em que o ser-aiacute pode
perder-se no poder-ser improacuteprio - natildeo deve ser considerada pejorativamente como algo
a ser extirpado da existecircncia e da analiacutetica Ao contraacuterio em realidade natildeo pode A
impropriedade oferecida por essas orientaccedilotildees eacute em suma a maneira inicial em que o ser-
aiacute - como ser-no-mundo como ente lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ndash estaacute aberto para seus
possiacuteveis modos de ser Dessa forma a anaacutelise da cotidianidade tem um caraacuteter
fenomecircnico positivo para a analiacutetica existenciaacuteria pois eacute a partir desse modo de ser
improacuteprio que o ser-aiacute eacute lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria
das vezes Portanto natildeo eacute apenas lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade
A analiacutetica existenciaacuteria inicia entatildeo sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio E se
dissemos haacute pouco eacute que por meio da performatizaccedilatildeo que o ser-aiacute enssencia a si mesmo
como existecircncia e essa orientaccedilatildeo para qualquer performance natildeo eacute ilimitada Como as
possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha para um ato de vontade
do ser-aiacute mas satildeo mobilizadas na e pela existecircncia radicalmente histoacuterica o ser-aiacute pela
abertura primaacuteria remetido ao mundo eacute marcado pelo caraacuteter de poder-ser (Seinkonnen)
mas em funccedilatildeo de sua realizaccedilatildeo como possibilidade (Moglichkeit) De modo mais claro
ldquopor natildeo possuir nenhuma quididade [o ser-aiacute cc] eacute a realidade da possibilidade para a
possibilidade () Natildeo podendo ser puro poder-ser pois se assim o fosse o ser-aiacute jaacute seria
algo positivamente definidordquo (CABRAL 2015 p79) Dessa forma o ser-aiacute que a cada
vez deve conquistar o seu ser na radicalidade de sua finitude e historicidade eacute o ente que
pode pela sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica mobilizar sentido E por isso mobilizar na
72 Quando nos referirmos a ldquosentido formalrdquo no decorrer de nosso trabalho Cf Capiacutetulo II- Item III-
Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
90
concretude da vida faacutetica o sentido de ser dos entes os sentidos das relaccedilatildeo aos outros e
sentido de seu ser
ldquoO desvelamento do ser exige sempre um ponto de partida ocircntico Mas o ser-aiacute
eacute privilegiado e ontologicamente ocircntico por causa de sua preacutevia compreensatildeo de
ser Entatildeo o desvelamento do ser deveraacute ser tentado primordialmente a partir do
ser-aiacute mediante uma analiacutetica existencial de suas estruturas O sentido do ser
(preocupaccedilatildeo) dessas estruturas do ser-aiacute eacute a temporalidade Assim a analiacutetica das
estruturas deveraacute ser refeita no homem na temporalidaderdquo (STEIN 2001 p204)
A preacutevia compreensatildeo de ser do ser-aiacute sua negatividade quiditativa seu caraacuteter
de poder-ser e sua constituiccedilatildeo aberta lanccedilada e remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo eacute dada
como acontecimento compreensivo A compreensatildeo ou o entender (Verstehen) eacute uma
das estruturas existenciaacuterias desse ente ocircntico-ontoloacutegico73 e ldquoao interpretaacute-lo como
existenciaacuterio fundamental mostra-se que esse fenocircmeno eacute assim concebido como modus
fundamental do ser do Daseinrdquo (HEIDEGGER 2012 p407) Esse existenciaacuterio
fundamental natildeo refere a uma capacidade entre outras do ser-aiacute de apropriar-se de algo
pelo entendimento intelectivo natildeo eacute uma relaccedilatildeo entre sujeito-objeto mas a constituiccedilatildeo
fundamental do ser-aiacute como ser-no-mundo como relaccedilatildeo intencional primaacuteria e desse
modo o horizonte compreensivo do ser-aiacute com seu ser ldquoO ser-aiacute possui uma relaccedilatildeo
compreensiva com o seu ser porque eacute somente por meio da compreensatildeo que ele encontra
o campo de jogo no interior do qual pode conquistar esse seu serrdquo(CASANOVA 2006
p 13) O ldquoDardquo ou ldquoaiacuterdquo do Dasein e sua estrutura fundamental ser-no-mundo podem ser
esclarecidos em contraponto a concepccedilatildeo paradigmaacutetica da epistemologia moderna de
Kant por exemplo O entender (Verstehen) tal como Heidegger o apresenta natildeo se baseia
na associaccedilatildeo psicoloacutegica das representaccedilotildees ou ainda a abertura primaacuteria que conduz o
ser-aiacute agraves suas possibilidades em que seu ser estaacute em jogo natildeo eacute algo como apercepccedilatildeo
No paradigma epistemoloacutegico da modernidade em uacuteltima instacircncia o entendimento eacute
uma reconstruccedilatildeo interna dos elementos externos do mundo reconstruccedilatildeo essa que
depende das faculdades cognitivas do sujeito capazes de unificar o agregado de
experiecircncias externas O entendimento em Heidegger eacute a abertura primaacuteria uma relaccedilatildeo
intencional estruturante ser-aiacute eacute ser-no-mundo portanto o Dasein eacute sempre remetido ao
73 Ocircntico pelo fato de ser ainda um ente ontoloacutegico pelo fato de ser o ente que pode e sempre abre a
compreensatildeo de ser (Cf HEIDEGGER 2012 sect4-9)
91
ldquomundordquo projetado para ldquoforardquo e esse ldquoforardquo eacute sempre abertura compreensiva ao mundo
faacutetico como horizonte hermenecircutico de sentido
Essa abertura compreensiva fundamental descerra o poder-ser do ser-aiacute como
projeto O fato de o ser-aiacute ser lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ao seu poder -ser em um
campo de jogo para seus possiacuteveis modos de ser natildeo conduz a um determinismo
circunstancial o qual o ser-aiacute estaria fadado a reproduzir maquinalmente e atualizar
incessantemente Tambeacutem ldquoo projetar nada tem a ver com um comportar-se em relaccedilatildeo a
um plano ideado de acordo com o qual o Dasein organizaria o seu serrdquo (HEIDEGGER
2012 p413) mas originariamente ldquoele sempre jaacute se projetou e se projeta enquanto eacuterdquo
(HEIDEGGER 2012 p413) A noccedilatildeo de projeto repousa na abertura compreensiva do
ser-aiacute e na sua ligaccedilatildeo radical com suas possibilidades Logo no iniacutecio do sect32 essa noccedilatildeo
eacute explicitada
ldquoO Dasein como entender projeta seu ser em possibilidades Esse entendedor ser
para possibilidades eacute ele mesmo um poder-ser pelo efeito contraacuterio que as
possibilidades como abertas tecircm sobre o Dasein O projetar do entender tem uma
possibilidade proacutepria de desenvolvimento Chamamos interpretaccedilatildeo o
desenvolvimento do entender Na interpretaccedilatildeo o entender entendendo
apropria-se do seu entendido Na interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo
diverso mas torna-se ele mesmo () A interpretaccedilatildeo natildeo consiste em tomar
conhecimento do entendido mas em elaborar possibilidades projetadas no
entenderrdquo (HEIDEGGER 2012 p421)
Dissemos haacute pouco que as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como
disponiacuteveis agrave escolha e agrave espera de um ato de vontade do ser-aiacute (natildeo estatildeo suspensas como
que dadas a cada ser-aiacute ao nascer como gocircndolas de projetos de ser) mas satildeo mobilizadas
na e pela existecircncia E ainda que essa existecircncia seja sempre projetiva em um mundo
histoacuterico Desse modo o entender (Verstehen) acontece sempre como interpretaccedilatildeo
(Auslegung) a abertura ao mundo eacute um projeto de sentido do ser-aiacute que jaacute interpreta que
jaacute potildee em visatildeo o que entende Mas o que isso quer dizer Como Heidegger chega a esses
existenciaacuterios
Vimos no capiacutetulo anterior a partir da leitura do texto de 1922 Interpretaccedilotildees
fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) ou
Relatoacuterio-Natorp que o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona
92
um lsquoaquirsquordquo essa virtude proacutepria do homem ldquose realiza como ενέργεια como atividade
() ou seja o νους abre um horizonte que sempre responde a um modo concreto de tratar
com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma
determinaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2002 p66) Compreendido tradicionalmente como
intelecto propriamente racional o noucircs eacute proacuteprio do homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica
[homem (animal (gecircnero) + racional (diferenccedila especiacutefica)] mas porque o ser-aiacute eacute o ente
que pode custodiar abrir-se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um
compreender que jaacute interpreta os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto
na vida faacutetica que acontece fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis
enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato
praacutetico com os entes
Em Ser e Tempo Heidegger descreve as vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico e
tambeacutem como o fenocircmeno do mundo se mostra atraveacutes dos entes intramundanos A forma
imediata de esses entes se mostrarem daacute-se na lida praacutetica que o ser-aiacute trava com eles em
um mundo circundante ou em um mundo-ambiente (Umwelt) Eacute atraveacutes da ocupaccedilatildeo
com os entes que o ser-aiacute se movimenta inicialmente na compreensatildeo faacutetica de mundo eacute
aiacute que o Dasein visualiza os entes em sua serventia especiacutefica no quadro de um horizonte
ocupacional Esse horizonte possui certa anterioridade em relaccedilatildeo ao proacuteprio uso do
instrumento ou utensiacutelio (Zeug) particular e isto fica claro no sect 15 quando Heidegger
potildee em relevo o modo de ser dos utensiacutelios na delimitaccedilatildeo preacutevia do que seja sua
instrumentalidade ldquoEm termos rigorosos um instrumento nunca lsquoeacutersquo isolado Ao ser de
instrumento pertence sempre cada vez um todo-instrumental no qual esse instrumento
pode ser o que ele eacute Instrumento eacute por essecircncia lsquoalgo pararsquo (HEIDEGGER 2012
p211) Na essecircncia do instrumento estaacute sempre a referecircncia de algo para algo O ser do
utensiacutelio e seu significado que aparece no instante do trato portanto jaacute interpretado a
partir do uso nascem da totalidade utensiliar (Zeugganzheit) que o atravessa Mas esta
totalidade utensiliar se assenta num contexto ainda mais complexo Se o utensiacutelio eacute
confeccionado de acordo com a sua finalidade especiacutefica como ldquoalgo parardquo seu uso o
liga a outros utensiacutelios por exemplo o pincel que uso para pintar remete-se agrave tela que
uso para suporte da tinta Assim como a tela remete-se natildeo soacute a sua finalidade mas
tambeacutem aos materiais atraveacutes dos quais ela foi produzida madeira tecido e gesso E
ainda remete-se ao produtor da tela ou seja aos outros entes no modo de ser do ser-aiacute
93
Poreacutem essa descriccedilatildeo do instrumento em um mundo-ambiente (Umwelt) ainda eacute
insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica de todo ente em geral
Assim conforme o sect 17 Heidegger aponta que a estrutura do sinal (Zeichen) ldquofornece
um fio condutor ontoloacutegico para uma lsquocaracterizaccedilatildeorsquo de todo ente em geralrdquo
(HEIDEGGER2012 p 233) O sinal enquanto utensiacutelio tem em sua serventia especiacutefica
o mostrar e ao mostrar fornece o fenocircmeno da referecircncia natildeo somente de sua referecircncia
mas de todo e qualquer ente uma vez que a relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia explicita o
fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua finalidade
na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal enquanto
instrumento nos mostra o mundo circundante e potildee em relevo o caraacuteter da referecircncia
que natildeo deve ser confundida com o proacuteprio sinal pois natildeo eacute determinaccedilatildeo ocircntica de um
ou outro manual especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica do manual e fundamento
constitutivo da mundidade como rede referencial na qual o Dasein jaacute se encontra inserido
na abertura ao mundo Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo
circundante o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a
complexa rede de remissotildees referenciais e atraveacutes dela a totalidade conjuntural ou
conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)
ldquoO termo conjuntura tem como correlato na liacutengua alematilde a palavra Bewandtins
que designa primariamente a propriedade ou a constituiccedilatildeo de uma coisa e em
um segundo momento a circunstacircncia em que algo se mostra essencialmente
como algo Neste segundo caso o termo se mostra em sintonia com a expressatildeo
Bewendenlassen como o deixar (lassen) algo se conformar (bewenden) a uma
certa estrutura e se mostrar como o que eacute em meio a essa conformidaderdquo
(CASANOVA 2006 p37)
A noccedilatildeo de conjuntura no sect 18 eacute um dos momentos mais decisivos da primeira
parte de Ser e Tempo pois revela que a totalidade conjuntural eacute anterior a qualquer
determinaccedilatildeo particular dos entes intramundanos Eacute essa conjuntura que determina os
usos possiacuteveis a partir da conformidade dos entes nela inseridos revelando que o
utensiacutelio em si mesmo natildeo possui qualquer determinaccedilatildeo essencial mas a recebe do
campo de uso da conjuntura na qual estaacute inserido Mas natildeo eacute soacute isso a determinaccedilatildeo
essencial de um ente intramundando acontece tambeacutem em funccedilatildeo do ser-aiacute cujo lsquoem
vista dersquo ao final da remissatildeo natildeo mais remonta a um lsquopara quecircrsquo mas mobiliza e em
uacuteltima instacircncia determina as conformaccedilotildees dos entes intramundanos Isso revela que o
que estaacute em jogo natildeo eacute o que eacute algo mas antes em virtude de que se faz algo O ser-aiacute
94
pode agir relacionar-se com os outros e consigo mesmo pois sabe comportar-se no
campo fenomecircnico aberto que arrasta consigo sua possibilidade de ser De outra forma
toda e qualquer performatizaccedilatildeo do ser-aiacute em relaccedilatildeo aos entes remete em uacuteltima medida
agravequele que pode voltar-se aos entes e mobilizaacute-los
O que a conjuntura indica previamente eacute ldquoa articulaccedilatildeo originaacuteria com certas
possibilidades essenciais do ser-aiacute que permitem ao ser-aiacute projetar efetivamente o campo
de sua realizaccedilatildeo como poder-serrdquo (CASANOVA 2006 p36) Essa realizaccedilatildeo do poder-
ser do ser-aiacute mobiliza a conformaccedilatildeo dos entes em funccedilatildeo do sentido existencial do ser-
aiacute pois uma atividade qualquer natildeo eacute feita por ela mesma mas soacute tem sentido na intenccedilatildeo
de um ente que estaacute aberto agrave apreensatildeo do ser dos entes em geral Desse modo a primaacuteria
abertura compreensiva do ser-aiacute ao mundo eacute um projeto de sentido que jaacute interpreta e ao
fazecirc-lo realiza a cada vez a cada ato de sua existecircncia a cada performatizaccedilatildeo a
possibilidade de seu ser pondo em liberdade os entes no interior do mundo e as relaccedilotildees
com os outros no projeto lanccedilado (faacutetico) na e pela sua existecircncia E isso porque
ldquoQuando o ente do-interior-do-mundo eacute descoberto com o ser do Dasein isto eacute
quando veio ao entendimento dizemos que ele tem sentido Mas tomado
rigorosamente o que eacute entendido natildeo eacute o sentido mas o ente ou o ser Sentido eacute
aquilo em que a entendibilidade de algo se manteacutem () Sentido eacute aquilo-em-
relaccedilatildeo-a-quecirc do projeto estruturado pelo ter-preacutevio pelo ver-preacutevio e pelo
conceito preacutevio a partir de que algo pode ser entendido como algo Na medida
em que entender e interpretaccedilatildeo constituem a constituiccedilatildeo existenciaacuteria do lsquoaiacutersquo o
sentido deve ser concebido como arcabouccedilo existenciaacuterio-formal da abertura
pertencente ao entender O sentido eacute um existenciaacuterio do Dasein natildeo uma
propriedade presa ao ente que reside lsquoatraacutesrsquo dele ou flutua em algum lugar como
em um lsquoreino intermediaacuteriorsquo Soacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a
abertura do ser-no-mundo lsquopode ser preenchidarsquo () E quando perguntamos
pelo sentido de ser a investigaccedilatildeo natildeo se torna entatildeo profunda e natildeo excogita
nada que esteja atraacutes do ser mas pergunta por ele mesmo na medida em que ele
estaacute na entendibilidade do Dasein O sentido de ser nunca pode ser contraposto
ao ente ou ao ser como lsquofundorsquo que sustenta o ente porque o lsquofundamentorsquo soacute eacute
acessiacutevel como sentido mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta- de-
sentidordquo (HEIDEGGER 2012 pp 429-431)
Apelamos para essa longa citaccedilatildeo a fim de explicitar o que dissemos
anteriormente acerca da mobilizaccedilatildeo dos entes em seu ser em funccedilatildeo dos focos
existenciais do ser-aiacute Os entes somente vecircm ao encontro como entes que satildeo a partir da
intenccedilatildeo de um ente que estaacute aberto a compreensatildeo do ser dos entes em geral Com a
95
citaccedilatildeo pretendemos tambeacutem apontar para algo importante acerca do fundamento
histoacuterico dessa abertura O sentido de ser natildeo eacute algo a ser alcanccedilado teoricamente pois
natildeo eacute algo estaacutevel e fundante da realidade que responde ao esquema causa-efeito ele eacute
essencialmente histoacuterico e eacute trazido pela experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica
da existecircncia mesma do ser-aiacute Natildeo se pode ter lsquoserrsquo sem a compreensatildeo do sentido de
ser vinculando portanto lsquoserrsquo ao ser-aiacute ente cuja estrutura pertence agrave compreensatildeo de
ser Como nos adverte o autor de Ser e Tempo o Dasein eacute um ente certamente diferente
dos outros entes no interior do mundo e eacute o lsquoabismo da falta de sentidorsquo que remete agrave
totalidade do fenocircmeno do ser-aiacute como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge) a qual acontece
em funccedilatildeo do sentido da temporalidade (Zeitlichkeit) Eacute essa ldquosegundardquo abertura de
sentido que devemos explicitar a partir de agora
Indicamos acima que a indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica do ser-aiacute o conduz a conquistar
seu poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees
cotidianas Poreacutem ser-proacuteprio ou ser-improacuteprio natildeo satildeo categorias operacionalizaacuteveis em
funccedilatildeo de um ideal de vida Essas possibilidades repousam na existecircncia e revelam a
tensatildeo da condiccedilatildeo primaacuteria da abertura ao mundo do ser-aiacute como projeto- jogado e
ldquodessa tensatildeo eacute possiacutevel deduzir o modo como o ser-aiacute faticamente existe() o caraacuteter
mesmo do jogado do ser-aiacute implica a absorccedilatildeo imediata no mundo sedimentado ele
encontra a si mesmo na medida em que se perderdquo (CASANOVA 2009 p123) E por
isso quando a analiacutetica existenciaacuteria inicia sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio no qual
o ser-aiacute eacute lanccedilado ldquoisso natildeo significa por sua vez outra coisa senatildeo que ele [o ser-aiacute]
concretiza o poder ser que ele eacute a partir das possibilidades faacuteticas disponibilizadas pelo
mundordquo (CASANOVA 2009 p123)
A abertura compreensiva eacute uma compreensatildeo da proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica na qual
nos orientamos inicialmente e na qual satildeo dadas nossas possibilidades de ser natildeo de
maneira teoacuterica mas absorvidas nas praacuteticas nos projetos de sentido relaccedilatildeo com os
outros e lida com os entes Abertura essa que um passado tornou possiacutevel e se faz
radicalmente imperativa no presente atraveacutes da cotidianidade orientando o ser-aiacute e
fazendo emergir algo assim como um mundo Por exemplo a realizaccedilatildeo deste trabalho
como dissertaccedilatildeo acadecircmica apareceu como possibilidade para o projeto de sentido de
sua autora porque escrever sobre filosofia faz sentido este projeto de sentido veio ao
96
encontro de seu poder-ser natildeo meramente por um ato de escolha mas inicialmente porque
filosofia dissertaccedilatildeo e universidade satildeo elementos mantidos em seu significado oriundo
da tradiccedilatildeo ocidental natildeo por uma linha histoacuterica que a autora recupera e quer trazer ao
presente mas porque mais uma vez ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto apropriaccedilatildeo
compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo
(HEIDEGGER2002 p30)
E uma vez remetida ao mundo pela orientaccedilatildeo cotidiana a autora pode
estabelecer relaccedilotildees com os entes (livros computador papel etc) consigo mesmo (como
autora) e com os outros (leitores desse trabalho) que partilham essas possibilidades
sedimentadas Dessa forma a orientaccedilatildeo cotidiana primaacuteria revela ldquoexistir () eacute de iniacutecio
o mesmo que perder-se de sirdquo (CASANOVA 2009 p123) pois ldquoo ser-aiacute suspende a
irrealidade originaacuteria que eacute a sua e adquire ao mesmo tempo um modo de ser marcado
por uma aparecircncia de consistecircnciardquo (CASANOVA 2009 p123) Em outras palavras a
absorccedilatildeo na cotidianidade (o caraacuteter de jogado do projeto) oferece uma familiaridade ao
ser-aiacute na qual ele pode se movimentar pois oferece a confiabilidade ocircntica ao projeto de
sentido mas tambeacutem estabelece
ldquoUma relaccedilatildeo com o seu poder-ser que pode ser denominado como fuga uma vez
que a suspensatildeo [de sua irrealidade originaacuteria] promove exatamente uma
tranquilizaccedilatildeo em meio agrave supressatildeo de nadidade constitutiva de um ente marcado
pelo caraacuteter de poder-ser e o ocultamento de um tal caraacuteterrdquo (CASANOVA
2009 p123)
Em meio agrave familiaridade em que o ser-aiacute eacute jogado sua negatividade quiditativa e
seu traccedilo ontoloacutegico essencial como poder-ser satildeo obstruiacutedos agrave compreensatildeo do Dasein
em relaccedilatildeo ao seu ser Voltemos ao nosso exemplo as relaccedilotildees que a autora deste trabalho
pode exercer a partir de suas possibilidades a orientam como ser autora deste trabalho
como aquela que escreve ou ainda como aquela vinculada agrave universidade e assim por
diante Poreacutem nada poderia definir nossa existecircncia como fazem as orientaccedilotildees
cotidianas pois o Dasein que cada um de noacutes somos eacute marcado pela negatividade radical
frente a qualquer definiccedilatildeo ocircntica Como entatildeo essa fuga natildeo nos condena a reproduzir
maquinalmente e atualizar incessantemente as orientaccedilotildees cotidianas - Porque o ser-aiacute
97
mesmo jogado eacute ainda projeto e no limite de seu projeto ele pode se encontrar com seu
poder-ser mais proacuteprio como ser para a morte (das Sein zum Tod)74
Tal como as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha agrave
espera de um ato de vontade do ser-aiacute a conquista de seu ser-proacuteprio ou sua
singularizaccedilatildeo tambeacutem natildeo eacute produto de sua vontade A dinacircmica de singularizaccedilatildeo do
ser-aiacute eacute possiacutevel pela tonalidade afetiva ou o modo de encontrar-se (Befindlicheit)
fundamental da anguacutestia (Angst)
O entender (Verstehen) ou abertura compreensiva eacute sempre dispositiva na medida
em que a compreensatildeo natildeo se refere agrave capacidade ou agraves faculdades cognitivas do homem
ldquoO termo disposiccedilatildeo aponta diretamente para o modo como o ser-aiacute a cada vez se
descobre em meio a uma tal abertura Na medida em que o ser-aiacute eacute um ente
marcado essencialmente por seu caraacuteter existencial e natildeo se mostra senatildeo como
um poder ser ele natildeo pode aprender a abertura do ente na totalidade por meio de
alguma faculdade cognitiva de sua subjetividade () Befindlichkeit diz o
encontrar-se de uma certa maneirardquo (CASANOVA 2006p50)
Encontrar-se de certa maneira natildeo eacute uma espeacutecie de afeto psicoloacutegico que o ser-
aiacute projeta de dentro para fora nem uma relaccedilatildeo de fora para dentro que afeta o ser-aiacute Natildeo
eacute uma relaccedilatildeo causal Eacute uma afinaccedilatildeo (ajuste do tom) que deve ser compreendida
repousando na intenccedilatildeo primaacuteria do ser-aiacute como ser-no-mundo Como o autor explicita
ainda no sect29 ldquoO ser do estado-de-acircnimo do encontrar-se constitui existenciariamente a
abertura do Dasein para o mundordquo (HEIDEGGER 2012 p393) Eacute propositadamente que
se apela para a metaacutefora musical (ldquoafinaccedilatildeordquo) para tentar compreender esse ldquoestado de
acircnimo do encontrar-serdquo como por exemplo acontece quando uma muacutesica eacute tocada ela
afina a abertura compreensiva do ser-aiacute a um estado de acircnimo que noacutes poderiacuteamos chamar
de melancoacutelico A melancolia natildeo estaacute na muacutesica (natildeo haacute como pensar que as tonalidades
afetivas sejam propriedades de um ou outro ente na medida em que o ser de todo e
74 Aqui eacute importante considerar as palavras de Juliaacuten Mariacuteas na Conferecircncia do curso ldquoLos estilos de la
Filosofiacuteardquo Madrid 19992000 Ediccedilatildeo Jean Lauand Traduccedilatildeo Sylvio Horta ldquoa preposiccedilatildeo zu natildeo quer
dizer para mas a Isto eacute a expressatildeo sein zum Tod poderia ser traduzida por estar agrave morte (estar a
la muerte) Qual eacute a condiccedilatildeo dos homens - e das mulheres evidentemente - natildeo somente quando nos
atropela um caminhatildeo ou quando temos pneumonia dupla O homem estaacute agrave morte sempre estaacute na
possibilidade de morrer estaacute em potecircncia proacutexima de morrer estaacute exposto agrave morte e eacute isso justamente o
que quer dizer sein zum Tod estar aberto agrave morte estar nessa possibilidade proacutexima real eficazrdquo
98
qualquer ente eacute aberto em funccedilatildeo do ser-aiacute que os potildee em liberdade no interior do mundo)
como tambeacutem natildeo estaacute no Dasein (natildeo haacute nada de aderente a esse ente que venha agrave tona
sua abertura eacute sempre remetida ao mundo e ao encontro com os entes) Portanto a
melancolia como no exemplo eacute a modificaccedilatildeo da atmosfera promovida pelo proacuteprio
encontrar-se do ser-aiacute em meio aos entes
Mas por qual motivo a anguacutestia aparece em Ser e Tempo como a tonalidade afetiva
ou o modo fundamental de encontrar-se Enquanto os estados de acircnimo natildeo conforme agrave
anguacutestia constituem a abertura compreensiva do ser-aiacute para a lida e para as relaccedilotildees que
podem ser realizadas no interior do mundo em meio aos entes ldquoo diante-de-quecirc da
anguacutestia eacute o ser-no-mundo como talrdquo (HEIDEGGER 2012 p521) Na anguacutestia natildeo haacute
ente que venha ao encontro no qual o ser-aiacute possa se reportar e refugiar-se mas a si mesmo
em sua indeterminaccedilatildeo
ldquoNa anguacutestia o utilizaacutevel do mundo-ambiente e em geral o ente do-interior-do-
mundo se afundam O lsquomundorsquo jaacute nada pode oferecer nem tambeacutem o Dasein-
com com os outros A anguacutestia retira assim do Dasein a possibilidade de no
decair entender-se a partir do lsquomundorsquo e do puacuteblico ser-do-interpretado Ela
projeta o Dasein de volta naquilo por que ele se angustia seu proacuteprio poder ndashser-
no-mundo () Com o porquecirc do se angustiar a anguacutestia abre portanto o Dasein
como ser possiacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012 p525)
Na anguacutestia natildeo haacute a ldquosuspensatildeo de mundordquo como se o Dasein se retirasse dele
O que haacute eacute a suspensatildeo das orientaccedilotildees cotidianas que obliteram sua constituiccedilatildeo
primaacuteria Portanto ainda e agora radicalmente transparente como ser-no-mundo o
Dasein suspende a familiaridade em meio ao ente voltando-se a si mesmo como ser-
possiacutevel que mobiliza sentido e ldquotem mundordquo Lembremos que a necessidade da ontologia
fundamental como radicalizaccedilatildeo do gesto fenomenoloacutegico indica que o ser-aiacute mesmo
natildeo pode ser intencionado natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente e por isso seu
caraacuteter de poder-ser E se pela anguacutestia o ser-aiacute volta-se a si mesmo o que vem eacute essa
indeterminaccedilatildeo radical revelando em uacuteltima medida o ldquoabismo da falta de sentidordquo Esse
abismo natildeo leva a qualquer espeacutecie de niilismo natildeo eacute o que estaacute em jogo aqui ao
contraacuterio pois o ldquoo ser-aiacute se vecirc confrontado com o seu caraacuteter como poder-ser Dessa
confrontaccedilatildeo nasce ao mesmo tempo a possibilidade de assunccedilatildeo de si mesmo como
cuidado (Sorge)rdquo (CASANOVA 2009 p128)
99
Recuperemos por um instante os trecircs momentos constitutivos da questatildeo descritos
no sect2 de Ser e Tempo a pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2)
perguntando sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma
ontologia fundamental A ontologia fundamental como analiacutetica existenciaacuteria em seu
primeiro momento descreve as estruturas fundamentais do ser-aiacute com o propoacutesito de
chegar ao ser desse ente que compreende o sentido de ser (sect12 ao sect38) Contudo eacute
importante considerar que existe certa lsquoartificialidadersquo nesse processo de explicitaccedilatildeo das
estruturas do ser-aiacute Eacute importante manter o sentido de ldquoanaliacuteticardquo Pois o fenocircmeno
mesmo deve ser compreendido como um todo natildeo em funccedilatildeo das partes mas a partir de
sua proacutepria mostraccedilatildeo Em outras palavras a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein deve agora
ser recuperada e este ente deve ser assinalado de maneira propriamente fenomenoloacutegica
ou seja em sua totalidade enquanto fenocircmeno Eacute o que a segunda parte da analiacutetica deve
recuperar ldquoabrangendo os componentes que se interligam ndash a existencialidade a
facticidade e a quedardquo (NUNES 2012 p116)
A partir desses componentes Heidegger apresenta o sentido formal da
preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-em (-o-mundo)
como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo (HEIDEGGER
2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser (existencialidade ou
existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que foi
lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio aos
entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)
Poreacutem natildeo dissemos que o ser-aiacute eacute marcado pela negatividade quiditativa e que
existe segundo possibilidades as quais natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas na morte
como fim de todas as possibilidades Ou nas palavras de nosso autor ldquoE se a existecircncia
determina o ser do Dasein e sua essecircncia eacute constituiacuteda pelo poder-ser entatildeo o Dasein
podendo ser enquanto existir deve-ser cada vez algo de ainda natildeo sendordquo
(HEIDEGGER 2012 p645) Entatildeo essa interpretaccedilatildeo do ser do Dasein como um
fenocircmeno unitaacuterio como Sorge natildeo contradiz tal afirmaccedilatildeo Natildeo haacute qualquer
contradiccedilatildeo pois eacute exatamente
ldquoO cuidado como manifestaccedilatildeo da finitude que permite a Heidegger identificar
a morte como o chegar do Dasein ao fim () e ver nesse ente em sua totalidade
o ser para a morte() O Dasein chega pois a um fim mas que o determina desde
100
o princiacutepio como possibilidade do que viraacute a ser A morte natildeo eacute para ele portanto
o puro aniquilamento representaacutevel conforme a experiecircncia da caducidade ()
impessoal e necessaacuterio na seacuterie de causas naturais () Ontologicamente falando
o homem deixa de viver porque morre e morre porque lhe eacute inerente o morrer
enquanto poder-ser de cada qual () intrasferiacutevel e irrepresentaacutevel na relaccedilatildeo
com o ser a que a existecircncia estaacute concernidardquo (NUNES 2012 pp 117-119)
Como poder-ser (existenciariedade) o ser-aiacute adianta-se em relaccedilatildeo agrave sua
possibilidade mais proacutepria Seu ser-proacuteprio insuperaacutevel como ser-para-a-morte (porque
intransferiacutevel a qualquer outro) revela-se como a possibilidade para a impossibilidade
ou seja impossibilidade de sua existecircncia lanccedilada (facticidade) de ter um lsquoaiacutersquo sendo o
lsquoaiacutersquo a compreensatildeo dos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)
Mas eacute importante considerar que a preocupaccedilatildeo ou o cuidado natildeo eacute a totalidade alcanccedilada
por aquele que chegou agrave singularizaccedilatildeo pela tonalidade fundamental da anguacutestia ela eacute a
constituiccedilatildeo ontoloacutegica de todo e qualquer Dasein O que a singularizaccedilatildeo promove
como possibilidade aberta pela anguacutestia eacute a transparecircncia desse ser-proacuteprio cada vez
obliterado na cotidianidade Na cotidianidade a morte eacute vista como um ldquomero deixar de
viverrdquo transferido a cada vez ao outro que morreu ldquodessa vezrdquo75 em um tratamento
radicalmente impessoal pela indiferenccedila frente a esse poder-ser proacuteprio e irrevogaacutevel
A morte como fim de todas as possibilidades enquanto poder-ser extremo eacute
indeterminada mesmo que seja a certeza mais proacutepria Pois natildeo se chega agrave morte
pensando nela o que estaacute em jogo eacute a responsabilidade do ser-aiacute frente a essa
transparecircncia a assunccedilatildeo pelo ser-aiacute de sua nulidade que atravessando-o (sem qualquer
conteuacutedo prescritivo do que deve-se ou natildeo fazer) pode orientar o caminho de sua
existecircncia Existecircncia ainda faacutetica ainda em meio aos entes de um mundo sedimentado
Em outras palavras caminho que reconduz o ser-aiacute ao ldquoaiacuterdquo que ele tem que ser e que ele
radicalmente eacute O que a singularizaccedilatildeo aponta eacute ldquoLeben ist Tod und Tod ist auch ein
75 Heidegger indica a novela de LN Tolstoacutei ldquoA morte de Ivan Ilitchrdquo para ilustrar o fenocircmeno da morte
tratada impessoalmente e o abalo dessa impessoalidade (Cf HEIDEGGER 2012 p699) Poderiacuteamos
tambeacutem indicar a partir de nossa cotidianidade exemplos do tratamento impessoal acerca da morte as
estatiacutesticas dos ldquomortos nas estradasrdquo a notiacutecia da morte de alguma personalidade puacuteblica e ainda - para
natildeo confundirmos esse fenocircmeno com um mero ldquonoticiarrdquorsquo a morte - a maneira mesma que tratamos a
morte de algueacutem proacuteximo pois mesmo tomados pelo pesar o que constatamos eacute a ldquoperdardquo do outro Seria
possiacutevel restaurar a ponte mesmo que indicativa que Heidegger natildeo admite entre o fenocircmeno impessoal
da morte e nosso ser-proacuteprio como ser-para-a-morte Talvez algo acessiacutevel pela linguagem poeacutetica Aqui
eacute oportuno considerar os belos versos do poema Na morte de Henriqueta Lisboa ldquoNa morte nos
encontramos Sim na morte Tempo de consoacutercio e de viacutenculordquo In Flor da Morte Belo Horizonte Ed
UFMG 2004
101
Leben76rdquo Nessa indicaccedilatildeo ldquoO si-mesmo que como tal tem de pocircr o fundamento de si
mesmo nunca pode se assenhorar desse fundamento e tem de existindo assumir no
entanto o ser-fundamento Ser o proacuteprio fundamento dejectado eacute o poder-ser em jogo na
preocupaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p779) Eacute pela assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo
(Sorge) que o ser-aiacute pode compreender que os sentidos mobilizados em sua existecircncia satildeo
existenciariamente remetidos ao seu ser mesmo ente histoacuterico e finito radicalmente
marcado pela nulidade essencial Isso posto recuperamos uma vez mais agora com toda
a importacircncia as palavras de nosso autor ldquoo lsquofundamentorsquo soacute eacute acessiacutevel como sentido
mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta-de-sentidordquo (HEIDEGGER 2012 p431)
A transparecircncia de seu ser-proacuteprio ao ser-aiacute eacute assumir ldquoser como fundamento
dejectado da nulidade Mas a assunccedilatildeo da dejecccedilatildeo significa para o Dasein ser
propriamente como ele a cada vez jaacute erardquo (HEIDEGGGER 2012 p887) Em outras
palavras a assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute para o ser-aiacute reconhecer que ele
eacute existecircncia radicalmente faacutetica (Faktizitaumlt) ainda em meio aos entes de um mundo
sedimentado Desse modo ldquoentender o seu ser ainda e sempre ldquoem seu essencial ser-
culpadordquo (HEIDEGGER 2012 p887) A singularizaccedilatildeo do ser-aiacute natildeo promove um
distanciamento da vida cotidiana natildeo faz com que ele se retire da queda mas que a
assuma e assim assuma ldquoa responsabilidade pela necessidade de pagar uma diacutevida que
cada ser-aiacute tem para consigo mesmordquo (CASANOVA 2009 p136) Diacutevida de assumir
seu ser como existecircncia como projeto-jogado e como poder-ser proacuteprio marcado pela
possibilidade extrema da morte Essa culpa do ser-aiacute eacute a assunccedilatildeo de que ele jaacute sempre
desonerou seu ser ele jaacute sempre deixou seu ser sob tutela do mundo e das orientaccedilotildees
cotidianas - por sua condiccedilatildeo de soacute poder-ser a partir da absorccedilatildeo imediata no mundo
Essa culpa natildeo eacute a mesma das concepccedilotildees cristatildes Em Pascal por exemplo a culpa eacute
consequecircncia da perda de nossa primeira natureza em funccedilatildeo do pecado original77 Para
Heidegger a culpa eacute consequecircncia do fato de natildeo termos qualquer natureza Natildeo haacute como
se retirar dessa condiccedilatildeo eis nossa culpa essencial e nossa queda irremediaacutevel
76 ldquoA vida eacute morte e a morte eacute tambeacutem uma vidardquo HOumlLDERLIN Friedrich In lieblicher Blaumlue - Disponiacutevel
em httpswwwhsaugsburgde~harschgermanicaChronologie19JhHoelderlinhoe_0801html Acesso
em 21 marccedilo 2016 77 Cf por exemplo os aforismos 131 e 616 de Pascal nos Penseacutees Ediccedilatildeo e organizaccedilatildeo Lafumaacute
102
Mas se chegamos agrave totalidade originaacuteria do todo-estrutural do ser-aiacute ou em outras
palavras agrave assinalado constituiccedilatildeo propriamente fenomenoloacutegica do ser-aiacute como
preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute necessaacuterio considerar o sentido ontoloacutegico desse fenocircmeno
Lembramos mais uma vez o que eacute ldquosentidordquo para Heidegger ldquoSentido eacute aquilo em que a
entendibilidade de algo se manteacutemrdquo (2012 p429) Se o ser-aiacute pode ser indicado em sua
totalidade fenomecircnica (ainda que radicalmente diverso dos entes do interior do mundo)
eacute necessaacuterio como expresso no sect65 perguntar ldquoQue possibilita o ser do Dasein e assim
sua existecircncia factual (faktische)
O sentido de ser do Dasein como Sorge a compreensatildeo de sua nulidade essencial
a partir do fenocircmeno unitaacuterio de seu ser aponta para aquilo que pode sustentaacute-lo ldquoA
temporalidade descobre-se como o sentido da preocupaccedilatildeo proacutepriardquo (HEIDEGGER
2012 p889)
Na continuaccedilatildeo do sect65 o autor descreve como a preocupaccedilatildeo reside na
temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-
em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo
(HEIDEGGER 2012 p891) Futuro (poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente
(presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees temporais como as que tomamos diariamente mas
o caraacuteter essencial da existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre
adiantado (futuro) em relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza
as possibilidades na facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva da
proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica a cada vez presente na qual nos orientamos inicialmente em
nossos comportamentos) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no
presente esse passado em seus comportamentos e projetos E como adverte o autor
ldquoOs momentos da preocupaccedilatildeo natildeo se amontoam como a temporalidade ela
mesma natildeo vai tambeacutem lsquocom o temporsquo se compondo de futuro ser-do-sido e
presente A temporalidade natildeo lsquoeacutersquo em geral nenhum ente Ela natildeo eacute mas se
temporalizardquo (HEIDEGGER 2012 p893)
Ou seja a temporalidade acontece na existecircncia do ser-aiacute na unidade do
fenocircmeno que se mostrou como preocupaccedilatildeo ou cuidado (Sorge) E ainda acontece jaacute no
que o ser-aiacute entende (Verstehen) como o sentido ontoloacutegico desse acontecimento mesmo
da compreensatildeo Por isso ainda no iniacutecio desse toacutepico dissemos que a constituiccedilatildeo aberta
103
e remetida ao mundo (ao seu ldquoaiacuterdquo) do ser-aiacute eacute dada como acontecimento compreensivo
pois em seu sentido ontoloacutegico eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) que se temporaliza78
Assim finalmente chegamos agrave dupla abertura de sentido em Ser e Tempo a que
chamamos de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo a abertura compreensiva do ser-aiacute
remetida ao mundo e o sentido de ser do ser-aiacute a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) O
caraacuteter fundamental dessa estrutura se daacute pelo fato que eacute a partir dela que o ser-aiacute pode
conceder significaccedilotildees e por isso a primeira estrutura do que pode tornar manifesto o
fenocircmeno da linguagem Agora eacute necessaacuterio descrever a relaccedilatildeo entre mundo e
significatividade ainda como parte dessa primeira estrutura para que alcancemos a
segunda estrutura o fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) e a partir dele agrave linguagem
III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)
No toacutepico anterior apresentamos a constituiccedilatildeo aberta do ser-aiacute lanccedilada e
remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo Mas o que constitui algo assim como mundo O que
afinal quer dizer ldquomundordquo (Welt) Nesse sentido precisamos retomar a descriccedilatildeo
realizada anteriormente acerca da referecircncia e da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) Essa
retomada natildeo significa prolixidade mas consequecircncia inevitaacutevel da ligaccedilatildeo essencial
entre ser-aiacute e mundo E se antes a descriccedilatildeo foi explicitada para compreendermos a
abertura de sentido em funccedilatildeo do ser-aiacute agora seraacute exposta para compreendermos o
proacuteprio ldquoaiacuterdquo
Sem pressupor mundo como ente ou como espaccedilo a pesquisa fenomenoloacutegica
aproximou-se dos campos de mostraccedilatildeo de algo como lsquomundorsquo escapando de qualquer
preacutevia teorizaccedilatildeo Nessa direccedilatildeo vimos que algo como lsquomundorsquo se daacute inicialmente a
partir da abertura primaacuteria de sentido promovida pelo entender ou compreensatildeo
78 Como indicamos (nota 66) haacute uma questatildeo natildeo respondida em Ser e Tempo a temporalidade (Zeitlichkeit)
estaria afinal assentada no tempo histoacuterico da abertura Questatildeo expressa na uacuteltima linha daquela obra ldquoO
tempo (Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Essa questatildeo
aponta para o limite da obra de 1927 na medida em que o sentido de ser remetido e em funccedilatildeo de um ente
especiacutefico mesmo que privilegiado apresenta seus limites Natildeo aprofundaremos esse problema Nesse
sentido conferir inicialmente HEIDEGGER M Os problemas fundamentais da fenomenologia Trad
Marco Antocircnio Casanova Petroacutepolis RJ Vozes 2012 ndash Parte II (pp331-478) Conferir tambeacutem
CASANOVA (2009 pp 140-145) NUNES (2012 pp200-220) e STEIN (2001 pp297-309)
104
(Verstehen) Esse existenciaacuterio primaacuterio acontece sempre como interpretaccedilatildeo
(Auslegung) que jaacute potildee em visatildeo o que entende
A partir da lida praacutetica e natildeo teoacuterica que o ser-aiacute trava inicialmente com os entes
intramundanos (sect15) Heidegger chega a noccedilatildeo de mundo circundante ou mundo-
ambiente (Umwelt) Poreacutem a descriccedilatildeo do uso dos utensiacutelios (Zeug) em um mundo-
ambiente (Umwelt) eacute insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica
de todo ente em geral Assim conforme o sect 17 Heidegger descreve o fenocircmeno da
referecircncia a partir da descriccedilatildeo do sinal enquanto utensiacutelio que tem em sua serventia
especiacutefica o mostrar e ao fazecirc-lo conduz a compreensatildeo da instrumentalidade ou
utilizabilidade (Zuhandenheit) de todo e qualquer ente A relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia
explicita o fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua
finalidade na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal
enquanto instrumento nos mostra o mundo-circundante (Umwelt) e potildee em relevo o
caraacuteter da referecircncia que natildeo deve ser confundido com o proacuteprio sinal pois eacute a estrutura
ontoloacutegica do manual e fundamento constitutivo da mundidade como rede referencial na
qual o Dasein jaacute se encontra inserido na abertura primaacuteria remetida ao mundo na lida
praacutetica
O ldquomostrarrdquo do sinal tal como o ldquomartelarrdquo do martelo ou a emprego de todo e
qualquer ente natildeo satildeo propriedades essenciais presentes nos lsquoobjetosrsquo apreendidas pelo
ser-aiacute mas satildeo trazidas agrave luz na e pela estrutura da remissatildeo a partir do trato praacutetico E
ldquoser-remetido-ardquo como constituiccedilatildeo do utilizaacutevel eacute em uacuteltima medida ldquoconjuntar-se agraverdquo
nas palavras de Heidegger
ldquoConjuntaccedilatildeo eacute o ser do interior-do-mundo em relaccedilatildeo ao qual esse ente jaacute eacute e
de pronto cada vez posto-em-liberdade () Isto de que ele tenha uma
conjuntaccedilatildeo comjunto eacute a determinaccedilatildeo ontoloacutegica do ser desse ente e natildeo um
enunciado ocircntico sobre o enterdquo (HEIDEGGER 2012 p251)
Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo circundante (Umwelt)
o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a complexa rede de
remissotildees referenciais e revelando a totalidade conjuntural ou conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)
A totalidade conjuntural se mostra anterior a qualquer determinaccedilatildeo particular dos entes
intramundanos - uma vez que eacute a conjuntura mesma que determinaraacute os usos possiacuteveis a
partir da conformidade dos entes nela inseridos- revelando que o utensiacutelio em si mesmo
105
e em uacuteltima medida todo e qualquer ente no interior do mundo natildeo possui qualquer
determinaccedilatildeo essencial mas a recebe a partir do campo de uso da conjuntura na qual estaacute
inserido Como a partir daiacute se chega entatildeo agrave noccedilatildeo de algo como ldquomundordquo A conjuntura
como conformaccedilatildeo de todo e qualquer ente eacute dada em funccedilatildeo do que Heidegger chama
de significatividade (Bedeutsamkeit)
ldquoAo se manter na familiaridade com a abertura das relaccedilotildees o entender as potildee
diante de si como aquilo em que seu remeter se move O entender deixa-se
remeter nestas relaccedilotildees e por elas mesmas O caraacuteter relacional dessas relaccedilotildees
do remeter noacutes o aprendemos como significar Na familiaridade com essas
relaccedilotildees o Dasein lsquosignificarsquo a si mesmo daacute-se a entender originariamente seu
ser e poder-ser relativamente a seu ser-no-mundo [] O todo relacional desse
significar noacutes o denominamos significatividade Ela eacute o que constitui a estrutura
do mundordquo (HEIDEGGER2012p261)
Essa passagem traz o elemento crucial agrave nossa investigaccedilatildeo a significatividade
como a condiccedilatildeo mesma ou melhor a proacutepria lsquointeligibilidadersquo do mundo natildeo como
arcabouccedilo teoacuterico mas como acircmbito da interpretaccedilatildeo anterior a qualquer definiccedilatildeo
predicativa do ente A totalidade conjuntural que conforma os entes intramundanos
determina-os significativamente em seu ldquocomordquo ou seja os faz ver e aparecer como ente
como algo no interior da abertura de sentido do proacuteprio mundo Isto quer dizer que a
conjuntaccedilatildeo deixa ver o ente em seu ldquoser enterdquo como algo que lsquoeacutersquo a partir de um horizonte
ldquode tal maneira que ele se torna primeiramente acessiacutevel como ente do-interior-do-
mundordquo (HEIDEGGER 2012p255)
A abertura ou entendimento preacutevio no qual o ser-aiacute histoacuterico e finito faz o ente
vir ao encontro na conjuntura e o mobiliza conforme seu foco existencial mostra o
fenocircmeno do mundo e isso como jaacute apresentamos a partir da familiaridade em que o
Dasein se movimenta pelo seu caraacuteter de jogado O fenocircmeno do mundo eacute explicitado
por Heidegger na seguinte passagem
ldquoO Dasein se remete jaacute cada vez e sempre a partir de um em-vista-de-quecirc ao
com-quecirc de uma conjutaccedilatildeo isto eacute na medida em que eacute ele deixa jaacute cada vez e
sempre o ente vir-de-encontro como utilizaacutevel Aquilo-em-que o Dasein
previamente se entende no modus do remeter-se eacute aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do
preacutevio fazer o ente vir-de-encontro O em-quecirc do entender que se-remete como
aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do fazer o ente vir-de-encontro no modo-de-ser da
conjuntaccedilatildeo eacute o fenocircmeno do mundo E a estrutura daquilo a que o Dasein se
remete eacute o que constitui a mundidade do mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 257)
106
Mas essa passagem tambeacutem mostra uma diferenccedila que natildeo pode ser ignorada o
fenocircmeno do mundo e a mundidade (Weltlichkeit) do mundo O primeiro diz respeito agrave
mobilizaccedilatildeo de uma determinada conjuntura jaacute familiar a partir dos focos existenciais do
ser-aiacute possiacuteveis em um horizonte descerrado (aspecto ocircntico) a segunda indica o aspecto
estrutural ontoloacutegico do mundo Por isto a significatividade explicitada inicialmente
pelo fenocircmeno da referecircncia e trazida agrave tona pela noccedilatildeo de conjuntaccedilatildeo eacute chamada de
estrutura formal da mundidade pois natildeo diz respeito a uma estrutura deste ou daquele
ldquomundordquo especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica de algo como ldquomundordquo
A significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados
(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Quando um ente se mostra
na e pela ocupaccedilatildeo (Besorgen) vem agrave conjuntaccedilatildeo no momento mesmo do trato manual
e assim ele eacute posto em liberdade em seu ser como utilizaacutevel (Zuhandenes) e natildeo eacute- como
compreendeu a tradiccedilatildeo assentada na noccedilatildeo sujeito-objeto ndash uma lsquoresrsquo uma coisa um
ldquomaterial disponiacutevel no mundordquo Ou seja ele natildeo se mostra primariamente como um
subsistente (Vorhandener) jaacute que ldquofamiliaridade com o mundo natildeo exige
necessariamente uma transparecircncia teoacuterica das relaccedilotildees do mundo que constituem o
mundo como mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 259)
Para Heidegger (ao menos em Ser e Tempo) os entes no interior do mundo (entes
intramundanos) natildeo conforme ao modo de ser do Dasein satildeo de dois modos ou como
duas categorias como Zuhanden (agrave matildeo) que se mostra de modo originaacuterio no trato
praacutetico e como Vorhanden (ente simplesmente dado ou subsistente) que aparece de
modo derivado agrave mostraccedilatildeo praacutetica Trazendo agrave tona a gecircnese praacutetica do significado
Vigo (2012) chama a atenccedilatildeo acerca do tratamento pouco extensivo agraves categorias que
Heidegger oferece em 1927
ldquoHeidegger oferece tatildeo somente um tratamento muito fragmentaacuterio desses
aspectos que jaacute foi explicado pelo fato expressamente declarado do caraacuteter
preparatoacuterio em SZ Ela natildeo conteacutem mesmo remotamente a totalidade do que
deveria conter um modelo ontoloacutegico de aspiraccedilatildeo integral que abarca as
diferentes ontologias regionais e apresentar o repertoacuterio das categorias mais
relevantes para cada uma delas mostrando aleacutem disso as correspondentes
relaccedilotildees de dependecircncia etcrdquo (p113)
O caraacuteter preparatoacuterio e ainda formal de Ser e Tempo o qual apenas estabelece a
diferenccedila categorial entre Zuhanden e Vorhanden parece querer marcar uma diferenccedila
107
mais fundamental ainda vinculada agraves primeiras preleccedilotildees da deacutecada de 1920 nas quais a
derivaccedilatildeo do teoreacutetico era atribuiacuteda a uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Em Ser e
Tempo ldquoa diferenccedila entre o conhecimento matemaacutetico e o conhecimento filosoacuteficordquo ganha
um contorno definitivo como diferenccedila ldquoentre uma concepccedilatildeo de loacutegos provinda da loacutegica
e outra que adveacutem do conceito de aleacutetheiardquo (STEFANI 2009 p51)
Dessa forma qualquer ente tomado de forma teoacuterica com um significado
determinado eacute um modo de acesso ou um visar o ente de modo derivado pelo ser-aiacute (natildeo
podemos esquecer que a mobilizaccedilatildeo dos entes eacute realizada em funccedilatildeo dos focos
existenciais do Dasein o que foi chamado de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo) Em
outras palavras como a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que significado
(Bedeutung) mas sua condiccedilatildeo de possibilidade qualquer teoria ou modo de tratamento
teoacuterico de um ente subsistente (Vorhandenes) eacute tributaacuterio da sedimentaccedilatildeo de um mundo
da sedimentaccedilatildeo de uma totalidade conjuntural que vem ao encontro do ser-aiacute
originariamente na ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhandenes) Assim ldquoo mundo faacutetico
onde se desdobra a existecircncia do ser-aiacute eacute constituiacutedo pela solidificaccedilatildeo dos significados
dos entes intramundanos e pela sedimentaccedilatildeo dos sentidos em virtude dos quais o ser-aiacute
desdobra o poder-ser que ele eacuterdquo (CABRAL 2015 p94) O ser-aiacute como projeto jogado
mobiliza sentidos e atualiza essas significaccedilotildees calcificadas de um mundo histoacuterico Algo
como um conceito uma definiccedilatildeo ou um significado do ente eacute possiacutevel por essa abertura
de sentido interpretativa preacutevia e sedimentada articulada pela significatividade e dada de
maneira preacute-linguiacutestica
Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez
familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o
Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como
lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo
(HEIDEGGER 2012p261 grifo nosso)
Prestemos atenccedilatildeo agrave uacuteltima consideraccedilatildeo dessa passagem significaccedilotildees natildeo satildeo
palavras elas fundam palavras Lembremos a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica o significado
natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua mostraccedilatildeo
Vimos no capiacutetulo anterior que o loacutegos do fenocircmeno para Heidegger eacute loacutegos apofacircntico
(λόγος αποφατικός) o mostrar do fenocircmeno a respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que
se mostra como algo de maneira indiferenciada natildeo determinada E ainda esse mostrar
do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes sempre em meio a
108
um campo interpretativo Ou seja agora podemos dizer eacute o mostrar o ente como ente
(algo como algo) no interior do mundo Na abertura que entende (Verstehen) remetida ao
mundo originariamente na lida praacutetica algo vem ao encontro e na medida que se mostra
jaacute se mostra interpretado (Auslegung) como algo do interior do mundo Mundo
compreendido em seu aspecto ontoloacutegico natildeo como ente espaccedilo ou soma de coisas (res)
disponiacuteveis agrave nossa apreensatildeo Mas abertura compreensiva-interpretativa do ser-aiacute
estruturalmente articulada em sua totalidade- enquanto ldquomundordquo - pela significatividade
E eacute dessa articulaccedilatildeo que podem vir significados e dos significados palavras assim
ldquoPodemos dizer que o que estaacute em jogo na discussatildeo de Heidegger com a
concepccedilatildeo husserliana natildeo eacute outra coisa em definitivo que a questatildeo relativa ao
modo fenomenoloacutegico adequado de considerar a experiecircncia antepredicativa
como tal Trata-se de uma questatildeo metodicamente fundamental justamente na
medida em que concerne de modo direto a adequada determinaccedilatildeo do terminus a
quo79 para uma possiacutevel explicaccedilatildeo da origem do enunciado predicativo como
modo derivado e fundado da interpretaccedilatildeo Atado aos preconceitod da ontologia
tradicional que se orienta a partir da estrutura do loacutegos apofatikoacutes considerando
o mesmo como algo dado lsquopresente agrave vistarsquo (Vorhandener) Husserl faz
basicamente o mesmo que jaacute havia feito a teoria tradicional das categorias desde
Aristoacuteteles em diante a saber retroprojetar a estrutura do enunciado da forma S-
P para o acircmbito dos lsquoobjetosrsquo que natildeo eacute outro que dos entes intramundanos
considerados como dados meramente lsquopresente agrave vistarsquo (VIGO 2012 p96)
Se a discussatildeo de Heidegger com a concepccedilatildeo husserliana se torna patente eacute
importante destacar tambeacutem a discussatildeo com a concepccedilatildeo diltheyniana - tendo em vista
o esclarecimento da noccedilatildeo de ldquosignificatividaderdquo Vimos que a categoria do significado
como apresentada por Dilthey possui um aspecto decisivo a relaccedilatildeo entre vivecircncia e
compreensatildeo eacute o ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da hermenecircutica pois traz em si a
categoria do significado como o nexo da vivecircncia com a realidade concreta sem se
apoiar em qualquer elemento transcendente agrave proacutepria experiecircncia vivida Contudo como
observa Heidegger no sect43 de Ser e Tempo o viacutenculo de Dilthey agrave teoria do conhecimento
da eacutepoca compreendendo a vivecircncia como vivecircncia de consciecircncia ou ldquoa relaccedilatildeo-de-ser
da consciecircncia com o real ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p583) faz com que a lsquovidarsquo
seja apresentada de modo indiferenciado sem a compreensatildeo de sua sustentaccedilatildeo
ontoloacutegica jaacute que a vivecircncia particular da consciecircncia como vida conexa e estruturante
79Termo a partir do qual Ponto de partida
109
eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu projeto hermenecircutico Mas Heidegger
reconhece ldquoDilthey natildeo soacute acentua que a realidade nunca eacute dada de modo primaacuterio no
pensamento e na apreensatildeo mas indica sobretudo que o conhecer ele mesmo natildeo
consiste em julgar e que saber eacute uma lsquorelaccedilatildeo de serrsquordquo (HEIDEGGER 2012 p583)
Tentando tornar mais claro mesmo que para Dilthey o mundo natildeo apareccedila como um
conjunto de coisas prontas agrave apreensatildeo da razatildeo humana mais ainda que as coisas
enquanto res natildeo sejam tomadas como a realidade (Realitaumlt) o fato de o pressuposto da
vivecircncia provir da consciecircncia obscurece o fundamento ontoloacutegico de algo como ldquovidardquo
Por isso escapou a Dilthey a relaccedilatildeo primaacuteria entre ser-aiacute como ser-no-mundo em sua
radicalidade ontoloacutegica como relaccedilatildeo fundante de toda e qualquer compreensatildeo de ser
Talvez por esse motivo como observa DASTUR (2007)
ldquoNo trabalho publicado em 1927 Heidegger natildeo usa frequentemente termo
hermenecircutica que aparece apenas trecircs ou quatro vezes () - no paraacutegrafo 7 da
introduccedilatildeo quando eacute para definir a fenomenologia no paraacutegrafo 33 que trata da
enunciaccedilatildeo e no paraacutegrafo 45 que define o iniacutecio da segunda parte da tarefa de
uma interpretaccedilatildeo do Dasein - enquanto o termo Auslegung que significa tanto
interpretaccedilatildeo e explicaccedilatildeo eacute muito mais frequentemente utilizadordquo (p74)
E quando Heidegger retoma o termo ldquohermenecircuticardquo no sect33 ele ressalta o caraacuteter
existenciaacuterio de tal interpretaccedilatildeo
ldquoA enunciaccedilatildeo natildeo pode negar sua origem ontoloacutegica a partir da interpretaccedilatildeo
que-entende O ldquocomordquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor entendedor
(ἑρμηνεία) noacutes os chamamos lsquocomorsquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio para
diferenciaacute-lo do ldquocomordquo apofacircntico da enunciaccedilatildeo (Aussage)rdquo (HEIDEGGER
2012 p 447)
O que eacute essa diferenccedila entre o ldquocomordquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio e o ldquocomordquo
apofacircntico da enunciaccedilatildeo Eacute a diferenccedila entre Auslegung (interpretaccedilatildeo) e Aussage
(enunciado) A diferenccedila consiste no fato de que a originariedade da mostraccedilatildeo dos entes
em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) - pela
significatividade (Bedeutsamkeit) que a articula - e sua derivaccedilatildeo como ente
simplesmente dado (Vorhanden) ndash fazendo emergir algo como significado (Bedeutung)-
ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) em sua ligaccedilatildeo
derivativa agrave interpretaccedilatildeo (Auslegung) De outra maneira como a estrutura interpretativa
aberta pela compreensatildeo ou entendimento (Verstehen) transforma-se em proposiccedilatildeo
Na introduccedilatildeo desse capiacutetulo escrevemos que na fenomenologia heideggeriana veio agrave
110
tona o aspecto ontoloacutegico do conteuacutedo significativo Essa fenomenologia como ontologia
acabou por revelar de um lado a historicidade de todo e qualquer significado que pudesse
vir agrave palavra por outro que o campo de sentido no qual algo pode manter-se em seu
significado tambeacutem era histoacuterico Eacute necessaacuterio portanto a partir de agora mostrar como
o significado aberto pela compressatildeo-interpretativa (algo como algo) ganha sua forma
expressa inicialmente a partir do fenocircmeno da proposiccedilatildeo e a partir dessa derivaccedilatildeo
podemos ter acesso ao fenocircmeno da linguagem
II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da
interpretaccedilatildeo (Auslegung)
A anaacutelise da enunciaccedilatildeo (Aussage) conforme apresenta por Heidegger no sect33 de
Ser e Tempo constitui a segunda estrutura descrita na obra a qual nos permite
compreender o fenocircmeno da linguagem (Sprache) como a manifestaccedilatildeo uacuteltima de um
horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo dos entes previamente
articulada O fenocircmeno da linguagem aparece como resultado dos trecircs objetivos de sua
investigaccedilatildeo neste momento do tratado os quais listamos a seguir
1) Como a estrutura compreensiva-interpretativa (apresentada no toacutepico anterior)
sofre uma modificaccedilatildeo
2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos
3) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade
Como antecipamos e a partir da finalidade da anaacutelise acima apresentada
podemos dizer que o que estaacute em jogo nesse momento da analiacutetica eacute compreender que ldquoa
siacutentese predicativa fundamenta-se numa daccedilatildeo originaacuteria e eacute em funccedilatildeo da experiecircncia
antepredicativa que se opera a atribuiccedilatildeo do predicado ao sujeitordquo (NUNES 2012 p165)
Em outras palavras como a estrutura interpretativa aberta pela compressatildeo (algo como
algo) transforma-se em proposiccedilatildeo (Sujeito-predicado) E essa derivaccedilatildeo eacute elencada nas
trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo (Aussage)
1) Mostraccedilatildeo (Aufzeigung)
2) Predicaccedilatildeo (Praumldikation)
111
3) Comunicaccedilatildeo (Mitteilung)
Essas significaccedilotildees do termo Aussage ainda segundo Heidegger possuem caraacuteter
analiacutetico pois satildeo ldquotiradas do fenocircmeno que ela designa as quais delimitam em sua
conexatildeo e unidade a completa estrutura da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p437)
Essa unidade estaacute assentada nas condiccedilotildees preacutevias tendo em vista que ldquoa enunciaccedilatildeo natildeo
eacute um comportamento-que-flutua-no-ar e que possa por si mesmo abrir o ente
primariamente mas se comporta jaacute sempre sobre a base de ser-no-mundordquo
(HEIDEGGER 2012 p443)
Como vimos no capiacutetulo anterior as condiccedilotildees preacutevias conforme apresentadas no
Relatoacuterio Natorp satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a direccedilatildeo da
visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a ldquovisibilidaderdquo (Sichtweite) De
modo mais claro em (1) temos o acircmbito da realidade dada em uma preacutevia abertura
temporal de sentido em (2) temos a direccedilatildeo que jaacute determinou algo ldquocomo-algordquo (Als-
was) e jaacute ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu lugar
significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de toda
possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o como
do aparecer dos entes em seu ser seu significado e as possibilidades de comportamentos
do ser-aiacute eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto
(1) e jaacute interpretado (2) e por isso pode mover-se em pretensotildees de objetividade e
definiccedilatildeo Essas condiccedilotildees estatildeo articuladas com a interpretaccedilatildeo de Heidegger dos termos
respectivamente noucircs phroacutenesis e sophiacutea e assentadas na noccedilatildeo de verdade como
desvelamento (ἀλήθεια) Em Ser e Tempo Heidegger reelabora essas interpretaccedilotildees com
uma terminologia proacutepria respectivamente Vorhabe (ter-preacutevio) Vorsicht (ver-preacutevio)
e Vorgriff (conceito-preacutevio) e esse tripeacute
ldquoForma o arcabouccedilo projetivo do compreender que nos abre os entes ao sabor
dos nexos da referecircncia na conduta do trato atraveacutes dos quais se estende a rede
de significatividade () Eacute nessa conduta e portanto na experiecircncia
antepredicativa como a praacutexis maciccedila do mundo-da-vida em seu imediato e
frequente transcorrer cotidiano que Heidegger coloca a nascente do sentidordquo
(NUNES 2012 p168)
Como essas condiccedilotildees preacutevias devem ser compreendidas em vista do caraacuteter de
projeto-jogado do ser-aiacute natildeo eacute gratuita a designaccedilatildeo da abertura do ser-aiacute ao mundo como
112
ldquoabertura de sentido fundamentalrdquo A abertura compreensiva fundamental descerra o
poder-ser do ser-aiacute como projeto mas ao projetar-se ele eacute lanccedilado num ldquoaiacuterdquo histoacuterico O
seu poder-ser se lanccedila num campo de jogo jaacute descerrado interpretado e articulado por
essas condiccedilotildees E assim essas condiccedilotildees preacutevias ldquoreconduz[emcc]-nos ao ciacuterculo
hermenecircutico ontoloacutegico-histoacuterico que circunscreve por forccedila da finitude que faz do
homem um Daseinrdquo (NUNES 2012 p168) No que me lanccedilo ao mundo sou e o mundo
eacute como ele eacute como escreve Fernando Pessoa (2006 p177)
ldquoCreio no mundo como um malmequer
Porque o vejo Mas natildeo penso nele
Porque pensar eacute natildeo compreender
O Mundo natildeo se faz para pensarmos nele
(Pensar eacute estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordordquo
Talvez esses versos possam iluminar o que estaacute em questatildeo nesse paraacutegrafo
Poderiacuteamos nos questionar por qual motivo Heidegger natildeo passa da interpretaccedilatildeo
(Auslegung) ao discurso (Rede) pois este como veremos no proacuteximo capiacutetulo remete agrave
fala como fundamento ontoloacutegico da linguagem O sect 33 se refere a uma discussatildeo muito
especiacutefica mas que tem um lugar privilegiado na ontologia fundamental e estaacute
diretamente relacionada ao sect44 da mesma obra A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo de verdade
da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca que era a dos
neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa concepccedilatildeo
tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da verdade em
direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave proposiccedilatildeo Com
isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa medida
condicionando a ontologia agrave loacutegica
Courtine (1996) elabora essa problemaacutetica com clareza A partir de trecircs etapas
ele nos apresenta o caminho que conduz nosso autor da loacutegica agrave liacutengua A primeira etapa
diz respeito aos trabalhos de juventude de Heidegger ldquoainda marcados pela problemaacutetica
da validade como primeira elucidaccedilatildeo do ser no juiacutezordquo (COURTINE 1996 p14) Jaacute a
segunda etapa que Courtine denomina destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica consiste em regressar
da interpretaccedilatildeo ldquoescolarrdquo da loacutegica aristoteacutelica a uma problematizaccedilatildeo mais original do
loacutegos compreendido como modo de desvelamento Eacute nessa segunda etapa que estaacute
113
inserido o trabalho de Ser e Tempo sendo a passagem da primeira agrave segunda etapa
marcada pelo curso de 1925-1926 Logik die Frage nach der Wahrheit (GA21) A
terceira seria ainda uma etapa de destruiccedilatildeo mas de modo diferente marcada pelo que
Courtine denomina desorientaccedilatildeo ou ldquoabalordquo (erschuumlttern) e encontra sua imagem
expliacutecita no texto de 1935 ldquoIntroduccedilatildeo agrave metafiacutesicardquo
Portanto na primeira etapa a loacutegica para o jovem Heidegger eacute ainda apreendida
como loacutegica do ldquosentidordquo ou da ldquovalidaderdquo
ldquoA ideacuteia segundo a qual a Geltung a validade define o modo de ser proacuteprio das
proposiccedilotildees e das verdades vem como se sabe da loacutegica de Lotze Numa nota
das Neuere Forschungen uumlber Logik (GA I p23) Heidegger indicava a respeito
da Loacutegica de Lotze que acabava de ser reeditada sua loacutegica deve sempre ser
considerada como a obra fundamental da loacutegica moderna () E Heidegger que
ateacute aqui se exprimia como disciacutepulo fiel de Husserl terminava por acrescentar
esta questatildeo rica em posteridade para seu proacuteprio pensamento ldquoMas logo se
coloca a questatildeo o que eacute ndash sentidordquo (GA I p170)rdquo (COURTINE 1996 pp16-
17)
Vimos como o sentido (Sinn) em Ser e Tempo eacute apresentado sob uma perspectiva
radical relacionado agrave problematizaccedilatildeo mais original do lsquoloacutegosrsquo como mostraccedilatildeo do
fenocircmeno em seu ser e agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento Essa mudanccedila criacutetica
resulta da aparentemente simples interrogaccedilatildeo de Heidegger acerca da identificaccedilatildeo
ldquoWahrheit = wahrer Satz = Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade)rdquo
(COURTINE 1996 p 19) A criacutetica eacute assim expressa em Logik die Frage nach der
Wahrheit (GA21)
ldquoLotze que introduziu o conceito de lsquoGeltungrsquoem loacutegica emprega a expressatildeo
lsquoserrsquo no sentido estrito segundo o qual ser quer dizer a mesma coisa que
efetividade das coisas ser = lsquorealidadersquo (Vorhandenheit) [] Lotze natildeo conseguiu
superar o naturalismo na medida em que restringiu o significado do termo
veneraacutevel lsquoserrsquo ao ser real agrave realidade [] Na nossa terminologia utilizamos
inversamente ser no sentido amplo inserindo-nos na autecircntica tradiccedilatildeo da
filosofia grega de tal maneira que ser designa tanto a realidade quanto a
idealidade ou outras maneiras possiacuteveis de serrdquo (HEIDEGGER GA21 p62
apud COUTRINE 1996 p19)
Nesse sentido lembremos tambeacutem que para os neokantianos influenciados pela
filosofia dos valores de Lotze o conhecimento eacute possiacutevel como uma atividade valorativa
do juiacutezo (na forma ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo) Ou seja eacute o juiacutezo que reconhece o
conteuacutedo o sentido e a validade da verdade na sua pretensatildeo de necessidade e
114
universalidade algo ldquoeacuterdquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento Ora
o que a leitura de Ser e Tempo ateacute aqui jaacute demonstrou eacute que algo eacute natildeo porque um juiacutezo
loacutegico definiu seu conteuacutedo ontoloacutegico mas porque o ser-aiacute aquele que vai atribuir
sentido jaacute sempre se move numa preacute-compreensatildeo de ser a qual eacute fundamentalmente
praacutetica na visatildeo circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram
em seu ser Ora estabelecendo uma possiacutevel analogia parece que Heidegger desconfia
tanto do conhecimento teoacuterico-proposicional quanto Fernando Pessoa do ldquopensamentordquo
Assim reduzir qualquer ontologia agrave loacutegica atraveacutes do juiacutezo proposicional eacute como ldquoestar
doente dos olhosrdquo
No nosso entender o que Heidegger desenvolve no sect 33 soacute seraacute totalmente
elucidado se o relacionarmos com o sect 44 No sect 33 jaacute se anuncia que a forma fundamental
da predicaccedilatildeo (Praumldikation) sujeito e predicado (ldquoS eacute Prdquo) eacute derivada da mostraccedilatildeo
(Aufzeigung) originaacuteria compreensivo-interpretativa (algo como algo) e soacute por isso a
comunicaccedilatildeo (Mitteilung) uns com os outros na vida cotidiana pode expressar profericcedilotildees
como ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo ldquoHoje eacute um belo diardquo etc Antes de
entramos na apresentaccedilatildeo pormenorizada do sect33 e assim a relacionarmos ao sect44 eacute
necessaacuterio fazermos duas consideraccedilotildees
Essas camadas de derivaccedilatildeo evitam qualquer interpretaccedilatildeo relativista da noccedilatildeo de
linguagem em Heidegger Tentando escapar de uma leitura apressada devemos pensar
no acontecimento da verdade como um acontecimento compreensivo a partir de um ente
finito e histoacuterico o que eacute diferente de reduzi-lo a uma perspectiva historicista O que estaacute
em questatildeo por exemplo natildeo eacute se ldquocasardquo poderia se chamar ldquomesardquo (esse eacute um aspecto
ocircntico da linguagem) ou ainda que o fato de o enunciado possuir um fundamento
contingente ele seria menos verdadeiro Aleacutem disso haacute o fato de que o ente e as
possibilidades de ser do ser-aiacute vecircm agrave palavra por uma mostraccedilatildeo preacutevia de seu ser eacute o
ente que se mostra E na medida em que eacute mobilizado pelo ser-aiacute na interpretaccedilatildeo sua
mostraccedilatildeo pode ser modificada pela expressatildeo na forma predicativa A loacutegica deriva do
loacutegos a loacutegica natildeo eacute o lugar do loacutegos E o loacutegos eacute a maneira mesma de o ente se mostrar
e se ele se mostra para o ser-aiacute isso natildeo quer dizer que eacute o ser-aiacute que o determina Natildeo
Eacute o ser-aiacute que o potildee em liberdade O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento
como fenocircmeno Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a
115
expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional
compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na estabilidade de uma esfera para aleacutem
do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua manifestaccedilatildeo o sentido
de sua proacutepria existecircncia
Caberia ademais em uma pesquisa posterior investigar se a interpretaccedilatildeo do
loacutegos como loacutegos apofacircntico derivada da noccedilatildeo de intencionalidade essecircncia mesma da
fenomenologia ainda reconduz Heidegger a certo viacutenculo com a concepccedilatildeo tradicional
da linguagem na medida em que dizer eacute ainda dizer que algo eacute de tal ou qual maneira ou
seja ainda dizer na forma predicativa Dito de outra forma mesmo que Heidegger
demonstre o caraacuteter derivado da loacutegica ela continua a ser uma purificaccedilatildeo dos elementos
materiais da linguagem Isso significaria dizer que o problema heideggeriano da
linguagem ainda estava inserido no projeto da tradiccedilatildeo da filosofia ocidental 80
Retomemos agora as trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo
(Aussage) Na mostraccedilatildeo (Aufzeigung) como primeiro significado Heidegger reteacutem o
sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Essa forma do enunciado estaacute diretamente
relacionada ao ente que vem ao encontro no Vorhabe (ter-preacutevio) ou noucircs em que o ser-
aiacute originariamente pela ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhanden) movimenta-se e abre a
compreensatildeo em um mundo-ambiente (Umwelt) Mas toda compreensatildeo (Verstehen) jaacute
interpreta (Auslegung) o que entende e assim no trato praacutetico ou no ldquocomordquo
hermenecircutico-existenciaacuterio
ldquoA execuccedilatildeo originaacuteria da interpretaccedilatildeo natildeo consiste em uma proposiccedilatildeo-
enunciativa teoacuterica mas no fato de que no-ver-ao-redor da ocupaccedilatildeo se potildee de
lado ou se troca a ferramenta improacutepria lsquosem perder nisso uma soacute palavrarsquo Da
falta de palavras natildeo se deve concluir a falta de interpretaccedilatildeordquo (HEIDEGGER
2012 P445)
Na predicaccedilatildeo (Praumldikation) segundo significado da enunciaccedilatildeo fundado no
primeiro haacute a determinaccedilatildeo de um ente que modifica e restringe a mostraccedilatildeo de algo
como algo na forma sujeito-predicado Esse segundo significado estaacute diretamente
80 Cf Capiacutetulo I- Introduccedilatildeo
116
relacionado ao Vorsicht (ver-preacutevio) cuja base encontra-se no Vorhabe (ter-preacutevio) No
que o ser-aiacute vecirc algo e o determina ele restringe o utilizaacutevel (Zuhandenes) a um subsistente
(Vorhandener) com isso ele ldquovisa a um subsistente no utilizaacutevel Pelo olhar
contemplativo e para ele o utilizaacutevel se oculta como utilizaacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012
p445) Esse segundo momento da enunciaccedilatildeo estaacute ligado ao significado (Bedeutung) que
emerge a partir da significatividade (Bedeutsamkeit) e nesse sentido ldquoposiccedilatildeo-de-sujeito
posiccedilatildeo-de-predicado em unidade com o-pocircr satildeo inteiramente lsquoapofacircnticosrsquo no sentido
rigoroso da palavrardquo (HEIDEGGER 2012 p439) Aqui Heidegger ainda se refere a uma
categoria do ente que se mostra no interior do mundo Mas entatildeo como ocorre a
modificaccedilatildeo de algo como algo tomado como categoria subsistente (Vorhanden) na forma
loacutegica sujeito-predicado
ldquoAgora pela primeira vez se franqueia o acesso a algo assim como propriedades
O lsquoquecircrsquo da enunciaccedilatildeo determinante do subsistente eacute extraiacutedo do subsistente
como tal () A estrutura-de-como da interpretaccedilatildeo experimenta uma
modificaccedilatildeo O lsquocomorsquo em funccedilatildeo de apropriaccedilatildeo do entendido jaacute natildeo chega ateacute
uma totalidade-de-conjuntaccedilatildeo Ele foi separado de suas possibilidades de
articular as relaccedilotildees-de-remissatildeo da significatividade que constitui o ser-do-
mundo-ambiente O lsquocomorsquo eacute reprimido no plano uniforme do soacute subsistente ()
Esse nivelamento do lsquocomorsquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor em como
da determinaccedilatildeo-da-subsistecircncia eacute a prerrogativa da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER
2012 p447)
O ente tomado como subsistente (Vorhanden) eacute prerrogativa da predicaccedilatildeo Seu
recorte como algo que possui essa ou aquela propriedade torna possiacutevel algo como a
forma predicativa (ldquoS eacute Prdquo) O que estaacute em jogo poreacutem pois tornou-se paradigma da
tradiccedilatildeo eacute o nivelamento de todo e qualquer ente como algo sempre presente dotado de
propriedades e desse modo disponiacuteveis agrave apreensatildeo na forma predicativa Nesse
nivelamento todo ente eacute posto sob o domiacutenio da loacutegica que obscurece sua derivaccedilatildeo
essencial agrave mostraccedilatildeo do ente em seu ser em funccedilatildeo da relaccedilatildeo primaacuteria ser-aiacute como ser-
no-mundo e assim da verdade como desvelamento (ἀλήθεια)
A terceira forma do enunciado derivado do primeiro e do segundo significados eacute
apresentada por Heidegger como comunicaccedilatildeo (Mitteilung) A palavra alematilde jaacute indica o
caraacuteter puacuteblico do que inicialmente foi mostrado e pela predicaccedilatildeo foi determinado
teilung (partilha) mit (com) O enunciado como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se puder ser
partilhado com outrem ldquover juntordquo o mostrado jaacute determinado ldquolsquoCompartilhadorsquo eacute o
comum e transparente ser para o mostrado lsquoser pararsquo que deve ser firmemente mantido
117
como ser-no-mundo [] Agrave enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo entendida assim sentido
existenciaacuterio pertence o ser expressordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Essa terceira forma
estaacute relacionada ao Vorgriff (conceito-preacutevio) ou a significaccedilotildees calcificadas de um
mundo histoacuterico faacutetico
Natildeo podemos esquecer que a anaacutelise dos existenciaacuterios (entender interpretaccedilatildeo e
disposiccedilatildeo) estatildeo na anaacutelise do ldquoser-em como talrdquo (quinto capiacutetulo) antecedida pelo
capiacutetulo intitulado ldquoo ser-no-mundo como ser-com e como ser-si-mesmo lsquoA gentersquordquo
Nesse sentido e pelo caraacuteter programaacutetico de Ser e Tempo a anaacutelise da enunciaccedilatildeo ou
proposiccedilatildeo (Aussage) jaacute pressupotildee que ser-no-mundo eacute sempre ser-com-os-outros Desse
modo ser expresso na comunicaccedilatildeo eacute a primeira manifestaccedilatildeo acerca do fenocircmeno da
linguagem que Heidegger apresenta em Ser e Tempo Poreacutem no sect34 o autor indica que
a comunicaccedilatildeo enunciativa ou informativa (ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo
ldquoHoje eacute um belo diardquo etc) assentada na predicaccedilatildeo eacute um caso particular de comunicaccedilatildeo
(Cf HEIDEGGER 2012 p457) Mas aqui chegamos ao intuito principal de nosso
capiacutetulo descrever como a ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo fundada na predicaccedilatildeo que por
sua vez soacute eacute possiacutevel pela interpretaccedilatildeo apresenta o caraacuteter derivativo do enunciado
expresso em uacuteltima medida pela linguagem que comunica
A partir dessa apresentaccedilatildeo dos trecircs significados do enunciado (Aussage)
compreendemos sua definiccedilatildeo ldquoenunciaccedilatildeo eacute uma mostraccedilatildeo determinante que
comunicardquo (HEIDEGGER 2012 p443) Portanto chegamos agrave estrutura ontoloacutegica da
linguagem (Sprache) ou ao dizer puacuteblico acerca das coisas e do estado de coisas em um
mundo Ter chegado ao objetivo central de nosso capiacutetulo natildeo quer dizer que nossa tarefa
se encerra aqui Uma obra como Ser e Tempo nos exige mais A finalidade da investigaccedilatildeo
desse paraacutegrafo ainda natildeo foi esclarecida em seus dois uacuteltimos pontos
1) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos
2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade
Se Heidegger indica que no mostrar mesmo do fenocircmeno em seu loacutegos (algo como
algo) pode surgir a forma predicativa eacute necessaacuterio explicar como no proacuteprio loacutegos a
flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo eacute possiacutevel Nas palavras de nosso autor
118
ldquoQue funda a unidade desse juntar Ele reside como Platatildeo reconheceu em que o
λόγος eacute sempre um λόγος tivoacuteς Na perspectiva do ente manifesto no λόγος as
palavras satildeo reunidas em um todo verbal Aristoacuteteles viu mais radicalmente todo
λόγος eacute ao mesmo tempo σύνθεσis e διαίρεσηs A mostraccedilatildeo eacute um reunir e separar
Entretanto Aristoacuteteles natildeo desenvolveu a questatildeo ateacute perguntar Que fenocircmeno eacute
o que no interior da estrutura do λόγος possibilita e ao mesmo tempo exige a
caracterizaccedilatildeo de toda enunciaccedilatildeo como siacutentese e dieacuterese () O que com as
estruturas formais do lsquoligarrsquo e lsquosepararrsquo ou mais exatamente com a unidade de
ambos devia ser fenomenicamente encontrado eacute o fenocircmeno do lsquoalgo como algorsquordquo
(HEIDEGGER 2012 p449)
A criacutetica expliacutecita se volta contra Aristoacuteteles mas tambeacutem contra toda tradiccedilatildeo
que absorveu esse pressuposto E como natildeo podemos deixar de observar ateacute seu proacuteprio
mestre Husserl quando este estabeleceu a diferenccedila entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial
Essa distinccedilatildeo desalojou o lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel e o conduziu ao uso loacutegico
sem revelar de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno ou o desvelamento dos
entes em seu ser O fenocircmeno da linguagem enunciativa (Mitteilung) em funccedilatildeo de sua
derivaccedilatildeo da predicaccedilatildeo (Praumldikation) e essa por sua vez derivada da mostraccedilatildeo
(Aufzeigung) possui uma ligaccedilatildeo com os entes na medida em que diz o que de algum
modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que lsquoalgo eacute xrsquo ou que lsquoalgo natildeo eacute xrsquo eacute possiacutevel primariamente
pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com
No interior da estrutura do proacuteprio λόγος ao indicar-se que algo eacute diz-se tambeacutem como
ele eacute ou como ele natildeo eacute [esse traccedilo estaacute relacionado ao caraacuteter intencional do discurso
(die Rede) que examinaremos no proacuteximo capiacutetulo] Contudo a linguagem habitual que
manteacutem vigente os significados calcificados natildeo reconhece esse traccedilo para aleacutem da
gramaacutetica Aleacutem disso a proposiccedilatildeo loacutegica obscurece a estrutura do loacutegos que a
condiciona pelo fato de usurpar a verdade para o juiacutezo natildeo reconhecendo o lugar
originaacuterio da verdade Originariedade somente possiacutevel pela compreensatildeo da verdade
como Aleacutetheia O que nos conduz agrave segunda finalidade da investigaccedilatildeo do sect 33
Para explicarmos esse conceito originaacuterio de verdade eacute necessaacuterio que nos
reportemos ao sect44 Quando se diz ldquooriginariedaderdquo do fenocircmeno da verdade natildeo se diz
algo como lsquocausarsquo da verdade antes se refere agrave sua origem sem sentido objetivo
lsquoObjetividadersquo eacute um conceito derivado da verdade reportada ao juiacutezo Aqui a verdade
tambeacutem natildeo deve ser considerada para aleacutem de sua compreensatildeo histoacuterica Lembremos
de que natildeo haacute ldquoserrdquo sem a compreensatildeo do sentido de ser portanto eacute necessaacuterio vincular
119
sempre ldquoserrdquo ao ser-aiacute ente finito e histoacuterico Por conseguinte compreensatildeo de ser em
Ser e Tempo estaacute como a origem mesma da verdade compreendida como desvelamento
Como jaacute apontamos antes a enunciaccedilatildeo (Aussage) enquanto mostraccedilatildeo
(Aufzeigung) eacute a forma fundante dos modos possiacuteveis de enunciaccedilatildeo e nela Heidegger
reteacutem o sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Na mostraccedilatildeo nada se funda em
representaccedilotildees que se adequam a objetos como compreendeu a tradiccedilatildeo Para serem
verdadeiros e garantirem seu estatuto ontoloacutegico os entes natildeo precisam estar de em
acordo nem se submeterem agrave adequaccedilatildeo dos juiacutezos ou proposiccedilotildees dos homens A
derivaccedilatildeo da verdade como objetividade na ciecircncia ou em todo comportamento teoacuterico
natildeo pode negar a maneira pela qual o ente eacute posto em liberdade Conhecer
originariamente eacute deixar que o ente se mostre em seu ser dessa forma
ldquoSuponha-se que algueacutem de costas para a parede profira a seguinte enunciaccedilatildeo
verdadeira lsquoO quadro pendurado na parede estaacute tortorsquo Essa enunciaccedilatildeo se
comprova quando quem a enuncia se volta para a parede e percebe o quadro torto
ali dependurado Que eacute comprovado nessa comprovaccedilatildeo Eacute constatado algo
como uma concordacircncia do lsquoconhecimentorsquo ou do conhecido com a coisa
lsquocolocadarsquo na parede Sim e natildeo conforme se faccedila cada vez uma adequada
interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do que a expressatildeo lsquoo conhecidorsquo significa A que
se refere quem enuncia se natildeo julga o quadro na percepccedilatildeo mas soacute o representa
A algo como representaccedilotildees Certamente que natildeo se representaccedilatildeo deve aqui
significar representar como processo psiacutequico Tambeacutem natildeo se representaccedilotildees
tecircm o sentido do representado na medida em que visada uma imagem da coisa
real na parede Ao contraacuterio a enunciaccedilatildeo que soacute representa refere-se segundo
seu sentido mais proacuteprio ao quadro real na parede Soacute ele eacute visado e nada que
dele difira () O enunciar eacute um ser voltado para a coisa sendo ela mesma E que
eacute comprovado pela percepccedilatildeo Nada senatildeo que o percebido eacute o mesmo ente
visado na enunciaccedilatildeoConfirma-se que o ser enunciante para o enunciado eacute um
mostrar o ente que ele descobre o ente para o qual se volta Eacute comprovado o ser-
descobridor da enunciaccedilatildeo () o conhecer permanece referido unicamente ao
ente ele mesmo Eacute neste mesmo que se joga por assim dizer a confirmaccedilatildeo O
ente visado se mostra ele mesmo assim como ele eacute em si mesmo () A
enunciaccedilatildeo eacute verdadeira significa que ela descobre o ente em si mesmo Ela
enuncia mostra lsquofaz verrdquo (αποφανσις) o ente em seu ser-descoberto O ser
verdadeiro (verdade) da enunciaccedilatildeo se deve entender como um ser-descobridorrdquo
(Heidegger 2012 pp603-605)
O termo grego ldquoapophantikoacutesrdquo pela junccedilatildeo entre ldquoapordquo [ldquopara forardquo ldquomostrarrdquo
ldquotornar conhecidordquo] e ldquophaineinrdquo [ldquoexibir mostrarrdquo (derivado de lsquophosrsquo ldquoluzrdquo - mesma
raiz da palavra phainoacutemenon)] manteacutem sua forccedila quando articulado com as palavras
120
ldquoAuslegungrdquo e ldquoAussagerdquo Pois tal como ldquoapordquo ldquoausrdquo eacute o prefixo de liacutengua alematilde usado
nessas palavras com o sentido da preposiccedilatildeo aus que significa ldquopara forardquo ldquoderdquo Assim
uma vez interpretado (Auslegung) o ente enunciado (Aussage) jaacute mostrou jaacute trouxe a si
mesmo a conhecimento e desvelou-se como ente e nisso consiste sua verdade originaacuteria
(Aleacutetheia)
O retorno de Heidegger agrave ldquoforccedila das palavras mais elementaresrdquo ou agraves palavras
gregas como loacutegos dikeacute physis teacutechne e aleacutetheia eacute a tentativa de ir aleacutem da
sedimentaccedilatildeo histoacuterica das palavras Dito de outra forma voltar agrave origem dos termos
atraveacutes dos quais o pensamento filosoacutefico teria alcanccedilado lsquoas coisas mesmasrsquo coisas essas
que agora no presente permanecem veladas por camadas interpretativas cotidianas e
teoacutericas Sendo a concepccedilatildeo de que a proposiccedilatildeo eacute o lugar privilegiado da verdade uma
das maiores expressotildees da tradiccedilatildeo metafiacutesica Portanto eacute tarefa a que Ser e Tempo se
propotildee eacute a da descriccedilatildeo desse lugar originaacuterio ndash de mostraccedilatildeo - dos fenocircmenos
Mas se eacute o ser-aiacute na abertura de sentido fundamental que mobiliza os entes em seu
ser qual o papel desse ente marcado pela existecircncia em meio agrave verdade agora
compreendida como Aleacutetheia A compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido
primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode custodiar o sentido
de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento
ldquoO ser-verdadeiro como ser-descobridor soacute eacute de sua parte ontologicamente
possiacutevel sobre o fundmento do ser-no-mundo Este fenocircmeno no qual
reconhecemos uma constituiccedilatildeo fundamental do Dasein eacute o fundamento do
fenocircmeno originaacuterio da verdade () Na medida em que o Dasein eacute
essencialmente sua abertura e aberto abre e descobre ele eacute essencialmente
verdadeiro O Dasein eacute lsquona verdadersquordquo (HEIDEGGER 2012 pp607-611)
O ser-aiacute em sua unidade fenomecircnica como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge)
revelou-se como o fundamento sem fundamento da abertura compreensiva portanto
aquele que como ser-no-mundo pode abrir o sentido de ser de todo ente e de suas
possibilidades Poreacutem como projeto-jogado eacute tambeacutem aquele que pode perder-se e natildeo
tornar transparente essa condiccedilatildeo ontoloacutegica fundamental o que frequentemente jaacute faz
pois sempre jaacute custodiou seu ser no mundo suas orientaccedilotildees cotidianas as sedimentaccedilotildees
121
significativas e as concepccedilotildees de verdade calcificadas Por isso o Dasein eacute o ente que
tambeacutem estaacute na natildeo-verdade (Umwahrheit)81
Recuperemos o sentido efetivo de desvelamento ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o
que aponta para o velamento (lethe) que ficou para traacutes que mostra para aquilo que a
sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila da aleacutetheia que se torna possiacutevel a
objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89)
Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao
encontro em seu significado) no desvelamento originaacuterio de seu ser mas a mostraccedilatildeo dos
fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira dissimulada sempre em uma objetificaccedilatildeo de
seu ser como ente determinado pois ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na
medida em que partimos de seu encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de
descoberta perde seu sentido mais efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Entatildeo ldquodizer que o
Dasein estaacute e natildeo estaacute na verdade eacute compreender que o encobrimento (Verschlossenheit)
eacute [] a contraparte da aberturardquo (NUNES 2012 p197)
Depois dessa exposiccedilatildeo eacute necessaacuterio apresentar como a linguagem estaacute assentada
na constituiccedilatildeo proacutepria ao ser-aiacute em relaccedilatildeo agrave verdade Tentaremos mostrar como o
discurso (Rede) eacute para Heidegger o fundamento ontoloacutegico da linguagem mas ao
mesmo tempo como o proacuteprio fenocircmeno da linguagem jaacute sempre se apresenta como
falatoacuterio (Gerede) Essa eacute a tarefa do proacuteximo e uacuteltimo capiacutetulo de nosso trabalho
81 Cf HEIDEGGER 2012 sect44 p615
122
Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)
Em vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdos Sob a pele das palavras haacute cifras e coacutedigos O sol consola os doentes e natildeo os renova
As coisas Que tristes satildeo as coisas consideradas sem ecircnfase (A flor e a naacuteusea Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
No capiacutetulo anterior descrevemos de que modo o fenocircmeno da linguagem eacute
apresentado pela primeira vez em Ser e Tempo como ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo e ainda
como a linguagem eacute derivada da mostraccedilatildeo preacutevia dos entes em seu ser a partir da relaccedilatildeo
primaacuteria ser-aiacute como ser-no-mundo O Dasein como ente privilegiado estaacute remetido ao
mundo e sempre jaacute possui uma compreensatildeo preacutevia do ser A compreensatildeo ou
entendimento (Verstehen) de ser eacute o fundamento originaacuterio da verdade agora
compreendida como desvelamento aleacutetheia Poreacutem desvelar eacute apontar para o que
permanece velado ou seja a contraparte da abertura eacute o velamento
Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a
ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo
material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos
que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas
que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela
dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se
estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o
123
que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes82rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que
somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em
fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo
Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por
Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um
fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo
incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como
descoberto e os entes sempre disponiacuteveis A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo
cotidiano Heidegger chama de ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou
ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que
esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas
tomadas como oacutebvias e sempre disponiacuteveis pelos nossos recursos linguiacutesticos
I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem
A anaacutelise do discurso (Rede) por Heidegger eacute apresentada no sect34 de Ser e Tempo e
eacute assim descrita
ldquoCom a enunciaccedilatildeo ficou visiacutevel um derivado extremo da interpretaccedilatildeo A
elucidaccedilatildeo da terceira significaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo (ou
manifestaccedilatildeo verbal) conduziu ao conceito de dizer e falar que intencionalmente
sem duacutevida natildeo fora considerado ateacute aquele momento O fato de que a linguagem
seja tematizada somente agora deve servir de indicaccedilatildeo de que esse fenocircmeno
tem suas raiacutezes na constituiccedilatildeo existenciaacuteria da abertura do Dasein O fundamento
ontoloacutegico-existenciaacuterio da linguagem eacute o discurso () O discurso eacute
existenciariamente de igual originariedade que o entenderrdquo (HEIDEGGER
2012 p453)
Esse trecho nos coloca diante de uma constataccedilatildeo reveladora Afinal o que
fundamenta a linguagem estaacute remetido a abertura primaacuteria de sentido Mas isso jaacute natildeo
estaacute claro a partir da descriccedilatildeo da enunciaccedilatildeo De certa forma sim contudo de maneira
indireta pois a enunciaccedilatildeo (Aussage) comunicativa estaacute remetida aos significados ou
seja ao entendimento jaacute articulado e interpretado Agora poreacutem o que Heidegger nos
82 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo
Wolf Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249
124
apresenta eacute o discurso como fundamento da interpretaccedilatildeo e da enunciaccedilatildeo De outra
forma o fundamento da linguagem na proacutepria abertura de sentido (Sinn) de maneira que
o discurso eacute o proacuteprio entendimento articulado que pode interpretar
ldquoO discurso eacute a articulaccedilatildeo da entendibilidade Por isso o discurso fundamenta a
interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo Ao que pode ser articulado na interpretaccedilatildeo e
mesmo mais originariamente jaacute no discurso demos o nome de sentido O
articulado na articulaccedilatildeo discursiva como tal denominamos de o-todo-da-
significaccedilatildeo e este pode ser decomposto em significaccedilotildees As significaccedilotildees como
o articulado do articulaacutevel satildeo sempre providas de sentido () A entendibilidade
do encontrar-se do ser-no-mundo exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER
2012 p455)
O tratamento sobre o discurso (Rede) em Ser e Tempo eacute pouco extensivo mas
cabe a noacutes tentar compreendecirc-lo em todo sua radicalidade O iniacutecio da filosofia grega
denominado como ldquofilosofia da naturezardquo eacute marcado pela tentativa de encontrar a ordem
imanente agrave totalidade substancial do mundo material Essa totalidade estaacute expressa na
palavra physis que nada tem a ver com a natureza empiacuterica e manipulaacutevel que
conhecemos hoje pelas ciecircncias naturais83 Essa totalidade soacute pode ser vista como tal em
sua constituiccedilatildeo una se suas partes estiverem organicamente reunidas sem as quais natildeo
haacute totalidade mas eacute a partir da totalidade que as partes ganham sentido Mesmo que
Heidegger natildeo trate o discurso nesses termos e ainda mesmo que o termo physis apoacutes a
viragem ganhe uma conotaccedilatildeo toda especiacutefica nos valemos dessa explicaccedilatildeo para tentar
compreender a especificidade do discurso Desse modo podemos observar o que estaacute em
jogo no trecho acima O discurso eacute a articulaccedilatildeo da abertura de sentido sem ele o todo
natildeo poderia ser decomposto e a totalidade seria apenas um todo indistinto Nesse sentido
que o discurso fundamenta a interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo E isso nos revela um pouco
mais
ldquoA tatildeo comum definiccedilatildeo do iniacutecio da filosofia como a substituiccedilatildeo da explicaccedilatildeo
miacutetica ou (como eacute o recorte nos manuais de histoacuteria da filosofia) a passagem do
mito ao logos eacute por demais simplista para descrever o que representou a histoacuteria
e filosoficamente essa origem Compreender a filosofia antiga a partir da relaccedilatildeo
entre logos e physis eacute de fato compreender que o iniacutecio da especulaccedilatildeo filosoacutefica
sobre o mundo eacute em grande parte acompanhado pela tradiccedilatildeo miacutetica grega de
unidade entre espiacuterito e natureza e ao mesmo tempo pelo iniacutecio de um certo
83 Cf GONCcedilALVES M 2006 pp7-11
125
estranhamento entre o ser humano pensante e o ser natural ou () a natureza em
sua totalidaderdquo (GONCcedilALVES 2006 p12)
Como vimos o loacutegos para Heidegger natildeo eacute algo que estaacute no Dasein e por isso ele
pode pensar a totalidade Loacutegos segundo Heidegger em seu sentido originaacuterio grego natildeo
eacute ratio Ao contraacuterio o loacutegos estaacute na totalidade ele eacute a articulaccedilatildeo da totalidade que se
mostra ao mostrar os entes ou os fenocircmenos (loacutegos eacute loacutegos apofacircntico) E por isso o ser-
aiacute o acessa inicialmente de modo praacutetico pois natildeo se separa dessa totalidade (por isso a
originariedade da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da
conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) significativamente articulada) Na realidade o ser-aiacute soacute se
afasta dessa totalidade quando natildeo acessa mais o loacutegos de maneira originaacuteria relativo agrave
derivaccedilatildeo como ente simplesmente dado (Vorhanden) fazendo emergir algo como
significado (Bedeutung) que ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da
enunciaccedilatildeo (Aussage)
Mas qual a relaccedilatildeo entre loacutegos e discurso (Rede) Precisamos ir ao sect7 de Ser e
Tempo ldquoQuando dizemos que o significado-fundamental de λόγος eacute discurso essa
traduccedilatildeo literal soacute eacute plenamente validada a partir da determinaccedilatildeo do que o discurso ele
mesmo significardquo (HEIDEGGER 2012 p113) Loacutegos e discurso satildeo portanto o mesmo
Mas isso soacute torna a questatildeo ainda mais difiacutecil Afinal o loacutegos como loacutegos apofacircntico natildeo
eacute o mostrar do ente em seu ser Como mostrar e dizer podem ser o mesmo
ldquoλόγος como discurso significa () algo assim como δηλοῦν tornar manifesto
aquilo de que lsquose discorrersquo no discurso Aristoacuteteles explicitou mais nitidamente
essa funccedilatildeo do discurso como αποφανέσται O λόγος faz ver algo (φαίνεισθαι) a
saber aquilo sobre o que se discorre e faz ver a quem discorre (voz media) e aos
que discorrem uns com os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p113)
Discurso eacute a mostraccedilatildeo (ἀπόφανσις) que torna-se clara (δηλοῦν) Lembremos que
a plurivocidade do ente na tradiccedilatildeo loacutegica estaacute assentada nas possibilidades semacircnticas
submetidas a um princiacutepio loacutegico fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado
ao princiacutepio de identidade Pensamos que o que Heidegger potildee em tela eacute que a
ldquoidentidaderdquo e a ldquonatildeo-contradiccedilatildeordquo natildeo satildeo princiacutepios loacutegicos mas o mostrar e o torna-
se claro dos fenocircmenos em seu ser na totalidade articulada Ou seja o sentido de ser dos
126
fenocircmenos o mostrar o existente como existente eacute o loacutegos que manifesta e diz a si
mesmo pois reporta-se a palavra legein tornar manifesto aquilo de que se fala num
discurso deixar que algo seja visto manifesto porque posicionado em relaccedilatildeo uns com
os outros Tentemos esboccedilar um exemplo mas natildeo esqueccedilamos a fragilidade das palavras
sedimentas e o obscurecimento que elas oferecem a problemaacutetica ontoloacutegica Quando no
nosso cotidiano uma mesa ldquode trabalhordquo sem os livros sem a cadeira sem as canetas e
sobretudo sem a intenccedilatildeo de ser usada para o trabalho natildeo possui qualquer sentido Ela
eacute apenas um pedaccedilo de madeira ou mesmo passa obtusa aos nossos olhos Do mesmo
modo os livros as canetas e a cadeira A articulaccedilatildeo preacutevia desses objetos ou em seu
sentido ontoloacutegico a articulaccedilatildeo desses fenocircmenos eacute o que faz com que cada um deles
possa ser visto como um ldquoistordquo Notemos como o exemplo nos reporta exatamente a noccedilatildeo
de Umwelt descrita por Heidegger O que o discurso indica eacute a articulaccedilatildeo preacutevia para
que as coisas apareccedilam como tais jaacute no mundo circundante Articulaccedilatildeo anterior a
qualquer interpretaccedilatildeo de um ldquoistordquo ou de algo como algo e consequentemente anterior
ao enunciado (Aussage) Assim o caraacuteter ontoloacutegico dessa articulaccedilatildeo sempre dada a
noacutes em um mundo jaacute descerrado em que pode-se travar atividades praacuteticas com os entes
e em uacuteltima instacircncia falar de ldquomesardquo ldquocadeirardquo ldquocanetardquo etc eacute dado pelo discurso (die
Rede) compreendido como sendo o significado fundamental de λόγος
Nesse sentido podemos ver tambeacutem o caraacuteter intencional do discurso Como
indicamos no capiacutetulo anterior loacutegos como loacutegos apofacircntico possui uma ligaccedilatildeo com os
entes na medida que diz o que de algum modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que ldquoalgo eacute xrdquo ou
que ldquoalgo natildeo eacute xrdquo eacute possiacutevel primariamente pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da
mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com No interior da estrutura do proacuteprio λόγος
ao mostrar que algo eacute diz tambeacutem como ele eacute ou como ele natildeo eacute
ldquoPara tanto tomar-se-aacute uma sentenccedila elementar como exemplo de realizaccedilatildeo do
discurso (λόγος) ldquoa caneta eacute azulrdquo Acabou-se de dizer que um dos elementos
constitutivos do falar (λέγειν) eacute o sobre-o-quecirc Este sobre-o-quecirc em direccedilatildeo ao
qual se realiza o movimento intencional de desvelamento se encontra
simplesmente dado como um todo discreto e a interpelaccedilatildeo discursiva destaca
dele certos elementos O que ocorre ao se proferir o enunciado do tipo ldquoa caneta
eacute azulrdquo eacute uma cisatildeo de um todo subsistente o discurso opera no uno indistinto a
fixaccedilatildeo de limite de certas determinaccedilotildees particulares de modo a destacar
componentes pertencentes a esse elemento temaacutetico da fala () Assim natildeo se
tem uma mostraccedilatildeo da totalidade do sobre-o-quecirc mas apenas de determinados
aspectos seus Juntamente com este movimento de distinccedilatildeo do discurso
denominado de cisatildeo (διαίρεσις) ocorre outro a siacutentese (σύνθεσις) Dissociando-
127
se do todo indistinto certos elementos a ele pertencentes estes natildeo satildeo
simplesmente colocados uns ao lado dos outros Ao fixar os limites das
determinaccedilotildees pertencentes ao uno discreto o discurso reuacutene os elementos que
foram por ele destacados posicionando-os uns com os outros Assim a
interpelaccedilatildeo discursiva que demarca um elemento temaacutetico como sendo caneta e
azul atribui a cor azul ao ente utilizaacutevel caneta sendo esses elementos
visualizados conjuntamente como um no enunciado ldquoa caneta eacute azulrdquo Atraveacutes da
siacutentese o que se dava como um todo indistinto eacute visualizado em sua unidade
destacada por determinados aspectos seus Com base nesses dois momentos a
siacutentese (σύνθεσις) e a cisatildeo (διαίρεσις) vecirc-se que o desencobrimento realizado
pelo discurso eacute uma articulaccedilatildeo delimitadora do quecirc para o qual ele se dirigerdquo
(SALGADO 2015 p145)
Contudo o discurso natildeo eacute apenas o ldquosobre-quecircrdquo a ele tambeacutem pertencem ldquoo dito
discursivamente como tal a comunicaccedilatildeo e o anuacutenciordquo (HEIDEGGER 2012 p459) Isto
porque ldquoo discurso eacute a articulaccedilatildeo significacional da entendibilidade [ou da compreensatildeo
(Verstehen)] do encontrar-se (befindlichen) no ser-no-mundordquo (HEIDEGGER 2012
p459) Ou seja natildeo eacute apenas aos entes e a um estado de coisas natildeo conforme ao ser-aiacute
que o discurso se reporta Mas a proacutepria abertura que possui sentido sendo o sentido
ldquoaquilo que a entendibilidade de algo se manteacutem Denominamos sentido o que eacute
articulaacutevel no abrir que entenderdquo (HEIDEGGER 2012 p429) O discurso como o
significado originaacuterio de loacutegos eacute o proacuteprio ser-no-mundo Pois na medida em que a
proacutepria abertura compreensiva se manteacutem por estar articulada pode sustentar em seu
acircmbito o que quer que seja entes sensaccedilotildees projetos etc E para fora dela bem natildeo haacute
nem mesmo fora Nesse sentido que ldquoa entendibilidade do encontrar-se do ser-no-mundo
exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER 2012 p455) e ldquoo todo-de-significaccedilatildeo da
entendibilidade acede agrave palavra Das significaccedilotildees nascem as palavras e natildeo satildeo as
palavras que entendidas como coisas se proveem de significaccedilotildeesrdquo (HEIDEGGER
2012 p455) A situaccedilatildeo insustentaacutevel de considerar as palavras como as portadoras
originaacuterias de significados pode ser exemplificada por um trecho da obra Cem anos de
solidatildeo de Gabriel Garciacutea Maacuterquez no momento em que Joseacute Arcadio Buendiacutea previu
que as inscriccedilotildees graacuteficas poderiam natildeo mais reportar agrave utilidade das coisas
ldquoFue Aureliano quien concibioacute la foacutermula que habiacutea de defenderlos durante varias
meses de las evasiones de la memoria La descubrioacute por casualidad Insomne
experto por haber sido uno de las primeros habiacutea aprendido a la perfeccioacuten el
arte de la plateriacutea Un diacutea estaba buscando el pequentildeo yunque que utilizaba para
laminar los metales y no recordoacute su nombre Su padre se lo dijo laquotasraquo Aureliano
128
escribioacute el nombre en un papel que pegoacute con goma en la base del yunquecito tas
Asiacute estuvo seguro de no olvidarlo en el futuro No se le ocurrioacute que fuera aquella
la primera manifestacioacuten del olvido porque el objeto teniacutea un nombre difiacutecil de
recordar Pero pocos diacuteas despueacutes descubrioacute que teniacutea dificultades para recordar
casi todas las cosas del laboratorio Entonces las marcoacute con el nombre respectivo
de modo que le bastaba con leer la inscripcioacuten para identificarlas Cuando su
padre le comunicoacute su alarma por haber olvidado hasta los hechos maacutes
impresionantes de su nintildeez Aureliano le explicoacute su meacutetodo y Joseacute Arcadio
Buendiacutea lo puso en praacutectica en toda la casa y maacutes tarde la impuso a todo el pueblo
Con un hisopo entintado marcoacute cada cosa con su nombre mesa silla reloj
puerta pared cama cacerola Fue al corral y marcoacute los animales y las plantas
vaca chivo puerca gallina yuca malanga guineo Paca a poca estudiando las
infinitas posibilidades del olvido se dio cuenta de que podiacutea llegar un diacutea en que
se reconocieran las cosas por sus inscripciones pero no se recordara su utilidad
Entonces fue maacutes expliacutecito El letrero que colgoacute en la cerviz de la vaca era una
muestra ejemplar de la forma en que los habitantes de Macondo estaban
dispuestas a luchar contra el olvido Eacutesta es la vaca hay que ordentildearla todas las
mantildeanas para que produzca leche y a la leche hay que herviriacutea para mezclarla
con el cafeacute y hacer cafeacute con lecherdquo (MAacuteRQUEZ 1999 p102)
A doenccedila da insocircnia em Macondo na obra de Maacuterquez e o esquecimento como
sua consequecircncia eacute ndash se nos permitem uma comparaccedilatildeo livre ndash como na cotidianidade
consideramos os entes disponiacuteveis e sempre presentes Partimos sempre desse
encobrimento oferecido pela liacutengua que a cada vez quer fixar os entes e assim as palavras
satildeo instrumentalizadas pois definem afinal nessa insocircnia o que cada coisa eacute O
esquecimento eacute portanto o desligamento da mostraccedilatildeo originaacuteria dos entes em seu ser
E em uacuteltima medida o esquecimento da verdade como desvelamento (Aleacutetheia) Dito de
outro modo aquilo que Heidegger jaacute havia indicado em 1923-1924 ldquoO que importa eacute
somente que essas coisas existem aiacute () Mas que falte um nome para essas coisas mostra
contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia84(HEIDEGGER
2006p31)
Mas o que consiste esse dizer falar do discurso Se ele eacute o fundamento ontoloacutegico
da linguagem certamente natildeo eacute o mesmo que profericcedilotildees verbais e nominais e sobretudo
natildeo diz respeito a natureza fiacutesica da produccedilatildeo e da percepccedilatildeo dos sons da fala humana
como compreende o estudo da foneacutetica Heidegger nos apresenta entatildeo como o dizer do
discurso pode ser visualizado de forma clara pelo ouvir
84 Cf Nota 45
129
ldquoA conexatildeo do discurso com o entender e com a entendibilidade se torna clara a
partir de uma possibilidade existenciaacuteria do discurso ele mesmo a saber a partir
do ouvir Natildeo eacute por acaso que ao natildeo ouvir lsquodireitorsquo dizemos natildeo lsquoter entendidorsquo
Para o discurso o ouvir eacute constitutivo E assim como a prolaccedilatildeo verbal se funda
no discurso a percepccedilatildeo acuacutestica tambeacutem se funda no ouvir () O Dasein ouve
porque entende Como entendedor ser-no-mundo com os outros ele eacute no seu
ouvir lsquoobedientersquo ao Dasein-com e a si mesmo e nessa audiecircncia obediente ele
se torna dependenterdquo (HEIDEGGER 2012 p461)
Essa dependecircncia diz respeito agrave articulaccedilatildeo jaacute aberta de um mundo descerrado O
discurso articula um mundo esse que sempre nos movimentamos e nos orientamos Sem
essa obediecircncia natildeo haveria qualquer possibilidade de accedilotildees e projetos do ser-aiacute E o
ouvir como possibilidade existenciaacuteria do discurso eacute a manifestaccedilatildeo de seu traccedilo
intencional que ilumina sua presenccedila na abertura de sentido Pois o ouvir eacute o fundamento
ontoloacutegico do escutar ldquofenomenicamente mais originaacuterio do que se determina lsquode
imediatorsquo em psicologia como ouvir ter sensaccedilotildees de sons e perceber ruiacutedosrdquo
(HEIDEGGER 2012 p461) De modo mais claro o fenocircmeno desde Husserl indica
aquilo que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute sempre uma doaccedilatildeo com
significado Assim a intencionalidade fenomenoloacutegica para Heidegger agora voltada ao
mundo e a facticidade como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em seu ser acontece
na e pela articulaccedilatildeo discursiva que ouve porque jaacute articulou a totalidade e por isso
entende tendo em vista que essa totalidade natildeo se apresenta como um todo indistinto Ou
seja o ser-aiacute em sua constituiccedilatildeo primaacuteria voltado agrave abertura compreensiva articulada
pelo discurso pode escutar a doaccedilatildeo fenomecircnica
ldquolsquoDe imediatorsquo nunca ouvimos barulhos e o conjunto de ruiacutedos mas o carro que
range a motocicleta O que se ouve eacute a coluna em marcha o vento norte o pica-
pau bicando o fogo crepitando Eacute preciso uma atitude muito artificial e
complicada para lsquoouviursquo um lsquobarulho purorsquo Que em primeiro lugar ouccedilamos
motocicletas e carros eacute a prova fenomecircnica de que o Dasein como ser-no-mundo
manteacutem-se cada vez junto ao utilizaacutevel do interior-do-mundo e de modo algum
imediatamente junto a lsquosensaccedilotildeesrsquo cuja concatenaccedilatildeo tivesse primeiramente de
ser formada para que se proporcionasse o trampolim a partir do qual o sujeito
saltaria para alcanccedilar finalmente um lsquomundorsquo O Dasein como essencialmente
entendedor eacute de pronto junto ao entendidordquo (HEIDEGGER 2012 p461)
A doaccedilatildeo fenomecircnica possibilitada pelo traccedilo intencional do discurso se estende
agrave escuta e ao calar de um outro ser-aiacute pois como ser-no-mundo que eacute sempre ser-com-
os-outros o Dasein jaacute estaacute ldquode antematildeo com o outro junto ao ente sobre o qual discorrerdquo
130
(HEIDEGGER 2012 p463) Por isso quando outra pessoa nos fala algo natildeo ouvimos
primeiramente os sons para depois agregaacute-los e formarmos palavras compreensiacuteveis Ou
ainda quando o outro silencia ainda expressa algo e tambeacutem pode lsquodar a entenderrsquo
ldquoOuvindo compreendemos o que o interlocutor diz E o dizer nos coloca de
imediato com o interlocutor junto ao ente a respeito do qual o discurso se
pronuncia O genuiacuteno silecircncio tambeacutem modo de ouvir e de dizer calando Essa
preeminecircncia do dizer se reflete nos componentes dos do discurso que se
estruturam a partir daquilo que acede agrave palavra do ente que ela torna manifesto
Dizer algo de certa maneira para algueacutem numa tonalidade ou disposiccedilatildeo de
acircnimo nisso consiste o fenocircmeno do discurso em sua completa estrutura
comunicativa-expressivardquo (NUNES 2012 p 170)
Poderiacuteamos dizer que a articulaccedilatildeo da compreensatildeo (Verstehen) pelo discurso
(Rede) na reuniatildeo dos elementos que foram por ele destacados posicionando-os
discursivamente opera como a harmonia de uma muacutesica que daacute aos fenocircmenos seu lugar
na melodia em funccedilatildeo do ritmo Sendo o ritmo o ldquomundordquo como abertura histoacuterica que
sustenta o sentido de ser de cada parte da melodia que continuaraacute agrave tona ou que teraacute
sentido
Portanto para o ser-aiacute estar lanccedilado em um mundo como projeto-jogado eacute estar
familiarizado atraveacutes da abertura que entende dispositivamente o horizonte de sentido E
esse horizonte eacute compartilhado por todos que convivem em um mesmo mundo faacutetico e eacute
neste sentido que a comunicaccedilatildeo o terceiro significado de enunciaccedilatildeo como vimos no
capiacutetulo anterior ldquoefetua lsquoa partilharsquo do co-encontrar-se e do entendimento do ser-comrdquo
(HEIDEGGER 2012 p457) O que eacute compartilhado natildeo eacute meramente um conteuacutedo
significativo de um lsquopacto-linguiacutesticorsquo assim como comunicar natildeo eacute trazer um desejo
uma expressatildeo uma afirmaccedilatildeo de lsquoforarsquo de um sujeito para o lsquointeriorrsquo de outro mas ldquosua
tendecircncia-de-ser consiste em pretender que o ouvinte participe do ser aberto por aquilo-
sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012 p 473) ou seja a partilha da
experiecircncia da abertura compreensiva jaacute articulada como horizonte de possibilidades que
vem agrave linguagem De outro modo
ldquoDado que o fundamento ontoloacutegico natildeo possui existecircncia agrave parte daquilo que
funda o discurso que eacute a condiccedilatildeo transcendental da linguagem relevando-se da
abertura do Dasein de seu ser-no-mundo tambeacutem eacute lsquolinguagem extensivarsquo (SZ
p61) Inversamente a linguagem como totalidade de palavras (Wortganzheit) de
uma liacutengua eacute o discurso pronunciado De onde se conclui que a primeira eacute a forma
131
estabilizada do segundo na perspectiva do ser-no-mundo da existecircncia cotidiana
que lhe impotildee a condiccedilatildeo de ente intramundano como utensiacutelio As palavras que
podem espedaccedilar-se e coisificar-se seriam o veiacuteculo dessa condiccedilatildeo instrumental
() E que eacute aceder agrave palavra senatildeo falar e que eacute falar senatildeo usar a linguagem
Satildeo pois equivalentes as duas afirmaccedilotildees de Heidegger- que ser no-mundo eacute
falante e que ele tem linguagem (Sprache)() Ambas concernem a um soacute
fenocircmeno captado no conceito aristoteacutelico de homem como ser capaz de falar ndash
zoacuteon loacutegon eacutechon- complemento agrave tese do zoacuteon politikoacuten (animal poliacutetico) - que
revela a interlocuccedilatildeo o lsquofalar uns com os outrosrsquo em que o cotidiano grego estava
politicamente enraizadordquo (NUNES 2012 p170)
Eacute um tanto embaraccediloso os caminhos conceituais que levam o discurso (die Rede)
agrave linguagem (die Sprache) e ainda como essa se apresenta sempre como falatoacuterio (das
Gerede) pela essecircncia mesma da comunicaccedilatildeo (Mitteilung) Pois a linguagem cotidiana
- o dizer uns com os outros em um mundo faacutetico - eacute um discurso que jaacute se expressou ou
seja o acontecimento da linguagem jaacute eacute articulado por um discurso preacutevio e o discurso
jaacute expresso eacute comunicaccedilatildeo Mesmo que a analiacutetica indique uma estratificaccedilatildeo e ainda a
fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da linguagem pelo discurso haacute um caraacuteter ciacuteclico
consequecircncia mesma do ciacuterculo hermenecircutico Se as palavras natildeo tecircm significados fixos
mas histoacutericos provenientes de uma abertura de sentido articulada que sustenta esses
significados Ainda assim os significados acumulam-se nas palavras e essas satildeo afinal a
maneira pela qual o mundo eacute dito nas relaccedilotildees interpessoais e nas relaccedilotildees das pessoas
com as coisas Desse modo se os significados acumulam-se nas palavras o discurso (die
Rede) sempre se manifesta na linguagem cotidiana E eacute na cotidianidade que a absorccedilatildeo
da linguagem eacute imediatamente tomada pela impessoalidade atraveacutes do uso instrumental
das palavras na tendecircncia de oferecer um mundo sempre estaacutevel Eacute essa uacuteltima descriccedilatildeo
que Heidegger chama de falatoacuterio (Gerede) Pois
ldquoO substantivo alematildeo Rede deriva-se diretamente do verbo reden que significa
falar O particiacutepio dos verbos em alematildeo eacute feito na maior parte das vezes por meio
da inserccedilatildeo da partiacutecula lsquogersquo() O que temos na cotidianidade mediana do ser-
aiacute eacute falatoacuterio natildeo porque podemos constatar empiricamente um esvaziamento da
linguagem impessoal e porque sempre eacute possiacutevel acompanhar a falta de
profundidade desses discursos Ao contraacuterio eacute falatoacuterio porque natildeo se realiza
senatildeo a partir de um ato jaacute concluiacutedordquo (CASANOVA 2006 p63)
Mas antes de passarmos agrave descriccedilatildeo do falatoacuterio eacute preciso indicar como esses
ldquoembaraccedilos conceituaisrdquo em torno do discurso indicam a ldquotransiccedilatildeo do pensamento
132
heideggeriano ndash em sua segunda fase nucleado em torno da linguagem- ldquo(NUNES 2012
p169) pois ldquoestampam-se na proacutepria equivocidade do termo designativo die Rede que
significa aleacutem de discurso conversaccedilatildeo e pronunciamentordquo (NUNES 2012 p169)
Essa equivocidade torna-se clara no fato que o discurso (die Rede) natildeo se funda em
qualquer ekstase determinada ou seja natildeo eacute possiacutevel encontrar na temporalidade do ser-
aiacute um momento constitutivo no qual ele emerge Dando assim em Ser e Tempo um
caraacuteter transcendental ao discurso
ldquoconotando o loacutegos grego retraduzido o discurso que nos daria a plena abertura
do Dasein em seu aiacute eacute incluindo portanto a disposiccedilatildeo de acircnimo eacute como modo
eminente de temporalizaccedilatildeo a que natildeo cabe o predomiacutenio de um ecircxtase
determinado o existentivo da linguagem o seu fundamento ontoloacutegicordquo
(NUNES 2012 p169)
Apresentamos no capiacutetulo anterior que no sect65 de Ser e Tempo o autor apresenta
o sentido ontoloacutegico da preocupaccedilatildeo (Sorge) na temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-
se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O
ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Futuro
(poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente (presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees
temporais como as que tomamos diariamente mas o caraacuteter essencial da
existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre adiantado (futuro) em
relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza as possibilidades na
facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva oferecida pela tradiccedilatildeo
histoacuterica ) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no presente esse
passado em seus comportamentos e projetos
No Quarto Capiacutetulo da Segunda Seccedilatildeo denominado Temporalidade e
cotidianidade Heidegger retoma a multiplicidade dos fenocircmenos da anaacutelise preparatoacuteria
da primeira seccedilatildeo para compreendecirc-los em sua unidade em funccedilatildeo da totalidade estrutural
fundante da Sorge E se a analiacutetica existenciaacuteria do ser-aiacute inicia sua investigaccedilatildeo a partir
da cotidianidade mediana tendo em vista que a impropriedade oferecida por suas
orientaccedilotildees eacute em suma a orientaccedilatildeo inicial do ser-aiacute para seus possiacuteveis modos de ser Eacute
necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos na cotidianidade a partir da
temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico
133
Nesse sentido no sect 68 item d de Ser e Tempo intitulado ldquoA temporalidade do
discursordquo Heidegger diz A plena abertura do aiacute constituiacuteda pelo entender o encontrar-
se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) recebe a articulaccedilatildeo pelo discurso
(Rede) Por isso o discurso natildeo se temporaliza primariamente numa ekstase determinada
(HEIDEGGER 2012 p949) e ainda o discurso eacute temporal em si mesmordquo
(HEIDEGGER2012 p949) Na continuidade do paraacutegrafo o autor prossegue dizendo
que natildeo obstante o discurso seja expresso na facticidade na linguagem e deste modo o
presente (Gegenwaumlrtige) desempenha uma funccedilatildeo constitutiva ainda assim
Mas porque o discurso cada vez discorre sobre o ente se bem que natildeo primaacuteria
e principalmente no sentido da enunciaccedilatildeo teoacuterica a anaacutelise da constituiccedilatildeo
temporal do discurso e a explicaccedilatildeo dos caracteres temporais das formaccedilotildees da
liacutengua soacute podem ser levados a cabo quando se tenha resolvido o problema da
conexatildeo de princiacutepio de ser e verdade a partir da problemaacutetica da
temporalidade Poder-se-ia delimitar entatildeo o sentido ontoloacutegico do lsquoeacutersquo que uma
superficial teoria da proposiccedilatildeo e do juiacutezo deformou em lsquocoacutepularsquo Soacute a partir da
temporalidade do discurso isto eacute a partir da temporalidade do Dasein em geral
pode-se elucidar a lsquoorigemrsquo e pode-se entender ontologicamente a possibilidade
de uma formaccedilatildeo-do-conceito (HEIDEGGER2012 p949 grifo nosso)
O problema reside no fato de que o Dasein em Ser e Tempo eacute apresentado como
o fundamento sem fundamento de outra forma a compreensatildeo enquanto acontecimento
de sentido primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode
custodiar o sentido de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento
Entatildeo na medida em que a temporalidade (Zeitlichkeit) eacute o sentido ontoloacutegico desse ente
privilegiado qualquer fenocircmeno exposto na analiacutetica preparatoacuteria precisaria encontrar
seu fundamento ontoloacutegico em alguma ekstase determinada futuro o ser-do-sido ou
presencizar Por exemplo o presente desempenha a funccedilatildeo constitutiva da linguagem
(Sprache) na medida em que o ser-aiacute lanccedilado em um mundo encontra-se em meio aos
entes e jaacute junto aos outros atualizando os significados sedimentados pela linguagem (pela
liacutengua) oferecidos no presente Isso poreacutem natildeo ocorre com o discurso (die Rede) que eacute
ldquotemporal em si mesmordquo Desse modo seu sentido ontoloacutegico ou aquilo que sustenta sua
origem compreendida como seu sentido de ser a partir do desvelamento natildeo eacute elucidado
em Ser e Tempo Pensamos que a partir dessa constataccedilatildeo pelo comprometimento
fenomenoloacutegico de Heidegger a estratificaccedilatildeo da linguagem presente em Ser e Tempo
natildeo pode mais manter-se apoacutes a viragem Pois o fenocircmeno da linguagem precisa ser
134
reconsiderado a partir de si mesmo para que seja possiacutevel encontrar seu fundamento
ontoloacutegico85
Esse breve momento da obra de 1927 acerca da temporalidade do discurso em
Ser e Tempo eacute de extrema importacircncia para pensarmos como o fenocircmeno da linguagem
possui jaacute um importante e amplo papel no interior do tratado Pois ele estaacute intimamente
ligado agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento (Aleacutetheia) revelando natildeo soacute um impasse
acerca da estratificaccedilatildeo da linguagem na obra bem como traz agrave tona que o encobrimento
como contraparte da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser ganha uma imagem peculiar
exatamente na manifestaccedilatildeo da linguagem E desse modo apesar da apresentaccedilatildeo do
discurso e de sua especificidade em Ser e Tempo encontramos apenas a descriccedilatildeo da
linguagem (Sprache) que chamamos de ldquonegativardquo como sedimentaccedilatildeo interpretativa
pelo falatoacuterio (Gerede) Eacute o que vamos expor a seguir
II- O Falatoacuterio (das Gerede)
Ainda no sect34 Heidegger alerta que a anaacutelise do discurso (Rede) perdeu de vista a
cotidianidade do ser-aiacute solo fenomecircnico que a analiacutetica se guia naquele momento Pois
as estruturas existenciaacuterias da abertura do ser-no-mundo entender (Verstehen) encontrar
(Befindlichkeit) discurso (Rede) e interpretar (Auslegen) na medida em que se manteacutem
pela abertura primaacuteria do ser-aiacute remetido ao mundo inicialmente no modo de ser de ldquoa-
genterdquo (das Man) devem ser compreendidas em seu modo especiacutefico na cotidianidade
mediana Como o ser-aiacute eacute de iniacutecio lanccedilado nas possibilidades faacuteticas de um mundo
sedimentado a anaacutelise propriamente fenomenoloacutegica deve se orientar pelos fenocircmenos
expressos nesse horizonte
ldquoDe imediato eacute preciso que fique visiacutevel a partir de alguns fenocircmenos
determinados a abertura de a-gente isto eacute pela elucidaccedilatildeo do modo-de-ser-
cotidiano de discurso visatildeo e interpretaccedilatildeo No relativo a esses fenocircmenos natildeo
eacute supeacuterfluo observar que a interpretaccedilatildeo tem um propoacutesito puramente ontoloacutegico
estando muito longe de uma criacutetica moralizante do Dasein cotidiano e estaacute muito
longe de qualquer aspiraccedilatildeo de lsquofilosofia da culturarsquordquo (HEIDEGGER 2012
p471)
85 Nesse sentido Cf LAFONT 1997 pp46-52
135
A anaacutelise do que Heidegger denomina ldquoA-genterdquo (das Man) eacute apresentada no
quarto capiacutetulo da primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo e tem em vista elucidar o ldquoser-no-mundo
como ser-comrdquo e ldquocomo ser-si-mesmordquo Essa descriccedilatildeo estaacute diretamente relacionada ao
conceito de queda ou decair (Verfallen) pois eacute esse solo imediato que o ser-aiacute se
movimenta e terceiriza seu ser agraves orientaccedilotildees cotidianas cada vez em fuga de seu ser-
proacuteprio mas condiccedilatildeo inexoraacutevel para que possa conquistaacute-lo E ainda como expresso
no trecho acima esses conceitos nada tem a ver com uma criacutetica moral como que uma
criacutetica agrave sociedade de massa A anaacutelise eacute uma elucidaccedilatildeo fenomenoloacutegica e por isso
ontoloacutegica O que estaacute em jogo nessa descriccedilatildeo eacute o acesso aos fenocircmenos como eles se
mostram para entatildeo chegar ao fundamento ontoloacutegico que sustenta seu sentido de ser
Desse modo a facticidade ou o mundo cotidiano eacute o maneira pela qual os fenocircmenos e
as possibilidades do ser-aiacute vecircm ao encontro O que anaacutelise sobre ldquoA-genterdquo (das Man)
realizada no sect25 ao sect27 potildee em tela eacute 1) o esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein 2) o
Dasein-com dos outros e o cotidiano ser-com 3) o cotidiano ser-si-mesmo e a-gente
Se no sect9 Heidegger expotildee o sentido formal do ser-aiacute como esse ente que a cada
vez noacutes mesmos somos e ainda como a essecircncia desse ente reside em sua existecircncia o
esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein deve agora voltar-se ao campo situacional histoacuterico
que extraiu esse conceito
ldquoNo presente contexto de uma analiacutetica existenciaacuteria do Dasein factual surge a
pergunta sobre se o referido modo de o eu se dar abre o Dasein em sua
cotidianidade supondo-se que em geral o abra () Pode-se sempre muito bem
dizer sobre esse ente em termos onticamente justificaacuteveis que lsquoeursquo o sou
Contudo a analiacutetica ontoloacutegica ao empregar essas proposiccedilotildees deve fazecirc-lo com
reservas de princiacutepio O lsquoeursquo somente deve ser entendido no sentido de um como
indicador formal e indiferente de algo que em sua concreta conexatildeo-de-ser
fenomecircnica talvez se desvende como o lsquoopostorsquo do que parecia lsquoNatildeo eursquo de
modo algum significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo [privado de
lsquoegoidadersquo] mas significa um determinado modo-de-ser do lsquoeursquo ele mesmo por
exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p337)
A interpretaccedilatildeo moderna da essecircncia do ser humano baseada na egoidade em um
ldquoeurdquo que se reconhece como tal e em uacuteltima medida fundamenta toda e qualquer
descriccedilatildeo dos entes obscurece o solo em que esse conceito aparece Referir-se ao ldquoeurdquo eacute
possiacutevel no trato diaacuterio e comum da existecircncia cotidiana (onticamente) na medida em que
136
o ldquoaiacuterdquo existe cooriginariamente Natildeo haacute sujeito sem mundo por esse motivo a
ldquolsquosubstacircnciarsquo do homem natildeo eacute o espiacuterito como a siacutentese de alma e corpo mas a
existecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p341) E desse modo se a existecircncia acontece em um
mundo ela natildeo se reconhece primariamente para depois reconhecer ldquomundordquo e os
ldquooutrosrdquo mas existindo o ser humano eacute as possibilidades disponiacuteveis em seu ldquoaiacuterdquo
compartilhando com os outros pois ldquonatildeo haacute afinal de pronto um eu isolado que se decirc sem
os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p337)
A abertura primaacuteria de sentido ou a abertura compreensiva-interpretativa sempre
disposta do ser-aiacute o remete ao mundo junto aos entes e aos outros que partilham a mesma
abertura compreensiva-interpretativa e assim noacutes temos mundo De outro modo
ningueacutem tem lsquoseu mundorsquo particular emergente da consciecircncia que se auto reconhece a
partir da qual lsquoenxergarsquo o mundo puacuteblico Tudo que algueacutem possa vir a pensar sentir
compor dizer etc eacute primariamente aquilo que o mundo puacuteblico compartilhado sustenta
como algo que tem sentido Natildeo sou porque penso antes penso porque sou Quando
tentamos pensar em qualquer significado que natildeo seja sustentado pelo sentido do mundo
puacuteblico natildeo encontramos o que possa ser dito ou pensado
Mas o que o autor quer dizer quando indica que o ldquonatildeo eursquo de modo algum
significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo mas significa um determinado modo-de-
ser do lsquoeursquo ele mesmo por exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012
p337) Imersos nas ocupaccedilotildees diaacuterias empreendidas com os outros o ser-aiacute ldquocomo
cotidiano ser-um-com-o-outro estaacute na sujeiccedilatildeo aos outros Ele natildeo eacute si-mesmo os outros
lhe retiram o ser () Nisso os outros natildeo satildeo determinadosrdquo (HEIDEGGER 2012
p363) Na liacutengua portuguesa essa indeterminaccedilatildeo eacute ilustrada pela partiacutecula ldquoserdquo como
iacutendice de indeterminaccedilatildeo do sujeito Por exemplo Necessita-se de empregados Nesse
lugar se eacute tratado muito bem etc O ldquosujeitordquo o ldquoeurdquo do ser-aiacute na cotidianidade natildeo eacute seu
ser-proacuteprio mas a perda de si pois compreende seu ser inicialmente pela imposiccedilatildeo
impessoal indeterminada de suas possibilidades e as realiza sob o domiacutenio dessa
orientaccedilatildeo estuda-se casa-se tem-se filhos etc Nas palavras do autor
ldquoO Dasein cotidiano tira a interpretaccedilatildeo preacute-ontoloacutegica de seu ser do imediato
modo-de-ser de a-gente A interpretaccedilatildeo ontoloacutegica segue de imediato essa
tendecircncia interpretativa e entende o Dasein a partir do mundo e o encontra como
ente do-interior-do-mundo E natildeo somente isso mas a ontologia lsquoimediatarsquo do
137
Dasein faz que se lhe decirc a partir do lsquomundorsquo o sentido de ser em relaccedilatildeo ao qual
esses entes lsquosujeitosrsquo satildeo entendidos Mas porque nessa absorccedilatildeo no mundo
passa-se por cima do fenocircmeno do mundo ele mesmo em seu lugar se introduz o
subsistente do-interior-do-mundo as coisas O ser do ente que eacute -lsquoaiacutersquo-com eacute
concebido como subsistecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p 373)
Como vimos esse modo de ser do ser-aiacute eacute consequecircncia do fato de natildeo termos
qualquer natureza Natildeo haacute como se retirar dessa condiccedilatildeo ontoloacutegica mesmo que
onticamente somos impelidos a cada vez determinarmos nosso ser de alguma forma
indicando noacutes mesmos e os outros como meros subsistentes por exemplo em expressotildees
como ldquoEu sou professorardquo ldquoEle eacute pairdquo ldquoNoacutes somos brasileirosrdquo etc E por isso ldquoo ser-
si-mesmo proacuteprio natildeo repousa sobre um estado-de-exceccedilatildeo de um sujeito desprendido de
a-gente mas eacute uma modificaccedilatildeo existencial de a-gente como um existenciaacuterio essencialrdquo
(HEIDEGGER 2012 p373) ou seja ser-si-mesmo-proacuteprio natildeo eacute se retirar dessa
indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica mas ter transparecircncia dessa condiccedilatildeo irremediaacutevel
A partir dessa explicaccedilatildeo retomemos a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein a partir do
sentido formal da preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-
em (-o-mundo) como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo
(HEIDEGGER 2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser
(existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que
foi lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio
aos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda) O que sustenta o
sentido de ser desse ente eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) pois a temporalidade descobre-
se como o sentido da preocupaccedilatildeo (Sorge) proacutepria ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-
se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute
possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Contudo a preocupaccedilatildeo
proacutepria natildeo eacute a noacutes de pronto transparente e natildeo eacute o modo que inicialmente e na maioria
das vezes estamos e nos orientamos no mundo Ser-no-mundo eacute a abertura compreensiva
disposta jaacute em meio ao mundo articulado e sedimentado portanto eacute constituiacuteda pelo
entender o encontrar-se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) (Cf
HEIDEGGER 2012 p949) Eacute necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos
nessa abertura primaacuteria ao mundo a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal
compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico O autor entatildeo nos apresenta que ldquoo
138
entender funda-se no futuro (adiantar-se ou aguardar) O encontrar-se temporaliza-se
primariamente no ser-do-sido (repeticcedilatildeo ou esquecimento) O decair tem raiz temporal
primariamente no presente (presencizar ou instante)rdquo (HEIDEGGER 2012 p951)
Aguardar (Gewaumlrtigen) esquecimento (Vergessenheit) e instante (Augenblck) satildeo
os modos impessoais de realizaccedilatildeo do ser do ser-aiacute na cotidianidade a partir de seu sentido
ontoloacutegico (Sorge) fundado na temporalidade (Zeitlichkeit) O futuro aparece como
espera na cotidianidade na medida em que estaacute submerso na familiaridade de um mundo
descerrado em que o ser-aiacute pode ocupar-se com os entes e travar relaccedilotildees com os outros
na normalidade da vida cotidiana Na familiaridade o ser-aiacute sabe o que esperar O passado
ou o ser-do-sido nada tem a ver com ldquofalta de lembranccedilardquo mas refere-se a imersatildeo na
dejecccedilatildeo ou no modo de ser-jogado do ser-aiacute Nesse sentido o ser-aiacute sempre ocupado abre-
se ao mundo mas fecha-se ao seu ser-proacuteprio esquecendo de si e de sua indeterminaccedilatildeo
em funccedilatildeo do que jaacute estaacute a cada de vez posto como possiacutevel no mundo O decair no modo
proacuteprio refere-se ao presente ou presencizar ou seja a transparecircncia ao ser-aiacute de sua
condiccedilatildeo de jogado em um presente aberto que a vida e a compreensatildeo de ser decorrem
Na cotidianidade poreacutem o decair como instante refere-se a incessante fala apariccedilatildeo e
apropriaccedilatildeo (natildeo como de si mesmo como ser-proacuteprio mas das possibilidades disponiacuteveis
publicamente) das coisas e de um estado de coisas Incessante porque atualiza as
possibilidades postas descerradas e sedimentadas no mundo movimentando a existecircncia
pela retroalimentaccedilatildeo daquilo que jaacute foi e eacute a cada vez compreendido sem pocircr em questatildeo
afinal aquilo que se compreende e o ente que pode compreender ou seja ente que noacutes
somos
Na anaacutelise preparatoacuteria ou na primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo o decair foi descrito
na ldquointerpretaccedilatildeo do falatoacuterio da curiosidade e da ambiguidaderdquo (HEIDDEGGER 2012
p941) Desse modo esclarecido como a queda ou o decair funda-se na temporalidade do
ser-aiacute portanto esclarecido seu fundamento ontoloacutegico a partir do ente que abre a
compreensatildeo de ser Podemos a partir de agora entender o fenocircmeno da linguagem na
cotidianidade do ser-aiacute e em seu modo de ser improacuteprio De outro modo compreender o
falatoacuterio como queda
A anaacutelise do falatoacuterio (das Gerede) eacute realizada no sect35 precedida exatamente pela
exposiccedilatildeo do discurso como fundamento ontoloacutegico da linguagem Essa linha de
139
apresentaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria antes revela que tambeacutem o fenocircmeno da linguagem parte
de seu encobrimento E revela que seu fundamento eacute a cada vez obliterado no uso comum
das liacutenguas e das palavras no cotidiano poreacutem
ldquoA expressatildeo lsquofalatoacuteriorsquo natildeo deve ser aqui empregada numa acepccedilatildeo pejorativa
Ela significa terminologicamente um fenocircmeno positivo que constitui o modo-
de-ser do entender e interpretar do Dasein cotidiano No mais das vezes o
discurso se expressa e jaacute se expressou em palavras O discurso eacute linguagemrdquo
(HEIDEGGER 2012 p471)
A anaacutelise da cotidianidade eacute um caraacuteter fenomecircnico positivo para a analiacutetica
existenciaacuteria pois eacute a partir dele a partir de um modo de ser improacuteprio que o ser-aiacute eacute
lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria das vezes Natildeo eacute apenas
lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade mas seu modo de ser
ontologicamente irremediaacutevel Nesse sentido apresentar a linguagem como manifestaccedilatildeo
uacuteltima da abertura histoacuterica remetida ao mundo que jaacute compreendeu jaacute articulou e jaacute
interpretou eacute apresentar um caminho agrave pergunta Como a linguagem que eacute essencialmente
generalizante pode afinal ser histoacuterica Questatildeo jaacute exposta nos primeiros escritos de
Heidegger que acaba por expor a origem dessa problemaacutetica em Ser e Tempo como por
exemplo essa passagem do texto de 1919
ldquoA objeccedilatildeo mais elementar mas carregada de suficiente perigosidade tinha a ver
com a linguagem Toda descriccedilatildeo eacute um lsquoconceber-em-palavrasrsquo - a lsquoexpressatildeo
verbalrsquo eacute generalizante Essa objeccedilatildeo eacute baseada na crenccedila de que toda linguagem
eacute jaacute em si mesma objetiva isto eacute viver em um significado implica eo ipso uma
concepccedilatildeo teoacuterica do que se entende que a realizaccedilatildeo do significado natildeo eacute mais
do que a exibiccedilatildeo do objeto () A universalidade do significado das palavras
assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia vividardquo86
(HEIDEGGER (GA5657) 2005 pp134-142)
Esse eacute tambeacutem o risco do uso das palavras e da linguagem na cotidianidade ou
do falatoacuterio A manifestaccedilatildeo da linguagem na expressatildeo eacute comunicaccedilatildeo e o enunciado
86 ldquoLa objecioacuten maacutes elemental pero cargada de suficiente peligrosidad teniacutea que ver con el lenguaje Toda
descripcioacuten es un laquoconcebir-en-palabrasraquo -la laquoexpresioacuten verbalraquo es generalizante Esta objecioacuten descansa
en la creencia de que todo lenguaje es ya en siacute mismo objetivante es decir que vivir en un significado
implica eo ipso una concepcioacuten teoreacutetica de lo que es significado que la plenificacioacuten del significado es
sin maacutes soacutelo una exhibicioacuten del objeto() La universalidad del significado de las palabras sentildeala
primariamente algo originario el caraacutecter mundano de la vivencia vivida rdquo Opcit pp134-142
140
como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se pode partilhar com outrem lsquover juntorsquo o mostrado no
modo do determinar Nesse sentido ldquoo discurso (Rede) que-se-expressa eacute comunicaccedilatildeordquo
(HEIDEGGER 2012 p473) E os conceitos-preacutevios oferecidos na comunicaccedilatildeo acabam
por determinar objetivamente as coisas e o estado de coisas ldquosem que tenham perto de si
tangiacutevel e visiacutevel o ente mostrado e determinadordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Dessa
forma ldquoo acircmbito dessa visatildeo compartilhada amplia-se Mas ao mesmo tempo na
repeticcedilatildeo o mostrado pode precisamente vir a se encobrir de novo () O ouvir-dizer eacute
tambeacutem um ser-no-mundo e ser em relaccedilatildeo ao que eacute ouvidordquo (HEIDEGGER 2012
p439)
A essecircncia do falatoacuterio eacute esse ouvir-dizer comunicado que pode ser repetido E
conforme a compreensatildeo mediana orienta-se pela expressatildeo da linguagem expressa ldquoo
discurso comunicado pode ser entendido amplamente sem que o ouvinte tenha de se pocircr
originariamente entendedor daquilo sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012
p473) A relaccedilatildeo com a linguagem torna-se nesse sentido meramente instrumental Um
exemplo paradigmaacutetico eacute a linguagem jornaliacutestica pois em seu traccedilo essencialmente
comunicativo e divulgador pode a cada vez informar sobre as coisas e um estado de
coisas sem que o leitor ou o ouvinte tenha de fato clareza acerca da compreensatildeo de tais
coisas mas pode repetir o que leu e o que ouviu com os outros e ser entendido A ldquofalta
de clarezardquo nesse exemplo natildeo diz respeito a algo como falta de ldquoacesso agraves fontesrdquo mas
deve ser compreendido em seu caraacuteter ontoloacutegico ou seja o que estaacute em jogo eacute o fato
que a linguagem repetida natildeo coloca em questatildeo seu proacuteprio fundamento A relaccedilatildeo entre
a cotidianidade impessoal e o uso da linguagem eacute algo tatildeo intriacutenseco que Heidegger em
1946 no texto Carta sobre o Humanismo diz
ldquoO que foi dito sobre o lsquoimpessoalrsquo em Ser e Tempo (1927) nos paraacutegrafos 27 e
35 de modo algum deve ser reduzido a um contributo secundaacuterio agrave sociologia
Mas o lsquoimpessoalrsquo tampouco se refere apenas agrave imagem oposto compreendida
de maneira eacutetico-existenciaacuteria do ser proacuteprio da pessoa Ao contraacuterio o que disse
ali conteacutem a indicaccedilatildeo agrave pertinecircncia inicial da palavra com o ser e essa
indicaccedilatildeo eacute pensada segundo a verdade do ser Essa relaccedilatildeo permanece oculta
sob o predomiacutenio da subjetividade que se apresenta como opiniatildeo puacuteblicardquo
(HEIDEGGER 2008 p330 grifo nosso)
141
A linguagem eacute portanto submetida ao que eacute compreensiacutevel na opiniatildeo puacuteblica e
aquilo que a cotidianidade mediana natildeo compreende eacute simplesmente descartado como
incompreensiacutevel Ou seja a proacutepria compreensatildeo (Verstehen) estaacute irremediavelmente
orientada agrave queda e essa mantecircm-se como tal no falatoacuterio Na tentativa de objetivar o
que as coisas satildeo e como elas satildeo tudo que eacute compreendido obscurece seu ldquocomordquo ou
seu mostrar que vem ao encontro no mundo histoacuterico pois ldquosoacute se procura ouvir o
discorrido como talrdquo (HEIDEGGER p473)
ldquoEm meio a essa dinacircmica retoma-se incessantemente uma atitude ontoloacutegica em
relaccedilatildeo aos entes intramundanos em geral e ao ser-aiacute em especiacutefico uma atitude
marcada fundamentalmente por uma opacidade primordial Todos satildeo a
princiacutepio homogeneizados a partir da noccedilatildeo de uma subsistecircncia por si todos
passam a ser desde o princiacutepio considerados como entes simplesmente dados e
detentores ao mesmo tempo de propriedades igualmente dadas() O falatoacuterio
tende entatildeo a coibir o aparecimento de uma outra forma discursiva que se
perfaccedila por meio de um real questionamento do ser do ente e de uma apropriaccedilatildeo
originaacuteria do ente consideradordquo (CASANOVA2006 p70)
O falatoacuterio como linguagem sedimentada e repetida eacute o que inicialmente orienta
o ser-aiacute em seu ldquoairdquo A cotidianidade mediana na qual estamos sempre imersos abre
inicialmente a compreensatildeo do mundo ao ser-aiacute mas ao abri-la acaba por fechaacute-la pois
desenraiza o ser-aiacute do solo originaacuterio dessa compreensatildeo de ser dos entes De outro modo
o loacutegos como discurso articula mundo e o abre agrave compreensatildeo o falatoacuterio como
linguagem sedimentada encobre esse mostrar originaacuterio O falatoacuterio diz e indica as coisas
e o estado de coisas mas natildeo os coloca em sua mostraccedilatildeo a partir de seu ser ou como
nos diz Carlos Drummond ldquoO sol consola os doentes e natildeo os renovardquo Nesse sentido
que a repeticcedilatildeo e a difusatildeo satildeo traccedilos essenciais do falatoacuterio pois movimentam a
existecircncia baseada na estabilidade do compreendido previamente articulado e
compartilhado na vida comum manifesto em uacuteltima medida pela linguagem e pelos
conceitos herdados
ldquoA falta-de-solo natildeo o impede de ingressar no que eacute puacuteblico mas favorece seu
ingresso O falatoacuterio eacute a possibilidade de tudo entender sem uma preacutevia
apropriaccedilatildeo da coisa O falatoacuterio jaacute protege por antecipaccedilatildeo contra o perigo de
malograr em tal apropriaccedilatildeo O falatoacuterio que qualquer um pode obter natildeo soacute
dispensa da tarefa de um entendimento autecircntico mas desenvolve uma
entendibilidade indiferente para a qual nada estaacute fechadordquo (HEDEGGER 2012
p475)
142
A objetividade promovida pelo falatoacuterio ou esse jaacute ser-interpretado natildeo eacute algo
que podemos negar e suspender A queda ou decair (Verfallen) constitui ldquoa plena abertura
do aiacuterdquo e o ldquoDasein nunca eacute capaz de rejeitar esse cotidiano ser-do-interpretado no qual
de imediato cresceurdquo (HEIDEGGER 2012 p477) Ele nos constitui porque eacute
inicialmente nosso ldquoaiacuterdquo e ldquotodo entendimento interpretaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo genuiacutenos
toda redescoberta se efetuam nele a partir dele e contrariamente a elerdquo (HEIDEGGER
2012 p477) ldquoTer mundordquo (abertura compreensiva) para o ser-aiacute que o constitui como
ente privilegiado eacute tambeacutem ser absorvido pelo mundo (queda) A verdade (Aleacutetheia)
como desvelamento eacute tambeacutem encobrimento Ser na verdade eacute tambeacutem estaacute na natildeo-
verdade Ouvir o loacutegos eacute tambeacutem se perder na linguagem
ldquoEacute soacute por isso que (sect34) Ser e Tempo conteacutem uma indicaccedilatildeo essencial da
linguagem tocando na questatildeo simples que pergunta em que modo do ser a
linguagem eacute sempre linguagem como tal O esvaziamento da linguagem que
avanccedila violentamente e se estende com rapidez por toda parte natildeo corroacutei apenas
a responsabilidade esteacutetica e moral em todos os usos da linguagem Proveacutem de
uma ameaccedila da essecircncia do ser humanordquo (HEIDEGGER 2008 p331)
Mas entatildeo qual o caminho Como ir agrave linguagem como tal Heidegger nos
adverte ldquoUm mero uso cuidado da linguagem ainda natildeo demonstra que escapamos desse
perigo essencialrdquo (HEIDEGGER 2008 p331) Na realidade reduzir o problema agrave essa
soluccedilatildeo poderia indicar que nem sequer vemos o perigo pois o esconderia sob agraves vestes
de usos como lsquosabedoriarsquo lsquoculturarsquo lsquoconhecimentorsquo etc ou seja a ldquosoluccedilatildeordquo ainda
estaria submetida ao domiacutenio puacuteblico do que eacute compreensiacutevel
Portanto se ldquoa linguagem ainda nos nega sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2008
p331) entatildeo ainda eacute necessaacuterio seguir a orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica
Diante da pergunta de Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na
cidade Soacutecrates responde ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso
irrdquo87 Para que afinal busquemos a relaccedilatildeo entre loacutegos e ser
87 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9
143
Conclusatildeo
O que vem agrave palavra Essa foi a questatildeo que nos guiou nesse trabalho Ela
atravessa outras perguntas por que falamos de uma determinada forma por exemplo
com sujeito e predicado Como eacute possiacutevel nossa comunicaccedilatildeo Como eacute possiacutevel falar que
algo eacute de tal e qual maneira
Fomos ao livro Ser e Tempo natildeo para dizer sobre o que um autor pensou fomos
ao Ser e Tempo para encontrar elementos que poderiam nos guiar nessas questotildees Entatildeo
a tarefa desse tratado revelou-se tambeacutem como um problema de linguagem Pois eacute a
tentativa de reformulaccedilatildeo da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido
depende justamente daquela reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido do
ser Vimos aiacute uma imbricada problemaacutetica a pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo (Sinn von
Sein) eacute tambeacutem a pergunta sobre o que pode sustentar sentido e significados e por isso
o que pode sustentar a linguagem Se natildeo nos incomodasse a tautologia poderiacuteamos
perguntar qual o sentido do sentido
A necessidade de recolocaccedilatildeo da pergunta estaacute diretamente relacionada agrave criacutetica
imanente de Heidegger agrave fenomenologia de Husserl Abordado sempre e a cada vez como
um ente o ser natildeo eacute no entanto um predicado real Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar
o ser como um ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel
e atributivo Ser natildeo eacute um ente o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo
com vistas agrave forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera
para ldquoQual o sentido de serrdquo Atraveacutes da apropriaccedilatildeo da hermenecircutica Heidegger potildee
em tela o caraacuteter histoacuterico do sentido de ser dos entes E dessa maneira indica como as
palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da
experiecircncia hermenecircutica Contudo diferentemente de como a concebeu Dilthey a
experiecircncia revelou-se natildeo como um meacutetodo de acesso ao caraacuteter histoacuterico do sentido e
144
dos significados mas compreensatildeo fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo circunspecta de
nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser
Poreacutem um problema central deveria ser abordado ldquocomo eacute possiacutevel a forma
loacutegicardquo ou ldquoPor que seguimos a foacutermula lsquosujeito e predicadorsquordquo Essa questatildeo nos levou
ateacute a maneira pela qual essa problemaacutetica foi abordada pelos neokantianos mais
especificamente agravequeles representantes da escola de Baden Esses reduziam a
possibilidade de verdade agrave forma do juiacutezo agrave identificaccedilatildeo entre ldquoWahrheit = wahrer Satz
= Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade) A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo
de verdade da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca
que era a dos neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa
concepccedilatildeo tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da
verdade em direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave
proposiccedilatildeo Com isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa
medida condicionando a ontologia agrave loacutegica
Foi esse mapa complexo dos problemas que foi desenhado nos dois primeiros
capiacutetulos os quais consideramos imprescindiacuteveis para uma exposiccedilatildeo completa da
estrutura ontoloacutegica da linguagem em Ser e Tempo Expondo o contexto das filosofias de
Dilthey Husserl e dos neokantianos de Baden bem como o posicionamento de Heidegger
frente a essas teorias a abordagem fenomenoloacutegico-hermenecircutica revelou-se como o
meacutetodo de acesso ao sentido de ser de todo ente Esse meacutetodo acaba ainda por demonstrar
que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um
campo de signos referenciais fechados que doam significado agraves coisas mas uma
manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez se faz presente na facticidade da
existecircncia concreta Last but not least revelou-se a diferenccedila entre uma concepccedilatildeo de
loacutegos proveniente da loacutegica e outra advinda do conceito de aleacutetheia
Foi a partir daiacute que ficaram claros os contornos dos dois uacuteltimos capiacutetulos desta
Dissertaccedilatildeo Tentamos mostrar como em Ser e Tempo a linguagem estaacute assentada em
duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado revelando a diferenccedila
entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm articulados pela imbricaccedilatildeo
radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno Poreacutem natildeo poderiacuteamos nos sentir satisfeitos
nessa descriccedilatildeo Heidegger nos adverte que estamos em fuga do solo em que o loacutegos se
145
mostra Pois o desvelamento enquanto Aleacutetheia eacute tambeacutem encobrimento por isso o
fenocircmeno sempre se nos mostra de maneira dissimulada Tambeacutem a partir de Ser e Tempo
tentamos evidenciar como a linguagem depende da constituiccedilatildeo proacutepria da verdade Ou
seja como o discurso (Rede) eacute apresentado como fundamento ontoloacutegico da linguagem
mas como o fenocircmeno mesmo da linguagem jaacute sempre se apresenta como falatoacuterio
(Gerede) O fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana enquanto comunicaccedilatildeo
ou seja discurso (die Rede) que jaacute se expressou e a cada vez se expressa eacute repetido e
difundido no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada
pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte
compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente Mas
como entes sem qualquer essecircncia preacutevia sem qualquer natureza definida somos a
proacutepria compreensatildeo (Verstehen) irremediavelmente orientada agrave queda sendo o falatoacuterio
a manifestaccedilatildeo uacuteltima dessa condiccedilatildeo
Esse foi o caminho do nosso trabalho que eacute apenas um iniacutecio Ele natildeo pretende
encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender o papel
da poesia na obra de Heidegger apoacutes os anos 1930 como uma tentativa de desvencilhar-
se do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Ou ainda se a estratificaccedilatildeo
da linguagem segundo a formulaccedilatildeo de Ser e Tempo precisou ser revista apoacutes a viragem
tendo em vista que em 1927 natildeo foi possiacutevel encontrar seu fundamento ontoloacutegico a partir
do Dasein
Por enquanto preferimos a tensatildeo e a suspensatildeo do estado de pergunta Preferimos
o pensar como caminho agraves respostas como soluccedilotildees afinal
ldquoCom seu dizer o pensar abre sulcos imperceptiacuteveis na linguagem Esses satildeo
ainda mais imperceptiacuteveis que os sulcos que a passos lentos o camponecircs abre pelo
campo aforardquo (HEIDEGGER 2008 p376)
146
Bibliografia
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ZAHAVI D A fenomenologia de Husserl Trad Marco Casanova Rio de Janeiro RJ
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- INTRODUCcedilAtildeO
- Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na filosofia
- Introduccedilatildeo
- I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico
- II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias
- II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica
- III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos
- Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica
- Introduccedilatildeo
- I - Os limites da filosofia dos valores
- II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio
- II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger
- III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
- III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger
- Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e Tempo
- Introduccedilatildeo
- I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico
- II A dupla abertura de sentido (Sinn)
- III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)
- II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung)
- Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)
- Introduccedilatildeo
- I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem
- II- O Falatoacuterio (das Gerede)
- Conclusatildeo
- Bibliografia
-
4
Banca Avaliadora
_________________________
Profa Dra Virginia de Arauacutejo Figueiredo-UFMG Orientadora
___________________________
Prof Dr Marco Antocircnio Casanova- UERJ Coorientador
___________________________
1ordm Examinador Prof Doutor Eduardo Soares Neves Silva - UFMG
___________________________
2ordmExaminador Prof Doutor Maacutercio Antocircnio de Paiva- PUCMG
5
Agradecimentos
O trabalho que aqui apresento iniciou-se em Fevereiro de 2014 mas originou-se
haacute 12 anos atraacutes em meu primeiro semestre do curso de graduaccedilatildeo em filosofia na
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas da UFMG Jaacute nas primeiras aulas questionei
a possibilidade de continuar nesse caminho pois ele havia se tornando cada vez mais
exigente e difiacutecil No segundo semestre poreacutem cursei a mateacuteria ministrada pelo professor
Fernando Rey Puente onde ele tentava explicar aos alunos ainda iniciantes como eu As
Categorias de Aristoacuteteles Aquelas aulas foram decisivas para que eu compreendesse trecircs
coisas dedicaccedilatildeo e rigor satildeo o que minimamente podemos oferecer agrave filosofia (ainda
permaneccedilo na busca de realizar tais condiccedilotildees) o pensamento filosoacutefico uma vez
apresentado a noacutes natildeo oferece saiacuteda mas compromisso e ainda aprendi que se a partir
daquele momento eu ficasse imune ao ler um livro de filosofia era melhor deixaacute-la Por
isso meu primeiro agradecimento eacute a esse professor Tambeacutem natildeo poderia deixar de
agradecer ao professor Ernesto Perini Nas mateacuterias ministradas por ele que cursei durante
a graduaccedilatildeo natildeo soacute se revelava para mim a importacircncia da linguagem no interior dos
problemas filosoacuteficos como aprendi que o respeito com os alunos era uma maneira de
ensinaacute-los
Agradeccedilo tambeacutem a todos os funcionaacuterios da FAFICH de forma especial agrave Vilma
bibliotecaacuteria-chefe e ao Andreacute secretaacuterio da poacutes-graduaccedilatildeo Ambos pela solicitude com
que sempre me atenderam em todos os momentos que precisei
Agradeccedilo tambeacutem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e
Tecnoloacutegico (CNPq) pela concessatildeo da bolsa de estudos que permitiu nos uacuteltimos dois
anos minha dedicaccedilatildeo integral agrave pesquisa do mestrado
Agradeccedilo agravequeles que construiacute como amigos o viacutenculo com o mundo Dentre eles
alguns nomes natildeo posso deixar de citar Agradeccedilo agrave Thamara Chain pelos 22 anos de
amizade e compreensatildeo Agradeccedilo agrave Taiacutes Tourinho por ser vigilante acerca de minha
solidatildeo por vezes demasiada Agradeccedilo agrave Nathaacutelia de Aacutevila por me lembrar a natildeo ser tatildeo
seacuteria e que o caminho tambeacutem se faz com leveza Agradeccedilo agrave Carolina Faria pela partilha
do entusiasmo na descoberta promovida pelo estudo Tambeacutem agradeccedilo agrave Ana Godoi
Gustavo Machado e Gabriel Lago Essas pessoas me ensinaram o valor do debate (por
6
vezes infindaacuteveis) e ainda que pensamento e vida satildeo o mesmo A uacutenica maneira que
encontrei para agradececirc-los eacute tornar puacuteblico o fato de que nossas conversas estatildeo em cada
linha dessa dissertaccedilatildeo
Agradeccedilo agrave minha orientadora Virginia Figueiredo pela confianccedila depositada em
mim ao me aceitar como orientanda Tambeacutem por seus comentaacuterios e ensinamentos
imprescindiacuteveis bem como pela leitura e revisatildeo impecaacutevel de meu trabalho Nesse
sentido tambeacutem ao meu coorientador Marco Antocircnio Casanova a quem agradeccedilo tendo
em vista que sem sua presenccedila algumas partes dessa dissertaccedilatildeo natildeo seriam possiacuteveis
Agradeccedilo minhas irmatildes Jana e Nanda por serem minhas primeiras e eternas
melhores amigas E por fim agradeccedilo agravequeles por quem o meu sentimento entre o amor
a gratidatildeo e a admiraccedilatildeo natildeo alcanccedila a palavra aos meus pais Adauto e Delza Esse
trabalho eacute para vocecircs
7
VERBO SER
Carlos Drummond de Andrade
Que vai ser quando crescer
Vivem perguntando em redor Que eacute ser
Eacute ter um corpo um jeito um nome
Tenho os trecircs E sou
Tenho de mudar quando crescer Usar outro nome corpo e jeito
Ou a gente soacute principia a ser quando cresce
Eacute terriacutevel ser Doacutei Eacute bom Eacute triste
Ser pronunciado tatildeo depressa e cabe tantas coisas
Repito Ser Ser Ser Er R
Que vou ser quando crescer
Sou obrigado a Posso escolher
Natildeo daacute para entender Natildeo vou ser
Vou crescer assim mesmo
Sem ser Esquecer
ldquoAdmitamos que natildeo haja essa significaccedilatildeo indeterminada e que natildeo entendemos sempre o que lsquoserrsquo significa O que ocorreria nesse caso Apenas um nome e um verbo de menos em nossa linguagem De forma alguma Jaacute natildeo haveria simplesmente linguagem alguma Natildeo ocorreria que o ente se nos abrisse de modo a poder ser chamado e dito Pois dizer o ente como tal implica compreender de antematildeo o ente como ente isto eacute o seu ser Suposto que noacutes simplesmente natildeo compreendecircssemos o ser suposto que a palavra lsquoserrsquo natildeo tivesse nem mesmo aquela significaccedilatildeo flutuante entatildeo jaacute natildeo haveria absolutamente nenhuma palavra Noacutes mesmos nunca poderiacuteamos ser aqueles que falam Laacute natildeo poderiacuteamos ser o que somos Pois ser homem significa ser um dizenterdquo
Heidegger Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica
8
Resumo
O presente trabalho tenta evidenciar a partir da obra Ser e Tempo de Martin
Heidegger como a linguagem (die Sprache) eacute a manifestaccedilatildeo uacuteltima da historicidade de
todo e qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como esses significados satildeo
sustentados por um campo de sentido tambeacutem histoacuterico A partir dessa primeira descriccedilatildeo
o trabalho visa esclarecer como a linguagem no uso cotidiano ou o falatoacuterio (das Gerede)
obscurece o caraacuteter histoacuterico do fenocircmeno da linguagem e dos significados que a sustenta
Portanto esta Dissertaccedilatildeo caminha em duas vias que se tocam a primeira pretende
descrever o que chamamos de estrutura ontoloacutegica da linguagem a partir do
redimensionamento da pergunta heideggeriana pelo ser a fim de indicar como as palavras
em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da experiecircncia
hermenecircutica ou seja atraveacutes da compreensatildeo ontoloacutegica preacutevia a linguagem a segunda
pretende mostrar o fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana como comunicaccedilatildeo
ou discurso (die Rede) a qual jaacute se expressou e a cada vez se expressa sempre repetida
e difundida no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada
pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte
compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente
9
Abstract
The present thesis focuses on demonstrating in what manner language (die
Sprache) is the lattermost manifestation of the historicity of any meaning that can come
to words as well as through what agency those meanings are upheld by a conjointly
historical field of meaning insofar as stated by Martin Heidegger in his work ldquoBeing and
Timerdquo (Sein und Zeit) As of this writing our work aims at unraveling by what means
language in its trivial use or the talk (das Gerede) overshadows the historical aspect and
the meanings that withstand the phenomenon of language Hence the present work is
developed in two adjoining ways the first one endeavors to describe the ontological
structure of language deriving out of the resizing of Heideggers question of being that
has the aim of indicating how the words in context of enunciation inherit their meaning
from previous structures of the hermeneutic experience that is through the prior
ontological understanding of the language The second one aims at revealing the language
phenomenon in the median everydayness as communication or discourse (die Rede)
which has already been expressed and is still expressed always repeated and spread in
the talk that obliterates the comprehensive horizon by reducing all beings to an
undifferentiated homogenization and making them available to our linguistic resources
since it is the primary opening of the sense of being that any and all entities have
10
Sumaacuterio INTRODUCcedilAtildeO 11
Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na
filosofia 15
Introduccedilatildeo 15
I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do
conhecimento como essencialmente histoacuterico 17
II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em
relaccedilatildeo agraves ciecircncias 22
II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica 29
III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos 33
Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica 42
Introduccedilatildeo 42
I - Os limites da filosofia dos valores 44
II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio 53
II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger 58
III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal 68
III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger 72
Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e
Tempo 80
Introduccedilatildeo 80
I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou
o ldquocomordquo hermenecircutico 88
II A dupla abertura de sentido (Sinn) 88
III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit) 103
II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung) 110
Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede) 122
Introduccedilatildeo 122
I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem 123
II- O Falatoacuterio (das Gerede) 134
Conclusatildeo 143
Bibliografia 146
11
INTRODUCcedilAtildeO
Estamos diante de um livro Ser e Tempo Abrimo-lo Com o que nos confronta
em sua primeira paacutegina Que natildeo temos desde Platatildeo ateacute hoje resposta agrave pergunta sobre
o que queremos dizer com a palavra lsquoentersquo Natildeo haacute como ficar imune diante da
constataccedilatildeo E se ateacute hoje essa palavra natildeo nos eacute transparente eacute porque aqueles que se
propuseram a andar no caminho do pensamento natildeo souberam perguntar sobre o ente e
isso porque natildeo souberam afinal perguntar sobre o ser Heidegger natildeo nos propotildee sair do
caminho mas uma nova maneira de caminhar Ele nos promete uma resposta Natildeo Ele
propotildee uma vez mais a pergunta pelo ser O objetivo do tratado eacute elaborar essa questatildeo
De que modo Ele agora pergunta Qual o sentido de ser
Nossa pesquisa poderia partir daiacute Iniciariacuteamos a exposiccedilatildeo de nosso trabalho
nessa pergunta e prosseguiriacuteamos em Ser e Tempo De modo algum Seria um
contrassenso para algueacutem que queira estudar a linguagem em Heidegger partir de uma
sentenccedila como se ela fosse oacutebvia Afinal por qual motivo Heidegger natildeo pergunta ldquoO
que eacute o serrdquo ou ldquoHaacute o serrdquo Fechamos Ser e Tempo Eacute preciso compreender como essa
pergunta ganhou uma determinada forma Mas para onde ir
Ser e Tempo eacute uma obra do seacuteculo XX uma obra de filosofia portanto jaacute eacute parte
de nossa tradiccedilatildeo jaacute temos uma preacute-compreensatildeo dela Sabemos previamente que ela
transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica e que o nosso autor expotildee seu caminho
em um texto de 1963 chamado ldquoMeu caminho na fenomenologiardquo Parece-nos um bom
iniacutecio e vamos ao texto Heidegger descreve o iniacutecio de seus estudos o contato com a
obra inaugural da fenomenologia de Husserl e com a tese de Brentano sobre Aristoacuteteles
aiacute se vecirc germinar ainda que de maneira imprecisa sua questatildeo central Mas isso se
mostrou insuficiente para compreender a pergunta posta em Ser e Tempo Recorremos
entatildeo aos textos de Husserl Jaacute na introduccedilatildeo do II volume agrave obra citada por Heidegger
ndash Investigaccedilotildees Loacutegicas - Husserl descreve a necessidade de a fenomenologia
posicionando-se contra a psicologia explicativa procurar sua fundamentaccedilatildeo da loacutegica
numa nova teoria do conhecimento objetiva Nossa jaacute citada preacute-compreensatildeo nos levou
a Dilthey ao descobrir que esse autor tambeacutem se opocircs ao meacutetodo da psicologia
explicativa Vamos tambeacutem aos seus textos Mas a pergunta aparece teraacute sido tatildeo grande
12
a influecircncia que a psicologia explicativa exercia naquela eacutepoca a ponto de exigir que
tantos pensadores sentissem a necessidade de se opor a ela e ao seu meacutetodo
Como se isso natildeo bastasse revelou-se que ambos os autores Dilthey e Husserl
travam diaacutelogo nem sempre expresso com o neokantismo Agrave revelia de todos julguei
que natildeo deveria desconsiderar mais essa referecircncia tendo em vista que um dos principais
nomes dessa corrente ndash Rickert- foi citado por Heidegger no importante (para esta
pesquisa) texto de 1963 ao qual me referi haacute pouco Entatildeo me perguntei o que une esses
trecircs nomes Dilthey Husserl e Rickert Estaacute posta a tarefa do primeiro capiacutetulo da
Dissertaccedilatildeo
Nele tentei compreender como a partir do desenvolvimento das ciecircncias positivas
particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma profunda discussatildeo acerca do sentido e
da possibilidade do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo busca uma
filosofia propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana procura a
autonomia da filosofia frente agrave ciecircncia positiva mas que serviria de base a toda e qualquer
ciecircncia Tambeacutem nesse contexto aparece a contribuiccedilatildeo de Dilthey a qual acrescenta o
caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e traz agrave tona o sentido do conhecimento como
essencialmente histoacuterico
Mas natildeo chegamos ao que nos propomos estamos ainda nos prolegocircmenos Por
qual motivo Heidegger pergunta Qual o sentido de ser Ser e Tempo continua fechado
Precisamos entatildeo reavaliar nossa preacute-compreensatildeo Se como dissemos Ser e Tempo
transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica eacute preciso analisar como essas influecircncias
aparecem no pensamento de Heidegger Vamos a algumas preleccedilotildees do autor anteriores
agrave obra central de nosso trabalho Eacute preciso indicar que nossa intenccedilatildeo natildeo eacute abordar as
preleccedilotildees como processos evolutivos como que para esclarecer em termos de causa e
efeito a publicaccedilatildeo posterior lsquomadurarsquo de Ser e Tempo Mas destacar como as questotildees
desses textos acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a
problemaacutetica cujo desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927
Estaacute posta a tarefa de nosso segundo capiacutetulo
Nele trata-se de compreender como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere
Heidegger no interior da referida discussatildeo pelo sentido do conhecimento Mas ao
mesmo tempo tentaremos mostrar como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva
(considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal)
e a introduccedilatildeo do elemento hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com
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Heidegger a pergunta fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do
conhecimento e passou a ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto
nosso segundo capiacutetulo pretende analisar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger
no interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do
conhecimento ao sentido do ser
Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido
de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a
teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo
pelo sentido do ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir
da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para
uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no
curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER 2006 p122) o elemento
hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave fenomenologia
que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em
seu ser Podemos abrir novamente Ser e Tempo
Esse percurso foi necessaacuterio para que pudeacutessemos conquistar um solo
interpretativo e sobretudo alcanccedilar a pergunta pelo sentido de ser Pois ela a pergunta
estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura de sentido que precisamos explicitar
E assim no terceiro e central capiacutetulo da Dissertaccedilatildeo apresentar como em Ser e Tempo
o fenocircmeno da linguagem (Sprache) aparece no interior dessa compreensatildeo e em que
medida a linguagem eacute possiacutevel por uma estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Dito de
outro modo na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto
ontoloacutegico do conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e
qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido tambeacutem
histoacuterico em que algo pode se manter em seu significado Eacute nessa perspectiva que
procuramos a estrutura ontoloacutegica da linguagem
Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a
ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo
material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos
que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas
que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela
dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se
estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o
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que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes1rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que
somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em
fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo
Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por
Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um
fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo
incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como
descoberto A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo cotidiano Heidegger chama de
ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio
natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute
encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas tomadas como oacutebvias
Esse eacute o caminho do nosso trabalho mas eacute apenas o iniacutecio Ele natildeo pretende
encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender a
ldquopassagem para o poeacutetico2rdquo na obra de Heidegger como uma tentativa de desvencilhar-se
do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Por enquanto preferimos a tensatildeo
e a suspensatildeo do estado de pergunta Ser e Tempo continuaraacute aberto Tentaremos nos
manter fieis agrave orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica Diante da pergunta de
Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na cidade Soacutecrates responde
ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso irrdquo3
1 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo Wolf
Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249 2 Cf NUNES 2012 3 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9
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Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo
sentido do conhecimento na filosofia
Chega um tempo em que natildeo se diz mais meu Deus () Chegou um tempo em que natildeo adianta morrer Chegou um tempo em que a vida eacute uma ordem
A vida apenas sem mistificaccedilatildeo (Os Ombros Suportam o Mundo Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
Conforme Merleau Ponty a fenomenologia surge como uma tentativa para
resolver um problema natildeo de uma seita mas talvez o problema do seacuteculo o problema
que se punha desde 1900 para todo o mundo e ainda eacute hoje colocado (PONTY M1973
Pag15) O problema refere-se agrave crise das ciecircncias humanas (Geistenwissenschaften) e agraves
ciecircncias naturais
Se o fundamento dos princiacutepios da geometria e da fiacutesica eram objetos de
investigaccedilatildeo de Husserl e o levou ao caminho da pesquisa de uma filosofia sem
pressupostos- bem como as investigaccedilotildees dos chamados neokantianos da escola de
Marburg que os levaram agrave tentativa de fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas - as
ciecircncias humanas tambeacutem se desenvolviam no auspiacutecio de sua proacutepria ambiguidade
A medida que se desenvolviam as pesquisas psicoloacutegicas socioloacutegicas
histoacutericas tendiam a nos apresentar todo pensamento toda opiniatildeo e em
particular toda filosofia como o resultado da accedilatildeo combinada das condiccedilotildees
psicoloacutegicas sociais histoacutericas anteriores A psicologia tendia para o que Husserl
denomina psicologismo a sociologia o sociologismo histoacuteria para o
historicismo Ora com isto elas acabavam por erradicar seus proacuteprios
fundamentos (PONTY1973 p15)
Na medida em que os princiacutepios orientadores do homem histoacuterico social e
psicoloacutegico satildeo elementos externos e imbricados de certa contingecircncia conforme os
resultados mesmos dessas pesquisas o pesquisador punha suas proacuteprias afirmaccedilotildees em
duacutevida pois o fundamento de todas elas eacute tambeacutem contingente e o valor de verdade de
suas conclusotildees fluido Contudo quando algo faz aparecer opositores observando e
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diagnosticando seus problemas fundamentais eacute porque encontra-se em evidecircncia e jaacute
atingiu certo grau de adesatildeo sendo necessaacuterio apontar elementos obliterados em sua
suposta evidecircncia
A autonomia das ciecircncias positivas frente aos sistemas filosoacuteficos em meados do
seacuteculo XIX na Alemanha acompanhava um crescente desprestiacutegio da metafiacutesica e da
filosofia da natureza sendo a reflexatildeo metodoloacutegica suplantada por novos procedimentos
-e uma nova visatildeo de mundo- em que vigoravam o conhecimento empiacuterico impessoal e
temporal
Se a filosofia jaacute natildeo parecia ter condiccedilotildees de responder agraves questotildees dessa nova
visatildeo de mundo cientiacutefica com as propostas da psicologia experimental - baseada no
modelo metodoloacutegico das ciecircncias naturais- ela a filosofia parecia estar condenada ao
ostracismo sendo capaz apenas de se colocar como curiosidade histoacuterica A psicologia
experimental ou explicativa considerava que um procedimento verdadeiramente
cientiacutefico deveria ser baseado na observaccedilatildeo empiacuterica ela era a interpretaccedilatildeo da verdade
atraveacutes de causas psiacutequicas responsaacuteveis pela efetuaccedilatildeo do juiacutezo(MACDOWEL 1993
p28)
O ponto crucial dessa posiccedilatildeo eacute o fato de que o estudo da loacutegica enquanto
estrutura do pensamento estaacute condicionado aos meacutetodos e princiacutepios da psicologia e
portanto condicionada a tipos de demonstraccedilotildees empiacutericas Uma investigaccedilatildeo dessa
espeacutecie - a loacutegica condicionada a demonstraccedilotildees empiacutericas - eacute a negaccedilatildeo da tarefa proacutepria
agrave filosofia (mesmo quando um ou outro pensador negue por exemplo a idealidade loacutegica
ainda assim o faz inserido nessa tarefa de investigaccedilatildeo) pois a loacutegica como doutrina
voltada para uma purificaccedilatildeo radical dos elementos materiais da linguagem e para uma
subsequente reconciliaccedilatildeo entre pensamento e verdade se mostra como expressatildeo
maacutexima do projeto originaacuterio da tradiccedilatildeo (CASANOVA Introduccedilatildeo In DILTHEY
2011p8)
Nesse contexto surgem reaccedilotildees ao modelo predominante das ciecircncias naturais
sobretudo em relaccedilatildeo agrave adesatildeo a este modelo pela psicologia e pelas ciecircncias humanas
Dentre essas reaccedilotildees destacamos o projeto da psicologia descritiva e analiacutetica de Dilthey
as contribuiccedilotildees da pesquisa sobre a validade do conhecimento das escolas neokantistas
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ndash destacando a filosofia dos valores de Windelband e Rickert - e o projeto husserliano de
uma filosofia sem pressupostos que se realizaria atraveacutes do meacutetodo fenomenoloacutegico
Ciente de que natildeo nos eacute possiacutevel aprofundar nessas complexas investigaccedilotildees nossa
intenccedilatildeo nesse primeiro momento de trabalho eacute apenas indicar os elementos
fundamentais de cada posiccedilatildeo e a partir deles compreender no capiacutetulo seguinte em
que medida essas reaccedilotildees se intercruzam e influenciam o autor privilegiado no texto
dessa dissertaccedilatildeo Este eacute o objetivo de nosso primeiro capiacutetulo
Nosso primeiro capiacutetulo eacute a tentativa de compreender como a partir do
desenvolvimento das ciecircncias positivas particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma
profunda discussatildeo acerca do sentido e possibilidade do conhecimento Nesse contexto o
neokantismo busca uma filosofia propriamente cientiacutefica ndash como reflexo da exigecircncia de
sua proacutepria eacutepoca ndash enquanto a fenomenologia husserliana busca a autonomia da filosofia
descontiacutenua agrave ciecircncia positiva mas que seria a base de toda e qualquer ciecircncia Tambeacutem
nesse contexto emerge como elemento fundamental para o desenvolvimento de nosso
trabalho a tarefa geral de Dilthey que mesmo imersa nas exigecircncias positivistas de seu
tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e potildee em tela o sentido
do conhecimento como essencialmente histoacuterico
I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias
do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente
histoacuterico
Dilthey contra a mera transposiccedilatildeo do meacutetodo das ciecircncias naturais agraves ciecircncias
do espiacuterito ldquose deu conta que a pretensatildeo de entender filosoficamente as disciplinas
histoacutericas soacute poderia levar-se a um porto seguro se reflexiona acerca do que eacute o objeto
das ditas ciecircnciasrdquo (HEIDEGGER 2006p33)
As ciecircncias naturais segundo Dilthey se relacionam com os objetos na medida
em que esses satildeo ou fatos simultacircneos ou sucessivos e aparecem agrave consciecircncia sempre
como dados externos assim recorrendo a uma hipoacutetese como recurso explicativo
condicionada agrave verificaccedilatildeo a partir de maior ou menor incidecircncia desses fatos Os
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resultados das ciecircncias naturais seriam portanto conclusotildees complementares que
tentariam explicar os fenocircmenos externos (observados como fenocircmenos particulares) e
ordenaacute-los pela funccedilatildeo explicativa da ciecircncia que movimenta da parte (fenocircmenos
unitaacuterios) ao todo (explicaccedilatildeo ordenadora)
Poreacutem os fenocircmenos das ciecircncias humanas aparecem internamente agrave consciecircncia
com realidade de uma lsquoconexatildeo vivarsquo sendo essa conexatildeo da vida psiacutequica
originariamente dada compreensivamente a qualquer homem histoacuterico vivente A anaacutelise
ou distinccedilatildeo dos elos particulares dessa conexatildeo eacute posterior pois o que se daacute
imediatamente agrave consciecircncia eacute a conexatildeo constante das proacuteprias vivecircncias e ldquoa vida natildeo
se faz senatildeo como conexatildeordquo (DILTHEY W2011 pag30) natildeo tendo sentido a partir
dessa evidecircncia falar em algo como deduccedilatildeo dos fenocircmenos psiacutequicos
Exige-se portanto agrave psicologia um outro procedimento pois satildeo somente os
dados da psicologia descritiva que poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar
para as ciecircncias humanas O que estaacute em jogo para Dilthey contra a psicologia
explicativa eacute mostrar como a teoria do conhecimento relativa agraves ciecircncias do espiacuterito e
tambeacutem agrave filosofia natildeo pode abrir matildeo da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica Poreacutem em funccedilatildeo
da especificidade de seus objetos reclama outros meacutetodos que natildeo aqueles das ciecircncias
naturais
Dilthey natildeo aceita os pressupostos do retorno agrave filosofia kantiana4 para a
fundamentaccedilatildeo de suas investigaccedilotildees pois a cisatildeo entre mateacuteria e forma proveniente
desse sistema natildeo serve agraves ciecircncias do espiacuterito e natildeo pode ser mais sustentada diante da
evidecircncia da vida conexa e estruturante da vivecircncia da consciecircncia
4 Sobre esse aspecto eacute importante apresentar duas consideraccedilotildees 1) No interior da biografia de
Schleiermacher de 1860 Dilthey destaca a importacircncia de alguns aspectos do texto de Kant ldquoA religiatildeo
nos limites da simples razatildeordquo (1793) para o desenvolvimento da hermenecircutica de Schleiermacher 2)
Contudo talvez sob influecircncia do debate neokantiano agrave eacutepoca Dilthey apresenta o essencial da filosofia
kantiana como sendo a Criacutetica da Razatildeo Pura ou seja a teoria do conhecimento referente agraves ciecircncias
naturais E nesse sentido que a divisatildeo entre mateacuteria e forma como exposta na primeira criacutetica natildeo eacute
suficiente agrave elaboraccedilatildeo da epistemologia das ciecircncias humanas Sobre esse assunto Cf Kant und die
philosophische Hermeneutik in Kant-Studien 66 (1975) pp 395-403 Traduccioacuten de Angela Ackermann
Pilaacuteri en GADAMER H-G Los caminos de Heidegger Herder Barcelona 2002 pp 57-66 Cf
Beckenkamp J Kant e a hermenecircutica moderna in Kriterion vol51 no121 Belo Horizonte Junho 2010 e
tambeacutem Cf REIS JC A ldquocriacutetica histoacuterica da razatildeordquo Dilthey versus Kant In Textos de histoacuteria UNB
vol10 nordm12 v 10 (2002) pp-159-179
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ldquoA cisatildeo entre mateacuteria e forma do conhecimento que eacute levada a termo no sistema
kantiano tambeacutem natildeo pode ser hoje mantida Muito mais importante do que essa
cisatildeo satildeo as relaccedilotildees internas que subsistem por toda a parte entre a multiplicidade
das sensaccedilotildees como a mateacuteria do nosso conhecimento e a forma na qual
apreendemos a mateacuteriardquo (DILTHEY W2011 p37)
Para REIS (2003)5 Dilthey eacute associado ao historicismo como seu maior teoacuterico
Ainda como aponta REIS nem todos pesquisadores de sua obra concordam com este
veredito alguns ateacute mesmo questionam se Dilthey poderia ser considerado um
historicista pois em seu projeto de construccedilatildeo de uma epistemologia das ciecircncias
humanas ao se opor ao historicismo romacircntico Dilthey recairia em certo positivismo De
todo modo analisar detalhadamente esta discussatildeo natildeo nos eacute possiacutevel o que nos interessa
aqui eacute apontar que apesar de fazer coro com as caracteriacutesticas gerais deste movimento
Dilthey se destaca por sua busca propriamente epistemoloacutegica das ciecircncias humanas a
partir da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos se afastando em diversos pontos
do chamado ldquoirracionalismordquo romacircntico mas sem reduzir o historicismo agrave pura
epistemologia e sobretudo lanccedilando bases teoacutericas com pretensatildeo cientiacutefica para a
abordagem dos fenocircmenos histoacutericos
ldquoO aspecto positivista da sua teoria devia-se agrave atmosfera naturalista em que ele
viveu As ciecircncias naturais impuseram o seu padratildeo de rigor e objetividade No
seacuteculo XIX a morte da filosofia sistemaacutetica cedeu seu lugar a uma ldquofilosofia
cientiacuteficardquo Natildeo era uma filosofia especulativa mas ldquoestudos positivos com
intenccedilatildeo filosoacuteficardquo O filoacutesofo natildeo podia pensar em qualquer objeto sem recorrer
a estudos concretos ao estudo de fontes primaacuterias extraiacutedas do mundo real
Dilthey neste sentido quis que sua filosofia fosse cientiacutefica Eacute uma teoria do
conhecimento das ciecircncias morais que estudam as relaccedilotildees e eventos positivos
do mundo histoacuterico-social () Aiacute reside seu positivismo que segundo Aron ele
nunca superou e que eacute sua originalidade () Sua tese eacute as ciecircncias humanas
existem como lsquociecircncias e eacute vatildeo discutir o seu caraacuteter cientiacutefico em nome de uma
teoria preconcebida da ciecircnciarsquordquo (REIS 2003p32)
Dilthey se destaca no movimento historicista pela sua preocupaccedilatildeo com o meacutetodo para
as ciecircncias humanas consciente de sua especificidade ou da metodologia autocircnoma dessa
disciplina na medida em que histoacuteria e vida se encontram pela compreensatildeo sendo a vida
ao mesmo tempo histoacuterica e psicoloacutegica E o fato de natildeo haver um modelo universal
sistemaacutetico da histoacuteria natildeo reduz sua pesquisa em uma descriccedilatildeo caoacutetica dos eventos
5 Seguindo a interpretaccedilatildeo de Freunde e Ortega y Gasset Cf REIS JC 2003 p31
20
Vivecircncia compreensatildeo e expressatildeo eacute a triacuteade fundamental para o pensamento de
Dilthey e sua ldquocriacutetica da razatildeo histoacutericardquo consiste em delinear como a construccedilatildeo do
mundo histoacuterico no sujeito torna possiacutevel um saber sobre a realidade espiritual
apreendendo aiacute a partir da experiecircncia do mundo histoacuterico o princiacutepio real das ciecircncias
humanas A reconstruccedilatildeo do mundo da vida natildeo pode ser reduzida a uma soma de
elementos que possam descrevecirc-lo Mais do que isso a vida histoacuterica de um determinado
tempo eacute vivenciada por uma ligaccedilatildeo imediata entre o sujeito e seu tempo cada vivecircncia
sinaliza para a concretude objetiva do espiacuterito da eacutepoca O que importa nesta perspectiva
eacute que a realidade objetiva seja garantida pela proacutepria vivecircncia que eacute ldquoerigida agrave condiccedilatildeo
de categoria epistemoloacutegica fundamental em oposiccedilatildeo ao conceito de representaccedilatildeordquo
(AMARAL2004 p53) ou seja a objetividade da vivecircncia lhe eacute imanente A vivecircncia
(Erlebnis) natildeo eacute mera vida orgacircnica (Leben) mas o encontro indissociaacutevel entre a histoacuteria
e a vida dos homens Se por um lado natildeo eacute possiacutevel acompanhar o horizonte de sentido
de uma eacutepoca sem esta primeira experiecircncia viacutevida cujas expressotildees satildeo particulares por
outro lado eacute somente atraveacutes da compreensatildeo que a vivecircncia eacute alargada superando a
unilateralidade da experiecircncia singular
ldquoA compreensatildeo eacute um reencontro do eu no tu o espiacuterito encontra-se em niacuteveis
cada vez mais elevados da conexatildeo essa mesmidade do espiacuterito no eu no tu em
cada sujeito de uma comunidade em todo sistema da cultura por fim na
totalidade do espiacuterito e da histoacuteria universal torna possiacutevel a atuaccedilatildeo conjunta
das diversas capacidades nas ciecircncias humanas O sujeito do saber estaacute assim
unido com o seu objeto e esse objeto eacute o mesmo em todos os niacuteveis de sua
objetivaccedilatildeo Se a objetividade do mundo espiritual criada no sujeito eacute reconhecida
por este procedimento surge a pergunta sobre o quanto isso pode contribuir para
a resoluccedilatildeo do problema do conhecimento em geralrdquo (DILTHEY 2006p168)
A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo eacute ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da
hermenecircutica de Dilthey pois traz em si a categoria do significado como o nexo da
vivecircncia com a realidade concreta sem se apoiar em qualquer elemento transcendente agrave
proacutepria experiecircncia psicoloacutegica vivida
ldquoA categoria do significado designa a relaccedilatildeo entre as partes da vida e o todo
uma relaccedilatildeo que estaacute fundada na essecircncia da vida Soacute possuiacutemos essa conexatildeo
por meio da memoacuteria na qual podemos visualizar o transcurso vital do passado
Na memoacuteria faz-se valer entatildeo o significado como a forma de apreensatildeo da vida
Captamos o significado de um momento passado Ele eacute significativo na medida
em que nele se realiza um viacutenculo com o futuro por meio da accedilatildeo ou por meio de
um acontecimento exterior Ou na medida em que foi concebido o plano de uma
conduccedilatildeo futura da vida Ou na medida em que um plano de sua realizaccedilatildeo foi
21
levado a termo Ou ele eacute significativo para a vida conjunta na medida em que a
intervenccedilatildeo do indiviacuteduo se realiza nessa vida na qual sua essecircncia mais proacutepria
interveio na configuraccedilatildeo da humanidade Em todos esses e em outros casos o
momento particular possui significado por meio de sua conexatildeo com o todo por
meio da ligaccedilatildeo entre passado e futuro entre existecircncia particular e a
humanidaderdquo (DILTHEY 2006p224)
A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo deve ser entendida como ldquoos dois lados
do processo loacutegico dois lados que se interpenetram mutualmenterdquo (DILTHEY
2006p213) sendo a forma de compreender enquanto meacutetodo a ldquoinduccedilatildeo que deduz das
particularidades parcialmente determinadas para noacutes uma conexatildeo que define o todordquo
(DILTHEY 2006p214) Mas isso soacute eacute possiacutevel pelas categorias que residem na essecircncia
da proacutepria vida categorias que natildeo satildeo dadas a priori e nem podem ser formalizadas
logicamente Satildeo categorias preenchidas no interior de certa unidade espaccedilo-temporal
pois ldquoa vida encontra-se em uma relaccedilatildeo maximamente proacutexima com o preenchimento
do tempo() No tempo a vida existe na relaccedilatildeo das partes com uma conexatildeordquo
(DILTHEY 2006p219)
O conjunto das realizaccedilotildees da compreensatildeo enquanto conexotildees estruturais
objetivas ou objetivaccedilatildeo da proacutepria vida no mundo exterior eacute o conceito das ciecircncias
humanas e ldquotudo aquilo em que o homem por sua atuaccedilatildeo imprimiu sua marca constitui
o objeto das ciecircncias humanasrdquo (DILTHEY 2006 p112) Tendo em vista esse objeto a
tarefa do pesquisador ldquoconsiste na apreensatildeo do mundo do espiacuterito como uma conexatildeo
dos efeitos ou como uma conexatildeo contida em seus produtos duradourosrdquo (DILTHEY
2006p118) A conexatildeo dos efeitos dos produtos da ciecircncia histoacuterica natildeo eacute como o nexo
causal da natureza pois diferentemente da natureza as conexotildees da vida objetiva do
espiacuterito geram valores e realizam fins a vida histoacuterica natildeo eacute reproduccedilatildeo ciacuteclica de si
mesma ndash como a vida natural - mas eacute sempre criativa e ativa na produccedilatildeo desses valores
e bens como seu caraacuteter imanente mais proacuteprio
E eacute nessa apreensatildeo do tear da vida histoacuterica na qual o tempo a vivecircncia e
compreensatildeo estatildeo imbricados e se interpelam o significado ldquoeacute a categoria abrangente
sob a qual a vida se torna concebiacutevelrdquo (DILTHEY 2006p222)
ldquoDito de outro modo conceber algo atribuir valor e estabelecer fins para algo
satildeo atitudes vitais inter-dependentes que configuram as vivecircncias e assim sendo
nos ajudam a construir a proacutepria realidade em que vivemos Vivecircncia e realidade
22
satildeo como que tecidas conjuntamente graccedilas ao apoio da ldquocategoria do
significadordquo (AMARAL 2004p55)
As expressotildees da vivecircncia possuem sua objetividade na medida em que os objetos
as pessoas os valores e os juiacutezos apoiados nesta relaccedilatildeo enraiacutezam-se nos significados
comuns do mundo da vida significados esses que satildeo vivenciados e compreendidos
perfazendo a proacutepria construccedilatildeo do mundo histoacuterico ldquoe consequentemente de sua
compreensatildeo como tarefa basilar das ciecircncias do espiacuteritordquo (AMARAL 2004p57)
II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar
proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias6
Ainda na reaccedilatildeo contra o empirismo positivista do final do seacuteculo XIX e
sobretudo ao psicologismo desenvolveram-se as investigaccedilotildees dos chamados
neokantianos um ldquomovimento com profundas raiacutezes no seacuteculo dezenove [que] dominou
a academia filosoacutefica alematilde entre 1890 e 1920rdquo (CROWELL2001 p23)
Seguindo a exposiccedilatildeo de Crowell o movimento neokantiano pode ser dividido em
trecircs momentos profundamente relacionados com os acontecimentos histoacutericos poliacuteticos
e sociais da Alemanha na virada do seacuteculo XIX para XX Natildeo seraacute possiacutevel nos
aprofundarmos muito na especificidade de cada momento desse movimento bem como
nas suas relaccedilotildees com outras mateacuterias Como jaacute foi dito acima nossa proposta nessa
breve introduccedilatildeo eacute apenas mostrar a importacircncia desse movimento na formaccedilatildeo do
pensamento de Heidegger7 e indicar o contexto geral no qual nasce esse pensamento
6 O neokantismo eacute um movimento complexo e com muitas nuances Como nossa intenccedilatildeo eacute apresentar o
contexto no qual surge o pensamento de Heidegger natildeo pretendemos nos aprofundar e muito menos
desdobrar as divergecircncias entre seus representantes principais atraveacutes do acesso direto agraves suas obras
Portanto seguiremos nesse toacutepico a leitura de Crowell (2001) e Joseacute Rezende Juacutenior (2013) recorrendo
quando necessaacuterio a outros comentadores Destacamos os elementos centrais do pensamento de
Windelband e sobretudo de Rickert pois a partir da anaacutelise da preleccedilatildeo de 1919 de nosso autor ldquoA filosofia
e o problema da concepccedilatildeo de mundordquo ndash em que Heidegger investiga a possibilidade da filosofia como
ciecircncia originaacuteria ndash a posiccedilatildeo desses autores eacute decisiva para elaboraccedilatildeo dos problemas do meacutetodo de acesso
a imediatidade da vida e na primeira parte da referida preleccedilatildeo Heidegger expotildee os pressupostos e
problemas do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e sua dependecircncia ao material teoacuterico das ciecircncias particulares 7 Aleacutem do exposto em nota acima (6) seguimos a leitura de Gianni Vattimo em Introduccedilatildeo a Heidegger
No primeiro capiacutetulo Vattimo mostra a importacircncia dos anos de estudos universitaacuterios de Heidegger em
Freiburg sob orientaccedilatildeo de Heinrich Rickert para o desenvolvimento da questatildeo central de seu
pensamento a questatildeo do ser Segundo Vattimo em sua tese de livre docecircncia de 1916 Heidegger jaacute
23
contexto de uma disputa pela ldquoNova Filosofiardquo que dividiu a Fenomenologia de um lado
e os Neokantianos de outro
ldquoAmbos os movimentos reivindicam o tiacutetulo de filosofia cientiacutefica mas o
neokantismo difere da fenomenologia em manter uma continuidade entre a
ciecircncia positiva e filosofia A teoria da ciecircncia a epistemologia neokantiana
deseja fornecer fundamentos para os princiacutepios de base (lsquocientiacuteficosrsquo) da visatildeo de
mundo A Fenomenologia (aqui Husserl e o jovem Heidegger) ao contraacuterio
estabelece a autonomia da filosofia precisamente atraveacutes da descontinuidade com
a ciecircncia positiva e os objetos de formaccedilatildeo da visatildeo de mundordquo (CROWELL
2001p24)8
No primeiro periacuteodo (1871-1878) verifica-se ldquocerta continuidade entre o inqueacuterito
aprioriacutestico e empiacuterico A autonomia da filosofia vis-agrave-vis a ciecircncia positiva ainda natildeo
tornou a questatildeo decisivardquo (CROWELL 2001p26) Os neokantianos ainda estavam
dispostos a aceitar que as estruturas fundamentais da realidade revelavam seu caraacuteter
transcendental pois ainda constatavam a necessidade das formas universais atraveacutes das
quais podemos pensar as coisas singulares No projeto positivista a ciecircncia empiacuterica
estuda apenas o conteuacutedo de fato em uma restriccedilatildeo circunstancial dos fenocircmenos jaacute
compreendidos
ldquoTentando superar as aporias da Criacutetica da Razatildeo Pura o idealismo
transcendental neokantiano rejeitou a distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si Os
objetos satildeo totalmente imanentes agrave consciecircncia natildeo somente quanto a sua forma
mas tambeacutem agrave sua mateacuteria ieacute o seu elemento empiacuterico Destarte as categorias
jaacute natildeo constituem meramente o modo de aparecer da realidade mas o seu modo
de ser pois ela natildeo existe senatildeo enquanto presente agrave consciecircncia () Assim o
loacutegico como estudos das determinaccedilotildees fundamentais de vaacuterias regiotildees dos
objetos imanentes agrave consciecircncia ocupa com razatildeo ainda para Kant o lugar
reservado antigamente agrave metafiacutesica A tarefa proacutepria da filosofia consiste numa
Teoria das Ciecircncias ieacute no exame das estruturas a priori ao passo que estas
estudam o conteuacutedo empiacuterico das vaacuterias regiotildees dos objetosrdquo (MACDOWELL
Jp30)
manifestava elementos que o impulsionariam a ir aleacutem da loacutegica a recusa de considerar as categorias como
meras funccedilotildees do pensamento e ainda a exigecircncia de considerar o problema da historicidade e do tempo
Assim no interior da problemaacutetica neokantiana Heidegger jaacute se preocupava com questotildees que o
neokantismo mostrava-se incapaz de resolver Cf Vattimo G1987 pp 10-22
8 ldquoBoth movements lay claim to the mantle of ldquoscientific philosophyrdquo but neo-Kantianism differs from
phenomenology in maintaining a continuity between positive science and philosophy As theory of science
neo-Kantian epistemology wants to provide grounds for a principled (ldquoscientificrdquo) weltanschauung
Phenomenology (here Husserl and the early Heidegger) on the contrary establishes the autonomy of
philosophy precisely through a discontinuity with positive science and the aims of worldview formationrdquo
op cit p 24
24
Durante o segundo periacuteodo neokantiano entre 1878 e o final da Primeira Guerra
Mundial as escolas originadas desse movimento vatildeo acirrar suas diferenccedilas A escola de
Marburg (Cohen Natorp e Cassirer) se opocircs sobretudo agraves interpretaccedilotildees psicoloacutegicas
da Primeira Criacutetica de Kant O campo de investigaccedilatildeo dessa escola era direcionado agrave
fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas tais como a fiacutesica e a matemaacutetica pois o que
estaacute em jogo nessa obra segundo os pesquisadores de Marburg natildeo eacute qualquer
fundamentaccedilatildeo da estrutura psicoloacutegica do conhecimento nem sua origem mas o valor
loacutegico de sua verdade na medida em que ldquoo nosso conhecimento dos objetos reais conteacutem
um elemento que natildeo pode ser reduzido pura e simplesmente a intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo
(MCDOWELL J p29)
No mesmo sentido mas sobretudo em funccedilatildeo da superaccedilatildeo do psicologismo e do
relativismo histoacuterico a escola neokantista de Baden representada principalmente por
Windelband e seu disciacutepulo Rickert estende o retorno a Kant com o propoacutesito da
elaboraccedilatildeo de uma loacutegica das ciecircncias humanas O desenvolvimento da filosofia dos
valores (Werttheorie) realizado por essa escola reconhecia a necessidade de diferenciar o
conhecimento da natureza do conhecimento da cultura nesse uacuteltimo caso as leis
deveriam ser explicadas a partir dos valores que neles satildeo presentes Aqui sem duacutevida
existe um ponto de contato com o projeto de Dilthey que nos exige um breve excurso para
desenhar com linhas mais precisas a especificidade de cada projeto
A criacutetica agrave metafiacutesica inaugurada pela filosofia criacutetica de Kant (negando ao
conhecimento qualquer acesso a elementos suprassensiacuteveis) eacute absorvida por Dilthey e
pelos neokantianos contudo a epistemologia das ciecircncias histoacutericas como filosofia
criacutetica da histoacuteria ao recorrer a Kant deveria como aponta Reis (2002 p 166) ldquoou
substituir ou completar ou subordinar ou se coordenar agrave [criacutetica] de Kantrdquo e nesse sentido
eacute possiacutevel observar a fissura entre os projetos Poderiacuteamos dizer que para Dilthey eacute
necessaacuterio superar Kant pois as categorias abstratas do conhecimento satildeo tributaacuterias de
relaccedilotildees vitais primaacuterias como pensamento que emerge da proacutepria vida histoacuterica pois eacute
a vida histoacuterica em uacuteltima instacircncia que fornece ao pensamento unidade e sentido Jaacute
para os neokantianos de Baden poder-se-ia dizer que houve uma coordenaccedilatildeo com vistas
agrave complementaccedilatildeo agrave criacutetica kantiana tendo em vista que tanto para Windelband como
para Rickert a diferenccedila entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito era legiacutetima
25
para o primeiro como uma distinccedilatildeo metodoloacutegica para o segundo como distinccedilatildeo
loacutegica No interior dessa diferenccedila entre Dilthey e os neokantianos de Baden eacute possiacutevel
observar um ponto ainda mais fundamental mesmo com exigecircncias epistemoloacutegicas
objetivas em seu trabalho Dilthey natildeo aceita o pressuposto de um sujeito transcendental
e eacute antes a vivecircncia do sujeito particular histoacuterico que lhe fornece a base de sua pesquisa
jaacute para Windelband e Rickert o idealismo transcendental eacute mantido com o propoacutesito de
garantir o estatuto cientiacutefico de suas teses Assim enquanto Dilthey atraveacutes dos meacutetodos
proacuteprios faz emergir uma nova concepccedilatildeo de ciecircncia os representantes de Baden
movimentam-se em uma teoria preconcebida da ciecircncia Dito de outro modo ldquoenquanto
Dilthey buscava uma forma de liberar as ciecircncias do espiacuterito do meacutetodo das ciecircncias
naturais Windelband e Rickert procuravam uma definiccedilatildeo de ciecircncia que reconhecesse a
importacircncia dos valoresrdquo (WUR 2010p175)
De maneira geral retornando ao ponto central de nosso toacutepico poderiacuteamos
apontar que as duas escolas neokantianas se diferenciavam essencialmente acerca do
objeto de investigaccedilatildeo Na escola de Marburg Cohen direcionava suas pesquisas ao
chamado ldquofato da ciecircnciardquo e a filosofia seria uma reflexatildeo sobre o conhecimento
cientiacutefico concentrando-se na busca de uma metodologia capaz de descrever
matematicamente a constituiccedilatildeo seu objeto na medida em que seu valor de verdade
encontra-se sob bases loacutegico-matemaacuteticas Jaacute na escola de Baden influenciado pela
filosofia dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade
dos juiacutezos cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de
conciliar ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) A ciecircncia apenas
lida com questotildees de fato e se for necessaacuterio analisar a ldquovisatildeo de mundordquo seremos
obrigados a lidar com os deveres e sobretudo com valores
ldquoEsse enfoque nos valores por parte de Windelband levaraacute o neokantismo de
Baden ao desenvolvimento de uma teoria geral do juiacutezo segundo a qual os juiacutezos
cientiacuteficos (juiacutezos teoacutericos) constituem apenas um tipo de juiacutezo qual seja os
juiacutezos orientados pelo valor verdade Aleacutem dos juiacutezos teoacutericos haveria tambeacutem
juiacutezos natildeo teoacutericos como os juiacutezos eacuteticos esteacuteticos religiosos etc os quais
seriam orientados por outros tipos de valores como o bem o justo o belo o
sagrado etc e os quais diriam respeito a outras dimensotildees da experiecircncia
humana para aleacutem da ciecircncia como a moral o direito a arte a religiatildeo etc Com
isso Windelband procura reformar e ampliar o projeto de Kant Como na Criacutetica
da Razatildeo Pura Kant reduziu o papel da filosofia agrave anaacutelise do caraacuteter a priori dos
juiacutezos teoacutericos especiacuteficos das ciecircncias da natureza trata-se portanto de
completar a empresa kantiana com a anaacutelise do caraacuteter a priori dos outros tipos
26
de juiacutezos Mesmo dentro das ciecircncias eacute preciso distinguir tipos de juiacutezos o que
Windelband faraacute atraveacutes da distinccedilatildeo entre ciecircncias nomoloacutegicas e ciecircncias
ideograacuteficas e Rickert com a distinccedilatildeo entre ciecircncias naturais e ciecircncias
culturaisrdquo (RESENDE 2013p17)
Contudo se ambas escolas se diferenciam na circunspecccedilatildeo de seu objeto existe
um ponto de partida epistemoloacutegico comum o retorno a Kant que indica o lugar proacuteprio
da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias A investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo deve se voltar agrave pesquisa
cientiacutefica de como se daacute tal ou qual conhecimento mas analisar a validade do
conhecimento ou seja aquilo que torna a verdade do conhecimento possiacutevel e esse
problema eacute de ordem transcendental pois natildeo estaacute interessada nos processos cognitivos
mas na condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer processo de conhecimento
ldquoContemporacircneo de Hermann Cohen da escola de Marburg Windelband
enfatizou como este a primazia da abordagem epistemoloacutegica dando
continuidade ao projeto kantiano de limitaccedilatildeo do conhecimento buscando
assegurar a sua validade rejeitando a contingecircncia do histoacuterico e do psicoloacutegico
em prol de uma validade atemporal puramente loacutegica Cohen procurou assegurar
a validade loacutegica do conhecimento cientiacutefico na matemaacutetica procedimento que
Windelband analisa como deficiente pois embora a primeira Criacutetica possa
fundamentar a interpretaccedilatildeo de Cohen a segunda e a terceira Criacuteticas assim
como os textos sobre antropologia histoacuteria e poliacutetica requerem outra
fundamentaccedilatildeo que natildeo a matemaacuteticardquo (WU R2010p3)
A terceira fase do movimento ainda segundo Crowell inicia-se no fim da
Primeira Guerra Mundial e vai ateacute a intervenccedilatildeo Nacional Socialista no sistema
universitaacuterio alematildeo nos anos 30 ldquoRefletindo o colapso do otimismo cultural este
periacuteodo eacute caracterizado por um ataque ao idealismo acadecircmico em nome de
Lebensphilosophie (um termo geneacuterico invocando as teses filosoacuteficas lsquoagrave margemrsquo como
as de Nietzsche Bergson e Dilthey)rdquo (CROWELL2011p28) E nesse sentido as escolas
neokantianas precisaram enfrentar o conflito entre a realidade muacuteltipla e dispersa que no
mais das vezes escapa a qualquer tentativa de apreensatildeo conceitual e loacutegica e portanto
agrave consciecircncia transcendental como postulado que garante a cientificidade do projeto
filosoacutefico neokantista
ldquoNa escola de Baden Logik der Philosophie (1911) e Die Lehre vom Urteil [A
doutrina do juiacutezo] (1912) de Lask antecipam temas do terceiro periacuteodo
Abandonando a interpretaccedilatildeo imanente de Rickert do esquema forma-mateacuteria (e
tambeacutem a primazia da razatildeo praacutetica) Lask adota o ponto de partida da
transcendecircncia para dar uma interpretaccedilatildeo ontoloacutegica dos objetos como a unidade
da forma categorial e o material natildeo-loacutegico Objetos satildeo verdades em si mesmas
27
unidades de sentido natildeo cogniccedilotildees juiacutezos proposiccedilotildees Em contraste com
Cohen para quem o objeto eacute construiacutedo no juiacutezo cientiacutefico Lask argumenta que
lsquoos mais baacutesicos problemas da loacutegica revela eles mesmos somente se a cogniccedilatildeo
preacute-teoreacutetica estaacute inclusa na investigaccedilatildeorsquo Em Marburg N Hartmann oferece na
Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis [Fundamentacao para uma
Metafiacutesica do Conhecimento] (1921) uma teoria da relaccedilatildeo sujeito-objeto
ldquorealistardquo quase-fenomenoloacutegica intentada por uma justificaccedilatildeo ontoloacutegica para
o que eacute meramente pressuposto no idealismo loacutegico de Natorp a saber a
habilidade do sujeito para ldquotranscenderrdquo a sua proacutepria esfera Na filologia de
Kant H Heimsoeth comeccedila a descobrir os ldquomotivos metafiacutesicosrdquo da filosofia
criacutetica de Kant uma interpretaccedilatildeo perseguida no curso sobre Kant de Heidegger
1927-1928 e em Kant und das Problem der Metaphysikrdquo
(CROWELL2011p28)9
Eacute conhecida a interlocuccedilatildeo entre Rickert e a fenomenologia de Husserl tanto de
um lado pela criacutetica de Rickert agrave intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica e agrave identificaccedilatildeo entre sentido
(Sinn) e Significado (Bedeutung) nas Investigaccedilotildees Loacutegicas10 quanto por outro pela
criacutetica de Husserl a Rickert no que diz respeito agrave via predominantemente subjetiva das
9 ldquoIn the Baden school Laskrsquos Logik der Philosophie (1911) and Die Lehre vom Urteil (1912) anticipate
themes of the third period Abandoning Rickertrsquos immanentist interpretation of the formmaterial schema
(and so also the primacy of practical reason) Lask adopts the ldquostandpoint of transcendencerdquo to give an
ontological interpretation of the object as a unity of categorial form and alogical material Objects are
themselvesldquo truths unities of meaning not cognitions judgments propositionsrdquo Incontrast to Cohen for
whom the object is constructed in the scientific judgment Lask argues that ldquothe most basic problems of
logic reveal themselves only if pretheoretical cognition is included in the investigationrdquo In Marburg N
Hartmann offered the Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis (1921) a quasi-phenomenological
ldquorealisticrdquo theory of the subject-object relation intended to account ontologically for what is merely
presupposed in Natorprsquos logical idealism namely the subjectrsquos ability to ldquotranscendrdquo its own sphere In
Kant philology H Heimsoeth began to uncover the ldquometaphysical motivesrdquo of Kantrsquos critical philosophy
an interpretation pursued in Heideggerrsquos 1927ndash28 lecture course on Kant and in Kant und das Problem der
Metaphysikrdquoop citp28
10 Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas (sect15 da I Investigaccedilatildeo) contra a posiccedilatildeo de Frege Husserl considera os
termos Sentido (Sinn) e Significado (Bedeutung) como sinocircnimos ldquoSignificaccedilatildeo vale para noacutes aleacutem disso
como sinocircnimo de sentidordquo (HUSSERL 2012 p43) Contudo se em Ideias (1913) Husserl passa a assumir
uma camada de sentido preacutevia agrave significaccedilatildeo linguiacutestica - algo que ele natildeo soacute sugere como a ela se refere
explicitamente chamando-a de sentido preacute-expressivo- a significaccedilatildeo (Bedeutung) permanece
intimamente atrelada agrave expressatildeo (Ausdruck) que continua a ter um caraacuteter epistemoloacutegico relevante
(Cfsect124 Ideacuteias para uma fenomenologia pura e para uma fenomenologia fenomenoloacutegica) Apesar da
nova assunccedilatildeo essa camada preacute-expressiva natildeo passa a ter um teor de verdade superior agrave camada
expressiva pelo contraacuterio Husserl vai permanecer sempre comprometido com o status epistemoloacutegico da
consciecircncia e de seu acesso ao fenocircmeno Entatildeo aquilo que a consciecircncia manifesta linguisticamente
continua a ser o meio pelo qual a fenomenologia pode se realizar como ciecircncia rigorosa e somente a partir
da expressatildeo eacute possiacutevel falar em verdade na medida em que apenas a expressatildeo possui intenccedilatildeo de
significaccedilatildeo Isso porque apesar de sugerir esse sentido preacute-linguiacutestico Husserl continua voltando suas
anaacutelises agrave expressatildeo
28
primeiras publicaccedilotildees de Der Gegenstand der Erkentnnis (O objeto do conhecimento)11
Tambeacutem eacute conhecido o debate entre o idealismo criacutetico de Natorp e a fenomenologia de
Husserl
ldquoEm Ideen I (1913) Husserl afirma com um miacutenimo de ironia que ldquonoacutes somos
genuiacutenos positivistasrdquo (Hua III4639) Sob a tutela de Brentano a atitude inicial
de Husserl em direccedilatildeo ao apriorismo kantiano foi totalmente negativa e em
harmonia com o proacuteprio periacuteodo positivista inicial do neokantismo ele em vez
disso propocircs uma consideraccedilatildeo psicoloacutegica do a priori (egin Philosophie der
Arithmetik [1891]) Pelos anos de 1890 esse tipo de continuidade entre filosofia
e ciecircncia positiva foi abandonado em Marburg pelo idealismo transcendental
Husserl portanto permaneceu bem proacuteximo a Natorp que era o instrumental em
direccedilatildeo daquele caminho do psicologismo e mais tarde inspiraria o movimento
de Husserl da estaacutetica para a fenomenologia geneacutetica Pelos anos 1913 Husserl
tinha desenvolvido seu proacuteprio ldquoidealismo transcendentalrdquo fenomenoloacutegico mas
se manteve distinto em princiacutepio do Neokantismo de Marburg Enquanto esse
uacuteltimo definiu o caraacuteter cientiacutefico da filosofia em termos de
uma loacutegica transcendental uma apresentaccedilatildeo sistemaacutetica dos princiacutepios a priori
(ldquomeacutetodordquo) da ciecircncia empiacuterica o primeiro se manteve anti-sistemaacutetico modelo
empiacuterico do primeiro periacuteodo do seu fundador fundando sua teoria do a priori
sobre um recurso filosoacutefico para a intuiccedilatildeoEm seu tratamento da psicologia de
Natorp na primeira ediccedilatildeo das Investigaccedilotildees Loacutegicas(1900-1901) por exemplo
Husserl rejeita a doutrina de Natorp do puro ego da apercepccedilatildeo Na segunda
ediccedilatildeo contudo ele afirma que tem ldquouma vez conseguido encontraacute-lordquo tendo
aprendido ldquoa natildeo ser desviado de uma pura compreensatildeo do dado por meio de
formas corruptas do ego-metafiacutesicordquo (Hua XIX1374549) Se o Husserl mais
idealista natildeo mais associa o ego kantiano com o ldquocorrupto ego-metafiacutesicordquo do
idealismo especulativo sua anotaccedilatildeo ainda avanccedila em direccedilatildeo a uma afirmaccedilatildeo
bem anti-Natorpiana de ter encontrado o puro ego em uma ldquopura compreensatildeo
do dadordquo isto eacute em evidecircncia intuitiva Outra anotaccedilatildeo afirma que o puro ego eacute
ldquoapreendido na efetivaccedilatildeo de um cogito auto-evidenterdquo (Hua XIX1368544)
Natorp negou a fenomenalidade do ego ele nem pode ser objetivado nem
apresentado ele mesmo como um todo sem deixar de ser genuinamente ldquosujeitordquo
Para Husserl poreacutem esse argumento eacute meramente verbal o ego eacute aqui como um
fato um objeto em seu modo apropriado Afirmar o contraacuterio equivaleria
entregar o ego ao reino do mito (Hua XIX1373ndash76549ndash510)rdquo
(CROWELL2011 p31)12
11 Sobre a interlocuccedilatildeo entre Husserl e Rickert e como as criacuteticas e observaccedilotildees provocaram sucessivas
revisotildees dos trabalhos de ambos os autores Cf RESENDE J 2013 Primeira Parte pp 22-89
12ldquoIn Ideen I (1913) Husserl claims with only slight irony that ldquowe are the genuine positivistsrdquo (Hua
III4639) Under Brentanorsquos tutelage Husserlrsquos initial attitude toward Kantian apriorism had been
altogether negative and in harmony with neo-Kantianismrsquos own early positivist period he instead proposed
a psychological account of the a priori (egin Philosophie der Arithmetik [1891]) By the 1890s this kind
of continuitybetween philosophy and positive science had been abandoned in burg for transcendental
idealism Husserl nevertheless established close ties with Natorp who was instrumental in steering him
away from psychologism and would later inspire Husserlrsquos move from static to genetic phenomenology
By 1913 Husserl had developed his own phenomenological ldquotranscendental idealismrdquo but it remained
distinct in principle from Marburg neo-Kantianism While the latter defined the scientific character of
philosophy in terms of a transcendental logic a systematic presentation of the a priori principles (ldquomethodrdquo)
29
Contudo apesar do diaacutelogo entre esses autores o que nos interessa marcar a tiacutetulo
introdutoacuterio eacute a centralidade do debate que orientou a filosofia deste periacuteodo Seja pela
busca de juiacutezos loacutegicos-matemaacuteticos seja pela busca dos juiacutezos de valor a filosofia ainda
estaacute imersa nos problemas e na gramaacutetica da modernidade pois os debates se
movimentam no interior da teoria do conhecimento e cada escola a seu modo recorre ao
sujeito transcendental para assegurar a garantia de objetividade e validade do
conhecimento A discussatildeo inaugurada por Kant acerca da lsquocoisa em sirsquo e de seu acesso
como ideia da razatildeo redirecionam qualquer ontologia dos objetos agrave consciecircncia do
sujeito E em uacuteltima instacircncia a filosofia permanece imersa no pressuposto da existecircncia
de um fundamento uacuteltimo - baseado no sujeito e em suas possibilidades ligadas agrave
representaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos elementos do mundo externo- como condiccedilatildeo de
possibilidade que garante a seguranccedila e objetividade de todo conhecimento
II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica
Para Wilhelm Windelband (1848-1915) a filosofia deve investigar os valores das
representaccedilotildees ou seja em que medida uma representaccedilatildeo se torna uma proposiccedilatildeo
cientiacutefica Contra as teorias representacionistas do juiacutezo aqui jaacute eacute possiacutevel identificar a
clara separaccedilatildeo entre representaccedilatildeo - que seria a mera apariccedilatildeo de um objeto e suas
propriedades- e o juiacutezo ndash que possui valor de verdade e pode ser negado ou afirmado Os
juiacutezos (sejam loacutegicos esteacuteticos ou eacuteticos) natildeo satildeo neutros como a representaccedilatildeo pois
possuem embutido o que Windelband chama de apreciaccedilatildeo
ldquoTrata-se de uma distinccedilatildeo loacutegica que normalmente natildeo aparece no niacutevel da
gramaacutetica A mera conexatildeo neutra de representaccedilotildees (sujeito + predicado) eacute o que
se chama de juiacutezo jaacute o fato dessas representaccedilotildees constituiacuterem uma proposiccedilatildeo
com valor de verdade se deve agrave apreciaccedilatildeo O que Windelband quer mostrar eacute
of empirical science the former retained the antisystematic empirical cast of its founderrsquos early period
grounding its theory of the a priori on a philosophical appeal to intuition In his treatment of Natorprsquos
psychology in the first edition of the Logical Investigations (1900 1901) for example Husserl rejects
Natorprsquos doctrine of the pure ego of apperception In the second edition (1913) however he claims that he
has ldquosince managed to find itrdquo having learned ldquonot to be led astray from a pure grasp of the given through
corrupt forms of ego-metaphysicrdquo (Hua XIX1374549) If the more idealistic Husserl no longer associates
the Kantian ego with the ldquocorrupt ego-metaphysicrdquo of speculative idealism his note also advances the very
un-Natorpian claim to have found the pure ego in a ldquopure grasp of the givenrdquo that is in intuitive evidence
Another note states that the pure ego is ldquoapprehended in carrying out a self-evident cogitordquo (Hua
XIX1368544) Natorp had denied the phenomenality of the ego it can neither be objectified nor present
itself at all without ceasing to be genuinely ldquosubjectrdquo For Husserl however this argument is merely verbal
The ego is there as a fact an object in its own appropriate manner To claim otherwise is tantamount to
consigning the ego to the realm of myth (Hua XIX1373ndash76549ndash51)rdquo Op cit p31 Cf Tambeacutem
HEIDEGGER 2006 p 124
30
que nisso ordinariamente chamado de juiacutezo estaacute embutida uma apreciaccedilatildeo em
funccedilatildeo de um valor a qual natildeo se confunde com o conjunto de formaccedilotildees
conceituaisrdquo (RESENDE 2013p40)
O que estaacute em jogo nessa concepccedilatildeo eacute identificar que a apreciaccedilatildeo inerente a todo
juiacutezo natildeo diz nada acerca dos conteuacutedos representativos mas de sua pretensatildeo a um ideal
ou fim uacuteltimo como um horizonte estaacutevel do que eacute verdadeiro eacutetico ou esteacutetico e que
funcionam como paracircmetros avaliativos na accedilatildeo mesma de julgar O que estaacute implicado
nessa tese eacute a concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo As ciecircncias particulares possuem pretensatildeo de
valor universal mas essa universalidade natildeo eacute faacutetica e ldquosua necessidade natildeo eacute causal mas
apenas lsquodeve-serrsquo (sein-solle)Toda proposiccedilatildeo loacutegica eacutetica ou esteacutetica eacute impelida pelo
dever-ser universalrdquo(RESENDE2013p41) e mesmo que sua manifestaccedilatildeo seja
faticamente histoacuterica esse dever-ser da proposiccedilatildeo loacutegica deve ser reconhecido como
universal e incondicionalmente vaacutelido por qualquer ser racional ndash em uma clara assunccedilatildeo
da universalidade moral kantiana mas que agora permeia todos os juiacutezos e natildeo somente
os eacuteticos
Considerando os juiacutezos em funccedilatildeo de sua apreciaccedilatildeo Windelband descreve trecircs
tipos de juiacutezos Os juiacutezos satildeo teoacutericos (segundo a apreciaccedilatildeo verdadeirofalso) juiacutezos de
gosto (segundo a apreciaccedilatildeo belofeio) e os juiacutezos eacuteticos (segundo a apreciaccedilatildeo
bommau) Os fenocircmenos psiacutequicos satildeo as representaccedilotildees neutras em sua manifestaccedilatildeo
Assim como comportamentos da apreciaccedilatildeo os juiacutezos ganham sua forma loacutegica nas
figuras judicativas juiacutezos afirmativos juiacutezos negativos juiacutezos problemaacuteticos Essa uacuteltima
forma suspende a apreciaccedilatildeo mas pela pergunta ndash que natildeo eacute propriamente um juiacutezo-
condiciona a possibilidade de julgar portanto se refere a uma etapa mesmo que preacutevia
agrave tomada de posiccedilatildeo apreciativa
Aqui reside o ponto decisivo enquanto para Windelband a loacutegica claacutessica (de
Aristoacuteteles a Kant) se ocupou dos elementos meramente gramaticais - sendo os juiacutezos
coincidentes com as representaccedilotildees na medida que bastava afirmaacute-las ou negaacute-las - a
apreciaccedilatildeo por sua vez aparece como constituidora do conceito presente nas formaccedilotildees
gramaticais pois dizer algo eacute antes apreciar a sua posiccedilatildeo existencial (com fim ao ideal
da mateacuteria em questatildeo eacutetico esteacutetico etc) de forma a negaacute-las ou afirmaacute-las Em outras
palavras para que o conhecimento seja possiacutevel natildeo eacute suficiente a recepccedilatildeo passiva das
representaccedilotildees mas eacute fundamental uma atividade valorativa que constitui um conceito
31
no reconhecimento de seu conteuacutedo sentido e validade na sua pretensatildeo de necessidade
e universalidade Algo lsquoeacutersquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento e
ldquoa pesquisa desses valores com pretensotildees universais () eacute o objeto de estudo da
filosofiardquo (RESENDE 2013p41) Essa posiccedilatildeo seraacute retomada e desenvolvida por
Rickert
Assim como Windelband Heinrich Rickert (1863-1936) coloca o problema na
forma metodoloacutegica ou seja a pesquisa dos valores como meacutetodo de base para a filosofia
e busca assim determinar o criteacuterio de validade do conhecimento atraveacutes do elemento que
confere sua objetividade ou o que pode ser identificado como o crucial para a diferenccedila
entre os enunciados arbitraacuterios e as proposiccedilotildees vaacutelidas do conhecimento efetivo
elemento que Rickert denomina ldquoobjeto do conhecimentordquo como o tiacutetulo mesmo de sua
obra principal indica ldquoDie Gegenstand der Erkenntnisrdquo (revista em seis ediccedilotildees
diferentes entre 1892 e 1928)
Aprofundando as investigaccedilotildees de seu mestre Rickert difere conceitos
ontoloacutegicos de conceitos axioloacutegicos diferenccedila oculta na linguagem ordinaacuteria e que se
torna clara na observaccedilatildeo acerca da concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo ldquoEnquanto para Kant o
problema eacute a impossibilidade de explicar o fato de como a razatildeo teoacuterica pode ser praacutetica
para Rickert o problema eacute o fato de que a razatildeo jaacute eacute sempre praacutetica em seu uso teoacuterico
purordquo (RESENDE 2013p45) e isto natildeo pelo fato de juiacutezos teoacutericos dependerem da lei
moral mas pela convicccedilatildeo acerca dos conteuacutedos mesmos do conhecimento Se a
representaccedilatildeo satildeo processos psiacutequicos elementares e neutros a convicccedilatildeo soacute eacute possiacutevel
pela razatildeo praacutetica Para melhor visualizaccedilatildeo do problema quando digo ldquoS eacute Prdquo ou ldquoS eacute
um sujeitordquo (e aiacute estaacute tambeacutem seu conceito por exemplo ldquohomemrdquo) ou ainda ldquoP eacute um
predicadordquo (e tambeacutem utilizo um conceito por exemplo ldquoracionalrdquo) o que me autoriza
dizer ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo Segundo Rickert eacute a convicccedilatildeo praacutetica fundada no
sentimento (Gefuumlhl) de ldquovontade de verdaderdquo (Willen zur Wahrheit) que impele a busca
da verdade Eacute esse sentimento que possibilita a tomada de posiccedilatildeo que aprova ou
desaprova expresso por fim em um juiacutezo Somos impelidos pelo dever na medida em
que somos livres a buscar a verdade Mas eacute importante considerar que
ldquoApesar de o sentimento ser o paracircmetro para a tomada de posiccedilatildeo do juiacutezo o
dever natildeo deriva do sentimento pois isso seria derivar o dever do ser O dever
natildeo pode ser confundido com a necessidade causal do sentimento Na verdade
32
na proacutepria constataccedilatildeo do sentimento jaacute estaacute pressuposto o dever () Essa
verdade buscada natildeo eacute uma instacircncia ideal mas apenas um postulado um
inalcanccedilaacutevel ideal absoluto de verdade que funciona como moacutebil da atividade
cientiacutefica dos seres moraisrdquo (RESENDE 2013p46)
A razatildeo praacutetica busca a verdade como sua atividade mais proacutepria a partir do dever
impresso na sua proacutepria liberdade expresso no ato praacutetico de tomada de decisatildeo que
culmina na expressatildeo dos juiacutezos (na razatildeo teoacuterica) Se para Kant a accedilatildeo humana livre eacute
impelida a agir conforme a lei moral para Rickert a accedilatildeo humana em seu querer livre -
nem mecacircnico nem bioloacutegico - de um ideal de perfeiccedilatildeo da verdade eacute impelida a agir em
funccedilatildeo do conhecimento e da ciecircncia
Na tentativa de afastar as interpretaccedilotildees psicologistas ou idealistas (natildeo
cientiacuteficas) de sua teoria o valor de verdade para Rickert que eacute garantido pelo dever-ser
eacute observado na evidecircncia como manifestaccedilatildeo psiacutequica do dever mas que pelo seu caraacuteter
de necessidade ultrapassa o indiviacuteduo singular O sentimento de prazer ou desprazer dessa
evidecircncia na estrutura psiacutequica que posiciona o ato praacutetico de tomada de posiccedilatildeo eacute
reconhecido pela sua necessidade transcendente e eacute o elemento do esquema cognitivo que
ldquoestabelece a ponte entre os processos psiacutequicos reais em sua singularidade e
contingecircncia com a universalidade e necessidade transcendental do deverrdquo (RESENDE
2013p47) Mesmo com essas colocaccedilotildees e sobretudo com a postulaccedilatildeo que o dever natildeo
pode ser derivado do ser pelo seu caraacuteter mesmo de liberdade Rickert foi aproximado de
um certo ldquopsicologismo voluntaristardquo pois o valor de verdade na realidade soacute poderia ser
derivado dos processos psiacutequicos tendo em vista que ldquoo dever eacute uma norma psicoloacutegica
que soacute tem sentido lsquopararsquo um sujeito empiacutericordquo (RESENDE 2013p47) E ainda por
mais que sua meta fosse buscar a universalidade e necessidade dos valores ainda assim
esses valores estariam reduzidos ldquoagrave contingecircncia e temporalidade dos processos
psiacutequicos ou seja reduzindo o valor ao serrdquo (RESENDE 2013p48)
Mas como a filosofia dos valores desses autores lida com as pesquisas histoacutericas
enquanto criacutetica do historicismo Para Windelband as ciecircncias positivas satildeo ciecircncias
nomoteacuteticas ou seja operam por uma abstraccedilatildeo que busca o conhecimento universal
atraveacutes da estabilidade de suas leis Jaacute as ciecircncias histoacutericas satildeo ideograacuteficas cujo juiacutezos
natildeo descrevem uma coisa ou estados de coisa enquanto aquilo que eacute mas possuem como
objeto valores que possuem (ou natildeo) validade Validade oferecida em uacuteltima instacircncia
33
pelo juiacutezo em sua forma fundamental como juiacutezo apreciativo Analisar esses valores
requer uma metodologia proacutepria baseada na pesquisa da valoraccedilatildeo como forma de
conhecimento
Para Rickert a filosofia dos valores eacute o fundamento universal para os significados
da histoacuteria e aqui reside o ponto crucial a busca de um ideal absoluto (vontade de
verdade) deve atuar como medida para a realidade individual e histoacuterica sem a qual natildeo
podemos significar a interpretaccedilatildeo da vida histoacuterica e cultural na sua singularidade A
distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor
(Wert) segundo Rickert levaria a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo
de conceitos (Begriffsbildung) e que natildeo se trata de um conhecimento no campo
ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto pelo conceito determinado de maneira formal no
espaccedilo loacutegico-axioloacutegico
Um evento histoacuterico natildeo possui relevacircncia por si soacute eacute a partir da valoraccedilatildeo que
um fato histoacuterico se ldquodiferencia substancialmente de outros na heterogeneidade contiacutenua
a partir de sua individualidaderdquo (Wu R 2010p180) Ou seja o que doa sentido a um
fato histoacuterico na sua individualidade ndash que se destaca dos fluxos indistintos e
heterogecircneos dos acontecimentos - eacute uma realizaccedilatildeo teoacuterica que o valoriza e lhe confere
sentido A histoacuteria eacute portanto possiacutevel e existe como objeto capaz de ser analisado como
ciecircncia pelos valores atribuiacutedos teoricamente a seus eventos
III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos
A crise no modelo teoacuterico tradicional no final do seacuteculo XIX (que apontava
qualquer teoria filosoacutefica como uma lsquocrenccedila justificadarsquo) a reconduccedilatildeo pelos
psicologistas agrave articulaccedilatildeo de argumentos logicamente coerentes baseados na consciecircncia
particular - em que ateacute mesmo os princiacutepios loacutegicos seriam expressatildeo da forma de
conhecimento possiacutevel pela particularidade daquele que conhece- culminam no projeto
husserliano de uma filosofia pura e sem pressupostos
Para Husserl a psicologia baseada no modelo cientiacutefico das ciecircncias naturais leva
agrave particularizaccedilatildeo dos conteuacutedos do conhecimento e nesse modelo a psicologia natildeo
consegue lidar com a universalidade do conteuacutedo dos princiacutepios tornando a relaccedilatildeo entre
34
a realidade e o conhecimento incompatiacuteveis Por mais que a experiecircncia seja particular
as investigaccedilotildees de Husserl o levaram a considerar que a existecircncia humana estaacute em
contato com conteuacutedos que natildeo satildeo particularizaacuteveis A psicologia natildeo deixa clara a
transiccedilatildeo das conexotildees psicoloacutegicas do pensar e a unidade loacutegica de seu conteuacutedo O que
estaacute em jogo para Husserl eacute portanto a relaccedilatildeo entre a subjetividade do conhecer e a
objetividade do conteuacutedo de pensamento
A predominacircncia neokantiana no horizonte universitaacuterio alematildeo e sua maacutexima de
retorno a Kant mantecircm no interior da investigaccedilatildeo termos como por exemplo
lsquoapercepccedilatildeorsquo e lsquorepresentaccedilatildeorsquo Se o neokantismo se volta a Kant tambeacutem sucumbe a
seus limites e nesse movimento revela a insuficiecircncia da investigaccedilatildeo filosoacutefica
condicionada aos sistemas anteriores Para Husserl a filosofia como ciecircncia autocircnoma
requer natildeo um retorno a qualquer teoria mas agraves coisas que agora devem orientar o
pensamento
A tradiccedilatildeo filosoacutefica eacute marcada por uma pretensatildeo a busca da verdade para aleacutem
do que acontece na realidade dos fenocircmenos que nos satildeo acessiacuteveis Ao hipostasiar a
realidade do ser atraveacutes de posturas realistas ou idealistas para assim ter acesso aos
fenocircmenos a tradiccedilatildeo sempre considerou o ser do fenocircmeno para aleacutem do proacuteprio
fenocircmeno13 De maneira diversa Husserl busca os objetos nos proacuteprios campos
fenomecircnicos na medida em que aparecem na dimensatildeo do conhecimento a partir da
proacutepria atividade de pensamento ou seja o objeto que aparece na atividade de
pensamento soacute eacute encontrado na proacutepria atividade por isso natildeo haacute busca ou hipoacutestase
exterior agrave consciecircncia Mas isso natildeo se daacute porque a consciecircncia em seus atos produza ou
determine os significados dos objetos mas sim porque os atos das vivecircncias abrem espaccedilo
para que o objeto se determine no ato mesmo a partir de sua autonomia frente a qualquer
subjetividade particular de pensamento Mas o que queremos dizer com lsquoum objeto que
se determina no ato mesmorsquo Aqui eacute importante destacar sempre que possiacutevel um mal-
entendido em constante revisatildeo a filosofia de Husserl natildeo consiste em um sistema
fechado de proposiccedilotildees as quais poderiacuteamos encaminhar de forma retiliacutenea e deduzir suas
conclusotildees Aqui nessa breve introduccedilatildeo agraves intenccedilotildees do pensamento de Husserl
apresentamos em linhas gerais seu projeto e nos movimentamos a partir do segundo
13 Cf CASANOVA 2013 pp-76-80
35
volume das Investigaccedilotildees Loacutegicas de 1901 e das Ideacuteias para uma fenomenologia pura e
para uma filosofia fenomenoloacutegica publicadas em 1913
Depois dessas consideraccedilotildees atraveacutes das quais foi posta em jogo a noccedilatildeo de um objeto
que se determina no ato mesmo conforme jaacute explicitado nas Investigaccedilotildees eacute requerido
passar agrave explicaccedilatildeo da noccedilatildeo conforme elaborada na obra posterior Ideacuteias O
pensamento de Husserl eacute marcado por uma orientaccedilatildeo especiacutefica a fenomenoloacutegica Essa
orientaccedilatildeo natildeo desconsidera as vaacuterias formas pelas quais podemos ter acesso a objetos
seja pela vida corrente e cotidiana seja pela via cientiacutefica pois ambas estatildeo de acordo
com a orientaccedilatildeo natural A orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica por sua vez se deteacutem no objeto
intencional ou seja o objeto que visado se manifesta agrave consciecircncia conforme seu modo
de doaccedilatildeo fenomecircnico14 Natildeo se trata de um idealismo subjetivo conforme por exemplo
Berkeley mas de uma necessidade de acesso agraves coisas mesmas sem qualquer
pressuposiccedilatildeo sem qualquer movimento que ponha o conhecimento fora da realidade e
que ao mesmo tempo natildeo recaia na descriccedilatildeo ingecircnua da realidade como um conjunto de
impressotildees sensiacuteveis O fenocircmeno que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute
sempre uma doaccedilatildeo com sentidosignificado ldquopois se eacute verdade que os fenocircmenos se
datildeo a noacutes por intermeacutedio dos sentidos eles se datildeo sempre como dotados de um sentido
ou de uma essecircncia Eis porque () a intuiccedilatildeo seraacute uma intuiccedilatildeo da essecircncia ou do
sentidordquo (DARTIGUES 1973p21)
Ao contraacuterio dos neokantianos o modo como Husserl tratou a realidade tornou
improacuteprio o retorno agraves concepccedilotildees filosoacuteficas anteriores Elas natildeo forneciam mais um
caminho vaacutelido para o questionamento filosoacutefico Natildeo era mais suficiente o retorno a
qualquer sistema filosoacutefico fosse para renovaacute-lo - sob esse novo horizonte cientiacutefico -
fosse para retomar seus fundamentos com a finalidade de posicionar a filosofia como
braccedilo de apoio da ciecircncia A fenomenologia pura (puramente descritiva) pertence agrave
pesquisa de uma teoria do conhecimento objetiva na medida em que o modo de apariccedilatildeo
dos fenocircmenos nas vivecircncias do pensamento e do conhecimento seraacute sempre o objeto da
fenomenologia
14 Cf Ideacuteias I Capiacutetulo I
36
A concepccedilatildeo de fenocircmeno na modernidade ganhou diversas acepccedilotildees desde Bacon
ateacute Wolff passando por Descartes e Hobbes Segundo uma noccedilatildeo do senso comum
fenocircmeno eacute a experiecircncia pura e simples do fato considerada sobretudo como
manifestaccedilatildeo empiacuterica da realidade que natildeo pode ser equiparada agrave verdade15 Jaacute para Kant
- na delimitaccedilatildeo feita na primeira Criacutetica do espaccedilo do saber cientiacutefico possiacutevel -
fenocircmeno eacute o objeto especiacutefico do conhecimento humano que aparece sob condiccedilotildees
particulares da estrutura cognosciacutevel do homem a saber de um lado o objeto do
conhecimento depende das bases representativas que satildeo organizadas pelas categorias do
entendimento e de outro dos dados fornecidos pela sensibilidade Resumindo o objeto
de conhecimento para Kant estaacute delimitado pela relaccedilatildeo entre intuiccedilatildeo e conceito Kant
distingue o fenocircmeno - aquilo que eacute possiacutevel conhecer - do nocircumeno aquilo que natildeo se
conhece mas que pode ser pensado enquanto ideia da razatildeo como ldquocoisa em sirdquo Sem
jamais ultrapassar os dados da experiecircncia o sentido fenomenoloacutegico de fenocircmeno de
Husserl supera a distinccedilatildeo kantiana entre nocircumeno e fenocircmeno O fenocircmeno eacute algo que
manifesto revela em si mesmo seu conteuacutedo loacutegico ou essencial Mas a manifestaccedilatildeo do
fenocircmeno deve ser ldquodepuradardquo de qualquer psicologismo pois natildeo deve apenas ser
considerada como manifestaccedilatildeo particular A investigaccedilatildeo filosoacutefica ou melhor a
investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica aqui eacute exigida como meacutetodo para lsquopurificarrsquo o conteuacutedo
objetivo do ato subjetivo
ldquoO caminho que Husserl busca e comandaraacute ateacute em suas uacuteltimas obras a sua
concepccedilatildeo de fenomenologia eacute uma via meacutedia entre esses dois escolhos como
pensar segundo a sua natureza e em cada uma de suas nuanccedilas ndash e portanto sem
jamais ultrapassaacute-los ndash os dados da experiecircncia em sua totalidade Todo o
fenocircmeno e nada mais que o fenocircmeno poder-se-ia dizer O postulado que funda
tal empresa eacute que o fenocircmeno estaacute penetrado no pensamento de logos e que por
sua vez o logos se expotildee e soacute se expotildee no fenocircmeno Apenas sob essa condiccedilatildeo
eacute possiacutevel uma fenocircmeno-logiardquo (DARTIGUES 1973p20)
Aluno de Brentano Husserl ainda radicaliza a teoria da intencionalidade de seu
professor e natildeo mais considera que a consciecircncia se dirija pelo ato intencional agraves
representaccedilotildees empiacutericas da consciecircncia mas agrave objetividade das proacuteprias coisas
detectaacutevel no ato expressivo Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas Husserl apresenta a consciecircncia
como sempre ldquovoltada ardquo ou seja como uma consciecircncia intencional superando natildeo soacute
a noccedilatildeo de consciecircncia como o lsquolugarrsquo das representaccedilotildees que devem ser organizadas por
15 Cf AbbagnoN 2003 p436 Nesse sentido tambeacutem Cf Heidegger 2006 pp26-27
37
exemplo por aparatos internos a priori como tambeacutem qualquer orientaccedilatildeo psicologista
do conhecimento Se a fenomenologia recorre agrave psicologia eacute apenas para a investigaccedilatildeo
descritiva das vivecircncias intencionais e a psicologia descritiva na medida em que se
configura como descriccedilatildeo empiacuterica (cientiacutefica-natural) natildeo pode ser confundida com a
fenomenologia Esta ao contraacuterio mesmo repousando sobre a investigaccedilatildeo descritiva das
vivecircncias intencionais estrato mesmo da psicologia ainda assim possui como
particularidade a descriccedilatildeo pura excluindo qualquer concepccedilatildeo naturalista16
Mas afinal do que se trata nesta ldquodescriccedilatildeo purardquo Eacute na atividade compreensiva em
geral (descriccedilatildeo das vivecircncias intencionais) que Husserl buscaraacute a origem do
conhecimento na anaacutelise dos atos de constituiccedilatildeo de conhecimento dos objetos que ele
vai procurar descrever os movimentos ideais implicados em todo movimento intencional
As investigaccedilotildees gnosioloacutegicas da loacutegica pura expostas nas Investigaccedilotildees loacutegicas
querem lanccedilar as bases e fundamentos seguros como alternativas agraves teorias do
conhecimento empiristas ceacuteticas metafiacutesico-realista e psicologista pretendendo
fundamentar uma verdadeira teoria do conhecimento a partir da filosofia puramente
cientiacutefica Essa anaacutelise se realiza a partir das expressotildees levando em consideraccedilatildeo o
aspecto loacutegico da vivecircncia
ldquoA Fenomenologia analiacutetica de que o loacutegico necessita para os seus trabalhos de
preparaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo diz respeito entre outras coisas e desde logo agraves
lsquorepresentaccedilotildeesrsquo e mais precisamente agraves representaccedilotildees que satildeo expressas
Nestas complexotildees poreacutem o seu interesse primaacuterio vai para as vivecircncias que
estatildeo na funccedilatildeo de significaccedilatildeo as quais se pensam agraves lsquosimplesrsquo expressotildees No
entanto natildeo se pode descurar tambeacutem o lado linguiacutestico-sensiacutevel da complexatildeo
(aquilo que nela constitui a lsquosimplesrsquo expressatildeo) e o modo do seu entrelaccedilamento
com o ato de significar que o anima Eacute bem sabido quatildeo facilmente a anaacutelise das
significaccedilotildees costuma deixar-se guiar pela anaacutelise gramatical de um modo
completamente inadvertido Certamente que dada a dificuldade da anaacutelise direta
das significaccedilotildees seraacute bem-vindo todo e qualquer meio mesmo que imperfeito
de antecipar indiretamente os seus resultados [as significaccedilotildees que o anima] mas
mais ainda que por causa dessa ajuda positiva a anaacutelise gramatical torna-se
importante pelos enganos que traz consigo quando se substitui agrave anaacutelise
propriamente ditas das significaccedilotildeesrdquo (HUSSERL 2012p11)
16 Cf HusserlE Investigaccedilotildees Loacutegicas VolII Introduccedilatildeo sect 6- Aditamentos ndash 3ordm Aditamento
38
A anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a complexidade da vida
intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo eacute possiacutevel a partir da anaacutelise das estruturas
ideais que se apresentam nas vivecircncias da consciecircncia na forma das expressotildees
significativas E se ldquoos objetos para os quais a Loacutegica pura estaacute voltada satildeo desde logo
dados sob vestes gramaticaisrdquo (HUSSERL 2012p3) eacute porque esses dados satildeo embutidos
nas vivecircncias psiacutequicas concretas que ldquotanto em funccedilatildeo de intenccedilatildeo de significaccedilatildeo como
na do preenchimento de significaccedilatildeo () correspondem a certas expressotildees linguiacutesticas
e formam com elas uma unidade fenomenoloacutegicardquo (HUSSERL 2012p3)
O que estaacute em jogo como tarefa da fenomenologia eacute - a partir da unidade entre
intuiccedilatildeo (atividade da consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da
consciecircncia e o preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor
a unidade fenomenoloacutegica desses atos apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo
e preenchimento de significaccedilatildeo para assim encontrar suas distinccedilotildees ideais presentes na
significaccedilatildeo
ldquoDe fato sempre que se trata de conceitos juiacutezos raciociacutenios a Loacutegica pura tem
que ver exclusivamente com estas unidades ideais que denominamos aqui
significaccedilotildees e na medida em que nos esforccedilamos por extrair a essecircncia ideal das
significaccedilotildees dos seus viacutenculos psicoloacutegicos e gramaticais na medida em que
para aleacutem disso temos em vista clarificar as relaccedilotildees aprioriacutesticas de adequaccedilatildeo
agrave objetividade significativa fundadas nessa essecircncia estamos jaacute no domiacutenio da
Loacutegica purardquo(HUSSERL 2012p76)
Enquanto as ciecircncias se movem em direccedilatildeo agraves vaacuterias regiotildees de objetos na
tentativa de compreensatildeo da realidade do mundo Husserl compreende a orientaccedilatildeo
filosoacutefica como investigaccedilatildeo da possibilidade do conhecimento objetivo E nesse sentido
a filosofia de Husserl permanece nos limites de uma criacutetica ao conhecimento
transcendental sem que seu meacutetodo se comprometa com qualquer perspectiva ontoloacutegica
Natildeo porque negue a realidade externa mas porque a reflexatildeo fenomenoloacutegica segundo
Husserl deveria estar direcionada agrave anaacutelise das unidades significativas (Investigaccedilotildees
loacutegicas) e agrave descriccedilatildeo eideacutetica da consciecircncia (Ideacuteias) com o compromisso de esclarecer
a vivecircncia intencional de forma que assim fosse possiacutevel esclarecer as operaccedilotildees de toda
e qualquer consciecircncia inclusive nossa orientaccedilatildeo preacute-reflexiva natural
O vigor da ideia filosoacutefica de ciecircncia tal como elaborada por Husserl residia na
restriccedilatildeo da investigaccedilatildeo agrave coisa mesma A fenomenologia husserliana se restringiu agraves
39
coisas enquanto somos conscientes delas Portanto sem remeter-se ao primado da
autoconsciecircncia da filosofia moderna ela rompeu com a ideia de representaccedilatildeo e por
consequecircncia de adequaccedilatildeo Pois a consideraccedilatildeo a priori da consciecircncia de um sujeito no
modo de questionamento epistemoloacutegico moderno tradicional trazia consigo um
problema inerente a esta pressuposiccedilatildeo a saber a representaccedilatildeo dos elementos externos
pelo aparato interno do sujeito devia ser a cada vez avaliada em sua validade
epistemoloacutegica em sua adequaccedilatildeo agrave consciecircncia Esse problema derivado da
representaccedilatildeo eacute consequecircncia do modo de considerar o sujeito como outro frente ao
mundo A consequecircncia dessa cisatildeo eacute que as representaccedilotildees internas natildeo seriam
suficientes para confirmar a existecircncia do mundo exterior e incapazes de fornecer
elementos conclusivos acerca dos modos de acesso a esse mundo
Husserl aprendeu com Brentano a atitude de recusa a todo e qualquer pressuposto
Mesmo Brentano considerando as representaccedilotildees como uma das bases da atuaccedilatildeo
psiacutequica indica que ldquoa estrutura baacutesica do psiacutequico o que a toda vivecircncia seja inerente
algo objetual a denomina Brentano inexistecircncia intencional Intentio eacute uma expressatildeo
da escolaacutestica que significa dirigir-se a Brentano fala da inexistecircncia intencional do
objetordquo (HEIDEGGER 2006 p39) Nesse sentido a intencionalidade na fenomenologia
husserliana voltada agrave anaacutelise expressiva e natildeo agraves representaccedilotildees torna a questatildeo do
mundo interior ou exterior secundaacuteria O que estaacute em jogo eacute a orientaccedilatildeo da pesquisa pela
condiccedilatildeo do conhecimento que natildeo exclui o mundo e as orientaccedilotildees naturais A suspensatildeo
do mundo exterior na orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica deve-se ao fato de que nesse tipo de
investigaccedilatildeo natildeo se tem nada a dizer sobre ele E nesse sentido a fenomenologia
husserliana que oferece um novo vigor a filosofia do final do seacuteculo XIX apresenta
tambeacutem seu proacuteprio limite
ldquoEm verdade aquela ideia do conhecimento da essecircncia que deveria renovar o
campo do filosofar aquela anaacutelise descritiva do acircmbito imenso da lsquoconsciecircnciarsquo
que teria de anteceder todo conhecimento cientiacutefico e conter todos os seus
pressupostos a priori tinha um limite para aleacutem do qual nem mesmo a
fenomenologia poderia ultrapassar Mesmo um conhecimento fenomenoloacutegico
consumado de todas as essencialidades- dentre as quais tambeacutem se encontram no
campo moral o reino dos lsquovalores ndash natildeo poderia atingir a realidade efetiva do ente
efetivamente real a realidade efetiva da consciecircncia pensante tanto quanto a
realidade efetiva da experiecircncia que ela faz Por mais que a distinccedilatildeo entre o fato
e a essecircncia tenha demarcado o grande campo de pesquisa da fenomenologia ante
as ciecircncias particulares e liberado um trabalho metodologicamente
autoconsciente a factualidade do factual a facticidade a existecircncia natildeo se mostra
40
apenas como algo derradeiro tardio contingente determinado em termos de
conteuacutedo pela intelecccedilatildeo da essecircncia e abarcado segundo toda a sua determinaccedilatildeo
por ela Ao contraacuterio elas tambeacutem se mostram como algo primeiro algo que se
acha agrave base que natildeo pode ser alijado pelo pensamento que suporta por sua vez
todas as intelecccedilotildees da essecircnciardquo (GADAMER 2012p148)
A reduccedilatildeo fenomenoloacutegica natildeo visa reconduzir os fenocircmenos agrave unidade de um
elemento comum mas reconduzir a consciecircncia aos fenocircmenos que se datildeo por si mesmos
e na medida que assim o faz reconhece a existecircncia da base factual na qual o fenocircmeno
pode vir agrave consciecircncia e como um elefante na sala de estar natildeo pode mais ser ignorada
Em outras palavras a investigaccedilatildeo loacutegica o acesso agrave idealidade loacutegica de toda
significaccedilatildeo baseada - mas natildeo reduzida ndash nos atos das vivecircncias psiacutequicas concretas
aponta em uacuteltima instacircncia (mesmo na tentativa de desvio dessa situaccedilatildeo) para o caraacuteter
histoacuterico ou ocasional daquele que pode intencionar significaccedilotildees Mas Husserl natildeo havia
reconhecido esse problema ao diferenciar as expressotildees flutuantes das significaccedilotildees
ideais jaacute na primeira investigaccedilatildeo loacutegica17 O problema neste caso como aponta
Gadamer estaacute exatamente no agente do ato de pensamento pois a base que natildeo pode ser
afastada e que suporta as intelecccedilotildees da essecircncia estaacute necessariamente remetida agravequele
que na accedilatildeo do ato de intelecccedilatildeo eacute finito e histoacuterico ou seja a direccedilatildeo puramente teoacuterica
da fenomenologia de Husserl natildeo deixa de apontar a condiccedilatildeo histoacuterica daquele que pode
realizar qualquer teoria elemento que vai se tornar decisivo para a fenomenologia de
Heidegger
ldquoA doutrina do juiacutezo e de sua fundamentaccedilatildeo a anaacutelise claacutessica da percepccedilatildeo a
distinccedilatildeo loacutegica entre expressatildeo e significado mas sobretudo tambeacutem aquela
17 No sect26 da I Investigaccedilatildeo Loacutegica ldquoExpressotildees essencialmente ocasionais e expressotildees objetivasrdquo
Husserl analisa significaccedilotildees que podem variar de caso a caso ou significaccedilotildees variantes Ele diferencia as
ldquoexpressotildees essencialmente subjetivas e ocasionaisrdquo (por exemplo ldquoeu desejo sorte a vocecircrdquo ou ldquoisto [aqui
que vejo agora] eacute um catildeordquo) das ldquoexpressotildees objetivasrdquo nas quais o que estaacute em questatildeo eacute o teor sonoro
significativo sem necessidade de se ter agrave vista a pessoa que expressa ou a circunstacircncia da expressatildeo Desde
os paraacutegrafos iniciais da primeira investigaccedilatildeo Husserl se preocupa em indicar que a palavra possui ldquofunccedilatildeo
de significaccedilatildeordquo isso quer dizer que a significaccedilatildeo natildeo eacute sustentada pela palavra mas que ela remete a
significaccedilatildeo agrave coisa mesma e nesse sentido para Husserl a ocasionalidade da expressatildeo natildeo prejudica a
unidade ideal de cada uma das expressotildees Contudo o autor natildeo deixa de reconhecer a esfera das expressotildees
ocasionais referidas ao sujeito e sua especificidade como falante identificadas por determinaccedilotildees como
aqui laacute ontem amanhatilde e ainda construccedilotildees expressivas com artigos definidos Essas expressotildees trazem a
referecircncia ao proacuteprio falante e agrave sua situaccedilatildeo ldquode tal maneira que a significaccedilatildeo autecircntica da palavra se
constitui pela primeira vez com base na respectiva representaccedilatildeo desse lugar Por um lado a significaccedilatildeo
eacute sem duacutevida genericamente conceitual porquanto aqui denomina em geral um lugar enquanto tal mas
a este geral junta-se a representaccedilatildeo direta do lugar variando de caso para caso que sob dadas
circunstacircncias do discurso eacute apontada atraveacutes desta representaccedilatildeo conceitual indicativa do aqui e lhe estaacute
subordinadardquo (HUSSERL 2012 p71)
41
descriccedilatildeo incomparavelmente exata e penetrante da consciecircncia interna do tempo
na qual precisaria se construir todo sentido de duraccedilatildeo e de validade atemporal ndash
todos esses eram temas fenomenoloacutegicos de Husserl que emergiram de um
intuito fundamental puramente teoacuterico e que estavam cindidos por um hiato
ontoloacutegico do ponto de partida de Heidegger da experiecircncia pragmaacutetica da vida
da percepccedilatildeo dirigida pelo significado praacutetico do ente agrave matildeo da temporalidade
do ser-aiacute a temporalidade essa que se tomava como movimento da
existecircnciardquo(GADAMER 2012 p154)
Desse modo Heidegger busca um acesso agrave mostraccedilatildeo dos fenocircmenos a partir da
temporalidade existencial do homem e assim compreender como a significaccedilatildeo de todo
e qualquer ente estaacute remetida agrave facticidade (Faktizitaumlt) daquele ente em que algo como
um fenocircmeno pode vir ao encontro
A partir desta breve apresentaccedilatildeo vamos investigar no proacuteximo capiacutetulo (1) A
criacutetica feita por Heidegger a essas trecircs tentativas de superaccedilatildeo da crise da filosofia no
seacuteculo XIX a) a posiccedilatildeo essencialmente teoacuterica da filosofia dos valores e sua
impossibilidade de se apresentar como filosofia originaacuteria b) ao primado da consciecircncia
em Husserl c) a determinaccedilatildeo metodoloacutegica (teoacuterica) da hermenecircutica de Dilthey
Tentaremos compreender (2) como essa problemaacutetica da virada do seacuteculo XIX para o
seacuteculo XX forneceu os princiacutepios que motivaram o pensamento heideggeriano agrave busca
da filosofia como ciecircncia originaacuteria e a partir da anaacutelise dos limites das ditas teorias a
questatildeo do sentido do conhecimento se mostra articulada com outra questatildeo ainda mais
fundamental o sentido do ser e (3) como a recepccedilatildeo da fenomenologia de Husserl por
Heidegger - considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio do meacutetodo fenomenoloacutegico
como indicativo-formal - evidencia a imersatildeo de todo significado em um contexto
hermenecircutico historicamente dado
42
Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica
Mas a vida captada em sua forma irredutiacutevel jaacute sem ornato ou comentaacuterio meloacutedico vida a que aspiramos como paz no cansaccedilo (natildeo a morte) vida miacutenima essencial um iniacutecio um sono
menos que terra sem calor sem ciecircncia nem ironia o que se possa desejar de menos cruel a vida em que o ar natildeo respirado mas me envolva () Natildeo o morto nem o eterno ou o divino apenas o vivo o pequenino calado indiferente e solitaacuterio vivo Isso eu procuro (Vida Menor Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
No capiacutetulo anterior indicamos que o desenvolvimento das ciecircncias positivas
particulares no final do seacuteculo XIX emerge a discussatildeo acerca do sentido e possibilidade
do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo buscou uma filosofia
propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana a autonomia da filosofia
frente agrave ciecircncia positiva E a contribuiccedilatildeo de Dilthey cujo pensamento mesmo imerso
nas exigecircncias positivistas de seu tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda
interpretaccedilatildeo e apresenta o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico
Acreditamos que percorrendo esse caminho podemos compreender no presente capiacutetulo
como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere Heidegger no interior da referida
discussatildeo pelo sentido do conhecimento18 Mas ao mesmo tempo tentaremos mostrar
18 A inserccedilatildeo de Heidegger na discussatildeo pelo sentido do conhecimento que apontamos aqui eacute diferente da
proposta de Crowell (2001) Grosso modo o argumento central de Crowell que atravessa todo o livro eacute a
negaccedilatildeo de uma ruptura radical da abordagem hermenecircutica de Heidegger ndash inclusive no projeto da
ontologia fundamental de Ser e Tempo - frente agrave fenomenologia transcendental de Husserl Crowell
reconhece que os dois projetos natildeo satildeo idecircnticos no entanto no interior do desenvolvimento de seu
pensamento Heidegger teria dado certa continuidade ao projeto husserliano na medida em que ainda pensa
no caraacuteter cientiacutefico da filosofia fenomenoloacutegica (ver pp 129-132) Nossa intenccedilatildeo natildeo eacute travar uma
polecircmica com Crowell pois perderiacuteamos a centralidade do tema de nossa dissertaccedilatildeo Sobre aquele tema
mais especiacutefico conferir tambeacutem Gadamer Verdade e Meacutetodo [260] que faz referecircncia a ele dizendo que
a problemaacutetica de Ser e Tempo natildeo escapa por completo agrave reflexatildeo transcendental Natildeo temos duacutevida de
que Heidegger estaacute comprometido com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do sentido do
conhecimento na medida em que teve profundo contato natildeo soacute com o pensamento neokantiano ndash sobretudo
atraveacutes de Rickert - mas tambeacutem com a fenomenologia de Husserl Ora ambas as correntes estavam
43
como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva (considerando o modo de concepccedilatildeo
originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal) e a introduccedilatildeo do elemento
hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com Heidegger a pergunta
fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do conhecimento e passou a
ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto o argumento central de
nosso segundo capiacutetulo eacute que a abordagem hermenecircutica de Heidegger que se daacute no
interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do
conhecimento ao sentido do ser
Aqui nos eacute necessaacuteria uma breve consideraccedilatildeo Eacute puacuteblica a preocupaccedilatildeo filosoacutefica
de Heidegger com a ontologia jaacute desde seu contato com o livro de Brentano Percurso
descrito pelo proacuteprio autor em Meu caminho para a fenomenologia (Mein Weg in die
Phaumlnomenologie 1963)
ldquoA partir de algumas indicaccedilotildees extraiacutedas de revistas filosoacuteficas tinha averiguado
que o modo de pensar de Husserl fora bastante influenciado por Franz Brentano
cuja tese de doutoramento intitulada Da muacuteltipla significaccedilatildeo do ente em
Aristoacuteteles (1862) tinha sido justamente desde 1907 o guia e o criteacuterio das
minhas primeiras e desajeitadas tentativas de penetrar na filosofia De uma forma
bastante imprecisa o que me movia era a seguinte reflexatildeo lsquose o ente se diz com
significados muacuteltiplos qual seraacute entatildeo o significado fundamental e condutor O
que significa serrsquordquo (HEIDEGGER 2009 p3)
Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido
de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a
teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo
do sentido de ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir
da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para
uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no
curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER (GA20) 2006 p122)19
o elemento hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave
profundamente engajadas com o problema do conhecimento Nosso argumento central ndash defendido no
primeiro capiacutetulo ndash eacute o de que acontece uma virada A abordagem hermenecircutica de Heidegger faz mudar
a questatildeo pelo sentido do conhecimento para a questatildeo do sentido do ser dos entes em geral Revelando
assim o caraacuteter derivado (de uma situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento Cf STEIN E
2008 4ed pp21-30 19 ldquoLa pregunta por el ser surge de la criacutetica inmanente al curso da la propia investigacioacuten
fenomenoloacutegicaresponder en parte a ella constituye el verdadeiro assunto de estas leccionesrdquo opcit p122
44
fenomenologia que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos
fenocircmenos em seu ser Seraacute essa a direccedilatildeo de nosso capiacutetulo
Nele ainda natildeo entraremos na obra central de nosso trabalho abordaremos algumas
preleccedilotildees entre os anos de 1919 e 192520 para expor como a partir da discussatildeo acerca
do sentido do conhecimento e do lugar proacuteprio agrave filosofia Heidegger se posiciona frente
agraves tentativas de pensamento dos Neokantianos de Dilthey e de Husserl Nossa intenccedilatildeo
natildeo eacute interpretar as referidas preleccedilotildees como processos evolutivos de pensamento de
nosso autor como que para esclarecer em termos de causa e efeito a publicaccedilatildeo posterior
ldquomais madurardquo de Ser e Tempo Mas antes destacar como as questotildees desses textos
acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a problemaacutetica cujo
desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927
I - Os limites da filosofia dos valores
No primeiro semestre do poacutes-guerra num contexto de recuperaccedilatildeo da
normalidade da vida cotidiana que obviamente se estendia ao ensino universitaacuterio ocorre
a preleccedilatildeo A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo (GA5657) tiacutetulo
uma das primeiras liccedilotildees do jovem professor em Friburgo em 1919 as quais pretendiam
desenvolver e solucionar parcialmente a ideia de ciecircncia que persegue uma posiccedilatildeo
metodoloacutegica genuiacutena natildeo desfigurada ou seja natildeo afetada por nenhuma teoria e livre
dos prejuiacutezos herdados Para tanto exigia-se voltar agrave esfera da simples consciecircncia
imediata da vida
ldquoA ideia cientiacutefica perseguida eacute tal que uma vez alcanccedilada uma posiccedilatildeo
metodoloacutegica verdadeiramente genuiacutena somos forccedilados a sair e dar um passo
aleacutem de noacutes mesmos para voltar metodologicamente naquela esfera que sempre
permanece alheia a problemaacutetica da ciecircncia que se pretende fundarrdquo21
(HEIDEGGER (GA5657) 2005p 3)
20 HEIDEGGER GA17 GA 61 GA63 GA 5657 e GA62 As traduccedilotildees utilizadas encontram-se na
bibliografia ao final do trabalho 21 ldquoLa idea cientiacutefica que se persigue es de tal naturaleza que una vez alcanzamos una posicioacuten
metodoloacutegica realmente genuina nos vemos obligados a salir y dar un paso maacutes allaacute de nosotros mismos
para volver metodoloacutegicamente sobre aquella esfera que siempre permanece extrantildea a la problemaacutetica maacutes
propia de la ciencia que se pretende fundarrdquo Opcitp3
45
Essa transformaccedilatildeo do meacutetodo natildeo eacute algo arbitraacuterio ou advindo de uma posiccedilatildeo
filosoacutefica mas ldquose evidencia como uma necessidade que se funda na natureza objetiva do
problema como tal e que responde agrave especiacutefica constituiccedilatildeo dos problemas da ciecircncia em
geralrdquo22 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p3) A ciecircncia e seus modelos teoacutericos
irrompem na consciecircncia imediata da vida e a transformam na medida em que trazem
uma nova atitude da consciecircncia a qual se desenvolve no caraacuteter dinacircmico e moacutevel da
vida do espiacuterito ldquoContudo essa irrupccedilatildeo da ideia de ciecircncia no contexto da consciecircncia
natural da vida soacute se daacute em um sentido primordial e radical no marco de uma filosofia
entendida nos termos de ciecircncia originaacuteriardquo23 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p4)
Aqui eacute possiacutevel observar natildeo apenas o mesmo vocabulaacuterio husserliano mas
tambeacutem a mesma tarefa reconduzir a filosofia ao seu lugar de ciecircncia originaacuteria
diferenciando-se dos outros tipos de ciecircncias (biologia fiacutesica psicologia histoacuteria
antropologia etc) Como indica Jeacutesus Adriaacuten Escudero em sua nota de apresentaccedilatildeo agrave
traduccedilatildeo no texto de 1919 eacute possiacutevel observar a linguagem filosoacutefica dos Neokantianos
de Baden (Windelband e Rickert) de Natorp a linguagem fenomenoloacutegica de Husserl e
talvez as primeiras formulaccedilotildees de uma linguagem proacutepria por exemplo Welten
(mundiar) ou das Wie (O como) Mas para noacutes o decisivo eacute notar que se os princiacutepios
que motivam essa investigaccedilatildeo inserem Heidegger no debate de sua eacutepoca (no contexto
da busca de uma filosofia propriamente cientiacutefica) poreacutem no curso de seu pensamento e
na anaacutelise das posiccedilotildees filosoacuteficas que intentam o mesmo objetivo a abordagem da
filosofia como ciecircncia originaacuteria recoloca a problemaacutetica no aspecto propriamente
hermenecircutico e natildeo teoacuterico da vida Se a filosofia eacute ciecircncia originaacuteria eacute a partir desse
aspecto primaacuterio que ela deve se movimentar
Em A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo o modo de
reconduccedilatildeo a essa originariedade jaacute natildeo obedeceraacute aos mesmos moldes da fenomenologia
husserliana Jaacute nessa primeira liccedilatildeo Heidegger nos propotildee uma reconduccedilatildeo da filosofia
(ao seu lugar basilar de toda e qualquer ciecircncia teoacuterica e derivada) que eacute a reconduccedilatildeo agrave
22 ldquomaacutes bien se evidenciaraacute como una necesidad que se funda en la naturaleza objetiva del problema como
tal y que responde a la especiacutefica constitucioacuten de los problemas de la ciencia en generalrdquo Op cit p3 23 ldquoSin embargo esta irrupcioacuten de la idea de ciencia en el contexto de la conciencia natural de la vida soacutelo
se da en un sentido primordial y radical en el marco de una filosofiacutea entendida en teacuterminos de ciencia
originariardquo Opcitp4
46
vida humana na sua imediatidade como fenocircmeno primaacuterio e fundamental Mesmo que
natildeo estejam aiacute desenvolvidas eacute claro as posiccedilotildees de Ser e Tempo como por exemplo o
ldquoser-em-o mundo em geral como constituiccedilatildeo fundamental do Daseinrdquo teses expostas e
desenvolvidas principalmente nos sect12 e 13 da obra de 1927 jaacute era possiacutevel encontrar
alguns elementos da hermenecircutica da facticidade Em 1919 a direccedilatildeo dada a uma filosofia
era a de que devia ocupar-se da vida e assim a proacutepria renovaccedilatildeo da universidade naquele
contexto de reconstruccedilatildeo do poacutes-guerra ldquoimplica[va] um renascimento da autecircntica
consciecircncia cientiacutefica e de seus laccedilos com a vidardquo24 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p
5) Indicaccedilatildeo que se articula com as liccedilotildees posteriores do autor mas que ganha seu
esclarecimento radical em 1923 no Relatoacuterio Natorp na medida em que a apropriaccedilatildeo da
filosofia aristoteacutelica por Heidegger mostra que a vivecircncia e sua relaccedilatildeo de sentido com
todo ente ocorre na ocupaccedilatildeo praacutetica como condiccedilatildeo primaacuteria de conhecimento com o
mundo condiccedilatildeo essa que coincide com a situaccedilatildeo hermenecircutica de toda ontologia
Antes de expormos as linhas gerais do desenvolvimento do texto eacute necessaacuterio
tentar esclarecer o que Heidegger quer dizer com a expressatildeo ldquoconcepccedilatildeo de mundordquo
(Weltanschauung) Para a filosofia segundo nosso autor visatildeo de mundo cosmovisatildeo
ou concepccedilatildeo de mundo natildeo satildeo termos que funcionam como uma direccedilatildeo de
comportamento no interior do mundo direccedilatildeo essa justificada desenvolvida e capaz de
orientar os seres humanos Tambeacutem natildeo oferecem uma visatildeo teoacuterica geral da histoacuteria e
da realidade a partir da qual as ciecircncias pudessem desenvolver-se Assumindo uma
perspectiva bem geral esses satildeo os problemas das filosofias de Windelband e Rickert (e
em certa medida tambeacutem os de Dilthey) contra os quais Heidegger vai se opor nessa
liccedilatildeo Pois o que aiacute estaacute em jogo natildeo eacute a postulaccedilatildeo teoacuterica do que eacute a vida histoacuterica mas
a compreensatildeo do acircmbito fundamental da realidade imediata da vida que proporciona
algo como ldquovisatildeo de mundordquo E desse modo a relaccedilatildeo entre ldquofilosofiardquo e o ldquoproblema
da concepccedilatildeo de mundordquo na conjunccedilatildeo expressa ldquoerdquo natildeo significa a relaccedilatildeo de duas
esferas diferentes mas sim o mesmo acircmbito pois a concepccedilatildeo de mundo potildee em
evidecircncia a natureza e a busca da filosofia ldquoconcepccedilatildeo de mundo como tarefa da
24 ldquoLa renovacioacuten de la universidad implica un renacimiento de la auteacutentica conciencia cientiacutefica y de sus
lazos con la vidardquo Opcitp5
47
filosofia quer dizer uma consideraccedilatildeo histoacuterica da maneira em que a filosofia resolveu
em cada caso esta tarefardquo25 (HEIDEGGER (GA5657) 2005p9)
Como sugere a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Heidegger considera que a
fundamentaccedilatildeo sem preconceitos da filosofia como ciecircncia originaacuteria deve desenvolver-
se a partir de um processo metodoloacutegico ldquoA ideia de ciecircncia exige implicitamente um
desenvolvimento metodoloacutegico dos problemas e nos coloca a tarefa da explicaccedilatildeo
preliminar do verdadeiro problema [que nos ocupa]26rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005
p6) Essa explicaccedilatildeo se desenvolve natildeo como hipoacutetese a ser demonstrada mas a partir
da anaacutelise das filosofias precedentes e de suas preconcepccedilotildees que podem distorcer o tema
da investigaccedilatildeo como elas se aproximaram da vida e como se relacionam com a noccedilatildeo
de ciecircncia
Como mostramos anteriormente jaacute na escola de Baden influenciado pela filosofia
dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade dos juiacutezos
cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de conciliar
ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) Para a escola de Baden as
leis naturais levam agrave explicaccedilatildeo mas eacute a norma de um valor ideal a condiccedilatildeo de um
pensamento verdadeiro Rickert retoma as consideraccedilotildees de Windelband e potildee o
problema em uma base filosoacutefica radical como instrumento metodoloacutegico Entre os sectsect
de 6 e 9 do texto A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo jaacute esboccedilando
algumas consequecircncias problemaacuteticas Heidegger expotildee os elementos principais das
teorias desses autores E se pergunta se aquele meacutetodo que tem a pretensatildeo de clarificar
a relaccedilatildeo entre filosofia e visatildeo de mundo poderia se tornar um meacutetodo seguro para a
realizaccedilatildeo da filosofia como ciecircncia originaacuteria A partir do sect 10 Heidegger inicia a criacutetica
propriamente dita ao meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico do Neokantismo de Baden Um dos alvos
de sua investigaccedilatildeo foi como a ldquodoaccedilatildeo idealrdquo elemento central do meacutetodo na medida
em que eacute o conteuacutedo com pretensatildeo de necessidade e universalidade dos juiacutezos acaba por
revelar o desconhecimento da problemaacutetica acerca da ciecircncia originaacuteria por essa escola
Para tanto Heidegger faz ldquoa pergunta decisiva quais satildeo as formas e normas necessaacuterias
25 ldquoConcepcioacuten del mundo como tarea de la filosofiacutea es decir una consideracioacuten histoacuterica de la manera en
que la filosofiacutea ha resuelto en cada caso esta tareardquo Opcitp9 26 ldquoLa idea de ciencia exige impliacutecitamente un desarrollo metodoloacutegico de los problemas y nos plantea la
tarea de una explicacioacuten preliminar del verdadero problema [que nos ocupa]rdquo Opcit p6
48
que permitem ao pensamento alcanccedilar a validez universal e assim cumprir o propoacutesito
da verdade27rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p50)
A anaacutelise eacute feita em dois momentos a) Consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo b)
aplicaccedilatildeo do meacutetodo
Para a consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo o importante eacute delinear o aspecto
fundamental que sustenta seus paracircmetros Heidegger aponta que para a escola de Baden
as determinaccedilotildees necessaacuterias do pensamento satildeo aquelas que configuram o pensamento
agrave finalidade ideal (validez universal) como condiccedilatildeo de verdade pois o pensamento com
valor deve responder a um dever-ser Pois bem de posse desse elemento basilar eacute na
aplicaccedilatildeo do meacutetodo que se revelaratildeo os problemas
A aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico consiste em a partir do material
fornecido pelos processos psiacutequicos dirigir a visatildeo ao aspecto ideal do pensamento e a
partir daiacute determinando o proacuteprio material ordenando seus elementos em funccedilatildeo de seu
aspecto ideal Portanto ldquoO nuacutecleo de todo o meacutetodo baseia-se no ideal do pensamento
mais precisamente em trazer agrave presenccedila a doaccedilatildeo do ideal28rdquo (HEIDEGGER (GA5657)
2005 p51) Em suma o ideal eacute normativo e dirige a consciecircncia agrave finalidade do
pensamento
ldquoEstamos aqui perante o mesmo problema da circularidade O meacutetodo criacutetico-
teleoloacutegico afirmaria poder determinar o ideal do pensamento isto eacute a verdade
a partir dos pensamentos verdadeiros no entanto o que tenho ante mim satildeo
pensamentos verdadeiros (ocorrecircncias factuais no mundo) mas natildeo a verdade
pois esta eacute um ideal Por outro lado para ter pensamentos verdadeiros ante mim
eu preciso selecionar entre os pensamentos aqueles que satildeo verdadeiros o que
novamente eu soacute posso fazer se jaacute tenho de antematildeo o ideal a verdaderdquo
(RABELO 2013 p28)
A partir daiacute em seu estilo muitas vezes categoacuterico Heidegger demonstra ser
supeacuterfluo o sentido do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e o acusa de em uacuteltima instacircncia nem
mesmo conseguir esclarecer seus pressupostos deixando obscuras questotildees como ldquoa
doaccedilatildeo ideal possibilita uma relaccedilatildeo de apreciaccedilatildeo e de seleccedilatildeo com o material dado mas
27 ldquoAhora surge la pregunta decisiva iquestcuaacuteles son las formas y normas necesarias que permiten al
pensamiento alcanzar la validez universal y cumplir asiacute con el fin de la verdadrdquo Opcitp50
28 ldquoEl nuacutecleo de todo el meacutetodo descansa en el ideal del pensamiento con mayor precisioacuten en traer a la
presencia la donacioacuten del idealrdquo Opcitp51
49
como trago agrave minha consciecircncia o ideal de pensamentordquo ldquoo que significa validez
universal para esse pensamentordquo ldquoO que significa ser verdadeiro para o pensamento
para que ele seja universalmente vaacutelidordquo Nas palavras de nosso autor
ldquoA anaacutelise estrutural do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico mostra que este meacutetodo
pressupotildee em seu sentido mais proacuteprio e como condiccedilatildeo de sua proacutepria
possibilidade justamente aquilo que deve alcanccedilar Natildeo pode encontrar em si
mesmo seu proacuteprio fundamento posto que o ideal jaacute tem que estar dado como
criteacuterio de valoraccedilatildeo criacutetica da norma para levar a cabo a tarefa impliacutecita no
meacutetodordquo29 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p52)
Se a anaacutelise da natureza e aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico fizeram
despontar a primeira criacutetica acerca de sua impossibilidade Heidegger aprofunda sua
criacutetica tendo em vista o aspecto central de sua liccedilatildeo E portanto aponta o
desconhecimento acerca da problemaacutetica da ciecircncia originaacuteria por essa escola
ldquoJaacute vimos que o movimento do meacutetodo mais exatamente a implementaccedilatildeo do
mesmo inclui o ter presente o ideal o fim o dever-ser O ideal tem
evidentemente um conteuacutedo umas determinaccedilotildees substantivas Contudo eacute um
ideal natildeo eacute um conteuacutedo real e efetivo senatildeo um modo de dever-ser Frente a
todo ser o caraacuteter de obrigatoriedade [inerente ao dever-ser] encerra o momento
da idealidade e da validez supra-empiacuterica Assim pois o conceito do meacutetodo
teleoloacutegico pressupotildee algo mais essencial e algo essencialmente diferente a
doaccedilatildeo do dever ser e se tratando do dever absoluto entatildeo falariacuteamos da
objetividade originaacuteriardquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p53)30
A partir da constataccedilatildeo dessas implicaccedilotildees do meacutetodo Heidegger pergunta qual
eacute o correlato objetivo do dever-ser Em outras palavras qual sua orientaccedilatildeo vital Isso
permanece obscuro e mais ainda que a inclusatildeo do elemento do dever-ser no meacutetodo
aparentemente natildeo se mostre como um vieacutes meramente teoacuterico (na medida em que se
29 ldquoEl anaacutelisis estructural del meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico muestra que este meacutetodo presupone en su sentido
maacutes propio y como condicioacuten de su propia posibilidad justamente aquello que debe conseguir No puede
encontrar en siacute mismo su propio fundamento puesto que el ideal ya tiene que estar dado como criterio de
valoracioacuten criacutetica de la norma para llevar a cabo la tarea impliacutecita en el meacutetodordquo Opcitp52 30 ldquoYa vimos que la puesta en marcha del meacutetodo maacutes exactamente la implementacioacuten del mismo incluye
el tener presente el ideal el fin el deber-ser El ideal tiene evidentemente un contenido unas
determinaciones sustantivas Sin embargo es un ideal no es un contenido real y efectivo sino un modo del
deber- ser Frente a todo ser el caraacutecter de obligatoriedad [inherente al deber-ser] encierra el momento de
la idealidad y de la validez supraempiacuterica Asiacute pues en el concepto del meacutetodo teleoloacutegico se presupone
algo esencialmente maacutes y algo esencialmente diferente la donacioacuten del deber-ser y si se tratara del deber
absoluto entonces hablariacuteamos de la objetualidad originariardquo Opcitp53
50
trata da razatildeo praacutetica) natildeo eacute possiacutevel responder agrave demanda necessaacuteria de uma ciecircncia
originaacuteria pois eacute inconciliaacutevel com a urgecircncia da vida faacutetica
Nesse sentido nos parece que na filosofia criacutetica-transcendental de Rickert o
acesso aos elementos decisivos do meacutetodo em uacuteltima instacircncia eacute realizado a partir das
teorias das ciecircncias positivas Entatildeo a filosofia estaacute obrigada a se posicionar frente agraves
teorias dessas ciecircncias e natildeo propriamente a partir da orientaccedilatildeo vital O
desconhecimento acerca da filosofia como ciecircncia originaacuteria se torna aqui patente pois
ao se revelar que satildeo as teorias dessas ciecircncias que fornecem os elementos para os juiacutezos
valorativos relacionados ao dever-ser a filosofia se torna delas dependente e parece nelas
encontrar ateacute mesmo sua condiccedilatildeo de possibilidade
Heidegger ainda aponta em sua criacutetica um problema que decorre da tentativa de
estabelecer uma relaccedilatildeo entre valor judicativo e dever-ser Para ele na vivecircncia imediata
da vida as relaccedilotildees valorativas natildeo encontram a menor correspondecircncia com o dever-ser
Ouccedilamos as suas palavras
ldquoPela manhatilde entro em meu estuacutedio o sol banha meus livros etc estou alegre
Esta alegria natildeo responde em nenhum caso a um dever-ser A lsquoalegriarsquo como tal
natildeo se oferece a mim em uma vivecircncia marcada pelo dever-ser Devo trabalhar
devo sair para uma caminhada duas motivaccedilotildees duas possiacuteveis razotildees que em
si mesmas natildeo formam parte de meu sentimento de alegria senatildeo que o
pressupotildee Existe portanto um tipo de vivecircncia em que me sinto alegre em que
me daacute algo que tem valor como talrdquo 31(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)
A experiecircncia do valor eacute intransitiva natildeo um juiacutezo mas em seu sentido imanente
ldquoo meacutetodo teleoloacutegico implica indubitavelmente o momento da vivecircncia do dever-serrdquo
(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)32
Ateacute agora o que foi analisado foi o significado do meacutetodo criacutetico- teleoloacutegico e
suas implicaccedilotildees que apontaram para a existecircncia de fenocircmenos mais originaacuterios que
passam desapercebidos aos defensores desse meacutetodo E se o meacutetodo loacutegico-teleoloacutegico
31 ldquoiquestPero se me da todo valor como un deber-ser Evidentemente no Yo experimento las relaciones
valorati- vas sin que intervenga el maacutes miacutenimo momento del deber-ser Por la mantildeana entro en mi estudio
el sol bantildea mis libros etceacutetera estoy alegre Esta alegriacutea no responde en ninguacuten caso a un deber-ser La
laquoalegriacutearaquo como tal no se me da en una vivencia marcada por el deber- ser Debo trabajar debo salir de
paseo dos motivaciones dos posibles razones que en siacute mismas no forman parte de mi sentimiento de
alegriacutea sino que lo pre-supo- nen Existe por tanto un tipo de vivencia en el que me siento alegre en el
que se me da algo que tiene valor como talrdquo Opcitp55 32 ldquoEl meacutetodo teleoloacutegico implica indudablemente el momento de la vivencia del deber-serrdquo Opcitp55
51
estabelece a relaccedilatildeo necessaacuteria entre valor e dever-ser acarretando todas as possiacuteveis
criacuteticas jaacute expostas Heidegger natildeo deixa de reconhecer
ldquoUma coisa eacute evidente Rickert detectou um fenocircmeno significativo quando
identificou o objeto do conhecimento como um dever-ser e o desvencilhou dos
mecanismos psiacutequicos o fenocircmeno da motivaccedilatildeo um fenocircmeno que encontra
seu significado primaacuterio tanto nos problemas do conhecimento como em outros
acircmbitos Uma coisa eacute declarar-algo-como-valor [Fuumlr-Wert-Erklaumlren] e outra
muito distinta eacute tomar-algo-por-um-valor [Wertnehmen] Este tomar-algo-como-
um-valor se pode caracterizar como um fenocircmeno originaacuterio como uma
constituiccedilatildeo da vida em si e para si no entanto o declarar-algo-como-um valor
foi visto como algo derivado algo fundado na esfera teoreacutetica e esse mesmo
fenocircmeno teoreacutetico eacute um elemento constitutivo da vida vivida em si mesma
Pressupotildee levantar o veacuteu teoreacutetico do caraacuteter valorativo como tal A estratificaccedilatildeo
precisa desse fenocircmeno natildeo nos interessa nesse momentordquo
(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p57)33
O que estaacute em jogo aqui eacute a relaccedilatildeo entre verdade e valor pois para Rickert
ldquodistinto do processo psiacutequico real uma ocorrecircncia natural que poderia ser tratada
causalmente destaca-se a legalidade ideal do pensar verdadeiro que se deve obedecer
uma vez que se queira o ideal da verdaderdquo (RABELO 2013 p26) Desse modo algo eacute
capaz de ser analisado como verdadeiro atraveacutes dos valores atribuiacutedos teoricamente
(atraveacutes da anaacutelise do juiacutezo) ao seu material Ou seja a verdade eacute garantida na anaacutelise
judicativa que declara-algo-como-valor Por exemplo a distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na
realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor (Wert) segundo Rickert levaria
a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo de conceitos (Begriffsbildung)
e que natildeo se trata de um conhecimento no campo ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto
pelo conceito determinado de maneira formal no espaccedilo loacutegico-axioloacutegico Portanto
ldquoUma coisa eacute ldquoexplicar por valorrdquo (fuumlr-Wert-erklaumlren) outra eacute ldquotomar-por-valorrdquo
(wertnehmen) O primeiro eacute uma construccedilatildeo teoreacutetica o segundo uma vivecircncia
Estaacute em jogo aqui uma diferenccedila que se insinua na liacutengua alematilde a partir da
33 ldquoRickert detectoacute un fenoacutemeno significativo cuando identificoacute el objeto del conocimiento como un deber-
ser y lo deslindoacute de los mecanismos psiacutequicos el fenoacutemeno de la motivacioacuten un fenoacutemeno que encuentra
su significado primario tanto en el problema del conocimiento como en otros aacutembitos Una cosa es declarar-
algo-como-un-valor [Fuumlr-Wert- Erklaumlren] y otra muy distinta tomar-algo-por-un-valor [Wertnehmen]
Este tomar-algo-por-un-valor se puede caracterizar como un fenoacutemeno originario como una constitucioacuten
de la vida en y para siacute en cambio el decla- rar-algo-como-un-valor se ha de ver como algo derivado como
algo fundado en la esfera teoreacutetica9 y ese mismo fenoacutemeno teoreacutetico es un elemento constitutivo de la vida
vivida en siacute misma Presupone levantar el velo teoreacutetico del caraacutecter valorativo como tal La estratificacioacuten
precisa de este fenoacutemeno no nos interesa en estos momentosrdquo Opcitp57 Essa estratificaccedilatildeo a qual
Heidegger se refere jaacute indica em suas primeiras liccedilotildees o desdobramento posterior acerca da criacutetica agrave
primazia que a filosofia oferece a teoria em detrimento da compreensatildeo praacutetica
52
expressatildeo perceber wahrnehmen literalmente tomar-por-verdadeiro No mesmo
sentido imediato em que aquilo que me aparece na percepccedilatildeo sensiacutevel eacute tomado
como estando aiacute ele mesmo sem a necessidade de uma reflexatildeo aqui quer-se
saber se algo vivenciado eacute no proacuteprio vivenciar tomado como algo valoroso se
eacute experienciado enquanto valoroso ou se posteriormente lhe eacute adicionada esta
referecircncia a valoresrdquo (RABELO 2013 p27)
Desse modo para Rickert verdade e valor judicativo (teoacuterico) se comungam mas
essa comunhatildeo para Heidegger natildeo passa de uma constituiccedilatildeo metodoloacutegica externa e
derivada de uma filosofia teoacuterica Se para Rickert o tomar-algo-como-um-valor natildeo tem
ldquovalor de verdaderdquo como o declarar-algo-como-valor Para Heidegger a verdade do ser
(ser ndashverdadeiro) ou o ldquotomar-por-verdadeirordquo (a vivecircncia) independe do valor e nada
tem a ver com o dever-ser
ldquoDaacute-se o ser-verdadeiro como um valor De maneira alguma e nem se daacute no
segundo caso do juiacutezo histoacuterico [acerca da morte de Napoleatildeo I na ilha de Santa
Elena] Contudo o conteuacutedo objetivo desse juiacutezo tem a forma de um valor no
sentido de [que remete a algo] lsquohistoricamente significativorsquo um novo fenocircmeno
lsquovalorativorsquo que natildeo afeta o ser-verdadeiro como tal ao lanccedilar um papel
metodoloacutegico na constituiccedilatildeo da verdade histoacuterica O ser-verdadeiro (ἀ-λήθεια)
como tal natildeo lsquovalersquo Na alegria como alegria assumo valores na verdade
simplesmente vivo Natildeo apreendo o ser-verdadeiro na e atraveacutes de uma assunccedilatildeo
de valores34rdquo (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p58)
Essas uacuteltimas consideraccedilotildees revelam para Heidegger que o meacutetodo teleoloacutegico
estaacute impregnado de pressuposiccedilotildees pois a cada vez ldquoos fenocircmenos do dever-ser do valor
da assunccedilatildeo de um valor da pergunta se a verdade eacute um valor que descansa em uma
valoraccedilatildeo originaacuteria se fundam em uma determinaccedilatildeo valorativa que se realiza
subsequentementerdquo35 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p62) E essas pressuposiccedilotildees
trazem agrave vista o privileacutegio teoreacutetico dessa filosofia
34 ldquoiquestSe da el ser-verdadero como un valor De ninguna manera y tampoco se da en el segundo caso del
juicio histoacuterico [acerca de la muerte de Napoleoacuten I en la isla de Santa Elena] Sin embargo el contenido
objetivo de este juicio tiene la forma de un valor en el sentido de [que remite a algo] laquohistoacutericamente
significativoraquo un nuevo fenoacutemeno laquovalorativoraquo que no afecta al ser-verdadero como tal si bien juega un
papel metodoloacutegico en la constitucioacuten de la verdad histoacuterica El ser-verdadero (ἀ-λήθεια) como tal no
laquovaleraquo En la alegriacutea como alegriacutea asumo valores en la verdad como verdad simplemente vivo No
aprehendo el ser-verdadero en y a traveacutes de una asuncioacuten de valoresrdquo Opcitp58
35 ldquoAl ampliar el anaacutelisis salieron a escena nuevos presupuestos y pusieron de relieve que el meacutetodo
teleoloacutegico estaacute cargado de presuposiciones los fenoacutemenos del deber-ser de la donacioacuten del deber-ser del
valor de la asuncioacuten de un valor de la pregunta de si la verdad es un valor que descansa en uma valoracioacuten
originaria o de si se funda en una determinacioacuten valorativa que se realiza con lsquoposterioridadrsquordquo Opcitp62
53
ldquoO privileacutegio outorgado ao teoreacutetico repousa na convicccedilatildeo de que o teoreacutetico
representa o estrato baacutesico e fundamental que de alguma maneira funda todas as
esferas restantes Isso se potildee manifesto quando eacute falado por exemplo da
lsquoverdadersquo eacutetica artiacutestica ou religiosa Se diz que o teoreacutetico tem todos os demais
acircmbitos valorativos e eacute capaz de fazer isso na medida em que o teoreacutetico mesmo
se concebe como um valor Eacute necessaacuterio romper este primado do teoacuterico mas natildeo
com a finalidade de proclamar a primazia da praacutetica ou introduzir um outro
elemento que mostra os problemas a partir de uma nova perspectiva mas porque
o teoreacutetico mesmo enquanto tal remete a algo preacute -teoreacuteticordquo 36(HEIDEGGER
(GA5657) 2005 p70)
Para os neokantianos de Baden o ideal absoluto como medida da realidade
empiacuterica como condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do pensamento verdadeiro e ainda como
condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do significado histoacuterico reveste-se da transcendentalidade em
funccedilatildeo do rigor cientiacutefico Para eles o mundo do ser natildeo pode ser confundido com o
mundo do valor pois satildeo os valores como elementos transcendentais que orientam a
constituiccedilatildeo do indiviacuteduo histoacuterico de modo loacutegico A realidade - o espaccedilo ontoloacutegico ndash
estaacute condicionada agrave teoria e em uacuteltima instacircncia o proacuteprio teoreacutetico eacute concebido como
valor Inversatildeo que Heidegger detecta como propriamente afastada do acircmbito imediato
da vida e que como meacutetodo portanto natildeo pode fundar-se como ciecircncia originaacuteria
II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt37 originaacuterio
Diferentemente de Windelband e Rickert que subordinavam a verdade agrave
valoraccedilatildeo em funccedilatildeo do juiacutezo jaacute em 1919 Heidegger indicava a derivaccedilatildeo do teoreacutetico
de uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Apoacutes a investigaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-
36 ldquoAsimismo el privilegio otorgado a lo teoreacutetico reposa en la conviccioacuten de que lo teoreacutetico representa el
estrato baacutesico y fundamental que de alguna manera funda todas las esferas restantes Esto se pone de
manifiesto cuando uno habla por ejemplo de la laquoverdadraquo eacutetica artiacutestica o religiosa Se dice que lo teoreacutetico
tintildee todos los demaacutes aacutembitos valorativos y es capaz de hacer eso en la medida en que lo teoreacutetico mismo
se concibe como un valor Se ha de romper con esta primaciacutea de lo teoreacutetico pero no con el propoacutesito de
proclamar un primado de lo praacutectico o de introducir otro elemento que muestre los problemas desde una
nueva perspectiva sino porque lo teoreacutetico mismo y en cuanto tal remite a algo pre-teoreacuteticordquo Opcitp70
37 Como o verbo ldquodarrdquo em portuguecircs o ldquogebenrdquo em alematildeo pode ser utilizado como verbo bitransitivo no
sentido de dar algo a algueacutem (Ex ldquoIch gebe dir mein Buchrdquo ldquoEu te dou o meu livrordquo) Mas no caso do ldquoes
gibtrdquo eacute utilizado no sentido do verbo ldquohaverrdquo ou ldquoexistirrdquo como por exemplo ldquoEs gibt viele Woumlrter ldquoHaacute
muitas palavrasrdquo ou ldquoExistem muitas palavras) Portanto pensar num ldquoes gibtrdquo originaacuterio eacute referir-se agrave
existecircncia originaacuteria das coisas em outras palavras no modo de aparecimento do que haacute do existente em
seu sentido primaacuterio preacutevio a toda determinaccedilatildeo transitiva possiacutevel nos moldes gramaticais
54
teleoloacutegico em A ideacuteia da filosofia e o problema da visatildeo de mundo o autor apresenta
essa instacircncia primaacuteria como correlata a um ldquoes gibtrdquo originaacuterio haacute e o que haacute eacute mundo
ou melhor um dar-se mundo
Aqui reside a primeira exposiccedilatildeo de nosso argumento A abordagem hermenecircutica
de Heidegger no interior da fenomenologia foi decisiva para o acesso agrave questatildeo do sentido
do ser e no desenvolvimento da referida preleccedilatildeo esse movimento se torna patente
A criacutetica de Heidegger agrave teoria do conhecimento e agraves implicaccedilotildees dessa postura
propriamente teoacuterica em relaccedilatildeo agrave verdade conduz o autor agrave correlaccedilatildeo entre as vivecircncias
e a significaccedilatildeo fenomecircnica como cooriginaacuterias da imersatildeo num mundo que haacute se daacute
existe como mundo circundante As pressuposiccedilotildees da teoria do conhecimento e suas
postulaccedilotildees acerca do ldquosujeitordquo reverberam em uma seacuterie de problemas derivados que
nada dizem acerca das vivecircncias Assim questotildees Como eacute possiacutevel o acesso agrave realidade
exterior Em que medida minha vivecircncia subjetiva alcanccedila a vivecircncia de outro
sujeito Como passar da esfera subjetiva aos dados sensoriais do mundo Como
passar da esfera subjetiva ao conhecimento objetivo satildeo problematizaccedilotildees derivadas
da primazia teoacuterica dada pela filosofia e pelas ciecircncias que ignoram por completo que o
viver do mundo circundante natildeo eacute uma contingecircncia () somente em ocasiotildees
excepcionais estamos instalados em uma atitude teoreacutetica38 (HEIDEGGER(GA5657)
2005 p106)
Lembremos que o que estaacute em questatildeo nessa preleccedilatildeo eacute em que medida a filosofia
pode ser considerada como ciecircncia originaacuteria e qual eacute o seu modo de relaccedilatildeo com a visatildeo
de mundo Nesse sentido a filosofia se mostra como aquela ciecircncia que deve se afastar de
qualquer posiccedilatildeo preacutevia e assim dizer que o viver do mundo circundante natildeo eacute uma
contingecircncia eacute reconhecer aquilo que todo posicionamento teoacuterico quer a cada vez
afastar mas eacute em uacuteltima medida a condiccedilatildeo de possibilidade de sua proacutepria realizaccedilatildeo
teoacuterica Com outras palavras a possibilidade do conhecimento estaacute imersa em bases que
natildeo satildeo elas proacuteprias teoacutericas E nesse sentido quando uma ou outra teoria filosoacutefica
pretende investigar a possibilidade do conhecimento partindo de pressuposiccedilotildees teoacutericas
38 ldquoEl vivir del mundo circundante no es una contingencia sino que radica en la esencia de la vida en y para
siacute por el contrario soacutelo en ocasiones excepcionales estamos instalados en una actitud teoreacuteticardquo
Opcitp106
55
acaba por afundar-se em falsos problemas como ldquoa realidade do mundordquo e ldquoo acesso a
essa realidaderdquo Discussotildees vazias pois o mundo em sua realidade histoacuterica eacute o dar-se
originaacuterio e prescinde de toda e qualquer teorizaccedilatildeo
Na leitura de Heidegger o neokantismo decompotildee o acircmbito originaacuterio da
vivecircncia em conceitos teoacutericos que natildeo formam mais uma totalidade pois a
desvivifica transformando-a num objeto a-histoacuterico e portanto sem significado
O mundar (welten) soacute eacute apreensiacutevel pela visatildeo fenomenoloacutegica que ainda natildeo estaacute
contaminada pelos pressupostos teoreacuteticos que tornam essa experiecircncia uma
relaccedilatildeo objetificante () Heidegger se contrapotildee agrave metodologia teoreacutetica que
pretende objetificar e descrever as vivecircncias mas compreender e apreender as
conexotildees de significado em que jaacute se estaacute submerso A fenomenologia pretende
manifestar isso que se daacute em um soacute golpe o mundo circundante (Umweltliche)
caracteriacutestico do vivenciar primordial(WU R2010 p185)
Mas se a compartimentaccedilatildeo da realidade realizada pelas teorias filosoacuteficas recai
em discussotildees vazias e a vivecircncia primordial prescinde de conceitos teoacutericos isso natildeo
apontaria para um empirismo ou um realismo como possibilidades da filosofia A
filosofia eacute ainda busca e busca originaacuteria Nesse sentido o acesso fenomenoloacutegico ao
mundo circundante orientado pela proacutepria coisa na intuiccedilatildeo imediata eacute para Heidegger
o modo de abrir ldquocientificamenterdquo a esfera da vivecircncia resguardando a orientaccedilatildeo agrave vida
sem qualquer teoria preacutevia
O rigor da cientificidade cultivada na fenomenologia cobra sentido a partir
dessa atitude fundamental e natildeo se pode comparar com o rigor das ciecircncias
derivadas e natildeo originaacuterias Ao mesmo tempo resulta claro porque o problema do
meacutetodo joga um papel central na fenomenologia como em nenhuma outra ciecircncia
() Para o problema que nos ocupa a atitude fundamental da fenomenologia
aponta em uma direccedilatildeo decisiva natildeo construir um meacutetodo desde fora ou desde
acima natildeo idear um novo caminho teoreacutetico por meio de reflexotildees dialeacuteticasrdquo39
(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p133)
Desde o iniacutecio da preleccedilatildeo Heidegger estaacute em busca de um meacutetodo capaz de
alcanccedilar o primaacuterio que estaria na base de qualquer conhecimento Nesse sentido a
39 ldquoEl laquorigorraquo de la cientificidad cultivada en la fenomenologiacutea cobra sentido a partir de esta actitud
fundamental y no se puede comparar con el laquorigorraquo de las ciencias derivadas y no originarias Al mismo
tiempo resulta claro por queacute el problema del meacutetodo juega un papel tan central en la fenomenologiacutea como
en ninguna otra ciencia (Por esta razoacuten todo este curso gira realmente en torno a un problema
metodoloacutegico) Para el problema que nos ocupa la actitud fundamental de la fenomenologiacutea apunta en una
direccioacuten decisiva no construir un meacutetodo desde fuera o desde arriba no idear un nuevo camino teoreacutetico
por medio de reflexiones dialeacutecticasrdquo Opcit p133
56
fenomenologia como retorno agraves coisas mesmas se volta ao dar-se originaacuterio das coisas e
eacute atraveacutes delas que o meacutetodo pode vir a ser desenvolvido Ainda em 1919 natildeo foi exposta
em linhas precisas a fenomenologia como meacutetodo indicativo-formal elemento decisivo
no interior da fenomenologia-hermenecircutica de Heidegger O que iremos abordar mais
adiante
A tentativa de orientar-se pelo dado na vivecircncia pelo que eacute como eacute no mundo
circundante se afasta portanto de qualquer objetificaccedilatildeo A fenomenologia como
meacutetodo eacute a possibilidade de compreensatildeo dos significados que nos vem ao encontro no
mundo circundante e histoacuterico no qual jaacute se estaacute sempre imerso Mas se Heidegger
apresenta a fenomenologia como o meacutetodo que alcanccedila o que vem ao encontro sem
qualquer preacutevia teoria esse acesso natildeo se daacute segundo os mesmos paracircmetros de seu
mestre Husserl
Como vimos na fenomenologia husserliana o modo de aparecimento do
fenocircmeno eacute sempre uma doaccedilatildeo de significado mas o acesso aos fenocircmenos eacute sempre a
partir da anaacutelise dos atos intencionais das vivecircncias na consciecircncia Heidegger recusa o
pressuposto da consciecircncia e pretende que a doaccedilatildeo significativa seja originaacuteria da
vivecircncia imersa no mundo No uacuteltimo momento da preleccedilatildeo de 1919 o autor apresenta
o que seria cooriginaacuteria de qualquer orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica e base de qualquer
ciecircncia teoacuterica a intuiccedilatildeo hermenecircutica Assim a vivecircncia que se apropria do vivido eacute
a intuiccedilatildeo compreensiva a intuiccedilatildeo hermenecircutica () A universalidade do significado
das palavras assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia
vivida40 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 pp141-142) Ou seja a significaccedilatildeo
gramaticalmente revestida natildeo aponta para algo essencial apreendido no ato de
consciecircncia (como compreende Husserl) mas a significaccedilatildeo vivida no mundo
circundante
O princiacutepio dos princiacutepios husserlianos tudo o que se daacute originariamente na
intuiccedilatildeo [] haacute que tomaacute-lo simplesmente como se daacute (Husserl Ideen apud Heidegger
40 ldquoLa vivencia que se apropia de lo vivido es la intuicioacuten comprensiva la intuicioacuten hermeneacuteutica la
formacioacuten originariamente fenomenoloacutegica que vuelve hacia atraacutes mediante retroconceptos y que se
anticipa con ayuda de preconceptos y de la que queda excluida toda posicioacuten teoreacutetico-objetivante y
trascendente La universalidad del significado de las palabras sentildeala primariamente algo originario el
caraacutecter mundano de la vivencia vividardquo Opcitpp141142
57
(GA5657) 2005 p132) eacute dado no interior das conexotildees de significados no es gibt
originaacuterio no mundo que se daacute cooriginariamente agraves proacuteprias vivecircncias
Para Heidegger o uacutenico modo de apreender essa vivecircncia originaacuteria eacute retroceder
ao preacute-teoacuterico por uma abordagem fenomenoloacutegica que faz com que o mundar
do mundo se manifeste enquanto tal Alguns anos mais tarde isso constituiria o
nuacutecleo da ontologia fundamental na perspectiva da temporalidade cujo objetivo
de criacutetica natildeo seria mais de maneira tatildeo detida o neokantismo de Windelband e
Rickert mas a totalidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica da filosofia(WuR2010 p186)
Tendo em vista o ponto central da preleccedilatildeo aqui examinada eacute imprescindiacutevel
notar que em 1919 Heidegger estava debatendo com os problemas de seu tempo a
possibilidade do conhecimento o lugar da filosofia diante da autonomia das ciecircncias
particulares e a articulaccedilatildeo dessa problemaacutetica com a Lebensphilosophie Se ainda natildeo
haacute explicitamente a questatildeo do sentido de ser em geral a preleccedilatildeo possui elementos
decisivos para o desenvolvimento da ontologia fundamental O que queremos enfatizar eacute
como o modo de apariccedilatildeo dos fenocircmenos em seu significado prescinde de toda e qualquer
teorizaccedilatildeo Essa caracteriacutestica fundamental vai permanecer vigente nos desdobramentos
futuros do pensamento de Heidegger e vai se mostrar a cada vez mais intimamente
relacionada agrave ambiccedilatildeo heideggeriana de superar os pressupostos da tradiccedilatildeo filosoacutefica
moderna
ldquoA pergunta acerca da realidade do mundo externo deriva em parte de uma
compreensatildeo superficial da filosofia kantiana ou de outro modo de reflexotildees
colocadas por Descartes Eacute uma questatildeo que em todo momento de modo mais ou
menos expresso ocupou a teoria do conhecimento da modernidade assegurando-
se sempre contudo que naturalmente ningueacutem duvida da realidade do mundo
externo Pois o que nela sempre se daacute por suposto eacute que essa realidade essa
mundanidade do mundo eacute no fundo algo que talvez possa demonstrar-se ou
mais exatamente no caso de nos encontrarmos em condiccedilotildees ideais ao final
haviacuteamos demostrado [essa realidade] E contudo o ser-real do mundo natildeo soacute
natildeo necessita ser demosntrado nem sequer eacute algo que na falta de provas
rigorosas por isso deva ser unicamente objeto de crenccedilardquo41( HEIDEGGER
(GA20) 2006 p270)
41 ldquoLa pregunta acerca de la realidad del mundo externo se deriva en parte de uma comprensioacuten superficial
de la filosofia kantiana o mejor dicho de reflexiones que Descartes planteoacute Es uma cuestiacuteon que en todo
momento de modo maacutes o menos expreso ha ocupado a la teoriacutea del conocimiento de la modernidad
aseguraacutendose siempre no obstante de que naturalmente nadie dudara de la realidade del mundo externo
Pues lo que em ella se da por supuesto es que esa realidad esa mundanidad del mundo es em fondo algo
que quizaacute pueda demostrarse o maacutes exactamente es en caso de que nos encontraacuteramos em condiciones
ideales al final habriacuteamos demostrado Y sin embargo el ser-real del mundo no soacutelo no necessita ser
demostrado ni siquiera es algo que a falta de pruebas rigorosas por eso deba ser unicamente objeto de
creenciardquo Opcitp270
58
Assim a partir dessas consideraccedilotildees eacute possiacutevel indicar que a questatildeo do sentido
do ser em geral ou numa palavra a ldquoontologiardquo para Heidegger pode vir a ser atingida
quando se revela que a fenomenologia natildeo estaacute fundada na epistemologia (a partir da
consciecircncia) e que a hermenecircutica natildeo eacute apenas um instrumento metodoloacutegico de acesso
agrave histoacuteria em sua objetividade O que Heidegger pretende exprimir com o termo ldquointuiccedilatildeo
hermenecircuticardquo eacute a possibilidade de uma compreensatildeo imediata do mundo a qual natildeo estaacute
fundada nas vivecircncias subjetivas O es gibt originaacuterio eacute o mundo que se daacute como campo
hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Com outras palavras natildeo haacute
significados ideais eles aparecem a partir da situaccedilatildeo hermenecircutica compartilhada entre
os homens campo que chamamos de mundo e a compreensatildeo desse campo natildeo eacute
tributaacuteria das vivecircncias psiacutequicas Para tanto eacute preciso esclarecer como Heidegger supera
a consciecircncia husserliana enquanto lugar de apariccedilatildeo dos fenocircmenos e tambeacutem como a
noccedilatildeo heideggeriana de ldquointuiccedilatildeo hermenecircuticardquo pretende superar a vivecircncia psiacutequica de
Dilthey como categoria epistemoloacutegica fundamental Chegamos ao ponto onde se torna
necessaacuterio compreender mais detidamente a apropriaccedilatildeo de Heidegger da hermenecircutica
diltheyniana e da fenomenologia husserliana
II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger
Seguindo inicialmente as indicaccedilotildees expressas no primeiro curso proferido por
Heidegger em Marburg (inverno de 1923-1924) Introduccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo
fenomenoloacutegica (GA17) eacute possiacutevel observar a tentativa do autor de compreender a
fenomenologia como fenomenologia da existecircncia e assim se apropriar de maneira mais
originaacuteria da investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica
O curso se inicia com a interpretaccedilatildeo - mantida em seus principais elementos no
sect7 de Ser e Tempo - dos conceitos de fenocircmeno (φαινόμενον) e loacutegos (λόγος) em
Aristoacuteteles para assim pocircr em evidecircncia a interpretaccedilatildeo segundo a qual nos escritos do
filoacutesofo grego esses conceitos indicam a direccedilatildeo do pensamento e da investigaccedilatildeo
filosoacutefica para o ser do homem como ser-no-mundo
59
A perceptibilidade das coisas estaacute sob a condiccedilatildeo de um determinado ser deste
mundo mesmo O ser condiccedilatildeo se refere a um modo de ser do mundo mesmo Agrave
existecircncia no mundo pertence o ser subsistente do Sol justamente o que
pensamos quando afirmamos eacute de dia Desta forma falamos de um estado de
coisas que pertence ao ser do mundo mesmo Daiacute se segue que φαινόμενον natildeo
quer dizer em primeiro lugar nada mais que um destacado modo de presenccedila do
enterdquo42 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30)
Ainda seguindo a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles Heidegger diz que o conceito de
fenocircmeno na medida em que designa tudo o que mostra a si mesmo natildeo pode ser
reduzido ao que estaacute na presenccedila do dia ou seja que existem coisas que satildeo visiacuteveis na
obscuridade pois o que se mostra a si mesmo se mostra tanto na claridade como na
obscuridade43 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30) Para explicitar essa posiccedilatildeo o autor
recorre agraves categorias aristoteacutelicas essenciais do ente em ato e do ente em potecircncia (ogravev
ἐντελέχεια ogravev δύναμις) A obscuridade torna-se tambeacutem positiva a partir da
compreensatildeo dessas categorias em relaccedilatildeo ao fenocircmeno pois o ser da obscuridade
consiste em ser claridade possiacutevel44 (HEIDEGGER (GA17)2006 p31)
A originalidade do ver em Aristoacuteteles se mostra em natildeo se deixar enganar pelo
fato de que para as coisas que somente a noite deixa ver natildeo haacute nenhum nome
que as compreenda todas () O que importa eacute somente que essas coisas existam
aiacute elas satildeo vistas e sobre a base de seu conteuacutedo quiditativo tecircm a pretensatildeo de
serem tomadas por existentes Mas que falte um nome para essas coisas mostra
contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia45
(HEIDEGGER (GA17) 2006p31)
42 ldquoLa perceptibilidad de las cosas estaacute bajo la condicioacuten de un determinado ser de este mundo mismo El
ser condicioacuten se refiere a un modo de ser del mundo mismo A la existencia en el mundo pertenece el ser
subsistente del Sol justamente lo que mentamos cuando afirmamos es de diacutea De esta forma hablamos de
un estado de cosas que pertenece al ser del mundo mismo De aquiacute se sigue que φαινόμενον no quiere decir
en primer lugar nada maacutes que un destacado modo de presencia del enterdquo Op cit p30
43 ldquoEl concepto de φαινόμενον no estaacute limitado a la presencia de las cosas durante el diacutea va maacutes allaacute y
designa todo lo que se muestra em siacute mismo tanto se muestra en la claridad como en la oscuridadrdquo Op
citp30
44 ldquoEl ser de la oscuridad consiste en ser claridade posiblerdquo Opcitp31 45 ldquoLa originaridad del ver en Aristoacuteteles se muestra en que no se deja enganatilder por el hecho de que para las
cosas que soacutelo la noche deja ver no hay ninguacuten nombre que las comprenda a todas (por tanto para las
lucieacuternagas etc) () Lo que le importa es soacutelo que esas cosas existen ahiacute se las ve y sobre la base de su
contenido quiditativo tienen la pretensiacuteon de ser tomadas por existentes Pero que falte um nombre para
esas cosas muestra com todo que nuestra lengua (teoria de las categorias) es uma lengua del diacuteardquo
Opcitp32
60
Para compreendermos o que Heidegger trata nessa passagem eacute fundamental
relembrar a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica que indica algo crucial agrave nossa investigaccedilatildeo o
significado natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua
mostraccedilatildeo Para Husserl a anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a
complexidade da vida intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel a partir
da anaacutelise das estruturas ideais que se apresentam na forma das expressotildees significativas
revestidas gramaticalmente Jaacute para Heidegger parece natildeo haver uma estabilidade
significativa ideal Em outras palavras e como vimos no toacutepico anterior as significaccedilotildees
vecircm ao encontro a partir de sua mostraccedilatildeo intencionadas em meio agrave compreensatildeo
hermenecircutica do mundo circundante por isso as estruturas ideais buscadas por Husserl
a partir da atividade intencional da consciecircncia devem ser revistas em funccedilatildeo da
possibilidade hermenecircutica do mundo circundante A veste gramatical das significaccedilotildees
natildeo pode subordinar o que vem ao encontro no dar-se originaacuterio do mundo quer em
funccedilatildeo de uma linguagem que almeja a cada vez fixar categorialmente o que se mostra
quer em funccedilatildeo de qualquer idealidade essencial pressuposta E assim para Heidegger o
conceito de loacutegos em Aristoacuteteles revela um sentido mais originaacuterio
Um λόγος existe pois quando o falar eacute falar com o mundo existente Ao dizer
forno [Ofen] natildeo falo a partir de uma existecircncia [Dasein] senatildeo que mas bem
me ponho fora da existecircncia [Dasein] do mundo concreto penso algo mas para
esse pensar natildeo desempenha nenhum papel que existam fornos [Oumlfen] ou natildeo
Falar eacute um ser com o mundo eacute algo originaacuterio e se daacute antes dos juiacutezos A partir
daqui se torna compreensiacutevel o juiacutezo Na loacutegica eacute comum considerar como juiacutezos
palavras como fogo () De modo algum o λόγος implica uma pluralidade de
palavras A palavra originaacuteria eacute um nomear mas natildeo eacute um nomear de um mero
nome mas bem o dirigir-se com a fala a algo que se encontra no mundo tal como
se encontra46(HEIDEGGER (GA17) 2006 p39)
46 ldquoUn λόγος existe pues cuando el hablar es um hablar con el mundo existente Al decir lsquohornorsquo no hablo
desde una existencia sino que maacutes bien me pongo fuera de la existencia del mundo concreto miento algo
pero para este mentar no desempentildea ninguacuten papel el que haya hornos o no Hablar es un ser con el mundo
es algo originaacuterio y se da antes que los juicios A partir de aquiacute se vuelve compreensible el juicio En la
loacutegica es tradiciacuteon considerar como juicios palabras como lsquofuegorsquo (De ninguna manera se establece con
ello soacutelo la existencia [Dasein] del fuego sino tambiacuteen que la gente debe saltar de la cama) Em modo
algun el λόγος implica una pluralidad de palabras La palabra originaria era un nombrar pero no el nombrar
de un mero nombre maacutes bien el dirigirse con el habla a algo que se encuentra en el mundo tal como se lo
encuentrardquo Op cit p39 A palavra Dasein nesse trecho ainda natildeo parece se referir ao homem como ldquoser-aiacuterdquo mas usada no
significado tradicional da liacutengua alematilde compreendida como ldquoexistecircnciardquo pois Heidegger nos fala da
ldquoexistecircnciardquo do lsquofornorsquordquo existecircnciardquo do lsquofogorsquo
61
O nomear originaacuterio do loacutegos natildeo eacute como a significaccedilatildeo expressa pela linguagem
que recolhe o ente sob determinado aspecto em seu εἶδος (Cf HEIDEGGER (GA17)
2006 p43) Loacutegos eacute loacutegos apofacircntico (λόγος αποφατικός) eacute o mostrar do fenocircmeno a
respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que se mostra como algo de maneira indiferenciada
natildeo determinada Assim o significado mediante o λόγος eacute caracterizado como existindo
O significado mediante o nome eacute um mero mencionar em sentido formal no λόγος o
significado eacute o mostrar o existente como existente47(HEIDEGGER (GA17) 2006p41)
Esse mostrar do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes
sempre em meio a um campo hermenecircutico e assim cada significado proacuteprio ou
determinado do ente que se mostra refere-se ao que significa em relaccedilotildees com os outros
entes relaccedilatildeo anterior a qualquer experiecircncia predicativa
O modelo tradicional da hermenecircutica como meacutetodo interpretativo vinculado agrave
filologia e ao formato da linguagem escrita se altera e torna-se com Heidegger a
investigaccedilatildeo acerca da proacutepria interpretaccedilatildeo da mostraccedilatildeo de todos os entes como uma
praacutetica viva que remete ao ser dos entes em seu aparecer como ente Hermes o
mensageiro dos deuses agora eacute mensageiro da situaccedilatildeo interpretativa na medida em que
o ser dos entes se mostra aos homens no interior de suas vivecircncias imediata A
interpretaccedilatildeo de algo eacute dada mediante a escuta cuidadosa da mensagem dinacircmica que se
realiza no diaacutelogo entre os homens natildeo eacute mais algo inerte fixo a ser encontrado O λόγος
na fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν E assim ao contraacuterio
da tradiccedilatildeo filosoacutefica que identificou o loacutegos como a expressatildeo ajuizante possiacutevel atraveacutes
da ratio (ou o dizer as modalidades dos entes atraveacutes de palavras e sequecircncia de palavras
organizando-as como sujeito e predicado no juiacutezo predicativo) Heidegger interpreta o
sentido originaacuterio de loacutegos apofacircntico como condiccedilatildeo de possibilidade para a
significaccedilatildeo Esse aspecto eacute assim descrito por Gadamer
Heidegger recorreu a uma etimologia para a palavra logos ela designa a seleccedilatildeo
posicionadorardquo () Loacutegos eacute realmente o posicionar seletivo legein significa
seleccedilatildeo selecionar conjuntamente reunir de tal modo que tudo se decirc como
bagos da videira reunidos e protegidos como a colheita O que eacute assim reunido
da seleccedilatildeo natildeo satildeo certamente apenas as palavras que formam a proposiccedilatildeo Cada
palavra ela mesma jaacute eacute de tal modo que nela muitas coisas satildeo reunidas - na
47ldquoLo significado mediante el λόγος es caracterizado como existiendo Lo significado mediante el nombre
es un mero mencionar el sentido formal en el λόγος lo significado es el mostrar lo existente como
existenterdquo Opcitp41
62
unidade do eidos como diraacute Platatildeo quando ele questiona o eidos com vista ao
logos (GADAMER 2012p528)
O sentido originaacuterio de loacutegos como loacutegos apofacircntico estaacute estritamente
relacionado com o sentido originaacuterio de fenocircmeno A tradiccedilatildeo latina traduziu loacutegos
interpretando-o como razatildeo juiacutezo conceito definiccedilatildeo ou proposiccedilatildeo Poreacutem em grego
logos natildeo significa primariamente juiacutezo entendido como modo de uniatildeo ou de tomada
de posiccedilatildeo seja pela aceitaccedilatildeo ou negaccedilatildeo Logos reporta-se agrave palavra legein tornar
manifesto aquilo de que se fala num discurso Por isso deixa que algo seja visto
comunicando a outro o que eacute manifestado e assim ldquoas posiccedilotildees individuais satildeo
penetradas pela tendecircncia a significar de um λέγειν assim que aspira a manifestar uma
determinada situaccedilatildeo objetiva Natildeo se chega ao λόγος se quiser comeccedilar com o mero
nomear A funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar48rdquo (HEIDEGGER (GA17)
2006 p43) Mas o que se manifesta O fenocircmeno (φαινόμενον) aquilo que se mostra a
si mesmo
A interpretaccedilatildeo da palavra φαινόμενον realizada por Heidegger no primeiro curso
proferido em Marburg indica inicialmente a existecircncia do mundo na medida em que ele
se mostrar a si mesmo49 como orientaccedilatildeo do horizonte temaacutetico da fenomenologia Em
1925 no curso Prolegocircmenos para uma histoacuteria ao conceito de tempo (GA20) o
esclarecimento do sentido originaacuterio do conceito de fenocircmeno seraacute elaborado conforme
o sentido encontrado tambeacutem em Ser e Tempo sect7 Φαινόμενον eacute o particiacutepio (forma
nominal do verbo) de φαίνεισθαι que como voz meacutedia50 significa mostrar-se e no
48 ldquoLas posiciones individuales estaacuten penetradas por la tendencia a significar de un λέγειν asiacute que aspira a
manifestar una determinada situacioacuten objetiva No se llega al λόγος si se quisiera comezar com el mero
nombrar La funcioacuten originaria de significaciacuteon es el manifestarrdquo Opcitp43
49 CfHeidegger (GA17) 2006p61
50 Um esclarecimento sobre a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito de
fenocircmeno por conseguinte da noccedilatildeo de fenomenologia Obviamente natildeo podemos aprofundar-nos nesse
complexo recurso gramatical que exigiria anos de estudos e profundo conhecimento da liacutengua helecircnica
Iremos apenas indicar sua especificidade A estrutura das vozes verbais na liacutengua portuguesa eacute constituiacuteda
de 3 possibilidades a ativa a passiva e a reflexiva Algumas Gramaacuteticas sugerem uma proximidade entre
a voz meacutedia grega e a voz reflexiva no portuguecircs contudo a voz meacutedia natildeo se esgota nessa comparaccedilatildeo
Seguimos a orientaccedilatildeo de Caio Vieira Reis de Camargo (2013) que em seu artigo reuacutene definiccedilotildees
importantes para os estudos linguiacutesticos contemporacircneos acerca da voz meacutedia
ldquoa) lsquoA voz meacutedia denota que o sujeito estaacute de alguma maneira especial envolvido ou interessado na accedilatildeo
do verborsquo (GILDERSLEEVE 1900 p64) b) lsquoVerbos () que tecircm posiccedilatildeo na esfera do Sujeito nos quais
o Sujeito todo parece participanteimplicadorsquo (BRUGMANNB 1903 p104) c) lsquoNa voz ativa os verbos
63
particiacutepio o que se mostra O aparecer o mostrar do fenocircmeno estaacute relacionado com a
raiz de φαίνω φῶς em portuguecircs luz claridade Assim ldquoos φαινόμενα configuram a
totalidade do que se mostra o que os gregos simplesmente identificaram tambeacutem com τὰ
ὄντα o ente51rdquo (HEIDEGGER (GA20)2006 p109) Podemos entatildeo dizer a totalidade
do que se mostra satildeo os fenocircmenos e se a funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar
o loacutegos da fenomenologia natildeo eacute o significado de um ou outro ente mas o manifestar do
ente o sentido de ser dos entes Fenomenologia em sentido formal eacute ldquofazer ver a partir
dele mesmo o que se mostra tal como ele por si mesmo se mostrardquo (HEIDEGGER (GA2)
2012 p119) e assim a fenomenologia caminha em direccedilatildeo agrave ontologia
No capiacutetulo anterior pudemos observar que para Husserl o que estava em jogo
como tarefa da fenomenologia era - a partir da unidade entre intuiccedilatildeo (atividade da
consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da consciecircncia e o
preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor a unidade
fenomenoloacutegica desses atos a saber apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo e
preenchimento de significaccedilatildeo Para Heidegger a intencionalidade fenomenoloacutegica agora
voltada para o sentido de ser dos entes revela que o fenocircmeno vem ao encontro natildeo em
funccedilatildeo da intencionalidade da consciecircncia onde poderia ser depurado na sua significaccedilatildeo
denotam um processo que se realiza a partir de um sujeito e sem ele na meacutedia que eacute a diaacutetesis a definir
por oposiccedilatildeo o verbo indica um processo em que o sujeito eacute o foco o sujeito estaacute no interior do processorsquo
(BENVENISTE 1966 p172) d) lsquoEm indo-europeu e em grego as desinecircncias meacutedias indicam que o
sujeito estaacute interessado de uma maneira pessoal no processorsquo (MEILLET 1937 p244) e) lsquoAs implicaccedilotildees
da meacutedia (quando em oposiccedilatildeo com a ativa) satildeo que a accedilatildeo ou estado afeta o sujeito do verbo ou seus
interessesrsquo (LYONS 1969 p373) Nessas definiccedilotildees a princiacutepio haacute dois empregos da meacutedia a meacutedia
reflexiva direta (especialmente a de Gildersleeve e Meillet voltadas para a questatildeo do interesse do sujeito
oracional) e a meacutedia reciacuteproca que envolve mais as construccedilotildees passivas e intransitivas da meacutedia
(ressaltada por Brugmann e Benveniste com a noccedilatildeo de que o sujeito todo participa e que estaacute interno ao
processo) A definiccedilatildeo de Meillet por outro lado eacute a mais comumente utilizada principalmente em
gramaacuteticas e meacutetodos de ensino do grego antigo atribuindo agrave media a noccedilatildeo de interesse por parte do
sujeito sendo que esse traccedilo embora existente em alguns casos natildeo eacute uacutenico e nem sempre tatildeo evidenterdquo
(pp 185-186)
Quando dissemos que entender a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito
de fenocircmeno pensamos nessa especificidade de algo que na accedilatildeo no verbo (existir manifestar) constitui a
si mesmo no interior do processo O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento como fenocircmeno
Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar
por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na
estabilidade de uma esfera para aleacutem do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua
manifestaccedilatildeo o sentido de sua proacutepria existecircncia
51 ldquoLos φαινόμενα configuran la totalidad de lo que se muestra a siacute mismo lo que los griegos simplemente
indetificaban tambieacuten con τὰ ὄντα lo enterdquoOpcit p109
64
Mas o loacutegos como manifestar-se do fenocircmeno em seu sentido originaacuterio como existente
eacute intencionado no es gibt originaacuterio na concretude do mundo que se daacute
Mas como eacute possiacutevel chegar ao acontecimento de ser do fenocircmeno sem a base de
uma consciecircncia em funccedilatildeo da qual o fenocircmeno pode ser depurado Os estudos da Sexta
Investigaccedilatildeo Loacutegica de Husserl ao distinguir intuiccedilatildeo sensiacutevel da categorial ofereceram
a Heidegger um acesso agrave compreensatildeo do sentido muacuteltiplo do ente Nas palavras do autor
ldquoQuando a partir de 1919 eu proacuteprio ensinando e aprendendo proacuteximo de
Husserl me exercitei na visatildeo fenomenoloacutegica e simultaneamente pus agrave prova
nos Seminaacuterios uma leitura de Aristoacuteteles diferente da habitual retomei o meu
interesse pelas Investigaccedilotildees Loacutegicas muito especialmente pela sexta da
primeira ediccedilatildeo A distinccedilatildeo ali elaborada entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial
revelou-se-me em todo o seu alcance como capaz de determinar lsquoo muacuteltiplo
sentido do entersquordquo (HEIDEGGER2009 p8)
Vejamos brevemente o ponto crucial dessa parte da VI investigaccedilatildeo a qual
Heidegger se refere A questatildeo central eacute ldquoTodas as partes e formas da significaccedilatildeo
correspondem tambeacutem partes e formas da percepccedilatildeo52rdquo (HUSSERL 1975 p106) Em
outras palavras nos enunciados da percepccedilatildeo ldquoUm S eacute Prdquo ldquoEste S eacute Prdquo ldquoTodo S eacute Prdquo
etc cada um de seus elementos (ldquoumrdquo ldquoSrdquo ldquoeacuterdquo ldquoPrdquo) possui significaccedilotildees que
preenchem a percepccedilatildeo Husserl responde negativamente somente S e P possuem
significaccedilatildeo que preenchem a percepccedilatildeo pois existe uma diferenccedila categorial absoluta
entre a forma expressiva e o material expresso E os enunciados da percepccedilatildeo chegam
somente aos elementos materiais que estatildeo presentes nos termos do enunciado
ldquoRepete-se a mesma distinccedilatildeo entre lsquomaterialrsquo e lsquoformarsquo naquilo que
consideramos unitariamente como um lsquotermorsquo Mas em todo enunciado de
percepccedilatildeo e tambeacutem naturalmente em todos os enunciados que exprimem uma
intuiccedilatildeo num certo sentido primaacuterio chegamos finalmente aos uacuteltimos elementos
ndash denominamos elementos materiais ndash que estatildeo presentes nos termos e que
preenchem diretamente na intuiccedilatildeo (percepccedilatildeo imaginaccedilatildeo etc) ao passo que
as formas complementares apesar de exigirem preenchimento enquanto formas
de significaccedilatildeo natildeo encontram diretamente na percepccedilatildeo e nos atos a ela
coordenados nada que jamais lhes possa ser conformerdquo(HUSSERL 1975p110)
52 Percepccedilatildeo aqui compreendida natildeo como mera percepccedilatildeo mas como atos fundados na percepccedilatildeo com
possibilidade objetiva
65
Husserl acompanha Kant na determinaccedilatildeo que ldquoser natildeo eacute um predicado realrdquo pois
a flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo -tanto na funccedilatildeo atributiva (sapato preto) quanto na forma
predicativa (Este sapato eacute preto) ndash natildeo se preenche atraveacutes de qualquer percepccedilatildeo Para
Husserl embora a proposiccedilatildeo kantiana ldquose refira ao ser existencial ao ser do
lsquoposicionamento absolutorsquo () eacute sempre possiacutevel entretanto aplicaacute-la ao ser predicativo
e atributivordquo (HUSSERL1975 p111) Se o ser natildeo eacute nada de aderente ao objeto natildeo eacute
uma caracteriacutestica real interna nem externa e ainda se ldquona esfera da percepccedilatildeo sensiacutevel
e assim compreendida e correlativamente na da intuiccedilatildeo sensiacutevel em geral () uma
significaccedilatildeo como a palavra ser natildeo encontra nenhum correlato objetivo possiacutevelrdquo
(HUSSERL1975 p112) entatildeo como ser vem agrave forma enunciativa Para Husserl o ser
soacute pode ser apreendido no julgar natildeo que ele seja obtido internamente a partir da reflexatildeo
mas no ato de julgar que correlato agrave intuiccedilatildeo do juiacutezo forma a unidade do juiacutezo evidente
Em outras palavras se o ldquo ser eacute fenomenologicamente interpretado como um modo
determinado do ser dadordquo ( ZAHAVI2015p47) a descriccedilatildeo de um fenocircmeno ou de um
estado de coisas em sua ligaccedilatildeo e unidade pelo juiacutezo vai aleacutem da intuiccedilatildeo sensiacutevel e eacute
preciso ampliar o conceito de intuiccedilatildeo considerando-a como uma intuiccedilatildeo categorial
pois ldquomesmo uma argumentaccedilatildeo teoacuterica ou uma anaacutelise conceitual pode ser considerada
como intuiccedilatildeo na medida em que ela nos traz agrave daccedilatildeo originaacuteria um estado de coisas um
traccedilo essencial ou uma demonstraccedilatildeo abstratardquo( ZAHAVI2015p55) Contudo esse
deslocamento do lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel o conduz a forma loacutegico sem revelar
de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno53
Portanto com o propoacutesito de elucidar a apariccedilatildeo originaacuteria de qualquer fenocircmeno
e junto com Aristoacuteteles Heidegger conclui que era Aleacutetheia desvelamento aquilo que
segundo Husserl consistia num ato da consciecircncia O ser natildeo eacute um predicado real se
abordado a cada vez como um ente Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar o ser como um
ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel e atributivo Ser
natildeo eacute um ente54 o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo com vistas agrave
53 Cf NUNES Benedito 2013 pp63-67 54 A diferenccedila ontoloacutegica eacute tomada tematicamente ou seja exposta explicitamente em 1927 em Os
problemas fundamentais da fenomenologia (GA24) Parte II Capiacutetulo I Mesmo de um modo natildeo temaacutetico
a diferenccedila entre ser e ente foi decisiva para a compreensatildeo da constituiccedilatildeo existencial do ser-aiacute nos escritos
anteriores sobretudo em Ser e Tempo Seguimos a leitura de LAFONT (1997) ldquoDo factum -central para a
abordagem de Ser e tempo - de que nossa relaccedilatildeo com o mundo estaacute mediada simbolicamente (o fato de
que lsquonos movemos sempre jaacute em uma compreensatildeo de serrsquo e que a realidade soacute eacute possiacutevel em uma
66
forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera para ldquoQual o
sentido de serrdquo E ao sentido do ser temos acesso pelo meacutetodo fenomenoloacutegico a partir
da situaccedilatildeo na qual o desvelamento dos entes acontece isto eacute no fenocircmeno da existecircncia
Como aponta Stein a apresentaccedilatildeo do conceito de fenomenologia em Ser e
Tempo eacute feita de maneira provisoacuteria no sect 7 e soacute ganha sua explicitaccedilatildeo na dinacircmica da
proacutepria anaacutelise do ldquoobjetordquo Mas tambeacutem como jaacute vimos aqui a especificidade e o fator
determinante do meacutetodo fenomenoloacutegico jaacute estatildeo em desenvolvimento na deacutecada de 20
Cito Stein
ldquoa descoberta que Heidegger fez que existe um primado da tendecircncia para o
encobrimento ()Ao inveacutes de pensar como Husserl e outros filoacutesofos que diante
de noacutes a realidade se estende agrave espera da rede de nossos recursos metodoloacutegicos
que a aprisionem Heidegger afirma que o homem e o essencial nas coisas tendem
para o disfarce ou estatildeo efetivamente encobertos Por isso volta-se para o comordquo
(STEIN 1971p16)
E o que se encobre de maneira excepcional natildeo eacute um ou outro ente mas o ser do
ente e ldquoa fenomenologia eacute o modo de acesso ao que deve se tornar tema da ontologia A
ontologia soacute eacute possiacutevel como fenomenologiardquo (HEIDEGGER (GA2) 2012 p 123)
Fenocircmeno loacutegos e aleacutetheia estatildeo numa imbricaccedilatildeo indissociaacutevel Stein (2001
p79) chega a dizer que a aleacutetheia esconde em si o meacutetodo fenomenoloacutegico e que o retorno
originaacuterio agrave palavra grega resume o pensamento de Heidegger Para nosso trabalho o
importante eacute compreender que a fenomenologia como meacutetodo para a ontologia encontra
no sentido originaacuterio de aleacutetheia a possibilidade de trazer agrave luz o que sustenta qualquer
presenccedila dos entes ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o que aponta para o velamento (lethe) que
ficou para traacutes que mostra para aquilo que a sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila
da aleacutetheia que se torna possiacutevel a objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito
pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89) Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em
sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao encontro em seu significado) no desvelamento
originaacuterio de seu ser mas essa mostraccedilatildeo dos fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira
compreensatildeo de serrsquo) deduz Heidegger a universalidade da lsquopreacute-estrutura do compreenderrsquo (Als-Struktur)
que constitui o nuacutecleo fundamental de sua transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia O instrumento
decisivo do ponto de vista metodoloacutegico que o permite obter este ponto de vista eacute a substituiccedilatildeo da
dicotomia empiacutericotranscendental - proacutepria da filosofia transcendental- pela lsquodiferenccedila ontoloacutegicarsquordquo p29
67
dissimulada sempre atraveacutes de uma objetificaccedilatildeo de seu ser como ente determinado pois
ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na medida em que partimos de seu
encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de descoberta perde seu sentido mais
efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Dessa forma ldquoa fenomenologia no sentido heideggeriano
eacute a desconstruccedilatildeo do evidente e em uma tal desconstruccedilatildeo interessa mostrar que o
evidente eacute em verdade uma modificaccedilatildeo do fenocircmeno lsquoserrsquordquo (FIGAL 2005p47) E aqui
a fenomenologia encontra a hermenecircutica em sua relaccedilatildeo mais radical pois essa
desconstruccedilatildeo do evidente parte do proacuteprio evidente a situaccedilatildeo faacutetica Pois ldquoo ser soacute
pode chegar entatildeo a ser visualizado se essas dissimulaccedilotildees forem comprovadas como
dissimulaccedilotildeesrdquo (FIGAL 2005p47) ou seja na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo faacutetica que
compreende previamente todos os entes
A atualizaccedilatildeo da filosofia antiga sob bases fenomenoloacutegicas eacute chamada de
ldquofenomenologia como repeticcedilatildeordquo55 O retorno ao pensamento de Aristoacuteteles e Platatildeo
realizado por Heidegger ldquonatildeo significa simplesmente acolher uma vez mais um
questionamento filosoacutefico herdado a fim de integraacute-lo no discurso de uma filosofia atualrdquo
e tambeacutem natildeo se trata de ldquoinserir uma filosofia atual em uma tradiccedilatildeordquo (FIGAL 2005
p32) Mas eacute consequecircncia da orientaccedilatildeo do trabalho heideggeriano de uma lsquofilosofia
cientiacuteficarsquo sem pressupostos O comeccedilo da filosofia eacute o questionamento em curso vivo
promovido pela proacutepria questatildeo e natildeo por sistemas externos agraves proacuteprias coisas A
pergunta pelo ser em Heidegger se torna temaacutetica na medida em que o desdobramento da
criacutetica imanente ao modelo husserliano conduz agrave pergunta fundamental inaugurada no
iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo
Se por um lado Heidegger pode ser associado agrave tradiccedilatildeo fenomenoloacutegica por
outro natildeo se pode esquecer a criacutetica imanente que ele fez agrave fenomenologia de Husserl e
que o conduziu a pensar a fenomenologia como meacutetodo a indicar o mundo a existecircncia
e a facticidade como campo de aparecimento dos proacuteprios fenocircmenos tornando portanto
a fenomenologia hermenecircutica Eacute nessa compreensatildeo da tarefa fenomenoloacutegica como o
modo de acesso ao que deve ser tornar tema da ontologia que Heidegger rejeita o
pressuposto husserliano da consciecircncia como correlato do aparecimento dos fenocircmenos
55 Cf Figal 2005 pp29-42 e STEIN 2001 p98
68
Ele o recusa natildeo somente pelo fato de as relaccedilotildees intencionais enquanto processos
mentais da consciecircncia se movimentarem pela pesquisa de conteuacutedos quididativos mas
tambeacutem e sobretudo pelo fato de
ldquoa consciecircncia apresentar em si mesma um contexto ontoloacutegico fechado Essa
ponderaccedilatildeo [a de que a consciecircncia parece natildeo precisar de qualquer objeto
exterior para existir] acaba por indicar a consciecircncia eacute absoluta em funccedilatildeo da
qual em geral a realidade pode se anunciarrdquo (HEIDEGGER Prolegomena zur
Geschichte p 144 apud FIGAL2005 p30)
Para Heidegger a fenomenologia transcendental de Husserl permanece ainda no
horizonte da modernidade Ao colocar o ldquomundo entre parecircntesesrdquo privilegiando a
experiecircncia da consciecircncia essa fenomenologia permaneceria incapaz de levar em conta
a realidade sem uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica e em uacuteltima instacircncia levar em conta as
vivecircncias concretas Heidegger natildeo abre matildeo da fenomenologia husserliana mas
radicaliza seu princiacutepio ldquode volta agraves coisas mesmasrdquo acentuando a tarefa pela existecircncia
e a partir da existecircncia dos fenocircmenos e no desvelamento buscar o sentido do ser de
todo e qualquer fenocircmeno
III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
Falamos haacute pouco de Heidegger repetir a filosofia antiga como um desdobramento
da proacutepria pesquisa filosoacutefica entendida como ciecircncia originaacuteria e como pergunta pelo
sentido de ser Em Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles Introduccedilatildeo agrave pesquisa
fenomenoloacutegica (GA61) Heidegger desenvolve esse aspecto e indica a problemaacutetica
central e radical a ser enfrentada a partir de Aristoacuteteles a saber ldquodesde de Aristoacuteteles se
manteacutem uma influecircncia taacutecita nas vias da visatildeo e da fala lsquoarticulaccedilotildeesrsquo loacutegicardquo
(HEIDEGGGER (GA61) 2011p11) Antes de entrarmos nessa problemaacutetica apontada
por Heidegger tentemos compreender o que o autor quis dizer com aquela afirmaccedilatildeo
Cito Puente (2001)
ldquoPara Aristoacuteteles foi precisamente a negaccedilatildeo do movimento que levou
Parmecircnides ao postulado da univocidade do ente e seraacute portanto a partir da
afirmaccedilatildeo irrestrita do movimento () que o Estagirita procuraraacute expandir os
horizontes do ente para aleacutem da mera dicotomia estabelecida por Parmecircnides
entre Ente e natildeo-enterdquo (p25)
69
Seguindo a leitura de Puente Aristoacuteteles encontrou a plurivocidade ao afirmar o
movimento no acircmbito dos entes Aleacutem disso como veremos nos desdobramentos a
seguir ele o fez submetendo o acircmbito ontoloacutegico ao acircmbito loacutegico Submissatildeo essa que
foi adotada por toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica que passou a entender a loacutegica como uacutenica via
de acesso agrave ontologia Pois a polivocidade categorial inserida no interior da
quadriparticcedilatildeo semacircntico-ontoloacutegica estaacute por sua vez submetida ao princiacutepio loacutegico de
natildeo contradiccedilatildeo Dito de outro modo as categorias aristoteacutelicas substacircncia
(οὐσία substantia) quantidade (ποσόν quantitas) qualidade (ποιόν qualitas) relaccedilatildeo
(πρός τι relatio) lugar (ποῦ ubi) tempo (ποτέ quando) estado (κεῖσθαι situs) haacutebito
(ἔχειν habere) accedilatildeo (ποιεῖν actio) e paixatildeo (πάσχειν passio) satildeo parte das quatro
possibilidades semacircnticas categoria acidente verdade atopotecircncia Reiterando as
possibilidades semacircnticas de dizer o ente estatildeo submetidas a um princiacutepio loacutegico
fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado ao princiacutepio de identidade
Soacute eacute possiacutevel desenvolver uma ontologia acerca dos entes naturais e sair da univocidade
ontoloacutegica de Parmecircnides se a semacircntica respeitar a impossibilidade loacutegica de uma
simultaneidade de atribuiccedilotildees contraacuterias a um ente ao mesmo tempo Os vaacuterios modos de
dizer o ser ldquoa refutaccedilatildeo confutatoacuteria agrave tese parmenidiana pode ser analisada entatildeo como
o desdobramento loacutegico do pressuposto de Parmecircnidesrdquo (PUENTES2001 p25)
Nesse sentido enfrentar a via loacutegica no interior da filosofia eacute enfrentar a tradiccedilatildeo
que compreendeu que a filosofia devia ser definida bem como seus objetos de forma
conceitual sob princiacutepios loacutegicos Em outras palavras superar a tentativa de dizer
previamente tanto o que a filosofia eacute quanto o que eacute seu objeto de investigaccedilatildeo E em
uacuteltima instacircncia superar a concepccedilatildeo tradicional metafiacutesica que compreende toda
ontologia condicionada agrave loacutegica pois ao ter acesso ao ente atraveacutes das categorias
arrasta a compreensatildeo da verdade agrave semacircntica extensional com lugar privilegiado na
proposiccedilatildeo reduzindo a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo56
56 Aqui eacute pertinente destacar uma consideraccedilatildeo de Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro no prefaacutecio agrave traduccedilatildeo do
texto de Aristoacuteteles As categorias (trad Fernando Coelho Florianoacutepolis Ed Da UFSC 2014 p 9-10)
ldquo A grande questatildeo realmente capaz de colocar a tradiccedilatildeo em xeque eacute a de saber se a compreensatildeo do real
pelas categorias ontoloacutegicas de substacircncia qualidade quantidade tempo lugar etc eacute o que eacute porque as
categorias gramaticais de substantivo e sujeito adjetivo e predicadoetcjaacute se instalaram de antematildeo e
predeterminaram o escopo daquela compreensatildeo ndash metafiacutesica como lsquofeacute na gramaacuteticarsquo como aponta
Nietzsche ndash ou se ao contraacuterio o limite da gramaacutetica ocidental para dizer o real eacute que eacute por ser preacute-limitada
por sua compreensatildeo metafiacutesicardquo
70
Para Heidegger a filosofia deve sempre voltar-se para a vida faacutetica e cabe agrave
definiccedilatildeo filosoacutefica tornar expliacutecita a interpelaccedilatildeo A filosofia natildeo eacute portanto um
conjunto de mateacuterias determinadas (loacutegica ontologia poliacutetica esteacutetica etc) No sentido
formal57 da definiccedilatildeo (determinar o objeto em seu ser-o-que-como [ was-wie-sein]) a
filosofia eacute indicativa (anzeigend) cujo princiacutepio possui um caraacuteter bem especiacutefico
identificar a visatildeo preacutevia Mas o que eacute essa visatildeo preacutevia
ldquoNatildeo haacute aqui como contornar a facticidade do mundo que eacute o nosso e isto natildeo
porque ela definiria a nossa postura em relaccedilatildeo agraves coisas e funcionaria como um
matiz de ordem espiritual em nossa ligaccedilatildeo com o todo mas porque ela perpassa
originariamente o horizonte mesmo a partir do qual os entes se mostram como os
entes que satildeo Esse horizonte possui aleacutem disso um caraacuteter histoacuterico
sedimentado Ele natildeo se determina de maneira loacutegico-transcendental () mas se
constroacutei historicamente a partir de decisotildees de pensamento que vatildeo
paulatinamente determinando que se mostra ou natildeo como dotado de sentidordquo
(CASANOVA 2009 p47)
Assim contra o pensamento imperante da tradiccedilatildeo
ldquoO que se denomina filosoacutefico assim como os termos de acordo com os quais
problemas considerados filosoacuteficos satildeo levantados natildeo nasce nunca de uma
anaacutelise puramente loacutegica Ao contraacuterio tanto a designaccedilatildeo de algo como
filosoacutefico quanto o modo de colocaccedilatildeo dos problemas filosoacuteficos em geral
depende de estruturas faacuteticas que foram sendo lentamente decididas no interior
da tradiccedilatildeo Se desconsiderarmos uma tal dependecircncia o que fazemos eacute
simplesmente assumi-las como oacutebvias () que impedem um tratamento
originaacuterio dos fenocircmenosrdquo (CASANOVA 2009 p 47)
Seguindo Escudero no proacutelogo escrito agrave sua traduccedilatildeo do Relatoacuterio Natorp (2002
p11) para atingir a realidade primaacuteria da vida faacutetica Heidegger nos anos 1920 se
movimenta em duas decisotildees A primeira decisatildeo metodoloacutegica eacute desdobrada em dois
momentos a) o primeiro desconstrutivo descerrar o intricado mapa conceitual da
filosofia e voltar-se ao fenocircmeno da vida b) e o segundo construtivo fazer uma anaacutelise
formal dos diversos modos de efetivaccedilatildeo da vida em seu processo de realizaccedilatildeo histoacuterica
E a segunda decisatildeo a anaacutelise das estruturas ontoloacutegicas da vida que corresponde agrave
hermenecircutica fenomenoloacutegica do ser-aiacute precisamente agrave pergunta pelo sentido do ser no
57 A loacutegica para Heidegger eacute formalista natildeo formal Diz-se formal em relaccedilatildeo agrave indicaccedilatildeo formalista em
relaccedilatildeo a operacionalidade dos elementos da loacutegica Cf HEIDEGGER 2011 p28
71
interior mesmo do acontecimento preacute-teoacuterico da cotidianidade do ser-aiacute para assim ter
acesso ao sentido do ser em geral
Portanto o meacutetodo fenomenoloacutegico como indicativo-formal eacute parte do processo
metodoloacutegico construtivo para o acesso agrave vida faacutetica como maneira de fazer vir ao
encontro os fenocircmenos sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica bem como a maneira de
desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos categoriais de definiccedilatildeo
O elemento decisivo eacute a experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica no como do
aparecer de qualquer objeto e na medida em que este possa ser definido ldquodevem ser
hauridas do modo como o objeto se torna acessiacutevel originariamenterdquo (HEIDEGGER
(GA61) 2011 p28) Com outras palavras qualquer significado compreendido como
indicativo-formal e a expressatildeo linguiacutestica desse conceito satildeo proposiccedilotildees caracterizadas
como indicaccedilotildees hermenecircuticas A terminologia filosoacutefica e seu questionar mais
originaacuterio devem a cada vez indicar o campo situacional histoacuterico de onde extraem seus
conceitos Nas palavras de Heidegger (GA61) ldquoo decisivo eacute o desdobramento radical e
claro de uma situaccedilatildeo hermenecircutica como temporalizaccedilatildeo da proacutepria problemaacutetica
filosoacuteficardquo (2011 p11) Portanto a interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do conhecimento58
para Heidegger exige uma modificaccedilatildeo a pergunta se transforma em ldquocomordquo eacute o
conhecimento ldquoComordquo as coisas vecircm ao encontro e natildeo mais uma definiccedilatildeo que
responderia agrave questatildeo com pretensatildeo atemporal ldquoo que eacute o conhecimentordquo ou ldquoo que eacute
este enterdquo
Por conseguinte os indicadores formais tecircm a funccedilatildeo de explicitar e natildeo de
explicar pois seu caraacuteter indicativo formal potildee em tela atraveacutes de um conceito
inicialmente vazio e sem caraacuteter determinador elementos da proacutepria facticidade
(Faktizitaumlt) para que a anaacutelise hermenecircutica possa compreendecirc-los no interior mesmo da
facticidade e dessa forma encontrar o lugar vivo de cada elemento na estrutura
ontoloacutegica da realidade Mas qual a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo
situacional sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica e que revele tanto a situaccedilatildeo
58 Aqui vemos o compromisso de Heidegger com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do
sentido do conhecimento diligecircncia herdada da fenomenologia Poreacutem agora submetida a abordagem
ontoloacutegica E nesse sentido a abordagem hermenecircutica de Heidegger revela o caraacuteter derivado (de uma
situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento
72
compreensiva quanto descontrua a evidecircncia de toda determinaccedilatildeo conceitual dos entes
revelando antes o seu aparecer como ente Eacute o tema de nosso proacuteximo toacutepico
III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger
Segundo Heidegger ldquoo decisivo na investigaccedilatildeo de Dilthey natildeo eacute a teoria da ciecircncia
da histoacuteria senatildeo a tendecircncia em colocar a realidade histoacuterica agrave vista para a partir dela
esclarecer de que modo e maneira eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo59rdquo (HEIDEGGER (GA20)
2006 p34) Contudo Dilthey se movimenta no marco do questionamento de sua eacutepoca
buscando atraveacutes da vivecircncia da consciecircncia trazer agrave vista a realidade e a validade das
ciecircncias histoacutericas pois busca a partir da vida psiacutequica do sujeito histoacuterico o fundamento
para a garantia da objetividade dos elementos histoacutericos
Ao apresentar o imperativo das ciecircncias naturais e sua apropriaccedilatildeo da noccedilatildeo de
fenocircmeno no final do seacuteculo XIX em Ontologia (Hermenecircutica da facticidade) (GA63)
Heidegger apontou que na tentativa de superaccedilatildeo da metodologia cientiacutefica natural
apesar de ter negado sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito Dilthey se movimentou a partir
dessa orientaccedilatildeo pois seu projeto consistiu em lanccedilar as bases teoacutericas em uacuteltima anaacutelise
com pretensatildeo cientiacutefica para a abordagem dos fenocircmenos histoacutericos
ldquoO trabalho da filosofia concentra-se cada vez mais na teoria da ciecircncia na loacutegica
em seu sentido mais amplo e justamente com a loacutegica na psicologia Ambas
tomam a orientaccedilatildeo da ciecircncia natural e em particular da teoria do
conhecimento que vendo-se realizada na ciecircncia natural o conhecimento
verdadeiro busca as condiccedilotildees de tal conhecimento na consciecircncia Pretende-se
fazer o mesmo com a ciecircncia do espiacuterito dando supostamente um passo adiante
na direccedilatildeo que Kant havia delineado Aqui se considera que a tarefa principal
consiste na demarcaccedilatildeo serviram aqui de criteacuterio a ciecircncia natural embora per
negationem [] Ateacute mesmo Dilthey o qual estaacute propriamente arraigado na
histoacuteria e na teologia caracterizava a ciecircncia do espiacuterito como lsquocriacutetica da razatildeo
histoacutericarsquo apoiando-se naturalmente na problemaacutetica kantianardquo (HEIDEGGER
(GA63) 2012 p76)
Como dissemos Dilthey busca uma epistemologia das ciecircncias humanas a partir
da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos E a vivecircncia particular da consciecircncia
59 ldquoLo decisivo em el planteamiento de Dilthey no es la teoriacutea de la ciencia de la historia sino la tendencia
a poner la realidad de lo histoacuterico a la vista para a partir de ello aclarar de queacute modo y manera es posible
la interpretaciacuteonrdquo Opcit p34
73
como vida conexa e estruturante eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu
projeto Mesmo que Dilthey natildeo recorra agrave noccedilatildeo kantiana de sujeito transcendental ainda
estaacute subordinado agrave necessidade de fundamentaccedilatildeo uacuteltima ndash obrigatoriedade do
pensamento cientiacutefico criacutetico - por isso parte dos dados da psicologia descritiva
acreditando que eles poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar para as ciecircncias
humanas Dito de outro modo ainda que Dilthey tenha se negado a aplicar a metodologia
das ciecircncias naturais agraves ciecircncias humanas natildeo escapou ao ideal cientiacutefico de sua eacutepoca e
sucumbiu ao enrijecimento tradicional da estrutura do conhecimento como fundamento
Contudo Dilthey deu uma grande contribuiccedilatildeo agrave filosofia de sua eacutepoca ao pocircr a
realidade histoacuterica agrave vista e ao propocirc-la como ponto de partida para a anaacutelise que visa
esclarecer de que modo eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo Afastado da estrutura do conhecimento
como fundamento Heidegger indica a anaacutelise hermenecircutica como a forma de apreensatildeo
da abertura originaacuteria de sentido na qual se encontra o ser-aiacute enquanto ser-no-mundo e
como a preacute-compreensatildeo de seu ser e de todo e qualquer ente Com poucas palavras a
hermenecircutica fenomenoloacutegica (ou intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica no interior da situaccedilatildeo
hermenecircutica) constitui a condiccedilatildeo de possibilidade de toda investigaccedilatildeo ontoloacutegica
Aqui o termo ldquosentidordquo natildeo significa definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo mas a manifestaccedilatildeo do
ente em seu ser ou seja no modo como aquilo pode vir ao encontro e se manter como
ente e em uacuteltima instacircncia manter-se em seu significado Assim a apreensatildeo filosoacutefica
dessa abertura de sentido primaacuteria deve ser alcanccedilada na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo de
compreensatildeo dos entes no modo como os entes vecircm ao encontro sem qualquer teoria
pela formaccedilatildeo da posiccedilatildeo preacutevia Eacute por isso que ldquoo decisivo para a configuraccedilatildeo de uma
posiccedilatildeo preacutevia eacute ver o ser-aiacute em sua cotidianidade A cotidianidade caracteriza a
temporalidade do ser-aiacute (concepccedilatildeo preacutevia) Eacute inerente agrave cotidianidade certa medianidade
do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER (GA63) 2012 p90)
Indicamos alguns termos que ainda natildeo foram devidamente esclarecidos como
ser-aiacute ser-no-mundo temporalidade Trataremos mais detidamente desses termos baacutesicos
para a compreensatildeo da filosofia de Heidegger no proacuteximo capiacutetulo a partir da obra
principal de nossa dissertaccedilatildeo No momento faremos apenas esclarecimentos breves para
que possamos prosseguir a nossa apresentaccedilatildeo
74
Na tentativa de desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos
categoriais de definiccedilatildeo (gecircnero e diferenccedila especiacutefica) e a fim de acessar a mostraccedilatildeo
originaacuteria do fenocircmeno Heidegger usa a expressatildeo ser-aiacute (Dasein) para caracterizar
aquele ente que noacutes mesmos somos e indicar sua negatividade categorial pois o ser-aiacute soacute
eacute a partir do seu aiacute de sua existecircncia (mundo faacutetico no qual eacute lanccedilado) sem qualquer
categoria preacutevia que o defina Ponderaccedilatildeo apresentada pelo autor
ldquoAo chamar de homem o ser-aiacute que iraacute investigar coloca-se jaacute de antematildeo dentro
de uma determinada concepccedilatildeo categorial visto que o exame eacute levado a cabo
seguindo a direccedilatildeo da definiccedilatildeo tradicional de lsquoanimal racionalersquo () Tendo tal
definiccedilatildeo como direccedilatildeo define-se a descriccedilatildeo numa perspectiva determinada
sem que com ela se recuperem ativamente os motivos originaacuterios de tal maneira
de ver as coisasrdquo (HEIDEGGER(GA63) 2012 p34)
Mas entatildeo o que significa dizer que o ser-aiacute se encontra enquanto ser-no-mundo
Ao indicar o ser-aiacute Heidegger jaacute aponta a sua constituiccedilatildeo fundamental como ser-no-
mundo Mundo natildeo eacute um ente natildeo eacute o conjunto de entes nem eacute qualquer espacialidade
geomeacutetrica Ser-no-mundo eacute o encontro originaacuterio com a proacutepria facticidade (Faktizitaumlt)
e todas as possibilidades lanccediladas nesse encontro primordial ou como jaacute dissemos a
abertura de sentido na qual se encontra o ser-aiacute primariamente em seu mundo circundante
ldquoSer-no-mundo natildeo quer dizer aparecer entre outras coisas significa poreacutem
ocupar-se no circundante do mundo que vem ao encontro demorar-se nele O
modo proacuteprio de ser mesmo num mundo eacute o cuidado (sorge) () A vida se deixa
atingir ou fala consigo mesma mundanamente no e pelo cuidadordquo (HEIDEGGER
(GA63)2012 p107)
Se Dilthey compreende a categoria do significado como mediadora entre a
vivecircncia da consciecircncia e a realidade histoacuterica para Heidegger a significacircncia eacute a
articulaccedilatildeo do proacuteprio mundo que natildeo vem ao encontro a partir da consciecircncia mas da
ocupaccedilatildeo jaacute orientada pela facticidade (Faktizitaumlt) ldquoA significacircncia eacute um como do ser e
nele centra-se precisamente o categorial do mundo do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER(GA63)
2012 p91) E assim a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo situacional
sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica se daacute a partir da ocupaccedilatildeo do ser-aiacute que estaacute no mundo
propriamente como cuidado Cuidado natildeo quer dizer cuidado de si mas a disposiccedilatildeo agraves
coisas e a si em seu ser estar voltado para o ser dos entes E no caso da imediatidade da
vida a intencionalidade praacutetica que orienta a ocupaccedilatildeo
75
Para Heidegger trazer a realidade histoacuterica agrave vista eacute apropriar-se da situaccedilatildeo
hermenecircutica ou seja conquistar o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se
encontra o fenocircmeno da vida considerando que ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto
apropriaccedilatildeo compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo
(HEIDEGGER(GA62) 2002 p30) Em outras palavras o passado se manifesta sob a
interpretaccedilatildeo e abertura compreensiva possiacutevel no presente E portanto a partir da
abertura que dispotildee o presente lanccedilando suas possibilidades a tarefa da filosofia eacute
apropriar-se dessa compreensatildeo tendo em vista que ela atravessa o ser-aiacute em seu caraacuteter
ontoloacutegico que pode abrir-se a compreensatildeo de ser dos entes Eacute a partir daiacute que
ldquoVem agrave tona o papel paradigmaacutetico da filosofia platocircnico-aristoteacutelica para
Heidegger Segundo o filoacutesofo o que tem lugar em Platatildeo e Aristoacuteteles natildeo eacute algo
que diz respeito apenas ao interesse acadecircmico particular de um grupo de eruditos
especializados em suas obras Natildeo eacute filologia que nos fornece uma primeira via
de acesso aos elementos centrais de suas diversas compreensotildees nem tampouco
a filosofia acadecircmica que nos propicia pela primeira vez uma visatildeo clara do perfil
propriamente dito de seus escritos geniais Ao contraacuterio Platatildeo e Aristoacuteteles satildeo
decisivos para a constituiccedilatildeo das estruturas preacutevias de nossa interpretaccedilatildeo dos
entes porque temos neles a origem de boa parte dos horizontes investigativos
posteriormente sedimentadosrdquo (CASANOVA 2009 p59)
Heidegger entatildeo busca em Aristoacuteteles o ponto de partida natildeo soacute para as
interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas enquanto repeticcedilatildeo da pergunta ontoloacutegica fundamental
como tambeacutem para a interpretaccedilatildeo do uacutenico ente capaz de compreender o sentido do ser
dos entes o ser-aiacute Natildeo sem questionar a leitura tradicional da obra de Aristoacuteteles
Heidegger retomou a importante ldquodoutrinardquo do estagirita a qual estabelecia uma relaccedilatildeo
entre a sabedoria praacutetica (φρόνησις) a sabedoria (σοφία) e a vida do homem e seu modo
de existecircncia (βιος) De modo mais claro
ldquoAteacute Heidegger era comum tratar a obra de Aristoacuteteles a partir de um primado
da filosofa teoacuterica em relaccedilatildeo agrave filosofia praacutetica um primado que havia sido
preparado pelo modo tradicional de leitura do estagirita Partindo da concepccedilatildeo
aristoteacutelica da vida teoacuterica (βίος θεωρητικός) como a vida mais plena possiacutevel e
da filosofia como uma ciecircncia que natildeo se ateacutem aos entes em geral nem tampouco
a um ente especiacutefico mas que tem por uacutenico objeto o ser enquanto ser a
interpretaccedilatildeo tradicional do corpus aristoteacutelico cindiu radicalmente o acircmbito
praacutetico do acircmbito teoacuterico definindo o segundo como o uacutenico acircmbito da verdade
propriamente dita Com isso o acircmbito praacutetico foi relegado a um segundo plano
ao plano daquilo que dizia respeito apenas agrave melhor forma mundana de vidardquo
(CASANOVA 2009 p64)
76
O que estaacute em questatildeo para Heidegger natildeo eacute apenas identificar o fato de que nos
encontramos numa determinada tradiccedilatildeo definida por um extrato do conhecimento
historiograacutefico mas compreender radicalmente como nos situamos nessa tradiccedilatildeo No
texto de 1922 Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da
situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) comumente chamado de Natorp-Bericht ou Relatoacuterio-
Natorp Heidegger tenta explicitar a situaccedilatildeo hermenecircutica atraveacutes do como (wie) de todo
aparecer dos entes e das possibilidades do ser-aiacute na vida faacutetica Sendo o ser-aiacute aquele que
compreende a si mesmo e os outros entes sem qualquer preacutevia teorizaccedilatildeo em seu
acontecimento compreensivo Para tanto eacute necessaacuterio esclarecer as condiccedilotildees de
compreensatildeo e interpretaccedilatildeo ou conquistar o horizonte de sentido jaacute aberto no qual jaacute se
encontra o fenocircmeno da vida As condiccedilotildees satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a
direccedilatildeo da visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a
lsquovisibilidadersquo (Sichtweite)60 Satildeo essas condiccedilotildees que compotildeem a compreensatildeo e a
interpretaccedilatildeo ontoloacutegicas-temporais do ser-aiacute em relaccedilatildeo agraves suas possibilidades de ser e
em relaccedilatildeo aos entes que lhe vem ao encontro Essas condiccedilotildees natildeo satildeo lsquobarreirasrsquo para
o entendimento ao contraacuterio satildeo condiccedilotildees de abertura primaacuteria para qualquer
compreensatildeo ontoloacutegica Tentando esclarecer em (1) temos o acircmbito da realidade dada
em uma preacutevia abertura temporal de sentido em (2) a direccedilatildeo que jaacute determinou algo
ldquocomo-algordquo (Als-was) e ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu
lugar significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de
toda possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o
como do aparecer dos entes em seu ser e as possibilidades de comportamentos do ser-aiacute
eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto (1) e jaacute
interpretado (2) e por isso pode mover-se com pretensotildees de objetividade e definiccedilatildeo dos
entes
Eacute a partir dessas consideraccedilotildees que Heidegger desconstroacutei as noccedilotildees de
Aristoacuteteles engessadas pela tradiccedilatildeo de noucircs phroacutenesis e sophiacutea natildeo mais como
conceitos definidos a partir da leitura tematicamente eacutetica do Estagirita mas a partir da
orientaccedilatildeo da biacuteos ou seja da vida do homem e seu modo de existecircncia faacutetica No interior
do Relatoacuterio-Natorp a partir da interpretaccedilatildeo do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco de
60 Cf HEIDEGGER(GA62)2002 p29
77
Aristoacuteteles Heidegger apresenta essas virtudes dianoeacuteticas como ldquodiferentes
modalidades que permitem levar a cabo uma autecircntica custoacutedia do ser na verdade61rdquo
(HEIDEGGER (GA62) 2002 p60) O que quer dizer que se trata dos modos pelos quais
o ser-aiacute protege o ser dos entes enquanto desvelado (ἀλήθεια)
Para Heidegger o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona
um lsquoaquirsquordquo62 (HEIDEGGER(GA62) 2002 p66) essa virtude proacutepria do homem ldquose
realiza como ενέργεια como atividade () ou seja o νους abre um horizonte que sempre
responde a um modo concreto de tratar com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma
execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma determinaccedilatildeo63rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002
p66) O noucircs compreendido tradicionalmente como intelecto racional eacute proacuteprio do
homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica (homem (animal [gecircnero] + racional [diferenccedila
especiacutefica]) mas porque o homem ou melhor o ser-aiacute eacute o ente que pode custodiar abrir-
se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um compreender que jaacute interpreta
os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto na vida faacutetica que acontece
fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da
solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato praacutetico com os entes Essa
orientaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel porque no noucircs ldquoo loacutegos o legein eacute o modo atraveacutes do qual se
realiza o noein e como tal eacute um como tal eacute um διανοείσθαι um inteligir que decompotildee
e que apreende64rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002 p65) Vimos (II) que o λόγος na
fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν de interpretaccedilatildeo e natildeo diz
respeito agrave definiccedilatildeo linguiacutestica de um ou outro ente mas previamente a qualquer
determinaccedilatildeo gramatical ou categorial refere-se ao que manteacutem o ente como existente
portanto desvelado e interpretado em seu lsquocomo-entersquo Assim a relaccedilatildeo fundamental da
phroacutenesis - que prescreve o como o para-que do ente (utensiacutelio) - ao ser-aiacute eacute o
61 ldquoLa interpretacioacuten de este tratado prescindiendo provisionalmiente de la problemaacutetica especiacuteficamente
eacutetica permite comprender que las laquovirtudes dianoeacuteticasraquo son diferentes modalidades que permiten llevar a
cabo uma auteacutentica custodia del ser en la verdaderdquo Opcitp60 62 ldquoEl νους ofrece en general una perspectiva da algoproporciona un lsquoaquiacutersquordquoOp cit p66
63 ldquoEl νοῦς que es ίδιος άνθρωπος se realiza concretamente como ενέργεια como actividad como su
propia actividad es decir el νοῦς abre un horizonte que siempre responde a un modo concreto de tratar
con el mundo a traveacutes de una opercioacuten de una ejecucioacuten de una manipulacioacuten de una determinacioacutenrdquo
Opcitp66
64 ldquoel λόγος el λέγειν es el modo em el que se realiza el νοεῖν y como tal es un διανοείσθαι un inteligir
que decompone lo que apreenderdquo Opcit p65
78
desvelamento do ente no instante do proacuteprio trato da proacutepria atividade praacutetica sem
qualquer mediaccedilatildeo teoacuterica com o ente
Mas as atividades praacuteticas satildeo realizadas natildeo com fim em si mesmas mas com
vistas agrave execuccedilatildeo de um fim mobilizado pelo proacuteprio ser-aiacute em sua vida cotidiana e faacutetica
Assim o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se encontra o fenocircmeno da vida
parte do instante mesmo que potildee ao alcance da vista circunspecta o modo de
comportamento apropriado com o ente com vistas agrave execuccedilatildeo de um fim Desse modo
ldquoO ser da vida eacute considerado como uma atividade que encontra em si mesmo seu
fim o ser da vida se encontra nessa atividade quando a vida humana chegou a
seu fim com respeito a sua possibilidade de movimento mais proacutepria a
possibilidade de inteligir puro Essa atividade eacute proacutepria da εξις [do modo de ser]
que se conhece como σοφία Conforme seu caraacutecter intencional o compreender
puro natildeo custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo
forma parte do horizonte intencional da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso
pode ser de outra maneira O ser da vida humana deve ser considerado
unicamente desde a perspectiva da temporalizaccedilatildeo pura da σοφία como tal e em
razatildeo da autecircntica atividade a sua disposiccedilatildeordquo65 (HEIDEGGER (GA62) 2002
p71)
Assim o sentido do ser soacute pode ser abordado atraveacutes do ser-aiacute pois a pergunta
pelo ser do ser-aiacute possibilita a pergunta pelo sentido do ser em geral natildeo por um
fundamento teoacuterico mas como uma condiccedilatildeo ontoloacutegica O ser-aiacute eacute o ente que pode abrir-
se ao desvelamento dos entes e o faz a partir da proacutepria vida faacutetica sem qualquer
teorizaccedilatildeo preacutevia o ser-aiacute mobiliza o ser dos entes em geral em funccedilatildeo da proacutepria vida
ou seja dos modos possiacuteveis de ser a partir de sua temporalidade
Desde as primeiras investigaccedilotildees de Heidegger na deacutecada de 1920 daacute-se uma
profunda transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia a qual consiste na tentativa de
mostrar como eacute possiacutevel articular filosoficamente uma ciecircncia originaacuteria da vida ou em
mostrar como se daacute a realidade antes de qualquer consideraccedilatildeo cientiacutefica ajuizante isso
65 ldquoEl ser de la vida es considerado como uma actividad que encuentra em siacute mesma su fin el ser da la vida
se encuentra em esta actividad cuando la vida humana haacute llegado a su fin com respecto a su posibilidad de
movimento maacutes propia la posibilidad del inteligir puro Esta actividad es propia de la εξις [del modo de
ser] que se conoce como σοφία Conforme a su caraacutecter intencional el comprender puro no custodia la vida
humana en el modo de su ser faacutectico la vida humana no forma parte del horizonte intencional de la σοφία
ya que es un ente que en cada caso puede ser de otra manera El ser de la vida humana debe considerarse
unicamente desde la perspectiva de la temporalizacioacuten pura de la σοφία como tal y en razoacuten de la auteacutentica
actividad a su disposicioacutenrdquo Opcitp71
79
quer dizer antes de qualquer concepccedilatildeo teoacuterica de mundo Nesse sentido vimos que a
intencionalidade fenomenoloacutegica eacute intuiccedilatildeo compreensiva ou intuiccedilatildeo hermenecircutica em
meio ao mundo circundante que vem ao encontro E as coisas que vecircm ao encontro natildeo
respondem primariamente ao tradicional esquema sujeito-objeto mas resultam
compreensiacuteveis a partir da pertenccedila preacutevia a um mundo jaacute articulado ou a partir de um
estado de coisas preacute-compreendido na vida faacutetica que articula toda e qualquer
compreensatildeo do homem (das coisas e de si mesmo) desde sua existecircncia imediata no
mundo Dito de outro modo revela-se como compreensatildeo ontoloacutegica
Ao decidirmos apresentar as preleccedilotildees de Heidegger que antecederam a obra central
para o nosso trabalho foi nosso intuito elucidar os princiacutepios que provavelmente
motivaram a problemaacutetica exposta em Ser e Tempo A partir de agora nossa tarefa seraacute a
de tentar compreender a partir da obra de 1927 como o fenocircmeno da linguagem aparece
no interior dessa compreensatildeo e em que medida a linguagem eacute possiacutevel por uma
estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Eacute a tentativa de nosso proacuteximo capiacutetulo
80
Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da
linguagem (Sprache) em Ser e Tempo
ldquoa maacutequina do mundo se entreabriu para quem de a romper jaacute se esquivava e soacute de o ter pensado se carpiardquo (A maacutequina do mundo Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
Nos capiacutetulos anteriores descrevemos como do desenvolvimento das ciecircncias
positivas particulares no final do seacuteculo XIX emergiu a discussatildeo acerca do sentido e da
possibilidade do conhecimento No interior desse contexto destacamos o pensamento de
Husserl de Dilthey e as linhas gerais de alguns neokantianos de Baden A partir daiacute
descrevemos como a criacutetica heideggeriana agrave filosofia dos valores dos neokantianos
conduziu-o ao que ele proacuteprio chamou de lsquoes gibtrsquo originaacuterio como o campo
hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Para compreender a questatildeo pelo
sentido do ser em geral ie a proacutepria ontologia para Heidegger era necessaacuterio esclarecer
que a fenomenologia natildeo estava fundada na epistemologia (a partir da consciecircncia) e que
a hermenecircutica natildeo era apenas um instrumento metodoloacutegico capaz de nos dar acesso agrave
histoacuteria em sua objetividade mas muito mais do que isso ela era intuiccedilatildeo compreensiva
e imediata do mundo Assim a partir da criacutetica imanente que Heidegger fez ao meacutetodo
fenomenoloacutegico husserliano foi possiacutevel compreender como ele reconduziu a filosofia agrave
pergunta fundamental inaugurada no iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo a
pergunta pelo ser Aleacutem disso como o pensador desenvolveu a hermenecircutica voltada agrave
facticidade da vida natildeo em funccedilatildeo das vivecircncias da consciecircncia dos sujeitos histoacutericos
mas das vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico Todo esse percurso foi necessaacuterio para que
pudeacutessemos conquistar um solo interpretativo capaz de sustentar a anaacutelise do fenocircmeno
da linguagem tal como aparece em Ser e Tempo E ainda alcanccedilar a pergunta pelo
81
sentido de ser Pois ela a pergunta estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura
de sentido que precisamos explicitar
Contra a tradicional abordagem do problema da linguagem que mais comumente
focalizou as obras de Heidegger apoacutes a viragem (die Kehre)66 ie os escritos a partir
da deacutecada de 1930 neste capiacutetulo defenderemos que o fenocircmeno da linguagem (Sprache)
jaacute desempenha um papel decisivo em Ser e Tempo e que ele soacute se torna possiacutevel a partir
de uma das estruturas preacutevias existenciaacuterias examinadas na citada obra e que eacute a
estrutura de mostraccedilatildeo dos entes Assim embora admitindo que a questatildeo da linguagem
ainda natildeo estivesse posta de modo expliacutecito ou temaacutetico nosso trabalho pretende chamar
atenccedilatildeo para a inegaacutevel funccedilatildeo que a linguagem cumpre jaacute na obra de 1927
No sect 18 de Ser e Tempo Heidegger afirma que a significatividade funda a
possibilidade de significaccedilotildees e estas a possibilidade da linguagem
Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez
familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o
Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como
lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutengua
(HEIDEGGER 2012p261)
66 Apoacutes a Kehre nos anos 1930 a questatildeo do sentido de ser eacute reconduzida agrave histoacuteria e verdade do seer Este
movimento estaacute diretamente relacionado com o limite mesmo da obra de 1927 pois o processo de
singularizaccedilatildeo do ser-aiacute conforme elaborado em Ser e Tempo parece natildeo ser suficiente para a
movimentaccedilatildeo do horizonte histoacuterico e de sua semacircntica fechada Essa insuficiecircncia eacute levada agraves uacuteltimas
consequecircncias a partir dos anos 1930 e radicalizada com uma viragem em direccedilatildeo ao campo dos
acontecimentos histoacutericos Em Ser e tempo a negatividade proacutepria ao ser-aiacute apontava para a possibilidade
de mobilidade histoacuterica a partir da assunccedilatildeo como singularizaccedilatildeo de sua proacutepria negatividade e de sua
responsabilidade mais proacutepria como ser-aiacute de decisatildeo quanto aos caminhos de sua proacutepria existecircncia Jaacute
apoacutes a viragem a negatividade se mostraraacute natildeo somente a partir do ser-aiacute mas tambeacutem no assentamento
de toda abertura histoacuterica compreensiva uma negatividade que se mostraraacute na ausecircncia mesma de
fundamentos absolutos Caberia ademais considerar um aprofundamento das estruturas fenomenoloacutegicas
mais fundamentais no decorrer do pensamento de Heidegger Seraacute que em Ser e Tempo podemos defender
que a abertura que sustenta o sentido de ser do ser-aiacute como cuidado e temporalidade (Zeitlichkeit) estaria
afinal assentada no tempo histoacuterico Questatildeo afinal expressa na uacuteltima linha de Ser e tempo ldquoO tempo
(Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Seria entatildeo possiacutevel
pensar esse aprofundamento do gesto fenomenoloacutegico como a busca do limite de qualquer
intencionalidade Dito de outro modo apoacutes a Kehre o ser enquanto Ereignis (acontecimento apropriador)
poderia ser compreendido como o acircmbito sempre fugidio de toda e qualquer intencionalidade mas ao
mesmo tempo acircmbito no qual unicamente toda e qualquer intencionalidade pode acontecer Revelar-se-ia
o sentido fenomenoloacutegico do que Heidegger chama de clareira (die Lichtung)
82
Na seacutetima ediccedilatildeo de Ser e Tempo publicada em 1953 numa nota muito
esclarecedora acrescentada justamente a esta passagem acima citada Heidegger
evidenciou a diferenccedila entre a sua concepccedilatildeo da linguagem nos anos 20 e aquela apoacutes a
viragem Essa nota apareceu nas obras completas publicadas a partir de 1977 e tambeacutem
na traduccedilatildeo brasileira aqui utilizada Nessa nota muito importante para o objetivo desta
pesquisa o autor corrigiu sua proacutepria afirmaccedilatildeo (1927) de que a linguagem era derivada
Em 1953 ele declarou categoricamente que natildeo era verdadeiro que ldquoDasein-que-entende
[pudessecc] abrir como interpretante algo assim como lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais
[fundariamcc] novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo E que ldquoa liacutengua natildeo eacute
um pavimento sobreposto a outro senatildeo que eacute o desdobrar-se originaacuterio da verdade como
[aiacute] (HEIDEGGER 2012p261 nota c) Essa correccedilatildeo nos daacute uma prova de que a
concepccedilatildeo de linguagem em Ser e Tempo possuiacutea uma estratificaccedilatildeo que natildeo mais eacute aceita
apoacutes os anos 30 Poreacutem como aponta Stein o fenocircmeno da linguagem jaacute desempenhava
um importante e inegaacutevel papel no interior do tratado de 1927
Heidegger liga o questionamento de sua obra prima ao problema da linguagem
Ela assume papel condutor na elaboraccedilatildeo de seu meacutetodo e na realizaccedilatildeo analiacutetica
existencial No meacutetodo fenomenoloacutegico como interpretaccedilatildeo ou hermenecircutica
universal como apossamento de tudo o que foi transmitido pela tradiccedilatildeo atraveacutes
da linguagem como destruiccedilatildeo e revolvimento do chatildeo linguiacutestico da metafiacutesica
ocidental se descobre um imenso projeto de analiacutetica da linguagem Mas como
o meacutetodo fenomenoloacutegico visa o redimensionamento da questatildeo do ser natildeo numa
abstrata teoria do ser nem numa pesquisa historiograacutefica de questotildees ontoloacutegicas
mas numa imediata proximidade com a praacutexis humana como existecircncia e
facticidade a linguagem - o sentido a significaccedilatildeo - natildeo eacute analisada nun sistema
fechado de referecircncias mas ao niacutevel da historicidade Se no meacutetodo dialeacutetico
podemos encontrar uma certa miacutestica teleo-loacutegica (teleacuteo-troacutepica) a palavra no
meacutetodo do positivismo uma certa tecno-loacutegica da linguagem encontramos no
meacutetodo fenomenoloacutegico de Heidegger uma certa onto-loacutegica do dizer isto eacute uma
compreensatildeo da dimensatildeo preacute-ontoloacutegica da linguagem ligada a explicitaccedilatildeo do
mundo como horizonte de transcendecircncia (STEIN1971 p14)
Ser e Tempo possui certo caraacuteter preparatoacuterio pois eacute a tentativa de reformulaccedilatildeo
da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido depende justamente daquela
reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo O objetivo do tratado
eacute nos proacuteprios termos de Ser e Tempo a elaboraccedilatildeo concreta da pergunta pelo sentido
de ldquoserrdquo (Sinn von Sein) (HEIDEGGER2012 p31) No interior da elaboraccedilatildeo da proacutepria
83
pergunta a abordagem fenomenoloacutegica-hermenecircutica como meacutetodo de acesso ao sentido
de ser de todo ente acaba por demonstrar que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as
coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um campo de signos referenciais fechados que
doam significado agraves coisas mas uma manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez
se faz presente na facticidade da existecircncia concreta Nossa tentativa no presente capiacutetulo
eacute compreender como a partir da reelaboraccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ser e de seu
desenvolvimento nessa obra a linguagem se mostra enquanto manifestaccedilatildeo uacuteltima de um
horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo previamente
articulada dos entes e das possibilidades do ser-aiacute E dessa maneira indicar como as
palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da
experiecircncia hermenecircutica Mas antes de iniciarmos nosso capiacutetulo eacute necessaacuterio fazer
algumas consideraccedilotildees que se tornaram agora possiacuteveis apoacutes o desenvolvimento dos
capiacutetulos anteriores e as quais balizam nossa investigaccedilatildeo central
Certamente a fenomenologia husserliana tambeacutem natildeo atribui agrave linguagem um
aspecto referencial de acesso agraves coisas ao contraacuterio a assim chamada visatildeo das essecircncias
eacute a maneira de depurar o conteuacutedo linguiacutestico do conteuacutedo significativo preacute-linguiacutestico
Nas palavras de Gadamer (2010 p8)
A eleiccedilatildeo do modelo da visatildeo como modo do procedimento fenomenoloacutegico
indica que coisa mesma eacute preacute-conceptual e preacute-linguiacutestica A linguagem permite
articular o sentido da coisa mesma que contudo eacute independente da linguagem Eacute
aliaacutes apenas neste quadro que o exerciacutecio da eacutepoche se torna compreensiacutevel A
epocheacute eacute o que torna possiacutevel a reduccedilatildeo ao estado absolutamente desprovido de
preconceitos Mas o que eacute que torna a epocheacute possiacutevel A epocheacute eacute considerada
por Husserl como uma possibilidade de princiacutepio e como uma possibilidade
universal Mas esta possibilidade pressupotildee que se possa passar de uma plano
predicativo ndasho da linguagem ndash para um plano ante-predicativo - o da pura visatildeo
[] Por outro lado aquilo que se daacute de uma forma originaacuteria e na sua pureza daacute-
se como presenccedila absoluta numa figuraccedilatildeo atemporal Os fenoacutemenos no sentido
husserliano caracterizam-se por serem dados agrave consciecircncia de uma forma
absolutamente evidente e uacuteltima o fenoacutemeno eacute absoluta presenccedila a sua doaccedilatildeo
eacute plena
Husserl busca avanccedilar ateacute um plano imediato da experiecircncia que anteceda agrave
interpretaccedilatildeo como experiecircncia preacute-linguiacutestica a partir de intenccedilotildees linguiacutesticas Assim
busca na intencionalidade do fenocircmeno um estado desprovido de preconceito (epocheacute)
Heidegger alia-se a Husserl contra a tese de que o sentido ou o significado sejam
84
linguiacutesticos Contudo para o autor de Ser e Tempo toda experiecircncia jaacute inclui uma
interpretaccedilatildeo certamente natildeo linguiacutestica mas hermenecircutica e fundamentalmente praacutetica
Dessa forma intencionar um fenocircmeno a partir de um horizonte histoacuterico hermenecircutico eacute
considerar e apropriar-se do significado oferecido pelas condiccedilotildees preacutevias e em uacuteltima
anaacutelise por uma semacircntica sedimentada Dito de outro modo para Husserl a expressatildeo
linguiacutestica eacute a maneira de o pensamento intencionar significaccedilatildeo e a orientaccedilatildeo da
pesquisa pela condiccedilatildeo e possibilidade do conhecimento suspende todo posicionamento
ontoloacutegico da coisa mesma em prol do acesso epistemoloacutegico objetivo aos fenocircmenos Jaacute
na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto ontoloacutegico do
conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e qualquer significado
que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido que eacute tambeacutem histoacuterico e no qual
algo pode manter-se em seu significado Eacute nessa perspectiva que nos colocamos em busca
da estrutura ontoloacutegica da linguagem
Portanto eacute importante ter em vista que para Heidegger
(1) a experiecircncia hermenecircutica traz a significatividade (Bedeutsamkeit) que potildee a
descoberto todo e qualquer ente E na medida em que essa experiecircncia orienta o ponto
de partida da intencionalidade67 ela desvela o ente em seu ser o qual (ente) aparece
como algo No entanto essa significatividade se manteacutem em virtude de uma dupla
67 O termo ldquoDaseinrdquo eacute utilizado por Heidegger para afastar qualquer compreensatildeo de homem como
ldquosujeitordquo ldquoconsciecircnciardquo ldquoanimal racionalrdquo etc Desse modo poder-se-ia pensar que uma vez afastadas
essas interpretaccedilotildees tambeacutem o termo lsquointencionalidadersquo deveria ser desconsiderado pois a fenomenologia
husserliana o utiliza como ato de consciecircncia Natildeo eacute o caso Heidegger ainda manteacutem a orientaccedilatildeo
fenomenoloacutegica poreacutem a desloca da consciecircncia para a abertura compreensiva sendo ser-aiacutemundo a
relaccedilatildeo intencional primaacuteria e ainda essa compreensatildeo eacute fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo
circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser Ou sejavisatildeo natildeo teoacuterica
sem a primazia da consciecircncia A intencionalidade eacute pensada portanto natildeo como ato de consciecircncia mas
abertura compreensiva mobilizada por toda e qualquer performatizaccedilatildeo existencial Em Ser e Tempo o
termo lsquointencionalidadersquo e seus derivados aparecem apenas 4 vezes em 2 momentos 1) No sect10 ldquoAgrave essecircncia
da pessoa pertence o existir somente na execuccedilatildeo dos atos intencionais [intentionalen] e assim ela por
essecircncia natildeo eacute objeto () Em todo caso a pessoa eacute dada enquanto executora de atos intencionais
[intentionaler]ligados pela unidade de um sentidordquo (2012 p155) 2) No sect69 nota 10 ldquoA anaacutelise
intencional [intentionalen] da percepccedilatildeo e da intuiccedilatildeo em geral deveria sugerir essa caracterizaccedilatildeo
lsquotemporalrsquo do fenocircmeno Que e como a intencionalidade [Intentionalitaumlt] da lsquoconsciecircnciarsquo se funda na
temporalidade estaacutetica do Dasein ()rdquo Essa uacuteltima passagem eacute decisiva A intencionalidade eacute portanto
mantida por Heidegger mas deve ser compreendida em funccedilatildeo do sentido de ser do ser-aiacute a temporalidade
que abre compreensivamente o ser dos entes em geral Cf tambeacutem nota 70
85
abertura de sentido (Sinn) a abertura de mundo em funccedilatildeo do ser-aiacute e o sentido de ser
do ser-aiacute em funccedilatildeo da temporalidade de sua existecircncia
(2) a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados
(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Entatildeo o significado pode
vir a ganhar sua expressatildeo e forma predicativas a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo
(Aussage) em sua ligaccedilatildeo derivativa da interpretaccedilatildeo (Auslegung) Apresentando dessa
maneira o caraacuteter originaacuterio da verdade enquanto desvelamento (Aleacutetheia) e natildeo como
aderente ao juiacutezo proposicional como compreendeu a tradiccedilatildeo Eacute assim que se daacute
primariamente o acesso ao fenocircmeno da linguagem em seu sentido ontoloacutegico
Podemos antecipar aqui o que seraacute desenvolvido nesse capiacutetulo a linguagem estaacute
assentada em duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado68 que
revelam a diferenccedila entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm
articulados pela imbricaccedilatildeo radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno
Finalmente pedindo a paciecircncia do nosso leitor antes de comeccedilarmos o capiacutetulo
III vamos repetir um pouco o que jaacute foi adquirido nos dois primeiros capiacutetulos da
Dissertaccedilatildeo quando tentamos mostrar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger no
interior da fenomenologia (a partir de sua criacutetica imanente e radicalizaccedilatildeo do gesto
fenomenoloacutegico) foi decisiva para a virada da questatildeo compreendida como possibilidade
de acesso pelo sentido do conhecimento ao sentido do ser Agora a partir de Ser e Tempo
eacute possiacutevel considerar que houve um aprofundamento desse gesto fenomenoloacutegico Por
outra teria ocorrido um aprofundamento ou uma radicalizaccedilatildeo das estruturas
fenomenoloacutegicas De modo mais claro eacute possiacutevel compreender o percurso heideggeriano
como uma tentativa de lanccedilar a intencionalidade enquanto essecircncia mesma da
68 Diferentemente de VIGO (2012 p71) que considera 3 estruturas compreensatildeo (Verstehen) -
interpretaccedilatildeo (Auslegung) e enunciado (Aussage) noacutes consideraremos apenas duas tendo em vista que
julgamos natildeo ser a compreensatildeo uma estrutura autocircnoma e que portanto ela natildeo deve ser separada da
interpretaccedilatildeo Seguimos a letra do sect32 de Ser e Tempo ldquoNa interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo
diverso mas torna-se ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p421) Pensamos que conceder autonomia agrave
compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido primaacuterio ao natildeo remetecirc-la ao Dasein quem
compreendendo jaacute interpreta e custodia o sentido de ser dos entes jaacute estariacuteamos no campo dos
acontecimentos histoacutericos Portanto estariacuteamos ultrapassando os limites de Ser e Tempo ou mais
especificamente falando os limites da ldquoAnaliacutetica Existencialrdquo
86
fenomenologia num acircmbito fundamental que se abriria a toda e qualquer possibilidade
de intencionalidade Vejamos essas questotildees mais detidamente
Como jaacute indicado tanto em Heidegger como em Husserl existe um primado da
experiecircncia antepredicativa em detrimento da predicaccedilatildeo ou da experiecircncia
predicativamente articulada69 Jaacute na preleccedilatildeo de 1919 Heidegger apontava o lsquoes gibtrsquo
originaacuterio ou a concretude do mundo que se daacute como acircmbito fundamental no qual se abre
a possibilidade de intencionalidade Depois dela as preleccedilotildees dos anos 1920 passaram a
descrever a intencionalidade como uma noccedilatildeo praacutetica orientada pela ocupaccedilatildeo e com base
nisso descreveram a experiecircncia antepredicativa e histoacuterica do significado Mas foi
somente em Ser e Tempo que Heidegger elaborou uma ontologia fundamental a partir da
analiacutetica existenciaacuteria70 do ser-aiacute A ontologia fundamental eacute descrita como a necessidade
de pocircr em questatildeo o ente em que a compreensatildeo de ser enquanto questatildeo eacute possiacutevel ou
como expresso no Relatoacuterio Natorp o ente que pode custodiar abrir-se ao desvelamento
do ser dos entes Mas o que isso significa sob uma perspectiva fenomenoloacutegica
A descriccedilatildeo do ser-aiacute como existecircncia projetiva assentada em sua negatividade
proacutepria (negatividade entendida pelo fato de que o ser-aiacute soacute eacute a partir do seu aiacute de sua
69 Nesse sentido conferir tambeacutem VIGO 2012 p75 70 Na traduccedilatildeo de Ser e Tempo utilizada os termos Existenzial e Existenzielle satildeo traduzidos por
ldquoexistenciaacuteriordquo e ldquoexistencialrdquo respectivamente A diferenccedila foi estabelecida por Heidegger para marcar a
determinaccedilatildeo constitutiva da existecircncia (ou sua estrutura) cuja determinaccedilatildeo cabe agrave ontologia
(existenciaacuterio) da determinaccedilatildeo existencial (existencial) que trata de um assunto ocircntico do Dasein ou de
um conhecimento que conduz a si mesmo (HEIDEGGER 2012 sect4-9)
Apesar da consulta a outras traduccedilotildees (francesa de Emmanuel Martineau e espanhola de Jorge Rivera)
usaremos os termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho Em alguns momentos aleacutem da
traduccedilatildeo de Castilho que eacute bastante recente (2012) tambeacutem citaremos as palavras da traduccedilatildeo brasileira
anterior (com exceccedilatildeo da traduccedilatildeo de lsquoDaseinrsquo como lsquopresenccedilarsquo que natildeo seraacute utilizada nesse trabalho)
Acerca dos termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho haveraacute apenas duas exceccedilotildees a
primeira refere-se ao uso da palavra lsquoDaseinrsquo a qual Castilho Rivera e Martineau mantiveram no original
alematildeo obedecendo uma sugestatildeo do proacuteprio Heidegger Ser-aiacute eacute a traduccedilatildeo portuguesa do termo alematildeo
Dasein que no uso comum na liacutengua alematilde eacute usado como sinocircnimo para existecircncia mas que no texto
heideggeriano tem um significado peculiar tornando a traduccedilatildeo do termo problemaacutetica Em uma carta de
Heidegger a Jean Beaufret datada de 23 de Novembro de 1945 o autor daacute a seguinte informaccedilatildeo ldquolsquoDa-
sein eacute uma palavra-chave do meu pensar por isso ela eacute causa de graves erros de interpretaccedilatildeo natildeo significa
para mim exatamente eis-me mas se eacute que me posso exprimir num francecircs sem duacutevida impossiacutevel ser-
o-aiacute e o-laacute significa exatamente Aleacutetheia desvelamento-aberturardquo (Carta sobre o humanismo Martin
Heidegger - 2 ed rev Traduccedilatildeo de Rubens Eduardo Frias Satildeo Paulo Centauro ndash 2005 p 89) Algumas
vezes infieacuteis a Castilho e ao proacuteprio Heidegger utilizaremos tambeacutem a sua traduccedilatildeo ldquoser-aiacuterdquo para maior
fluidez do texto A segunda exceccedilatildeo refere-se agraves citaccedilotildees cuja opccedilatildeo por traduccedilotildees tradicionais resolvemos
natildeo alterar
87
existecircncia) sem qualquer categoria preacutevia que o defina potildee em tela que esse ente eacute
marcado pelo caraacuteter de poder-ser orientando-se segundo possibilidades existenciais que
natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas somente na morte como fim de todas as
possibilidades Isso se daacute porque o ser-aiacute eacute o limite fundamental no qual se abre a
possibilidade de intencionalidade ou o sentido do experimentado enquanto
experimentado71 ldquoSoacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a abertura do ser-no-
mundo lsquopode ser preenchidarsquo pelo ente que nele pode ser descobertordquo (HEIDEGGER
2012 p429) De outro modo se para Husserl a noccedilatildeo de intencionalidade faz com que a
cada vez que o pensamento se volte agrave consciecircncia ela descortina sua direccedilatildeo em relaccedilatildeo
ao fenocircmeno Para Heidegger poreacutem uma vez superada a primazia da consciecircncia a
cada vez que o pensamento se volta ao Dasein ele descortina sua direccedilatildeo ao mundo
fenocircmeno originaacuterio em que os entes podem vir ao encontro em seu ser bem como as
possibilidades de ser do proacuteprio Dasein
A ontologia fundamental aparece em sua necessidade porque o ser-aiacute mesmo natildeo
pode ser intencionado significativamente natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente
e por isso seu caraacuteter de poder-ser por isso ele poder mobilizar sentidos e atualizar
significaccedilotildees Assim o ser-aiacute eacute o ente que custodia e compreende o ser do ente jaacute em suas
atividades praacuteticas ou seja ele mobiliza a intencionalidade mas eacute o ente que a
intencionalidade natildeo pode alcanccedilar Na tentativa de apreendecirc-lo em seu ser a anaacutelise
conduz para fora para seu ldquoaiacuterdquo Assim Dasein eacute ser-aiacute eacute existecircncia que se projeta
lanccedilada no ldquoaiacuterdquo histoacuterico O Dasein como apresentado por Heidegger ldquoenvolve uma
dimensatildeo de ser (-sein) e por outro uma dimensatildeo locativa um aiacute (Da-)rdquo (CASANOVA
2006 p12) e isto deve-se ao fato que ldquoapenas ele [Dasein] se acha no ponto de
imbricaccedilatildeo de ser e mundordquo (CASANOVA 2006 p12)
71 Cf HEIDEGGER (GA62) 2002 p 71 ldquoConforme seu caraacutecter intencional o compreender puro natildeo
custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo forma parte do horizonte intencional
da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso pode ser de outra maneirardquo ldquoDas reine Verstehen bringt
nicht etwa nach seinem intentionalen Charakter das menschliche Leben im Wie seines faktischen Seins in
Verwahrung die σοφία hat es uumlberhaupt nicht zu ihrem intentionalen Worauf es ist ja ein Seiendes das ist
gerade dadurch daszlig es je anders sein kannrdquo (HEIDEGGER GA62 [pp385-386] grifo nosso)
88
Dessa forma a pergunta pelo sentido do ser seraacute elaborada conforme os trecircs
momentos constitutivos da questatildeo descritos no sect2 de Ser e Tempo
1- O perguntando ou aquilo de que se pergunta ser do ente
2- O interrogado ou aquilo a quequem se pergunta Dasein
3- O perguntado ou aquilo que se pergunta sentido do ser em geral
A pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2) perguntando
sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma ontologia
fundamental Isso esclarecido podemos iniciar propriamente nosso capiacutetulo e tema
central de nosso trabalho
I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado)
Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico
II A dupla abertura de sentido (Sinn)
Conforme descrito no sect9 de Ser e Tempo o ser-aiacute eacute o ente que a cada vez somos
(eu tu etc) ou seja a particular existecircncia finita e histoacuterica natildeo um conceito geneacuterico
em que as diferenccedilas especiacuteficas apareceriam na experiecircncia sensiacutevel Para esse ente ldquoo
ser ele mesmo eacute o que estaacute a cada vez em jogordquo (HEIDEGGER 2012 p139) Existir e
ser responsaacutevel pelo seu ser eacute o mesmo No que existe o ser-aiacute tem-que-ser (Zu-sein) a
ele natildeo eacute facultado a escolha de haver ou natildeo com seu ser uma vez sendo ele eacute e sendo
ele ldquose comporta em relaccedilatildeo ao seu ser como em realizaccedilatildeo de sua possibilidade mais
proacutepria O Dasein eacute cada vez sua possibilidade (Moglichkeit)rdquo (HEIDEGGER 2012
p141)
Por meio de toda e qualquer performatizaccedilatildeo (com relaccedilatildeo a si mesmo em relaccedilatildeo
aos outros e em relaccedilatildeo aos entes) o ser-aiacute enssencializa a si mesmo como existecircncia E
89
no que se enssencia (como existecircncia e natildeo categorialmente) o seu ser mesmo estaacute em
jogo pois eacute por essa determinaccedilatildeo ontoloacutegica negativa que o ser-aiacute pode conquistar seu
poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees cotidianas
Assim o desenvolvimento da analiacutetica existenciaacuteria aponta para a compreensatildeo do
sentido formal72 da constituiccedilatildeo da existecircncia do ser-aiacute ldquoO Dasein se determina cada vez
como ente a partir de uma possibilidade que ele eacute e que ao mesmo tempo e de alguma
maneira ele entende em seu serrdquo (HEIDEGGER 2012 p 143)
As orientaccedilotildees cotidianas ou a cotidianidade mediana ndash em que o ser-aiacute pode
perder-se no poder-ser improacuteprio - natildeo deve ser considerada pejorativamente como algo
a ser extirpado da existecircncia e da analiacutetica Ao contraacuterio em realidade natildeo pode A
impropriedade oferecida por essas orientaccedilotildees eacute em suma a maneira inicial em que o ser-
aiacute - como ser-no-mundo como ente lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ndash estaacute aberto para seus
possiacuteveis modos de ser Dessa forma a anaacutelise da cotidianidade tem um caraacuteter
fenomecircnico positivo para a analiacutetica existenciaacuteria pois eacute a partir desse modo de ser
improacuteprio que o ser-aiacute eacute lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria
das vezes Portanto natildeo eacute apenas lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade
A analiacutetica existenciaacuteria inicia entatildeo sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio E se
dissemos haacute pouco eacute que por meio da performatizaccedilatildeo que o ser-aiacute enssencia a si mesmo
como existecircncia e essa orientaccedilatildeo para qualquer performance natildeo eacute ilimitada Como as
possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha para um ato de vontade
do ser-aiacute mas satildeo mobilizadas na e pela existecircncia radicalmente histoacuterica o ser-aiacute pela
abertura primaacuteria remetido ao mundo eacute marcado pelo caraacuteter de poder-ser (Seinkonnen)
mas em funccedilatildeo de sua realizaccedilatildeo como possibilidade (Moglichkeit) De modo mais claro
ldquopor natildeo possuir nenhuma quididade [o ser-aiacute cc] eacute a realidade da possibilidade para a
possibilidade () Natildeo podendo ser puro poder-ser pois se assim o fosse o ser-aiacute jaacute seria
algo positivamente definidordquo (CABRAL 2015 p79) Dessa forma o ser-aiacute que a cada
vez deve conquistar o seu ser na radicalidade de sua finitude e historicidade eacute o ente que
pode pela sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica mobilizar sentido E por isso mobilizar na
72 Quando nos referirmos a ldquosentido formalrdquo no decorrer de nosso trabalho Cf Capiacutetulo II- Item III-
Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
90
concretude da vida faacutetica o sentido de ser dos entes os sentidos das relaccedilatildeo aos outros e
sentido de seu ser
ldquoO desvelamento do ser exige sempre um ponto de partida ocircntico Mas o ser-aiacute
eacute privilegiado e ontologicamente ocircntico por causa de sua preacutevia compreensatildeo de
ser Entatildeo o desvelamento do ser deveraacute ser tentado primordialmente a partir do
ser-aiacute mediante uma analiacutetica existencial de suas estruturas O sentido do ser
(preocupaccedilatildeo) dessas estruturas do ser-aiacute eacute a temporalidade Assim a analiacutetica das
estruturas deveraacute ser refeita no homem na temporalidaderdquo (STEIN 2001 p204)
A preacutevia compreensatildeo de ser do ser-aiacute sua negatividade quiditativa seu caraacuteter
de poder-ser e sua constituiccedilatildeo aberta lanccedilada e remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo eacute dada
como acontecimento compreensivo A compreensatildeo ou o entender (Verstehen) eacute uma
das estruturas existenciaacuterias desse ente ocircntico-ontoloacutegico73 e ldquoao interpretaacute-lo como
existenciaacuterio fundamental mostra-se que esse fenocircmeno eacute assim concebido como modus
fundamental do ser do Daseinrdquo (HEIDEGGER 2012 p407) Esse existenciaacuterio
fundamental natildeo refere a uma capacidade entre outras do ser-aiacute de apropriar-se de algo
pelo entendimento intelectivo natildeo eacute uma relaccedilatildeo entre sujeito-objeto mas a constituiccedilatildeo
fundamental do ser-aiacute como ser-no-mundo como relaccedilatildeo intencional primaacuteria e desse
modo o horizonte compreensivo do ser-aiacute com seu ser ldquoO ser-aiacute possui uma relaccedilatildeo
compreensiva com o seu ser porque eacute somente por meio da compreensatildeo que ele encontra
o campo de jogo no interior do qual pode conquistar esse seu serrdquo(CASANOVA 2006
p 13) O ldquoDardquo ou ldquoaiacuterdquo do Dasein e sua estrutura fundamental ser-no-mundo podem ser
esclarecidos em contraponto a concepccedilatildeo paradigmaacutetica da epistemologia moderna de
Kant por exemplo O entender (Verstehen) tal como Heidegger o apresenta natildeo se baseia
na associaccedilatildeo psicoloacutegica das representaccedilotildees ou ainda a abertura primaacuteria que conduz o
ser-aiacute agraves suas possibilidades em que seu ser estaacute em jogo natildeo eacute algo como apercepccedilatildeo
No paradigma epistemoloacutegico da modernidade em uacuteltima instacircncia o entendimento eacute
uma reconstruccedilatildeo interna dos elementos externos do mundo reconstruccedilatildeo essa que
depende das faculdades cognitivas do sujeito capazes de unificar o agregado de
experiecircncias externas O entendimento em Heidegger eacute a abertura primaacuteria uma relaccedilatildeo
intencional estruturante ser-aiacute eacute ser-no-mundo portanto o Dasein eacute sempre remetido ao
73 Ocircntico pelo fato de ser ainda um ente ontoloacutegico pelo fato de ser o ente que pode e sempre abre a
compreensatildeo de ser (Cf HEIDEGGER 2012 sect4-9)
91
ldquomundordquo projetado para ldquoforardquo e esse ldquoforardquo eacute sempre abertura compreensiva ao mundo
faacutetico como horizonte hermenecircutico de sentido
Essa abertura compreensiva fundamental descerra o poder-ser do ser-aiacute como
projeto O fato de o ser-aiacute ser lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ao seu poder -ser em um
campo de jogo para seus possiacuteveis modos de ser natildeo conduz a um determinismo
circunstancial o qual o ser-aiacute estaria fadado a reproduzir maquinalmente e atualizar
incessantemente Tambeacutem ldquoo projetar nada tem a ver com um comportar-se em relaccedilatildeo a
um plano ideado de acordo com o qual o Dasein organizaria o seu serrdquo (HEIDEGGER
2012 p413) mas originariamente ldquoele sempre jaacute se projetou e se projeta enquanto eacuterdquo
(HEIDEGGER 2012 p413) A noccedilatildeo de projeto repousa na abertura compreensiva do
ser-aiacute e na sua ligaccedilatildeo radical com suas possibilidades Logo no iniacutecio do sect32 essa noccedilatildeo
eacute explicitada
ldquoO Dasein como entender projeta seu ser em possibilidades Esse entendedor ser
para possibilidades eacute ele mesmo um poder-ser pelo efeito contraacuterio que as
possibilidades como abertas tecircm sobre o Dasein O projetar do entender tem uma
possibilidade proacutepria de desenvolvimento Chamamos interpretaccedilatildeo o
desenvolvimento do entender Na interpretaccedilatildeo o entender entendendo
apropria-se do seu entendido Na interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo
diverso mas torna-se ele mesmo () A interpretaccedilatildeo natildeo consiste em tomar
conhecimento do entendido mas em elaborar possibilidades projetadas no
entenderrdquo (HEIDEGGER 2012 p421)
Dissemos haacute pouco que as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como
disponiacuteveis agrave escolha e agrave espera de um ato de vontade do ser-aiacute (natildeo estatildeo suspensas como
que dadas a cada ser-aiacute ao nascer como gocircndolas de projetos de ser) mas satildeo mobilizadas
na e pela existecircncia E ainda que essa existecircncia seja sempre projetiva em um mundo
histoacuterico Desse modo o entender (Verstehen) acontece sempre como interpretaccedilatildeo
(Auslegung) a abertura ao mundo eacute um projeto de sentido do ser-aiacute que jaacute interpreta que
jaacute potildee em visatildeo o que entende Mas o que isso quer dizer Como Heidegger chega a esses
existenciaacuterios
Vimos no capiacutetulo anterior a partir da leitura do texto de 1922 Interpretaccedilotildees
fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) ou
Relatoacuterio-Natorp que o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona
92
um lsquoaquirsquordquo essa virtude proacutepria do homem ldquose realiza como ενέργεια como atividade
() ou seja o νους abre um horizonte que sempre responde a um modo concreto de tratar
com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma
determinaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2002 p66) Compreendido tradicionalmente como
intelecto propriamente racional o noucircs eacute proacuteprio do homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica
[homem (animal (gecircnero) + racional (diferenccedila especiacutefica)] mas porque o ser-aiacute eacute o ente
que pode custodiar abrir-se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um
compreender que jaacute interpreta os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto
na vida faacutetica que acontece fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis
enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato
praacutetico com os entes
Em Ser e Tempo Heidegger descreve as vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico e
tambeacutem como o fenocircmeno do mundo se mostra atraveacutes dos entes intramundanos A forma
imediata de esses entes se mostrarem daacute-se na lida praacutetica que o ser-aiacute trava com eles em
um mundo circundante ou em um mundo-ambiente (Umwelt) Eacute atraveacutes da ocupaccedilatildeo
com os entes que o ser-aiacute se movimenta inicialmente na compreensatildeo faacutetica de mundo eacute
aiacute que o Dasein visualiza os entes em sua serventia especiacutefica no quadro de um horizonte
ocupacional Esse horizonte possui certa anterioridade em relaccedilatildeo ao proacuteprio uso do
instrumento ou utensiacutelio (Zeug) particular e isto fica claro no sect 15 quando Heidegger
potildee em relevo o modo de ser dos utensiacutelios na delimitaccedilatildeo preacutevia do que seja sua
instrumentalidade ldquoEm termos rigorosos um instrumento nunca lsquoeacutersquo isolado Ao ser de
instrumento pertence sempre cada vez um todo-instrumental no qual esse instrumento
pode ser o que ele eacute Instrumento eacute por essecircncia lsquoalgo pararsquo (HEIDEGGER 2012
p211) Na essecircncia do instrumento estaacute sempre a referecircncia de algo para algo O ser do
utensiacutelio e seu significado que aparece no instante do trato portanto jaacute interpretado a
partir do uso nascem da totalidade utensiliar (Zeugganzheit) que o atravessa Mas esta
totalidade utensiliar se assenta num contexto ainda mais complexo Se o utensiacutelio eacute
confeccionado de acordo com a sua finalidade especiacutefica como ldquoalgo parardquo seu uso o
liga a outros utensiacutelios por exemplo o pincel que uso para pintar remete-se agrave tela que
uso para suporte da tinta Assim como a tela remete-se natildeo soacute a sua finalidade mas
tambeacutem aos materiais atraveacutes dos quais ela foi produzida madeira tecido e gesso E
ainda remete-se ao produtor da tela ou seja aos outros entes no modo de ser do ser-aiacute
93
Poreacutem essa descriccedilatildeo do instrumento em um mundo-ambiente (Umwelt) ainda eacute
insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica de todo ente em geral
Assim conforme o sect 17 Heidegger aponta que a estrutura do sinal (Zeichen) ldquofornece
um fio condutor ontoloacutegico para uma lsquocaracterizaccedilatildeorsquo de todo ente em geralrdquo
(HEIDEGGER2012 p 233) O sinal enquanto utensiacutelio tem em sua serventia especiacutefica
o mostrar e ao mostrar fornece o fenocircmeno da referecircncia natildeo somente de sua referecircncia
mas de todo e qualquer ente uma vez que a relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia explicita o
fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua finalidade
na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal enquanto
instrumento nos mostra o mundo circundante e potildee em relevo o caraacuteter da referecircncia
que natildeo deve ser confundida com o proacuteprio sinal pois natildeo eacute determinaccedilatildeo ocircntica de um
ou outro manual especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica do manual e fundamento
constitutivo da mundidade como rede referencial na qual o Dasein jaacute se encontra inserido
na abertura ao mundo Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo
circundante o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a
complexa rede de remissotildees referenciais e atraveacutes dela a totalidade conjuntural ou
conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)
ldquoO termo conjuntura tem como correlato na liacutengua alematilde a palavra Bewandtins
que designa primariamente a propriedade ou a constituiccedilatildeo de uma coisa e em
um segundo momento a circunstacircncia em que algo se mostra essencialmente
como algo Neste segundo caso o termo se mostra em sintonia com a expressatildeo
Bewendenlassen como o deixar (lassen) algo se conformar (bewenden) a uma
certa estrutura e se mostrar como o que eacute em meio a essa conformidaderdquo
(CASANOVA 2006 p37)
A noccedilatildeo de conjuntura no sect 18 eacute um dos momentos mais decisivos da primeira
parte de Ser e Tempo pois revela que a totalidade conjuntural eacute anterior a qualquer
determinaccedilatildeo particular dos entes intramundanos Eacute essa conjuntura que determina os
usos possiacuteveis a partir da conformidade dos entes nela inseridos revelando que o
utensiacutelio em si mesmo natildeo possui qualquer determinaccedilatildeo essencial mas a recebe do
campo de uso da conjuntura na qual estaacute inserido Mas natildeo eacute soacute isso a determinaccedilatildeo
essencial de um ente intramundando acontece tambeacutem em funccedilatildeo do ser-aiacute cujo lsquoem
vista dersquo ao final da remissatildeo natildeo mais remonta a um lsquopara quecircrsquo mas mobiliza e em
uacuteltima instacircncia determina as conformaccedilotildees dos entes intramundanos Isso revela que o
que estaacute em jogo natildeo eacute o que eacute algo mas antes em virtude de que se faz algo O ser-aiacute
94
pode agir relacionar-se com os outros e consigo mesmo pois sabe comportar-se no
campo fenomecircnico aberto que arrasta consigo sua possibilidade de ser De outra forma
toda e qualquer performatizaccedilatildeo do ser-aiacute em relaccedilatildeo aos entes remete em uacuteltima medida
agravequele que pode voltar-se aos entes e mobilizaacute-los
O que a conjuntura indica previamente eacute ldquoa articulaccedilatildeo originaacuteria com certas
possibilidades essenciais do ser-aiacute que permitem ao ser-aiacute projetar efetivamente o campo
de sua realizaccedilatildeo como poder-serrdquo (CASANOVA 2006 p36) Essa realizaccedilatildeo do poder-
ser do ser-aiacute mobiliza a conformaccedilatildeo dos entes em funccedilatildeo do sentido existencial do ser-
aiacute pois uma atividade qualquer natildeo eacute feita por ela mesma mas soacute tem sentido na intenccedilatildeo
de um ente que estaacute aberto agrave apreensatildeo do ser dos entes em geral Desse modo a primaacuteria
abertura compreensiva do ser-aiacute ao mundo eacute um projeto de sentido que jaacute interpreta e ao
fazecirc-lo realiza a cada vez a cada ato de sua existecircncia a cada performatizaccedilatildeo a
possibilidade de seu ser pondo em liberdade os entes no interior do mundo e as relaccedilotildees
com os outros no projeto lanccedilado (faacutetico) na e pela sua existecircncia E isso porque
ldquoQuando o ente do-interior-do-mundo eacute descoberto com o ser do Dasein isto eacute
quando veio ao entendimento dizemos que ele tem sentido Mas tomado
rigorosamente o que eacute entendido natildeo eacute o sentido mas o ente ou o ser Sentido eacute
aquilo em que a entendibilidade de algo se manteacutem () Sentido eacute aquilo-em-
relaccedilatildeo-a-quecirc do projeto estruturado pelo ter-preacutevio pelo ver-preacutevio e pelo
conceito preacutevio a partir de que algo pode ser entendido como algo Na medida
em que entender e interpretaccedilatildeo constituem a constituiccedilatildeo existenciaacuteria do lsquoaiacutersquo o
sentido deve ser concebido como arcabouccedilo existenciaacuterio-formal da abertura
pertencente ao entender O sentido eacute um existenciaacuterio do Dasein natildeo uma
propriedade presa ao ente que reside lsquoatraacutesrsquo dele ou flutua em algum lugar como
em um lsquoreino intermediaacuteriorsquo Soacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a
abertura do ser-no-mundo lsquopode ser preenchidarsquo () E quando perguntamos
pelo sentido de ser a investigaccedilatildeo natildeo se torna entatildeo profunda e natildeo excogita
nada que esteja atraacutes do ser mas pergunta por ele mesmo na medida em que ele
estaacute na entendibilidade do Dasein O sentido de ser nunca pode ser contraposto
ao ente ou ao ser como lsquofundorsquo que sustenta o ente porque o lsquofundamentorsquo soacute eacute
acessiacutevel como sentido mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta- de-
sentidordquo (HEIDEGGER 2012 pp 429-431)
Apelamos para essa longa citaccedilatildeo a fim de explicitar o que dissemos
anteriormente acerca da mobilizaccedilatildeo dos entes em seu ser em funccedilatildeo dos focos
existenciais do ser-aiacute Os entes somente vecircm ao encontro como entes que satildeo a partir da
intenccedilatildeo de um ente que estaacute aberto a compreensatildeo do ser dos entes em geral Com a
95
citaccedilatildeo pretendemos tambeacutem apontar para algo importante acerca do fundamento
histoacuterico dessa abertura O sentido de ser natildeo eacute algo a ser alcanccedilado teoricamente pois
natildeo eacute algo estaacutevel e fundante da realidade que responde ao esquema causa-efeito ele eacute
essencialmente histoacuterico e eacute trazido pela experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica
da existecircncia mesma do ser-aiacute Natildeo se pode ter lsquoserrsquo sem a compreensatildeo do sentido de
ser vinculando portanto lsquoserrsquo ao ser-aiacute ente cuja estrutura pertence agrave compreensatildeo de
ser Como nos adverte o autor de Ser e Tempo o Dasein eacute um ente certamente diferente
dos outros entes no interior do mundo e eacute o lsquoabismo da falta de sentidorsquo que remete agrave
totalidade do fenocircmeno do ser-aiacute como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge) a qual acontece
em funccedilatildeo do sentido da temporalidade (Zeitlichkeit) Eacute essa ldquosegundardquo abertura de
sentido que devemos explicitar a partir de agora
Indicamos acima que a indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica do ser-aiacute o conduz a conquistar
seu poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees
cotidianas Poreacutem ser-proacuteprio ou ser-improacuteprio natildeo satildeo categorias operacionalizaacuteveis em
funccedilatildeo de um ideal de vida Essas possibilidades repousam na existecircncia e revelam a
tensatildeo da condiccedilatildeo primaacuteria da abertura ao mundo do ser-aiacute como projeto- jogado e
ldquodessa tensatildeo eacute possiacutevel deduzir o modo como o ser-aiacute faticamente existe() o caraacuteter
mesmo do jogado do ser-aiacute implica a absorccedilatildeo imediata no mundo sedimentado ele
encontra a si mesmo na medida em que se perderdquo (CASANOVA 2009 p123) E por
isso quando a analiacutetica existenciaacuteria inicia sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio no qual
o ser-aiacute eacute lanccedilado ldquoisso natildeo significa por sua vez outra coisa senatildeo que ele [o ser-aiacute]
concretiza o poder ser que ele eacute a partir das possibilidades faacuteticas disponibilizadas pelo
mundordquo (CASANOVA 2009 p123)
A abertura compreensiva eacute uma compreensatildeo da proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica na qual
nos orientamos inicialmente e na qual satildeo dadas nossas possibilidades de ser natildeo de
maneira teoacuterica mas absorvidas nas praacuteticas nos projetos de sentido relaccedilatildeo com os
outros e lida com os entes Abertura essa que um passado tornou possiacutevel e se faz
radicalmente imperativa no presente atraveacutes da cotidianidade orientando o ser-aiacute e
fazendo emergir algo assim como um mundo Por exemplo a realizaccedilatildeo deste trabalho
como dissertaccedilatildeo acadecircmica apareceu como possibilidade para o projeto de sentido de
sua autora porque escrever sobre filosofia faz sentido este projeto de sentido veio ao
96
encontro de seu poder-ser natildeo meramente por um ato de escolha mas inicialmente porque
filosofia dissertaccedilatildeo e universidade satildeo elementos mantidos em seu significado oriundo
da tradiccedilatildeo ocidental natildeo por uma linha histoacuterica que a autora recupera e quer trazer ao
presente mas porque mais uma vez ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto apropriaccedilatildeo
compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo
(HEIDEGGER2002 p30)
E uma vez remetida ao mundo pela orientaccedilatildeo cotidiana a autora pode
estabelecer relaccedilotildees com os entes (livros computador papel etc) consigo mesmo (como
autora) e com os outros (leitores desse trabalho) que partilham essas possibilidades
sedimentadas Dessa forma a orientaccedilatildeo cotidiana primaacuteria revela ldquoexistir () eacute de iniacutecio
o mesmo que perder-se de sirdquo (CASANOVA 2009 p123) pois ldquoo ser-aiacute suspende a
irrealidade originaacuteria que eacute a sua e adquire ao mesmo tempo um modo de ser marcado
por uma aparecircncia de consistecircnciardquo (CASANOVA 2009 p123) Em outras palavras a
absorccedilatildeo na cotidianidade (o caraacuteter de jogado do projeto) oferece uma familiaridade ao
ser-aiacute na qual ele pode se movimentar pois oferece a confiabilidade ocircntica ao projeto de
sentido mas tambeacutem estabelece
ldquoUma relaccedilatildeo com o seu poder-ser que pode ser denominado como fuga uma vez
que a suspensatildeo [de sua irrealidade originaacuteria] promove exatamente uma
tranquilizaccedilatildeo em meio agrave supressatildeo de nadidade constitutiva de um ente marcado
pelo caraacuteter de poder-ser e o ocultamento de um tal caraacuteterrdquo (CASANOVA
2009 p123)
Em meio agrave familiaridade em que o ser-aiacute eacute jogado sua negatividade quiditativa e
seu traccedilo ontoloacutegico essencial como poder-ser satildeo obstruiacutedos agrave compreensatildeo do Dasein
em relaccedilatildeo ao seu ser Voltemos ao nosso exemplo as relaccedilotildees que a autora deste trabalho
pode exercer a partir de suas possibilidades a orientam como ser autora deste trabalho
como aquela que escreve ou ainda como aquela vinculada agrave universidade e assim por
diante Poreacutem nada poderia definir nossa existecircncia como fazem as orientaccedilotildees
cotidianas pois o Dasein que cada um de noacutes somos eacute marcado pela negatividade radical
frente a qualquer definiccedilatildeo ocircntica Como entatildeo essa fuga natildeo nos condena a reproduzir
maquinalmente e atualizar incessantemente as orientaccedilotildees cotidianas - Porque o ser-aiacute
97
mesmo jogado eacute ainda projeto e no limite de seu projeto ele pode se encontrar com seu
poder-ser mais proacuteprio como ser para a morte (das Sein zum Tod)74
Tal como as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha agrave
espera de um ato de vontade do ser-aiacute a conquista de seu ser-proacuteprio ou sua
singularizaccedilatildeo tambeacutem natildeo eacute produto de sua vontade A dinacircmica de singularizaccedilatildeo do
ser-aiacute eacute possiacutevel pela tonalidade afetiva ou o modo de encontrar-se (Befindlicheit)
fundamental da anguacutestia (Angst)
O entender (Verstehen) ou abertura compreensiva eacute sempre dispositiva na medida
em que a compreensatildeo natildeo se refere agrave capacidade ou agraves faculdades cognitivas do homem
ldquoO termo disposiccedilatildeo aponta diretamente para o modo como o ser-aiacute a cada vez se
descobre em meio a uma tal abertura Na medida em que o ser-aiacute eacute um ente
marcado essencialmente por seu caraacuteter existencial e natildeo se mostra senatildeo como
um poder ser ele natildeo pode aprender a abertura do ente na totalidade por meio de
alguma faculdade cognitiva de sua subjetividade () Befindlichkeit diz o
encontrar-se de uma certa maneirardquo (CASANOVA 2006p50)
Encontrar-se de certa maneira natildeo eacute uma espeacutecie de afeto psicoloacutegico que o ser-
aiacute projeta de dentro para fora nem uma relaccedilatildeo de fora para dentro que afeta o ser-aiacute Natildeo
eacute uma relaccedilatildeo causal Eacute uma afinaccedilatildeo (ajuste do tom) que deve ser compreendida
repousando na intenccedilatildeo primaacuteria do ser-aiacute como ser-no-mundo Como o autor explicita
ainda no sect29 ldquoO ser do estado-de-acircnimo do encontrar-se constitui existenciariamente a
abertura do Dasein para o mundordquo (HEIDEGGER 2012 p393) Eacute propositadamente que
se apela para a metaacutefora musical (ldquoafinaccedilatildeordquo) para tentar compreender esse ldquoestado de
acircnimo do encontrar-serdquo como por exemplo acontece quando uma muacutesica eacute tocada ela
afina a abertura compreensiva do ser-aiacute a um estado de acircnimo que noacutes poderiacuteamos chamar
de melancoacutelico A melancolia natildeo estaacute na muacutesica (natildeo haacute como pensar que as tonalidades
afetivas sejam propriedades de um ou outro ente na medida em que o ser de todo e
74 Aqui eacute importante considerar as palavras de Juliaacuten Mariacuteas na Conferecircncia do curso ldquoLos estilos de la
Filosofiacuteardquo Madrid 19992000 Ediccedilatildeo Jean Lauand Traduccedilatildeo Sylvio Horta ldquoa preposiccedilatildeo zu natildeo quer
dizer para mas a Isto eacute a expressatildeo sein zum Tod poderia ser traduzida por estar agrave morte (estar a
la muerte) Qual eacute a condiccedilatildeo dos homens - e das mulheres evidentemente - natildeo somente quando nos
atropela um caminhatildeo ou quando temos pneumonia dupla O homem estaacute agrave morte sempre estaacute na
possibilidade de morrer estaacute em potecircncia proacutexima de morrer estaacute exposto agrave morte e eacute isso justamente o
que quer dizer sein zum Tod estar aberto agrave morte estar nessa possibilidade proacutexima real eficazrdquo
98
qualquer ente eacute aberto em funccedilatildeo do ser-aiacute que os potildee em liberdade no interior do mundo)
como tambeacutem natildeo estaacute no Dasein (natildeo haacute nada de aderente a esse ente que venha agrave tona
sua abertura eacute sempre remetida ao mundo e ao encontro com os entes) Portanto a
melancolia como no exemplo eacute a modificaccedilatildeo da atmosfera promovida pelo proacuteprio
encontrar-se do ser-aiacute em meio aos entes
Mas por qual motivo a anguacutestia aparece em Ser e Tempo como a tonalidade afetiva
ou o modo fundamental de encontrar-se Enquanto os estados de acircnimo natildeo conforme agrave
anguacutestia constituem a abertura compreensiva do ser-aiacute para a lida e para as relaccedilotildees que
podem ser realizadas no interior do mundo em meio aos entes ldquoo diante-de-quecirc da
anguacutestia eacute o ser-no-mundo como talrdquo (HEIDEGGER 2012 p521) Na anguacutestia natildeo haacute
ente que venha ao encontro no qual o ser-aiacute possa se reportar e refugiar-se mas a si mesmo
em sua indeterminaccedilatildeo
ldquoNa anguacutestia o utilizaacutevel do mundo-ambiente e em geral o ente do-interior-do-
mundo se afundam O lsquomundorsquo jaacute nada pode oferecer nem tambeacutem o Dasein-
com com os outros A anguacutestia retira assim do Dasein a possibilidade de no
decair entender-se a partir do lsquomundorsquo e do puacuteblico ser-do-interpretado Ela
projeta o Dasein de volta naquilo por que ele se angustia seu proacuteprio poder ndashser-
no-mundo () Com o porquecirc do se angustiar a anguacutestia abre portanto o Dasein
como ser possiacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012 p525)
Na anguacutestia natildeo haacute a ldquosuspensatildeo de mundordquo como se o Dasein se retirasse dele
O que haacute eacute a suspensatildeo das orientaccedilotildees cotidianas que obliteram sua constituiccedilatildeo
primaacuteria Portanto ainda e agora radicalmente transparente como ser-no-mundo o
Dasein suspende a familiaridade em meio ao ente voltando-se a si mesmo como ser-
possiacutevel que mobiliza sentido e ldquotem mundordquo Lembremos que a necessidade da ontologia
fundamental como radicalizaccedilatildeo do gesto fenomenoloacutegico indica que o ser-aiacute mesmo
natildeo pode ser intencionado natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente e por isso seu
caraacuteter de poder-ser E se pela anguacutestia o ser-aiacute volta-se a si mesmo o que vem eacute essa
indeterminaccedilatildeo radical revelando em uacuteltima medida o ldquoabismo da falta de sentidordquo Esse
abismo natildeo leva a qualquer espeacutecie de niilismo natildeo eacute o que estaacute em jogo aqui ao
contraacuterio pois o ldquoo ser-aiacute se vecirc confrontado com o seu caraacuteter como poder-ser Dessa
confrontaccedilatildeo nasce ao mesmo tempo a possibilidade de assunccedilatildeo de si mesmo como
cuidado (Sorge)rdquo (CASANOVA 2009 p128)
99
Recuperemos por um instante os trecircs momentos constitutivos da questatildeo descritos
no sect2 de Ser e Tempo a pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2)
perguntando sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma
ontologia fundamental A ontologia fundamental como analiacutetica existenciaacuteria em seu
primeiro momento descreve as estruturas fundamentais do ser-aiacute com o propoacutesito de
chegar ao ser desse ente que compreende o sentido de ser (sect12 ao sect38) Contudo eacute
importante considerar que existe certa lsquoartificialidadersquo nesse processo de explicitaccedilatildeo das
estruturas do ser-aiacute Eacute importante manter o sentido de ldquoanaliacuteticardquo Pois o fenocircmeno
mesmo deve ser compreendido como um todo natildeo em funccedilatildeo das partes mas a partir de
sua proacutepria mostraccedilatildeo Em outras palavras a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein deve agora
ser recuperada e este ente deve ser assinalado de maneira propriamente fenomenoloacutegica
ou seja em sua totalidade enquanto fenocircmeno Eacute o que a segunda parte da analiacutetica deve
recuperar ldquoabrangendo os componentes que se interligam ndash a existencialidade a
facticidade e a quedardquo (NUNES 2012 p116)
A partir desses componentes Heidegger apresenta o sentido formal da
preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-em (-o-mundo)
como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo (HEIDEGGER
2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser (existencialidade ou
existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que foi
lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio aos
entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)
Poreacutem natildeo dissemos que o ser-aiacute eacute marcado pela negatividade quiditativa e que
existe segundo possibilidades as quais natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas na morte
como fim de todas as possibilidades Ou nas palavras de nosso autor ldquoE se a existecircncia
determina o ser do Dasein e sua essecircncia eacute constituiacuteda pelo poder-ser entatildeo o Dasein
podendo ser enquanto existir deve-ser cada vez algo de ainda natildeo sendordquo
(HEIDEGGER 2012 p645) Entatildeo essa interpretaccedilatildeo do ser do Dasein como um
fenocircmeno unitaacuterio como Sorge natildeo contradiz tal afirmaccedilatildeo Natildeo haacute qualquer
contradiccedilatildeo pois eacute exatamente
ldquoO cuidado como manifestaccedilatildeo da finitude que permite a Heidegger identificar
a morte como o chegar do Dasein ao fim () e ver nesse ente em sua totalidade
o ser para a morte() O Dasein chega pois a um fim mas que o determina desde
100
o princiacutepio como possibilidade do que viraacute a ser A morte natildeo eacute para ele portanto
o puro aniquilamento representaacutevel conforme a experiecircncia da caducidade ()
impessoal e necessaacuterio na seacuterie de causas naturais () Ontologicamente falando
o homem deixa de viver porque morre e morre porque lhe eacute inerente o morrer
enquanto poder-ser de cada qual () intrasferiacutevel e irrepresentaacutevel na relaccedilatildeo
com o ser a que a existecircncia estaacute concernidardquo (NUNES 2012 pp 117-119)
Como poder-ser (existenciariedade) o ser-aiacute adianta-se em relaccedilatildeo agrave sua
possibilidade mais proacutepria Seu ser-proacuteprio insuperaacutevel como ser-para-a-morte (porque
intransferiacutevel a qualquer outro) revela-se como a possibilidade para a impossibilidade
ou seja impossibilidade de sua existecircncia lanccedilada (facticidade) de ter um lsquoaiacutersquo sendo o
lsquoaiacutersquo a compreensatildeo dos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)
Mas eacute importante considerar que a preocupaccedilatildeo ou o cuidado natildeo eacute a totalidade alcanccedilada
por aquele que chegou agrave singularizaccedilatildeo pela tonalidade fundamental da anguacutestia ela eacute a
constituiccedilatildeo ontoloacutegica de todo e qualquer Dasein O que a singularizaccedilatildeo promove
como possibilidade aberta pela anguacutestia eacute a transparecircncia desse ser-proacuteprio cada vez
obliterado na cotidianidade Na cotidianidade a morte eacute vista como um ldquomero deixar de
viverrdquo transferido a cada vez ao outro que morreu ldquodessa vezrdquo75 em um tratamento
radicalmente impessoal pela indiferenccedila frente a esse poder-ser proacuteprio e irrevogaacutevel
A morte como fim de todas as possibilidades enquanto poder-ser extremo eacute
indeterminada mesmo que seja a certeza mais proacutepria Pois natildeo se chega agrave morte
pensando nela o que estaacute em jogo eacute a responsabilidade do ser-aiacute frente a essa
transparecircncia a assunccedilatildeo pelo ser-aiacute de sua nulidade que atravessando-o (sem qualquer
conteuacutedo prescritivo do que deve-se ou natildeo fazer) pode orientar o caminho de sua
existecircncia Existecircncia ainda faacutetica ainda em meio aos entes de um mundo sedimentado
Em outras palavras caminho que reconduz o ser-aiacute ao ldquoaiacuterdquo que ele tem que ser e que ele
radicalmente eacute O que a singularizaccedilatildeo aponta eacute ldquoLeben ist Tod und Tod ist auch ein
75 Heidegger indica a novela de LN Tolstoacutei ldquoA morte de Ivan Ilitchrdquo para ilustrar o fenocircmeno da morte
tratada impessoalmente e o abalo dessa impessoalidade (Cf HEIDEGGER 2012 p699) Poderiacuteamos
tambeacutem indicar a partir de nossa cotidianidade exemplos do tratamento impessoal acerca da morte as
estatiacutesticas dos ldquomortos nas estradasrdquo a notiacutecia da morte de alguma personalidade puacuteblica e ainda - para
natildeo confundirmos esse fenocircmeno com um mero ldquonoticiarrdquorsquo a morte - a maneira mesma que tratamos a
morte de algueacutem proacuteximo pois mesmo tomados pelo pesar o que constatamos eacute a ldquoperdardquo do outro Seria
possiacutevel restaurar a ponte mesmo que indicativa que Heidegger natildeo admite entre o fenocircmeno impessoal
da morte e nosso ser-proacuteprio como ser-para-a-morte Talvez algo acessiacutevel pela linguagem poeacutetica Aqui
eacute oportuno considerar os belos versos do poema Na morte de Henriqueta Lisboa ldquoNa morte nos
encontramos Sim na morte Tempo de consoacutercio e de viacutenculordquo In Flor da Morte Belo Horizonte Ed
UFMG 2004
101
Leben76rdquo Nessa indicaccedilatildeo ldquoO si-mesmo que como tal tem de pocircr o fundamento de si
mesmo nunca pode se assenhorar desse fundamento e tem de existindo assumir no
entanto o ser-fundamento Ser o proacuteprio fundamento dejectado eacute o poder-ser em jogo na
preocupaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p779) Eacute pela assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo
(Sorge) que o ser-aiacute pode compreender que os sentidos mobilizados em sua existecircncia satildeo
existenciariamente remetidos ao seu ser mesmo ente histoacuterico e finito radicalmente
marcado pela nulidade essencial Isso posto recuperamos uma vez mais agora com toda
a importacircncia as palavras de nosso autor ldquoo lsquofundamentorsquo soacute eacute acessiacutevel como sentido
mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta-de-sentidordquo (HEIDEGGER 2012 p431)
A transparecircncia de seu ser-proacuteprio ao ser-aiacute eacute assumir ldquoser como fundamento
dejectado da nulidade Mas a assunccedilatildeo da dejecccedilatildeo significa para o Dasein ser
propriamente como ele a cada vez jaacute erardquo (HEIDEGGGER 2012 p887) Em outras
palavras a assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute para o ser-aiacute reconhecer que ele
eacute existecircncia radicalmente faacutetica (Faktizitaumlt) ainda em meio aos entes de um mundo
sedimentado Desse modo ldquoentender o seu ser ainda e sempre ldquoem seu essencial ser-
culpadordquo (HEIDEGGER 2012 p887) A singularizaccedilatildeo do ser-aiacute natildeo promove um
distanciamento da vida cotidiana natildeo faz com que ele se retire da queda mas que a
assuma e assim assuma ldquoa responsabilidade pela necessidade de pagar uma diacutevida que
cada ser-aiacute tem para consigo mesmordquo (CASANOVA 2009 p136) Diacutevida de assumir
seu ser como existecircncia como projeto-jogado e como poder-ser proacuteprio marcado pela
possibilidade extrema da morte Essa culpa do ser-aiacute eacute a assunccedilatildeo de que ele jaacute sempre
desonerou seu ser ele jaacute sempre deixou seu ser sob tutela do mundo e das orientaccedilotildees
cotidianas - por sua condiccedilatildeo de soacute poder-ser a partir da absorccedilatildeo imediata no mundo
Essa culpa natildeo eacute a mesma das concepccedilotildees cristatildes Em Pascal por exemplo a culpa eacute
consequecircncia da perda de nossa primeira natureza em funccedilatildeo do pecado original77 Para
Heidegger a culpa eacute consequecircncia do fato de natildeo termos qualquer natureza Natildeo haacute como
se retirar dessa condiccedilatildeo eis nossa culpa essencial e nossa queda irremediaacutevel
76 ldquoA vida eacute morte e a morte eacute tambeacutem uma vidardquo HOumlLDERLIN Friedrich In lieblicher Blaumlue - Disponiacutevel
em httpswwwhsaugsburgde~harschgermanicaChronologie19JhHoelderlinhoe_0801html Acesso
em 21 marccedilo 2016 77 Cf por exemplo os aforismos 131 e 616 de Pascal nos Penseacutees Ediccedilatildeo e organizaccedilatildeo Lafumaacute
102
Mas se chegamos agrave totalidade originaacuteria do todo-estrutural do ser-aiacute ou em outras
palavras agrave assinalado constituiccedilatildeo propriamente fenomenoloacutegica do ser-aiacute como
preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute necessaacuterio considerar o sentido ontoloacutegico desse fenocircmeno
Lembramos mais uma vez o que eacute ldquosentidordquo para Heidegger ldquoSentido eacute aquilo em que a
entendibilidade de algo se manteacutemrdquo (2012 p429) Se o ser-aiacute pode ser indicado em sua
totalidade fenomecircnica (ainda que radicalmente diverso dos entes do interior do mundo)
eacute necessaacuterio como expresso no sect65 perguntar ldquoQue possibilita o ser do Dasein e assim
sua existecircncia factual (faktische)
O sentido de ser do Dasein como Sorge a compreensatildeo de sua nulidade essencial
a partir do fenocircmeno unitaacuterio de seu ser aponta para aquilo que pode sustentaacute-lo ldquoA
temporalidade descobre-se como o sentido da preocupaccedilatildeo proacutepriardquo (HEIDEGGER
2012 p889)
Na continuaccedilatildeo do sect65 o autor descreve como a preocupaccedilatildeo reside na
temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-
em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo
(HEIDEGGER 2012 p891) Futuro (poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente
(presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees temporais como as que tomamos diariamente mas
o caraacuteter essencial da existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre
adiantado (futuro) em relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza
as possibilidades na facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva da
proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica a cada vez presente na qual nos orientamos inicialmente em
nossos comportamentos) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no
presente esse passado em seus comportamentos e projetos E como adverte o autor
ldquoOs momentos da preocupaccedilatildeo natildeo se amontoam como a temporalidade ela
mesma natildeo vai tambeacutem lsquocom o temporsquo se compondo de futuro ser-do-sido e
presente A temporalidade natildeo lsquoeacutersquo em geral nenhum ente Ela natildeo eacute mas se
temporalizardquo (HEIDEGGER 2012 p893)
Ou seja a temporalidade acontece na existecircncia do ser-aiacute na unidade do
fenocircmeno que se mostrou como preocupaccedilatildeo ou cuidado (Sorge) E ainda acontece jaacute no
que o ser-aiacute entende (Verstehen) como o sentido ontoloacutegico desse acontecimento mesmo
da compreensatildeo Por isso ainda no iniacutecio desse toacutepico dissemos que a constituiccedilatildeo aberta
103
e remetida ao mundo (ao seu ldquoaiacuterdquo) do ser-aiacute eacute dada como acontecimento compreensivo
pois em seu sentido ontoloacutegico eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) que se temporaliza78
Assim finalmente chegamos agrave dupla abertura de sentido em Ser e Tempo a que
chamamos de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo a abertura compreensiva do ser-aiacute
remetida ao mundo e o sentido de ser do ser-aiacute a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) O
caraacuteter fundamental dessa estrutura se daacute pelo fato que eacute a partir dela que o ser-aiacute pode
conceder significaccedilotildees e por isso a primeira estrutura do que pode tornar manifesto o
fenocircmeno da linguagem Agora eacute necessaacuterio descrever a relaccedilatildeo entre mundo e
significatividade ainda como parte dessa primeira estrutura para que alcancemos a
segunda estrutura o fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) e a partir dele agrave linguagem
III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)
No toacutepico anterior apresentamos a constituiccedilatildeo aberta do ser-aiacute lanccedilada e
remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo Mas o que constitui algo assim como mundo O que
afinal quer dizer ldquomundordquo (Welt) Nesse sentido precisamos retomar a descriccedilatildeo
realizada anteriormente acerca da referecircncia e da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) Essa
retomada natildeo significa prolixidade mas consequecircncia inevitaacutevel da ligaccedilatildeo essencial
entre ser-aiacute e mundo E se antes a descriccedilatildeo foi explicitada para compreendermos a
abertura de sentido em funccedilatildeo do ser-aiacute agora seraacute exposta para compreendermos o
proacuteprio ldquoaiacuterdquo
Sem pressupor mundo como ente ou como espaccedilo a pesquisa fenomenoloacutegica
aproximou-se dos campos de mostraccedilatildeo de algo como lsquomundorsquo escapando de qualquer
preacutevia teorizaccedilatildeo Nessa direccedilatildeo vimos que algo como lsquomundorsquo se daacute inicialmente a
partir da abertura primaacuteria de sentido promovida pelo entender ou compreensatildeo
78 Como indicamos (nota 66) haacute uma questatildeo natildeo respondida em Ser e Tempo a temporalidade (Zeitlichkeit)
estaria afinal assentada no tempo histoacuterico da abertura Questatildeo expressa na uacuteltima linha daquela obra ldquoO
tempo (Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Essa questatildeo
aponta para o limite da obra de 1927 na medida em que o sentido de ser remetido e em funccedilatildeo de um ente
especiacutefico mesmo que privilegiado apresenta seus limites Natildeo aprofundaremos esse problema Nesse
sentido conferir inicialmente HEIDEGGER M Os problemas fundamentais da fenomenologia Trad
Marco Antocircnio Casanova Petroacutepolis RJ Vozes 2012 ndash Parte II (pp331-478) Conferir tambeacutem
CASANOVA (2009 pp 140-145) NUNES (2012 pp200-220) e STEIN (2001 pp297-309)
104
(Verstehen) Esse existenciaacuterio primaacuterio acontece sempre como interpretaccedilatildeo
(Auslegung) que jaacute potildee em visatildeo o que entende
A partir da lida praacutetica e natildeo teoacuterica que o ser-aiacute trava inicialmente com os entes
intramundanos (sect15) Heidegger chega a noccedilatildeo de mundo circundante ou mundo-
ambiente (Umwelt) Poreacutem a descriccedilatildeo do uso dos utensiacutelios (Zeug) em um mundo-
ambiente (Umwelt) eacute insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica
de todo ente em geral Assim conforme o sect 17 Heidegger descreve o fenocircmeno da
referecircncia a partir da descriccedilatildeo do sinal enquanto utensiacutelio que tem em sua serventia
especiacutefica o mostrar e ao fazecirc-lo conduz a compreensatildeo da instrumentalidade ou
utilizabilidade (Zuhandenheit) de todo e qualquer ente A relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia
explicita o fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua
finalidade na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal
enquanto instrumento nos mostra o mundo-circundante (Umwelt) e potildee em relevo o
caraacuteter da referecircncia que natildeo deve ser confundido com o proacuteprio sinal pois eacute a estrutura
ontoloacutegica do manual e fundamento constitutivo da mundidade como rede referencial na
qual o Dasein jaacute se encontra inserido na abertura primaacuteria remetida ao mundo na lida
praacutetica
O ldquomostrarrdquo do sinal tal como o ldquomartelarrdquo do martelo ou a emprego de todo e
qualquer ente natildeo satildeo propriedades essenciais presentes nos lsquoobjetosrsquo apreendidas pelo
ser-aiacute mas satildeo trazidas agrave luz na e pela estrutura da remissatildeo a partir do trato praacutetico E
ldquoser-remetido-ardquo como constituiccedilatildeo do utilizaacutevel eacute em uacuteltima medida ldquoconjuntar-se agraverdquo
nas palavras de Heidegger
ldquoConjuntaccedilatildeo eacute o ser do interior-do-mundo em relaccedilatildeo ao qual esse ente jaacute eacute e
de pronto cada vez posto-em-liberdade () Isto de que ele tenha uma
conjuntaccedilatildeo comjunto eacute a determinaccedilatildeo ontoloacutegica do ser desse ente e natildeo um
enunciado ocircntico sobre o enterdquo (HEIDEGGER 2012 p251)
Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo circundante (Umwelt)
o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a complexa rede de
remissotildees referenciais e revelando a totalidade conjuntural ou conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)
A totalidade conjuntural se mostra anterior a qualquer determinaccedilatildeo particular dos entes
intramundanos - uma vez que eacute a conjuntura mesma que determinaraacute os usos possiacuteveis a
partir da conformidade dos entes nela inseridos- revelando que o utensiacutelio em si mesmo
105
e em uacuteltima medida todo e qualquer ente no interior do mundo natildeo possui qualquer
determinaccedilatildeo essencial mas a recebe a partir do campo de uso da conjuntura na qual estaacute
inserido Como a partir daiacute se chega entatildeo agrave noccedilatildeo de algo como ldquomundordquo A conjuntura
como conformaccedilatildeo de todo e qualquer ente eacute dada em funccedilatildeo do que Heidegger chama
de significatividade (Bedeutsamkeit)
ldquoAo se manter na familiaridade com a abertura das relaccedilotildees o entender as potildee
diante de si como aquilo em que seu remeter se move O entender deixa-se
remeter nestas relaccedilotildees e por elas mesmas O caraacuteter relacional dessas relaccedilotildees
do remeter noacutes o aprendemos como significar Na familiaridade com essas
relaccedilotildees o Dasein lsquosignificarsquo a si mesmo daacute-se a entender originariamente seu
ser e poder-ser relativamente a seu ser-no-mundo [] O todo relacional desse
significar noacutes o denominamos significatividade Ela eacute o que constitui a estrutura
do mundordquo (HEIDEGGER2012p261)
Essa passagem traz o elemento crucial agrave nossa investigaccedilatildeo a significatividade
como a condiccedilatildeo mesma ou melhor a proacutepria lsquointeligibilidadersquo do mundo natildeo como
arcabouccedilo teoacuterico mas como acircmbito da interpretaccedilatildeo anterior a qualquer definiccedilatildeo
predicativa do ente A totalidade conjuntural que conforma os entes intramundanos
determina-os significativamente em seu ldquocomordquo ou seja os faz ver e aparecer como ente
como algo no interior da abertura de sentido do proacuteprio mundo Isto quer dizer que a
conjuntaccedilatildeo deixa ver o ente em seu ldquoser enterdquo como algo que lsquoeacutersquo a partir de um horizonte
ldquode tal maneira que ele se torna primeiramente acessiacutevel como ente do-interior-do-
mundordquo (HEIDEGGER 2012p255)
A abertura ou entendimento preacutevio no qual o ser-aiacute histoacuterico e finito faz o ente
vir ao encontro na conjuntura e o mobiliza conforme seu foco existencial mostra o
fenocircmeno do mundo e isso como jaacute apresentamos a partir da familiaridade em que o
Dasein se movimenta pelo seu caraacuteter de jogado O fenocircmeno do mundo eacute explicitado
por Heidegger na seguinte passagem
ldquoO Dasein se remete jaacute cada vez e sempre a partir de um em-vista-de-quecirc ao
com-quecirc de uma conjutaccedilatildeo isto eacute na medida em que eacute ele deixa jaacute cada vez e
sempre o ente vir-de-encontro como utilizaacutevel Aquilo-em-que o Dasein
previamente se entende no modus do remeter-se eacute aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do
preacutevio fazer o ente vir-de-encontro O em-quecirc do entender que se-remete como
aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do fazer o ente vir-de-encontro no modo-de-ser da
conjuntaccedilatildeo eacute o fenocircmeno do mundo E a estrutura daquilo a que o Dasein se
remete eacute o que constitui a mundidade do mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 257)
106
Mas essa passagem tambeacutem mostra uma diferenccedila que natildeo pode ser ignorada o
fenocircmeno do mundo e a mundidade (Weltlichkeit) do mundo O primeiro diz respeito agrave
mobilizaccedilatildeo de uma determinada conjuntura jaacute familiar a partir dos focos existenciais do
ser-aiacute possiacuteveis em um horizonte descerrado (aspecto ocircntico) a segunda indica o aspecto
estrutural ontoloacutegico do mundo Por isto a significatividade explicitada inicialmente
pelo fenocircmeno da referecircncia e trazida agrave tona pela noccedilatildeo de conjuntaccedilatildeo eacute chamada de
estrutura formal da mundidade pois natildeo diz respeito a uma estrutura deste ou daquele
ldquomundordquo especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica de algo como ldquomundordquo
A significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados
(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Quando um ente se mostra
na e pela ocupaccedilatildeo (Besorgen) vem agrave conjuntaccedilatildeo no momento mesmo do trato manual
e assim ele eacute posto em liberdade em seu ser como utilizaacutevel (Zuhandenes) e natildeo eacute- como
compreendeu a tradiccedilatildeo assentada na noccedilatildeo sujeito-objeto ndash uma lsquoresrsquo uma coisa um
ldquomaterial disponiacutevel no mundordquo Ou seja ele natildeo se mostra primariamente como um
subsistente (Vorhandener) jaacute que ldquofamiliaridade com o mundo natildeo exige
necessariamente uma transparecircncia teoacuterica das relaccedilotildees do mundo que constituem o
mundo como mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 259)
Para Heidegger (ao menos em Ser e Tempo) os entes no interior do mundo (entes
intramundanos) natildeo conforme ao modo de ser do Dasein satildeo de dois modos ou como
duas categorias como Zuhanden (agrave matildeo) que se mostra de modo originaacuterio no trato
praacutetico e como Vorhanden (ente simplesmente dado ou subsistente) que aparece de
modo derivado agrave mostraccedilatildeo praacutetica Trazendo agrave tona a gecircnese praacutetica do significado
Vigo (2012) chama a atenccedilatildeo acerca do tratamento pouco extensivo agraves categorias que
Heidegger oferece em 1927
ldquoHeidegger oferece tatildeo somente um tratamento muito fragmentaacuterio desses
aspectos que jaacute foi explicado pelo fato expressamente declarado do caraacuteter
preparatoacuterio em SZ Ela natildeo conteacutem mesmo remotamente a totalidade do que
deveria conter um modelo ontoloacutegico de aspiraccedilatildeo integral que abarca as
diferentes ontologias regionais e apresentar o repertoacuterio das categorias mais
relevantes para cada uma delas mostrando aleacutem disso as correspondentes
relaccedilotildees de dependecircncia etcrdquo (p113)
O caraacuteter preparatoacuterio e ainda formal de Ser e Tempo o qual apenas estabelece a
diferenccedila categorial entre Zuhanden e Vorhanden parece querer marcar uma diferenccedila
107
mais fundamental ainda vinculada agraves primeiras preleccedilotildees da deacutecada de 1920 nas quais a
derivaccedilatildeo do teoreacutetico era atribuiacuteda a uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Em Ser e
Tempo ldquoa diferenccedila entre o conhecimento matemaacutetico e o conhecimento filosoacuteficordquo ganha
um contorno definitivo como diferenccedila ldquoentre uma concepccedilatildeo de loacutegos provinda da loacutegica
e outra que adveacutem do conceito de aleacutetheiardquo (STEFANI 2009 p51)
Dessa forma qualquer ente tomado de forma teoacuterica com um significado
determinado eacute um modo de acesso ou um visar o ente de modo derivado pelo ser-aiacute (natildeo
podemos esquecer que a mobilizaccedilatildeo dos entes eacute realizada em funccedilatildeo dos focos
existenciais do Dasein o que foi chamado de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo) Em
outras palavras como a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que significado
(Bedeutung) mas sua condiccedilatildeo de possibilidade qualquer teoria ou modo de tratamento
teoacuterico de um ente subsistente (Vorhandenes) eacute tributaacuterio da sedimentaccedilatildeo de um mundo
da sedimentaccedilatildeo de uma totalidade conjuntural que vem ao encontro do ser-aiacute
originariamente na ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhandenes) Assim ldquoo mundo faacutetico
onde se desdobra a existecircncia do ser-aiacute eacute constituiacutedo pela solidificaccedilatildeo dos significados
dos entes intramundanos e pela sedimentaccedilatildeo dos sentidos em virtude dos quais o ser-aiacute
desdobra o poder-ser que ele eacuterdquo (CABRAL 2015 p94) O ser-aiacute como projeto jogado
mobiliza sentidos e atualiza essas significaccedilotildees calcificadas de um mundo histoacuterico Algo
como um conceito uma definiccedilatildeo ou um significado do ente eacute possiacutevel por essa abertura
de sentido interpretativa preacutevia e sedimentada articulada pela significatividade e dada de
maneira preacute-linguiacutestica
Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez
familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o
Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como
lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo
(HEIDEGGER 2012p261 grifo nosso)
Prestemos atenccedilatildeo agrave uacuteltima consideraccedilatildeo dessa passagem significaccedilotildees natildeo satildeo
palavras elas fundam palavras Lembremos a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica o significado
natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua mostraccedilatildeo
Vimos no capiacutetulo anterior que o loacutegos do fenocircmeno para Heidegger eacute loacutegos apofacircntico
(λόγος αποφατικός) o mostrar do fenocircmeno a respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que
se mostra como algo de maneira indiferenciada natildeo determinada E ainda esse mostrar
do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes sempre em meio a
108
um campo interpretativo Ou seja agora podemos dizer eacute o mostrar o ente como ente
(algo como algo) no interior do mundo Na abertura que entende (Verstehen) remetida ao
mundo originariamente na lida praacutetica algo vem ao encontro e na medida que se mostra
jaacute se mostra interpretado (Auslegung) como algo do interior do mundo Mundo
compreendido em seu aspecto ontoloacutegico natildeo como ente espaccedilo ou soma de coisas (res)
disponiacuteveis agrave nossa apreensatildeo Mas abertura compreensiva-interpretativa do ser-aiacute
estruturalmente articulada em sua totalidade- enquanto ldquomundordquo - pela significatividade
E eacute dessa articulaccedilatildeo que podem vir significados e dos significados palavras assim
ldquoPodemos dizer que o que estaacute em jogo na discussatildeo de Heidegger com a
concepccedilatildeo husserliana natildeo eacute outra coisa em definitivo que a questatildeo relativa ao
modo fenomenoloacutegico adequado de considerar a experiecircncia antepredicativa
como tal Trata-se de uma questatildeo metodicamente fundamental justamente na
medida em que concerne de modo direto a adequada determinaccedilatildeo do terminus a
quo79 para uma possiacutevel explicaccedilatildeo da origem do enunciado predicativo como
modo derivado e fundado da interpretaccedilatildeo Atado aos preconceitod da ontologia
tradicional que se orienta a partir da estrutura do loacutegos apofatikoacutes considerando
o mesmo como algo dado lsquopresente agrave vistarsquo (Vorhandener) Husserl faz
basicamente o mesmo que jaacute havia feito a teoria tradicional das categorias desde
Aristoacuteteles em diante a saber retroprojetar a estrutura do enunciado da forma S-
P para o acircmbito dos lsquoobjetosrsquo que natildeo eacute outro que dos entes intramundanos
considerados como dados meramente lsquopresente agrave vistarsquo (VIGO 2012 p96)
Se a discussatildeo de Heidegger com a concepccedilatildeo husserliana se torna patente eacute
importante destacar tambeacutem a discussatildeo com a concepccedilatildeo diltheyniana - tendo em vista
o esclarecimento da noccedilatildeo de ldquosignificatividaderdquo Vimos que a categoria do significado
como apresentada por Dilthey possui um aspecto decisivo a relaccedilatildeo entre vivecircncia e
compreensatildeo eacute o ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da hermenecircutica pois traz em si a
categoria do significado como o nexo da vivecircncia com a realidade concreta sem se
apoiar em qualquer elemento transcendente agrave proacutepria experiecircncia vivida Contudo como
observa Heidegger no sect43 de Ser e Tempo o viacutenculo de Dilthey agrave teoria do conhecimento
da eacutepoca compreendendo a vivecircncia como vivecircncia de consciecircncia ou ldquoa relaccedilatildeo-de-ser
da consciecircncia com o real ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p583) faz com que a lsquovidarsquo
seja apresentada de modo indiferenciado sem a compreensatildeo de sua sustentaccedilatildeo
ontoloacutegica jaacute que a vivecircncia particular da consciecircncia como vida conexa e estruturante
79Termo a partir do qual Ponto de partida
109
eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu projeto hermenecircutico Mas Heidegger
reconhece ldquoDilthey natildeo soacute acentua que a realidade nunca eacute dada de modo primaacuterio no
pensamento e na apreensatildeo mas indica sobretudo que o conhecer ele mesmo natildeo
consiste em julgar e que saber eacute uma lsquorelaccedilatildeo de serrsquordquo (HEIDEGGER 2012 p583)
Tentando tornar mais claro mesmo que para Dilthey o mundo natildeo apareccedila como um
conjunto de coisas prontas agrave apreensatildeo da razatildeo humana mais ainda que as coisas
enquanto res natildeo sejam tomadas como a realidade (Realitaumlt) o fato de o pressuposto da
vivecircncia provir da consciecircncia obscurece o fundamento ontoloacutegico de algo como ldquovidardquo
Por isso escapou a Dilthey a relaccedilatildeo primaacuteria entre ser-aiacute como ser-no-mundo em sua
radicalidade ontoloacutegica como relaccedilatildeo fundante de toda e qualquer compreensatildeo de ser
Talvez por esse motivo como observa DASTUR (2007)
ldquoNo trabalho publicado em 1927 Heidegger natildeo usa frequentemente termo
hermenecircutica que aparece apenas trecircs ou quatro vezes () - no paraacutegrafo 7 da
introduccedilatildeo quando eacute para definir a fenomenologia no paraacutegrafo 33 que trata da
enunciaccedilatildeo e no paraacutegrafo 45 que define o iniacutecio da segunda parte da tarefa de
uma interpretaccedilatildeo do Dasein - enquanto o termo Auslegung que significa tanto
interpretaccedilatildeo e explicaccedilatildeo eacute muito mais frequentemente utilizadordquo (p74)
E quando Heidegger retoma o termo ldquohermenecircuticardquo no sect33 ele ressalta o caraacuteter
existenciaacuterio de tal interpretaccedilatildeo
ldquoA enunciaccedilatildeo natildeo pode negar sua origem ontoloacutegica a partir da interpretaccedilatildeo
que-entende O ldquocomordquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor entendedor
(ἑρμηνεία) noacutes os chamamos lsquocomorsquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio para
diferenciaacute-lo do ldquocomordquo apofacircntico da enunciaccedilatildeo (Aussage)rdquo (HEIDEGGER
2012 p 447)
O que eacute essa diferenccedila entre o ldquocomordquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio e o ldquocomordquo
apofacircntico da enunciaccedilatildeo Eacute a diferenccedila entre Auslegung (interpretaccedilatildeo) e Aussage
(enunciado) A diferenccedila consiste no fato de que a originariedade da mostraccedilatildeo dos entes
em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) - pela
significatividade (Bedeutsamkeit) que a articula - e sua derivaccedilatildeo como ente
simplesmente dado (Vorhanden) ndash fazendo emergir algo como significado (Bedeutung)-
ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) em sua ligaccedilatildeo
derivativa agrave interpretaccedilatildeo (Auslegung) De outra maneira como a estrutura interpretativa
aberta pela compreensatildeo ou entendimento (Verstehen) transforma-se em proposiccedilatildeo
Na introduccedilatildeo desse capiacutetulo escrevemos que na fenomenologia heideggeriana veio agrave
110
tona o aspecto ontoloacutegico do conteuacutedo significativo Essa fenomenologia como ontologia
acabou por revelar de um lado a historicidade de todo e qualquer significado que pudesse
vir agrave palavra por outro que o campo de sentido no qual algo pode manter-se em seu
significado tambeacutem era histoacuterico Eacute necessaacuterio portanto a partir de agora mostrar como
o significado aberto pela compressatildeo-interpretativa (algo como algo) ganha sua forma
expressa inicialmente a partir do fenocircmeno da proposiccedilatildeo e a partir dessa derivaccedilatildeo
podemos ter acesso ao fenocircmeno da linguagem
II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da
interpretaccedilatildeo (Auslegung)
A anaacutelise da enunciaccedilatildeo (Aussage) conforme apresenta por Heidegger no sect33 de
Ser e Tempo constitui a segunda estrutura descrita na obra a qual nos permite
compreender o fenocircmeno da linguagem (Sprache) como a manifestaccedilatildeo uacuteltima de um
horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo dos entes previamente
articulada O fenocircmeno da linguagem aparece como resultado dos trecircs objetivos de sua
investigaccedilatildeo neste momento do tratado os quais listamos a seguir
1) Como a estrutura compreensiva-interpretativa (apresentada no toacutepico anterior)
sofre uma modificaccedilatildeo
2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos
3) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade
Como antecipamos e a partir da finalidade da anaacutelise acima apresentada
podemos dizer que o que estaacute em jogo nesse momento da analiacutetica eacute compreender que ldquoa
siacutentese predicativa fundamenta-se numa daccedilatildeo originaacuteria e eacute em funccedilatildeo da experiecircncia
antepredicativa que se opera a atribuiccedilatildeo do predicado ao sujeitordquo (NUNES 2012 p165)
Em outras palavras como a estrutura interpretativa aberta pela compressatildeo (algo como
algo) transforma-se em proposiccedilatildeo (Sujeito-predicado) E essa derivaccedilatildeo eacute elencada nas
trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo (Aussage)
1) Mostraccedilatildeo (Aufzeigung)
2) Predicaccedilatildeo (Praumldikation)
111
3) Comunicaccedilatildeo (Mitteilung)
Essas significaccedilotildees do termo Aussage ainda segundo Heidegger possuem caraacuteter
analiacutetico pois satildeo ldquotiradas do fenocircmeno que ela designa as quais delimitam em sua
conexatildeo e unidade a completa estrutura da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p437)
Essa unidade estaacute assentada nas condiccedilotildees preacutevias tendo em vista que ldquoa enunciaccedilatildeo natildeo
eacute um comportamento-que-flutua-no-ar e que possa por si mesmo abrir o ente
primariamente mas se comporta jaacute sempre sobre a base de ser-no-mundordquo
(HEIDEGGER 2012 p443)
Como vimos no capiacutetulo anterior as condiccedilotildees preacutevias conforme apresentadas no
Relatoacuterio Natorp satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a direccedilatildeo da
visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a ldquovisibilidaderdquo (Sichtweite) De
modo mais claro em (1) temos o acircmbito da realidade dada em uma preacutevia abertura
temporal de sentido em (2) temos a direccedilatildeo que jaacute determinou algo ldquocomo-algordquo (Als-
was) e jaacute ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu lugar
significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de toda
possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o como
do aparecer dos entes em seu ser seu significado e as possibilidades de comportamentos
do ser-aiacute eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto
(1) e jaacute interpretado (2) e por isso pode mover-se em pretensotildees de objetividade e
definiccedilatildeo Essas condiccedilotildees estatildeo articuladas com a interpretaccedilatildeo de Heidegger dos termos
respectivamente noucircs phroacutenesis e sophiacutea e assentadas na noccedilatildeo de verdade como
desvelamento (ἀλήθεια) Em Ser e Tempo Heidegger reelabora essas interpretaccedilotildees com
uma terminologia proacutepria respectivamente Vorhabe (ter-preacutevio) Vorsicht (ver-preacutevio)
e Vorgriff (conceito-preacutevio) e esse tripeacute
ldquoForma o arcabouccedilo projetivo do compreender que nos abre os entes ao sabor
dos nexos da referecircncia na conduta do trato atraveacutes dos quais se estende a rede
de significatividade () Eacute nessa conduta e portanto na experiecircncia
antepredicativa como a praacutexis maciccedila do mundo-da-vida em seu imediato e
frequente transcorrer cotidiano que Heidegger coloca a nascente do sentidordquo
(NUNES 2012 p168)
Como essas condiccedilotildees preacutevias devem ser compreendidas em vista do caraacuteter de
projeto-jogado do ser-aiacute natildeo eacute gratuita a designaccedilatildeo da abertura do ser-aiacute ao mundo como
112
ldquoabertura de sentido fundamentalrdquo A abertura compreensiva fundamental descerra o
poder-ser do ser-aiacute como projeto mas ao projetar-se ele eacute lanccedilado num ldquoaiacuterdquo histoacuterico O
seu poder-ser se lanccedila num campo de jogo jaacute descerrado interpretado e articulado por
essas condiccedilotildees E assim essas condiccedilotildees preacutevias ldquoreconduz[emcc]-nos ao ciacuterculo
hermenecircutico ontoloacutegico-histoacuterico que circunscreve por forccedila da finitude que faz do
homem um Daseinrdquo (NUNES 2012 p168) No que me lanccedilo ao mundo sou e o mundo
eacute como ele eacute como escreve Fernando Pessoa (2006 p177)
ldquoCreio no mundo como um malmequer
Porque o vejo Mas natildeo penso nele
Porque pensar eacute natildeo compreender
O Mundo natildeo se faz para pensarmos nele
(Pensar eacute estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordordquo
Talvez esses versos possam iluminar o que estaacute em questatildeo nesse paraacutegrafo
Poderiacuteamos nos questionar por qual motivo Heidegger natildeo passa da interpretaccedilatildeo
(Auslegung) ao discurso (Rede) pois este como veremos no proacuteximo capiacutetulo remete agrave
fala como fundamento ontoloacutegico da linguagem O sect 33 se refere a uma discussatildeo muito
especiacutefica mas que tem um lugar privilegiado na ontologia fundamental e estaacute
diretamente relacionada ao sect44 da mesma obra A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo de verdade
da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca que era a dos
neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa concepccedilatildeo
tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da verdade em
direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave proposiccedilatildeo Com
isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa medida
condicionando a ontologia agrave loacutegica
Courtine (1996) elabora essa problemaacutetica com clareza A partir de trecircs etapas
ele nos apresenta o caminho que conduz nosso autor da loacutegica agrave liacutengua A primeira etapa
diz respeito aos trabalhos de juventude de Heidegger ldquoainda marcados pela problemaacutetica
da validade como primeira elucidaccedilatildeo do ser no juiacutezordquo (COURTINE 1996 p14) Jaacute a
segunda etapa que Courtine denomina destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica consiste em regressar
da interpretaccedilatildeo ldquoescolarrdquo da loacutegica aristoteacutelica a uma problematizaccedilatildeo mais original do
loacutegos compreendido como modo de desvelamento Eacute nessa segunda etapa que estaacute
113
inserido o trabalho de Ser e Tempo sendo a passagem da primeira agrave segunda etapa
marcada pelo curso de 1925-1926 Logik die Frage nach der Wahrheit (GA21) A
terceira seria ainda uma etapa de destruiccedilatildeo mas de modo diferente marcada pelo que
Courtine denomina desorientaccedilatildeo ou ldquoabalordquo (erschuumlttern) e encontra sua imagem
expliacutecita no texto de 1935 ldquoIntroduccedilatildeo agrave metafiacutesicardquo
Portanto na primeira etapa a loacutegica para o jovem Heidegger eacute ainda apreendida
como loacutegica do ldquosentidordquo ou da ldquovalidaderdquo
ldquoA ideacuteia segundo a qual a Geltung a validade define o modo de ser proacuteprio das
proposiccedilotildees e das verdades vem como se sabe da loacutegica de Lotze Numa nota
das Neuere Forschungen uumlber Logik (GA I p23) Heidegger indicava a respeito
da Loacutegica de Lotze que acabava de ser reeditada sua loacutegica deve sempre ser
considerada como a obra fundamental da loacutegica moderna () E Heidegger que
ateacute aqui se exprimia como disciacutepulo fiel de Husserl terminava por acrescentar
esta questatildeo rica em posteridade para seu proacuteprio pensamento ldquoMas logo se
coloca a questatildeo o que eacute ndash sentidordquo (GA I p170)rdquo (COURTINE 1996 pp16-
17)
Vimos como o sentido (Sinn) em Ser e Tempo eacute apresentado sob uma perspectiva
radical relacionado agrave problematizaccedilatildeo mais original do lsquoloacutegosrsquo como mostraccedilatildeo do
fenocircmeno em seu ser e agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento Essa mudanccedila criacutetica
resulta da aparentemente simples interrogaccedilatildeo de Heidegger acerca da identificaccedilatildeo
ldquoWahrheit = wahrer Satz = Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade)rdquo
(COURTINE 1996 p 19) A criacutetica eacute assim expressa em Logik die Frage nach der
Wahrheit (GA21)
ldquoLotze que introduziu o conceito de lsquoGeltungrsquoem loacutegica emprega a expressatildeo
lsquoserrsquo no sentido estrito segundo o qual ser quer dizer a mesma coisa que
efetividade das coisas ser = lsquorealidadersquo (Vorhandenheit) [] Lotze natildeo conseguiu
superar o naturalismo na medida em que restringiu o significado do termo
veneraacutevel lsquoserrsquo ao ser real agrave realidade [] Na nossa terminologia utilizamos
inversamente ser no sentido amplo inserindo-nos na autecircntica tradiccedilatildeo da
filosofia grega de tal maneira que ser designa tanto a realidade quanto a
idealidade ou outras maneiras possiacuteveis de serrdquo (HEIDEGGER GA21 p62
apud COUTRINE 1996 p19)
Nesse sentido lembremos tambeacutem que para os neokantianos influenciados pela
filosofia dos valores de Lotze o conhecimento eacute possiacutevel como uma atividade valorativa
do juiacutezo (na forma ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo) Ou seja eacute o juiacutezo que reconhece o
conteuacutedo o sentido e a validade da verdade na sua pretensatildeo de necessidade e
114
universalidade algo ldquoeacuterdquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento Ora
o que a leitura de Ser e Tempo ateacute aqui jaacute demonstrou eacute que algo eacute natildeo porque um juiacutezo
loacutegico definiu seu conteuacutedo ontoloacutegico mas porque o ser-aiacute aquele que vai atribuir
sentido jaacute sempre se move numa preacute-compreensatildeo de ser a qual eacute fundamentalmente
praacutetica na visatildeo circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram
em seu ser Ora estabelecendo uma possiacutevel analogia parece que Heidegger desconfia
tanto do conhecimento teoacuterico-proposicional quanto Fernando Pessoa do ldquopensamentordquo
Assim reduzir qualquer ontologia agrave loacutegica atraveacutes do juiacutezo proposicional eacute como ldquoestar
doente dos olhosrdquo
No nosso entender o que Heidegger desenvolve no sect 33 soacute seraacute totalmente
elucidado se o relacionarmos com o sect 44 No sect 33 jaacute se anuncia que a forma fundamental
da predicaccedilatildeo (Praumldikation) sujeito e predicado (ldquoS eacute Prdquo) eacute derivada da mostraccedilatildeo
(Aufzeigung) originaacuteria compreensivo-interpretativa (algo como algo) e soacute por isso a
comunicaccedilatildeo (Mitteilung) uns com os outros na vida cotidiana pode expressar profericcedilotildees
como ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo ldquoHoje eacute um belo diardquo etc Antes de
entramos na apresentaccedilatildeo pormenorizada do sect33 e assim a relacionarmos ao sect44 eacute
necessaacuterio fazermos duas consideraccedilotildees
Essas camadas de derivaccedilatildeo evitam qualquer interpretaccedilatildeo relativista da noccedilatildeo de
linguagem em Heidegger Tentando escapar de uma leitura apressada devemos pensar
no acontecimento da verdade como um acontecimento compreensivo a partir de um ente
finito e histoacuterico o que eacute diferente de reduzi-lo a uma perspectiva historicista O que estaacute
em questatildeo por exemplo natildeo eacute se ldquocasardquo poderia se chamar ldquomesardquo (esse eacute um aspecto
ocircntico da linguagem) ou ainda que o fato de o enunciado possuir um fundamento
contingente ele seria menos verdadeiro Aleacutem disso haacute o fato de que o ente e as
possibilidades de ser do ser-aiacute vecircm agrave palavra por uma mostraccedilatildeo preacutevia de seu ser eacute o
ente que se mostra E na medida em que eacute mobilizado pelo ser-aiacute na interpretaccedilatildeo sua
mostraccedilatildeo pode ser modificada pela expressatildeo na forma predicativa A loacutegica deriva do
loacutegos a loacutegica natildeo eacute o lugar do loacutegos E o loacutegos eacute a maneira mesma de o ente se mostrar
e se ele se mostra para o ser-aiacute isso natildeo quer dizer que eacute o ser-aiacute que o determina Natildeo
Eacute o ser-aiacute que o potildee em liberdade O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento
como fenocircmeno Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a
115
expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional
compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na estabilidade de uma esfera para aleacutem
do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua manifestaccedilatildeo o sentido
de sua proacutepria existecircncia
Caberia ademais em uma pesquisa posterior investigar se a interpretaccedilatildeo do
loacutegos como loacutegos apofacircntico derivada da noccedilatildeo de intencionalidade essecircncia mesma da
fenomenologia ainda reconduz Heidegger a certo viacutenculo com a concepccedilatildeo tradicional
da linguagem na medida em que dizer eacute ainda dizer que algo eacute de tal ou qual maneira ou
seja ainda dizer na forma predicativa Dito de outra forma mesmo que Heidegger
demonstre o caraacuteter derivado da loacutegica ela continua a ser uma purificaccedilatildeo dos elementos
materiais da linguagem Isso significaria dizer que o problema heideggeriano da
linguagem ainda estava inserido no projeto da tradiccedilatildeo da filosofia ocidental 80
Retomemos agora as trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo
(Aussage) Na mostraccedilatildeo (Aufzeigung) como primeiro significado Heidegger reteacutem o
sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Essa forma do enunciado estaacute diretamente
relacionada ao ente que vem ao encontro no Vorhabe (ter-preacutevio) ou noucircs em que o ser-
aiacute originariamente pela ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhanden) movimenta-se e abre a
compreensatildeo em um mundo-ambiente (Umwelt) Mas toda compreensatildeo (Verstehen) jaacute
interpreta (Auslegung) o que entende e assim no trato praacutetico ou no ldquocomordquo
hermenecircutico-existenciaacuterio
ldquoA execuccedilatildeo originaacuteria da interpretaccedilatildeo natildeo consiste em uma proposiccedilatildeo-
enunciativa teoacuterica mas no fato de que no-ver-ao-redor da ocupaccedilatildeo se potildee de
lado ou se troca a ferramenta improacutepria lsquosem perder nisso uma soacute palavrarsquo Da
falta de palavras natildeo se deve concluir a falta de interpretaccedilatildeordquo (HEIDEGGER
2012 P445)
Na predicaccedilatildeo (Praumldikation) segundo significado da enunciaccedilatildeo fundado no
primeiro haacute a determinaccedilatildeo de um ente que modifica e restringe a mostraccedilatildeo de algo
como algo na forma sujeito-predicado Esse segundo significado estaacute diretamente
80 Cf Capiacutetulo I- Introduccedilatildeo
116
relacionado ao Vorsicht (ver-preacutevio) cuja base encontra-se no Vorhabe (ter-preacutevio) No
que o ser-aiacute vecirc algo e o determina ele restringe o utilizaacutevel (Zuhandenes) a um subsistente
(Vorhandener) com isso ele ldquovisa a um subsistente no utilizaacutevel Pelo olhar
contemplativo e para ele o utilizaacutevel se oculta como utilizaacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012
p445) Esse segundo momento da enunciaccedilatildeo estaacute ligado ao significado (Bedeutung) que
emerge a partir da significatividade (Bedeutsamkeit) e nesse sentido ldquoposiccedilatildeo-de-sujeito
posiccedilatildeo-de-predicado em unidade com o-pocircr satildeo inteiramente lsquoapofacircnticosrsquo no sentido
rigoroso da palavrardquo (HEIDEGGER 2012 p439) Aqui Heidegger ainda se refere a uma
categoria do ente que se mostra no interior do mundo Mas entatildeo como ocorre a
modificaccedilatildeo de algo como algo tomado como categoria subsistente (Vorhanden) na forma
loacutegica sujeito-predicado
ldquoAgora pela primeira vez se franqueia o acesso a algo assim como propriedades
O lsquoquecircrsquo da enunciaccedilatildeo determinante do subsistente eacute extraiacutedo do subsistente
como tal () A estrutura-de-como da interpretaccedilatildeo experimenta uma
modificaccedilatildeo O lsquocomorsquo em funccedilatildeo de apropriaccedilatildeo do entendido jaacute natildeo chega ateacute
uma totalidade-de-conjuntaccedilatildeo Ele foi separado de suas possibilidades de
articular as relaccedilotildees-de-remissatildeo da significatividade que constitui o ser-do-
mundo-ambiente O lsquocomorsquo eacute reprimido no plano uniforme do soacute subsistente ()
Esse nivelamento do lsquocomorsquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor em como
da determinaccedilatildeo-da-subsistecircncia eacute a prerrogativa da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER
2012 p447)
O ente tomado como subsistente (Vorhanden) eacute prerrogativa da predicaccedilatildeo Seu
recorte como algo que possui essa ou aquela propriedade torna possiacutevel algo como a
forma predicativa (ldquoS eacute Prdquo) O que estaacute em jogo poreacutem pois tornou-se paradigma da
tradiccedilatildeo eacute o nivelamento de todo e qualquer ente como algo sempre presente dotado de
propriedades e desse modo disponiacuteveis agrave apreensatildeo na forma predicativa Nesse
nivelamento todo ente eacute posto sob o domiacutenio da loacutegica que obscurece sua derivaccedilatildeo
essencial agrave mostraccedilatildeo do ente em seu ser em funccedilatildeo da relaccedilatildeo primaacuteria ser-aiacute como ser-
no-mundo e assim da verdade como desvelamento (ἀλήθεια)
A terceira forma do enunciado derivado do primeiro e do segundo significados eacute
apresentada por Heidegger como comunicaccedilatildeo (Mitteilung) A palavra alematilde jaacute indica o
caraacuteter puacuteblico do que inicialmente foi mostrado e pela predicaccedilatildeo foi determinado
teilung (partilha) mit (com) O enunciado como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se puder ser
partilhado com outrem ldquover juntordquo o mostrado jaacute determinado ldquolsquoCompartilhadorsquo eacute o
comum e transparente ser para o mostrado lsquoser pararsquo que deve ser firmemente mantido
117
como ser-no-mundo [] Agrave enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo entendida assim sentido
existenciaacuterio pertence o ser expressordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Essa terceira forma
estaacute relacionada ao Vorgriff (conceito-preacutevio) ou a significaccedilotildees calcificadas de um
mundo histoacuterico faacutetico
Natildeo podemos esquecer que a anaacutelise dos existenciaacuterios (entender interpretaccedilatildeo e
disposiccedilatildeo) estatildeo na anaacutelise do ldquoser-em como talrdquo (quinto capiacutetulo) antecedida pelo
capiacutetulo intitulado ldquoo ser-no-mundo como ser-com e como ser-si-mesmo lsquoA gentersquordquo
Nesse sentido e pelo caraacuteter programaacutetico de Ser e Tempo a anaacutelise da enunciaccedilatildeo ou
proposiccedilatildeo (Aussage) jaacute pressupotildee que ser-no-mundo eacute sempre ser-com-os-outros Desse
modo ser expresso na comunicaccedilatildeo eacute a primeira manifestaccedilatildeo acerca do fenocircmeno da
linguagem que Heidegger apresenta em Ser e Tempo Poreacutem no sect34 o autor indica que
a comunicaccedilatildeo enunciativa ou informativa (ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo
ldquoHoje eacute um belo diardquo etc) assentada na predicaccedilatildeo eacute um caso particular de comunicaccedilatildeo
(Cf HEIDEGGER 2012 p457) Mas aqui chegamos ao intuito principal de nosso
capiacutetulo descrever como a ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo fundada na predicaccedilatildeo que por
sua vez soacute eacute possiacutevel pela interpretaccedilatildeo apresenta o caraacuteter derivativo do enunciado
expresso em uacuteltima medida pela linguagem que comunica
A partir dessa apresentaccedilatildeo dos trecircs significados do enunciado (Aussage)
compreendemos sua definiccedilatildeo ldquoenunciaccedilatildeo eacute uma mostraccedilatildeo determinante que
comunicardquo (HEIDEGGER 2012 p443) Portanto chegamos agrave estrutura ontoloacutegica da
linguagem (Sprache) ou ao dizer puacuteblico acerca das coisas e do estado de coisas em um
mundo Ter chegado ao objetivo central de nosso capiacutetulo natildeo quer dizer que nossa tarefa
se encerra aqui Uma obra como Ser e Tempo nos exige mais A finalidade da investigaccedilatildeo
desse paraacutegrafo ainda natildeo foi esclarecida em seus dois uacuteltimos pontos
1) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos
2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade
Se Heidegger indica que no mostrar mesmo do fenocircmeno em seu loacutegos (algo como
algo) pode surgir a forma predicativa eacute necessaacuterio explicar como no proacuteprio loacutegos a
flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo eacute possiacutevel Nas palavras de nosso autor
118
ldquoQue funda a unidade desse juntar Ele reside como Platatildeo reconheceu em que o
λόγος eacute sempre um λόγος tivoacuteς Na perspectiva do ente manifesto no λόγος as
palavras satildeo reunidas em um todo verbal Aristoacuteteles viu mais radicalmente todo
λόγος eacute ao mesmo tempo σύνθεσis e διαίρεσηs A mostraccedilatildeo eacute um reunir e separar
Entretanto Aristoacuteteles natildeo desenvolveu a questatildeo ateacute perguntar Que fenocircmeno eacute
o que no interior da estrutura do λόγος possibilita e ao mesmo tempo exige a
caracterizaccedilatildeo de toda enunciaccedilatildeo como siacutentese e dieacuterese () O que com as
estruturas formais do lsquoligarrsquo e lsquosepararrsquo ou mais exatamente com a unidade de
ambos devia ser fenomenicamente encontrado eacute o fenocircmeno do lsquoalgo como algorsquordquo
(HEIDEGGER 2012 p449)
A criacutetica expliacutecita se volta contra Aristoacuteteles mas tambeacutem contra toda tradiccedilatildeo
que absorveu esse pressuposto E como natildeo podemos deixar de observar ateacute seu proacuteprio
mestre Husserl quando este estabeleceu a diferenccedila entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial
Essa distinccedilatildeo desalojou o lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel e o conduziu ao uso loacutegico
sem revelar de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno ou o desvelamento dos
entes em seu ser O fenocircmeno da linguagem enunciativa (Mitteilung) em funccedilatildeo de sua
derivaccedilatildeo da predicaccedilatildeo (Praumldikation) e essa por sua vez derivada da mostraccedilatildeo
(Aufzeigung) possui uma ligaccedilatildeo com os entes na medida em que diz o que de algum
modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que lsquoalgo eacute xrsquo ou que lsquoalgo natildeo eacute xrsquo eacute possiacutevel primariamente
pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com
No interior da estrutura do proacuteprio λόγος ao indicar-se que algo eacute diz-se tambeacutem como
ele eacute ou como ele natildeo eacute [esse traccedilo estaacute relacionado ao caraacuteter intencional do discurso
(die Rede) que examinaremos no proacuteximo capiacutetulo] Contudo a linguagem habitual que
manteacutem vigente os significados calcificados natildeo reconhece esse traccedilo para aleacutem da
gramaacutetica Aleacutem disso a proposiccedilatildeo loacutegica obscurece a estrutura do loacutegos que a
condiciona pelo fato de usurpar a verdade para o juiacutezo natildeo reconhecendo o lugar
originaacuterio da verdade Originariedade somente possiacutevel pela compreensatildeo da verdade
como Aleacutetheia O que nos conduz agrave segunda finalidade da investigaccedilatildeo do sect 33
Para explicarmos esse conceito originaacuterio de verdade eacute necessaacuterio que nos
reportemos ao sect44 Quando se diz ldquooriginariedaderdquo do fenocircmeno da verdade natildeo se diz
algo como lsquocausarsquo da verdade antes se refere agrave sua origem sem sentido objetivo
lsquoObjetividadersquo eacute um conceito derivado da verdade reportada ao juiacutezo Aqui a verdade
tambeacutem natildeo deve ser considerada para aleacutem de sua compreensatildeo histoacuterica Lembremos
de que natildeo haacute ldquoserrdquo sem a compreensatildeo do sentido de ser portanto eacute necessaacuterio vincular
119
sempre ldquoserrdquo ao ser-aiacute ente finito e histoacuterico Por conseguinte compreensatildeo de ser em
Ser e Tempo estaacute como a origem mesma da verdade compreendida como desvelamento
Como jaacute apontamos antes a enunciaccedilatildeo (Aussage) enquanto mostraccedilatildeo
(Aufzeigung) eacute a forma fundante dos modos possiacuteveis de enunciaccedilatildeo e nela Heidegger
reteacutem o sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Na mostraccedilatildeo nada se funda em
representaccedilotildees que se adequam a objetos como compreendeu a tradiccedilatildeo Para serem
verdadeiros e garantirem seu estatuto ontoloacutegico os entes natildeo precisam estar de em
acordo nem se submeterem agrave adequaccedilatildeo dos juiacutezos ou proposiccedilotildees dos homens A
derivaccedilatildeo da verdade como objetividade na ciecircncia ou em todo comportamento teoacuterico
natildeo pode negar a maneira pela qual o ente eacute posto em liberdade Conhecer
originariamente eacute deixar que o ente se mostre em seu ser dessa forma
ldquoSuponha-se que algueacutem de costas para a parede profira a seguinte enunciaccedilatildeo
verdadeira lsquoO quadro pendurado na parede estaacute tortorsquo Essa enunciaccedilatildeo se
comprova quando quem a enuncia se volta para a parede e percebe o quadro torto
ali dependurado Que eacute comprovado nessa comprovaccedilatildeo Eacute constatado algo
como uma concordacircncia do lsquoconhecimentorsquo ou do conhecido com a coisa
lsquocolocadarsquo na parede Sim e natildeo conforme se faccedila cada vez uma adequada
interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do que a expressatildeo lsquoo conhecidorsquo significa A que
se refere quem enuncia se natildeo julga o quadro na percepccedilatildeo mas soacute o representa
A algo como representaccedilotildees Certamente que natildeo se representaccedilatildeo deve aqui
significar representar como processo psiacutequico Tambeacutem natildeo se representaccedilotildees
tecircm o sentido do representado na medida em que visada uma imagem da coisa
real na parede Ao contraacuterio a enunciaccedilatildeo que soacute representa refere-se segundo
seu sentido mais proacuteprio ao quadro real na parede Soacute ele eacute visado e nada que
dele difira () O enunciar eacute um ser voltado para a coisa sendo ela mesma E que
eacute comprovado pela percepccedilatildeo Nada senatildeo que o percebido eacute o mesmo ente
visado na enunciaccedilatildeoConfirma-se que o ser enunciante para o enunciado eacute um
mostrar o ente que ele descobre o ente para o qual se volta Eacute comprovado o ser-
descobridor da enunciaccedilatildeo () o conhecer permanece referido unicamente ao
ente ele mesmo Eacute neste mesmo que se joga por assim dizer a confirmaccedilatildeo O
ente visado se mostra ele mesmo assim como ele eacute em si mesmo () A
enunciaccedilatildeo eacute verdadeira significa que ela descobre o ente em si mesmo Ela
enuncia mostra lsquofaz verrdquo (αποφανσις) o ente em seu ser-descoberto O ser
verdadeiro (verdade) da enunciaccedilatildeo se deve entender como um ser-descobridorrdquo
(Heidegger 2012 pp603-605)
O termo grego ldquoapophantikoacutesrdquo pela junccedilatildeo entre ldquoapordquo [ldquopara forardquo ldquomostrarrdquo
ldquotornar conhecidordquo] e ldquophaineinrdquo [ldquoexibir mostrarrdquo (derivado de lsquophosrsquo ldquoluzrdquo - mesma
raiz da palavra phainoacutemenon)] manteacutem sua forccedila quando articulado com as palavras
120
ldquoAuslegungrdquo e ldquoAussagerdquo Pois tal como ldquoapordquo ldquoausrdquo eacute o prefixo de liacutengua alematilde usado
nessas palavras com o sentido da preposiccedilatildeo aus que significa ldquopara forardquo ldquoderdquo Assim
uma vez interpretado (Auslegung) o ente enunciado (Aussage) jaacute mostrou jaacute trouxe a si
mesmo a conhecimento e desvelou-se como ente e nisso consiste sua verdade originaacuteria
(Aleacutetheia)
O retorno de Heidegger agrave ldquoforccedila das palavras mais elementaresrdquo ou agraves palavras
gregas como loacutegos dikeacute physis teacutechne e aleacutetheia eacute a tentativa de ir aleacutem da
sedimentaccedilatildeo histoacuterica das palavras Dito de outra forma voltar agrave origem dos termos
atraveacutes dos quais o pensamento filosoacutefico teria alcanccedilado lsquoas coisas mesmasrsquo coisas essas
que agora no presente permanecem veladas por camadas interpretativas cotidianas e
teoacutericas Sendo a concepccedilatildeo de que a proposiccedilatildeo eacute o lugar privilegiado da verdade uma
das maiores expressotildees da tradiccedilatildeo metafiacutesica Portanto eacute tarefa a que Ser e Tempo se
propotildee eacute a da descriccedilatildeo desse lugar originaacuterio ndash de mostraccedilatildeo - dos fenocircmenos
Mas se eacute o ser-aiacute na abertura de sentido fundamental que mobiliza os entes em seu
ser qual o papel desse ente marcado pela existecircncia em meio agrave verdade agora
compreendida como Aleacutetheia A compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido
primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode custodiar o sentido
de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento
ldquoO ser-verdadeiro como ser-descobridor soacute eacute de sua parte ontologicamente
possiacutevel sobre o fundmento do ser-no-mundo Este fenocircmeno no qual
reconhecemos uma constituiccedilatildeo fundamental do Dasein eacute o fundamento do
fenocircmeno originaacuterio da verdade () Na medida em que o Dasein eacute
essencialmente sua abertura e aberto abre e descobre ele eacute essencialmente
verdadeiro O Dasein eacute lsquona verdadersquordquo (HEIDEGGER 2012 pp607-611)
O ser-aiacute em sua unidade fenomecircnica como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge)
revelou-se como o fundamento sem fundamento da abertura compreensiva portanto
aquele que como ser-no-mundo pode abrir o sentido de ser de todo ente e de suas
possibilidades Poreacutem como projeto-jogado eacute tambeacutem aquele que pode perder-se e natildeo
tornar transparente essa condiccedilatildeo ontoloacutegica fundamental o que frequentemente jaacute faz
pois sempre jaacute custodiou seu ser no mundo suas orientaccedilotildees cotidianas as sedimentaccedilotildees
121
significativas e as concepccedilotildees de verdade calcificadas Por isso o Dasein eacute o ente que
tambeacutem estaacute na natildeo-verdade (Umwahrheit)81
Recuperemos o sentido efetivo de desvelamento ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o
que aponta para o velamento (lethe) que ficou para traacutes que mostra para aquilo que a
sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila da aleacutetheia que se torna possiacutevel a
objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89)
Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao
encontro em seu significado) no desvelamento originaacuterio de seu ser mas a mostraccedilatildeo dos
fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira dissimulada sempre em uma objetificaccedilatildeo de
seu ser como ente determinado pois ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na
medida em que partimos de seu encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de
descoberta perde seu sentido mais efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Entatildeo ldquodizer que o
Dasein estaacute e natildeo estaacute na verdade eacute compreender que o encobrimento (Verschlossenheit)
eacute [] a contraparte da aberturardquo (NUNES 2012 p197)
Depois dessa exposiccedilatildeo eacute necessaacuterio apresentar como a linguagem estaacute assentada
na constituiccedilatildeo proacutepria ao ser-aiacute em relaccedilatildeo agrave verdade Tentaremos mostrar como o
discurso (Rede) eacute para Heidegger o fundamento ontoloacutegico da linguagem mas ao
mesmo tempo como o proacuteprio fenocircmeno da linguagem jaacute sempre se apresenta como
falatoacuterio (Gerede) Essa eacute a tarefa do proacuteximo e uacuteltimo capiacutetulo de nosso trabalho
81 Cf HEIDEGGER 2012 sect44 p615
122
Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)
Em vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdos Sob a pele das palavras haacute cifras e coacutedigos O sol consola os doentes e natildeo os renova
As coisas Que tristes satildeo as coisas consideradas sem ecircnfase (A flor e a naacuteusea Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
No capiacutetulo anterior descrevemos de que modo o fenocircmeno da linguagem eacute
apresentado pela primeira vez em Ser e Tempo como ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo e ainda
como a linguagem eacute derivada da mostraccedilatildeo preacutevia dos entes em seu ser a partir da relaccedilatildeo
primaacuteria ser-aiacute como ser-no-mundo O Dasein como ente privilegiado estaacute remetido ao
mundo e sempre jaacute possui uma compreensatildeo preacutevia do ser A compreensatildeo ou
entendimento (Verstehen) de ser eacute o fundamento originaacuterio da verdade agora
compreendida como desvelamento aleacutetheia Poreacutem desvelar eacute apontar para o que
permanece velado ou seja a contraparte da abertura eacute o velamento
Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a
ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo
material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos
que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas
que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela
dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se
estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o
123
que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes82rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que
somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em
fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo
Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por
Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um
fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo
incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como
descoberto e os entes sempre disponiacuteveis A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo
cotidiano Heidegger chama de ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou
ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que
esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas
tomadas como oacutebvias e sempre disponiacuteveis pelos nossos recursos linguiacutesticos
I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem
A anaacutelise do discurso (Rede) por Heidegger eacute apresentada no sect34 de Ser e Tempo e
eacute assim descrita
ldquoCom a enunciaccedilatildeo ficou visiacutevel um derivado extremo da interpretaccedilatildeo A
elucidaccedilatildeo da terceira significaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo (ou
manifestaccedilatildeo verbal) conduziu ao conceito de dizer e falar que intencionalmente
sem duacutevida natildeo fora considerado ateacute aquele momento O fato de que a linguagem
seja tematizada somente agora deve servir de indicaccedilatildeo de que esse fenocircmeno
tem suas raiacutezes na constituiccedilatildeo existenciaacuteria da abertura do Dasein O fundamento
ontoloacutegico-existenciaacuterio da linguagem eacute o discurso () O discurso eacute
existenciariamente de igual originariedade que o entenderrdquo (HEIDEGGER
2012 p453)
Esse trecho nos coloca diante de uma constataccedilatildeo reveladora Afinal o que
fundamenta a linguagem estaacute remetido a abertura primaacuteria de sentido Mas isso jaacute natildeo
estaacute claro a partir da descriccedilatildeo da enunciaccedilatildeo De certa forma sim contudo de maneira
indireta pois a enunciaccedilatildeo (Aussage) comunicativa estaacute remetida aos significados ou
seja ao entendimento jaacute articulado e interpretado Agora poreacutem o que Heidegger nos
82 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo
Wolf Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249
124
apresenta eacute o discurso como fundamento da interpretaccedilatildeo e da enunciaccedilatildeo De outra
forma o fundamento da linguagem na proacutepria abertura de sentido (Sinn) de maneira que
o discurso eacute o proacuteprio entendimento articulado que pode interpretar
ldquoO discurso eacute a articulaccedilatildeo da entendibilidade Por isso o discurso fundamenta a
interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo Ao que pode ser articulado na interpretaccedilatildeo e
mesmo mais originariamente jaacute no discurso demos o nome de sentido O
articulado na articulaccedilatildeo discursiva como tal denominamos de o-todo-da-
significaccedilatildeo e este pode ser decomposto em significaccedilotildees As significaccedilotildees como
o articulado do articulaacutevel satildeo sempre providas de sentido () A entendibilidade
do encontrar-se do ser-no-mundo exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER
2012 p455)
O tratamento sobre o discurso (Rede) em Ser e Tempo eacute pouco extensivo mas
cabe a noacutes tentar compreendecirc-lo em todo sua radicalidade O iniacutecio da filosofia grega
denominado como ldquofilosofia da naturezardquo eacute marcado pela tentativa de encontrar a ordem
imanente agrave totalidade substancial do mundo material Essa totalidade estaacute expressa na
palavra physis que nada tem a ver com a natureza empiacuterica e manipulaacutevel que
conhecemos hoje pelas ciecircncias naturais83 Essa totalidade soacute pode ser vista como tal em
sua constituiccedilatildeo una se suas partes estiverem organicamente reunidas sem as quais natildeo
haacute totalidade mas eacute a partir da totalidade que as partes ganham sentido Mesmo que
Heidegger natildeo trate o discurso nesses termos e ainda mesmo que o termo physis apoacutes a
viragem ganhe uma conotaccedilatildeo toda especiacutefica nos valemos dessa explicaccedilatildeo para tentar
compreender a especificidade do discurso Desse modo podemos observar o que estaacute em
jogo no trecho acima O discurso eacute a articulaccedilatildeo da abertura de sentido sem ele o todo
natildeo poderia ser decomposto e a totalidade seria apenas um todo indistinto Nesse sentido
que o discurso fundamenta a interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo E isso nos revela um pouco
mais
ldquoA tatildeo comum definiccedilatildeo do iniacutecio da filosofia como a substituiccedilatildeo da explicaccedilatildeo
miacutetica ou (como eacute o recorte nos manuais de histoacuteria da filosofia) a passagem do
mito ao logos eacute por demais simplista para descrever o que representou a histoacuteria
e filosoficamente essa origem Compreender a filosofia antiga a partir da relaccedilatildeo
entre logos e physis eacute de fato compreender que o iniacutecio da especulaccedilatildeo filosoacutefica
sobre o mundo eacute em grande parte acompanhado pela tradiccedilatildeo miacutetica grega de
unidade entre espiacuterito e natureza e ao mesmo tempo pelo iniacutecio de um certo
83 Cf GONCcedilALVES M 2006 pp7-11
125
estranhamento entre o ser humano pensante e o ser natural ou () a natureza em
sua totalidaderdquo (GONCcedilALVES 2006 p12)
Como vimos o loacutegos para Heidegger natildeo eacute algo que estaacute no Dasein e por isso ele
pode pensar a totalidade Loacutegos segundo Heidegger em seu sentido originaacuterio grego natildeo
eacute ratio Ao contraacuterio o loacutegos estaacute na totalidade ele eacute a articulaccedilatildeo da totalidade que se
mostra ao mostrar os entes ou os fenocircmenos (loacutegos eacute loacutegos apofacircntico) E por isso o ser-
aiacute o acessa inicialmente de modo praacutetico pois natildeo se separa dessa totalidade (por isso a
originariedade da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da
conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) significativamente articulada) Na realidade o ser-aiacute soacute se
afasta dessa totalidade quando natildeo acessa mais o loacutegos de maneira originaacuteria relativo agrave
derivaccedilatildeo como ente simplesmente dado (Vorhanden) fazendo emergir algo como
significado (Bedeutung) que ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da
enunciaccedilatildeo (Aussage)
Mas qual a relaccedilatildeo entre loacutegos e discurso (Rede) Precisamos ir ao sect7 de Ser e
Tempo ldquoQuando dizemos que o significado-fundamental de λόγος eacute discurso essa
traduccedilatildeo literal soacute eacute plenamente validada a partir da determinaccedilatildeo do que o discurso ele
mesmo significardquo (HEIDEGGER 2012 p113) Loacutegos e discurso satildeo portanto o mesmo
Mas isso soacute torna a questatildeo ainda mais difiacutecil Afinal o loacutegos como loacutegos apofacircntico natildeo
eacute o mostrar do ente em seu ser Como mostrar e dizer podem ser o mesmo
ldquoλόγος como discurso significa () algo assim como δηλοῦν tornar manifesto
aquilo de que lsquose discorrersquo no discurso Aristoacuteteles explicitou mais nitidamente
essa funccedilatildeo do discurso como αποφανέσται O λόγος faz ver algo (φαίνεισθαι) a
saber aquilo sobre o que se discorre e faz ver a quem discorre (voz media) e aos
que discorrem uns com os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p113)
Discurso eacute a mostraccedilatildeo (ἀπόφανσις) que torna-se clara (δηλοῦν) Lembremos que
a plurivocidade do ente na tradiccedilatildeo loacutegica estaacute assentada nas possibilidades semacircnticas
submetidas a um princiacutepio loacutegico fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado
ao princiacutepio de identidade Pensamos que o que Heidegger potildee em tela eacute que a
ldquoidentidaderdquo e a ldquonatildeo-contradiccedilatildeordquo natildeo satildeo princiacutepios loacutegicos mas o mostrar e o torna-
se claro dos fenocircmenos em seu ser na totalidade articulada Ou seja o sentido de ser dos
126
fenocircmenos o mostrar o existente como existente eacute o loacutegos que manifesta e diz a si
mesmo pois reporta-se a palavra legein tornar manifesto aquilo de que se fala num
discurso deixar que algo seja visto manifesto porque posicionado em relaccedilatildeo uns com
os outros Tentemos esboccedilar um exemplo mas natildeo esqueccedilamos a fragilidade das palavras
sedimentas e o obscurecimento que elas oferecem a problemaacutetica ontoloacutegica Quando no
nosso cotidiano uma mesa ldquode trabalhordquo sem os livros sem a cadeira sem as canetas e
sobretudo sem a intenccedilatildeo de ser usada para o trabalho natildeo possui qualquer sentido Ela
eacute apenas um pedaccedilo de madeira ou mesmo passa obtusa aos nossos olhos Do mesmo
modo os livros as canetas e a cadeira A articulaccedilatildeo preacutevia desses objetos ou em seu
sentido ontoloacutegico a articulaccedilatildeo desses fenocircmenos eacute o que faz com que cada um deles
possa ser visto como um ldquoistordquo Notemos como o exemplo nos reporta exatamente a noccedilatildeo
de Umwelt descrita por Heidegger O que o discurso indica eacute a articulaccedilatildeo preacutevia para
que as coisas apareccedilam como tais jaacute no mundo circundante Articulaccedilatildeo anterior a
qualquer interpretaccedilatildeo de um ldquoistordquo ou de algo como algo e consequentemente anterior
ao enunciado (Aussage) Assim o caraacuteter ontoloacutegico dessa articulaccedilatildeo sempre dada a
noacutes em um mundo jaacute descerrado em que pode-se travar atividades praacuteticas com os entes
e em uacuteltima instacircncia falar de ldquomesardquo ldquocadeirardquo ldquocanetardquo etc eacute dado pelo discurso (die
Rede) compreendido como sendo o significado fundamental de λόγος
Nesse sentido podemos ver tambeacutem o caraacuteter intencional do discurso Como
indicamos no capiacutetulo anterior loacutegos como loacutegos apofacircntico possui uma ligaccedilatildeo com os
entes na medida que diz o que de algum modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que ldquoalgo eacute xrdquo ou
que ldquoalgo natildeo eacute xrdquo eacute possiacutevel primariamente pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da
mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com No interior da estrutura do proacuteprio λόγος
ao mostrar que algo eacute diz tambeacutem como ele eacute ou como ele natildeo eacute
ldquoPara tanto tomar-se-aacute uma sentenccedila elementar como exemplo de realizaccedilatildeo do
discurso (λόγος) ldquoa caneta eacute azulrdquo Acabou-se de dizer que um dos elementos
constitutivos do falar (λέγειν) eacute o sobre-o-quecirc Este sobre-o-quecirc em direccedilatildeo ao
qual se realiza o movimento intencional de desvelamento se encontra
simplesmente dado como um todo discreto e a interpelaccedilatildeo discursiva destaca
dele certos elementos O que ocorre ao se proferir o enunciado do tipo ldquoa caneta
eacute azulrdquo eacute uma cisatildeo de um todo subsistente o discurso opera no uno indistinto a
fixaccedilatildeo de limite de certas determinaccedilotildees particulares de modo a destacar
componentes pertencentes a esse elemento temaacutetico da fala () Assim natildeo se
tem uma mostraccedilatildeo da totalidade do sobre-o-quecirc mas apenas de determinados
aspectos seus Juntamente com este movimento de distinccedilatildeo do discurso
denominado de cisatildeo (διαίρεσις) ocorre outro a siacutentese (σύνθεσις) Dissociando-
127
se do todo indistinto certos elementos a ele pertencentes estes natildeo satildeo
simplesmente colocados uns ao lado dos outros Ao fixar os limites das
determinaccedilotildees pertencentes ao uno discreto o discurso reuacutene os elementos que
foram por ele destacados posicionando-os uns com os outros Assim a
interpelaccedilatildeo discursiva que demarca um elemento temaacutetico como sendo caneta e
azul atribui a cor azul ao ente utilizaacutevel caneta sendo esses elementos
visualizados conjuntamente como um no enunciado ldquoa caneta eacute azulrdquo Atraveacutes da
siacutentese o que se dava como um todo indistinto eacute visualizado em sua unidade
destacada por determinados aspectos seus Com base nesses dois momentos a
siacutentese (σύνθεσις) e a cisatildeo (διαίρεσις) vecirc-se que o desencobrimento realizado
pelo discurso eacute uma articulaccedilatildeo delimitadora do quecirc para o qual ele se dirigerdquo
(SALGADO 2015 p145)
Contudo o discurso natildeo eacute apenas o ldquosobre-quecircrdquo a ele tambeacutem pertencem ldquoo dito
discursivamente como tal a comunicaccedilatildeo e o anuacutenciordquo (HEIDEGGER 2012 p459) Isto
porque ldquoo discurso eacute a articulaccedilatildeo significacional da entendibilidade [ou da compreensatildeo
(Verstehen)] do encontrar-se (befindlichen) no ser-no-mundordquo (HEIDEGGER 2012
p459) Ou seja natildeo eacute apenas aos entes e a um estado de coisas natildeo conforme ao ser-aiacute
que o discurso se reporta Mas a proacutepria abertura que possui sentido sendo o sentido
ldquoaquilo que a entendibilidade de algo se manteacutem Denominamos sentido o que eacute
articulaacutevel no abrir que entenderdquo (HEIDEGGER 2012 p429) O discurso como o
significado originaacuterio de loacutegos eacute o proacuteprio ser-no-mundo Pois na medida em que a
proacutepria abertura compreensiva se manteacutem por estar articulada pode sustentar em seu
acircmbito o que quer que seja entes sensaccedilotildees projetos etc E para fora dela bem natildeo haacute
nem mesmo fora Nesse sentido que ldquoa entendibilidade do encontrar-se do ser-no-mundo
exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER 2012 p455) e ldquoo todo-de-significaccedilatildeo da
entendibilidade acede agrave palavra Das significaccedilotildees nascem as palavras e natildeo satildeo as
palavras que entendidas como coisas se proveem de significaccedilotildeesrdquo (HEIDEGGER
2012 p455) A situaccedilatildeo insustentaacutevel de considerar as palavras como as portadoras
originaacuterias de significados pode ser exemplificada por um trecho da obra Cem anos de
solidatildeo de Gabriel Garciacutea Maacuterquez no momento em que Joseacute Arcadio Buendiacutea previu
que as inscriccedilotildees graacuteficas poderiam natildeo mais reportar agrave utilidade das coisas
ldquoFue Aureliano quien concibioacute la foacutermula que habiacutea de defenderlos durante varias
meses de las evasiones de la memoria La descubrioacute por casualidad Insomne
experto por haber sido uno de las primeros habiacutea aprendido a la perfeccioacuten el
arte de la plateriacutea Un diacutea estaba buscando el pequentildeo yunque que utilizaba para
laminar los metales y no recordoacute su nombre Su padre se lo dijo laquotasraquo Aureliano
128
escribioacute el nombre en un papel que pegoacute con goma en la base del yunquecito tas
Asiacute estuvo seguro de no olvidarlo en el futuro No se le ocurrioacute que fuera aquella
la primera manifestacioacuten del olvido porque el objeto teniacutea un nombre difiacutecil de
recordar Pero pocos diacuteas despueacutes descubrioacute que teniacutea dificultades para recordar
casi todas las cosas del laboratorio Entonces las marcoacute con el nombre respectivo
de modo que le bastaba con leer la inscripcioacuten para identificarlas Cuando su
padre le comunicoacute su alarma por haber olvidado hasta los hechos maacutes
impresionantes de su nintildeez Aureliano le explicoacute su meacutetodo y Joseacute Arcadio
Buendiacutea lo puso en praacutectica en toda la casa y maacutes tarde la impuso a todo el pueblo
Con un hisopo entintado marcoacute cada cosa con su nombre mesa silla reloj
puerta pared cama cacerola Fue al corral y marcoacute los animales y las plantas
vaca chivo puerca gallina yuca malanga guineo Paca a poca estudiando las
infinitas posibilidades del olvido se dio cuenta de que podiacutea llegar un diacutea en que
se reconocieran las cosas por sus inscripciones pero no se recordara su utilidad
Entonces fue maacutes expliacutecito El letrero que colgoacute en la cerviz de la vaca era una
muestra ejemplar de la forma en que los habitantes de Macondo estaban
dispuestas a luchar contra el olvido Eacutesta es la vaca hay que ordentildearla todas las
mantildeanas para que produzca leche y a la leche hay que herviriacutea para mezclarla
con el cafeacute y hacer cafeacute con lecherdquo (MAacuteRQUEZ 1999 p102)
A doenccedila da insocircnia em Macondo na obra de Maacuterquez e o esquecimento como
sua consequecircncia eacute ndash se nos permitem uma comparaccedilatildeo livre ndash como na cotidianidade
consideramos os entes disponiacuteveis e sempre presentes Partimos sempre desse
encobrimento oferecido pela liacutengua que a cada vez quer fixar os entes e assim as palavras
satildeo instrumentalizadas pois definem afinal nessa insocircnia o que cada coisa eacute O
esquecimento eacute portanto o desligamento da mostraccedilatildeo originaacuteria dos entes em seu ser
E em uacuteltima medida o esquecimento da verdade como desvelamento (Aleacutetheia) Dito de
outro modo aquilo que Heidegger jaacute havia indicado em 1923-1924 ldquoO que importa eacute
somente que essas coisas existem aiacute () Mas que falte um nome para essas coisas mostra
contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia84(HEIDEGGER
2006p31)
Mas o que consiste esse dizer falar do discurso Se ele eacute o fundamento ontoloacutegico
da linguagem certamente natildeo eacute o mesmo que profericcedilotildees verbais e nominais e sobretudo
natildeo diz respeito a natureza fiacutesica da produccedilatildeo e da percepccedilatildeo dos sons da fala humana
como compreende o estudo da foneacutetica Heidegger nos apresenta entatildeo como o dizer do
discurso pode ser visualizado de forma clara pelo ouvir
84 Cf Nota 45
129
ldquoA conexatildeo do discurso com o entender e com a entendibilidade se torna clara a
partir de uma possibilidade existenciaacuteria do discurso ele mesmo a saber a partir
do ouvir Natildeo eacute por acaso que ao natildeo ouvir lsquodireitorsquo dizemos natildeo lsquoter entendidorsquo
Para o discurso o ouvir eacute constitutivo E assim como a prolaccedilatildeo verbal se funda
no discurso a percepccedilatildeo acuacutestica tambeacutem se funda no ouvir () O Dasein ouve
porque entende Como entendedor ser-no-mundo com os outros ele eacute no seu
ouvir lsquoobedientersquo ao Dasein-com e a si mesmo e nessa audiecircncia obediente ele
se torna dependenterdquo (HEIDEGGER 2012 p461)
Essa dependecircncia diz respeito agrave articulaccedilatildeo jaacute aberta de um mundo descerrado O
discurso articula um mundo esse que sempre nos movimentamos e nos orientamos Sem
essa obediecircncia natildeo haveria qualquer possibilidade de accedilotildees e projetos do ser-aiacute E o
ouvir como possibilidade existenciaacuteria do discurso eacute a manifestaccedilatildeo de seu traccedilo
intencional que ilumina sua presenccedila na abertura de sentido Pois o ouvir eacute o fundamento
ontoloacutegico do escutar ldquofenomenicamente mais originaacuterio do que se determina lsquode
imediatorsquo em psicologia como ouvir ter sensaccedilotildees de sons e perceber ruiacutedosrdquo
(HEIDEGGER 2012 p461) De modo mais claro o fenocircmeno desde Husserl indica
aquilo que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute sempre uma doaccedilatildeo com
significado Assim a intencionalidade fenomenoloacutegica para Heidegger agora voltada ao
mundo e a facticidade como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em seu ser acontece
na e pela articulaccedilatildeo discursiva que ouve porque jaacute articulou a totalidade e por isso
entende tendo em vista que essa totalidade natildeo se apresenta como um todo indistinto Ou
seja o ser-aiacute em sua constituiccedilatildeo primaacuteria voltado agrave abertura compreensiva articulada
pelo discurso pode escutar a doaccedilatildeo fenomecircnica
ldquolsquoDe imediatorsquo nunca ouvimos barulhos e o conjunto de ruiacutedos mas o carro que
range a motocicleta O que se ouve eacute a coluna em marcha o vento norte o pica-
pau bicando o fogo crepitando Eacute preciso uma atitude muito artificial e
complicada para lsquoouviursquo um lsquobarulho purorsquo Que em primeiro lugar ouccedilamos
motocicletas e carros eacute a prova fenomecircnica de que o Dasein como ser-no-mundo
manteacutem-se cada vez junto ao utilizaacutevel do interior-do-mundo e de modo algum
imediatamente junto a lsquosensaccedilotildeesrsquo cuja concatenaccedilatildeo tivesse primeiramente de
ser formada para que se proporcionasse o trampolim a partir do qual o sujeito
saltaria para alcanccedilar finalmente um lsquomundorsquo O Dasein como essencialmente
entendedor eacute de pronto junto ao entendidordquo (HEIDEGGER 2012 p461)
A doaccedilatildeo fenomecircnica possibilitada pelo traccedilo intencional do discurso se estende
agrave escuta e ao calar de um outro ser-aiacute pois como ser-no-mundo que eacute sempre ser-com-
os-outros o Dasein jaacute estaacute ldquode antematildeo com o outro junto ao ente sobre o qual discorrerdquo
130
(HEIDEGGER 2012 p463) Por isso quando outra pessoa nos fala algo natildeo ouvimos
primeiramente os sons para depois agregaacute-los e formarmos palavras compreensiacuteveis Ou
ainda quando o outro silencia ainda expressa algo e tambeacutem pode lsquodar a entenderrsquo
ldquoOuvindo compreendemos o que o interlocutor diz E o dizer nos coloca de
imediato com o interlocutor junto ao ente a respeito do qual o discurso se
pronuncia O genuiacuteno silecircncio tambeacutem modo de ouvir e de dizer calando Essa
preeminecircncia do dizer se reflete nos componentes dos do discurso que se
estruturam a partir daquilo que acede agrave palavra do ente que ela torna manifesto
Dizer algo de certa maneira para algueacutem numa tonalidade ou disposiccedilatildeo de
acircnimo nisso consiste o fenocircmeno do discurso em sua completa estrutura
comunicativa-expressivardquo (NUNES 2012 p 170)
Poderiacuteamos dizer que a articulaccedilatildeo da compreensatildeo (Verstehen) pelo discurso
(Rede) na reuniatildeo dos elementos que foram por ele destacados posicionando-os
discursivamente opera como a harmonia de uma muacutesica que daacute aos fenocircmenos seu lugar
na melodia em funccedilatildeo do ritmo Sendo o ritmo o ldquomundordquo como abertura histoacuterica que
sustenta o sentido de ser de cada parte da melodia que continuaraacute agrave tona ou que teraacute
sentido
Portanto para o ser-aiacute estar lanccedilado em um mundo como projeto-jogado eacute estar
familiarizado atraveacutes da abertura que entende dispositivamente o horizonte de sentido E
esse horizonte eacute compartilhado por todos que convivem em um mesmo mundo faacutetico e eacute
neste sentido que a comunicaccedilatildeo o terceiro significado de enunciaccedilatildeo como vimos no
capiacutetulo anterior ldquoefetua lsquoa partilharsquo do co-encontrar-se e do entendimento do ser-comrdquo
(HEIDEGGER 2012 p457) O que eacute compartilhado natildeo eacute meramente um conteuacutedo
significativo de um lsquopacto-linguiacutesticorsquo assim como comunicar natildeo eacute trazer um desejo
uma expressatildeo uma afirmaccedilatildeo de lsquoforarsquo de um sujeito para o lsquointeriorrsquo de outro mas ldquosua
tendecircncia-de-ser consiste em pretender que o ouvinte participe do ser aberto por aquilo-
sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012 p 473) ou seja a partilha da
experiecircncia da abertura compreensiva jaacute articulada como horizonte de possibilidades que
vem agrave linguagem De outro modo
ldquoDado que o fundamento ontoloacutegico natildeo possui existecircncia agrave parte daquilo que
funda o discurso que eacute a condiccedilatildeo transcendental da linguagem relevando-se da
abertura do Dasein de seu ser-no-mundo tambeacutem eacute lsquolinguagem extensivarsquo (SZ
p61) Inversamente a linguagem como totalidade de palavras (Wortganzheit) de
uma liacutengua eacute o discurso pronunciado De onde se conclui que a primeira eacute a forma
131
estabilizada do segundo na perspectiva do ser-no-mundo da existecircncia cotidiana
que lhe impotildee a condiccedilatildeo de ente intramundano como utensiacutelio As palavras que
podem espedaccedilar-se e coisificar-se seriam o veiacuteculo dessa condiccedilatildeo instrumental
() E que eacute aceder agrave palavra senatildeo falar e que eacute falar senatildeo usar a linguagem
Satildeo pois equivalentes as duas afirmaccedilotildees de Heidegger- que ser no-mundo eacute
falante e que ele tem linguagem (Sprache)() Ambas concernem a um soacute
fenocircmeno captado no conceito aristoteacutelico de homem como ser capaz de falar ndash
zoacuteon loacutegon eacutechon- complemento agrave tese do zoacuteon politikoacuten (animal poliacutetico) - que
revela a interlocuccedilatildeo o lsquofalar uns com os outrosrsquo em que o cotidiano grego estava
politicamente enraizadordquo (NUNES 2012 p170)
Eacute um tanto embaraccediloso os caminhos conceituais que levam o discurso (die Rede)
agrave linguagem (die Sprache) e ainda como essa se apresenta sempre como falatoacuterio (das
Gerede) pela essecircncia mesma da comunicaccedilatildeo (Mitteilung) Pois a linguagem cotidiana
- o dizer uns com os outros em um mundo faacutetico - eacute um discurso que jaacute se expressou ou
seja o acontecimento da linguagem jaacute eacute articulado por um discurso preacutevio e o discurso
jaacute expresso eacute comunicaccedilatildeo Mesmo que a analiacutetica indique uma estratificaccedilatildeo e ainda a
fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da linguagem pelo discurso haacute um caraacuteter ciacuteclico
consequecircncia mesma do ciacuterculo hermenecircutico Se as palavras natildeo tecircm significados fixos
mas histoacutericos provenientes de uma abertura de sentido articulada que sustenta esses
significados Ainda assim os significados acumulam-se nas palavras e essas satildeo afinal a
maneira pela qual o mundo eacute dito nas relaccedilotildees interpessoais e nas relaccedilotildees das pessoas
com as coisas Desse modo se os significados acumulam-se nas palavras o discurso (die
Rede) sempre se manifesta na linguagem cotidiana E eacute na cotidianidade que a absorccedilatildeo
da linguagem eacute imediatamente tomada pela impessoalidade atraveacutes do uso instrumental
das palavras na tendecircncia de oferecer um mundo sempre estaacutevel Eacute essa uacuteltima descriccedilatildeo
que Heidegger chama de falatoacuterio (Gerede) Pois
ldquoO substantivo alematildeo Rede deriva-se diretamente do verbo reden que significa
falar O particiacutepio dos verbos em alematildeo eacute feito na maior parte das vezes por meio
da inserccedilatildeo da partiacutecula lsquogersquo() O que temos na cotidianidade mediana do ser-
aiacute eacute falatoacuterio natildeo porque podemos constatar empiricamente um esvaziamento da
linguagem impessoal e porque sempre eacute possiacutevel acompanhar a falta de
profundidade desses discursos Ao contraacuterio eacute falatoacuterio porque natildeo se realiza
senatildeo a partir de um ato jaacute concluiacutedordquo (CASANOVA 2006 p63)
Mas antes de passarmos agrave descriccedilatildeo do falatoacuterio eacute preciso indicar como esses
ldquoembaraccedilos conceituaisrdquo em torno do discurso indicam a ldquotransiccedilatildeo do pensamento
132
heideggeriano ndash em sua segunda fase nucleado em torno da linguagem- ldquo(NUNES 2012
p169) pois ldquoestampam-se na proacutepria equivocidade do termo designativo die Rede que
significa aleacutem de discurso conversaccedilatildeo e pronunciamentordquo (NUNES 2012 p169)
Essa equivocidade torna-se clara no fato que o discurso (die Rede) natildeo se funda em
qualquer ekstase determinada ou seja natildeo eacute possiacutevel encontrar na temporalidade do ser-
aiacute um momento constitutivo no qual ele emerge Dando assim em Ser e Tempo um
caraacuteter transcendental ao discurso
ldquoconotando o loacutegos grego retraduzido o discurso que nos daria a plena abertura
do Dasein em seu aiacute eacute incluindo portanto a disposiccedilatildeo de acircnimo eacute como modo
eminente de temporalizaccedilatildeo a que natildeo cabe o predomiacutenio de um ecircxtase
determinado o existentivo da linguagem o seu fundamento ontoloacutegicordquo
(NUNES 2012 p169)
Apresentamos no capiacutetulo anterior que no sect65 de Ser e Tempo o autor apresenta
o sentido ontoloacutegico da preocupaccedilatildeo (Sorge) na temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-
se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O
ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Futuro
(poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente (presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees
temporais como as que tomamos diariamente mas o caraacuteter essencial da
existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre adiantado (futuro) em
relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza as possibilidades na
facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva oferecida pela tradiccedilatildeo
histoacuterica ) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no presente esse
passado em seus comportamentos e projetos
No Quarto Capiacutetulo da Segunda Seccedilatildeo denominado Temporalidade e
cotidianidade Heidegger retoma a multiplicidade dos fenocircmenos da anaacutelise preparatoacuteria
da primeira seccedilatildeo para compreendecirc-los em sua unidade em funccedilatildeo da totalidade estrutural
fundante da Sorge E se a analiacutetica existenciaacuteria do ser-aiacute inicia sua investigaccedilatildeo a partir
da cotidianidade mediana tendo em vista que a impropriedade oferecida por suas
orientaccedilotildees eacute em suma a orientaccedilatildeo inicial do ser-aiacute para seus possiacuteveis modos de ser Eacute
necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos na cotidianidade a partir da
temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico
133
Nesse sentido no sect 68 item d de Ser e Tempo intitulado ldquoA temporalidade do
discursordquo Heidegger diz A plena abertura do aiacute constituiacuteda pelo entender o encontrar-
se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) recebe a articulaccedilatildeo pelo discurso
(Rede) Por isso o discurso natildeo se temporaliza primariamente numa ekstase determinada
(HEIDEGGER 2012 p949) e ainda o discurso eacute temporal em si mesmordquo
(HEIDEGGER2012 p949) Na continuidade do paraacutegrafo o autor prossegue dizendo
que natildeo obstante o discurso seja expresso na facticidade na linguagem e deste modo o
presente (Gegenwaumlrtige) desempenha uma funccedilatildeo constitutiva ainda assim
Mas porque o discurso cada vez discorre sobre o ente se bem que natildeo primaacuteria
e principalmente no sentido da enunciaccedilatildeo teoacuterica a anaacutelise da constituiccedilatildeo
temporal do discurso e a explicaccedilatildeo dos caracteres temporais das formaccedilotildees da
liacutengua soacute podem ser levados a cabo quando se tenha resolvido o problema da
conexatildeo de princiacutepio de ser e verdade a partir da problemaacutetica da
temporalidade Poder-se-ia delimitar entatildeo o sentido ontoloacutegico do lsquoeacutersquo que uma
superficial teoria da proposiccedilatildeo e do juiacutezo deformou em lsquocoacutepularsquo Soacute a partir da
temporalidade do discurso isto eacute a partir da temporalidade do Dasein em geral
pode-se elucidar a lsquoorigemrsquo e pode-se entender ontologicamente a possibilidade
de uma formaccedilatildeo-do-conceito (HEIDEGGER2012 p949 grifo nosso)
O problema reside no fato de que o Dasein em Ser e Tempo eacute apresentado como
o fundamento sem fundamento de outra forma a compreensatildeo enquanto acontecimento
de sentido primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode
custodiar o sentido de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento
Entatildeo na medida em que a temporalidade (Zeitlichkeit) eacute o sentido ontoloacutegico desse ente
privilegiado qualquer fenocircmeno exposto na analiacutetica preparatoacuteria precisaria encontrar
seu fundamento ontoloacutegico em alguma ekstase determinada futuro o ser-do-sido ou
presencizar Por exemplo o presente desempenha a funccedilatildeo constitutiva da linguagem
(Sprache) na medida em que o ser-aiacute lanccedilado em um mundo encontra-se em meio aos
entes e jaacute junto aos outros atualizando os significados sedimentados pela linguagem (pela
liacutengua) oferecidos no presente Isso poreacutem natildeo ocorre com o discurso (die Rede) que eacute
ldquotemporal em si mesmordquo Desse modo seu sentido ontoloacutegico ou aquilo que sustenta sua
origem compreendida como seu sentido de ser a partir do desvelamento natildeo eacute elucidado
em Ser e Tempo Pensamos que a partir dessa constataccedilatildeo pelo comprometimento
fenomenoloacutegico de Heidegger a estratificaccedilatildeo da linguagem presente em Ser e Tempo
natildeo pode mais manter-se apoacutes a viragem Pois o fenocircmeno da linguagem precisa ser
134
reconsiderado a partir de si mesmo para que seja possiacutevel encontrar seu fundamento
ontoloacutegico85
Esse breve momento da obra de 1927 acerca da temporalidade do discurso em
Ser e Tempo eacute de extrema importacircncia para pensarmos como o fenocircmeno da linguagem
possui jaacute um importante e amplo papel no interior do tratado Pois ele estaacute intimamente
ligado agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento (Aleacutetheia) revelando natildeo soacute um impasse
acerca da estratificaccedilatildeo da linguagem na obra bem como traz agrave tona que o encobrimento
como contraparte da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser ganha uma imagem peculiar
exatamente na manifestaccedilatildeo da linguagem E desse modo apesar da apresentaccedilatildeo do
discurso e de sua especificidade em Ser e Tempo encontramos apenas a descriccedilatildeo da
linguagem (Sprache) que chamamos de ldquonegativardquo como sedimentaccedilatildeo interpretativa
pelo falatoacuterio (Gerede) Eacute o que vamos expor a seguir
II- O Falatoacuterio (das Gerede)
Ainda no sect34 Heidegger alerta que a anaacutelise do discurso (Rede) perdeu de vista a
cotidianidade do ser-aiacute solo fenomecircnico que a analiacutetica se guia naquele momento Pois
as estruturas existenciaacuterias da abertura do ser-no-mundo entender (Verstehen) encontrar
(Befindlichkeit) discurso (Rede) e interpretar (Auslegen) na medida em que se manteacutem
pela abertura primaacuteria do ser-aiacute remetido ao mundo inicialmente no modo de ser de ldquoa-
genterdquo (das Man) devem ser compreendidas em seu modo especiacutefico na cotidianidade
mediana Como o ser-aiacute eacute de iniacutecio lanccedilado nas possibilidades faacuteticas de um mundo
sedimentado a anaacutelise propriamente fenomenoloacutegica deve se orientar pelos fenocircmenos
expressos nesse horizonte
ldquoDe imediato eacute preciso que fique visiacutevel a partir de alguns fenocircmenos
determinados a abertura de a-gente isto eacute pela elucidaccedilatildeo do modo-de-ser-
cotidiano de discurso visatildeo e interpretaccedilatildeo No relativo a esses fenocircmenos natildeo
eacute supeacuterfluo observar que a interpretaccedilatildeo tem um propoacutesito puramente ontoloacutegico
estando muito longe de uma criacutetica moralizante do Dasein cotidiano e estaacute muito
longe de qualquer aspiraccedilatildeo de lsquofilosofia da culturarsquordquo (HEIDEGGER 2012
p471)
85 Nesse sentido Cf LAFONT 1997 pp46-52
135
A anaacutelise do que Heidegger denomina ldquoA-genterdquo (das Man) eacute apresentada no
quarto capiacutetulo da primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo e tem em vista elucidar o ldquoser-no-mundo
como ser-comrdquo e ldquocomo ser-si-mesmordquo Essa descriccedilatildeo estaacute diretamente relacionada ao
conceito de queda ou decair (Verfallen) pois eacute esse solo imediato que o ser-aiacute se
movimenta e terceiriza seu ser agraves orientaccedilotildees cotidianas cada vez em fuga de seu ser-
proacuteprio mas condiccedilatildeo inexoraacutevel para que possa conquistaacute-lo E ainda como expresso
no trecho acima esses conceitos nada tem a ver com uma criacutetica moral como que uma
criacutetica agrave sociedade de massa A anaacutelise eacute uma elucidaccedilatildeo fenomenoloacutegica e por isso
ontoloacutegica O que estaacute em jogo nessa descriccedilatildeo eacute o acesso aos fenocircmenos como eles se
mostram para entatildeo chegar ao fundamento ontoloacutegico que sustenta seu sentido de ser
Desse modo a facticidade ou o mundo cotidiano eacute o maneira pela qual os fenocircmenos e
as possibilidades do ser-aiacute vecircm ao encontro O que anaacutelise sobre ldquoA-genterdquo (das Man)
realizada no sect25 ao sect27 potildee em tela eacute 1) o esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein 2) o
Dasein-com dos outros e o cotidiano ser-com 3) o cotidiano ser-si-mesmo e a-gente
Se no sect9 Heidegger expotildee o sentido formal do ser-aiacute como esse ente que a cada
vez noacutes mesmos somos e ainda como a essecircncia desse ente reside em sua existecircncia o
esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein deve agora voltar-se ao campo situacional histoacuterico
que extraiu esse conceito
ldquoNo presente contexto de uma analiacutetica existenciaacuteria do Dasein factual surge a
pergunta sobre se o referido modo de o eu se dar abre o Dasein em sua
cotidianidade supondo-se que em geral o abra () Pode-se sempre muito bem
dizer sobre esse ente em termos onticamente justificaacuteveis que lsquoeursquo o sou
Contudo a analiacutetica ontoloacutegica ao empregar essas proposiccedilotildees deve fazecirc-lo com
reservas de princiacutepio O lsquoeursquo somente deve ser entendido no sentido de um como
indicador formal e indiferente de algo que em sua concreta conexatildeo-de-ser
fenomecircnica talvez se desvende como o lsquoopostorsquo do que parecia lsquoNatildeo eursquo de
modo algum significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo [privado de
lsquoegoidadersquo] mas significa um determinado modo-de-ser do lsquoeursquo ele mesmo por
exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p337)
A interpretaccedilatildeo moderna da essecircncia do ser humano baseada na egoidade em um
ldquoeurdquo que se reconhece como tal e em uacuteltima medida fundamenta toda e qualquer
descriccedilatildeo dos entes obscurece o solo em que esse conceito aparece Referir-se ao ldquoeurdquo eacute
possiacutevel no trato diaacuterio e comum da existecircncia cotidiana (onticamente) na medida em que
136
o ldquoaiacuterdquo existe cooriginariamente Natildeo haacute sujeito sem mundo por esse motivo a
ldquolsquosubstacircnciarsquo do homem natildeo eacute o espiacuterito como a siacutentese de alma e corpo mas a
existecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p341) E desse modo se a existecircncia acontece em um
mundo ela natildeo se reconhece primariamente para depois reconhecer ldquomundordquo e os
ldquooutrosrdquo mas existindo o ser humano eacute as possibilidades disponiacuteveis em seu ldquoaiacuterdquo
compartilhando com os outros pois ldquonatildeo haacute afinal de pronto um eu isolado que se decirc sem
os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p337)
A abertura primaacuteria de sentido ou a abertura compreensiva-interpretativa sempre
disposta do ser-aiacute o remete ao mundo junto aos entes e aos outros que partilham a mesma
abertura compreensiva-interpretativa e assim noacutes temos mundo De outro modo
ningueacutem tem lsquoseu mundorsquo particular emergente da consciecircncia que se auto reconhece a
partir da qual lsquoenxergarsquo o mundo puacuteblico Tudo que algueacutem possa vir a pensar sentir
compor dizer etc eacute primariamente aquilo que o mundo puacuteblico compartilhado sustenta
como algo que tem sentido Natildeo sou porque penso antes penso porque sou Quando
tentamos pensar em qualquer significado que natildeo seja sustentado pelo sentido do mundo
puacuteblico natildeo encontramos o que possa ser dito ou pensado
Mas o que o autor quer dizer quando indica que o ldquonatildeo eursquo de modo algum
significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo mas significa um determinado modo-de-
ser do lsquoeursquo ele mesmo por exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012
p337) Imersos nas ocupaccedilotildees diaacuterias empreendidas com os outros o ser-aiacute ldquocomo
cotidiano ser-um-com-o-outro estaacute na sujeiccedilatildeo aos outros Ele natildeo eacute si-mesmo os outros
lhe retiram o ser () Nisso os outros natildeo satildeo determinadosrdquo (HEIDEGGER 2012
p363) Na liacutengua portuguesa essa indeterminaccedilatildeo eacute ilustrada pela partiacutecula ldquoserdquo como
iacutendice de indeterminaccedilatildeo do sujeito Por exemplo Necessita-se de empregados Nesse
lugar se eacute tratado muito bem etc O ldquosujeitordquo o ldquoeurdquo do ser-aiacute na cotidianidade natildeo eacute seu
ser-proacuteprio mas a perda de si pois compreende seu ser inicialmente pela imposiccedilatildeo
impessoal indeterminada de suas possibilidades e as realiza sob o domiacutenio dessa
orientaccedilatildeo estuda-se casa-se tem-se filhos etc Nas palavras do autor
ldquoO Dasein cotidiano tira a interpretaccedilatildeo preacute-ontoloacutegica de seu ser do imediato
modo-de-ser de a-gente A interpretaccedilatildeo ontoloacutegica segue de imediato essa
tendecircncia interpretativa e entende o Dasein a partir do mundo e o encontra como
ente do-interior-do-mundo E natildeo somente isso mas a ontologia lsquoimediatarsquo do
137
Dasein faz que se lhe decirc a partir do lsquomundorsquo o sentido de ser em relaccedilatildeo ao qual
esses entes lsquosujeitosrsquo satildeo entendidos Mas porque nessa absorccedilatildeo no mundo
passa-se por cima do fenocircmeno do mundo ele mesmo em seu lugar se introduz o
subsistente do-interior-do-mundo as coisas O ser do ente que eacute -lsquoaiacutersquo-com eacute
concebido como subsistecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p 373)
Como vimos esse modo de ser do ser-aiacute eacute consequecircncia do fato de natildeo termos
qualquer natureza Natildeo haacute como se retirar dessa condiccedilatildeo ontoloacutegica mesmo que
onticamente somos impelidos a cada vez determinarmos nosso ser de alguma forma
indicando noacutes mesmos e os outros como meros subsistentes por exemplo em expressotildees
como ldquoEu sou professorardquo ldquoEle eacute pairdquo ldquoNoacutes somos brasileirosrdquo etc E por isso ldquoo ser-
si-mesmo proacuteprio natildeo repousa sobre um estado-de-exceccedilatildeo de um sujeito desprendido de
a-gente mas eacute uma modificaccedilatildeo existencial de a-gente como um existenciaacuterio essencialrdquo
(HEIDEGGER 2012 p373) ou seja ser-si-mesmo-proacuteprio natildeo eacute se retirar dessa
indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica mas ter transparecircncia dessa condiccedilatildeo irremediaacutevel
A partir dessa explicaccedilatildeo retomemos a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein a partir do
sentido formal da preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-
em (-o-mundo) como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo
(HEIDEGGER 2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser
(existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que
foi lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio
aos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda) O que sustenta o
sentido de ser desse ente eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) pois a temporalidade descobre-
se como o sentido da preocupaccedilatildeo (Sorge) proacutepria ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-
se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute
possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Contudo a preocupaccedilatildeo
proacutepria natildeo eacute a noacutes de pronto transparente e natildeo eacute o modo que inicialmente e na maioria
das vezes estamos e nos orientamos no mundo Ser-no-mundo eacute a abertura compreensiva
disposta jaacute em meio ao mundo articulado e sedimentado portanto eacute constituiacuteda pelo
entender o encontrar-se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) (Cf
HEIDEGGER 2012 p949) Eacute necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos
nessa abertura primaacuteria ao mundo a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal
compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico O autor entatildeo nos apresenta que ldquoo
138
entender funda-se no futuro (adiantar-se ou aguardar) O encontrar-se temporaliza-se
primariamente no ser-do-sido (repeticcedilatildeo ou esquecimento) O decair tem raiz temporal
primariamente no presente (presencizar ou instante)rdquo (HEIDEGGER 2012 p951)
Aguardar (Gewaumlrtigen) esquecimento (Vergessenheit) e instante (Augenblck) satildeo
os modos impessoais de realizaccedilatildeo do ser do ser-aiacute na cotidianidade a partir de seu sentido
ontoloacutegico (Sorge) fundado na temporalidade (Zeitlichkeit) O futuro aparece como
espera na cotidianidade na medida em que estaacute submerso na familiaridade de um mundo
descerrado em que o ser-aiacute pode ocupar-se com os entes e travar relaccedilotildees com os outros
na normalidade da vida cotidiana Na familiaridade o ser-aiacute sabe o que esperar O passado
ou o ser-do-sido nada tem a ver com ldquofalta de lembranccedilardquo mas refere-se a imersatildeo na
dejecccedilatildeo ou no modo de ser-jogado do ser-aiacute Nesse sentido o ser-aiacute sempre ocupado abre-
se ao mundo mas fecha-se ao seu ser-proacuteprio esquecendo de si e de sua indeterminaccedilatildeo
em funccedilatildeo do que jaacute estaacute a cada de vez posto como possiacutevel no mundo O decair no modo
proacuteprio refere-se ao presente ou presencizar ou seja a transparecircncia ao ser-aiacute de sua
condiccedilatildeo de jogado em um presente aberto que a vida e a compreensatildeo de ser decorrem
Na cotidianidade poreacutem o decair como instante refere-se a incessante fala apariccedilatildeo e
apropriaccedilatildeo (natildeo como de si mesmo como ser-proacuteprio mas das possibilidades disponiacuteveis
publicamente) das coisas e de um estado de coisas Incessante porque atualiza as
possibilidades postas descerradas e sedimentadas no mundo movimentando a existecircncia
pela retroalimentaccedilatildeo daquilo que jaacute foi e eacute a cada vez compreendido sem pocircr em questatildeo
afinal aquilo que se compreende e o ente que pode compreender ou seja ente que noacutes
somos
Na anaacutelise preparatoacuteria ou na primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo o decair foi descrito
na ldquointerpretaccedilatildeo do falatoacuterio da curiosidade e da ambiguidaderdquo (HEIDDEGGER 2012
p941) Desse modo esclarecido como a queda ou o decair funda-se na temporalidade do
ser-aiacute portanto esclarecido seu fundamento ontoloacutegico a partir do ente que abre a
compreensatildeo de ser Podemos a partir de agora entender o fenocircmeno da linguagem na
cotidianidade do ser-aiacute e em seu modo de ser improacuteprio De outro modo compreender o
falatoacuterio como queda
A anaacutelise do falatoacuterio (das Gerede) eacute realizada no sect35 precedida exatamente pela
exposiccedilatildeo do discurso como fundamento ontoloacutegico da linguagem Essa linha de
139
apresentaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria antes revela que tambeacutem o fenocircmeno da linguagem parte
de seu encobrimento E revela que seu fundamento eacute a cada vez obliterado no uso comum
das liacutenguas e das palavras no cotidiano poreacutem
ldquoA expressatildeo lsquofalatoacuteriorsquo natildeo deve ser aqui empregada numa acepccedilatildeo pejorativa
Ela significa terminologicamente um fenocircmeno positivo que constitui o modo-
de-ser do entender e interpretar do Dasein cotidiano No mais das vezes o
discurso se expressa e jaacute se expressou em palavras O discurso eacute linguagemrdquo
(HEIDEGGER 2012 p471)
A anaacutelise da cotidianidade eacute um caraacuteter fenomecircnico positivo para a analiacutetica
existenciaacuteria pois eacute a partir dele a partir de um modo de ser improacuteprio que o ser-aiacute eacute
lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria das vezes Natildeo eacute apenas
lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade mas seu modo de ser
ontologicamente irremediaacutevel Nesse sentido apresentar a linguagem como manifestaccedilatildeo
uacuteltima da abertura histoacuterica remetida ao mundo que jaacute compreendeu jaacute articulou e jaacute
interpretou eacute apresentar um caminho agrave pergunta Como a linguagem que eacute essencialmente
generalizante pode afinal ser histoacuterica Questatildeo jaacute exposta nos primeiros escritos de
Heidegger que acaba por expor a origem dessa problemaacutetica em Ser e Tempo como por
exemplo essa passagem do texto de 1919
ldquoA objeccedilatildeo mais elementar mas carregada de suficiente perigosidade tinha a ver
com a linguagem Toda descriccedilatildeo eacute um lsquoconceber-em-palavrasrsquo - a lsquoexpressatildeo
verbalrsquo eacute generalizante Essa objeccedilatildeo eacute baseada na crenccedila de que toda linguagem
eacute jaacute em si mesma objetiva isto eacute viver em um significado implica eo ipso uma
concepccedilatildeo teoacuterica do que se entende que a realizaccedilatildeo do significado natildeo eacute mais
do que a exibiccedilatildeo do objeto () A universalidade do significado das palavras
assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia vividardquo86
(HEIDEGGER (GA5657) 2005 pp134-142)
Esse eacute tambeacutem o risco do uso das palavras e da linguagem na cotidianidade ou
do falatoacuterio A manifestaccedilatildeo da linguagem na expressatildeo eacute comunicaccedilatildeo e o enunciado
86 ldquoLa objecioacuten maacutes elemental pero cargada de suficiente peligrosidad teniacutea que ver con el lenguaje Toda
descripcioacuten es un laquoconcebir-en-palabrasraquo -la laquoexpresioacuten verbalraquo es generalizante Esta objecioacuten descansa
en la creencia de que todo lenguaje es ya en siacute mismo objetivante es decir que vivir en un significado
implica eo ipso una concepcioacuten teoreacutetica de lo que es significado que la plenificacioacuten del significado es
sin maacutes soacutelo una exhibicioacuten del objeto() La universalidad del significado de las palabras sentildeala
primariamente algo originario el caraacutecter mundano de la vivencia vivida rdquo Opcit pp134-142
140
como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se pode partilhar com outrem lsquover juntorsquo o mostrado no
modo do determinar Nesse sentido ldquoo discurso (Rede) que-se-expressa eacute comunicaccedilatildeordquo
(HEIDEGGER 2012 p473) E os conceitos-preacutevios oferecidos na comunicaccedilatildeo acabam
por determinar objetivamente as coisas e o estado de coisas ldquosem que tenham perto de si
tangiacutevel e visiacutevel o ente mostrado e determinadordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Dessa
forma ldquoo acircmbito dessa visatildeo compartilhada amplia-se Mas ao mesmo tempo na
repeticcedilatildeo o mostrado pode precisamente vir a se encobrir de novo () O ouvir-dizer eacute
tambeacutem um ser-no-mundo e ser em relaccedilatildeo ao que eacute ouvidordquo (HEIDEGGER 2012
p439)
A essecircncia do falatoacuterio eacute esse ouvir-dizer comunicado que pode ser repetido E
conforme a compreensatildeo mediana orienta-se pela expressatildeo da linguagem expressa ldquoo
discurso comunicado pode ser entendido amplamente sem que o ouvinte tenha de se pocircr
originariamente entendedor daquilo sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012
p473) A relaccedilatildeo com a linguagem torna-se nesse sentido meramente instrumental Um
exemplo paradigmaacutetico eacute a linguagem jornaliacutestica pois em seu traccedilo essencialmente
comunicativo e divulgador pode a cada vez informar sobre as coisas e um estado de
coisas sem que o leitor ou o ouvinte tenha de fato clareza acerca da compreensatildeo de tais
coisas mas pode repetir o que leu e o que ouviu com os outros e ser entendido A ldquofalta
de clarezardquo nesse exemplo natildeo diz respeito a algo como falta de ldquoacesso agraves fontesrdquo mas
deve ser compreendido em seu caraacuteter ontoloacutegico ou seja o que estaacute em jogo eacute o fato
que a linguagem repetida natildeo coloca em questatildeo seu proacuteprio fundamento A relaccedilatildeo entre
a cotidianidade impessoal e o uso da linguagem eacute algo tatildeo intriacutenseco que Heidegger em
1946 no texto Carta sobre o Humanismo diz
ldquoO que foi dito sobre o lsquoimpessoalrsquo em Ser e Tempo (1927) nos paraacutegrafos 27 e
35 de modo algum deve ser reduzido a um contributo secundaacuterio agrave sociologia
Mas o lsquoimpessoalrsquo tampouco se refere apenas agrave imagem oposto compreendida
de maneira eacutetico-existenciaacuteria do ser proacuteprio da pessoa Ao contraacuterio o que disse
ali conteacutem a indicaccedilatildeo agrave pertinecircncia inicial da palavra com o ser e essa
indicaccedilatildeo eacute pensada segundo a verdade do ser Essa relaccedilatildeo permanece oculta
sob o predomiacutenio da subjetividade que se apresenta como opiniatildeo puacuteblicardquo
(HEIDEGGER 2008 p330 grifo nosso)
141
A linguagem eacute portanto submetida ao que eacute compreensiacutevel na opiniatildeo puacuteblica e
aquilo que a cotidianidade mediana natildeo compreende eacute simplesmente descartado como
incompreensiacutevel Ou seja a proacutepria compreensatildeo (Verstehen) estaacute irremediavelmente
orientada agrave queda e essa mantecircm-se como tal no falatoacuterio Na tentativa de objetivar o
que as coisas satildeo e como elas satildeo tudo que eacute compreendido obscurece seu ldquocomordquo ou
seu mostrar que vem ao encontro no mundo histoacuterico pois ldquosoacute se procura ouvir o
discorrido como talrdquo (HEIDEGGER p473)
ldquoEm meio a essa dinacircmica retoma-se incessantemente uma atitude ontoloacutegica em
relaccedilatildeo aos entes intramundanos em geral e ao ser-aiacute em especiacutefico uma atitude
marcada fundamentalmente por uma opacidade primordial Todos satildeo a
princiacutepio homogeneizados a partir da noccedilatildeo de uma subsistecircncia por si todos
passam a ser desde o princiacutepio considerados como entes simplesmente dados e
detentores ao mesmo tempo de propriedades igualmente dadas() O falatoacuterio
tende entatildeo a coibir o aparecimento de uma outra forma discursiva que se
perfaccedila por meio de um real questionamento do ser do ente e de uma apropriaccedilatildeo
originaacuteria do ente consideradordquo (CASANOVA2006 p70)
O falatoacuterio como linguagem sedimentada e repetida eacute o que inicialmente orienta
o ser-aiacute em seu ldquoairdquo A cotidianidade mediana na qual estamos sempre imersos abre
inicialmente a compreensatildeo do mundo ao ser-aiacute mas ao abri-la acaba por fechaacute-la pois
desenraiza o ser-aiacute do solo originaacuterio dessa compreensatildeo de ser dos entes De outro modo
o loacutegos como discurso articula mundo e o abre agrave compreensatildeo o falatoacuterio como
linguagem sedimentada encobre esse mostrar originaacuterio O falatoacuterio diz e indica as coisas
e o estado de coisas mas natildeo os coloca em sua mostraccedilatildeo a partir de seu ser ou como
nos diz Carlos Drummond ldquoO sol consola os doentes e natildeo os renovardquo Nesse sentido
que a repeticcedilatildeo e a difusatildeo satildeo traccedilos essenciais do falatoacuterio pois movimentam a
existecircncia baseada na estabilidade do compreendido previamente articulado e
compartilhado na vida comum manifesto em uacuteltima medida pela linguagem e pelos
conceitos herdados
ldquoA falta-de-solo natildeo o impede de ingressar no que eacute puacuteblico mas favorece seu
ingresso O falatoacuterio eacute a possibilidade de tudo entender sem uma preacutevia
apropriaccedilatildeo da coisa O falatoacuterio jaacute protege por antecipaccedilatildeo contra o perigo de
malograr em tal apropriaccedilatildeo O falatoacuterio que qualquer um pode obter natildeo soacute
dispensa da tarefa de um entendimento autecircntico mas desenvolve uma
entendibilidade indiferente para a qual nada estaacute fechadordquo (HEDEGGER 2012
p475)
142
A objetividade promovida pelo falatoacuterio ou esse jaacute ser-interpretado natildeo eacute algo
que podemos negar e suspender A queda ou decair (Verfallen) constitui ldquoa plena abertura
do aiacuterdquo e o ldquoDasein nunca eacute capaz de rejeitar esse cotidiano ser-do-interpretado no qual
de imediato cresceurdquo (HEIDEGGER 2012 p477) Ele nos constitui porque eacute
inicialmente nosso ldquoaiacuterdquo e ldquotodo entendimento interpretaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo genuiacutenos
toda redescoberta se efetuam nele a partir dele e contrariamente a elerdquo (HEIDEGGER
2012 p477) ldquoTer mundordquo (abertura compreensiva) para o ser-aiacute que o constitui como
ente privilegiado eacute tambeacutem ser absorvido pelo mundo (queda) A verdade (Aleacutetheia)
como desvelamento eacute tambeacutem encobrimento Ser na verdade eacute tambeacutem estaacute na natildeo-
verdade Ouvir o loacutegos eacute tambeacutem se perder na linguagem
ldquoEacute soacute por isso que (sect34) Ser e Tempo conteacutem uma indicaccedilatildeo essencial da
linguagem tocando na questatildeo simples que pergunta em que modo do ser a
linguagem eacute sempre linguagem como tal O esvaziamento da linguagem que
avanccedila violentamente e se estende com rapidez por toda parte natildeo corroacutei apenas
a responsabilidade esteacutetica e moral em todos os usos da linguagem Proveacutem de
uma ameaccedila da essecircncia do ser humanordquo (HEIDEGGER 2008 p331)
Mas entatildeo qual o caminho Como ir agrave linguagem como tal Heidegger nos
adverte ldquoUm mero uso cuidado da linguagem ainda natildeo demonstra que escapamos desse
perigo essencialrdquo (HEIDEGGER 2008 p331) Na realidade reduzir o problema agrave essa
soluccedilatildeo poderia indicar que nem sequer vemos o perigo pois o esconderia sob agraves vestes
de usos como lsquosabedoriarsquo lsquoculturarsquo lsquoconhecimentorsquo etc ou seja a ldquosoluccedilatildeordquo ainda
estaria submetida ao domiacutenio puacuteblico do que eacute compreensiacutevel
Portanto se ldquoa linguagem ainda nos nega sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2008
p331) entatildeo ainda eacute necessaacuterio seguir a orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica
Diante da pergunta de Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na
cidade Soacutecrates responde ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso
irrdquo87 Para que afinal busquemos a relaccedilatildeo entre loacutegos e ser
87 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9
143
Conclusatildeo
O que vem agrave palavra Essa foi a questatildeo que nos guiou nesse trabalho Ela
atravessa outras perguntas por que falamos de uma determinada forma por exemplo
com sujeito e predicado Como eacute possiacutevel nossa comunicaccedilatildeo Como eacute possiacutevel falar que
algo eacute de tal e qual maneira
Fomos ao livro Ser e Tempo natildeo para dizer sobre o que um autor pensou fomos
ao Ser e Tempo para encontrar elementos que poderiam nos guiar nessas questotildees Entatildeo
a tarefa desse tratado revelou-se tambeacutem como um problema de linguagem Pois eacute a
tentativa de reformulaccedilatildeo da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido
depende justamente daquela reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido do
ser Vimos aiacute uma imbricada problemaacutetica a pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo (Sinn von
Sein) eacute tambeacutem a pergunta sobre o que pode sustentar sentido e significados e por isso
o que pode sustentar a linguagem Se natildeo nos incomodasse a tautologia poderiacuteamos
perguntar qual o sentido do sentido
A necessidade de recolocaccedilatildeo da pergunta estaacute diretamente relacionada agrave criacutetica
imanente de Heidegger agrave fenomenologia de Husserl Abordado sempre e a cada vez como
um ente o ser natildeo eacute no entanto um predicado real Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar
o ser como um ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel
e atributivo Ser natildeo eacute um ente o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo
com vistas agrave forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera
para ldquoQual o sentido de serrdquo Atraveacutes da apropriaccedilatildeo da hermenecircutica Heidegger potildee
em tela o caraacuteter histoacuterico do sentido de ser dos entes E dessa maneira indica como as
palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da
experiecircncia hermenecircutica Contudo diferentemente de como a concebeu Dilthey a
experiecircncia revelou-se natildeo como um meacutetodo de acesso ao caraacuteter histoacuterico do sentido e
144
dos significados mas compreensatildeo fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo circunspecta de
nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser
Poreacutem um problema central deveria ser abordado ldquocomo eacute possiacutevel a forma
loacutegicardquo ou ldquoPor que seguimos a foacutermula lsquosujeito e predicadorsquordquo Essa questatildeo nos levou
ateacute a maneira pela qual essa problemaacutetica foi abordada pelos neokantianos mais
especificamente agravequeles representantes da escola de Baden Esses reduziam a
possibilidade de verdade agrave forma do juiacutezo agrave identificaccedilatildeo entre ldquoWahrheit = wahrer Satz
= Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade) A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo
de verdade da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca
que era a dos neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa
concepccedilatildeo tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da
verdade em direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave
proposiccedilatildeo Com isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa
medida condicionando a ontologia agrave loacutegica
Foi esse mapa complexo dos problemas que foi desenhado nos dois primeiros
capiacutetulos os quais consideramos imprescindiacuteveis para uma exposiccedilatildeo completa da
estrutura ontoloacutegica da linguagem em Ser e Tempo Expondo o contexto das filosofias de
Dilthey Husserl e dos neokantianos de Baden bem como o posicionamento de Heidegger
frente a essas teorias a abordagem fenomenoloacutegico-hermenecircutica revelou-se como o
meacutetodo de acesso ao sentido de ser de todo ente Esse meacutetodo acaba ainda por demonstrar
que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um
campo de signos referenciais fechados que doam significado agraves coisas mas uma
manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez se faz presente na facticidade da
existecircncia concreta Last but not least revelou-se a diferenccedila entre uma concepccedilatildeo de
loacutegos proveniente da loacutegica e outra advinda do conceito de aleacutetheia
Foi a partir daiacute que ficaram claros os contornos dos dois uacuteltimos capiacutetulos desta
Dissertaccedilatildeo Tentamos mostrar como em Ser e Tempo a linguagem estaacute assentada em
duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado revelando a diferenccedila
entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm articulados pela imbricaccedilatildeo
radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno Poreacutem natildeo poderiacuteamos nos sentir satisfeitos
nessa descriccedilatildeo Heidegger nos adverte que estamos em fuga do solo em que o loacutegos se
145
mostra Pois o desvelamento enquanto Aleacutetheia eacute tambeacutem encobrimento por isso o
fenocircmeno sempre se nos mostra de maneira dissimulada Tambeacutem a partir de Ser e Tempo
tentamos evidenciar como a linguagem depende da constituiccedilatildeo proacutepria da verdade Ou
seja como o discurso (Rede) eacute apresentado como fundamento ontoloacutegico da linguagem
mas como o fenocircmeno mesmo da linguagem jaacute sempre se apresenta como falatoacuterio
(Gerede) O fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana enquanto comunicaccedilatildeo
ou seja discurso (die Rede) que jaacute se expressou e a cada vez se expressa eacute repetido e
difundido no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada
pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte
compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente Mas
como entes sem qualquer essecircncia preacutevia sem qualquer natureza definida somos a
proacutepria compreensatildeo (Verstehen) irremediavelmente orientada agrave queda sendo o falatoacuterio
a manifestaccedilatildeo uacuteltima dessa condiccedilatildeo
Esse foi o caminho do nosso trabalho que eacute apenas um iniacutecio Ele natildeo pretende
encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender o papel
da poesia na obra de Heidegger apoacutes os anos 1930 como uma tentativa de desvencilhar-
se do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Ou ainda se a estratificaccedilatildeo
da linguagem segundo a formulaccedilatildeo de Ser e Tempo precisou ser revista apoacutes a viragem
tendo em vista que em 1927 natildeo foi possiacutevel encontrar seu fundamento ontoloacutegico a partir
do Dasein
Por enquanto preferimos a tensatildeo e a suspensatildeo do estado de pergunta Preferimos
o pensar como caminho agraves respostas como soluccedilotildees afinal
ldquoCom seu dizer o pensar abre sulcos imperceptiacuteveis na linguagem Esses satildeo
ainda mais imperceptiacuteveis que os sulcos que a passos lentos o camponecircs abre pelo
campo aforardquo (HEIDEGGER 2008 p376)
146
Bibliografia
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Campinas SP Editora Unicamp Petroacutepolis RJ Editora Vozes 2012
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Ernildo Stein Petroacutepolis Vozes 2008
______________Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas sobre Aristoacuteteles - Introduccedilatildeo agrave
pesquisa fenomenoloacutegica (GA 61) Traduccedilatildeo Enio Paulo Giachini Petroacutepolis Vozes
2011
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situacioacuten hermeneacuteutica Informe Natorp (GA62) Ed e Trad Jesuacutes A Escudero ndash
traduccedilatildeo realizada a partir da ediccedilatildeo alematilde elaborada por Hans Lessing e publicada em
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Joseacute Garciacutea Norro Madrid Siacutenteses 2006
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(GA5657)Trad Jesuacutes Adrian Escudero Barcelona Herder 2005
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- INTRODUCcedilAtildeO
- Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na filosofia
- Introduccedilatildeo
- I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico
- II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias
- II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica
- III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos
- Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica
- Introduccedilatildeo
- I - Os limites da filosofia dos valores
- II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio
- II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger
- III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
- III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger
- Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e Tempo
- Introduccedilatildeo
- I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico
- II A dupla abertura de sentido (Sinn)
- III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)
- II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung)
- Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)
- Introduccedilatildeo
- I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem
- II- O Falatoacuterio (das Gerede)
- Conclusatildeo
- Bibliografia
-
5
Agradecimentos
O trabalho que aqui apresento iniciou-se em Fevereiro de 2014 mas originou-se
haacute 12 anos atraacutes em meu primeiro semestre do curso de graduaccedilatildeo em filosofia na
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas da UFMG Jaacute nas primeiras aulas questionei
a possibilidade de continuar nesse caminho pois ele havia se tornando cada vez mais
exigente e difiacutecil No segundo semestre poreacutem cursei a mateacuteria ministrada pelo professor
Fernando Rey Puente onde ele tentava explicar aos alunos ainda iniciantes como eu As
Categorias de Aristoacuteteles Aquelas aulas foram decisivas para que eu compreendesse trecircs
coisas dedicaccedilatildeo e rigor satildeo o que minimamente podemos oferecer agrave filosofia (ainda
permaneccedilo na busca de realizar tais condiccedilotildees) o pensamento filosoacutefico uma vez
apresentado a noacutes natildeo oferece saiacuteda mas compromisso e ainda aprendi que se a partir
daquele momento eu ficasse imune ao ler um livro de filosofia era melhor deixaacute-la Por
isso meu primeiro agradecimento eacute a esse professor Tambeacutem natildeo poderia deixar de
agradecer ao professor Ernesto Perini Nas mateacuterias ministradas por ele que cursei durante
a graduaccedilatildeo natildeo soacute se revelava para mim a importacircncia da linguagem no interior dos
problemas filosoacuteficos como aprendi que o respeito com os alunos era uma maneira de
ensinaacute-los
Agradeccedilo tambeacutem a todos os funcionaacuterios da FAFICH de forma especial agrave Vilma
bibliotecaacuteria-chefe e ao Andreacute secretaacuterio da poacutes-graduaccedilatildeo Ambos pela solicitude com
que sempre me atenderam em todos os momentos que precisei
Agradeccedilo tambeacutem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e
Tecnoloacutegico (CNPq) pela concessatildeo da bolsa de estudos que permitiu nos uacuteltimos dois
anos minha dedicaccedilatildeo integral agrave pesquisa do mestrado
Agradeccedilo agravequeles que construiacute como amigos o viacutenculo com o mundo Dentre eles
alguns nomes natildeo posso deixar de citar Agradeccedilo agrave Thamara Chain pelos 22 anos de
amizade e compreensatildeo Agradeccedilo agrave Taiacutes Tourinho por ser vigilante acerca de minha
solidatildeo por vezes demasiada Agradeccedilo agrave Nathaacutelia de Aacutevila por me lembrar a natildeo ser tatildeo
seacuteria e que o caminho tambeacutem se faz com leveza Agradeccedilo agrave Carolina Faria pela partilha
do entusiasmo na descoberta promovida pelo estudo Tambeacutem agradeccedilo agrave Ana Godoi
Gustavo Machado e Gabriel Lago Essas pessoas me ensinaram o valor do debate (por
6
vezes infindaacuteveis) e ainda que pensamento e vida satildeo o mesmo A uacutenica maneira que
encontrei para agradececirc-los eacute tornar puacuteblico o fato de que nossas conversas estatildeo em cada
linha dessa dissertaccedilatildeo
Agradeccedilo agrave minha orientadora Virginia Figueiredo pela confianccedila depositada em
mim ao me aceitar como orientanda Tambeacutem por seus comentaacuterios e ensinamentos
imprescindiacuteveis bem como pela leitura e revisatildeo impecaacutevel de meu trabalho Nesse
sentido tambeacutem ao meu coorientador Marco Antocircnio Casanova a quem agradeccedilo tendo
em vista que sem sua presenccedila algumas partes dessa dissertaccedilatildeo natildeo seriam possiacuteveis
Agradeccedilo minhas irmatildes Jana e Nanda por serem minhas primeiras e eternas
melhores amigas E por fim agradeccedilo agravequeles por quem o meu sentimento entre o amor
a gratidatildeo e a admiraccedilatildeo natildeo alcanccedila a palavra aos meus pais Adauto e Delza Esse
trabalho eacute para vocecircs
7
VERBO SER
Carlos Drummond de Andrade
Que vai ser quando crescer
Vivem perguntando em redor Que eacute ser
Eacute ter um corpo um jeito um nome
Tenho os trecircs E sou
Tenho de mudar quando crescer Usar outro nome corpo e jeito
Ou a gente soacute principia a ser quando cresce
Eacute terriacutevel ser Doacutei Eacute bom Eacute triste
Ser pronunciado tatildeo depressa e cabe tantas coisas
Repito Ser Ser Ser Er R
Que vou ser quando crescer
Sou obrigado a Posso escolher
Natildeo daacute para entender Natildeo vou ser
Vou crescer assim mesmo
Sem ser Esquecer
ldquoAdmitamos que natildeo haja essa significaccedilatildeo indeterminada e que natildeo entendemos sempre o que lsquoserrsquo significa O que ocorreria nesse caso Apenas um nome e um verbo de menos em nossa linguagem De forma alguma Jaacute natildeo haveria simplesmente linguagem alguma Natildeo ocorreria que o ente se nos abrisse de modo a poder ser chamado e dito Pois dizer o ente como tal implica compreender de antematildeo o ente como ente isto eacute o seu ser Suposto que noacutes simplesmente natildeo compreendecircssemos o ser suposto que a palavra lsquoserrsquo natildeo tivesse nem mesmo aquela significaccedilatildeo flutuante entatildeo jaacute natildeo haveria absolutamente nenhuma palavra Noacutes mesmos nunca poderiacuteamos ser aqueles que falam Laacute natildeo poderiacuteamos ser o que somos Pois ser homem significa ser um dizenterdquo
Heidegger Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica
8
Resumo
O presente trabalho tenta evidenciar a partir da obra Ser e Tempo de Martin
Heidegger como a linguagem (die Sprache) eacute a manifestaccedilatildeo uacuteltima da historicidade de
todo e qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como esses significados satildeo
sustentados por um campo de sentido tambeacutem histoacuterico A partir dessa primeira descriccedilatildeo
o trabalho visa esclarecer como a linguagem no uso cotidiano ou o falatoacuterio (das Gerede)
obscurece o caraacuteter histoacuterico do fenocircmeno da linguagem e dos significados que a sustenta
Portanto esta Dissertaccedilatildeo caminha em duas vias que se tocam a primeira pretende
descrever o que chamamos de estrutura ontoloacutegica da linguagem a partir do
redimensionamento da pergunta heideggeriana pelo ser a fim de indicar como as palavras
em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da experiecircncia
hermenecircutica ou seja atraveacutes da compreensatildeo ontoloacutegica preacutevia a linguagem a segunda
pretende mostrar o fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana como comunicaccedilatildeo
ou discurso (die Rede) a qual jaacute se expressou e a cada vez se expressa sempre repetida
e difundida no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada
pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte
compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente
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Abstract
The present thesis focuses on demonstrating in what manner language (die
Sprache) is the lattermost manifestation of the historicity of any meaning that can come
to words as well as through what agency those meanings are upheld by a conjointly
historical field of meaning insofar as stated by Martin Heidegger in his work ldquoBeing and
Timerdquo (Sein und Zeit) As of this writing our work aims at unraveling by what means
language in its trivial use or the talk (das Gerede) overshadows the historical aspect and
the meanings that withstand the phenomenon of language Hence the present work is
developed in two adjoining ways the first one endeavors to describe the ontological
structure of language deriving out of the resizing of Heideggers question of being that
has the aim of indicating how the words in context of enunciation inherit their meaning
from previous structures of the hermeneutic experience that is through the prior
ontological understanding of the language The second one aims at revealing the language
phenomenon in the median everydayness as communication or discourse (die Rede)
which has already been expressed and is still expressed always repeated and spread in
the talk that obliterates the comprehensive horizon by reducing all beings to an
undifferentiated homogenization and making them available to our linguistic resources
since it is the primary opening of the sense of being that any and all entities have
10
Sumaacuterio INTRODUCcedilAtildeO 11
Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo sentido do conhecimento na
filosofia 15
Introduccedilatildeo 15
I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do
conhecimento como essencialmente histoacuterico 17
II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em
relaccedilatildeo agraves ciecircncias 22
II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica 29
III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos 33
Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica 42
Introduccedilatildeo 42
I - Os limites da filosofia dos valores 44
II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio 53
II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger 58
III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal 68
III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger 72
Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e
Tempo 80
Introduccedilatildeo 80
I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou
o ldquocomordquo hermenecircutico 88
II A dupla abertura de sentido (Sinn) 88
III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit) 103
II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung) 110
Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede) 122
Introduccedilatildeo 122
I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem 123
II- O Falatoacuterio (das Gerede) 134
Conclusatildeo 143
Bibliografia 146
11
INTRODUCcedilAtildeO
Estamos diante de um livro Ser e Tempo Abrimo-lo Com o que nos confronta
em sua primeira paacutegina Que natildeo temos desde Platatildeo ateacute hoje resposta agrave pergunta sobre
o que queremos dizer com a palavra lsquoentersquo Natildeo haacute como ficar imune diante da
constataccedilatildeo E se ateacute hoje essa palavra natildeo nos eacute transparente eacute porque aqueles que se
propuseram a andar no caminho do pensamento natildeo souberam perguntar sobre o ente e
isso porque natildeo souberam afinal perguntar sobre o ser Heidegger natildeo nos propotildee sair do
caminho mas uma nova maneira de caminhar Ele nos promete uma resposta Natildeo Ele
propotildee uma vez mais a pergunta pelo ser O objetivo do tratado eacute elaborar essa questatildeo
De que modo Ele agora pergunta Qual o sentido de ser
Nossa pesquisa poderia partir daiacute Iniciariacuteamos a exposiccedilatildeo de nosso trabalho
nessa pergunta e prosseguiriacuteamos em Ser e Tempo De modo algum Seria um
contrassenso para algueacutem que queira estudar a linguagem em Heidegger partir de uma
sentenccedila como se ela fosse oacutebvia Afinal por qual motivo Heidegger natildeo pergunta ldquoO
que eacute o serrdquo ou ldquoHaacute o serrdquo Fechamos Ser e Tempo Eacute preciso compreender como essa
pergunta ganhou uma determinada forma Mas para onde ir
Ser e Tempo eacute uma obra do seacuteculo XX uma obra de filosofia portanto jaacute eacute parte
de nossa tradiccedilatildeo jaacute temos uma preacute-compreensatildeo dela Sabemos previamente que ela
transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica e que o nosso autor expotildee seu caminho
em um texto de 1963 chamado ldquoMeu caminho na fenomenologiardquo Parece-nos um bom
iniacutecio e vamos ao texto Heidegger descreve o iniacutecio de seus estudos o contato com a
obra inaugural da fenomenologia de Husserl e com a tese de Brentano sobre Aristoacuteteles
aiacute se vecirc germinar ainda que de maneira imprecisa sua questatildeo central Mas isso se
mostrou insuficiente para compreender a pergunta posta em Ser e Tempo Recorremos
entatildeo aos textos de Husserl Jaacute na introduccedilatildeo do II volume agrave obra citada por Heidegger
ndash Investigaccedilotildees Loacutegicas - Husserl descreve a necessidade de a fenomenologia
posicionando-se contra a psicologia explicativa procurar sua fundamentaccedilatildeo da loacutegica
numa nova teoria do conhecimento objetiva Nossa jaacute citada preacute-compreensatildeo nos levou
a Dilthey ao descobrir que esse autor tambeacutem se opocircs ao meacutetodo da psicologia
explicativa Vamos tambeacutem aos seus textos Mas a pergunta aparece teraacute sido tatildeo grande
12
a influecircncia que a psicologia explicativa exercia naquela eacutepoca a ponto de exigir que
tantos pensadores sentissem a necessidade de se opor a ela e ao seu meacutetodo
Como se isso natildeo bastasse revelou-se que ambos os autores Dilthey e Husserl
travam diaacutelogo nem sempre expresso com o neokantismo Agrave revelia de todos julguei
que natildeo deveria desconsiderar mais essa referecircncia tendo em vista que um dos principais
nomes dessa corrente ndash Rickert- foi citado por Heidegger no importante (para esta
pesquisa) texto de 1963 ao qual me referi haacute pouco Entatildeo me perguntei o que une esses
trecircs nomes Dilthey Husserl e Rickert Estaacute posta a tarefa do primeiro capiacutetulo da
Dissertaccedilatildeo
Nele tentei compreender como a partir do desenvolvimento das ciecircncias positivas
particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma profunda discussatildeo acerca do sentido e
da possibilidade do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo busca uma
filosofia propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana procura a
autonomia da filosofia frente agrave ciecircncia positiva mas que serviria de base a toda e qualquer
ciecircncia Tambeacutem nesse contexto aparece a contribuiccedilatildeo de Dilthey a qual acrescenta o
caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e traz agrave tona o sentido do conhecimento como
essencialmente histoacuterico
Mas natildeo chegamos ao que nos propomos estamos ainda nos prolegocircmenos Por
qual motivo Heidegger pergunta Qual o sentido de ser Ser e Tempo continua fechado
Precisamos entatildeo reavaliar nossa preacute-compreensatildeo Se como dissemos Ser e Tempo
transita entre a fenomenologia e a hermenecircutica eacute preciso analisar como essas influecircncias
aparecem no pensamento de Heidegger Vamos a algumas preleccedilotildees do autor anteriores
agrave obra central de nosso trabalho Eacute preciso indicar que nossa intenccedilatildeo natildeo eacute abordar as
preleccedilotildees como processos evolutivos como que para esclarecer em termos de causa e
efeito a publicaccedilatildeo posterior lsquomadurarsquo de Ser e Tempo Mas destacar como as questotildees
desses textos acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a
problemaacutetica cujo desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927
Estaacute posta a tarefa de nosso segundo capiacutetulo
Nele trata-se de compreender como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere
Heidegger no interior da referida discussatildeo pelo sentido do conhecimento Mas ao
mesmo tempo tentaremos mostrar como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva
(considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal)
e a introduccedilatildeo do elemento hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com
13
Heidegger a pergunta fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do
conhecimento e passou a ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto
nosso segundo capiacutetulo pretende analisar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger
no interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do
conhecimento ao sentido do ser
Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido
de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a
teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo
pelo sentido do ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir
da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para
uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no
curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER 2006 p122) o elemento
hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave fenomenologia
que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em
seu ser Podemos abrir novamente Ser e Tempo
Esse percurso foi necessaacuterio para que pudeacutessemos conquistar um solo
interpretativo e sobretudo alcanccedilar a pergunta pelo sentido de ser Pois ela a pergunta
estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura de sentido que precisamos explicitar
E assim no terceiro e central capiacutetulo da Dissertaccedilatildeo apresentar como em Ser e Tempo
o fenocircmeno da linguagem (Sprache) aparece no interior dessa compreensatildeo e em que
medida a linguagem eacute possiacutevel por uma estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Dito de
outro modo na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto
ontoloacutegico do conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e
qualquer significado que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido tambeacutem
histoacuterico em que algo pode se manter em seu significado Eacute nessa perspectiva que
procuramos a estrutura ontoloacutegica da linguagem
Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a
ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo
material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos
que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas
que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela
dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se
estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o
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que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes1rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que
somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em
fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo
Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por
Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um
fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo
incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como
descoberto A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo cotidiano Heidegger chama de
ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio
natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute
encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas tomadas como oacutebvias
Esse eacute o caminho do nosso trabalho mas eacute apenas o iniacutecio Ele natildeo pretende
encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender a
ldquopassagem para o poeacutetico2rdquo na obra de Heidegger como uma tentativa de desvencilhar-se
do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Por enquanto preferimos a tensatildeo
e a suspensatildeo do estado de pergunta Ser e Tempo continuaraacute aberto Tentaremos nos
manter fieis agrave orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica Diante da pergunta de
Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na cidade Soacutecrates responde
ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso irrdquo3
1 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo Wolf
Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249 2 Cf NUNES 2012 3 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9
15
Capiacutetulo I ndash A autonomia das ciecircncias positivas e a busca pelo
sentido do conhecimento na filosofia
Chega um tempo em que natildeo se diz mais meu Deus () Chegou um tempo em que natildeo adianta morrer Chegou um tempo em que a vida eacute uma ordem
A vida apenas sem mistificaccedilatildeo (Os Ombros Suportam o Mundo Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
Conforme Merleau Ponty a fenomenologia surge como uma tentativa para
resolver um problema natildeo de uma seita mas talvez o problema do seacuteculo o problema
que se punha desde 1900 para todo o mundo e ainda eacute hoje colocado (PONTY M1973
Pag15) O problema refere-se agrave crise das ciecircncias humanas (Geistenwissenschaften) e agraves
ciecircncias naturais
Se o fundamento dos princiacutepios da geometria e da fiacutesica eram objetos de
investigaccedilatildeo de Husserl e o levou ao caminho da pesquisa de uma filosofia sem
pressupostos- bem como as investigaccedilotildees dos chamados neokantianos da escola de
Marburg que os levaram agrave tentativa de fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas - as
ciecircncias humanas tambeacutem se desenvolviam no auspiacutecio de sua proacutepria ambiguidade
A medida que se desenvolviam as pesquisas psicoloacutegicas socioloacutegicas
histoacutericas tendiam a nos apresentar todo pensamento toda opiniatildeo e em
particular toda filosofia como o resultado da accedilatildeo combinada das condiccedilotildees
psicoloacutegicas sociais histoacutericas anteriores A psicologia tendia para o que Husserl
denomina psicologismo a sociologia o sociologismo histoacuteria para o
historicismo Ora com isto elas acabavam por erradicar seus proacuteprios
fundamentos (PONTY1973 p15)
Na medida em que os princiacutepios orientadores do homem histoacuterico social e
psicoloacutegico satildeo elementos externos e imbricados de certa contingecircncia conforme os
resultados mesmos dessas pesquisas o pesquisador punha suas proacuteprias afirmaccedilotildees em
duacutevida pois o fundamento de todas elas eacute tambeacutem contingente e o valor de verdade de
suas conclusotildees fluido Contudo quando algo faz aparecer opositores observando e
16
diagnosticando seus problemas fundamentais eacute porque encontra-se em evidecircncia e jaacute
atingiu certo grau de adesatildeo sendo necessaacuterio apontar elementos obliterados em sua
suposta evidecircncia
A autonomia das ciecircncias positivas frente aos sistemas filosoacuteficos em meados do
seacuteculo XIX na Alemanha acompanhava um crescente desprestiacutegio da metafiacutesica e da
filosofia da natureza sendo a reflexatildeo metodoloacutegica suplantada por novos procedimentos
-e uma nova visatildeo de mundo- em que vigoravam o conhecimento empiacuterico impessoal e
temporal
Se a filosofia jaacute natildeo parecia ter condiccedilotildees de responder agraves questotildees dessa nova
visatildeo de mundo cientiacutefica com as propostas da psicologia experimental - baseada no
modelo metodoloacutegico das ciecircncias naturais- ela a filosofia parecia estar condenada ao
ostracismo sendo capaz apenas de se colocar como curiosidade histoacuterica A psicologia
experimental ou explicativa considerava que um procedimento verdadeiramente
cientiacutefico deveria ser baseado na observaccedilatildeo empiacuterica ela era a interpretaccedilatildeo da verdade
atraveacutes de causas psiacutequicas responsaacuteveis pela efetuaccedilatildeo do juiacutezo(MACDOWEL 1993
p28)
O ponto crucial dessa posiccedilatildeo eacute o fato de que o estudo da loacutegica enquanto
estrutura do pensamento estaacute condicionado aos meacutetodos e princiacutepios da psicologia e
portanto condicionada a tipos de demonstraccedilotildees empiacutericas Uma investigaccedilatildeo dessa
espeacutecie - a loacutegica condicionada a demonstraccedilotildees empiacutericas - eacute a negaccedilatildeo da tarefa proacutepria
agrave filosofia (mesmo quando um ou outro pensador negue por exemplo a idealidade loacutegica
ainda assim o faz inserido nessa tarefa de investigaccedilatildeo) pois a loacutegica como doutrina
voltada para uma purificaccedilatildeo radical dos elementos materiais da linguagem e para uma
subsequente reconciliaccedilatildeo entre pensamento e verdade se mostra como expressatildeo
maacutexima do projeto originaacuterio da tradiccedilatildeo (CASANOVA Introduccedilatildeo In DILTHEY
2011p8)
Nesse contexto surgem reaccedilotildees ao modelo predominante das ciecircncias naturais
sobretudo em relaccedilatildeo agrave adesatildeo a este modelo pela psicologia e pelas ciecircncias humanas
Dentre essas reaccedilotildees destacamos o projeto da psicologia descritiva e analiacutetica de Dilthey
as contribuiccedilotildees da pesquisa sobre a validade do conhecimento das escolas neokantistas
17
ndash destacando a filosofia dos valores de Windelband e Rickert - e o projeto husserliano de
uma filosofia sem pressupostos que se realizaria atraveacutes do meacutetodo fenomenoloacutegico
Ciente de que natildeo nos eacute possiacutevel aprofundar nessas complexas investigaccedilotildees nossa
intenccedilatildeo nesse primeiro momento de trabalho eacute apenas indicar os elementos
fundamentais de cada posiccedilatildeo e a partir deles compreender no capiacutetulo seguinte em
que medida essas reaccedilotildees se intercruzam e influenciam o autor privilegiado no texto
dessa dissertaccedilatildeo Este eacute o objetivo de nosso primeiro capiacutetulo
Nosso primeiro capiacutetulo eacute a tentativa de compreender como a partir do
desenvolvimento das ciecircncias positivas particulares no final do seacuteculo XIX emerge uma
profunda discussatildeo acerca do sentido e possibilidade do conhecimento Nesse contexto o
neokantismo busca uma filosofia propriamente cientiacutefica ndash como reflexo da exigecircncia de
sua proacutepria eacutepoca ndash enquanto a fenomenologia husserliana busca a autonomia da filosofia
descontiacutenua agrave ciecircncia positiva mas que seria a base de toda e qualquer ciecircncia Tambeacutem
nesse contexto emerge como elemento fundamental para o desenvolvimento de nosso
trabalho a tarefa geral de Dilthey que mesmo imersa nas exigecircncias positivistas de seu
tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda interpretaccedilatildeo e potildee em tela o sentido
do conhecimento como essencialmente histoacuterico
I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias
do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente
histoacuterico
Dilthey contra a mera transposiccedilatildeo do meacutetodo das ciecircncias naturais agraves ciecircncias
do espiacuterito ldquose deu conta que a pretensatildeo de entender filosoficamente as disciplinas
histoacutericas soacute poderia levar-se a um porto seguro se reflexiona acerca do que eacute o objeto
das ditas ciecircnciasrdquo (HEIDEGGER 2006p33)
As ciecircncias naturais segundo Dilthey se relacionam com os objetos na medida
em que esses satildeo ou fatos simultacircneos ou sucessivos e aparecem agrave consciecircncia sempre
como dados externos assim recorrendo a uma hipoacutetese como recurso explicativo
condicionada agrave verificaccedilatildeo a partir de maior ou menor incidecircncia desses fatos Os
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resultados das ciecircncias naturais seriam portanto conclusotildees complementares que
tentariam explicar os fenocircmenos externos (observados como fenocircmenos particulares) e
ordenaacute-los pela funccedilatildeo explicativa da ciecircncia que movimenta da parte (fenocircmenos
unitaacuterios) ao todo (explicaccedilatildeo ordenadora)
Poreacutem os fenocircmenos das ciecircncias humanas aparecem internamente agrave consciecircncia
com realidade de uma lsquoconexatildeo vivarsquo sendo essa conexatildeo da vida psiacutequica
originariamente dada compreensivamente a qualquer homem histoacuterico vivente A anaacutelise
ou distinccedilatildeo dos elos particulares dessa conexatildeo eacute posterior pois o que se daacute
imediatamente agrave consciecircncia eacute a conexatildeo constante das proacuteprias vivecircncias e ldquoa vida natildeo
se faz senatildeo como conexatildeordquo (DILTHEY W2011 pag30) natildeo tendo sentido a partir
dessa evidecircncia falar em algo como deduccedilatildeo dos fenocircmenos psiacutequicos
Exige-se portanto agrave psicologia um outro procedimento pois satildeo somente os
dados da psicologia descritiva que poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar
para as ciecircncias humanas O que estaacute em jogo para Dilthey contra a psicologia
explicativa eacute mostrar como a teoria do conhecimento relativa agraves ciecircncias do espiacuterito e
tambeacutem agrave filosofia natildeo pode abrir matildeo da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica Poreacutem em funccedilatildeo
da especificidade de seus objetos reclama outros meacutetodos que natildeo aqueles das ciecircncias
naturais
Dilthey natildeo aceita os pressupostos do retorno agrave filosofia kantiana4 para a
fundamentaccedilatildeo de suas investigaccedilotildees pois a cisatildeo entre mateacuteria e forma proveniente
desse sistema natildeo serve agraves ciecircncias do espiacuterito e natildeo pode ser mais sustentada diante da
evidecircncia da vida conexa e estruturante da vivecircncia da consciecircncia
4 Sobre esse aspecto eacute importante apresentar duas consideraccedilotildees 1) No interior da biografia de
Schleiermacher de 1860 Dilthey destaca a importacircncia de alguns aspectos do texto de Kant ldquoA religiatildeo
nos limites da simples razatildeordquo (1793) para o desenvolvimento da hermenecircutica de Schleiermacher 2)
Contudo talvez sob influecircncia do debate neokantiano agrave eacutepoca Dilthey apresenta o essencial da filosofia
kantiana como sendo a Criacutetica da Razatildeo Pura ou seja a teoria do conhecimento referente agraves ciecircncias
naturais E nesse sentido que a divisatildeo entre mateacuteria e forma como exposta na primeira criacutetica natildeo eacute
suficiente agrave elaboraccedilatildeo da epistemologia das ciecircncias humanas Sobre esse assunto Cf Kant und die
philosophische Hermeneutik in Kant-Studien 66 (1975) pp 395-403 Traduccioacuten de Angela Ackermann
Pilaacuteri en GADAMER H-G Los caminos de Heidegger Herder Barcelona 2002 pp 57-66 Cf
Beckenkamp J Kant e a hermenecircutica moderna in Kriterion vol51 no121 Belo Horizonte Junho 2010 e
tambeacutem Cf REIS JC A ldquocriacutetica histoacuterica da razatildeordquo Dilthey versus Kant In Textos de histoacuteria UNB
vol10 nordm12 v 10 (2002) pp-159-179
19
ldquoA cisatildeo entre mateacuteria e forma do conhecimento que eacute levada a termo no sistema
kantiano tambeacutem natildeo pode ser hoje mantida Muito mais importante do que essa
cisatildeo satildeo as relaccedilotildees internas que subsistem por toda a parte entre a multiplicidade
das sensaccedilotildees como a mateacuteria do nosso conhecimento e a forma na qual
apreendemos a mateacuteriardquo (DILTHEY W2011 p37)
Para REIS (2003)5 Dilthey eacute associado ao historicismo como seu maior teoacuterico
Ainda como aponta REIS nem todos pesquisadores de sua obra concordam com este
veredito alguns ateacute mesmo questionam se Dilthey poderia ser considerado um
historicista pois em seu projeto de construccedilatildeo de uma epistemologia das ciecircncias
humanas ao se opor ao historicismo romacircntico Dilthey recairia em certo positivismo De
todo modo analisar detalhadamente esta discussatildeo natildeo nos eacute possiacutevel o que nos interessa
aqui eacute apontar que apesar de fazer coro com as caracteriacutesticas gerais deste movimento
Dilthey se destaca por sua busca propriamente epistemoloacutegica das ciecircncias humanas a
partir da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos se afastando em diversos pontos
do chamado ldquoirracionalismordquo romacircntico mas sem reduzir o historicismo agrave pura
epistemologia e sobretudo lanccedilando bases teoacutericas com pretensatildeo cientiacutefica para a
abordagem dos fenocircmenos histoacutericos
ldquoO aspecto positivista da sua teoria devia-se agrave atmosfera naturalista em que ele
viveu As ciecircncias naturais impuseram o seu padratildeo de rigor e objetividade No
seacuteculo XIX a morte da filosofia sistemaacutetica cedeu seu lugar a uma ldquofilosofia
cientiacuteficardquo Natildeo era uma filosofia especulativa mas ldquoestudos positivos com
intenccedilatildeo filosoacuteficardquo O filoacutesofo natildeo podia pensar em qualquer objeto sem recorrer
a estudos concretos ao estudo de fontes primaacuterias extraiacutedas do mundo real
Dilthey neste sentido quis que sua filosofia fosse cientiacutefica Eacute uma teoria do
conhecimento das ciecircncias morais que estudam as relaccedilotildees e eventos positivos
do mundo histoacuterico-social () Aiacute reside seu positivismo que segundo Aron ele
nunca superou e que eacute sua originalidade () Sua tese eacute as ciecircncias humanas
existem como lsquociecircncias e eacute vatildeo discutir o seu caraacuteter cientiacutefico em nome de uma
teoria preconcebida da ciecircnciarsquordquo (REIS 2003p32)
Dilthey se destaca no movimento historicista pela sua preocupaccedilatildeo com o meacutetodo para
as ciecircncias humanas consciente de sua especificidade ou da metodologia autocircnoma dessa
disciplina na medida em que histoacuteria e vida se encontram pela compreensatildeo sendo a vida
ao mesmo tempo histoacuterica e psicoloacutegica E o fato de natildeo haver um modelo universal
sistemaacutetico da histoacuteria natildeo reduz sua pesquisa em uma descriccedilatildeo caoacutetica dos eventos
5 Seguindo a interpretaccedilatildeo de Freunde e Ortega y Gasset Cf REIS JC 2003 p31
20
Vivecircncia compreensatildeo e expressatildeo eacute a triacuteade fundamental para o pensamento de
Dilthey e sua ldquocriacutetica da razatildeo histoacutericardquo consiste em delinear como a construccedilatildeo do
mundo histoacuterico no sujeito torna possiacutevel um saber sobre a realidade espiritual
apreendendo aiacute a partir da experiecircncia do mundo histoacuterico o princiacutepio real das ciecircncias
humanas A reconstruccedilatildeo do mundo da vida natildeo pode ser reduzida a uma soma de
elementos que possam descrevecirc-lo Mais do que isso a vida histoacuterica de um determinado
tempo eacute vivenciada por uma ligaccedilatildeo imediata entre o sujeito e seu tempo cada vivecircncia
sinaliza para a concretude objetiva do espiacuterito da eacutepoca O que importa nesta perspectiva
eacute que a realidade objetiva seja garantida pela proacutepria vivecircncia que eacute ldquoerigida agrave condiccedilatildeo
de categoria epistemoloacutegica fundamental em oposiccedilatildeo ao conceito de representaccedilatildeordquo
(AMARAL2004 p53) ou seja a objetividade da vivecircncia lhe eacute imanente A vivecircncia
(Erlebnis) natildeo eacute mera vida orgacircnica (Leben) mas o encontro indissociaacutevel entre a histoacuteria
e a vida dos homens Se por um lado natildeo eacute possiacutevel acompanhar o horizonte de sentido
de uma eacutepoca sem esta primeira experiecircncia viacutevida cujas expressotildees satildeo particulares por
outro lado eacute somente atraveacutes da compreensatildeo que a vivecircncia eacute alargada superando a
unilateralidade da experiecircncia singular
ldquoA compreensatildeo eacute um reencontro do eu no tu o espiacuterito encontra-se em niacuteveis
cada vez mais elevados da conexatildeo essa mesmidade do espiacuterito no eu no tu em
cada sujeito de uma comunidade em todo sistema da cultura por fim na
totalidade do espiacuterito e da histoacuteria universal torna possiacutevel a atuaccedilatildeo conjunta
das diversas capacidades nas ciecircncias humanas O sujeito do saber estaacute assim
unido com o seu objeto e esse objeto eacute o mesmo em todos os niacuteveis de sua
objetivaccedilatildeo Se a objetividade do mundo espiritual criada no sujeito eacute reconhecida
por este procedimento surge a pergunta sobre o quanto isso pode contribuir para
a resoluccedilatildeo do problema do conhecimento em geralrdquo (DILTHEY 2006p168)
A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo eacute ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da
hermenecircutica de Dilthey pois traz em si a categoria do significado como o nexo da
vivecircncia com a realidade concreta sem se apoiar em qualquer elemento transcendente agrave
proacutepria experiecircncia psicoloacutegica vivida
ldquoA categoria do significado designa a relaccedilatildeo entre as partes da vida e o todo
uma relaccedilatildeo que estaacute fundada na essecircncia da vida Soacute possuiacutemos essa conexatildeo
por meio da memoacuteria na qual podemos visualizar o transcurso vital do passado
Na memoacuteria faz-se valer entatildeo o significado como a forma de apreensatildeo da vida
Captamos o significado de um momento passado Ele eacute significativo na medida
em que nele se realiza um viacutenculo com o futuro por meio da accedilatildeo ou por meio de
um acontecimento exterior Ou na medida em que foi concebido o plano de uma
conduccedilatildeo futura da vida Ou na medida em que um plano de sua realizaccedilatildeo foi
21
levado a termo Ou ele eacute significativo para a vida conjunta na medida em que a
intervenccedilatildeo do indiviacuteduo se realiza nessa vida na qual sua essecircncia mais proacutepria
interveio na configuraccedilatildeo da humanidade Em todos esses e em outros casos o
momento particular possui significado por meio de sua conexatildeo com o todo por
meio da ligaccedilatildeo entre passado e futuro entre existecircncia particular e a
humanidaderdquo (DILTHEY 2006p224)
A relaccedilatildeo entre vivecircncia e compreensatildeo deve ser entendida como ldquoos dois lados
do processo loacutegico dois lados que se interpenetram mutualmenterdquo (DILTHEY
2006p213) sendo a forma de compreender enquanto meacutetodo a ldquoinduccedilatildeo que deduz das
particularidades parcialmente determinadas para noacutes uma conexatildeo que define o todordquo
(DILTHEY 2006p214) Mas isso soacute eacute possiacutevel pelas categorias que residem na essecircncia
da proacutepria vida categorias que natildeo satildeo dadas a priori e nem podem ser formalizadas
logicamente Satildeo categorias preenchidas no interior de certa unidade espaccedilo-temporal
pois ldquoa vida encontra-se em uma relaccedilatildeo maximamente proacutexima com o preenchimento
do tempo() No tempo a vida existe na relaccedilatildeo das partes com uma conexatildeordquo
(DILTHEY 2006p219)
O conjunto das realizaccedilotildees da compreensatildeo enquanto conexotildees estruturais
objetivas ou objetivaccedilatildeo da proacutepria vida no mundo exterior eacute o conceito das ciecircncias
humanas e ldquotudo aquilo em que o homem por sua atuaccedilatildeo imprimiu sua marca constitui
o objeto das ciecircncias humanasrdquo (DILTHEY 2006 p112) Tendo em vista esse objeto a
tarefa do pesquisador ldquoconsiste na apreensatildeo do mundo do espiacuterito como uma conexatildeo
dos efeitos ou como uma conexatildeo contida em seus produtos duradourosrdquo (DILTHEY
2006p118) A conexatildeo dos efeitos dos produtos da ciecircncia histoacuterica natildeo eacute como o nexo
causal da natureza pois diferentemente da natureza as conexotildees da vida objetiva do
espiacuterito geram valores e realizam fins a vida histoacuterica natildeo eacute reproduccedilatildeo ciacuteclica de si
mesma ndash como a vida natural - mas eacute sempre criativa e ativa na produccedilatildeo desses valores
e bens como seu caraacuteter imanente mais proacuteprio
E eacute nessa apreensatildeo do tear da vida histoacuterica na qual o tempo a vivecircncia e
compreensatildeo estatildeo imbricados e se interpelam o significado ldquoeacute a categoria abrangente
sob a qual a vida se torna concebiacutevelrdquo (DILTHEY 2006p222)
ldquoDito de outro modo conceber algo atribuir valor e estabelecer fins para algo
satildeo atitudes vitais inter-dependentes que configuram as vivecircncias e assim sendo
nos ajudam a construir a proacutepria realidade em que vivemos Vivecircncia e realidade
22
satildeo como que tecidas conjuntamente graccedilas ao apoio da ldquocategoria do
significadordquo (AMARAL 2004p55)
As expressotildees da vivecircncia possuem sua objetividade na medida em que os objetos
as pessoas os valores e os juiacutezos apoiados nesta relaccedilatildeo enraiacutezam-se nos significados
comuns do mundo da vida significados esses que satildeo vivenciados e compreendidos
perfazendo a proacutepria construccedilatildeo do mundo histoacuterico ldquoe consequentemente de sua
compreensatildeo como tarefa basilar das ciecircncias do espiacuteritordquo (AMARAL 2004p57)
II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar
proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias6
Ainda na reaccedilatildeo contra o empirismo positivista do final do seacuteculo XIX e
sobretudo ao psicologismo desenvolveram-se as investigaccedilotildees dos chamados
neokantianos um ldquomovimento com profundas raiacutezes no seacuteculo dezenove [que] dominou
a academia filosoacutefica alematilde entre 1890 e 1920rdquo (CROWELL2001 p23)
Seguindo a exposiccedilatildeo de Crowell o movimento neokantiano pode ser dividido em
trecircs momentos profundamente relacionados com os acontecimentos histoacutericos poliacuteticos
e sociais da Alemanha na virada do seacuteculo XIX para XX Natildeo seraacute possiacutevel nos
aprofundarmos muito na especificidade de cada momento desse movimento bem como
nas suas relaccedilotildees com outras mateacuterias Como jaacute foi dito acima nossa proposta nessa
breve introduccedilatildeo eacute apenas mostrar a importacircncia desse movimento na formaccedilatildeo do
pensamento de Heidegger7 e indicar o contexto geral no qual nasce esse pensamento
6 O neokantismo eacute um movimento complexo e com muitas nuances Como nossa intenccedilatildeo eacute apresentar o
contexto no qual surge o pensamento de Heidegger natildeo pretendemos nos aprofundar e muito menos
desdobrar as divergecircncias entre seus representantes principais atraveacutes do acesso direto agraves suas obras
Portanto seguiremos nesse toacutepico a leitura de Crowell (2001) e Joseacute Rezende Juacutenior (2013) recorrendo
quando necessaacuterio a outros comentadores Destacamos os elementos centrais do pensamento de
Windelband e sobretudo de Rickert pois a partir da anaacutelise da preleccedilatildeo de 1919 de nosso autor ldquoA filosofia
e o problema da concepccedilatildeo de mundordquo ndash em que Heidegger investiga a possibilidade da filosofia como
ciecircncia originaacuteria ndash a posiccedilatildeo desses autores eacute decisiva para elaboraccedilatildeo dos problemas do meacutetodo de acesso
a imediatidade da vida e na primeira parte da referida preleccedilatildeo Heidegger expotildee os pressupostos e
problemas do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e sua dependecircncia ao material teoacuterico das ciecircncias particulares 7 Aleacutem do exposto em nota acima (6) seguimos a leitura de Gianni Vattimo em Introduccedilatildeo a Heidegger
No primeiro capiacutetulo Vattimo mostra a importacircncia dos anos de estudos universitaacuterios de Heidegger em
Freiburg sob orientaccedilatildeo de Heinrich Rickert para o desenvolvimento da questatildeo central de seu
pensamento a questatildeo do ser Segundo Vattimo em sua tese de livre docecircncia de 1916 Heidegger jaacute
23
contexto de uma disputa pela ldquoNova Filosofiardquo que dividiu a Fenomenologia de um lado
e os Neokantianos de outro
ldquoAmbos os movimentos reivindicam o tiacutetulo de filosofia cientiacutefica mas o
neokantismo difere da fenomenologia em manter uma continuidade entre a
ciecircncia positiva e filosofia A teoria da ciecircncia a epistemologia neokantiana
deseja fornecer fundamentos para os princiacutepios de base (lsquocientiacuteficosrsquo) da visatildeo de
mundo A Fenomenologia (aqui Husserl e o jovem Heidegger) ao contraacuterio
estabelece a autonomia da filosofia precisamente atraveacutes da descontinuidade com
a ciecircncia positiva e os objetos de formaccedilatildeo da visatildeo de mundordquo (CROWELL
2001p24)8
No primeiro periacuteodo (1871-1878) verifica-se ldquocerta continuidade entre o inqueacuterito
aprioriacutestico e empiacuterico A autonomia da filosofia vis-agrave-vis a ciecircncia positiva ainda natildeo
tornou a questatildeo decisivardquo (CROWELL 2001p26) Os neokantianos ainda estavam
dispostos a aceitar que as estruturas fundamentais da realidade revelavam seu caraacuteter
transcendental pois ainda constatavam a necessidade das formas universais atraveacutes das
quais podemos pensar as coisas singulares No projeto positivista a ciecircncia empiacuterica
estuda apenas o conteuacutedo de fato em uma restriccedilatildeo circunstancial dos fenocircmenos jaacute
compreendidos
ldquoTentando superar as aporias da Criacutetica da Razatildeo Pura o idealismo
transcendental neokantiano rejeitou a distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si Os
objetos satildeo totalmente imanentes agrave consciecircncia natildeo somente quanto a sua forma
mas tambeacutem agrave sua mateacuteria ieacute o seu elemento empiacuterico Destarte as categorias
jaacute natildeo constituem meramente o modo de aparecer da realidade mas o seu modo
de ser pois ela natildeo existe senatildeo enquanto presente agrave consciecircncia () Assim o
loacutegico como estudos das determinaccedilotildees fundamentais de vaacuterias regiotildees dos
objetos imanentes agrave consciecircncia ocupa com razatildeo ainda para Kant o lugar
reservado antigamente agrave metafiacutesica A tarefa proacutepria da filosofia consiste numa
Teoria das Ciecircncias ieacute no exame das estruturas a priori ao passo que estas
estudam o conteuacutedo empiacuterico das vaacuterias regiotildees dos objetosrdquo (MACDOWELL
Jp30)
manifestava elementos que o impulsionariam a ir aleacutem da loacutegica a recusa de considerar as categorias como
meras funccedilotildees do pensamento e ainda a exigecircncia de considerar o problema da historicidade e do tempo
Assim no interior da problemaacutetica neokantiana Heidegger jaacute se preocupava com questotildees que o
neokantismo mostrava-se incapaz de resolver Cf Vattimo G1987 pp 10-22
8 ldquoBoth movements lay claim to the mantle of ldquoscientific philosophyrdquo but neo-Kantianism differs from
phenomenology in maintaining a continuity between positive science and philosophy As theory of science
neo-Kantian epistemology wants to provide grounds for a principled (ldquoscientificrdquo) weltanschauung
Phenomenology (here Husserl and the early Heidegger) on the contrary establishes the autonomy of
philosophy precisely through a discontinuity with positive science and the aims of worldview formationrdquo
op cit p 24
24
Durante o segundo periacuteodo neokantiano entre 1878 e o final da Primeira Guerra
Mundial as escolas originadas desse movimento vatildeo acirrar suas diferenccedilas A escola de
Marburg (Cohen Natorp e Cassirer) se opocircs sobretudo agraves interpretaccedilotildees psicoloacutegicas
da Primeira Criacutetica de Kant O campo de investigaccedilatildeo dessa escola era direcionado agrave
fundamentaccedilatildeo loacutegica das ciecircncias exatas tais como a fiacutesica e a matemaacutetica pois o que
estaacute em jogo nessa obra segundo os pesquisadores de Marburg natildeo eacute qualquer
fundamentaccedilatildeo da estrutura psicoloacutegica do conhecimento nem sua origem mas o valor
loacutegico de sua verdade na medida em que ldquoo nosso conhecimento dos objetos reais conteacutem
um elemento que natildeo pode ser reduzido pura e simplesmente a intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo
(MCDOWELL J p29)
No mesmo sentido mas sobretudo em funccedilatildeo da superaccedilatildeo do psicologismo e do
relativismo histoacuterico a escola neokantista de Baden representada principalmente por
Windelband e seu disciacutepulo Rickert estende o retorno a Kant com o propoacutesito da
elaboraccedilatildeo de uma loacutegica das ciecircncias humanas O desenvolvimento da filosofia dos
valores (Werttheorie) realizado por essa escola reconhecia a necessidade de diferenciar o
conhecimento da natureza do conhecimento da cultura nesse uacuteltimo caso as leis
deveriam ser explicadas a partir dos valores que neles satildeo presentes Aqui sem duacutevida
existe um ponto de contato com o projeto de Dilthey que nos exige um breve excurso para
desenhar com linhas mais precisas a especificidade de cada projeto
A criacutetica agrave metafiacutesica inaugurada pela filosofia criacutetica de Kant (negando ao
conhecimento qualquer acesso a elementos suprassensiacuteveis) eacute absorvida por Dilthey e
pelos neokantianos contudo a epistemologia das ciecircncias histoacutericas como filosofia
criacutetica da histoacuteria ao recorrer a Kant deveria como aponta Reis (2002 p 166) ldquoou
substituir ou completar ou subordinar ou se coordenar agrave [criacutetica] de Kantrdquo e nesse sentido
eacute possiacutevel observar a fissura entre os projetos Poderiacuteamos dizer que para Dilthey eacute
necessaacuterio superar Kant pois as categorias abstratas do conhecimento satildeo tributaacuterias de
relaccedilotildees vitais primaacuterias como pensamento que emerge da proacutepria vida histoacuterica pois eacute
a vida histoacuterica em uacuteltima instacircncia que fornece ao pensamento unidade e sentido Jaacute
para os neokantianos de Baden poder-se-ia dizer que houve uma coordenaccedilatildeo com vistas
agrave complementaccedilatildeo agrave criacutetica kantiana tendo em vista que tanto para Windelband como
para Rickert a diferenccedila entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito era legiacutetima
25
para o primeiro como uma distinccedilatildeo metodoloacutegica para o segundo como distinccedilatildeo
loacutegica No interior dessa diferenccedila entre Dilthey e os neokantianos de Baden eacute possiacutevel
observar um ponto ainda mais fundamental mesmo com exigecircncias epistemoloacutegicas
objetivas em seu trabalho Dilthey natildeo aceita o pressuposto de um sujeito transcendental
e eacute antes a vivecircncia do sujeito particular histoacuterico que lhe fornece a base de sua pesquisa
jaacute para Windelband e Rickert o idealismo transcendental eacute mantido com o propoacutesito de
garantir o estatuto cientiacutefico de suas teses Assim enquanto Dilthey atraveacutes dos meacutetodos
proacuteprios faz emergir uma nova concepccedilatildeo de ciecircncia os representantes de Baden
movimentam-se em uma teoria preconcebida da ciecircncia Dito de outro modo ldquoenquanto
Dilthey buscava uma forma de liberar as ciecircncias do espiacuterito do meacutetodo das ciecircncias
naturais Windelband e Rickert procuravam uma definiccedilatildeo de ciecircncia que reconhecesse a
importacircncia dos valoresrdquo (WUR 2010p175)
De maneira geral retornando ao ponto central de nosso toacutepico poderiacuteamos
apontar que as duas escolas neokantianas se diferenciavam essencialmente acerca do
objeto de investigaccedilatildeo Na escola de Marburg Cohen direcionava suas pesquisas ao
chamado ldquofato da ciecircnciardquo e a filosofia seria uma reflexatildeo sobre o conhecimento
cientiacutefico concentrando-se na busca de uma metodologia capaz de descrever
matematicamente a constituiccedilatildeo seu objeto na medida em que seu valor de verdade
encontra-se sob bases loacutegico-matemaacuteticas Jaacute na escola de Baden influenciado pela
filosofia dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade
dos juiacutezos cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de
conciliar ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) A ciecircncia apenas
lida com questotildees de fato e se for necessaacuterio analisar a ldquovisatildeo de mundordquo seremos
obrigados a lidar com os deveres e sobretudo com valores
ldquoEsse enfoque nos valores por parte de Windelband levaraacute o neokantismo de
Baden ao desenvolvimento de uma teoria geral do juiacutezo segundo a qual os juiacutezos
cientiacuteficos (juiacutezos teoacutericos) constituem apenas um tipo de juiacutezo qual seja os
juiacutezos orientados pelo valor verdade Aleacutem dos juiacutezos teoacutericos haveria tambeacutem
juiacutezos natildeo teoacutericos como os juiacutezos eacuteticos esteacuteticos religiosos etc os quais
seriam orientados por outros tipos de valores como o bem o justo o belo o
sagrado etc e os quais diriam respeito a outras dimensotildees da experiecircncia
humana para aleacutem da ciecircncia como a moral o direito a arte a religiatildeo etc Com
isso Windelband procura reformar e ampliar o projeto de Kant Como na Criacutetica
da Razatildeo Pura Kant reduziu o papel da filosofia agrave anaacutelise do caraacuteter a priori dos
juiacutezos teoacutericos especiacuteficos das ciecircncias da natureza trata-se portanto de
completar a empresa kantiana com a anaacutelise do caraacuteter a priori dos outros tipos
26
de juiacutezos Mesmo dentro das ciecircncias eacute preciso distinguir tipos de juiacutezos o que
Windelband faraacute atraveacutes da distinccedilatildeo entre ciecircncias nomoloacutegicas e ciecircncias
ideograacuteficas e Rickert com a distinccedilatildeo entre ciecircncias naturais e ciecircncias
culturaisrdquo (RESENDE 2013p17)
Contudo se ambas escolas se diferenciam na circunspecccedilatildeo de seu objeto existe
um ponto de partida epistemoloacutegico comum o retorno a Kant que indica o lugar proacuteprio
da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias A investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo deve se voltar agrave pesquisa
cientiacutefica de como se daacute tal ou qual conhecimento mas analisar a validade do
conhecimento ou seja aquilo que torna a verdade do conhecimento possiacutevel e esse
problema eacute de ordem transcendental pois natildeo estaacute interessada nos processos cognitivos
mas na condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer processo de conhecimento
ldquoContemporacircneo de Hermann Cohen da escola de Marburg Windelband
enfatizou como este a primazia da abordagem epistemoloacutegica dando
continuidade ao projeto kantiano de limitaccedilatildeo do conhecimento buscando
assegurar a sua validade rejeitando a contingecircncia do histoacuterico e do psicoloacutegico
em prol de uma validade atemporal puramente loacutegica Cohen procurou assegurar
a validade loacutegica do conhecimento cientiacutefico na matemaacutetica procedimento que
Windelband analisa como deficiente pois embora a primeira Criacutetica possa
fundamentar a interpretaccedilatildeo de Cohen a segunda e a terceira Criacuteticas assim
como os textos sobre antropologia histoacuteria e poliacutetica requerem outra
fundamentaccedilatildeo que natildeo a matemaacuteticardquo (WU R2010p3)
A terceira fase do movimento ainda segundo Crowell inicia-se no fim da
Primeira Guerra Mundial e vai ateacute a intervenccedilatildeo Nacional Socialista no sistema
universitaacuterio alematildeo nos anos 30 ldquoRefletindo o colapso do otimismo cultural este
periacuteodo eacute caracterizado por um ataque ao idealismo acadecircmico em nome de
Lebensphilosophie (um termo geneacuterico invocando as teses filosoacuteficas lsquoagrave margemrsquo como
as de Nietzsche Bergson e Dilthey)rdquo (CROWELL2011p28) E nesse sentido as escolas
neokantianas precisaram enfrentar o conflito entre a realidade muacuteltipla e dispersa que no
mais das vezes escapa a qualquer tentativa de apreensatildeo conceitual e loacutegica e portanto
agrave consciecircncia transcendental como postulado que garante a cientificidade do projeto
filosoacutefico neokantista
ldquoNa escola de Baden Logik der Philosophie (1911) e Die Lehre vom Urteil [A
doutrina do juiacutezo] (1912) de Lask antecipam temas do terceiro periacuteodo
Abandonando a interpretaccedilatildeo imanente de Rickert do esquema forma-mateacuteria (e
tambeacutem a primazia da razatildeo praacutetica) Lask adota o ponto de partida da
transcendecircncia para dar uma interpretaccedilatildeo ontoloacutegica dos objetos como a unidade
da forma categorial e o material natildeo-loacutegico Objetos satildeo verdades em si mesmas
27
unidades de sentido natildeo cogniccedilotildees juiacutezos proposiccedilotildees Em contraste com
Cohen para quem o objeto eacute construiacutedo no juiacutezo cientiacutefico Lask argumenta que
lsquoos mais baacutesicos problemas da loacutegica revela eles mesmos somente se a cogniccedilatildeo
preacute-teoreacutetica estaacute inclusa na investigaccedilatildeorsquo Em Marburg N Hartmann oferece na
Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis [Fundamentacao para uma
Metafiacutesica do Conhecimento] (1921) uma teoria da relaccedilatildeo sujeito-objeto
ldquorealistardquo quase-fenomenoloacutegica intentada por uma justificaccedilatildeo ontoloacutegica para
o que eacute meramente pressuposto no idealismo loacutegico de Natorp a saber a
habilidade do sujeito para ldquotranscenderrdquo a sua proacutepria esfera Na filologia de
Kant H Heimsoeth comeccedila a descobrir os ldquomotivos metafiacutesicosrdquo da filosofia
criacutetica de Kant uma interpretaccedilatildeo perseguida no curso sobre Kant de Heidegger
1927-1928 e em Kant und das Problem der Metaphysikrdquo
(CROWELL2011p28)9
Eacute conhecida a interlocuccedilatildeo entre Rickert e a fenomenologia de Husserl tanto de
um lado pela criacutetica de Rickert agrave intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica e agrave identificaccedilatildeo entre sentido
(Sinn) e Significado (Bedeutung) nas Investigaccedilotildees Loacutegicas10 quanto por outro pela
criacutetica de Husserl a Rickert no que diz respeito agrave via predominantemente subjetiva das
9 ldquoIn the Baden school Laskrsquos Logik der Philosophie (1911) and Die Lehre vom Urteil (1912) anticipate
themes of the third period Abandoning Rickertrsquos immanentist interpretation of the formmaterial schema
(and so also the primacy of practical reason) Lask adopts the ldquostandpoint of transcendencerdquo to give an
ontological interpretation of the object as a unity of categorial form and alogical material Objects are
themselvesldquo truths unities of meaning not cognitions judgments propositionsrdquo Incontrast to Cohen for
whom the object is constructed in the scientific judgment Lask argues that ldquothe most basic problems of
logic reveal themselves only if pretheoretical cognition is included in the investigationrdquo In Marburg N
Hartmann offered the Grundzuumlge einer Metaphysik der Erkenntnis (1921) a quasi-phenomenological
ldquorealisticrdquo theory of the subject-object relation intended to account ontologically for what is merely
presupposed in Natorprsquos logical idealism namely the subjectrsquos ability to ldquotranscendrdquo its own sphere In
Kant philology H Heimsoeth began to uncover the ldquometaphysical motivesrdquo of Kantrsquos critical philosophy
an interpretation pursued in Heideggerrsquos 1927ndash28 lecture course on Kant and in Kant und das Problem der
Metaphysikrdquoop citp28
10 Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas (sect15 da I Investigaccedilatildeo) contra a posiccedilatildeo de Frege Husserl considera os
termos Sentido (Sinn) e Significado (Bedeutung) como sinocircnimos ldquoSignificaccedilatildeo vale para noacutes aleacutem disso
como sinocircnimo de sentidordquo (HUSSERL 2012 p43) Contudo se em Ideias (1913) Husserl passa a assumir
uma camada de sentido preacutevia agrave significaccedilatildeo linguiacutestica - algo que ele natildeo soacute sugere como a ela se refere
explicitamente chamando-a de sentido preacute-expressivo- a significaccedilatildeo (Bedeutung) permanece
intimamente atrelada agrave expressatildeo (Ausdruck) que continua a ter um caraacuteter epistemoloacutegico relevante
(Cfsect124 Ideacuteias para uma fenomenologia pura e para uma fenomenologia fenomenoloacutegica) Apesar da
nova assunccedilatildeo essa camada preacute-expressiva natildeo passa a ter um teor de verdade superior agrave camada
expressiva pelo contraacuterio Husserl vai permanecer sempre comprometido com o status epistemoloacutegico da
consciecircncia e de seu acesso ao fenocircmeno Entatildeo aquilo que a consciecircncia manifesta linguisticamente
continua a ser o meio pelo qual a fenomenologia pode se realizar como ciecircncia rigorosa e somente a partir
da expressatildeo eacute possiacutevel falar em verdade na medida em que apenas a expressatildeo possui intenccedilatildeo de
significaccedilatildeo Isso porque apesar de sugerir esse sentido preacute-linguiacutestico Husserl continua voltando suas
anaacutelises agrave expressatildeo
28
primeiras publicaccedilotildees de Der Gegenstand der Erkentnnis (O objeto do conhecimento)11
Tambeacutem eacute conhecido o debate entre o idealismo criacutetico de Natorp e a fenomenologia de
Husserl
ldquoEm Ideen I (1913) Husserl afirma com um miacutenimo de ironia que ldquonoacutes somos
genuiacutenos positivistasrdquo (Hua III4639) Sob a tutela de Brentano a atitude inicial
de Husserl em direccedilatildeo ao apriorismo kantiano foi totalmente negativa e em
harmonia com o proacuteprio periacuteodo positivista inicial do neokantismo ele em vez
disso propocircs uma consideraccedilatildeo psicoloacutegica do a priori (egin Philosophie der
Arithmetik [1891]) Pelos anos de 1890 esse tipo de continuidade entre filosofia
e ciecircncia positiva foi abandonado em Marburg pelo idealismo transcendental
Husserl portanto permaneceu bem proacuteximo a Natorp que era o instrumental em
direccedilatildeo daquele caminho do psicologismo e mais tarde inspiraria o movimento
de Husserl da estaacutetica para a fenomenologia geneacutetica Pelos anos 1913 Husserl
tinha desenvolvido seu proacuteprio ldquoidealismo transcendentalrdquo fenomenoloacutegico mas
se manteve distinto em princiacutepio do Neokantismo de Marburg Enquanto esse
uacuteltimo definiu o caraacuteter cientiacutefico da filosofia em termos de
uma loacutegica transcendental uma apresentaccedilatildeo sistemaacutetica dos princiacutepios a priori
(ldquomeacutetodordquo) da ciecircncia empiacuterica o primeiro se manteve anti-sistemaacutetico modelo
empiacuterico do primeiro periacuteodo do seu fundador fundando sua teoria do a priori
sobre um recurso filosoacutefico para a intuiccedilatildeoEm seu tratamento da psicologia de
Natorp na primeira ediccedilatildeo das Investigaccedilotildees Loacutegicas(1900-1901) por exemplo
Husserl rejeita a doutrina de Natorp do puro ego da apercepccedilatildeo Na segunda
ediccedilatildeo contudo ele afirma que tem ldquouma vez conseguido encontraacute-lordquo tendo
aprendido ldquoa natildeo ser desviado de uma pura compreensatildeo do dado por meio de
formas corruptas do ego-metafiacutesicordquo (Hua XIX1374549) Se o Husserl mais
idealista natildeo mais associa o ego kantiano com o ldquocorrupto ego-metafiacutesicordquo do
idealismo especulativo sua anotaccedilatildeo ainda avanccedila em direccedilatildeo a uma afirmaccedilatildeo
bem anti-Natorpiana de ter encontrado o puro ego em uma ldquopura compreensatildeo
do dadordquo isto eacute em evidecircncia intuitiva Outra anotaccedilatildeo afirma que o puro ego eacute
ldquoapreendido na efetivaccedilatildeo de um cogito auto-evidenterdquo (Hua XIX1368544)
Natorp negou a fenomenalidade do ego ele nem pode ser objetivado nem
apresentado ele mesmo como um todo sem deixar de ser genuinamente ldquosujeitordquo
Para Husserl poreacutem esse argumento eacute meramente verbal o ego eacute aqui como um
fato um objeto em seu modo apropriado Afirmar o contraacuterio equivaleria
entregar o ego ao reino do mito (Hua XIX1373ndash76549ndash510)rdquo
(CROWELL2011 p31)12
11 Sobre a interlocuccedilatildeo entre Husserl e Rickert e como as criacuteticas e observaccedilotildees provocaram sucessivas
revisotildees dos trabalhos de ambos os autores Cf RESENDE J 2013 Primeira Parte pp 22-89
12ldquoIn Ideen I (1913) Husserl claims with only slight irony that ldquowe are the genuine positivistsrdquo (Hua
III4639) Under Brentanorsquos tutelage Husserlrsquos initial attitude toward Kantian apriorism had been
altogether negative and in harmony with neo-Kantianismrsquos own early positivist period he instead proposed
a psychological account of the a priori (egin Philosophie der Arithmetik [1891]) By the 1890s this kind
of continuitybetween philosophy and positive science had been abandoned in burg for transcendental
idealism Husserl nevertheless established close ties with Natorp who was instrumental in steering him
away from psychologism and would later inspire Husserlrsquos move from static to genetic phenomenology
By 1913 Husserl had developed his own phenomenological ldquotranscendental idealismrdquo but it remained
distinct in principle from Marburg neo-Kantianism While the latter defined the scientific character of
philosophy in terms of a transcendental logic a systematic presentation of the a priori principles (ldquomethodrdquo)
29
Contudo apesar do diaacutelogo entre esses autores o que nos interessa marcar a tiacutetulo
introdutoacuterio eacute a centralidade do debate que orientou a filosofia deste periacuteodo Seja pela
busca de juiacutezos loacutegicos-matemaacuteticos seja pela busca dos juiacutezos de valor a filosofia ainda
estaacute imersa nos problemas e na gramaacutetica da modernidade pois os debates se
movimentam no interior da teoria do conhecimento e cada escola a seu modo recorre ao
sujeito transcendental para assegurar a garantia de objetividade e validade do
conhecimento A discussatildeo inaugurada por Kant acerca da lsquocoisa em sirsquo e de seu acesso
como ideia da razatildeo redirecionam qualquer ontologia dos objetos agrave consciecircncia do
sujeito E em uacuteltima instacircncia a filosofia permanece imersa no pressuposto da existecircncia
de um fundamento uacuteltimo - baseado no sujeito e em suas possibilidades ligadas agrave
representaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos elementos do mundo externo- como condiccedilatildeo de
possibilidade que garante a seguranccedila e objetividade de todo conhecimento
II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica
Para Wilhelm Windelband (1848-1915) a filosofia deve investigar os valores das
representaccedilotildees ou seja em que medida uma representaccedilatildeo se torna uma proposiccedilatildeo
cientiacutefica Contra as teorias representacionistas do juiacutezo aqui jaacute eacute possiacutevel identificar a
clara separaccedilatildeo entre representaccedilatildeo - que seria a mera apariccedilatildeo de um objeto e suas
propriedades- e o juiacutezo ndash que possui valor de verdade e pode ser negado ou afirmado Os
juiacutezos (sejam loacutegicos esteacuteticos ou eacuteticos) natildeo satildeo neutros como a representaccedilatildeo pois
possuem embutido o que Windelband chama de apreciaccedilatildeo
ldquoTrata-se de uma distinccedilatildeo loacutegica que normalmente natildeo aparece no niacutevel da
gramaacutetica A mera conexatildeo neutra de representaccedilotildees (sujeito + predicado) eacute o que
se chama de juiacutezo jaacute o fato dessas representaccedilotildees constituiacuterem uma proposiccedilatildeo
com valor de verdade se deve agrave apreciaccedilatildeo O que Windelband quer mostrar eacute
of empirical science the former retained the antisystematic empirical cast of its founderrsquos early period
grounding its theory of the a priori on a philosophical appeal to intuition In his treatment of Natorprsquos
psychology in the first edition of the Logical Investigations (1900 1901) for example Husserl rejects
Natorprsquos doctrine of the pure ego of apperception In the second edition (1913) however he claims that he
has ldquosince managed to find itrdquo having learned ldquonot to be led astray from a pure grasp of the given through
corrupt forms of ego-metaphysicrdquo (Hua XIX1374549) If the more idealistic Husserl no longer associates
the Kantian ego with the ldquocorrupt ego-metaphysicrdquo of speculative idealism his note also advances the very
un-Natorpian claim to have found the pure ego in a ldquopure grasp of the givenrdquo that is in intuitive evidence
Another note states that the pure ego is ldquoapprehended in carrying out a self-evident cogitordquo (Hua
XIX1368544) Natorp had denied the phenomenality of the ego it can neither be objectified nor present
itself at all without ceasing to be genuinely ldquosubjectrdquo For Husserl however this argument is merely verbal
The ego is there as a fact an object in its own appropriate manner To claim otherwise is tantamount to
consigning the ego to the realm of myth (Hua XIX1373ndash76549ndash51)rdquo Op cit p31 Cf Tambeacutem
HEIDEGGER 2006 p 124
30
que nisso ordinariamente chamado de juiacutezo estaacute embutida uma apreciaccedilatildeo em
funccedilatildeo de um valor a qual natildeo se confunde com o conjunto de formaccedilotildees
conceituaisrdquo (RESENDE 2013p40)
O que estaacute em jogo nessa concepccedilatildeo eacute identificar que a apreciaccedilatildeo inerente a todo
juiacutezo natildeo diz nada acerca dos conteuacutedos representativos mas de sua pretensatildeo a um ideal
ou fim uacuteltimo como um horizonte estaacutevel do que eacute verdadeiro eacutetico ou esteacutetico e que
funcionam como paracircmetros avaliativos na accedilatildeo mesma de julgar O que estaacute implicado
nessa tese eacute a concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo As ciecircncias particulares possuem pretensatildeo de
valor universal mas essa universalidade natildeo eacute faacutetica e ldquosua necessidade natildeo eacute causal mas
apenas lsquodeve-serrsquo (sein-solle)Toda proposiccedilatildeo loacutegica eacutetica ou esteacutetica eacute impelida pelo
dever-ser universalrdquo(RESENDE2013p41) e mesmo que sua manifestaccedilatildeo seja
faticamente histoacuterica esse dever-ser da proposiccedilatildeo loacutegica deve ser reconhecido como
universal e incondicionalmente vaacutelido por qualquer ser racional ndash em uma clara assunccedilatildeo
da universalidade moral kantiana mas que agora permeia todos os juiacutezos e natildeo somente
os eacuteticos
Considerando os juiacutezos em funccedilatildeo de sua apreciaccedilatildeo Windelband descreve trecircs
tipos de juiacutezos Os juiacutezos satildeo teoacutericos (segundo a apreciaccedilatildeo verdadeirofalso) juiacutezos de
gosto (segundo a apreciaccedilatildeo belofeio) e os juiacutezos eacuteticos (segundo a apreciaccedilatildeo
bommau) Os fenocircmenos psiacutequicos satildeo as representaccedilotildees neutras em sua manifestaccedilatildeo
Assim como comportamentos da apreciaccedilatildeo os juiacutezos ganham sua forma loacutegica nas
figuras judicativas juiacutezos afirmativos juiacutezos negativos juiacutezos problemaacuteticos Essa uacuteltima
forma suspende a apreciaccedilatildeo mas pela pergunta ndash que natildeo eacute propriamente um juiacutezo-
condiciona a possibilidade de julgar portanto se refere a uma etapa mesmo que preacutevia
agrave tomada de posiccedilatildeo apreciativa
Aqui reside o ponto decisivo enquanto para Windelband a loacutegica claacutessica (de
Aristoacuteteles a Kant) se ocupou dos elementos meramente gramaticais - sendo os juiacutezos
coincidentes com as representaccedilotildees na medida que bastava afirmaacute-las ou negaacute-las - a
apreciaccedilatildeo por sua vez aparece como constituidora do conceito presente nas formaccedilotildees
gramaticais pois dizer algo eacute antes apreciar a sua posiccedilatildeo existencial (com fim ao ideal
da mateacuteria em questatildeo eacutetico esteacutetico etc) de forma a negaacute-las ou afirmaacute-las Em outras
palavras para que o conhecimento seja possiacutevel natildeo eacute suficiente a recepccedilatildeo passiva das
representaccedilotildees mas eacute fundamental uma atividade valorativa que constitui um conceito
31
no reconhecimento de seu conteuacutedo sentido e validade na sua pretensatildeo de necessidade
e universalidade Algo lsquoeacutersquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento e
ldquoa pesquisa desses valores com pretensotildees universais () eacute o objeto de estudo da
filosofiardquo (RESENDE 2013p41) Essa posiccedilatildeo seraacute retomada e desenvolvida por
Rickert
Assim como Windelband Heinrich Rickert (1863-1936) coloca o problema na
forma metodoloacutegica ou seja a pesquisa dos valores como meacutetodo de base para a filosofia
e busca assim determinar o criteacuterio de validade do conhecimento atraveacutes do elemento que
confere sua objetividade ou o que pode ser identificado como o crucial para a diferenccedila
entre os enunciados arbitraacuterios e as proposiccedilotildees vaacutelidas do conhecimento efetivo
elemento que Rickert denomina ldquoobjeto do conhecimentordquo como o tiacutetulo mesmo de sua
obra principal indica ldquoDie Gegenstand der Erkenntnisrdquo (revista em seis ediccedilotildees
diferentes entre 1892 e 1928)
Aprofundando as investigaccedilotildees de seu mestre Rickert difere conceitos
ontoloacutegicos de conceitos axioloacutegicos diferenccedila oculta na linguagem ordinaacuteria e que se
torna clara na observaccedilatildeo acerca da concepccedilatildeo praacutetica do juiacutezo ldquoEnquanto para Kant o
problema eacute a impossibilidade de explicar o fato de como a razatildeo teoacuterica pode ser praacutetica
para Rickert o problema eacute o fato de que a razatildeo jaacute eacute sempre praacutetica em seu uso teoacuterico
purordquo (RESENDE 2013p45) e isto natildeo pelo fato de juiacutezos teoacutericos dependerem da lei
moral mas pela convicccedilatildeo acerca dos conteuacutedos mesmos do conhecimento Se a
representaccedilatildeo satildeo processos psiacutequicos elementares e neutros a convicccedilatildeo soacute eacute possiacutevel
pela razatildeo praacutetica Para melhor visualizaccedilatildeo do problema quando digo ldquoS eacute Prdquo ou ldquoS eacute
um sujeitordquo (e aiacute estaacute tambeacutem seu conceito por exemplo ldquohomemrdquo) ou ainda ldquoP eacute um
predicadordquo (e tambeacutem utilizo um conceito por exemplo ldquoracionalrdquo) o que me autoriza
dizer ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo Segundo Rickert eacute a convicccedilatildeo praacutetica fundada no
sentimento (Gefuumlhl) de ldquovontade de verdaderdquo (Willen zur Wahrheit) que impele a busca
da verdade Eacute esse sentimento que possibilita a tomada de posiccedilatildeo que aprova ou
desaprova expresso por fim em um juiacutezo Somos impelidos pelo dever na medida em
que somos livres a buscar a verdade Mas eacute importante considerar que
ldquoApesar de o sentimento ser o paracircmetro para a tomada de posiccedilatildeo do juiacutezo o
dever natildeo deriva do sentimento pois isso seria derivar o dever do ser O dever
natildeo pode ser confundido com a necessidade causal do sentimento Na verdade
32
na proacutepria constataccedilatildeo do sentimento jaacute estaacute pressuposto o dever () Essa
verdade buscada natildeo eacute uma instacircncia ideal mas apenas um postulado um
inalcanccedilaacutevel ideal absoluto de verdade que funciona como moacutebil da atividade
cientiacutefica dos seres moraisrdquo (RESENDE 2013p46)
A razatildeo praacutetica busca a verdade como sua atividade mais proacutepria a partir do dever
impresso na sua proacutepria liberdade expresso no ato praacutetico de tomada de decisatildeo que
culmina na expressatildeo dos juiacutezos (na razatildeo teoacuterica) Se para Kant a accedilatildeo humana livre eacute
impelida a agir conforme a lei moral para Rickert a accedilatildeo humana em seu querer livre -
nem mecacircnico nem bioloacutegico - de um ideal de perfeiccedilatildeo da verdade eacute impelida a agir em
funccedilatildeo do conhecimento e da ciecircncia
Na tentativa de afastar as interpretaccedilotildees psicologistas ou idealistas (natildeo
cientiacuteficas) de sua teoria o valor de verdade para Rickert que eacute garantido pelo dever-ser
eacute observado na evidecircncia como manifestaccedilatildeo psiacutequica do dever mas que pelo seu caraacuteter
de necessidade ultrapassa o indiviacuteduo singular O sentimento de prazer ou desprazer dessa
evidecircncia na estrutura psiacutequica que posiciona o ato praacutetico de tomada de posiccedilatildeo eacute
reconhecido pela sua necessidade transcendente e eacute o elemento do esquema cognitivo que
ldquoestabelece a ponte entre os processos psiacutequicos reais em sua singularidade e
contingecircncia com a universalidade e necessidade transcendental do deverrdquo (RESENDE
2013p47) Mesmo com essas colocaccedilotildees e sobretudo com a postulaccedilatildeo que o dever natildeo
pode ser derivado do ser pelo seu caraacuteter mesmo de liberdade Rickert foi aproximado de
um certo ldquopsicologismo voluntaristardquo pois o valor de verdade na realidade soacute poderia ser
derivado dos processos psiacutequicos tendo em vista que ldquoo dever eacute uma norma psicoloacutegica
que soacute tem sentido lsquopararsquo um sujeito empiacutericordquo (RESENDE 2013p47) E ainda por
mais que sua meta fosse buscar a universalidade e necessidade dos valores ainda assim
esses valores estariam reduzidos ldquoagrave contingecircncia e temporalidade dos processos
psiacutequicos ou seja reduzindo o valor ao serrdquo (RESENDE 2013p48)
Mas como a filosofia dos valores desses autores lida com as pesquisas histoacutericas
enquanto criacutetica do historicismo Para Windelband as ciecircncias positivas satildeo ciecircncias
nomoteacuteticas ou seja operam por uma abstraccedilatildeo que busca o conhecimento universal
atraveacutes da estabilidade de suas leis Jaacute as ciecircncias histoacutericas satildeo ideograacuteficas cujo juiacutezos
natildeo descrevem uma coisa ou estados de coisa enquanto aquilo que eacute mas possuem como
objeto valores que possuem (ou natildeo) validade Validade oferecida em uacuteltima instacircncia
33
pelo juiacutezo em sua forma fundamental como juiacutezo apreciativo Analisar esses valores
requer uma metodologia proacutepria baseada na pesquisa da valoraccedilatildeo como forma de
conhecimento
Para Rickert a filosofia dos valores eacute o fundamento universal para os significados
da histoacuteria e aqui reside o ponto crucial a busca de um ideal absoluto (vontade de
verdade) deve atuar como medida para a realidade individual e histoacuterica sem a qual natildeo
podemos significar a interpretaccedilatildeo da vida histoacuterica e cultural na sua singularidade A
distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor
(Wert) segundo Rickert levaria a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo
de conceitos (Begriffsbildung) e que natildeo se trata de um conhecimento no campo
ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto pelo conceito determinado de maneira formal no
espaccedilo loacutegico-axioloacutegico
Um evento histoacuterico natildeo possui relevacircncia por si soacute eacute a partir da valoraccedilatildeo que
um fato histoacuterico se ldquodiferencia substancialmente de outros na heterogeneidade contiacutenua
a partir de sua individualidaderdquo (Wu R 2010p180) Ou seja o que doa sentido a um
fato histoacuterico na sua individualidade ndash que se destaca dos fluxos indistintos e
heterogecircneos dos acontecimentos - eacute uma realizaccedilatildeo teoacuterica que o valoriza e lhe confere
sentido A histoacuteria eacute portanto possiacutevel e existe como objeto capaz de ser analisado como
ciecircncia pelos valores atribuiacutedos teoricamente a seus eventos
III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos
A crise no modelo teoacuterico tradicional no final do seacuteculo XIX (que apontava
qualquer teoria filosoacutefica como uma lsquocrenccedila justificadarsquo) a reconduccedilatildeo pelos
psicologistas agrave articulaccedilatildeo de argumentos logicamente coerentes baseados na consciecircncia
particular - em que ateacute mesmo os princiacutepios loacutegicos seriam expressatildeo da forma de
conhecimento possiacutevel pela particularidade daquele que conhece- culminam no projeto
husserliano de uma filosofia pura e sem pressupostos
Para Husserl a psicologia baseada no modelo cientiacutefico das ciecircncias naturais leva
agrave particularizaccedilatildeo dos conteuacutedos do conhecimento e nesse modelo a psicologia natildeo
consegue lidar com a universalidade do conteuacutedo dos princiacutepios tornando a relaccedilatildeo entre
34
a realidade e o conhecimento incompatiacuteveis Por mais que a experiecircncia seja particular
as investigaccedilotildees de Husserl o levaram a considerar que a existecircncia humana estaacute em
contato com conteuacutedos que natildeo satildeo particularizaacuteveis A psicologia natildeo deixa clara a
transiccedilatildeo das conexotildees psicoloacutegicas do pensar e a unidade loacutegica de seu conteuacutedo O que
estaacute em jogo para Husserl eacute portanto a relaccedilatildeo entre a subjetividade do conhecer e a
objetividade do conteuacutedo de pensamento
A predominacircncia neokantiana no horizonte universitaacuterio alematildeo e sua maacutexima de
retorno a Kant mantecircm no interior da investigaccedilatildeo termos como por exemplo
lsquoapercepccedilatildeorsquo e lsquorepresentaccedilatildeorsquo Se o neokantismo se volta a Kant tambeacutem sucumbe a
seus limites e nesse movimento revela a insuficiecircncia da investigaccedilatildeo filosoacutefica
condicionada aos sistemas anteriores Para Husserl a filosofia como ciecircncia autocircnoma
requer natildeo um retorno a qualquer teoria mas agraves coisas que agora devem orientar o
pensamento
A tradiccedilatildeo filosoacutefica eacute marcada por uma pretensatildeo a busca da verdade para aleacutem
do que acontece na realidade dos fenocircmenos que nos satildeo acessiacuteveis Ao hipostasiar a
realidade do ser atraveacutes de posturas realistas ou idealistas para assim ter acesso aos
fenocircmenos a tradiccedilatildeo sempre considerou o ser do fenocircmeno para aleacutem do proacuteprio
fenocircmeno13 De maneira diversa Husserl busca os objetos nos proacuteprios campos
fenomecircnicos na medida em que aparecem na dimensatildeo do conhecimento a partir da
proacutepria atividade de pensamento ou seja o objeto que aparece na atividade de
pensamento soacute eacute encontrado na proacutepria atividade por isso natildeo haacute busca ou hipoacutestase
exterior agrave consciecircncia Mas isso natildeo se daacute porque a consciecircncia em seus atos produza ou
determine os significados dos objetos mas sim porque os atos das vivecircncias abrem espaccedilo
para que o objeto se determine no ato mesmo a partir de sua autonomia frente a qualquer
subjetividade particular de pensamento Mas o que queremos dizer com lsquoum objeto que
se determina no ato mesmorsquo Aqui eacute importante destacar sempre que possiacutevel um mal-
entendido em constante revisatildeo a filosofia de Husserl natildeo consiste em um sistema
fechado de proposiccedilotildees as quais poderiacuteamos encaminhar de forma retiliacutenea e deduzir suas
conclusotildees Aqui nessa breve introduccedilatildeo agraves intenccedilotildees do pensamento de Husserl
apresentamos em linhas gerais seu projeto e nos movimentamos a partir do segundo
13 Cf CASANOVA 2013 pp-76-80
35
volume das Investigaccedilotildees Loacutegicas de 1901 e das Ideacuteias para uma fenomenologia pura e
para uma filosofia fenomenoloacutegica publicadas em 1913
Depois dessas consideraccedilotildees atraveacutes das quais foi posta em jogo a noccedilatildeo de um objeto
que se determina no ato mesmo conforme jaacute explicitado nas Investigaccedilotildees eacute requerido
passar agrave explicaccedilatildeo da noccedilatildeo conforme elaborada na obra posterior Ideacuteias O
pensamento de Husserl eacute marcado por uma orientaccedilatildeo especiacutefica a fenomenoloacutegica Essa
orientaccedilatildeo natildeo desconsidera as vaacuterias formas pelas quais podemos ter acesso a objetos
seja pela vida corrente e cotidiana seja pela via cientiacutefica pois ambas estatildeo de acordo
com a orientaccedilatildeo natural A orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica por sua vez se deteacutem no objeto
intencional ou seja o objeto que visado se manifesta agrave consciecircncia conforme seu modo
de doaccedilatildeo fenomecircnico14 Natildeo se trata de um idealismo subjetivo conforme por exemplo
Berkeley mas de uma necessidade de acesso agraves coisas mesmas sem qualquer
pressuposiccedilatildeo sem qualquer movimento que ponha o conhecimento fora da realidade e
que ao mesmo tempo natildeo recaia na descriccedilatildeo ingecircnua da realidade como um conjunto de
impressotildees sensiacuteveis O fenocircmeno que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute
sempre uma doaccedilatildeo com sentidosignificado ldquopois se eacute verdade que os fenocircmenos se
datildeo a noacutes por intermeacutedio dos sentidos eles se datildeo sempre como dotados de um sentido
ou de uma essecircncia Eis porque () a intuiccedilatildeo seraacute uma intuiccedilatildeo da essecircncia ou do
sentidordquo (DARTIGUES 1973p21)
Ao contraacuterio dos neokantianos o modo como Husserl tratou a realidade tornou
improacuteprio o retorno agraves concepccedilotildees filosoacuteficas anteriores Elas natildeo forneciam mais um
caminho vaacutelido para o questionamento filosoacutefico Natildeo era mais suficiente o retorno a
qualquer sistema filosoacutefico fosse para renovaacute-lo - sob esse novo horizonte cientiacutefico -
fosse para retomar seus fundamentos com a finalidade de posicionar a filosofia como
braccedilo de apoio da ciecircncia A fenomenologia pura (puramente descritiva) pertence agrave
pesquisa de uma teoria do conhecimento objetiva na medida em que o modo de apariccedilatildeo
dos fenocircmenos nas vivecircncias do pensamento e do conhecimento seraacute sempre o objeto da
fenomenologia
14 Cf Ideacuteias I Capiacutetulo I
36
A concepccedilatildeo de fenocircmeno na modernidade ganhou diversas acepccedilotildees desde Bacon
ateacute Wolff passando por Descartes e Hobbes Segundo uma noccedilatildeo do senso comum
fenocircmeno eacute a experiecircncia pura e simples do fato considerada sobretudo como
manifestaccedilatildeo empiacuterica da realidade que natildeo pode ser equiparada agrave verdade15 Jaacute para Kant
- na delimitaccedilatildeo feita na primeira Criacutetica do espaccedilo do saber cientiacutefico possiacutevel -
fenocircmeno eacute o objeto especiacutefico do conhecimento humano que aparece sob condiccedilotildees
particulares da estrutura cognosciacutevel do homem a saber de um lado o objeto do
conhecimento depende das bases representativas que satildeo organizadas pelas categorias do
entendimento e de outro dos dados fornecidos pela sensibilidade Resumindo o objeto
de conhecimento para Kant estaacute delimitado pela relaccedilatildeo entre intuiccedilatildeo e conceito Kant
distingue o fenocircmeno - aquilo que eacute possiacutevel conhecer - do nocircumeno aquilo que natildeo se
conhece mas que pode ser pensado enquanto ideia da razatildeo como ldquocoisa em sirdquo Sem
jamais ultrapassar os dados da experiecircncia o sentido fenomenoloacutegico de fenocircmeno de
Husserl supera a distinccedilatildeo kantiana entre nocircumeno e fenocircmeno O fenocircmeno eacute algo que
manifesto revela em si mesmo seu conteuacutedo loacutegico ou essencial Mas a manifestaccedilatildeo do
fenocircmeno deve ser ldquodepuradardquo de qualquer psicologismo pois natildeo deve apenas ser
considerada como manifestaccedilatildeo particular A investigaccedilatildeo filosoacutefica ou melhor a
investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica aqui eacute exigida como meacutetodo para lsquopurificarrsquo o conteuacutedo
objetivo do ato subjetivo
ldquoO caminho que Husserl busca e comandaraacute ateacute em suas uacuteltimas obras a sua
concepccedilatildeo de fenomenologia eacute uma via meacutedia entre esses dois escolhos como
pensar segundo a sua natureza e em cada uma de suas nuanccedilas ndash e portanto sem
jamais ultrapassaacute-los ndash os dados da experiecircncia em sua totalidade Todo o
fenocircmeno e nada mais que o fenocircmeno poder-se-ia dizer O postulado que funda
tal empresa eacute que o fenocircmeno estaacute penetrado no pensamento de logos e que por
sua vez o logos se expotildee e soacute se expotildee no fenocircmeno Apenas sob essa condiccedilatildeo
eacute possiacutevel uma fenocircmeno-logiardquo (DARTIGUES 1973p20)
Aluno de Brentano Husserl ainda radicaliza a teoria da intencionalidade de seu
professor e natildeo mais considera que a consciecircncia se dirija pelo ato intencional agraves
representaccedilotildees empiacutericas da consciecircncia mas agrave objetividade das proacuteprias coisas
detectaacutevel no ato expressivo Nas Investigaccedilotildees Loacutegicas Husserl apresenta a consciecircncia
como sempre ldquovoltada ardquo ou seja como uma consciecircncia intencional superando natildeo soacute
a noccedilatildeo de consciecircncia como o lsquolugarrsquo das representaccedilotildees que devem ser organizadas por
15 Cf AbbagnoN 2003 p436 Nesse sentido tambeacutem Cf Heidegger 2006 pp26-27
37
exemplo por aparatos internos a priori como tambeacutem qualquer orientaccedilatildeo psicologista
do conhecimento Se a fenomenologia recorre agrave psicologia eacute apenas para a investigaccedilatildeo
descritiva das vivecircncias intencionais e a psicologia descritiva na medida em que se
configura como descriccedilatildeo empiacuterica (cientiacutefica-natural) natildeo pode ser confundida com a
fenomenologia Esta ao contraacuterio mesmo repousando sobre a investigaccedilatildeo descritiva das
vivecircncias intencionais estrato mesmo da psicologia ainda assim possui como
particularidade a descriccedilatildeo pura excluindo qualquer concepccedilatildeo naturalista16
Mas afinal do que se trata nesta ldquodescriccedilatildeo purardquo Eacute na atividade compreensiva em
geral (descriccedilatildeo das vivecircncias intencionais) que Husserl buscaraacute a origem do
conhecimento na anaacutelise dos atos de constituiccedilatildeo de conhecimento dos objetos que ele
vai procurar descrever os movimentos ideais implicados em todo movimento intencional
As investigaccedilotildees gnosioloacutegicas da loacutegica pura expostas nas Investigaccedilotildees loacutegicas
querem lanccedilar as bases e fundamentos seguros como alternativas agraves teorias do
conhecimento empiristas ceacuteticas metafiacutesico-realista e psicologista pretendendo
fundamentar uma verdadeira teoria do conhecimento a partir da filosofia puramente
cientiacutefica Essa anaacutelise se realiza a partir das expressotildees levando em consideraccedilatildeo o
aspecto loacutegico da vivecircncia
ldquoA Fenomenologia analiacutetica de que o loacutegico necessita para os seus trabalhos de
preparaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo diz respeito entre outras coisas e desde logo agraves
lsquorepresentaccedilotildeesrsquo e mais precisamente agraves representaccedilotildees que satildeo expressas
Nestas complexotildees poreacutem o seu interesse primaacuterio vai para as vivecircncias que
estatildeo na funccedilatildeo de significaccedilatildeo as quais se pensam agraves lsquosimplesrsquo expressotildees No
entanto natildeo se pode descurar tambeacutem o lado linguiacutestico-sensiacutevel da complexatildeo
(aquilo que nela constitui a lsquosimplesrsquo expressatildeo) e o modo do seu entrelaccedilamento
com o ato de significar que o anima Eacute bem sabido quatildeo facilmente a anaacutelise das
significaccedilotildees costuma deixar-se guiar pela anaacutelise gramatical de um modo
completamente inadvertido Certamente que dada a dificuldade da anaacutelise direta
das significaccedilotildees seraacute bem-vindo todo e qualquer meio mesmo que imperfeito
de antecipar indiretamente os seus resultados [as significaccedilotildees que o anima] mas
mais ainda que por causa dessa ajuda positiva a anaacutelise gramatical torna-se
importante pelos enganos que traz consigo quando se substitui agrave anaacutelise
propriamente ditas das significaccedilotildeesrdquo (HUSSERL 2012p11)
16 Cf HusserlE Investigaccedilotildees Loacutegicas VolII Introduccedilatildeo sect 6- Aditamentos ndash 3ordm Aditamento
38
A anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a complexidade da vida
intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo eacute possiacutevel a partir da anaacutelise das estruturas
ideais que se apresentam nas vivecircncias da consciecircncia na forma das expressotildees
significativas E se ldquoos objetos para os quais a Loacutegica pura estaacute voltada satildeo desde logo
dados sob vestes gramaticaisrdquo (HUSSERL 2012p3) eacute porque esses dados satildeo embutidos
nas vivecircncias psiacutequicas concretas que ldquotanto em funccedilatildeo de intenccedilatildeo de significaccedilatildeo como
na do preenchimento de significaccedilatildeo () correspondem a certas expressotildees linguiacutesticas
e formam com elas uma unidade fenomenoloacutegicardquo (HUSSERL 2012p3)
O que estaacute em jogo como tarefa da fenomenologia eacute - a partir da unidade entre
intuiccedilatildeo (atividade da consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da
consciecircncia e o preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor
a unidade fenomenoloacutegica desses atos apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo
e preenchimento de significaccedilatildeo para assim encontrar suas distinccedilotildees ideais presentes na
significaccedilatildeo
ldquoDe fato sempre que se trata de conceitos juiacutezos raciociacutenios a Loacutegica pura tem
que ver exclusivamente com estas unidades ideais que denominamos aqui
significaccedilotildees e na medida em que nos esforccedilamos por extrair a essecircncia ideal das
significaccedilotildees dos seus viacutenculos psicoloacutegicos e gramaticais na medida em que
para aleacutem disso temos em vista clarificar as relaccedilotildees aprioriacutesticas de adequaccedilatildeo
agrave objetividade significativa fundadas nessa essecircncia estamos jaacute no domiacutenio da
Loacutegica purardquo(HUSSERL 2012p76)
Enquanto as ciecircncias se movem em direccedilatildeo agraves vaacuterias regiotildees de objetos na
tentativa de compreensatildeo da realidade do mundo Husserl compreende a orientaccedilatildeo
filosoacutefica como investigaccedilatildeo da possibilidade do conhecimento objetivo E nesse sentido
a filosofia de Husserl permanece nos limites de uma criacutetica ao conhecimento
transcendental sem que seu meacutetodo se comprometa com qualquer perspectiva ontoloacutegica
Natildeo porque negue a realidade externa mas porque a reflexatildeo fenomenoloacutegica segundo
Husserl deveria estar direcionada agrave anaacutelise das unidades significativas (Investigaccedilotildees
loacutegicas) e agrave descriccedilatildeo eideacutetica da consciecircncia (Ideacuteias) com o compromisso de esclarecer
a vivecircncia intencional de forma que assim fosse possiacutevel esclarecer as operaccedilotildees de toda
e qualquer consciecircncia inclusive nossa orientaccedilatildeo preacute-reflexiva natural
O vigor da ideia filosoacutefica de ciecircncia tal como elaborada por Husserl residia na
restriccedilatildeo da investigaccedilatildeo agrave coisa mesma A fenomenologia husserliana se restringiu agraves
39
coisas enquanto somos conscientes delas Portanto sem remeter-se ao primado da
autoconsciecircncia da filosofia moderna ela rompeu com a ideia de representaccedilatildeo e por
consequecircncia de adequaccedilatildeo Pois a consideraccedilatildeo a priori da consciecircncia de um sujeito no
modo de questionamento epistemoloacutegico moderno tradicional trazia consigo um
problema inerente a esta pressuposiccedilatildeo a saber a representaccedilatildeo dos elementos externos
pelo aparato interno do sujeito devia ser a cada vez avaliada em sua validade
epistemoloacutegica em sua adequaccedilatildeo agrave consciecircncia Esse problema derivado da
representaccedilatildeo eacute consequecircncia do modo de considerar o sujeito como outro frente ao
mundo A consequecircncia dessa cisatildeo eacute que as representaccedilotildees internas natildeo seriam
suficientes para confirmar a existecircncia do mundo exterior e incapazes de fornecer
elementos conclusivos acerca dos modos de acesso a esse mundo
Husserl aprendeu com Brentano a atitude de recusa a todo e qualquer pressuposto
Mesmo Brentano considerando as representaccedilotildees como uma das bases da atuaccedilatildeo
psiacutequica indica que ldquoa estrutura baacutesica do psiacutequico o que a toda vivecircncia seja inerente
algo objetual a denomina Brentano inexistecircncia intencional Intentio eacute uma expressatildeo
da escolaacutestica que significa dirigir-se a Brentano fala da inexistecircncia intencional do
objetordquo (HEIDEGGER 2006 p39) Nesse sentido a intencionalidade na fenomenologia
husserliana voltada agrave anaacutelise expressiva e natildeo agraves representaccedilotildees torna a questatildeo do
mundo interior ou exterior secundaacuteria O que estaacute em jogo eacute a orientaccedilatildeo da pesquisa pela
condiccedilatildeo do conhecimento que natildeo exclui o mundo e as orientaccedilotildees naturais A suspensatildeo
do mundo exterior na orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica deve-se ao fato de que nesse tipo de
investigaccedilatildeo natildeo se tem nada a dizer sobre ele E nesse sentido a fenomenologia
husserliana que oferece um novo vigor a filosofia do final do seacuteculo XIX apresenta
tambeacutem seu proacuteprio limite
ldquoEm verdade aquela ideia do conhecimento da essecircncia que deveria renovar o
campo do filosofar aquela anaacutelise descritiva do acircmbito imenso da lsquoconsciecircnciarsquo
que teria de anteceder todo conhecimento cientiacutefico e conter todos os seus
pressupostos a priori tinha um limite para aleacutem do qual nem mesmo a
fenomenologia poderia ultrapassar Mesmo um conhecimento fenomenoloacutegico
consumado de todas as essencialidades- dentre as quais tambeacutem se encontram no
campo moral o reino dos lsquovalores ndash natildeo poderia atingir a realidade efetiva do ente
efetivamente real a realidade efetiva da consciecircncia pensante tanto quanto a
realidade efetiva da experiecircncia que ela faz Por mais que a distinccedilatildeo entre o fato
e a essecircncia tenha demarcado o grande campo de pesquisa da fenomenologia ante
as ciecircncias particulares e liberado um trabalho metodologicamente
autoconsciente a factualidade do factual a facticidade a existecircncia natildeo se mostra
40
apenas como algo derradeiro tardio contingente determinado em termos de
conteuacutedo pela intelecccedilatildeo da essecircncia e abarcado segundo toda a sua determinaccedilatildeo
por ela Ao contraacuterio elas tambeacutem se mostram como algo primeiro algo que se
acha agrave base que natildeo pode ser alijado pelo pensamento que suporta por sua vez
todas as intelecccedilotildees da essecircnciardquo (GADAMER 2012p148)
A reduccedilatildeo fenomenoloacutegica natildeo visa reconduzir os fenocircmenos agrave unidade de um
elemento comum mas reconduzir a consciecircncia aos fenocircmenos que se datildeo por si mesmos
e na medida que assim o faz reconhece a existecircncia da base factual na qual o fenocircmeno
pode vir agrave consciecircncia e como um elefante na sala de estar natildeo pode mais ser ignorada
Em outras palavras a investigaccedilatildeo loacutegica o acesso agrave idealidade loacutegica de toda
significaccedilatildeo baseada - mas natildeo reduzida ndash nos atos das vivecircncias psiacutequicas concretas
aponta em uacuteltima instacircncia (mesmo na tentativa de desvio dessa situaccedilatildeo) para o caraacuteter
histoacuterico ou ocasional daquele que pode intencionar significaccedilotildees Mas Husserl natildeo havia
reconhecido esse problema ao diferenciar as expressotildees flutuantes das significaccedilotildees
ideais jaacute na primeira investigaccedilatildeo loacutegica17 O problema neste caso como aponta
Gadamer estaacute exatamente no agente do ato de pensamento pois a base que natildeo pode ser
afastada e que suporta as intelecccedilotildees da essecircncia estaacute necessariamente remetida agravequele
que na accedilatildeo do ato de intelecccedilatildeo eacute finito e histoacuterico ou seja a direccedilatildeo puramente teoacuterica
da fenomenologia de Husserl natildeo deixa de apontar a condiccedilatildeo histoacuterica daquele que pode
realizar qualquer teoria elemento que vai se tornar decisivo para a fenomenologia de
Heidegger
ldquoA doutrina do juiacutezo e de sua fundamentaccedilatildeo a anaacutelise claacutessica da percepccedilatildeo a
distinccedilatildeo loacutegica entre expressatildeo e significado mas sobretudo tambeacutem aquela
17 No sect26 da I Investigaccedilatildeo Loacutegica ldquoExpressotildees essencialmente ocasionais e expressotildees objetivasrdquo
Husserl analisa significaccedilotildees que podem variar de caso a caso ou significaccedilotildees variantes Ele diferencia as
ldquoexpressotildees essencialmente subjetivas e ocasionaisrdquo (por exemplo ldquoeu desejo sorte a vocecircrdquo ou ldquoisto [aqui
que vejo agora] eacute um catildeordquo) das ldquoexpressotildees objetivasrdquo nas quais o que estaacute em questatildeo eacute o teor sonoro
significativo sem necessidade de se ter agrave vista a pessoa que expressa ou a circunstacircncia da expressatildeo Desde
os paraacutegrafos iniciais da primeira investigaccedilatildeo Husserl se preocupa em indicar que a palavra possui ldquofunccedilatildeo
de significaccedilatildeordquo isso quer dizer que a significaccedilatildeo natildeo eacute sustentada pela palavra mas que ela remete a
significaccedilatildeo agrave coisa mesma e nesse sentido para Husserl a ocasionalidade da expressatildeo natildeo prejudica a
unidade ideal de cada uma das expressotildees Contudo o autor natildeo deixa de reconhecer a esfera das expressotildees
ocasionais referidas ao sujeito e sua especificidade como falante identificadas por determinaccedilotildees como
aqui laacute ontem amanhatilde e ainda construccedilotildees expressivas com artigos definidos Essas expressotildees trazem a
referecircncia ao proacuteprio falante e agrave sua situaccedilatildeo ldquode tal maneira que a significaccedilatildeo autecircntica da palavra se
constitui pela primeira vez com base na respectiva representaccedilatildeo desse lugar Por um lado a significaccedilatildeo
eacute sem duacutevida genericamente conceitual porquanto aqui denomina em geral um lugar enquanto tal mas
a este geral junta-se a representaccedilatildeo direta do lugar variando de caso para caso que sob dadas
circunstacircncias do discurso eacute apontada atraveacutes desta representaccedilatildeo conceitual indicativa do aqui e lhe estaacute
subordinadardquo (HUSSERL 2012 p71)
41
descriccedilatildeo incomparavelmente exata e penetrante da consciecircncia interna do tempo
na qual precisaria se construir todo sentido de duraccedilatildeo e de validade atemporal ndash
todos esses eram temas fenomenoloacutegicos de Husserl que emergiram de um
intuito fundamental puramente teoacuterico e que estavam cindidos por um hiato
ontoloacutegico do ponto de partida de Heidegger da experiecircncia pragmaacutetica da vida
da percepccedilatildeo dirigida pelo significado praacutetico do ente agrave matildeo da temporalidade
do ser-aiacute a temporalidade essa que se tomava como movimento da
existecircnciardquo(GADAMER 2012 p154)
Desse modo Heidegger busca um acesso agrave mostraccedilatildeo dos fenocircmenos a partir da
temporalidade existencial do homem e assim compreender como a significaccedilatildeo de todo
e qualquer ente estaacute remetida agrave facticidade (Faktizitaumlt) daquele ente em que algo como
um fenocircmeno pode vir ao encontro
A partir desta breve apresentaccedilatildeo vamos investigar no proacuteximo capiacutetulo (1) A
criacutetica feita por Heidegger a essas trecircs tentativas de superaccedilatildeo da crise da filosofia no
seacuteculo XIX a) a posiccedilatildeo essencialmente teoacuterica da filosofia dos valores e sua
impossibilidade de se apresentar como filosofia originaacuteria b) ao primado da consciecircncia
em Husserl c) a determinaccedilatildeo metodoloacutegica (teoacuterica) da hermenecircutica de Dilthey
Tentaremos compreender (2) como essa problemaacutetica da virada do seacuteculo XIX para o
seacuteculo XX forneceu os princiacutepios que motivaram o pensamento heideggeriano agrave busca
da filosofia como ciecircncia originaacuteria e a partir da anaacutelise dos limites das ditas teorias a
questatildeo do sentido do conhecimento se mostra articulada com outra questatildeo ainda mais
fundamental o sentido do ser e (3) como a recepccedilatildeo da fenomenologia de Husserl por
Heidegger - considerando o modo de concepccedilatildeo originaacuterio do meacutetodo fenomenoloacutegico
como indicativo-formal - evidencia a imersatildeo de todo significado em um contexto
hermenecircutico historicamente dado
42
Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica
Mas a vida captada em sua forma irredutiacutevel jaacute sem ornato ou comentaacuterio meloacutedico vida a que aspiramos como paz no cansaccedilo (natildeo a morte) vida miacutenima essencial um iniacutecio um sono
menos que terra sem calor sem ciecircncia nem ironia o que se possa desejar de menos cruel a vida em que o ar natildeo respirado mas me envolva () Natildeo o morto nem o eterno ou o divino apenas o vivo o pequenino calado indiferente e solitaacuterio vivo Isso eu procuro (Vida Menor Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
No capiacutetulo anterior indicamos que o desenvolvimento das ciecircncias positivas
particulares no final do seacuteculo XIX emerge a discussatildeo acerca do sentido e possibilidade
do conhecimento na filosofia Nesse contexto o neokantismo buscou uma filosofia
propriamente cientiacutefica enquanto a fenomenologia husserliana a autonomia da filosofia
frente agrave ciecircncia positiva E a contribuiccedilatildeo de Dilthey cujo pensamento mesmo imerso
nas exigecircncias positivistas de seu tempo faz aparecer o caraacuteter hermenecircutico de toda
interpretaccedilatildeo e apresenta o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico
Acreditamos que percorrendo esse caminho podemos compreender no presente capiacutetulo
como a heranccedila da fenomenologia de Husserl insere Heidegger no interior da referida
discussatildeo pelo sentido do conhecimento18 Mas ao mesmo tempo tentaremos mostrar
18 A inserccedilatildeo de Heidegger na discussatildeo pelo sentido do conhecimento que apontamos aqui eacute diferente da
proposta de Crowell (2001) Grosso modo o argumento central de Crowell que atravessa todo o livro eacute a
negaccedilatildeo de uma ruptura radical da abordagem hermenecircutica de Heidegger ndash inclusive no projeto da
ontologia fundamental de Ser e Tempo - frente agrave fenomenologia transcendental de Husserl Crowell
reconhece que os dois projetos natildeo satildeo idecircnticos no entanto no interior do desenvolvimento de seu
pensamento Heidegger teria dado certa continuidade ao projeto husserliano na medida em que ainda pensa
no caraacuteter cientiacutefico da filosofia fenomenoloacutegica (ver pp 129-132) Nossa intenccedilatildeo natildeo eacute travar uma
polecircmica com Crowell pois perderiacuteamos a centralidade do tema de nossa dissertaccedilatildeo Sobre aquele tema
mais especiacutefico conferir tambeacutem Gadamer Verdade e Meacutetodo [260] que faz referecircncia a ele dizendo que
a problemaacutetica de Ser e Tempo natildeo escapa por completo agrave reflexatildeo transcendental Natildeo temos duacutevida de
que Heidegger estaacute comprometido com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do sentido do
conhecimento na medida em que teve profundo contato natildeo soacute com o pensamento neokantiano ndash sobretudo
atraveacutes de Rickert - mas tambeacutem com a fenomenologia de Husserl Ora ambas as correntes estavam
43
como a superaccedilatildeo da fenomenologia reflexiva (considerando o modo de concepccedilatildeo
originaacuterio fenomenoloacutegico como indicativo-formal) e a introduccedilatildeo do elemento
hermenecircutico radicalizou a investigaccedilatildeo filosoacutefica Com Heidegger a pergunta
fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do conhecimento e passou a
ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral Portanto o argumento central de
nosso segundo capiacutetulo eacute que a abordagem hermenecircutica de Heidegger que se daacute no
interior da fenomenologia foi decisiva para a virada da questatildeo do sentido do
conhecimento ao sentido do ser
Aqui nos eacute necessaacuteria uma breve consideraccedilatildeo Eacute puacuteblica a preocupaccedilatildeo filosoacutefica
de Heidegger com a ontologia jaacute desde seu contato com o livro de Brentano Percurso
descrito pelo proacuteprio autor em Meu caminho para a fenomenologia (Mein Weg in die
Phaumlnomenologie 1963)
ldquoA partir de algumas indicaccedilotildees extraiacutedas de revistas filosoacuteficas tinha averiguado
que o modo de pensar de Husserl fora bastante influenciado por Franz Brentano
cuja tese de doutoramento intitulada Da muacuteltipla significaccedilatildeo do ente em
Aristoacuteteles (1862) tinha sido justamente desde 1907 o guia e o criteacuterio das
minhas primeiras e desajeitadas tentativas de penetrar na filosofia De uma forma
bastante imprecisa o que me movia era a seguinte reflexatildeo lsquose o ente se diz com
significados muacuteltiplos qual seraacute entatildeo o significado fundamental e condutor O
que significa serrsquordquo (HEIDEGGER 2009 p3)
Eacute evidente que natildeo vamos reduzir a investigaccedilatildeo heideggeriana acerca do sentido
de ser a uma mera relaccedilatildeo de causalidade ie a um mero efeito do seu confronto com a
teoria do conhecimento vigente agrave eacutepoca de seus estudos mas insistiremos que a questatildeo
do sentido de ser sua forma e ateacute sua possibilidade soacute aparece para Heidegger a partir
da fenomenologia Como o proacuteprio filoacutesofo afirma no curso de 1925 Prolegocircmenos para
uma histoacuteria do conceito de tempo ldquoA pergunta pelo ser surge da criacutetica imanente no
curso da proacutepria investigaccedilatildeo fenomenoloacutegicardquo (HEIDEGGER (GA20) 2006 p122)19
o elemento hermenecircutico eacute decisivo para esse acesso Portanto eacute na criacutetica imanente agrave
profundamente engajadas com o problema do conhecimento Nosso argumento central ndash defendido no
primeiro capiacutetulo ndash eacute o de que acontece uma virada A abordagem hermenecircutica de Heidegger faz mudar
a questatildeo pelo sentido do conhecimento para a questatildeo do sentido do ser dos entes em geral Revelando
assim o caraacuteter derivado (de uma situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento Cf STEIN E
2008 4ed pp21-30 19 ldquoLa pregunta por el ser surge de la criacutetica inmanente al curso da la propia investigacioacuten
fenomenoloacutegicaresponder en parte a ella constituye el verdadeiro assunto de estas leccionesrdquo opcit p122
44
fenomenologia que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostraccedilatildeo dos
fenocircmenos em seu ser Seraacute essa a direccedilatildeo de nosso capiacutetulo
Nele ainda natildeo entraremos na obra central de nosso trabalho abordaremos algumas
preleccedilotildees entre os anos de 1919 e 192520 para expor como a partir da discussatildeo acerca
do sentido do conhecimento e do lugar proacuteprio agrave filosofia Heidegger se posiciona frente
agraves tentativas de pensamento dos Neokantianos de Dilthey e de Husserl Nossa intenccedilatildeo
natildeo eacute interpretar as referidas preleccedilotildees como processos evolutivos de pensamento de
nosso autor como que para esclarecer em termos de causa e efeito a publicaccedilatildeo posterior
ldquomais madurardquo de Ser e Tempo Mas antes destacar como as questotildees desses textos
acabam por expor os princiacutepios que as motivaram e assim originaram a problemaacutetica cujo
desenvolvimento seraacute mais profundamente exposto na obra de 1927
I - Os limites da filosofia dos valores
No primeiro semestre do poacutes-guerra num contexto de recuperaccedilatildeo da
normalidade da vida cotidiana que obviamente se estendia ao ensino universitaacuterio ocorre
a preleccedilatildeo A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo (GA5657) tiacutetulo
uma das primeiras liccedilotildees do jovem professor em Friburgo em 1919 as quais pretendiam
desenvolver e solucionar parcialmente a ideia de ciecircncia que persegue uma posiccedilatildeo
metodoloacutegica genuiacutena natildeo desfigurada ou seja natildeo afetada por nenhuma teoria e livre
dos prejuiacutezos herdados Para tanto exigia-se voltar agrave esfera da simples consciecircncia
imediata da vida
ldquoA ideia cientiacutefica perseguida eacute tal que uma vez alcanccedilada uma posiccedilatildeo
metodoloacutegica verdadeiramente genuiacutena somos forccedilados a sair e dar um passo
aleacutem de noacutes mesmos para voltar metodologicamente naquela esfera que sempre
permanece alheia a problemaacutetica da ciecircncia que se pretende fundarrdquo21
(HEIDEGGER (GA5657) 2005p 3)
20 HEIDEGGER GA17 GA 61 GA63 GA 5657 e GA62 As traduccedilotildees utilizadas encontram-se na
bibliografia ao final do trabalho 21 ldquoLa idea cientiacutefica que se persigue es de tal naturaleza que una vez alcanzamos una posicioacuten
metodoloacutegica realmente genuina nos vemos obligados a salir y dar un paso maacutes allaacute de nosotros mismos
para volver metodoloacutegicamente sobre aquella esfera que siempre permanece extrantildea a la problemaacutetica maacutes
propia de la ciencia que se pretende fundarrdquo Opcitp3
45
Essa transformaccedilatildeo do meacutetodo natildeo eacute algo arbitraacuterio ou advindo de uma posiccedilatildeo
filosoacutefica mas ldquose evidencia como uma necessidade que se funda na natureza objetiva do
problema como tal e que responde agrave especiacutefica constituiccedilatildeo dos problemas da ciecircncia em
geralrdquo22 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p3) A ciecircncia e seus modelos teoacutericos
irrompem na consciecircncia imediata da vida e a transformam na medida em que trazem
uma nova atitude da consciecircncia a qual se desenvolve no caraacuteter dinacircmico e moacutevel da
vida do espiacuterito ldquoContudo essa irrupccedilatildeo da ideia de ciecircncia no contexto da consciecircncia
natural da vida soacute se daacute em um sentido primordial e radical no marco de uma filosofia
entendida nos termos de ciecircncia originaacuteriardquo23 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p4)
Aqui eacute possiacutevel observar natildeo apenas o mesmo vocabulaacuterio husserliano mas
tambeacutem a mesma tarefa reconduzir a filosofia ao seu lugar de ciecircncia originaacuteria
diferenciando-se dos outros tipos de ciecircncias (biologia fiacutesica psicologia histoacuteria
antropologia etc) Como indica Jeacutesus Adriaacuten Escudero em sua nota de apresentaccedilatildeo agrave
traduccedilatildeo no texto de 1919 eacute possiacutevel observar a linguagem filosoacutefica dos Neokantianos
de Baden (Windelband e Rickert) de Natorp a linguagem fenomenoloacutegica de Husserl e
talvez as primeiras formulaccedilotildees de uma linguagem proacutepria por exemplo Welten
(mundiar) ou das Wie (O como) Mas para noacutes o decisivo eacute notar que se os princiacutepios
que motivam essa investigaccedilatildeo inserem Heidegger no debate de sua eacutepoca (no contexto
da busca de uma filosofia propriamente cientiacutefica) poreacutem no curso de seu pensamento e
na anaacutelise das posiccedilotildees filosoacuteficas que intentam o mesmo objetivo a abordagem da
filosofia como ciecircncia originaacuteria recoloca a problemaacutetica no aspecto propriamente
hermenecircutico e natildeo teoacuterico da vida Se a filosofia eacute ciecircncia originaacuteria eacute a partir desse
aspecto primaacuterio que ela deve se movimentar
Em A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo o modo de
reconduccedilatildeo a essa originariedade jaacute natildeo obedeceraacute aos mesmos moldes da fenomenologia
husserliana Jaacute nessa primeira liccedilatildeo Heidegger nos propotildee uma reconduccedilatildeo da filosofia
(ao seu lugar basilar de toda e qualquer ciecircncia teoacuterica e derivada) que eacute a reconduccedilatildeo agrave
22 ldquomaacutes bien se evidenciaraacute como una necesidad que se funda en la naturaleza objetiva del problema como
tal y que responde a la especiacutefica constitucioacuten de los problemas de la ciencia en generalrdquo Op cit p3 23 ldquoSin embargo esta irrupcioacuten de la idea de ciencia en el contexto de la conciencia natural de la vida soacutelo
se da en un sentido primordial y radical en el marco de una filosofiacutea entendida en teacuterminos de ciencia
originariardquo Opcitp4
46
vida humana na sua imediatidade como fenocircmeno primaacuterio e fundamental Mesmo que
natildeo estejam aiacute desenvolvidas eacute claro as posiccedilotildees de Ser e Tempo como por exemplo o
ldquoser-em-o mundo em geral como constituiccedilatildeo fundamental do Daseinrdquo teses expostas e
desenvolvidas principalmente nos sect12 e 13 da obra de 1927 jaacute era possiacutevel encontrar
alguns elementos da hermenecircutica da facticidade Em 1919 a direccedilatildeo dada a uma filosofia
era a de que devia ocupar-se da vida e assim a proacutepria renovaccedilatildeo da universidade naquele
contexto de reconstruccedilatildeo do poacutes-guerra ldquoimplica[va] um renascimento da autecircntica
consciecircncia cientiacutefica e de seus laccedilos com a vidardquo24 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p
5) Indicaccedilatildeo que se articula com as liccedilotildees posteriores do autor mas que ganha seu
esclarecimento radical em 1923 no Relatoacuterio Natorp na medida em que a apropriaccedilatildeo da
filosofia aristoteacutelica por Heidegger mostra que a vivecircncia e sua relaccedilatildeo de sentido com
todo ente ocorre na ocupaccedilatildeo praacutetica como condiccedilatildeo primaacuteria de conhecimento com o
mundo condiccedilatildeo essa que coincide com a situaccedilatildeo hermenecircutica de toda ontologia
Antes de expormos as linhas gerais do desenvolvimento do texto eacute necessaacuterio
tentar esclarecer o que Heidegger quer dizer com a expressatildeo ldquoconcepccedilatildeo de mundordquo
(Weltanschauung) Para a filosofia segundo nosso autor visatildeo de mundo cosmovisatildeo
ou concepccedilatildeo de mundo natildeo satildeo termos que funcionam como uma direccedilatildeo de
comportamento no interior do mundo direccedilatildeo essa justificada desenvolvida e capaz de
orientar os seres humanos Tambeacutem natildeo oferecem uma visatildeo teoacuterica geral da histoacuteria e
da realidade a partir da qual as ciecircncias pudessem desenvolver-se Assumindo uma
perspectiva bem geral esses satildeo os problemas das filosofias de Windelband e Rickert (e
em certa medida tambeacutem os de Dilthey) contra os quais Heidegger vai se opor nessa
liccedilatildeo Pois o que aiacute estaacute em jogo natildeo eacute a postulaccedilatildeo teoacuterica do que eacute a vida histoacuterica mas
a compreensatildeo do acircmbito fundamental da realidade imediata da vida que proporciona
algo como ldquovisatildeo de mundordquo E desse modo a relaccedilatildeo entre ldquofilosofiardquo e o ldquoproblema
da concepccedilatildeo de mundordquo na conjunccedilatildeo expressa ldquoerdquo natildeo significa a relaccedilatildeo de duas
esferas diferentes mas sim o mesmo acircmbito pois a concepccedilatildeo de mundo potildee em
evidecircncia a natureza e a busca da filosofia ldquoconcepccedilatildeo de mundo como tarefa da
24 ldquoLa renovacioacuten de la universidad implica un renacimiento de la auteacutentica conciencia cientiacutefica y de sus
lazos con la vidardquo Opcitp5
47
filosofia quer dizer uma consideraccedilatildeo histoacuterica da maneira em que a filosofia resolveu
em cada caso esta tarefardquo25 (HEIDEGGER (GA5657) 2005p9)
Como sugere a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Heidegger considera que a
fundamentaccedilatildeo sem preconceitos da filosofia como ciecircncia originaacuteria deve desenvolver-
se a partir de um processo metodoloacutegico ldquoA ideia de ciecircncia exige implicitamente um
desenvolvimento metodoloacutegico dos problemas e nos coloca a tarefa da explicaccedilatildeo
preliminar do verdadeiro problema [que nos ocupa]26rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005
p6) Essa explicaccedilatildeo se desenvolve natildeo como hipoacutetese a ser demonstrada mas a partir
da anaacutelise das filosofias precedentes e de suas preconcepccedilotildees que podem distorcer o tema
da investigaccedilatildeo como elas se aproximaram da vida e como se relacionam com a noccedilatildeo
de ciecircncia
Como mostramos anteriormente jaacute na escola de Baden influenciado pela filosofia
dos valores de Lotze Windelband pretende analisar as pretensotildees de validade dos juiacutezos
cientiacuteficos concentrando-se nos valores que constituem esses juiacutezos a fim de conciliar
ciecircncia (Wissenschaft) e ldquovisatildeo de mundordquo (Weltanschauung) Para a escola de Baden as
leis naturais levam agrave explicaccedilatildeo mas eacute a norma de um valor ideal a condiccedilatildeo de um
pensamento verdadeiro Rickert retoma as consideraccedilotildees de Windelband e potildee o
problema em uma base filosoacutefica radical como instrumento metodoloacutegico Entre os sectsect
de 6 e 9 do texto A ideia da filosofia e o problema da concepccedilatildeo de mundo jaacute esboccedilando
algumas consequecircncias problemaacuteticas Heidegger expotildee os elementos principais das
teorias desses autores E se pergunta se aquele meacutetodo que tem a pretensatildeo de clarificar
a relaccedilatildeo entre filosofia e visatildeo de mundo poderia se tornar um meacutetodo seguro para a
realizaccedilatildeo da filosofia como ciecircncia originaacuteria A partir do sect 10 Heidegger inicia a criacutetica
propriamente dita ao meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico do Neokantismo de Baden Um dos alvos
de sua investigaccedilatildeo foi como a ldquodoaccedilatildeo idealrdquo elemento central do meacutetodo na medida
em que eacute o conteuacutedo com pretensatildeo de necessidade e universalidade dos juiacutezos acaba por
revelar o desconhecimento da problemaacutetica acerca da ciecircncia originaacuteria por essa escola
Para tanto Heidegger faz ldquoa pergunta decisiva quais satildeo as formas e normas necessaacuterias
25 ldquoConcepcioacuten del mundo como tarea de la filosofiacutea es decir una consideracioacuten histoacuterica de la manera en
que la filosofiacutea ha resuelto en cada caso esta tareardquo Opcitp9 26 ldquoLa idea de ciencia exige impliacutecitamente un desarrollo metodoloacutegico de los problemas y nos plantea la
tarea de una explicacioacuten preliminar del verdadero problema [que nos ocupa]rdquo Opcit p6
48
que permitem ao pensamento alcanccedilar a validez universal e assim cumprir o propoacutesito
da verdade27rdquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p50)
A anaacutelise eacute feita em dois momentos a) Consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo b)
aplicaccedilatildeo do meacutetodo
Para a consideraccedilatildeo da natureza do meacutetodo o importante eacute delinear o aspecto
fundamental que sustenta seus paracircmetros Heidegger aponta que para a escola de Baden
as determinaccedilotildees necessaacuterias do pensamento satildeo aquelas que configuram o pensamento
agrave finalidade ideal (validez universal) como condiccedilatildeo de verdade pois o pensamento com
valor deve responder a um dever-ser Pois bem de posse desse elemento basilar eacute na
aplicaccedilatildeo do meacutetodo que se revelaratildeo os problemas
A aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico consiste em a partir do material
fornecido pelos processos psiacutequicos dirigir a visatildeo ao aspecto ideal do pensamento e a
partir daiacute determinando o proacuteprio material ordenando seus elementos em funccedilatildeo de seu
aspecto ideal Portanto ldquoO nuacutecleo de todo o meacutetodo baseia-se no ideal do pensamento
mais precisamente em trazer agrave presenccedila a doaccedilatildeo do ideal28rdquo (HEIDEGGER (GA5657)
2005 p51) Em suma o ideal eacute normativo e dirige a consciecircncia agrave finalidade do
pensamento
ldquoEstamos aqui perante o mesmo problema da circularidade O meacutetodo criacutetico-
teleoloacutegico afirmaria poder determinar o ideal do pensamento isto eacute a verdade
a partir dos pensamentos verdadeiros no entanto o que tenho ante mim satildeo
pensamentos verdadeiros (ocorrecircncias factuais no mundo) mas natildeo a verdade
pois esta eacute um ideal Por outro lado para ter pensamentos verdadeiros ante mim
eu preciso selecionar entre os pensamentos aqueles que satildeo verdadeiros o que
novamente eu soacute posso fazer se jaacute tenho de antematildeo o ideal a verdaderdquo
(RABELO 2013 p28)
A partir daiacute em seu estilo muitas vezes categoacuterico Heidegger demonstra ser
supeacuterfluo o sentido do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico e o acusa de em uacuteltima instacircncia nem
mesmo conseguir esclarecer seus pressupostos deixando obscuras questotildees como ldquoa
doaccedilatildeo ideal possibilita uma relaccedilatildeo de apreciaccedilatildeo e de seleccedilatildeo com o material dado mas
27 ldquoAhora surge la pregunta decisiva iquestcuaacuteles son las formas y normas necesarias que permiten al
pensamiento alcanzar la validez universal y cumplir asiacute con el fin de la verdadrdquo Opcitp50
28 ldquoEl nuacutecleo de todo el meacutetodo descansa en el ideal del pensamiento con mayor precisioacuten en traer a la
presencia la donacioacuten del idealrdquo Opcitp51
49
como trago agrave minha consciecircncia o ideal de pensamentordquo ldquoo que significa validez
universal para esse pensamentordquo ldquoO que significa ser verdadeiro para o pensamento
para que ele seja universalmente vaacutelidordquo Nas palavras de nosso autor
ldquoA anaacutelise estrutural do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico mostra que este meacutetodo
pressupotildee em seu sentido mais proacuteprio e como condiccedilatildeo de sua proacutepria
possibilidade justamente aquilo que deve alcanccedilar Natildeo pode encontrar em si
mesmo seu proacuteprio fundamento posto que o ideal jaacute tem que estar dado como
criteacuterio de valoraccedilatildeo criacutetica da norma para levar a cabo a tarefa impliacutecita no
meacutetodordquo29 (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p52)
Se a anaacutelise da natureza e aplicaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico fizeram
despontar a primeira criacutetica acerca de sua impossibilidade Heidegger aprofunda sua
criacutetica tendo em vista o aspecto central de sua liccedilatildeo E portanto aponta o
desconhecimento acerca da problemaacutetica da ciecircncia originaacuteria por essa escola
ldquoJaacute vimos que o movimento do meacutetodo mais exatamente a implementaccedilatildeo do
mesmo inclui o ter presente o ideal o fim o dever-ser O ideal tem
evidentemente um conteuacutedo umas determinaccedilotildees substantivas Contudo eacute um
ideal natildeo eacute um conteuacutedo real e efetivo senatildeo um modo de dever-ser Frente a
todo ser o caraacuteter de obrigatoriedade [inerente ao dever-ser] encerra o momento
da idealidade e da validez supra-empiacuterica Assim pois o conceito do meacutetodo
teleoloacutegico pressupotildee algo mais essencial e algo essencialmente diferente a
doaccedilatildeo do dever ser e se tratando do dever absoluto entatildeo falariacuteamos da
objetividade originaacuteriardquo (HEIDEGGER (GA5657) 2005 p53)30
A partir da constataccedilatildeo dessas implicaccedilotildees do meacutetodo Heidegger pergunta qual
eacute o correlato objetivo do dever-ser Em outras palavras qual sua orientaccedilatildeo vital Isso
permanece obscuro e mais ainda que a inclusatildeo do elemento do dever-ser no meacutetodo
aparentemente natildeo se mostre como um vieacutes meramente teoacuterico (na medida em que se
29 ldquoEl anaacutelisis estructural del meacutetodo criacutetico-teleoloacutegico muestra que este meacutetodo presupone en su sentido
maacutes propio y como condicioacuten de su propia posibilidad justamente aquello que debe conseguir No puede
encontrar en siacute mismo su propio fundamento puesto que el ideal ya tiene que estar dado como criterio de
valoracioacuten criacutetica de la norma para llevar a cabo la tarea impliacutecita en el meacutetodordquo Opcitp52 30 ldquoYa vimos que la puesta en marcha del meacutetodo maacutes exactamente la implementacioacuten del mismo incluye
el tener presente el ideal el fin el deber-ser El ideal tiene evidentemente un contenido unas
determinaciones sustantivas Sin embargo es un ideal no es un contenido real y efectivo sino un modo del
deber- ser Frente a todo ser el caraacutecter de obligatoriedad [inherente al deber-ser] encierra el momento de
la idealidad y de la validez supraempiacuterica Asiacute pues en el concepto del meacutetodo teleoloacutegico se presupone
algo esencialmente maacutes y algo esencialmente diferente la donacioacuten del deber-ser y si se tratara del deber
absoluto entonces hablariacuteamos de la objetualidad originariardquo Opcitp53
50
trata da razatildeo praacutetica) natildeo eacute possiacutevel responder agrave demanda necessaacuteria de uma ciecircncia
originaacuteria pois eacute inconciliaacutevel com a urgecircncia da vida faacutetica
Nesse sentido nos parece que na filosofia criacutetica-transcendental de Rickert o
acesso aos elementos decisivos do meacutetodo em uacuteltima instacircncia eacute realizado a partir das
teorias das ciecircncias positivas Entatildeo a filosofia estaacute obrigada a se posicionar frente agraves
teorias dessas ciecircncias e natildeo propriamente a partir da orientaccedilatildeo vital O
desconhecimento acerca da filosofia como ciecircncia originaacuteria se torna aqui patente pois
ao se revelar que satildeo as teorias dessas ciecircncias que fornecem os elementos para os juiacutezos
valorativos relacionados ao dever-ser a filosofia se torna delas dependente e parece nelas
encontrar ateacute mesmo sua condiccedilatildeo de possibilidade
Heidegger ainda aponta em sua criacutetica um problema que decorre da tentativa de
estabelecer uma relaccedilatildeo entre valor judicativo e dever-ser Para ele na vivecircncia imediata
da vida as relaccedilotildees valorativas natildeo encontram a menor correspondecircncia com o dever-ser
Ouccedilamos as suas palavras
ldquoPela manhatilde entro em meu estuacutedio o sol banha meus livros etc estou alegre
Esta alegria natildeo responde em nenhum caso a um dever-ser A lsquoalegriarsquo como tal
natildeo se oferece a mim em uma vivecircncia marcada pelo dever-ser Devo trabalhar
devo sair para uma caminhada duas motivaccedilotildees duas possiacuteveis razotildees que em
si mesmas natildeo formam parte de meu sentimento de alegria senatildeo que o
pressupotildee Existe portanto um tipo de vivecircncia em que me sinto alegre em que
me daacute algo que tem valor como talrdquo 31(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)
A experiecircncia do valor eacute intransitiva natildeo um juiacutezo mas em seu sentido imanente
ldquoo meacutetodo teleoloacutegico implica indubitavelmente o momento da vivecircncia do dever-serrdquo
(HEIDEGGER (GA5657) 2005p55)32
Ateacute agora o que foi analisado foi o significado do meacutetodo criacutetico- teleoloacutegico e
suas implicaccedilotildees que apontaram para a existecircncia de fenocircmenos mais originaacuterios que
passam desapercebidos aos defensores desse meacutetodo E se o meacutetodo loacutegico-teleoloacutegico
31 ldquoiquestPero se me da todo valor como un deber-ser Evidentemente no Yo experimento las relaciones
valorati- vas sin que intervenga el maacutes miacutenimo momento del deber-ser Por la mantildeana entro en mi estudio
el sol bantildea mis libros etceacutetera estoy alegre Esta alegriacutea no responde en ninguacuten caso a un deber-ser La
laquoalegriacutearaquo como tal no se me da en una vivencia marcada por el deber- ser Debo trabajar debo salir de
paseo dos motivaciones dos posibles razones que en siacute mismas no forman parte de mi sentimiento de
alegriacutea sino que lo pre-supo- nen Existe por tanto un tipo de vivencia en el que me siento alegre en el
que se me da algo que tiene valor como talrdquo Opcitp55 32 ldquoEl meacutetodo teleoloacutegico implica indudablemente el momento de la vivencia del deber-serrdquo Opcitp55
51
estabelece a relaccedilatildeo necessaacuteria entre valor e dever-ser acarretando todas as possiacuteveis
criacuteticas jaacute expostas Heidegger natildeo deixa de reconhecer
ldquoUma coisa eacute evidente Rickert detectou um fenocircmeno significativo quando
identificou o objeto do conhecimento como um dever-ser e o desvencilhou dos
mecanismos psiacutequicos o fenocircmeno da motivaccedilatildeo um fenocircmeno que encontra
seu significado primaacuterio tanto nos problemas do conhecimento como em outros
acircmbitos Uma coisa eacute declarar-algo-como-valor [Fuumlr-Wert-Erklaumlren] e outra
muito distinta eacute tomar-algo-por-um-valor [Wertnehmen] Este tomar-algo-como-
um-valor se pode caracterizar como um fenocircmeno originaacuterio como uma
constituiccedilatildeo da vida em si e para si no entanto o declarar-algo-como-um valor
foi visto como algo derivado algo fundado na esfera teoreacutetica e esse mesmo
fenocircmeno teoreacutetico eacute um elemento constitutivo da vida vivida em si mesma
Pressupotildee levantar o veacuteu teoreacutetico do caraacuteter valorativo como tal A estratificaccedilatildeo
precisa desse fenocircmeno natildeo nos interessa nesse momentordquo
(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p57)33
O que estaacute em jogo aqui eacute a relaccedilatildeo entre verdade e valor pois para Rickert
ldquodistinto do processo psiacutequico real uma ocorrecircncia natural que poderia ser tratada
causalmente destaca-se a legalidade ideal do pensar verdadeiro que se deve obedecer
uma vez que se queira o ideal da verdaderdquo (RABELO 2013 p26) Desse modo algo eacute
capaz de ser analisado como verdadeiro atraveacutes dos valores atribuiacutedos teoricamente
(atraveacutes da anaacutelise do juiacutezo) ao seu material Ou seja a verdade eacute garantida na anaacutelise
judicativa que declara-algo-como-valor Por exemplo a distinccedilatildeo entre acircmbito de ser na
realidade (Wirklichkeit) e acircmbito de validade e do valor (Wert) segundo Rickert levaria
a compreender que a histoacuteria eacute apreendida pela formaccedilatildeo de conceitos (Begriffsbildung)
e que natildeo se trata de um conhecimento no campo ontoloacutegico mas reconstruccedilatildeo do objeto
pelo conceito determinado de maneira formal no espaccedilo loacutegico-axioloacutegico Portanto
ldquoUma coisa eacute ldquoexplicar por valorrdquo (fuumlr-Wert-erklaumlren) outra eacute ldquotomar-por-valorrdquo
(wertnehmen) O primeiro eacute uma construccedilatildeo teoreacutetica o segundo uma vivecircncia
Estaacute em jogo aqui uma diferenccedila que se insinua na liacutengua alematilde a partir da
33 ldquoRickert detectoacute un fenoacutemeno significativo cuando identificoacute el objeto del conocimiento como un deber-
ser y lo deslindoacute de los mecanismos psiacutequicos el fenoacutemeno de la motivacioacuten un fenoacutemeno que encuentra
su significado primario tanto en el problema del conocimiento como en otros aacutembitos Una cosa es declarar-
algo-como-un-valor [Fuumlr-Wert- Erklaumlren] y otra muy distinta tomar-algo-por-un-valor [Wertnehmen]
Este tomar-algo-por-un-valor se puede caracterizar como un fenoacutemeno originario como una constitucioacuten
de la vida en y para siacute en cambio el decla- rar-algo-como-un-valor se ha de ver como algo derivado como
algo fundado en la esfera teoreacutetica9 y ese mismo fenoacutemeno teoreacutetico es un elemento constitutivo de la vida
vivida en siacute misma Presupone levantar el velo teoreacutetico del caraacutecter valorativo como tal La estratificacioacuten
precisa de este fenoacutemeno no nos interesa en estos momentosrdquo Opcitp57 Essa estratificaccedilatildeo a qual
Heidegger se refere jaacute indica em suas primeiras liccedilotildees o desdobramento posterior acerca da criacutetica agrave
primazia que a filosofia oferece a teoria em detrimento da compreensatildeo praacutetica
52
expressatildeo perceber wahrnehmen literalmente tomar-por-verdadeiro No mesmo
sentido imediato em que aquilo que me aparece na percepccedilatildeo sensiacutevel eacute tomado
como estando aiacute ele mesmo sem a necessidade de uma reflexatildeo aqui quer-se
saber se algo vivenciado eacute no proacuteprio vivenciar tomado como algo valoroso se
eacute experienciado enquanto valoroso ou se posteriormente lhe eacute adicionada esta
referecircncia a valoresrdquo (RABELO 2013 p27)
Desse modo para Rickert verdade e valor judicativo (teoacuterico) se comungam mas
essa comunhatildeo para Heidegger natildeo passa de uma constituiccedilatildeo metodoloacutegica externa e
derivada de uma filosofia teoacuterica Se para Rickert o tomar-algo-como-um-valor natildeo tem
ldquovalor de verdaderdquo como o declarar-algo-como-valor Para Heidegger a verdade do ser
(ser ndashverdadeiro) ou o ldquotomar-por-verdadeirordquo (a vivecircncia) independe do valor e nada
tem a ver com o dever-ser
ldquoDaacute-se o ser-verdadeiro como um valor De maneira alguma e nem se daacute no
segundo caso do juiacutezo histoacuterico [acerca da morte de Napoleatildeo I na ilha de Santa
Elena] Contudo o conteuacutedo objetivo desse juiacutezo tem a forma de um valor no
sentido de [que remete a algo] lsquohistoricamente significativorsquo um novo fenocircmeno
lsquovalorativorsquo que natildeo afeta o ser-verdadeiro como tal ao lanccedilar um papel
metodoloacutegico na constituiccedilatildeo da verdade histoacuterica O ser-verdadeiro (ἀ-λήθεια)
como tal natildeo lsquovalersquo Na alegria como alegria assumo valores na verdade
simplesmente vivo Natildeo apreendo o ser-verdadeiro na e atraveacutes de uma assunccedilatildeo
de valores34rdquo (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p58)
Essas uacuteltimas consideraccedilotildees revelam para Heidegger que o meacutetodo teleoloacutegico
estaacute impregnado de pressuposiccedilotildees pois a cada vez ldquoos fenocircmenos do dever-ser do valor
da assunccedilatildeo de um valor da pergunta se a verdade eacute um valor que descansa em uma
valoraccedilatildeo originaacuteria se fundam em uma determinaccedilatildeo valorativa que se realiza
subsequentementerdquo35 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 p62) E essas pressuposiccedilotildees
trazem agrave vista o privileacutegio teoreacutetico dessa filosofia
34 ldquoiquestSe da el ser-verdadero como un valor De ninguna manera y tampoco se da en el segundo caso del
juicio histoacuterico [acerca de la muerte de Napoleoacuten I en la isla de Santa Elena] Sin embargo el contenido
objetivo de este juicio tiene la forma de un valor en el sentido de [que remite a algo] laquohistoacutericamente
significativoraquo un nuevo fenoacutemeno laquovalorativoraquo que no afecta al ser-verdadero como tal si bien juega un
papel metodoloacutegico en la constitucioacuten de la verdad histoacuterica El ser-verdadero (ἀ-λήθεια) como tal no
laquovaleraquo En la alegriacutea como alegriacutea asumo valores en la verdad como verdad simplemente vivo No
aprehendo el ser-verdadero en y a traveacutes de una asuncioacuten de valoresrdquo Opcitp58
35 ldquoAl ampliar el anaacutelisis salieron a escena nuevos presupuestos y pusieron de relieve que el meacutetodo
teleoloacutegico estaacute cargado de presuposiciones los fenoacutemenos del deber-ser de la donacioacuten del deber-ser del
valor de la asuncioacuten de un valor de la pregunta de si la verdad es un valor que descansa en uma valoracioacuten
originaria o de si se funda en una determinacioacuten valorativa que se realiza con lsquoposterioridadrsquordquo Opcitp62
53
ldquoO privileacutegio outorgado ao teoreacutetico repousa na convicccedilatildeo de que o teoreacutetico
representa o estrato baacutesico e fundamental que de alguma maneira funda todas as
esferas restantes Isso se potildee manifesto quando eacute falado por exemplo da
lsquoverdadersquo eacutetica artiacutestica ou religiosa Se diz que o teoreacutetico tem todos os demais
acircmbitos valorativos e eacute capaz de fazer isso na medida em que o teoreacutetico mesmo
se concebe como um valor Eacute necessaacuterio romper este primado do teoacuterico mas natildeo
com a finalidade de proclamar a primazia da praacutetica ou introduzir um outro
elemento que mostra os problemas a partir de uma nova perspectiva mas porque
o teoreacutetico mesmo enquanto tal remete a algo preacute -teoreacuteticordquo 36(HEIDEGGER
(GA5657) 2005 p70)
Para os neokantianos de Baden o ideal absoluto como medida da realidade
empiacuterica como condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do pensamento verdadeiro e ainda como
condiccedilatildeo de interpretaccedilatildeo do significado histoacuterico reveste-se da transcendentalidade em
funccedilatildeo do rigor cientiacutefico Para eles o mundo do ser natildeo pode ser confundido com o
mundo do valor pois satildeo os valores como elementos transcendentais que orientam a
constituiccedilatildeo do indiviacuteduo histoacuterico de modo loacutegico A realidade - o espaccedilo ontoloacutegico ndash
estaacute condicionada agrave teoria e em uacuteltima instacircncia o proacuteprio teoreacutetico eacute concebido como
valor Inversatildeo que Heidegger detecta como propriamente afastada do acircmbito imediato
da vida e que como meacutetodo portanto natildeo pode fundar-se como ciecircncia originaacuteria
II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt37 originaacuterio
Diferentemente de Windelband e Rickert que subordinavam a verdade agrave
valoraccedilatildeo em funccedilatildeo do juiacutezo jaacute em 1919 Heidegger indicava a derivaccedilatildeo do teoreacutetico
de uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Apoacutes a investigaccedilatildeo do meacutetodo criacutetico-
36 ldquoAsimismo el privilegio otorgado a lo teoreacutetico reposa en la conviccioacuten de que lo teoreacutetico representa el
estrato baacutesico y fundamental que de alguna manera funda todas las esferas restantes Esto se pone de
manifiesto cuando uno habla por ejemplo de la laquoverdadraquo eacutetica artiacutestica o religiosa Se dice que lo teoreacutetico
tintildee todos los demaacutes aacutembitos valorativos y es capaz de hacer eso en la medida en que lo teoreacutetico mismo
se concibe como un valor Se ha de romper con esta primaciacutea de lo teoreacutetico pero no con el propoacutesito de
proclamar un primado de lo praacutectico o de introducir otro elemento que muestre los problemas desde una
nueva perspectiva sino porque lo teoreacutetico mismo y en cuanto tal remite a algo pre-teoreacuteticordquo Opcitp70
37 Como o verbo ldquodarrdquo em portuguecircs o ldquogebenrdquo em alematildeo pode ser utilizado como verbo bitransitivo no
sentido de dar algo a algueacutem (Ex ldquoIch gebe dir mein Buchrdquo ldquoEu te dou o meu livrordquo) Mas no caso do ldquoes
gibtrdquo eacute utilizado no sentido do verbo ldquohaverrdquo ou ldquoexistirrdquo como por exemplo ldquoEs gibt viele Woumlrter ldquoHaacute
muitas palavrasrdquo ou ldquoExistem muitas palavras) Portanto pensar num ldquoes gibtrdquo originaacuterio eacute referir-se agrave
existecircncia originaacuteria das coisas em outras palavras no modo de aparecimento do que haacute do existente em
seu sentido primaacuterio preacutevio a toda determinaccedilatildeo transitiva possiacutevel nos moldes gramaticais
54
teleoloacutegico em A ideacuteia da filosofia e o problema da visatildeo de mundo o autor apresenta
essa instacircncia primaacuteria como correlata a um ldquoes gibtrdquo originaacuterio haacute e o que haacute eacute mundo
ou melhor um dar-se mundo
Aqui reside a primeira exposiccedilatildeo de nosso argumento A abordagem hermenecircutica
de Heidegger no interior da fenomenologia foi decisiva para o acesso agrave questatildeo do sentido
do ser e no desenvolvimento da referida preleccedilatildeo esse movimento se torna patente
A criacutetica de Heidegger agrave teoria do conhecimento e agraves implicaccedilotildees dessa postura
propriamente teoacuterica em relaccedilatildeo agrave verdade conduz o autor agrave correlaccedilatildeo entre as vivecircncias
e a significaccedilatildeo fenomecircnica como cooriginaacuterias da imersatildeo num mundo que haacute se daacute
existe como mundo circundante As pressuposiccedilotildees da teoria do conhecimento e suas
postulaccedilotildees acerca do ldquosujeitordquo reverberam em uma seacuterie de problemas derivados que
nada dizem acerca das vivecircncias Assim questotildees Como eacute possiacutevel o acesso agrave realidade
exterior Em que medida minha vivecircncia subjetiva alcanccedila a vivecircncia de outro
sujeito Como passar da esfera subjetiva aos dados sensoriais do mundo Como
passar da esfera subjetiva ao conhecimento objetivo satildeo problematizaccedilotildees derivadas
da primazia teoacuterica dada pela filosofia e pelas ciecircncias que ignoram por completo que o
viver do mundo circundante natildeo eacute uma contingecircncia () somente em ocasiotildees
excepcionais estamos instalados em uma atitude teoreacutetica38 (HEIDEGGER(GA5657)
2005 p106)
Lembremos que o que estaacute em questatildeo nessa preleccedilatildeo eacute em que medida a filosofia
pode ser considerada como ciecircncia originaacuteria e qual eacute o seu modo de relaccedilatildeo com a visatildeo
de mundo Nesse sentido a filosofia se mostra como aquela ciecircncia que deve se afastar de
qualquer posiccedilatildeo preacutevia e assim dizer que o viver do mundo circundante natildeo eacute uma
contingecircncia eacute reconhecer aquilo que todo posicionamento teoacuterico quer a cada vez
afastar mas eacute em uacuteltima medida a condiccedilatildeo de possibilidade de sua proacutepria realizaccedilatildeo
teoacuterica Com outras palavras a possibilidade do conhecimento estaacute imersa em bases que
natildeo satildeo elas proacuteprias teoacutericas E nesse sentido quando uma ou outra teoria filosoacutefica
pretende investigar a possibilidade do conhecimento partindo de pressuposiccedilotildees teoacutericas
38 ldquoEl vivir del mundo circundante no es una contingencia sino que radica en la esencia de la vida en y para
siacute por el contrario soacutelo en ocasiones excepcionales estamos instalados en una actitud teoreacuteticardquo
Opcitp106
55
acaba por afundar-se em falsos problemas como ldquoa realidade do mundordquo e ldquoo acesso a
essa realidaderdquo Discussotildees vazias pois o mundo em sua realidade histoacuterica eacute o dar-se
originaacuterio e prescinde de toda e qualquer teorizaccedilatildeo
Na leitura de Heidegger o neokantismo decompotildee o acircmbito originaacuterio da
vivecircncia em conceitos teoacutericos que natildeo formam mais uma totalidade pois a
desvivifica transformando-a num objeto a-histoacuterico e portanto sem significado
O mundar (welten) soacute eacute apreensiacutevel pela visatildeo fenomenoloacutegica que ainda natildeo estaacute
contaminada pelos pressupostos teoreacuteticos que tornam essa experiecircncia uma
relaccedilatildeo objetificante () Heidegger se contrapotildee agrave metodologia teoreacutetica que
pretende objetificar e descrever as vivecircncias mas compreender e apreender as
conexotildees de significado em que jaacute se estaacute submerso A fenomenologia pretende
manifestar isso que se daacute em um soacute golpe o mundo circundante (Umweltliche)
caracteriacutestico do vivenciar primordial(WU R2010 p185)
Mas se a compartimentaccedilatildeo da realidade realizada pelas teorias filosoacuteficas recai
em discussotildees vazias e a vivecircncia primordial prescinde de conceitos teoacutericos isso natildeo
apontaria para um empirismo ou um realismo como possibilidades da filosofia A
filosofia eacute ainda busca e busca originaacuteria Nesse sentido o acesso fenomenoloacutegico ao
mundo circundante orientado pela proacutepria coisa na intuiccedilatildeo imediata eacute para Heidegger
o modo de abrir ldquocientificamenterdquo a esfera da vivecircncia resguardando a orientaccedilatildeo agrave vida
sem qualquer teoria preacutevia
O rigor da cientificidade cultivada na fenomenologia cobra sentido a partir
dessa atitude fundamental e natildeo se pode comparar com o rigor das ciecircncias
derivadas e natildeo originaacuterias Ao mesmo tempo resulta claro porque o problema do
meacutetodo joga um papel central na fenomenologia como em nenhuma outra ciecircncia
() Para o problema que nos ocupa a atitude fundamental da fenomenologia
aponta em uma direccedilatildeo decisiva natildeo construir um meacutetodo desde fora ou desde
acima natildeo idear um novo caminho teoreacutetico por meio de reflexotildees dialeacuteticasrdquo39
(HEIDEGGER(GA5657) 2005 p133)
Desde o iniacutecio da preleccedilatildeo Heidegger estaacute em busca de um meacutetodo capaz de
alcanccedilar o primaacuterio que estaria na base de qualquer conhecimento Nesse sentido a
39 ldquoEl laquorigorraquo de la cientificidad cultivada en la fenomenologiacutea cobra sentido a partir de esta actitud
fundamental y no se puede comparar con el laquorigorraquo de las ciencias derivadas y no originarias Al mismo
tiempo resulta claro por queacute el problema del meacutetodo juega un papel tan central en la fenomenologiacutea como
en ninguna otra ciencia (Por esta razoacuten todo este curso gira realmente en torno a un problema
metodoloacutegico) Para el problema que nos ocupa la actitud fundamental de la fenomenologiacutea apunta en una
direccioacuten decisiva no construir un meacutetodo desde fuera o desde arriba no idear un nuevo camino teoreacutetico
por medio de reflexiones dialeacutecticasrdquo Opcit p133
56
fenomenologia como retorno agraves coisas mesmas se volta ao dar-se originaacuterio das coisas e
eacute atraveacutes delas que o meacutetodo pode vir a ser desenvolvido Ainda em 1919 natildeo foi exposta
em linhas precisas a fenomenologia como meacutetodo indicativo-formal elemento decisivo
no interior da fenomenologia-hermenecircutica de Heidegger O que iremos abordar mais
adiante
A tentativa de orientar-se pelo dado na vivecircncia pelo que eacute como eacute no mundo
circundante se afasta portanto de qualquer objetificaccedilatildeo A fenomenologia como
meacutetodo eacute a possibilidade de compreensatildeo dos significados que nos vem ao encontro no
mundo circundante e histoacuterico no qual jaacute se estaacute sempre imerso Mas se Heidegger
apresenta a fenomenologia como o meacutetodo que alcanccedila o que vem ao encontro sem
qualquer preacutevia teoria esse acesso natildeo se daacute segundo os mesmos paracircmetros de seu
mestre Husserl
Como vimos na fenomenologia husserliana o modo de aparecimento do
fenocircmeno eacute sempre uma doaccedilatildeo de significado mas o acesso aos fenocircmenos eacute sempre a
partir da anaacutelise dos atos intencionais das vivecircncias na consciecircncia Heidegger recusa o
pressuposto da consciecircncia e pretende que a doaccedilatildeo significativa seja originaacuteria da
vivecircncia imersa no mundo No uacuteltimo momento da preleccedilatildeo de 1919 o autor apresenta
o que seria cooriginaacuteria de qualquer orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica e base de qualquer
ciecircncia teoacuterica a intuiccedilatildeo hermenecircutica Assim a vivecircncia que se apropria do vivido eacute
a intuiccedilatildeo compreensiva a intuiccedilatildeo hermenecircutica () A universalidade do significado
das palavras assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia
vivida40 (HEIDEGGER(GA5657) 2005 pp141-142) Ou seja a significaccedilatildeo
gramaticalmente revestida natildeo aponta para algo essencial apreendido no ato de
consciecircncia (como compreende Husserl) mas a significaccedilatildeo vivida no mundo
circundante
O princiacutepio dos princiacutepios husserlianos tudo o que se daacute originariamente na
intuiccedilatildeo [] haacute que tomaacute-lo simplesmente como se daacute (Husserl Ideen apud Heidegger
40 ldquoLa vivencia que se apropia de lo vivido es la intuicioacuten comprensiva la intuicioacuten hermeneacuteutica la
formacioacuten originariamente fenomenoloacutegica que vuelve hacia atraacutes mediante retroconceptos y que se
anticipa con ayuda de preconceptos y de la que queda excluida toda posicioacuten teoreacutetico-objetivante y
trascendente La universalidad del significado de las palabras sentildeala primariamente algo originario el
caraacutecter mundano de la vivencia vividardquo Opcitpp141142
57
(GA5657) 2005 p132) eacute dado no interior das conexotildees de significados no es gibt
originaacuterio no mundo que se daacute cooriginariamente agraves proacuteprias vivecircncias
Para Heidegger o uacutenico modo de apreender essa vivecircncia originaacuteria eacute retroceder
ao preacute-teoacuterico por uma abordagem fenomenoloacutegica que faz com que o mundar
do mundo se manifeste enquanto tal Alguns anos mais tarde isso constituiria o
nuacutecleo da ontologia fundamental na perspectiva da temporalidade cujo objetivo
de criacutetica natildeo seria mais de maneira tatildeo detida o neokantismo de Windelband e
Rickert mas a totalidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica da filosofia(WuR2010 p186)
Tendo em vista o ponto central da preleccedilatildeo aqui examinada eacute imprescindiacutevel
notar que em 1919 Heidegger estava debatendo com os problemas de seu tempo a
possibilidade do conhecimento o lugar da filosofia diante da autonomia das ciecircncias
particulares e a articulaccedilatildeo dessa problemaacutetica com a Lebensphilosophie Se ainda natildeo
haacute explicitamente a questatildeo do sentido de ser em geral a preleccedilatildeo possui elementos
decisivos para o desenvolvimento da ontologia fundamental O que queremos enfatizar eacute
como o modo de apariccedilatildeo dos fenocircmenos em seu significado prescinde de toda e qualquer
teorizaccedilatildeo Essa caracteriacutestica fundamental vai permanecer vigente nos desdobramentos
futuros do pensamento de Heidegger e vai se mostrar a cada vez mais intimamente
relacionada agrave ambiccedilatildeo heideggeriana de superar os pressupostos da tradiccedilatildeo filosoacutefica
moderna
ldquoA pergunta acerca da realidade do mundo externo deriva em parte de uma
compreensatildeo superficial da filosofia kantiana ou de outro modo de reflexotildees
colocadas por Descartes Eacute uma questatildeo que em todo momento de modo mais ou
menos expresso ocupou a teoria do conhecimento da modernidade assegurando-
se sempre contudo que naturalmente ningueacutem duvida da realidade do mundo
externo Pois o que nela sempre se daacute por suposto eacute que essa realidade essa
mundanidade do mundo eacute no fundo algo que talvez possa demonstrar-se ou
mais exatamente no caso de nos encontrarmos em condiccedilotildees ideais ao final
haviacuteamos demostrado [essa realidade] E contudo o ser-real do mundo natildeo soacute
natildeo necessita ser demosntrado nem sequer eacute algo que na falta de provas
rigorosas por isso deva ser unicamente objeto de crenccedilardquo41( HEIDEGGER
(GA20) 2006 p270)
41 ldquoLa pregunta acerca de la realidad del mundo externo se deriva en parte de uma comprensioacuten superficial
de la filosofia kantiana o mejor dicho de reflexiones que Descartes planteoacute Es uma cuestiacuteon que en todo
momento de modo maacutes o menos expreso ha ocupado a la teoriacutea del conocimiento de la modernidad
aseguraacutendose siempre no obstante de que naturalmente nadie dudara de la realidade del mundo externo
Pues lo que em ella se da por supuesto es que esa realidad esa mundanidad del mundo es em fondo algo
que quizaacute pueda demostrarse o maacutes exactamente es en caso de que nos encontraacuteramos em condiciones
ideales al final habriacuteamos demostrado Y sin embargo el ser-real del mundo no soacutelo no necessita ser
demostrado ni siquiera es algo que a falta de pruebas rigorosas por eso deba ser unicamente objeto de
creenciardquo Opcitp270
58
Assim a partir dessas consideraccedilotildees eacute possiacutevel indicar que a questatildeo do sentido
do ser em geral ou numa palavra a ldquoontologiardquo para Heidegger pode vir a ser atingida
quando se revela que a fenomenologia natildeo estaacute fundada na epistemologia (a partir da
consciecircncia) e que a hermenecircutica natildeo eacute apenas um instrumento metodoloacutegico de acesso
agrave histoacuteria em sua objetividade O que Heidegger pretende exprimir com o termo ldquointuiccedilatildeo
hermenecircuticardquo eacute a possibilidade de uma compreensatildeo imediata do mundo a qual natildeo estaacute
fundada nas vivecircncias subjetivas O es gibt originaacuterio eacute o mundo que se daacute como campo
hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Com outras palavras natildeo haacute
significados ideais eles aparecem a partir da situaccedilatildeo hermenecircutica compartilhada entre
os homens campo que chamamos de mundo e a compreensatildeo desse campo natildeo eacute
tributaacuteria das vivecircncias psiacutequicas Para tanto eacute preciso esclarecer como Heidegger supera
a consciecircncia husserliana enquanto lugar de apariccedilatildeo dos fenocircmenos e tambeacutem como a
noccedilatildeo heideggeriana de ldquointuiccedilatildeo hermenecircuticardquo pretende superar a vivecircncia psiacutequica de
Dilthey como categoria epistemoloacutegica fundamental Chegamos ao ponto onde se torna
necessaacuterio compreender mais detidamente a apropriaccedilatildeo de Heidegger da hermenecircutica
diltheyniana e da fenomenologia husserliana
II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger
Seguindo inicialmente as indicaccedilotildees expressas no primeiro curso proferido por
Heidegger em Marburg (inverno de 1923-1924) Introduccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo
fenomenoloacutegica (GA17) eacute possiacutevel observar a tentativa do autor de compreender a
fenomenologia como fenomenologia da existecircncia e assim se apropriar de maneira mais
originaacuteria da investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica
O curso se inicia com a interpretaccedilatildeo - mantida em seus principais elementos no
sect7 de Ser e Tempo - dos conceitos de fenocircmeno (φαινόμενον) e loacutegos (λόγος) em
Aristoacuteteles para assim pocircr em evidecircncia a interpretaccedilatildeo segundo a qual nos escritos do
filoacutesofo grego esses conceitos indicam a direccedilatildeo do pensamento e da investigaccedilatildeo
filosoacutefica para o ser do homem como ser-no-mundo
59
A perceptibilidade das coisas estaacute sob a condiccedilatildeo de um determinado ser deste
mundo mesmo O ser condiccedilatildeo se refere a um modo de ser do mundo mesmo Agrave
existecircncia no mundo pertence o ser subsistente do Sol justamente o que
pensamos quando afirmamos eacute de dia Desta forma falamos de um estado de
coisas que pertence ao ser do mundo mesmo Daiacute se segue que φαινόμενον natildeo
quer dizer em primeiro lugar nada mais que um destacado modo de presenccedila do
enterdquo42 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30)
Ainda seguindo a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles Heidegger diz que o conceito de
fenocircmeno na medida em que designa tudo o que mostra a si mesmo natildeo pode ser
reduzido ao que estaacute na presenccedila do dia ou seja que existem coisas que satildeo visiacuteveis na
obscuridade pois o que se mostra a si mesmo se mostra tanto na claridade como na
obscuridade43 (HEIDEGGER (GA17) 2006 p30) Para explicitar essa posiccedilatildeo o autor
recorre agraves categorias aristoteacutelicas essenciais do ente em ato e do ente em potecircncia (ogravev
ἐντελέχεια ogravev δύναμις) A obscuridade torna-se tambeacutem positiva a partir da
compreensatildeo dessas categorias em relaccedilatildeo ao fenocircmeno pois o ser da obscuridade
consiste em ser claridade possiacutevel44 (HEIDEGGER (GA17)2006 p31)
A originalidade do ver em Aristoacuteteles se mostra em natildeo se deixar enganar pelo
fato de que para as coisas que somente a noite deixa ver natildeo haacute nenhum nome
que as compreenda todas () O que importa eacute somente que essas coisas existam
aiacute elas satildeo vistas e sobre a base de seu conteuacutedo quiditativo tecircm a pretensatildeo de
serem tomadas por existentes Mas que falte um nome para essas coisas mostra
contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia45
(HEIDEGGER (GA17) 2006p31)
42 ldquoLa perceptibilidad de las cosas estaacute bajo la condicioacuten de un determinado ser de este mundo mismo El
ser condicioacuten se refiere a un modo de ser del mundo mismo A la existencia en el mundo pertenece el ser
subsistente del Sol justamente lo que mentamos cuando afirmamos es de diacutea De esta forma hablamos de
un estado de cosas que pertenece al ser del mundo mismo De aquiacute se sigue que φαινόμενον no quiere decir
en primer lugar nada maacutes que un destacado modo de presencia del enterdquo Op cit p30
43 ldquoEl concepto de φαινόμενον no estaacute limitado a la presencia de las cosas durante el diacutea va maacutes allaacute y
designa todo lo que se muestra em siacute mismo tanto se muestra en la claridad como en la oscuridadrdquo Op
citp30
44 ldquoEl ser de la oscuridad consiste en ser claridade posiblerdquo Opcitp31 45 ldquoLa originaridad del ver en Aristoacuteteles se muestra en que no se deja enganatilder por el hecho de que para las
cosas que soacutelo la noche deja ver no hay ninguacuten nombre que las comprenda a todas (por tanto para las
lucieacuternagas etc) () Lo que le importa es soacutelo que esas cosas existen ahiacute se las ve y sobre la base de su
contenido quiditativo tienen la pretensiacuteon de ser tomadas por existentes Pero que falte um nombre para
esas cosas muestra com todo que nuestra lengua (teoria de las categorias) es uma lengua del diacuteardquo
Opcitp32
60
Para compreendermos o que Heidegger trata nessa passagem eacute fundamental
relembrar a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica que indica algo crucial agrave nossa investigaccedilatildeo o
significado natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua
mostraccedilatildeo Para Husserl a anaacutelise das significaccedilotildees eacute a maneira de depurar a
complexidade da vida intencional da consciecircncia e essa investigaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel a partir
da anaacutelise das estruturas ideais que se apresentam na forma das expressotildees significativas
revestidas gramaticalmente Jaacute para Heidegger parece natildeo haver uma estabilidade
significativa ideal Em outras palavras e como vimos no toacutepico anterior as significaccedilotildees
vecircm ao encontro a partir de sua mostraccedilatildeo intencionadas em meio agrave compreensatildeo
hermenecircutica do mundo circundante por isso as estruturas ideais buscadas por Husserl
a partir da atividade intencional da consciecircncia devem ser revistas em funccedilatildeo da
possibilidade hermenecircutica do mundo circundante A veste gramatical das significaccedilotildees
natildeo pode subordinar o que vem ao encontro no dar-se originaacuterio do mundo quer em
funccedilatildeo de uma linguagem que almeja a cada vez fixar categorialmente o que se mostra
quer em funccedilatildeo de qualquer idealidade essencial pressuposta E assim para Heidegger o
conceito de loacutegos em Aristoacuteteles revela um sentido mais originaacuterio
Um λόγος existe pois quando o falar eacute falar com o mundo existente Ao dizer
forno [Ofen] natildeo falo a partir de uma existecircncia [Dasein] senatildeo que mas bem
me ponho fora da existecircncia [Dasein] do mundo concreto penso algo mas para
esse pensar natildeo desempenha nenhum papel que existam fornos [Oumlfen] ou natildeo
Falar eacute um ser com o mundo eacute algo originaacuterio e se daacute antes dos juiacutezos A partir
daqui se torna compreensiacutevel o juiacutezo Na loacutegica eacute comum considerar como juiacutezos
palavras como fogo () De modo algum o λόγος implica uma pluralidade de
palavras A palavra originaacuteria eacute um nomear mas natildeo eacute um nomear de um mero
nome mas bem o dirigir-se com a fala a algo que se encontra no mundo tal como
se encontra46(HEIDEGGER (GA17) 2006 p39)
46 ldquoUn λόγος existe pues cuando el hablar es um hablar con el mundo existente Al decir lsquohornorsquo no hablo
desde una existencia sino que maacutes bien me pongo fuera de la existencia del mundo concreto miento algo
pero para este mentar no desempentildea ninguacuten papel el que haya hornos o no Hablar es un ser con el mundo
es algo originaacuterio y se da antes que los juicios A partir de aquiacute se vuelve compreensible el juicio En la
loacutegica es tradiciacuteon considerar como juicios palabras como lsquofuegorsquo (De ninguna manera se establece con
ello soacutelo la existencia [Dasein] del fuego sino tambiacuteen que la gente debe saltar de la cama) Em modo
algun el λόγος implica una pluralidad de palabras La palabra originaria era un nombrar pero no el nombrar
de un mero nombre maacutes bien el dirigirse con el habla a algo que se encuentra en el mundo tal como se lo
encuentrardquo Op cit p39 A palavra Dasein nesse trecho ainda natildeo parece se referir ao homem como ldquoser-aiacuterdquo mas usada no
significado tradicional da liacutengua alematilde compreendida como ldquoexistecircnciardquo pois Heidegger nos fala da
ldquoexistecircnciardquo do lsquofornorsquordquo existecircnciardquo do lsquofogorsquo
61
O nomear originaacuterio do loacutegos natildeo eacute como a significaccedilatildeo expressa pela linguagem
que recolhe o ente sob determinado aspecto em seu εἶδος (Cf HEIDEGGER (GA17)
2006 p43) Loacutegos eacute loacutegos apofacircntico (λόγος αποφατικός) eacute o mostrar do fenocircmeno a
respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que se mostra como algo de maneira indiferenciada
natildeo determinada Assim o significado mediante o λόγος eacute caracterizado como existindo
O significado mediante o nome eacute um mero mencionar em sentido formal no λόγος o
significado eacute o mostrar o existente como existente47(HEIDEGGER (GA17) 2006p41)
Esse mostrar do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes
sempre em meio a um campo hermenecircutico e assim cada significado proacuteprio ou
determinado do ente que se mostra refere-se ao que significa em relaccedilotildees com os outros
entes relaccedilatildeo anterior a qualquer experiecircncia predicativa
O modelo tradicional da hermenecircutica como meacutetodo interpretativo vinculado agrave
filologia e ao formato da linguagem escrita se altera e torna-se com Heidegger a
investigaccedilatildeo acerca da proacutepria interpretaccedilatildeo da mostraccedilatildeo de todos os entes como uma
praacutetica viva que remete ao ser dos entes em seu aparecer como ente Hermes o
mensageiro dos deuses agora eacute mensageiro da situaccedilatildeo interpretativa na medida em que
o ser dos entes se mostra aos homens no interior de suas vivecircncias imediata A
interpretaccedilatildeo de algo eacute dada mediante a escuta cuidadosa da mensagem dinacircmica que se
realiza no diaacutelogo entre os homens natildeo eacute mais algo inerte fixo a ser encontrado O λόγος
na fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν E assim ao contraacuterio
da tradiccedilatildeo filosoacutefica que identificou o loacutegos como a expressatildeo ajuizante possiacutevel atraveacutes
da ratio (ou o dizer as modalidades dos entes atraveacutes de palavras e sequecircncia de palavras
organizando-as como sujeito e predicado no juiacutezo predicativo) Heidegger interpreta o
sentido originaacuterio de loacutegos apofacircntico como condiccedilatildeo de possibilidade para a
significaccedilatildeo Esse aspecto eacute assim descrito por Gadamer
Heidegger recorreu a uma etimologia para a palavra logos ela designa a seleccedilatildeo
posicionadorardquo () Loacutegos eacute realmente o posicionar seletivo legein significa
seleccedilatildeo selecionar conjuntamente reunir de tal modo que tudo se decirc como
bagos da videira reunidos e protegidos como a colheita O que eacute assim reunido
da seleccedilatildeo natildeo satildeo certamente apenas as palavras que formam a proposiccedilatildeo Cada
palavra ela mesma jaacute eacute de tal modo que nela muitas coisas satildeo reunidas - na
47ldquoLo significado mediante el λόγος es caracterizado como existiendo Lo significado mediante el nombre
es un mero mencionar el sentido formal en el λόγος lo significado es el mostrar lo existente como
existenterdquo Opcitp41
62
unidade do eidos como diraacute Platatildeo quando ele questiona o eidos com vista ao
logos (GADAMER 2012p528)
O sentido originaacuterio de loacutegos como loacutegos apofacircntico estaacute estritamente
relacionado com o sentido originaacuterio de fenocircmeno A tradiccedilatildeo latina traduziu loacutegos
interpretando-o como razatildeo juiacutezo conceito definiccedilatildeo ou proposiccedilatildeo Poreacutem em grego
logos natildeo significa primariamente juiacutezo entendido como modo de uniatildeo ou de tomada
de posiccedilatildeo seja pela aceitaccedilatildeo ou negaccedilatildeo Logos reporta-se agrave palavra legein tornar
manifesto aquilo de que se fala num discurso Por isso deixa que algo seja visto
comunicando a outro o que eacute manifestado e assim ldquoas posiccedilotildees individuais satildeo
penetradas pela tendecircncia a significar de um λέγειν assim que aspira a manifestar uma
determinada situaccedilatildeo objetiva Natildeo se chega ao λόγος se quiser comeccedilar com o mero
nomear A funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar48rdquo (HEIDEGGER (GA17)
2006 p43) Mas o que se manifesta O fenocircmeno (φαινόμενον) aquilo que se mostra a
si mesmo
A interpretaccedilatildeo da palavra φαινόμενον realizada por Heidegger no primeiro curso
proferido em Marburg indica inicialmente a existecircncia do mundo na medida em que ele
se mostrar a si mesmo49 como orientaccedilatildeo do horizonte temaacutetico da fenomenologia Em
1925 no curso Prolegocircmenos para uma histoacuteria ao conceito de tempo (GA20) o
esclarecimento do sentido originaacuterio do conceito de fenocircmeno seraacute elaborado conforme
o sentido encontrado tambeacutem em Ser e Tempo sect7 Φαινόμενον eacute o particiacutepio (forma
nominal do verbo) de φαίνεισθαι que como voz meacutedia50 significa mostrar-se e no
48 ldquoLas posiciones individuales estaacuten penetradas por la tendencia a significar de un λέγειν asiacute que aspira a
manifestar una determinada situacioacuten objetiva No se llega al λόγος si se quisiera comezar com el mero
nombrar La funcioacuten originaria de significaciacuteon es el manifestarrdquo Opcitp43
49 CfHeidegger (GA17) 2006p61
50 Um esclarecimento sobre a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito de
fenocircmeno por conseguinte da noccedilatildeo de fenomenologia Obviamente natildeo podemos aprofundar-nos nesse
complexo recurso gramatical que exigiria anos de estudos e profundo conhecimento da liacutengua helecircnica
Iremos apenas indicar sua especificidade A estrutura das vozes verbais na liacutengua portuguesa eacute constituiacuteda
de 3 possibilidades a ativa a passiva e a reflexiva Algumas Gramaacuteticas sugerem uma proximidade entre
a voz meacutedia grega e a voz reflexiva no portuguecircs contudo a voz meacutedia natildeo se esgota nessa comparaccedilatildeo
Seguimos a orientaccedilatildeo de Caio Vieira Reis de Camargo (2013) que em seu artigo reuacutene definiccedilotildees
importantes para os estudos linguiacutesticos contemporacircneos acerca da voz meacutedia
ldquoa) lsquoA voz meacutedia denota que o sujeito estaacute de alguma maneira especial envolvido ou interessado na accedilatildeo
do verborsquo (GILDERSLEEVE 1900 p64) b) lsquoVerbos () que tecircm posiccedilatildeo na esfera do Sujeito nos quais
o Sujeito todo parece participanteimplicadorsquo (BRUGMANNB 1903 p104) c) lsquoNa voz ativa os verbos
63
particiacutepio o que se mostra O aparecer o mostrar do fenocircmeno estaacute relacionado com a
raiz de φαίνω φῶς em portuguecircs luz claridade Assim ldquoos φαινόμενα configuram a
totalidade do que se mostra o que os gregos simplesmente identificaram tambeacutem com τὰ
ὄντα o ente51rdquo (HEIDEGGER (GA20)2006 p109) Podemos entatildeo dizer a totalidade
do que se mostra satildeo os fenocircmenos e se a funccedilatildeo originaacuteria de significaccedilatildeo eacute o manifestar
o loacutegos da fenomenologia natildeo eacute o significado de um ou outro ente mas o manifestar do
ente o sentido de ser dos entes Fenomenologia em sentido formal eacute ldquofazer ver a partir
dele mesmo o que se mostra tal como ele por si mesmo se mostrardquo (HEIDEGGER (GA2)
2012 p119) e assim a fenomenologia caminha em direccedilatildeo agrave ontologia
No capiacutetulo anterior pudemos observar que para Husserl o que estava em jogo
como tarefa da fenomenologia era - a partir da unidade entre intuiccedilatildeo (atividade da
consciecircncia sempre voltada agrave intuiccedilatildeo dos objetos) vivecircncias da consciecircncia e o
preenchimento intuitivo (pelo teor de sentido imanente do objeto) - expor a unidade
fenomenoloacutegica desses atos a saber apariccedilatildeo da expressatildeo intenccedilatildeo de significaccedilatildeo e
preenchimento de significaccedilatildeo Para Heidegger a intencionalidade fenomenoloacutegica agora
voltada para o sentido de ser dos entes revela que o fenocircmeno vem ao encontro natildeo em
funccedilatildeo da intencionalidade da consciecircncia onde poderia ser depurado na sua significaccedilatildeo
denotam um processo que se realiza a partir de um sujeito e sem ele na meacutedia que eacute a diaacutetesis a definir
por oposiccedilatildeo o verbo indica um processo em que o sujeito eacute o foco o sujeito estaacute no interior do processorsquo
(BENVENISTE 1966 p172) d) lsquoEm indo-europeu e em grego as desinecircncias meacutedias indicam que o
sujeito estaacute interessado de uma maneira pessoal no processorsquo (MEILLET 1937 p244) e) lsquoAs implicaccedilotildees
da meacutedia (quando em oposiccedilatildeo com a ativa) satildeo que a accedilatildeo ou estado afeta o sujeito do verbo ou seus
interessesrsquo (LYONS 1969 p373) Nessas definiccedilotildees a princiacutepio haacute dois empregos da meacutedia a meacutedia
reflexiva direta (especialmente a de Gildersleeve e Meillet voltadas para a questatildeo do interesse do sujeito
oracional) e a meacutedia reciacuteproca que envolve mais as construccedilotildees passivas e intransitivas da meacutedia
(ressaltada por Brugmann e Benveniste com a noccedilatildeo de que o sujeito todo participa e que estaacute interno ao
processo) A definiccedilatildeo de Meillet por outro lado eacute a mais comumente utilizada principalmente em
gramaacuteticas e meacutetodos de ensino do grego antigo atribuindo agrave media a noccedilatildeo de interesse por parte do
sujeito sendo que esse traccedilo embora existente em alguns casos natildeo eacute uacutenico e nem sempre tatildeo evidenterdquo
(pp 185-186)
Quando dissemos que entender a voz meacutedia na liacutengua grega eacute fundamental para a compreensatildeo do conceito
de fenocircmeno pensamos nessa especificidade de algo que na accedilatildeo no verbo (existir manifestar) constitui a
si mesmo no interior do processo O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento como fenocircmeno
Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar
por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na
estabilidade de uma esfera para aleacutem do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua
manifestaccedilatildeo o sentido de sua proacutepria existecircncia
51 ldquoLos φαινόμενα configuran la totalidad de lo que se muestra a siacute mismo lo que los griegos simplemente
indetificaban tambieacuten con τὰ ὄντα lo enterdquoOpcit p109
64
Mas o loacutegos como manifestar-se do fenocircmeno em seu sentido originaacuterio como existente
eacute intencionado no es gibt originaacuterio na concretude do mundo que se daacute
Mas como eacute possiacutevel chegar ao acontecimento de ser do fenocircmeno sem a base de
uma consciecircncia em funccedilatildeo da qual o fenocircmeno pode ser depurado Os estudos da Sexta
Investigaccedilatildeo Loacutegica de Husserl ao distinguir intuiccedilatildeo sensiacutevel da categorial ofereceram
a Heidegger um acesso agrave compreensatildeo do sentido muacuteltiplo do ente Nas palavras do autor
ldquoQuando a partir de 1919 eu proacuteprio ensinando e aprendendo proacuteximo de
Husserl me exercitei na visatildeo fenomenoloacutegica e simultaneamente pus agrave prova
nos Seminaacuterios uma leitura de Aristoacuteteles diferente da habitual retomei o meu
interesse pelas Investigaccedilotildees Loacutegicas muito especialmente pela sexta da
primeira ediccedilatildeo A distinccedilatildeo ali elaborada entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial
revelou-se-me em todo o seu alcance como capaz de determinar lsquoo muacuteltiplo
sentido do entersquordquo (HEIDEGGER2009 p8)
Vejamos brevemente o ponto crucial dessa parte da VI investigaccedilatildeo a qual
Heidegger se refere A questatildeo central eacute ldquoTodas as partes e formas da significaccedilatildeo
correspondem tambeacutem partes e formas da percepccedilatildeo52rdquo (HUSSERL 1975 p106) Em
outras palavras nos enunciados da percepccedilatildeo ldquoUm S eacute Prdquo ldquoEste S eacute Prdquo ldquoTodo S eacute Prdquo
etc cada um de seus elementos (ldquoumrdquo ldquoSrdquo ldquoeacuterdquo ldquoPrdquo) possui significaccedilotildees que
preenchem a percepccedilatildeo Husserl responde negativamente somente S e P possuem
significaccedilatildeo que preenchem a percepccedilatildeo pois existe uma diferenccedila categorial absoluta
entre a forma expressiva e o material expresso E os enunciados da percepccedilatildeo chegam
somente aos elementos materiais que estatildeo presentes nos termos do enunciado
ldquoRepete-se a mesma distinccedilatildeo entre lsquomaterialrsquo e lsquoformarsquo naquilo que
consideramos unitariamente como um lsquotermorsquo Mas em todo enunciado de
percepccedilatildeo e tambeacutem naturalmente em todos os enunciados que exprimem uma
intuiccedilatildeo num certo sentido primaacuterio chegamos finalmente aos uacuteltimos elementos
ndash denominamos elementos materiais ndash que estatildeo presentes nos termos e que
preenchem diretamente na intuiccedilatildeo (percepccedilatildeo imaginaccedilatildeo etc) ao passo que
as formas complementares apesar de exigirem preenchimento enquanto formas
de significaccedilatildeo natildeo encontram diretamente na percepccedilatildeo e nos atos a ela
coordenados nada que jamais lhes possa ser conformerdquo(HUSSERL 1975p110)
52 Percepccedilatildeo aqui compreendida natildeo como mera percepccedilatildeo mas como atos fundados na percepccedilatildeo com
possibilidade objetiva
65
Husserl acompanha Kant na determinaccedilatildeo que ldquoser natildeo eacute um predicado realrdquo pois
a flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo -tanto na funccedilatildeo atributiva (sapato preto) quanto na forma
predicativa (Este sapato eacute preto) ndash natildeo se preenche atraveacutes de qualquer percepccedilatildeo Para
Husserl embora a proposiccedilatildeo kantiana ldquose refira ao ser existencial ao ser do
lsquoposicionamento absolutorsquo () eacute sempre possiacutevel entretanto aplicaacute-la ao ser predicativo
e atributivordquo (HUSSERL1975 p111) Se o ser natildeo eacute nada de aderente ao objeto natildeo eacute
uma caracteriacutestica real interna nem externa e ainda se ldquona esfera da percepccedilatildeo sensiacutevel
e assim compreendida e correlativamente na da intuiccedilatildeo sensiacutevel em geral () uma
significaccedilatildeo como a palavra ser natildeo encontra nenhum correlato objetivo possiacutevelrdquo
(HUSSERL1975 p112) entatildeo como ser vem agrave forma enunciativa Para Husserl o ser
soacute pode ser apreendido no julgar natildeo que ele seja obtido internamente a partir da reflexatildeo
mas no ato de julgar que correlato agrave intuiccedilatildeo do juiacutezo forma a unidade do juiacutezo evidente
Em outras palavras se o ldquo ser eacute fenomenologicamente interpretado como um modo
determinado do ser dadordquo ( ZAHAVI2015p47) a descriccedilatildeo de um fenocircmeno ou de um
estado de coisas em sua ligaccedilatildeo e unidade pelo juiacutezo vai aleacutem da intuiccedilatildeo sensiacutevel e eacute
preciso ampliar o conceito de intuiccedilatildeo considerando-a como uma intuiccedilatildeo categorial
pois ldquomesmo uma argumentaccedilatildeo teoacuterica ou uma anaacutelise conceitual pode ser considerada
como intuiccedilatildeo na medida em que ela nos traz agrave daccedilatildeo originaacuteria um estado de coisas um
traccedilo essencial ou uma demonstraccedilatildeo abstratardquo( ZAHAVI2015p55) Contudo esse
deslocamento do lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel o conduz a forma loacutegico sem revelar
de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno53
Portanto com o propoacutesito de elucidar a apariccedilatildeo originaacuteria de qualquer fenocircmeno
e junto com Aristoacuteteles Heidegger conclui que era Aleacutetheia desvelamento aquilo que
segundo Husserl consistia num ato da consciecircncia O ser natildeo eacute um predicado real se
abordado a cada vez como um ente Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar o ser como um
ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel e atributivo Ser
natildeo eacute um ente54 o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo com vistas agrave
53 Cf NUNES Benedito 2013 pp63-67 54 A diferenccedila ontoloacutegica eacute tomada tematicamente ou seja exposta explicitamente em 1927 em Os
problemas fundamentais da fenomenologia (GA24) Parte II Capiacutetulo I Mesmo de um modo natildeo temaacutetico
a diferenccedila entre ser e ente foi decisiva para a compreensatildeo da constituiccedilatildeo existencial do ser-aiacute nos escritos
anteriores sobretudo em Ser e Tempo Seguimos a leitura de LAFONT (1997) ldquoDo factum -central para a
abordagem de Ser e tempo - de que nossa relaccedilatildeo com o mundo estaacute mediada simbolicamente (o fato de
que lsquonos movemos sempre jaacute em uma compreensatildeo de serrsquo e que a realidade soacute eacute possiacutevel em uma
66
forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera para ldquoQual o
sentido de serrdquo E ao sentido do ser temos acesso pelo meacutetodo fenomenoloacutegico a partir
da situaccedilatildeo na qual o desvelamento dos entes acontece isto eacute no fenocircmeno da existecircncia
Como aponta Stein a apresentaccedilatildeo do conceito de fenomenologia em Ser e
Tempo eacute feita de maneira provisoacuteria no sect 7 e soacute ganha sua explicitaccedilatildeo na dinacircmica da
proacutepria anaacutelise do ldquoobjetordquo Mas tambeacutem como jaacute vimos aqui a especificidade e o fator
determinante do meacutetodo fenomenoloacutegico jaacute estatildeo em desenvolvimento na deacutecada de 20
Cito Stein
ldquoa descoberta que Heidegger fez que existe um primado da tendecircncia para o
encobrimento ()Ao inveacutes de pensar como Husserl e outros filoacutesofos que diante
de noacutes a realidade se estende agrave espera da rede de nossos recursos metodoloacutegicos
que a aprisionem Heidegger afirma que o homem e o essencial nas coisas tendem
para o disfarce ou estatildeo efetivamente encobertos Por isso volta-se para o comordquo
(STEIN 1971p16)
E o que se encobre de maneira excepcional natildeo eacute um ou outro ente mas o ser do
ente e ldquoa fenomenologia eacute o modo de acesso ao que deve se tornar tema da ontologia A
ontologia soacute eacute possiacutevel como fenomenologiardquo (HEIDEGGER (GA2) 2012 p 123)
Fenocircmeno loacutegos e aleacutetheia estatildeo numa imbricaccedilatildeo indissociaacutevel Stein (2001
p79) chega a dizer que a aleacutetheia esconde em si o meacutetodo fenomenoloacutegico e que o retorno
originaacuterio agrave palavra grega resume o pensamento de Heidegger Para nosso trabalho o
importante eacute compreender que a fenomenologia como meacutetodo para a ontologia encontra
no sentido originaacuterio de aleacutetheia a possibilidade de trazer agrave luz o que sustenta qualquer
presenccedila dos entes ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o que aponta para o velamento (lethe) que
ficou para traacutes que mostra para aquilo que a sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila
da aleacutetheia que se torna possiacutevel a objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito
pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89) Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em
sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao encontro em seu significado) no desvelamento
originaacuterio de seu ser mas essa mostraccedilatildeo dos fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira
compreensatildeo de serrsquo) deduz Heidegger a universalidade da lsquopreacute-estrutura do compreenderrsquo (Als-Struktur)
que constitui o nuacutecleo fundamental de sua transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia O instrumento
decisivo do ponto de vista metodoloacutegico que o permite obter este ponto de vista eacute a substituiccedilatildeo da
dicotomia empiacutericotranscendental - proacutepria da filosofia transcendental- pela lsquodiferenccedila ontoloacutegicarsquordquo p29
67
dissimulada sempre atraveacutes de uma objetificaccedilatildeo de seu ser como ente determinado pois
ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na medida em que partimos de seu
encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de descoberta perde seu sentido mais
efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Dessa forma ldquoa fenomenologia no sentido heideggeriano
eacute a desconstruccedilatildeo do evidente e em uma tal desconstruccedilatildeo interessa mostrar que o
evidente eacute em verdade uma modificaccedilatildeo do fenocircmeno lsquoserrsquordquo (FIGAL 2005p47) E aqui
a fenomenologia encontra a hermenecircutica em sua relaccedilatildeo mais radical pois essa
desconstruccedilatildeo do evidente parte do proacuteprio evidente a situaccedilatildeo faacutetica Pois ldquoo ser soacute
pode chegar entatildeo a ser visualizado se essas dissimulaccedilotildees forem comprovadas como
dissimulaccedilotildeesrdquo (FIGAL 2005p47) ou seja na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo faacutetica que
compreende previamente todos os entes
A atualizaccedilatildeo da filosofia antiga sob bases fenomenoloacutegicas eacute chamada de
ldquofenomenologia como repeticcedilatildeordquo55 O retorno ao pensamento de Aristoacuteteles e Platatildeo
realizado por Heidegger ldquonatildeo significa simplesmente acolher uma vez mais um
questionamento filosoacutefico herdado a fim de integraacute-lo no discurso de uma filosofia atualrdquo
e tambeacutem natildeo se trata de ldquoinserir uma filosofia atual em uma tradiccedilatildeordquo (FIGAL 2005
p32) Mas eacute consequecircncia da orientaccedilatildeo do trabalho heideggeriano de uma lsquofilosofia
cientiacuteficarsquo sem pressupostos O comeccedilo da filosofia eacute o questionamento em curso vivo
promovido pela proacutepria questatildeo e natildeo por sistemas externos agraves proacuteprias coisas A
pergunta pelo ser em Heidegger se torna temaacutetica na medida em que o desdobramento da
criacutetica imanente ao modelo husserliano conduz agrave pergunta fundamental inaugurada no
iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo
Se por um lado Heidegger pode ser associado agrave tradiccedilatildeo fenomenoloacutegica por
outro natildeo se pode esquecer a criacutetica imanente que ele fez agrave fenomenologia de Husserl e
que o conduziu a pensar a fenomenologia como meacutetodo a indicar o mundo a existecircncia
e a facticidade como campo de aparecimento dos proacuteprios fenocircmenos tornando portanto
a fenomenologia hermenecircutica Eacute nessa compreensatildeo da tarefa fenomenoloacutegica como o
modo de acesso ao que deve ser tornar tema da ontologia que Heidegger rejeita o
pressuposto husserliano da consciecircncia como correlato do aparecimento dos fenocircmenos
55 Cf Figal 2005 pp29-42 e STEIN 2001 p98
68
Ele o recusa natildeo somente pelo fato de as relaccedilotildees intencionais enquanto processos
mentais da consciecircncia se movimentarem pela pesquisa de conteuacutedos quididativos mas
tambeacutem e sobretudo pelo fato de
ldquoa consciecircncia apresentar em si mesma um contexto ontoloacutegico fechado Essa
ponderaccedilatildeo [a de que a consciecircncia parece natildeo precisar de qualquer objeto
exterior para existir] acaba por indicar a consciecircncia eacute absoluta em funccedilatildeo da
qual em geral a realidade pode se anunciarrdquo (HEIDEGGER Prolegomena zur
Geschichte p 144 apud FIGAL2005 p30)
Para Heidegger a fenomenologia transcendental de Husserl permanece ainda no
horizonte da modernidade Ao colocar o ldquomundo entre parecircntesesrdquo privilegiando a
experiecircncia da consciecircncia essa fenomenologia permaneceria incapaz de levar em conta
a realidade sem uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica e em uacuteltima instacircncia levar em conta as
vivecircncias concretas Heidegger natildeo abre matildeo da fenomenologia husserliana mas
radicaliza seu princiacutepio ldquode volta agraves coisas mesmasrdquo acentuando a tarefa pela existecircncia
e a partir da existecircncia dos fenocircmenos e no desvelamento buscar o sentido do ser de
todo e qualquer fenocircmeno
III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
Falamos haacute pouco de Heidegger repetir a filosofia antiga como um desdobramento
da proacutepria pesquisa filosoacutefica entendida como ciecircncia originaacuteria e como pergunta pelo
sentido de ser Em Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles Introduccedilatildeo agrave pesquisa
fenomenoloacutegica (GA61) Heidegger desenvolve esse aspecto e indica a problemaacutetica
central e radical a ser enfrentada a partir de Aristoacuteteles a saber ldquodesde de Aristoacuteteles se
manteacutem uma influecircncia taacutecita nas vias da visatildeo e da fala lsquoarticulaccedilotildeesrsquo loacutegicardquo
(HEIDEGGGER (GA61) 2011p11) Antes de entrarmos nessa problemaacutetica apontada
por Heidegger tentemos compreender o que o autor quis dizer com aquela afirmaccedilatildeo
Cito Puente (2001)
ldquoPara Aristoacuteteles foi precisamente a negaccedilatildeo do movimento que levou
Parmecircnides ao postulado da univocidade do ente e seraacute portanto a partir da
afirmaccedilatildeo irrestrita do movimento () que o Estagirita procuraraacute expandir os
horizontes do ente para aleacutem da mera dicotomia estabelecida por Parmecircnides
entre Ente e natildeo-enterdquo (p25)
69
Seguindo a leitura de Puente Aristoacuteteles encontrou a plurivocidade ao afirmar o
movimento no acircmbito dos entes Aleacutem disso como veremos nos desdobramentos a
seguir ele o fez submetendo o acircmbito ontoloacutegico ao acircmbito loacutegico Submissatildeo essa que
foi adotada por toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica que passou a entender a loacutegica como uacutenica via
de acesso agrave ontologia Pois a polivocidade categorial inserida no interior da
quadriparticcedilatildeo semacircntico-ontoloacutegica estaacute por sua vez submetida ao princiacutepio loacutegico de
natildeo contradiccedilatildeo Dito de outro modo as categorias aristoteacutelicas substacircncia
(οὐσία substantia) quantidade (ποσόν quantitas) qualidade (ποιόν qualitas) relaccedilatildeo
(πρός τι relatio) lugar (ποῦ ubi) tempo (ποτέ quando) estado (κεῖσθαι situs) haacutebito
(ἔχειν habere) accedilatildeo (ποιεῖν actio) e paixatildeo (πάσχειν passio) satildeo parte das quatro
possibilidades semacircnticas categoria acidente verdade atopotecircncia Reiterando as
possibilidades semacircnticas de dizer o ente estatildeo submetidas a um princiacutepio loacutegico
fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado ao princiacutepio de identidade
Soacute eacute possiacutevel desenvolver uma ontologia acerca dos entes naturais e sair da univocidade
ontoloacutegica de Parmecircnides se a semacircntica respeitar a impossibilidade loacutegica de uma
simultaneidade de atribuiccedilotildees contraacuterias a um ente ao mesmo tempo Os vaacuterios modos de
dizer o ser ldquoa refutaccedilatildeo confutatoacuteria agrave tese parmenidiana pode ser analisada entatildeo como
o desdobramento loacutegico do pressuposto de Parmecircnidesrdquo (PUENTES2001 p25)
Nesse sentido enfrentar a via loacutegica no interior da filosofia eacute enfrentar a tradiccedilatildeo
que compreendeu que a filosofia devia ser definida bem como seus objetos de forma
conceitual sob princiacutepios loacutegicos Em outras palavras superar a tentativa de dizer
previamente tanto o que a filosofia eacute quanto o que eacute seu objeto de investigaccedilatildeo E em
uacuteltima instacircncia superar a concepccedilatildeo tradicional metafiacutesica que compreende toda
ontologia condicionada agrave loacutegica pois ao ter acesso ao ente atraveacutes das categorias
arrasta a compreensatildeo da verdade agrave semacircntica extensional com lugar privilegiado na
proposiccedilatildeo reduzindo a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo56
56 Aqui eacute pertinente destacar uma consideraccedilatildeo de Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro no prefaacutecio agrave traduccedilatildeo do
texto de Aristoacuteteles As categorias (trad Fernando Coelho Florianoacutepolis Ed Da UFSC 2014 p 9-10)
ldquo A grande questatildeo realmente capaz de colocar a tradiccedilatildeo em xeque eacute a de saber se a compreensatildeo do real
pelas categorias ontoloacutegicas de substacircncia qualidade quantidade tempo lugar etc eacute o que eacute porque as
categorias gramaticais de substantivo e sujeito adjetivo e predicadoetcjaacute se instalaram de antematildeo e
predeterminaram o escopo daquela compreensatildeo ndash metafiacutesica como lsquofeacute na gramaacuteticarsquo como aponta
Nietzsche ndash ou se ao contraacuterio o limite da gramaacutetica ocidental para dizer o real eacute que eacute por ser preacute-limitada
por sua compreensatildeo metafiacutesicardquo
70
Para Heidegger a filosofia deve sempre voltar-se para a vida faacutetica e cabe agrave
definiccedilatildeo filosoacutefica tornar expliacutecita a interpelaccedilatildeo A filosofia natildeo eacute portanto um
conjunto de mateacuterias determinadas (loacutegica ontologia poliacutetica esteacutetica etc) No sentido
formal57 da definiccedilatildeo (determinar o objeto em seu ser-o-que-como [ was-wie-sein]) a
filosofia eacute indicativa (anzeigend) cujo princiacutepio possui um caraacuteter bem especiacutefico
identificar a visatildeo preacutevia Mas o que eacute essa visatildeo preacutevia
ldquoNatildeo haacute aqui como contornar a facticidade do mundo que eacute o nosso e isto natildeo
porque ela definiria a nossa postura em relaccedilatildeo agraves coisas e funcionaria como um
matiz de ordem espiritual em nossa ligaccedilatildeo com o todo mas porque ela perpassa
originariamente o horizonte mesmo a partir do qual os entes se mostram como os
entes que satildeo Esse horizonte possui aleacutem disso um caraacuteter histoacuterico
sedimentado Ele natildeo se determina de maneira loacutegico-transcendental () mas se
constroacutei historicamente a partir de decisotildees de pensamento que vatildeo
paulatinamente determinando que se mostra ou natildeo como dotado de sentidordquo
(CASANOVA 2009 p47)
Assim contra o pensamento imperante da tradiccedilatildeo
ldquoO que se denomina filosoacutefico assim como os termos de acordo com os quais
problemas considerados filosoacuteficos satildeo levantados natildeo nasce nunca de uma
anaacutelise puramente loacutegica Ao contraacuterio tanto a designaccedilatildeo de algo como
filosoacutefico quanto o modo de colocaccedilatildeo dos problemas filosoacuteficos em geral
depende de estruturas faacuteticas que foram sendo lentamente decididas no interior
da tradiccedilatildeo Se desconsiderarmos uma tal dependecircncia o que fazemos eacute
simplesmente assumi-las como oacutebvias () que impedem um tratamento
originaacuterio dos fenocircmenosrdquo (CASANOVA 2009 p 47)
Seguindo Escudero no proacutelogo escrito agrave sua traduccedilatildeo do Relatoacuterio Natorp (2002
p11) para atingir a realidade primaacuteria da vida faacutetica Heidegger nos anos 1920 se
movimenta em duas decisotildees A primeira decisatildeo metodoloacutegica eacute desdobrada em dois
momentos a) o primeiro desconstrutivo descerrar o intricado mapa conceitual da
filosofia e voltar-se ao fenocircmeno da vida b) e o segundo construtivo fazer uma anaacutelise
formal dos diversos modos de efetivaccedilatildeo da vida em seu processo de realizaccedilatildeo histoacuterica
E a segunda decisatildeo a anaacutelise das estruturas ontoloacutegicas da vida que corresponde agrave
hermenecircutica fenomenoloacutegica do ser-aiacute precisamente agrave pergunta pelo sentido do ser no
57 A loacutegica para Heidegger eacute formalista natildeo formal Diz-se formal em relaccedilatildeo agrave indicaccedilatildeo formalista em
relaccedilatildeo a operacionalidade dos elementos da loacutegica Cf HEIDEGGER 2011 p28
71
interior mesmo do acontecimento preacute-teoacuterico da cotidianidade do ser-aiacute para assim ter
acesso ao sentido do ser em geral
Portanto o meacutetodo fenomenoloacutegico como indicativo-formal eacute parte do processo
metodoloacutegico construtivo para o acesso agrave vida faacutetica como maneira de fazer vir ao
encontro os fenocircmenos sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica bem como a maneira de
desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos categoriais de definiccedilatildeo
O elemento decisivo eacute a experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica no como do
aparecer de qualquer objeto e na medida em que este possa ser definido ldquodevem ser
hauridas do modo como o objeto se torna acessiacutevel originariamenterdquo (HEIDEGGER
(GA61) 2011 p28) Com outras palavras qualquer significado compreendido como
indicativo-formal e a expressatildeo linguiacutestica desse conceito satildeo proposiccedilotildees caracterizadas
como indicaccedilotildees hermenecircuticas A terminologia filosoacutefica e seu questionar mais
originaacuterio devem a cada vez indicar o campo situacional histoacuterico de onde extraem seus
conceitos Nas palavras de Heidegger (GA61) ldquoo decisivo eacute o desdobramento radical e
claro de uma situaccedilatildeo hermenecircutica como temporalizaccedilatildeo da proacutepria problemaacutetica
filosoacuteficardquo (2011 p11) Portanto a interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do conhecimento58
para Heidegger exige uma modificaccedilatildeo a pergunta se transforma em ldquocomordquo eacute o
conhecimento ldquoComordquo as coisas vecircm ao encontro e natildeo mais uma definiccedilatildeo que
responderia agrave questatildeo com pretensatildeo atemporal ldquoo que eacute o conhecimentordquo ou ldquoo que eacute
este enterdquo
Por conseguinte os indicadores formais tecircm a funccedilatildeo de explicitar e natildeo de
explicar pois seu caraacuteter indicativo formal potildee em tela atraveacutes de um conceito
inicialmente vazio e sem caraacuteter determinador elementos da proacutepria facticidade
(Faktizitaumlt) para que a anaacutelise hermenecircutica possa compreendecirc-los no interior mesmo da
facticidade e dessa forma encontrar o lugar vivo de cada elemento na estrutura
ontoloacutegica da realidade Mas qual a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo
situacional sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica e que revele tanto a situaccedilatildeo
58 Aqui vemos o compromisso de Heidegger com a tarefa de explanar a questatildeo da possibilidade e do
sentido do conhecimento diligecircncia herdada da fenomenologia Poreacutem agora submetida a abordagem
ontoloacutegica E nesse sentido a abordagem hermenecircutica de Heidegger revela o caraacuteter derivado (de uma
situaccedilatildeo hermenecircutica) e finito de todo conhecimento
72
compreensiva quanto descontrua a evidecircncia de toda determinaccedilatildeo conceitual dos entes
revelando antes o seu aparecer como ente Eacute o tema de nosso proacuteximo toacutepico
III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger
Segundo Heidegger ldquoo decisivo na investigaccedilatildeo de Dilthey natildeo eacute a teoria da ciecircncia
da histoacuteria senatildeo a tendecircncia em colocar a realidade histoacuterica agrave vista para a partir dela
esclarecer de que modo e maneira eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo59rdquo (HEIDEGGER (GA20)
2006 p34) Contudo Dilthey se movimenta no marco do questionamento de sua eacutepoca
buscando atraveacutes da vivecircncia da consciecircncia trazer agrave vista a realidade e a validade das
ciecircncias histoacutericas pois busca a partir da vida psiacutequica do sujeito histoacuterico o fundamento
para a garantia da objetividade dos elementos histoacutericos
Ao apresentar o imperativo das ciecircncias naturais e sua apropriaccedilatildeo da noccedilatildeo de
fenocircmeno no final do seacuteculo XIX em Ontologia (Hermenecircutica da facticidade) (GA63)
Heidegger apontou que na tentativa de superaccedilatildeo da metodologia cientiacutefica natural
apesar de ter negado sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito Dilthey se movimentou a partir
dessa orientaccedilatildeo pois seu projeto consistiu em lanccedilar as bases teoacutericas em uacuteltima anaacutelise
com pretensatildeo cientiacutefica para a abordagem dos fenocircmenos histoacutericos
ldquoO trabalho da filosofia concentra-se cada vez mais na teoria da ciecircncia na loacutegica
em seu sentido mais amplo e justamente com a loacutegica na psicologia Ambas
tomam a orientaccedilatildeo da ciecircncia natural e em particular da teoria do
conhecimento que vendo-se realizada na ciecircncia natural o conhecimento
verdadeiro busca as condiccedilotildees de tal conhecimento na consciecircncia Pretende-se
fazer o mesmo com a ciecircncia do espiacuterito dando supostamente um passo adiante
na direccedilatildeo que Kant havia delineado Aqui se considera que a tarefa principal
consiste na demarcaccedilatildeo serviram aqui de criteacuterio a ciecircncia natural embora per
negationem [] Ateacute mesmo Dilthey o qual estaacute propriamente arraigado na
histoacuteria e na teologia caracterizava a ciecircncia do espiacuterito como lsquocriacutetica da razatildeo
histoacutericarsquo apoiando-se naturalmente na problemaacutetica kantianardquo (HEIDEGGER
(GA63) 2012 p76)
Como dissemos Dilthey busca uma epistemologia das ciecircncias humanas a partir
da fundamentaccedilatildeo psicoloacutegica de seus elementos E a vivecircncia particular da consciecircncia
59 ldquoLo decisivo em el planteamiento de Dilthey no es la teoriacutea de la ciencia de la historia sino la tendencia
a poner la realidad de lo histoacuterico a la vista para a partir de ello aclarar de queacute modo y manera es posible
la interpretaciacuteonrdquo Opcit p34
73
como vida conexa e estruturante eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu
projeto Mesmo que Dilthey natildeo recorra agrave noccedilatildeo kantiana de sujeito transcendental ainda
estaacute subordinado agrave necessidade de fundamentaccedilatildeo uacuteltima ndash obrigatoriedade do
pensamento cientiacutefico criacutetico - por isso parte dos dados da psicologia descritiva
acreditando que eles poderatildeo fornecer um conhecimento vaacutelido e basilar para as ciecircncias
humanas Dito de outro modo ainda que Dilthey tenha se negado a aplicar a metodologia
das ciecircncias naturais agraves ciecircncias humanas natildeo escapou ao ideal cientiacutefico de sua eacutepoca e
sucumbiu ao enrijecimento tradicional da estrutura do conhecimento como fundamento
Contudo Dilthey deu uma grande contribuiccedilatildeo agrave filosofia de sua eacutepoca ao pocircr a
realidade histoacuterica agrave vista e ao propocirc-la como ponto de partida para a anaacutelise que visa
esclarecer de que modo eacute possiacutevel a interpretaccedilatildeo Afastado da estrutura do conhecimento
como fundamento Heidegger indica a anaacutelise hermenecircutica como a forma de apreensatildeo
da abertura originaacuteria de sentido na qual se encontra o ser-aiacute enquanto ser-no-mundo e
como a preacute-compreensatildeo de seu ser e de todo e qualquer ente Com poucas palavras a
hermenecircutica fenomenoloacutegica (ou intuiccedilatildeo fenomenoloacutegica no interior da situaccedilatildeo
hermenecircutica) constitui a condiccedilatildeo de possibilidade de toda investigaccedilatildeo ontoloacutegica
Aqui o termo ldquosentidordquo natildeo significa definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo mas a manifestaccedilatildeo do
ente em seu ser ou seja no modo como aquilo pode vir ao encontro e se manter como
ente e em uacuteltima instacircncia manter-se em seu significado Assim a apreensatildeo filosoacutefica
dessa abertura de sentido primaacuteria deve ser alcanccedilada na apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo de
compreensatildeo dos entes no modo como os entes vecircm ao encontro sem qualquer teoria
pela formaccedilatildeo da posiccedilatildeo preacutevia Eacute por isso que ldquoo decisivo para a configuraccedilatildeo de uma
posiccedilatildeo preacutevia eacute ver o ser-aiacute em sua cotidianidade A cotidianidade caracteriza a
temporalidade do ser-aiacute (concepccedilatildeo preacutevia) Eacute inerente agrave cotidianidade certa medianidade
do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER (GA63) 2012 p90)
Indicamos alguns termos que ainda natildeo foram devidamente esclarecidos como
ser-aiacute ser-no-mundo temporalidade Trataremos mais detidamente desses termos baacutesicos
para a compreensatildeo da filosofia de Heidegger no proacuteximo capiacutetulo a partir da obra
principal de nossa dissertaccedilatildeo No momento faremos apenas esclarecimentos breves para
que possamos prosseguir a nossa apresentaccedilatildeo
74
Na tentativa de desvencilhar-se da gramaacutetica loacutegica tradicional e de seus modos
categoriais de definiccedilatildeo (gecircnero e diferenccedila especiacutefica) e a fim de acessar a mostraccedilatildeo
originaacuteria do fenocircmeno Heidegger usa a expressatildeo ser-aiacute (Dasein) para caracterizar
aquele ente que noacutes mesmos somos e indicar sua negatividade categorial pois o ser-aiacute soacute
eacute a partir do seu aiacute de sua existecircncia (mundo faacutetico no qual eacute lanccedilado) sem qualquer
categoria preacutevia que o defina Ponderaccedilatildeo apresentada pelo autor
ldquoAo chamar de homem o ser-aiacute que iraacute investigar coloca-se jaacute de antematildeo dentro
de uma determinada concepccedilatildeo categorial visto que o exame eacute levado a cabo
seguindo a direccedilatildeo da definiccedilatildeo tradicional de lsquoanimal racionalersquo () Tendo tal
definiccedilatildeo como direccedilatildeo define-se a descriccedilatildeo numa perspectiva determinada
sem que com ela se recuperem ativamente os motivos originaacuterios de tal maneira
de ver as coisasrdquo (HEIDEGGER(GA63) 2012 p34)
Mas entatildeo o que significa dizer que o ser-aiacute se encontra enquanto ser-no-mundo
Ao indicar o ser-aiacute Heidegger jaacute aponta a sua constituiccedilatildeo fundamental como ser-no-
mundo Mundo natildeo eacute um ente natildeo eacute o conjunto de entes nem eacute qualquer espacialidade
geomeacutetrica Ser-no-mundo eacute o encontro originaacuterio com a proacutepria facticidade (Faktizitaumlt)
e todas as possibilidades lanccediladas nesse encontro primordial ou como jaacute dissemos a
abertura de sentido na qual se encontra o ser-aiacute primariamente em seu mundo circundante
ldquoSer-no-mundo natildeo quer dizer aparecer entre outras coisas significa poreacutem
ocupar-se no circundante do mundo que vem ao encontro demorar-se nele O
modo proacuteprio de ser mesmo num mundo eacute o cuidado (sorge) () A vida se deixa
atingir ou fala consigo mesma mundanamente no e pelo cuidadordquo (HEIDEGGER
(GA63)2012 p107)
Se Dilthey compreende a categoria do significado como mediadora entre a
vivecircncia da consciecircncia e a realidade histoacuterica para Heidegger a significacircncia eacute a
articulaccedilatildeo do proacuteprio mundo que natildeo vem ao encontro a partir da consciecircncia mas da
ocupaccedilatildeo jaacute orientada pela facticidade (Faktizitaumlt) ldquoA significacircncia eacute um como do ser e
nele centra-se precisamente o categorial do mundo do ser-aiacuterdquo (HEIDEGGER(GA63)
2012 p91) E assim a via de acesso propriamente fenomenoloacutegica ao campo situacional
sem qualquer pressuposiccedilatildeo teoacuterica se daacute a partir da ocupaccedilatildeo do ser-aiacute que estaacute no mundo
propriamente como cuidado Cuidado natildeo quer dizer cuidado de si mas a disposiccedilatildeo agraves
coisas e a si em seu ser estar voltado para o ser dos entes E no caso da imediatidade da
vida a intencionalidade praacutetica que orienta a ocupaccedilatildeo
75
Para Heidegger trazer a realidade histoacuterica agrave vista eacute apropriar-se da situaccedilatildeo
hermenecircutica ou seja conquistar o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se
encontra o fenocircmeno da vida considerando que ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto
apropriaccedilatildeo compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo
(HEIDEGGER(GA62) 2002 p30) Em outras palavras o passado se manifesta sob a
interpretaccedilatildeo e abertura compreensiva possiacutevel no presente E portanto a partir da
abertura que dispotildee o presente lanccedilando suas possibilidades a tarefa da filosofia eacute
apropriar-se dessa compreensatildeo tendo em vista que ela atravessa o ser-aiacute em seu caraacuteter
ontoloacutegico que pode abrir-se a compreensatildeo de ser dos entes Eacute a partir daiacute que
ldquoVem agrave tona o papel paradigmaacutetico da filosofia platocircnico-aristoteacutelica para
Heidegger Segundo o filoacutesofo o que tem lugar em Platatildeo e Aristoacuteteles natildeo eacute algo
que diz respeito apenas ao interesse acadecircmico particular de um grupo de eruditos
especializados em suas obras Natildeo eacute filologia que nos fornece uma primeira via
de acesso aos elementos centrais de suas diversas compreensotildees nem tampouco
a filosofia acadecircmica que nos propicia pela primeira vez uma visatildeo clara do perfil
propriamente dito de seus escritos geniais Ao contraacuterio Platatildeo e Aristoacuteteles satildeo
decisivos para a constituiccedilatildeo das estruturas preacutevias de nossa interpretaccedilatildeo dos
entes porque temos neles a origem de boa parte dos horizontes investigativos
posteriormente sedimentadosrdquo (CASANOVA 2009 p59)
Heidegger entatildeo busca em Aristoacuteteles o ponto de partida natildeo soacute para as
interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas enquanto repeticcedilatildeo da pergunta ontoloacutegica fundamental
como tambeacutem para a interpretaccedilatildeo do uacutenico ente capaz de compreender o sentido do ser
dos entes o ser-aiacute Natildeo sem questionar a leitura tradicional da obra de Aristoacuteteles
Heidegger retomou a importante ldquodoutrinardquo do estagirita a qual estabelecia uma relaccedilatildeo
entre a sabedoria praacutetica (φρόνησις) a sabedoria (σοφία) e a vida do homem e seu modo
de existecircncia (βιος) De modo mais claro
ldquoAteacute Heidegger era comum tratar a obra de Aristoacuteteles a partir de um primado
da filosofa teoacuterica em relaccedilatildeo agrave filosofia praacutetica um primado que havia sido
preparado pelo modo tradicional de leitura do estagirita Partindo da concepccedilatildeo
aristoteacutelica da vida teoacuterica (βίος θεωρητικός) como a vida mais plena possiacutevel e
da filosofia como uma ciecircncia que natildeo se ateacutem aos entes em geral nem tampouco
a um ente especiacutefico mas que tem por uacutenico objeto o ser enquanto ser a
interpretaccedilatildeo tradicional do corpus aristoteacutelico cindiu radicalmente o acircmbito
praacutetico do acircmbito teoacuterico definindo o segundo como o uacutenico acircmbito da verdade
propriamente dita Com isso o acircmbito praacutetico foi relegado a um segundo plano
ao plano daquilo que dizia respeito apenas agrave melhor forma mundana de vidardquo
(CASANOVA 2009 p64)
76
O que estaacute em questatildeo para Heidegger natildeo eacute apenas identificar o fato de que nos
encontramos numa determinada tradiccedilatildeo definida por um extrato do conhecimento
historiograacutefico mas compreender radicalmente como nos situamos nessa tradiccedilatildeo No
texto de 1922 Interpretaccedilotildees fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da
situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) comumente chamado de Natorp-Bericht ou Relatoacuterio-
Natorp Heidegger tenta explicitar a situaccedilatildeo hermenecircutica atraveacutes do como (wie) de todo
aparecer dos entes e das possibilidades do ser-aiacute na vida faacutetica Sendo o ser-aiacute aquele que
compreende a si mesmo e os outros entes sem qualquer preacutevia teorizaccedilatildeo em seu
acontecimento compreensivo Para tanto eacute necessaacuterio esclarecer as condiccedilotildees de
compreensatildeo e interpretaccedilatildeo ou conquistar o horizonte de sentido jaacute aberto no qual jaacute se
encontra o fenocircmeno da vida As condiccedilotildees satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a
direccedilatildeo da visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a
lsquovisibilidadersquo (Sichtweite)60 Satildeo essas condiccedilotildees que compotildeem a compreensatildeo e a
interpretaccedilatildeo ontoloacutegicas-temporais do ser-aiacute em relaccedilatildeo agraves suas possibilidades de ser e
em relaccedilatildeo aos entes que lhe vem ao encontro Essas condiccedilotildees natildeo satildeo lsquobarreirasrsquo para
o entendimento ao contraacuterio satildeo condiccedilotildees de abertura primaacuteria para qualquer
compreensatildeo ontoloacutegica Tentando esclarecer em (1) temos o acircmbito da realidade dada
em uma preacutevia abertura temporal de sentido em (2) a direccedilatildeo que jaacute determinou algo
ldquocomo-algordquo (Als-was) e ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu
lugar significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de
toda possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o
como do aparecer dos entes em seu ser e as possibilidades de comportamentos do ser-aiacute
eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto (1) e jaacute
interpretado (2) e por isso pode mover-se com pretensotildees de objetividade e definiccedilatildeo dos
entes
Eacute a partir dessas consideraccedilotildees que Heidegger desconstroacutei as noccedilotildees de
Aristoacuteteles engessadas pela tradiccedilatildeo de noucircs phroacutenesis e sophiacutea natildeo mais como
conceitos definidos a partir da leitura tematicamente eacutetica do Estagirita mas a partir da
orientaccedilatildeo da biacuteos ou seja da vida do homem e seu modo de existecircncia faacutetica No interior
do Relatoacuterio-Natorp a partir da interpretaccedilatildeo do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco de
60 Cf HEIDEGGER(GA62)2002 p29
77
Aristoacuteteles Heidegger apresenta essas virtudes dianoeacuteticas como ldquodiferentes
modalidades que permitem levar a cabo uma autecircntica custoacutedia do ser na verdade61rdquo
(HEIDEGGER (GA62) 2002 p60) O que quer dizer que se trata dos modos pelos quais
o ser-aiacute protege o ser dos entes enquanto desvelado (ἀλήθεια)
Para Heidegger o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona
um lsquoaquirsquordquo62 (HEIDEGGER(GA62) 2002 p66) essa virtude proacutepria do homem ldquose
realiza como ενέργεια como atividade () ou seja o νους abre um horizonte que sempre
responde a um modo concreto de tratar com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma
execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma determinaccedilatildeo63rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002
p66) O noucircs compreendido tradicionalmente como intelecto racional eacute proacuteprio do
homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica (homem (animal [gecircnero] + racional [diferenccedila
especiacutefica]) mas porque o homem ou melhor o ser-aiacute eacute o ente que pode custodiar abrir-
se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um compreender que jaacute interpreta
os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto na vida faacutetica que acontece
fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da
solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato praacutetico com os entes Essa
orientaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel porque no noucircs ldquoo loacutegos o legein eacute o modo atraveacutes do qual se
realiza o noein e como tal eacute um como tal eacute um διανοείσθαι um inteligir que decompotildee
e que apreende64rdquo (HEIDEGGER(GA62) 2002 p65) Vimos (II) que o λόγος na
fenomenologia heideggeriana assume o caraacuteter de ἑρμηνεύειν de interpretaccedilatildeo e natildeo diz
respeito agrave definiccedilatildeo linguiacutestica de um ou outro ente mas previamente a qualquer
determinaccedilatildeo gramatical ou categorial refere-se ao que manteacutem o ente como existente
portanto desvelado e interpretado em seu lsquocomo-entersquo Assim a relaccedilatildeo fundamental da
phroacutenesis - que prescreve o como o para-que do ente (utensiacutelio) - ao ser-aiacute eacute o
61 ldquoLa interpretacioacuten de este tratado prescindiendo provisionalmiente de la problemaacutetica especiacuteficamente
eacutetica permite comprender que las laquovirtudes dianoeacuteticasraquo son diferentes modalidades que permiten llevar a
cabo uma auteacutentica custodia del ser en la verdaderdquo Opcitp60 62 ldquoEl νους ofrece en general una perspectiva da algoproporciona un lsquoaquiacutersquordquoOp cit p66
63 ldquoEl νοῦς que es ίδιος άνθρωπος se realiza concretamente como ενέργεια como actividad como su
propia actividad es decir el νοῦς abre un horizonte que siempre responde a un modo concreto de tratar
con el mundo a traveacutes de una opercioacuten de una ejecucioacuten de una manipulacioacuten de una determinacioacutenrdquo
Opcitp66
64 ldquoel λόγος el λέγειν es el modo em el que se realiza el νοεῖν y como tal es un διανοείσθαι un inteligir
que decompone lo que apreenderdquo Opcit p65
78
desvelamento do ente no instante do proacuteprio trato da proacutepria atividade praacutetica sem
qualquer mediaccedilatildeo teoacuterica com o ente
Mas as atividades praacuteticas satildeo realizadas natildeo com fim em si mesmas mas com
vistas agrave execuccedilatildeo de um fim mobilizado pelo proacuteprio ser-aiacute em sua vida cotidiana e faacutetica
Assim o horizonte de sentido jaacute sempre dado no qual se encontra o fenocircmeno da vida
parte do instante mesmo que potildee ao alcance da vista circunspecta o modo de
comportamento apropriado com o ente com vistas agrave execuccedilatildeo de um fim Desse modo
ldquoO ser da vida eacute considerado como uma atividade que encontra em si mesmo seu
fim o ser da vida se encontra nessa atividade quando a vida humana chegou a
seu fim com respeito a sua possibilidade de movimento mais proacutepria a
possibilidade de inteligir puro Essa atividade eacute proacutepria da εξις [do modo de ser]
que se conhece como σοφία Conforme seu caraacutecter intencional o compreender
puro natildeo custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo
forma parte do horizonte intencional da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso
pode ser de outra maneira O ser da vida humana deve ser considerado
unicamente desde a perspectiva da temporalizaccedilatildeo pura da σοφία como tal e em
razatildeo da autecircntica atividade a sua disposiccedilatildeordquo65 (HEIDEGGER (GA62) 2002
p71)
Assim o sentido do ser soacute pode ser abordado atraveacutes do ser-aiacute pois a pergunta
pelo ser do ser-aiacute possibilita a pergunta pelo sentido do ser em geral natildeo por um
fundamento teoacuterico mas como uma condiccedilatildeo ontoloacutegica O ser-aiacute eacute o ente que pode abrir-
se ao desvelamento dos entes e o faz a partir da proacutepria vida faacutetica sem qualquer
teorizaccedilatildeo preacutevia o ser-aiacute mobiliza o ser dos entes em geral em funccedilatildeo da proacutepria vida
ou seja dos modos possiacuteveis de ser a partir de sua temporalidade
Desde as primeiras investigaccedilotildees de Heidegger na deacutecada de 1920 daacute-se uma
profunda transformaccedilatildeo hermenecircutica da fenomenologia a qual consiste na tentativa de
mostrar como eacute possiacutevel articular filosoficamente uma ciecircncia originaacuteria da vida ou em
mostrar como se daacute a realidade antes de qualquer consideraccedilatildeo cientiacutefica ajuizante isso
65 ldquoEl ser de la vida es considerado como uma actividad que encuentra em siacute mesma su fin el ser da la vida
se encuentra em esta actividad cuando la vida humana haacute llegado a su fin com respecto a su posibilidad de
movimento maacutes propia la posibilidad del inteligir puro Esta actividad es propia de la εξις [del modo de
ser] que se conoce como σοφία Conforme a su caraacutecter intencional el comprender puro no custodia la vida
humana en el modo de su ser faacutectico la vida humana no forma parte del horizonte intencional de la σοφία
ya que es un ente que en cada caso puede ser de otra manera El ser de la vida humana debe considerarse
unicamente desde la perspectiva de la temporalizacioacuten pura de la σοφία como tal y en razoacuten de la auteacutentica
actividad a su disposicioacutenrdquo Opcitp71
79
quer dizer antes de qualquer concepccedilatildeo teoacuterica de mundo Nesse sentido vimos que a
intencionalidade fenomenoloacutegica eacute intuiccedilatildeo compreensiva ou intuiccedilatildeo hermenecircutica em
meio ao mundo circundante que vem ao encontro E as coisas que vecircm ao encontro natildeo
respondem primariamente ao tradicional esquema sujeito-objeto mas resultam
compreensiacuteveis a partir da pertenccedila preacutevia a um mundo jaacute articulado ou a partir de um
estado de coisas preacute-compreendido na vida faacutetica que articula toda e qualquer
compreensatildeo do homem (das coisas e de si mesmo) desde sua existecircncia imediata no
mundo Dito de outro modo revela-se como compreensatildeo ontoloacutegica
Ao decidirmos apresentar as preleccedilotildees de Heidegger que antecederam a obra central
para o nosso trabalho foi nosso intuito elucidar os princiacutepios que provavelmente
motivaram a problemaacutetica exposta em Ser e Tempo A partir de agora nossa tarefa seraacute a
de tentar compreender a partir da obra de 1927 como o fenocircmeno da linguagem aparece
no interior dessa compreensatildeo e em que medida a linguagem eacute possiacutevel por uma
estrutura preacutevia de mostraccedilatildeo dos entes Eacute a tentativa de nosso proacuteximo capiacutetulo
80
Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da
linguagem (Sprache) em Ser e Tempo
ldquoa maacutequina do mundo se entreabriu para quem de a romper jaacute se esquivava e soacute de o ter pensado se carpiardquo (A maacutequina do mundo Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
Nos capiacutetulos anteriores descrevemos como do desenvolvimento das ciecircncias
positivas particulares no final do seacuteculo XIX emergiu a discussatildeo acerca do sentido e da
possibilidade do conhecimento No interior desse contexto destacamos o pensamento de
Husserl de Dilthey e as linhas gerais de alguns neokantianos de Baden A partir daiacute
descrevemos como a criacutetica heideggeriana agrave filosofia dos valores dos neokantianos
conduziu-o ao que ele proacuteprio chamou de lsquoes gibtrsquo originaacuterio como o campo
hermenecircutico de toda orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica Para compreender a questatildeo pelo
sentido do ser em geral ie a proacutepria ontologia para Heidegger era necessaacuterio esclarecer
que a fenomenologia natildeo estava fundada na epistemologia (a partir da consciecircncia) e que
a hermenecircutica natildeo era apenas um instrumento metodoloacutegico capaz de nos dar acesso agrave
histoacuteria em sua objetividade mas muito mais do que isso ela era intuiccedilatildeo compreensiva
e imediata do mundo Assim a partir da criacutetica imanente que Heidegger fez ao meacutetodo
fenomenoloacutegico husserliano foi possiacutevel compreender como ele reconduziu a filosofia agrave
pergunta fundamental inaugurada no iniacutecio mesmo da filosofia no pensamento antigo a
pergunta pelo ser Aleacutem disso como o pensador desenvolveu a hermenecircutica voltada agrave
facticidade da vida natildeo em funccedilatildeo das vivecircncias da consciecircncia dos sujeitos histoacutericos
mas das vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico Todo esse percurso foi necessaacuterio para que
pudeacutessemos conquistar um solo interpretativo capaz de sustentar a anaacutelise do fenocircmeno
da linguagem tal como aparece em Ser e Tempo E ainda alcanccedilar a pergunta pelo
81
sentido de ser Pois ela a pergunta estaacute relacionada a primeira e fundamental estrutura
de sentido que precisamos explicitar
Contra a tradicional abordagem do problema da linguagem que mais comumente
focalizou as obras de Heidegger apoacutes a viragem (die Kehre)66 ie os escritos a partir
da deacutecada de 1930 neste capiacutetulo defenderemos que o fenocircmeno da linguagem (Sprache)
jaacute desempenha um papel decisivo em Ser e Tempo e que ele soacute se torna possiacutevel a partir
de uma das estruturas preacutevias existenciaacuterias examinadas na citada obra e que eacute a
estrutura de mostraccedilatildeo dos entes Assim embora admitindo que a questatildeo da linguagem
ainda natildeo estivesse posta de modo expliacutecito ou temaacutetico nosso trabalho pretende chamar
atenccedilatildeo para a inegaacutevel funccedilatildeo que a linguagem cumpre jaacute na obra de 1927
No sect 18 de Ser e Tempo Heidegger afirma que a significatividade funda a
possibilidade de significaccedilotildees e estas a possibilidade da linguagem
Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez
familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o
Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como
lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutengua
(HEIDEGGER 2012p261)
66 Apoacutes a Kehre nos anos 1930 a questatildeo do sentido de ser eacute reconduzida agrave histoacuteria e verdade do seer Este
movimento estaacute diretamente relacionado com o limite mesmo da obra de 1927 pois o processo de
singularizaccedilatildeo do ser-aiacute conforme elaborado em Ser e Tempo parece natildeo ser suficiente para a
movimentaccedilatildeo do horizonte histoacuterico e de sua semacircntica fechada Essa insuficiecircncia eacute levada agraves uacuteltimas
consequecircncias a partir dos anos 1930 e radicalizada com uma viragem em direccedilatildeo ao campo dos
acontecimentos histoacutericos Em Ser e tempo a negatividade proacutepria ao ser-aiacute apontava para a possibilidade
de mobilidade histoacuterica a partir da assunccedilatildeo como singularizaccedilatildeo de sua proacutepria negatividade e de sua
responsabilidade mais proacutepria como ser-aiacute de decisatildeo quanto aos caminhos de sua proacutepria existecircncia Jaacute
apoacutes a viragem a negatividade se mostraraacute natildeo somente a partir do ser-aiacute mas tambeacutem no assentamento
de toda abertura histoacuterica compreensiva uma negatividade que se mostraraacute na ausecircncia mesma de
fundamentos absolutos Caberia ademais considerar um aprofundamento das estruturas fenomenoloacutegicas
mais fundamentais no decorrer do pensamento de Heidegger Seraacute que em Ser e Tempo podemos defender
que a abertura que sustenta o sentido de ser do ser-aiacute como cuidado e temporalidade (Zeitlichkeit) estaria
afinal assentada no tempo histoacuterico Questatildeo afinal expressa na uacuteltima linha de Ser e tempo ldquoO tempo
(Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Seria entatildeo possiacutevel
pensar esse aprofundamento do gesto fenomenoloacutegico como a busca do limite de qualquer
intencionalidade Dito de outro modo apoacutes a Kehre o ser enquanto Ereignis (acontecimento apropriador)
poderia ser compreendido como o acircmbito sempre fugidio de toda e qualquer intencionalidade mas ao
mesmo tempo acircmbito no qual unicamente toda e qualquer intencionalidade pode acontecer Revelar-se-ia
o sentido fenomenoloacutegico do que Heidegger chama de clareira (die Lichtung)
82
Na seacutetima ediccedilatildeo de Ser e Tempo publicada em 1953 numa nota muito
esclarecedora acrescentada justamente a esta passagem acima citada Heidegger
evidenciou a diferenccedila entre a sua concepccedilatildeo da linguagem nos anos 20 e aquela apoacutes a
viragem Essa nota apareceu nas obras completas publicadas a partir de 1977 e tambeacutem
na traduccedilatildeo brasileira aqui utilizada Nessa nota muito importante para o objetivo desta
pesquisa o autor corrigiu sua proacutepria afirmaccedilatildeo (1927) de que a linguagem era derivada
Em 1953 ele declarou categoricamente que natildeo era verdadeiro que ldquoDasein-que-entende
[pudessecc] abrir como interpretante algo assim como lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais
[fundariamcc] novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo E que ldquoa liacutengua natildeo eacute
um pavimento sobreposto a outro senatildeo que eacute o desdobrar-se originaacuterio da verdade como
[aiacute] (HEIDEGGER 2012p261 nota c) Essa correccedilatildeo nos daacute uma prova de que a
concepccedilatildeo de linguagem em Ser e Tempo possuiacutea uma estratificaccedilatildeo que natildeo mais eacute aceita
apoacutes os anos 30 Poreacutem como aponta Stein o fenocircmeno da linguagem jaacute desempenhava
um importante e inegaacutevel papel no interior do tratado de 1927
Heidegger liga o questionamento de sua obra prima ao problema da linguagem
Ela assume papel condutor na elaboraccedilatildeo de seu meacutetodo e na realizaccedilatildeo analiacutetica
existencial No meacutetodo fenomenoloacutegico como interpretaccedilatildeo ou hermenecircutica
universal como apossamento de tudo o que foi transmitido pela tradiccedilatildeo atraveacutes
da linguagem como destruiccedilatildeo e revolvimento do chatildeo linguiacutestico da metafiacutesica
ocidental se descobre um imenso projeto de analiacutetica da linguagem Mas como
o meacutetodo fenomenoloacutegico visa o redimensionamento da questatildeo do ser natildeo numa
abstrata teoria do ser nem numa pesquisa historiograacutefica de questotildees ontoloacutegicas
mas numa imediata proximidade com a praacutexis humana como existecircncia e
facticidade a linguagem - o sentido a significaccedilatildeo - natildeo eacute analisada nun sistema
fechado de referecircncias mas ao niacutevel da historicidade Se no meacutetodo dialeacutetico
podemos encontrar uma certa miacutestica teleo-loacutegica (teleacuteo-troacutepica) a palavra no
meacutetodo do positivismo uma certa tecno-loacutegica da linguagem encontramos no
meacutetodo fenomenoloacutegico de Heidegger uma certa onto-loacutegica do dizer isto eacute uma
compreensatildeo da dimensatildeo preacute-ontoloacutegica da linguagem ligada a explicitaccedilatildeo do
mundo como horizonte de transcendecircncia (STEIN1971 p14)
Ser e Tempo possui certo caraacuteter preparatoacuterio pois eacute a tentativa de reformulaccedilatildeo
da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido depende justamente daquela
reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo O objetivo do tratado
eacute nos proacuteprios termos de Ser e Tempo a elaboraccedilatildeo concreta da pergunta pelo sentido
de ldquoserrdquo (Sinn von Sein) (HEIDEGGER2012 p31) No interior da elaboraccedilatildeo da proacutepria
83
pergunta a abordagem fenomenoloacutegica-hermenecircutica como meacutetodo de acesso ao sentido
de ser de todo ente acaba por demonstrar que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as
coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um campo de signos referenciais fechados que
doam significado agraves coisas mas uma manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez
se faz presente na facticidade da existecircncia concreta Nossa tentativa no presente capiacutetulo
eacute compreender como a partir da reelaboraccedilatildeo da pergunta pelo sentido de ser e de seu
desenvolvimento nessa obra a linguagem se mostra enquanto manifestaccedilatildeo uacuteltima de um
horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo previamente
articulada dos entes e das possibilidades do ser-aiacute E dessa maneira indicar como as
palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da
experiecircncia hermenecircutica Mas antes de iniciarmos nosso capiacutetulo eacute necessaacuterio fazer
algumas consideraccedilotildees que se tornaram agora possiacuteveis apoacutes o desenvolvimento dos
capiacutetulos anteriores e as quais balizam nossa investigaccedilatildeo central
Certamente a fenomenologia husserliana tambeacutem natildeo atribui agrave linguagem um
aspecto referencial de acesso agraves coisas ao contraacuterio a assim chamada visatildeo das essecircncias
eacute a maneira de depurar o conteuacutedo linguiacutestico do conteuacutedo significativo preacute-linguiacutestico
Nas palavras de Gadamer (2010 p8)
A eleiccedilatildeo do modelo da visatildeo como modo do procedimento fenomenoloacutegico
indica que coisa mesma eacute preacute-conceptual e preacute-linguiacutestica A linguagem permite
articular o sentido da coisa mesma que contudo eacute independente da linguagem Eacute
aliaacutes apenas neste quadro que o exerciacutecio da eacutepoche se torna compreensiacutevel A
epocheacute eacute o que torna possiacutevel a reduccedilatildeo ao estado absolutamente desprovido de
preconceitos Mas o que eacute que torna a epocheacute possiacutevel A epocheacute eacute considerada
por Husserl como uma possibilidade de princiacutepio e como uma possibilidade
universal Mas esta possibilidade pressupotildee que se possa passar de uma plano
predicativo ndasho da linguagem ndash para um plano ante-predicativo - o da pura visatildeo
[] Por outro lado aquilo que se daacute de uma forma originaacuteria e na sua pureza daacute-
se como presenccedila absoluta numa figuraccedilatildeo atemporal Os fenoacutemenos no sentido
husserliano caracterizam-se por serem dados agrave consciecircncia de uma forma
absolutamente evidente e uacuteltima o fenoacutemeno eacute absoluta presenccedila a sua doaccedilatildeo
eacute plena
Husserl busca avanccedilar ateacute um plano imediato da experiecircncia que anteceda agrave
interpretaccedilatildeo como experiecircncia preacute-linguiacutestica a partir de intenccedilotildees linguiacutesticas Assim
busca na intencionalidade do fenocircmeno um estado desprovido de preconceito (epocheacute)
Heidegger alia-se a Husserl contra a tese de que o sentido ou o significado sejam
84
linguiacutesticos Contudo para o autor de Ser e Tempo toda experiecircncia jaacute inclui uma
interpretaccedilatildeo certamente natildeo linguiacutestica mas hermenecircutica e fundamentalmente praacutetica
Dessa forma intencionar um fenocircmeno a partir de um horizonte histoacuterico hermenecircutico eacute
considerar e apropriar-se do significado oferecido pelas condiccedilotildees preacutevias e em uacuteltima
anaacutelise por uma semacircntica sedimentada Dito de outro modo para Husserl a expressatildeo
linguiacutestica eacute a maneira de o pensamento intencionar significaccedilatildeo e a orientaccedilatildeo da
pesquisa pela condiccedilatildeo e possibilidade do conhecimento suspende todo posicionamento
ontoloacutegico da coisa mesma em prol do acesso epistemoloacutegico objetivo aos fenocircmenos Jaacute
na fenomenologia como ontologia Heidegger traz agrave tona o aspecto ontoloacutegico do
conteuacutedo significativo e ao fazecirc-lo revela a historicidade de todo e qualquer significado
que pode vir agrave palavra bem como o campo de sentido que eacute tambeacutem histoacuterico e no qual
algo pode manter-se em seu significado Eacute nessa perspectiva que nos colocamos em busca
da estrutura ontoloacutegica da linguagem
Portanto eacute importante ter em vista que para Heidegger
(1) a experiecircncia hermenecircutica traz a significatividade (Bedeutsamkeit) que potildee a
descoberto todo e qualquer ente E na medida em que essa experiecircncia orienta o ponto
de partida da intencionalidade67 ela desvela o ente em seu ser o qual (ente) aparece
como algo No entanto essa significatividade se manteacutem em virtude de uma dupla
67 O termo ldquoDaseinrdquo eacute utilizado por Heidegger para afastar qualquer compreensatildeo de homem como
ldquosujeitordquo ldquoconsciecircnciardquo ldquoanimal racionalrdquo etc Desse modo poder-se-ia pensar que uma vez afastadas
essas interpretaccedilotildees tambeacutem o termo lsquointencionalidadersquo deveria ser desconsiderado pois a fenomenologia
husserliana o utiliza como ato de consciecircncia Natildeo eacute o caso Heidegger ainda manteacutem a orientaccedilatildeo
fenomenoloacutegica poreacutem a desloca da consciecircncia para a abertura compreensiva sendo ser-aiacutemundo a
relaccedilatildeo intencional primaacuteria e ainda essa compreensatildeo eacute fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo
circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser Ou sejavisatildeo natildeo teoacuterica
sem a primazia da consciecircncia A intencionalidade eacute pensada portanto natildeo como ato de consciecircncia mas
abertura compreensiva mobilizada por toda e qualquer performatizaccedilatildeo existencial Em Ser e Tempo o
termo lsquointencionalidadersquo e seus derivados aparecem apenas 4 vezes em 2 momentos 1) No sect10 ldquoAgrave essecircncia
da pessoa pertence o existir somente na execuccedilatildeo dos atos intencionais [intentionalen] e assim ela por
essecircncia natildeo eacute objeto () Em todo caso a pessoa eacute dada enquanto executora de atos intencionais
[intentionaler]ligados pela unidade de um sentidordquo (2012 p155) 2) No sect69 nota 10 ldquoA anaacutelise
intencional [intentionalen] da percepccedilatildeo e da intuiccedilatildeo em geral deveria sugerir essa caracterizaccedilatildeo
lsquotemporalrsquo do fenocircmeno Que e como a intencionalidade [Intentionalitaumlt] da lsquoconsciecircnciarsquo se funda na
temporalidade estaacutetica do Dasein ()rdquo Essa uacuteltima passagem eacute decisiva A intencionalidade eacute portanto
mantida por Heidegger mas deve ser compreendida em funccedilatildeo do sentido de ser do ser-aiacute a temporalidade
que abre compreensivamente o ser dos entes em geral Cf tambeacutem nota 70
85
abertura de sentido (Sinn) a abertura de mundo em funccedilatildeo do ser-aiacute e o sentido de ser
do ser-aiacute em funccedilatildeo da temporalidade de sua existecircncia
(2) a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados
(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Entatildeo o significado pode
vir a ganhar sua expressatildeo e forma predicativas a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo
(Aussage) em sua ligaccedilatildeo derivativa da interpretaccedilatildeo (Auslegung) Apresentando dessa
maneira o caraacuteter originaacuterio da verdade enquanto desvelamento (Aleacutetheia) e natildeo como
aderente ao juiacutezo proposicional como compreendeu a tradiccedilatildeo Eacute assim que se daacute
primariamente o acesso ao fenocircmeno da linguagem em seu sentido ontoloacutegico
Podemos antecipar aqui o que seraacute desenvolvido nesse capiacutetulo a linguagem estaacute
assentada em duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado68 que
revelam a diferenccedila entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm
articulados pela imbricaccedilatildeo radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno
Finalmente pedindo a paciecircncia do nosso leitor antes de comeccedilarmos o capiacutetulo
III vamos repetir um pouco o que jaacute foi adquirido nos dois primeiros capiacutetulos da
Dissertaccedilatildeo quando tentamos mostrar como a abordagem hermenecircutica de Heidegger no
interior da fenomenologia (a partir de sua criacutetica imanente e radicalizaccedilatildeo do gesto
fenomenoloacutegico) foi decisiva para a virada da questatildeo compreendida como possibilidade
de acesso pelo sentido do conhecimento ao sentido do ser Agora a partir de Ser e Tempo
eacute possiacutevel considerar que houve um aprofundamento desse gesto fenomenoloacutegico Por
outra teria ocorrido um aprofundamento ou uma radicalizaccedilatildeo das estruturas
fenomenoloacutegicas De modo mais claro eacute possiacutevel compreender o percurso heideggeriano
como uma tentativa de lanccedilar a intencionalidade enquanto essecircncia mesma da
68 Diferentemente de VIGO (2012 p71) que considera 3 estruturas compreensatildeo (Verstehen) -
interpretaccedilatildeo (Auslegung) e enunciado (Aussage) noacutes consideraremos apenas duas tendo em vista que
julgamos natildeo ser a compreensatildeo uma estrutura autocircnoma e que portanto ela natildeo deve ser separada da
interpretaccedilatildeo Seguimos a letra do sect32 de Ser e Tempo ldquoNa interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo
diverso mas torna-se ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p421) Pensamos que conceder autonomia agrave
compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido primaacuterio ao natildeo remetecirc-la ao Dasein quem
compreendendo jaacute interpreta e custodia o sentido de ser dos entes jaacute estariacuteamos no campo dos
acontecimentos histoacutericos Portanto estariacuteamos ultrapassando os limites de Ser e Tempo ou mais
especificamente falando os limites da ldquoAnaliacutetica Existencialrdquo
86
fenomenologia num acircmbito fundamental que se abriria a toda e qualquer possibilidade
de intencionalidade Vejamos essas questotildees mais detidamente
Como jaacute indicado tanto em Heidegger como em Husserl existe um primado da
experiecircncia antepredicativa em detrimento da predicaccedilatildeo ou da experiecircncia
predicativamente articulada69 Jaacute na preleccedilatildeo de 1919 Heidegger apontava o lsquoes gibtrsquo
originaacuterio ou a concretude do mundo que se daacute como acircmbito fundamental no qual se abre
a possibilidade de intencionalidade Depois dela as preleccedilotildees dos anos 1920 passaram a
descrever a intencionalidade como uma noccedilatildeo praacutetica orientada pela ocupaccedilatildeo e com base
nisso descreveram a experiecircncia antepredicativa e histoacuterica do significado Mas foi
somente em Ser e Tempo que Heidegger elaborou uma ontologia fundamental a partir da
analiacutetica existenciaacuteria70 do ser-aiacute A ontologia fundamental eacute descrita como a necessidade
de pocircr em questatildeo o ente em que a compreensatildeo de ser enquanto questatildeo eacute possiacutevel ou
como expresso no Relatoacuterio Natorp o ente que pode custodiar abrir-se ao desvelamento
do ser dos entes Mas o que isso significa sob uma perspectiva fenomenoloacutegica
A descriccedilatildeo do ser-aiacute como existecircncia projetiva assentada em sua negatividade
proacutepria (negatividade entendida pelo fato de que o ser-aiacute soacute eacute a partir do seu aiacute de sua
69 Nesse sentido conferir tambeacutem VIGO 2012 p75 70 Na traduccedilatildeo de Ser e Tempo utilizada os termos Existenzial e Existenzielle satildeo traduzidos por
ldquoexistenciaacuteriordquo e ldquoexistencialrdquo respectivamente A diferenccedila foi estabelecida por Heidegger para marcar a
determinaccedilatildeo constitutiva da existecircncia (ou sua estrutura) cuja determinaccedilatildeo cabe agrave ontologia
(existenciaacuterio) da determinaccedilatildeo existencial (existencial) que trata de um assunto ocircntico do Dasein ou de
um conhecimento que conduz a si mesmo (HEIDEGGER 2012 sect4-9)
Apesar da consulta a outras traduccedilotildees (francesa de Emmanuel Martineau e espanhola de Jorge Rivera)
usaremos os termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho Em alguns momentos aleacutem da
traduccedilatildeo de Castilho que eacute bastante recente (2012) tambeacutem citaremos as palavras da traduccedilatildeo brasileira
anterior (com exceccedilatildeo da traduccedilatildeo de lsquoDaseinrsquo como lsquopresenccedilarsquo que natildeo seraacute utilizada nesse trabalho)
Acerca dos termos conforme a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo da Fausto Castilho haveraacute apenas duas exceccedilotildees a
primeira refere-se ao uso da palavra lsquoDaseinrsquo a qual Castilho Rivera e Martineau mantiveram no original
alematildeo obedecendo uma sugestatildeo do proacuteprio Heidegger Ser-aiacute eacute a traduccedilatildeo portuguesa do termo alematildeo
Dasein que no uso comum na liacutengua alematilde eacute usado como sinocircnimo para existecircncia mas que no texto
heideggeriano tem um significado peculiar tornando a traduccedilatildeo do termo problemaacutetica Em uma carta de
Heidegger a Jean Beaufret datada de 23 de Novembro de 1945 o autor daacute a seguinte informaccedilatildeo ldquolsquoDa-
sein eacute uma palavra-chave do meu pensar por isso ela eacute causa de graves erros de interpretaccedilatildeo natildeo significa
para mim exatamente eis-me mas se eacute que me posso exprimir num francecircs sem duacutevida impossiacutevel ser-
o-aiacute e o-laacute significa exatamente Aleacutetheia desvelamento-aberturardquo (Carta sobre o humanismo Martin
Heidegger - 2 ed rev Traduccedilatildeo de Rubens Eduardo Frias Satildeo Paulo Centauro ndash 2005 p 89) Algumas
vezes infieacuteis a Castilho e ao proacuteprio Heidegger utilizaremos tambeacutem a sua traduccedilatildeo ldquoser-aiacuterdquo para maior
fluidez do texto A segunda exceccedilatildeo refere-se agraves citaccedilotildees cuja opccedilatildeo por traduccedilotildees tradicionais resolvemos
natildeo alterar
87
existecircncia) sem qualquer categoria preacutevia que o defina potildee em tela que esse ente eacute
marcado pelo caraacuteter de poder-ser orientando-se segundo possibilidades existenciais que
natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas somente na morte como fim de todas as
possibilidades Isso se daacute porque o ser-aiacute eacute o limite fundamental no qual se abre a
possibilidade de intencionalidade ou o sentido do experimentado enquanto
experimentado71 ldquoSoacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a abertura do ser-no-
mundo lsquopode ser preenchidarsquo pelo ente que nele pode ser descobertordquo (HEIDEGGER
2012 p429) De outro modo se para Husserl a noccedilatildeo de intencionalidade faz com que a
cada vez que o pensamento se volte agrave consciecircncia ela descortina sua direccedilatildeo em relaccedilatildeo
ao fenocircmeno Para Heidegger poreacutem uma vez superada a primazia da consciecircncia a
cada vez que o pensamento se volta ao Dasein ele descortina sua direccedilatildeo ao mundo
fenocircmeno originaacuterio em que os entes podem vir ao encontro em seu ser bem como as
possibilidades de ser do proacuteprio Dasein
A ontologia fundamental aparece em sua necessidade porque o ser-aiacute mesmo natildeo
pode ser intencionado significativamente natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente
e por isso seu caraacuteter de poder-ser por isso ele poder mobilizar sentidos e atualizar
significaccedilotildees Assim o ser-aiacute eacute o ente que custodia e compreende o ser do ente jaacute em suas
atividades praacuteticas ou seja ele mobiliza a intencionalidade mas eacute o ente que a
intencionalidade natildeo pode alcanccedilar Na tentativa de apreendecirc-lo em seu ser a anaacutelise
conduz para fora para seu ldquoaiacuterdquo Assim Dasein eacute ser-aiacute eacute existecircncia que se projeta
lanccedilada no ldquoaiacuterdquo histoacuterico O Dasein como apresentado por Heidegger ldquoenvolve uma
dimensatildeo de ser (-sein) e por outro uma dimensatildeo locativa um aiacute (Da-)rdquo (CASANOVA
2006 p12) e isto deve-se ao fato que ldquoapenas ele [Dasein] se acha no ponto de
imbricaccedilatildeo de ser e mundordquo (CASANOVA 2006 p12)
71 Cf HEIDEGGER (GA62) 2002 p 71 ldquoConforme seu caraacutecter intencional o compreender puro natildeo
custodia a vida humana no modo de seu ser faacutetico a vida humana natildeo forma parte do horizonte intencional
da σοφία jaacute que eacute um ente que em cada caso pode ser de outra maneirardquo ldquoDas reine Verstehen bringt
nicht etwa nach seinem intentionalen Charakter das menschliche Leben im Wie seines faktischen Seins in
Verwahrung die σοφία hat es uumlberhaupt nicht zu ihrem intentionalen Worauf es ist ja ein Seiendes das ist
gerade dadurch daszlig es je anders sein kannrdquo (HEIDEGGER GA62 [pp385-386] grifo nosso)
88
Dessa forma a pergunta pelo sentido do ser seraacute elaborada conforme os trecircs
momentos constitutivos da questatildeo descritos no sect2 de Ser e Tempo
1- O perguntando ou aquilo de que se pergunta ser do ente
2- O interrogado ou aquilo a quequem se pergunta Dasein
3- O perguntado ou aquilo que se pergunta sentido do ser em geral
A pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2) perguntando
sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma ontologia
fundamental Isso esclarecido podemos iniciar propriamente nosso capiacutetulo e tema
central de nosso trabalho
I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado)
Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico
II A dupla abertura de sentido (Sinn)
Conforme descrito no sect9 de Ser e Tempo o ser-aiacute eacute o ente que a cada vez somos
(eu tu etc) ou seja a particular existecircncia finita e histoacuterica natildeo um conceito geneacuterico
em que as diferenccedilas especiacuteficas apareceriam na experiecircncia sensiacutevel Para esse ente ldquoo
ser ele mesmo eacute o que estaacute a cada vez em jogordquo (HEIDEGGER 2012 p139) Existir e
ser responsaacutevel pelo seu ser eacute o mesmo No que existe o ser-aiacute tem-que-ser (Zu-sein) a
ele natildeo eacute facultado a escolha de haver ou natildeo com seu ser uma vez sendo ele eacute e sendo
ele ldquose comporta em relaccedilatildeo ao seu ser como em realizaccedilatildeo de sua possibilidade mais
proacutepria O Dasein eacute cada vez sua possibilidade (Moglichkeit)rdquo (HEIDEGGER 2012
p141)
Por meio de toda e qualquer performatizaccedilatildeo (com relaccedilatildeo a si mesmo em relaccedilatildeo
aos outros e em relaccedilatildeo aos entes) o ser-aiacute enssencializa a si mesmo como existecircncia E
89
no que se enssencia (como existecircncia e natildeo categorialmente) o seu ser mesmo estaacute em
jogo pois eacute por essa determinaccedilatildeo ontoloacutegica negativa que o ser-aiacute pode conquistar seu
poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees cotidianas
Assim o desenvolvimento da analiacutetica existenciaacuteria aponta para a compreensatildeo do
sentido formal72 da constituiccedilatildeo da existecircncia do ser-aiacute ldquoO Dasein se determina cada vez
como ente a partir de uma possibilidade que ele eacute e que ao mesmo tempo e de alguma
maneira ele entende em seu serrdquo (HEIDEGGER 2012 p 143)
As orientaccedilotildees cotidianas ou a cotidianidade mediana ndash em que o ser-aiacute pode
perder-se no poder-ser improacuteprio - natildeo deve ser considerada pejorativamente como algo
a ser extirpado da existecircncia e da analiacutetica Ao contraacuterio em realidade natildeo pode A
impropriedade oferecida por essas orientaccedilotildees eacute em suma a maneira inicial em que o ser-
aiacute - como ser-no-mundo como ente lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ndash estaacute aberto para seus
possiacuteveis modos de ser Dessa forma a anaacutelise da cotidianidade tem um caraacuteter
fenomecircnico positivo para a analiacutetica existenciaacuteria pois eacute a partir desse modo de ser
improacuteprio que o ser-aiacute eacute lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria
das vezes Portanto natildeo eacute apenas lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade
A analiacutetica existenciaacuteria inicia entatildeo sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio E se
dissemos haacute pouco eacute que por meio da performatizaccedilatildeo que o ser-aiacute enssencia a si mesmo
como existecircncia e essa orientaccedilatildeo para qualquer performance natildeo eacute ilimitada Como as
possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha para um ato de vontade
do ser-aiacute mas satildeo mobilizadas na e pela existecircncia radicalmente histoacuterica o ser-aiacute pela
abertura primaacuteria remetido ao mundo eacute marcado pelo caraacuteter de poder-ser (Seinkonnen)
mas em funccedilatildeo de sua realizaccedilatildeo como possibilidade (Moglichkeit) De modo mais claro
ldquopor natildeo possuir nenhuma quididade [o ser-aiacute cc] eacute a realidade da possibilidade para a
possibilidade () Natildeo podendo ser puro poder-ser pois se assim o fosse o ser-aiacute jaacute seria
algo positivamente definidordquo (CABRAL 2015 p79) Dessa forma o ser-aiacute que a cada
vez deve conquistar o seu ser na radicalidade de sua finitude e historicidade eacute o ente que
pode pela sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica mobilizar sentido E por isso mobilizar na
72 Quando nos referirmos a ldquosentido formalrdquo no decorrer de nosso trabalho Cf Capiacutetulo II- Item III-
Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
90
concretude da vida faacutetica o sentido de ser dos entes os sentidos das relaccedilatildeo aos outros e
sentido de seu ser
ldquoO desvelamento do ser exige sempre um ponto de partida ocircntico Mas o ser-aiacute
eacute privilegiado e ontologicamente ocircntico por causa de sua preacutevia compreensatildeo de
ser Entatildeo o desvelamento do ser deveraacute ser tentado primordialmente a partir do
ser-aiacute mediante uma analiacutetica existencial de suas estruturas O sentido do ser
(preocupaccedilatildeo) dessas estruturas do ser-aiacute eacute a temporalidade Assim a analiacutetica das
estruturas deveraacute ser refeita no homem na temporalidaderdquo (STEIN 2001 p204)
A preacutevia compreensatildeo de ser do ser-aiacute sua negatividade quiditativa seu caraacuteter
de poder-ser e sua constituiccedilatildeo aberta lanccedilada e remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo eacute dada
como acontecimento compreensivo A compreensatildeo ou o entender (Verstehen) eacute uma
das estruturas existenciaacuterias desse ente ocircntico-ontoloacutegico73 e ldquoao interpretaacute-lo como
existenciaacuterio fundamental mostra-se que esse fenocircmeno eacute assim concebido como modus
fundamental do ser do Daseinrdquo (HEIDEGGER 2012 p407) Esse existenciaacuterio
fundamental natildeo refere a uma capacidade entre outras do ser-aiacute de apropriar-se de algo
pelo entendimento intelectivo natildeo eacute uma relaccedilatildeo entre sujeito-objeto mas a constituiccedilatildeo
fundamental do ser-aiacute como ser-no-mundo como relaccedilatildeo intencional primaacuteria e desse
modo o horizonte compreensivo do ser-aiacute com seu ser ldquoO ser-aiacute possui uma relaccedilatildeo
compreensiva com o seu ser porque eacute somente por meio da compreensatildeo que ele encontra
o campo de jogo no interior do qual pode conquistar esse seu serrdquo(CASANOVA 2006
p 13) O ldquoDardquo ou ldquoaiacuterdquo do Dasein e sua estrutura fundamental ser-no-mundo podem ser
esclarecidos em contraponto a concepccedilatildeo paradigmaacutetica da epistemologia moderna de
Kant por exemplo O entender (Verstehen) tal como Heidegger o apresenta natildeo se baseia
na associaccedilatildeo psicoloacutegica das representaccedilotildees ou ainda a abertura primaacuteria que conduz o
ser-aiacute agraves suas possibilidades em que seu ser estaacute em jogo natildeo eacute algo como apercepccedilatildeo
No paradigma epistemoloacutegico da modernidade em uacuteltima instacircncia o entendimento eacute
uma reconstruccedilatildeo interna dos elementos externos do mundo reconstruccedilatildeo essa que
depende das faculdades cognitivas do sujeito capazes de unificar o agregado de
experiecircncias externas O entendimento em Heidegger eacute a abertura primaacuteria uma relaccedilatildeo
intencional estruturante ser-aiacute eacute ser-no-mundo portanto o Dasein eacute sempre remetido ao
73 Ocircntico pelo fato de ser ainda um ente ontoloacutegico pelo fato de ser o ente que pode e sempre abre a
compreensatildeo de ser (Cf HEIDEGGER 2012 sect4-9)
91
ldquomundordquo projetado para ldquoforardquo e esse ldquoforardquo eacute sempre abertura compreensiva ao mundo
faacutetico como horizonte hermenecircutico de sentido
Essa abertura compreensiva fundamental descerra o poder-ser do ser-aiacute como
projeto O fato de o ser-aiacute ser lanccedilado em um ldquoaiacuterdquo histoacuterico ao seu poder -ser em um
campo de jogo para seus possiacuteveis modos de ser natildeo conduz a um determinismo
circunstancial o qual o ser-aiacute estaria fadado a reproduzir maquinalmente e atualizar
incessantemente Tambeacutem ldquoo projetar nada tem a ver com um comportar-se em relaccedilatildeo a
um plano ideado de acordo com o qual o Dasein organizaria o seu serrdquo (HEIDEGGER
2012 p413) mas originariamente ldquoele sempre jaacute se projetou e se projeta enquanto eacuterdquo
(HEIDEGGER 2012 p413) A noccedilatildeo de projeto repousa na abertura compreensiva do
ser-aiacute e na sua ligaccedilatildeo radical com suas possibilidades Logo no iniacutecio do sect32 essa noccedilatildeo
eacute explicitada
ldquoO Dasein como entender projeta seu ser em possibilidades Esse entendedor ser
para possibilidades eacute ele mesmo um poder-ser pelo efeito contraacuterio que as
possibilidades como abertas tecircm sobre o Dasein O projetar do entender tem uma
possibilidade proacutepria de desenvolvimento Chamamos interpretaccedilatildeo o
desenvolvimento do entender Na interpretaccedilatildeo o entender entendendo
apropria-se do seu entendido Na interpretaccedilatildeo o entender natildeo se torna algo
diverso mas torna-se ele mesmo () A interpretaccedilatildeo natildeo consiste em tomar
conhecimento do entendido mas em elaborar possibilidades projetadas no
entenderrdquo (HEIDEGGER 2012 p421)
Dissemos haacute pouco que as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como
disponiacuteveis agrave escolha e agrave espera de um ato de vontade do ser-aiacute (natildeo estatildeo suspensas como
que dadas a cada ser-aiacute ao nascer como gocircndolas de projetos de ser) mas satildeo mobilizadas
na e pela existecircncia E ainda que essa existecircncia seja sempre projetiva em um mundo
histoacuterico Desse modo o entender (Verstehen) acontece sempre como interpretaccedilatildeo
(Auslegung) a abertura ao mundo eacute um projeto de sentido do ser-aiacute que jaacute interpreta que
jaacute potildee em visatildeo o que entende Mas o que isso quer dizer Como Heidegger chega a esses
existenciaacuterios
Vimos no capiacutetulo anterior a partir da leitura do texto de 1922 Interpretaccedilotildees
fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles indicaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica (GA62) ou
Relatoacuterio-Natorp que o noucircs ldquooferece em geral uma perspectiva daacute algo proporciona
92
um lsquoaquirsquordquo essa virtude proacutepria do homem ldquose realiza como ενέργεια como atividade
() ou seja o νους abre um horizonte que sempre responde a um modo concreto de tratar
com o mundo atraveacutes de uma operaccedilatildeo de uma execuccedilatildeo de uma manipulaccedilatildeo de uma
determinaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2002 p66) Compreendido tradicionalmente como
intelecto propriamente racional o noucircs eacute proacuteprio do homem natildeo pela determinaccedilatildeo loacutegica
[homem (animal (gecircnero) + racional (diferenccedila especiacutefica)] mas porque o ser-aiacute eacute o ente
que pode custodiar abrir-se ao desvelamento do ser dos entes Contudo o noucircs eacute um
compreender que jaacute interpreta os entes atraveacutes das atividades praacuteticas no horizonte aberto
na vida faacutetica que acontece fundamentalmente pelo desdobramento da phroacutenesis
enquanto circunspecccedilatildeo proacutepria da solicitude que orienta as relaccedilotildees intencionais no trato
praacutetico com os entes
Em Ser e Tempo Heidegger descreve as vivecircncias praacuteticas do ser-aiacute faacutetico e
tambeacutem como o fenocircmeno do mundo se mostra atraveacutes dos entes intramundanos A forma
imediata de esses entes se mostrarem daacute-se na lida praacutetica que o ser-aiacute trava com eles em
um mundo circundante ou em um mundo-ambiente (Umwelt) Eacute atraveacutes da ocupaccedilatildeo
com os entes que o ser-aiacute se movimenta inicialmente na compreensatildeo faacutetica de mundo eacute
aiacute que o Dasein visualiza os entes em sua serventia especiacutefica no quadro de um horizonte
ocupacional Esse horizonte possui certa anterioridade em relaccedilatildeo ao proacuteprio uso do
instrumento ou utensiacutelio (Zeug) particular e isto fica claro no sect 15 quando Heidegger
potildee em relevo o modo de ser dos utensiacutelios na delimitaccedilatildeo preacutevia do que seja sua
instrumentalidade ldquoEm termos rigorosos um instrumento nunca lsquoeacutersquo isolado Ao ser de
instrumento pertence sempre cada vez um todo-instrumental no qual esse instrumento
pode ser o que ele eacute Instrumento eacute por essecircncia lsquoalgo pararsquo (HEIDEGGER 2012
p211) Na essecircncia do instrumento estaacute sempre a referecircncia de algo para algo O ser do
utensiacutelio e seu significado que aparece no instante do trato portanto jaacute interpretado a
partir do uso nascem da totalidade utensiliar (Zeugganzheit) que o atravessa Mas esta
totalidade utensiliar se assenta num contexto ainda mais complexo Se o utensiacutelio eacute
confeccionado de acordo com a sua finalidade especiacutefica como ldquoalgo parardquo seu uso o
liga a outros utensiacutelios por exemplo o pincel que uso para pintar remete-se agrave tela que
uso para suporte da tinta Assim como a tela remete-se natildeo soacute a sua finalidade mas
tambeacutem aos materiais atraveacutes dos quais ela foi produzida madeira tecido e gesso E
ainda remete-se ao produtor da tela ou seja aos outros entes no modo de ser do ser-aiacute
93
Poreacutem essa descriccedilatildeo do instrumento em um mundo-ambiente (Umwelt) ainda eacute
insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica de todo ente em geral
Assim conforme o sect 17 Heidegger aponta que a estrutura do sinal (Zeichen) ldquofornece
um fio condutor ontoloacutegico para uma lsquocaracterizaccedilatildeorsquo de todo ente em geralrdquo
(HEIDEGGER2012 p 233) O sinal enquanto utensiacutelio tem em sua serventia especiacutefica
o mostrar e ao mostrar fornece o fenocircmeno da referecircncia natildeo somente de sua referecircncia
mas de todo e qualquer ente uma vez que a relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia explicita o
fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua finalidade
na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal enquanto
instrumento nos mostra o mundo circundante e potildee em relevo o caraacuteter da referecircncia
que natildeo deve ser confundida com o proacuteprio sinal pois natildeo eacute determinaccedilatildeo ocircntica de um
ou outro manual especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica do manual e fundamento
constitutivo da mundidade como rede referencial na qual o Dasein jaacute se encontra inserido
na abertura ao mundo Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo
circundante o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a
complexa rede de remissotildees referenciais e atraveacutes dela a totalidade conjuntural ou
conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)
ldquoO termo conjuntura tem como correlato na liacutengua alematilde a palavra Bewandtins
que designa primariamente a propriedade ou a constituiccedilatildeo de uma coisa e em
um segundo momento a circunstacircncia em que algo se mostra essencialmente
como algo Neste segundo caso o termo se mostra em sintonia com a expressatildeo
Bewendenlassen como o deixar (lassen) algo se conformar (bewenden) a uma
certa estrutura e se mostrar como o que eacute em meio a essa conformidaderdquo
(CASANOVA 2006 p37)
A noccedilatildeo de conjuntura no sect 18 eacute um dos momentos mais decisivos da primeira
parte de Ser e Tempo pois revela que a totalidade conjuntural eacute anterior a qualquer
determinaccedilatildeo particular dos entes intramundanos Eacute essa conjuntura que determina os
usos possiacuteveis a partir da conformidade dos entes nela inseridos revelando que o
utensiacutelio em si mesmo natildeo possui qualquer determinaccedilatildeo essencial mas a recebe do
campo de uso da conjuntura na qual estaacute inserido Mas natildeo eacute soacute isso a determinaccedilatildeo
essencial de um ente intramundando acontece tambeacutem em funccedilatildeo do ser-aiacute cujo lsquoem
vista dersquo ao final da remissatildeo natildeo mais remonta a um lsquopara quecircrsquo mas mobiliza e em
uacuteltima instacircncia determina as conformaccedilotildees dos entes intramundanos Isso revela que o
que estaacute em jogo natildeo eacute o que eacute algo mas antes em virtude de que se faz algo O ser-aiacute
94
pode agir relacionar-se com os outros e consigo mesmo pois sabe comportar-se no
campo fenomecircnico aberto que arrasta consigo sua possibilidade de ser De outra forma
toda e qualquer performatizaccedilatildeo do ser-aiacute em relaccedilatildeo aos entes remete em uacuteltima medida
agravequele que pode voltar-se aos entes e mobilizaacute-los
O que a conjuntura indica previamente eacute ldquoa articulaccedilatildeo originaacuteria com certas
possibilidades essenciais do ser-aiacute que permitem ao ser-aiacute projetar efetivamente o campo
de sua realizaccedilatildeo como poder-serrdquo (CASANOVA 2006 p36) Essa realizaccedilatildeo do poder-
ser do ser-aiacute mobiliza a conformaccedilatildeo dos entes em funccedilatildeo do sentido existencial do ser-
aiacute pois uma atividade qualquer natildeo eacute feita por ela mesma mas soacute tem sentido na intenccedilatildeo
de um ente que estaacute aberto agrave apreensatildeo do ser dos entes em geral Desse modo a primaacuteria
abertura compreensiva do ser-aiacute ao mundo eacute um projeto de sentido que jaacute interpreta e ao
fazecirc-lo realiza a cada vez a cada ato de sua existecircncia a cada performatizaccedilatildeo a
possibilidade de seu ser pondo em liberdade os entes no interior do mundo e as relaccedilotildees
com os outros no projeto lanccedilado (faacutetico) na e pela sua existecircncia E isso porque
ldquoQuando o ente do-interior-do-mundo eacute descoberto com o ser do Dasein isto eacute
quando veio ao entendimento dizemos que ele tem sentido Mas tomado
rigorosamente o que eacute entendido natildeo eacute o sentido mas o ente ou o ser Sentido eacute
aquilo em que a entendibilidade de algo se manteacutem () Sentido eacute aquilo-em-
relaccedilatildeo-a-quecirc do projeto estruturado pelo ter-preacutevio pelo ver-preacutevio e pelo
conceito preacutevio a partir de que algo pode ser entendido como algo Na medida
em que entender e interpretaccedilatildeo constituem a constituiccedilatildeo existenciaacuteria do lsquoaiacutersquo o
sentido deve ser concebido como arcabouccedilo existenciaacuterio-formal da abertura
pertencente ao entender O sentido eacute um existenciaacuterio do Dasein natildeo uma
propriedade presa ao ente que reside lsquoatraacutesrsquo dele ou flutua em algum lugar como
em um lsquoreino intermediaacuteriorsquo Soacute o Dasein lsquotemrsquo sentido na medida em que a
abertura do ser-no-mundo lsquopode ser preenchidarsquo () E quando perguntamos
pelo sentido de ser a investigaccedilatildeo natildeo se torna entatildeo profunda e natildeo excogita
nada que esteja atraacutes do ser mas pergunta por ele mesmo na medida em que ele
estaacute na entendibilidade do Dasein O sentido de ser nunca pode ser contraposto
ao ente ou ao ser como lsquofundorsquo que sustenta o ente porque o lsquofundamentorsquo soacute eacute
acessiacutevel como sentido mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta- de-
sentidordquo (HEIDEGGER 2012 pp 429-431)
Apelamos para essa longa citaccedilatildeo a fim de explicitar o que dissemos
anteriormente acerca da mobilizaccedilatildeo dos entes em seu ser em funccedilatildeo dos focos
existenciais do ser-aiacute Os entes somente vecircm ao encontro como entes que satildeo a partir da
intenccedilatildeo de um ente que estaacute aberto a compreensatildeo do ser dos entes em geral Com a
95
citaccedilatildeo pretendemos tambeacutem apontar para algo importante acerca do fundamento
histoacuterico dessa abertura O sentido de ser natildeo eacute algo a ser alcanccedilado teoricamente pois
natildeo eacute algo estaacutevel e fundante da realidade que responde ao esquema causa-efeito ele eacute
essencialmente histoacuterico e eacute trazido pela experiecircncia fundamental situacional e histoacuterica
da existecircncia mesma do ser-aiacute Natildeo se pode ter lsquoserrsquo sem a compreensatildeo do sentido de
ser vinculando portanto lsquoserrsquo ao ser-aiacute ente cuja estrutura pertence agrave compreensatildeo de
ser Como nos adverte o autor de Ser e Tempo o Dasein eacute um ente certamente diferente
dos outros entes no interior do mundo e eacute o lsquoabismo da falta de sentidorsquo que remete agrave
totalidade do fenocircmeno do ser-aiacute como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge) a qual acontece
em funccedilatildeo do sentido da temporalidade (Zeitlichkeit) Eacute essa ldquosegundardquo abertura de
sentido que devemos explicitar a partir de agora
Indicamos acima que a indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica do ser-aiacute o conduz a conquistar
seu poder-ser mais proacuteprio ou perder-se no poder-ser improacuteprio das orientaccedilotildees
cotidianas Poreacutem ser-proacuteprio ou ser-improacuteprio natildeo satildeo categorias operacionalizaacuteveis em
funccedilatildeo de um ideal de vida Essas possibilidades repousam na existecircncia e revelam a
tensatildeo da condiccedilatildeo primaacuteria da abertura ao mundo do ser-aiacute como projeto- jogado e
ldquodessa tensatildeo eacute possiacutevel deduzir o modo como o ser-aiacute faticamente existe() o caraacuteter
mesmo do jogado do ser-aiacute implica a absorccedilatildeo imediata no mundo sedimentado ele
encontra a si mesmo na medida em que se perderdquo (CASANOVA 2009 p123) E por
isso quando a analiacutetica existenciaacuteria inicia sua anaacutelise no modo de ser improacuteprio no qual
o ser-aiacute eacute lanccedilado ldquoisso natildeo significa por sua vez outra coisa senatildeo que ele [o ser-aiacute]
concretiza o poder ser que ele eacute a partir das possibilidades faacuteticas disponibilizadas pelo
mundordquo (CASANOVA 2009 p123)
A abertura compreensiva eacute uma compreensatildeo da proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica na qual
nos orientamos inicialmente e na qual satildeo dadas nossas possibilidades de ser natildeo de
maneira teoacuterica mas absorvidas nas praacuteticas nos projetos de sentido relaccedilatildeo com os
outros e lida com os entes Abertura essa que um passado tornou possiacutevel e se faz
radicalmente imperativa no presente atraveacutes da cotidianidade orientando o ser-aiacute e
fazendo emergir algo assim como um mundo Por exemplo a realizaccedilatildeo deste trabalho
como dissertaccedilatildeo acadecircmica apareceu como possibilidade para o projeto de sentido de
sua autora porque escrever sobre filosofia faz sentido este projeto de sentido veio ao
96
encontro de seu poder-ser natildeo meramente por um ato de escolha mas inicialmente porque
filosofia dissertaccedilatildeo e universidade satildeo elementos mantidos em seu significado oriundo
da tradiccedilatildeo ocidental natildeo por uma linha histoacuterica que a autora recupera e quer trazer ao
presente mas porque mais uma vez ldquoa situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo enquanto apropriaccedilatildeo
compreensiva do passado eacute sempre a situaccedilatildeo de um presente viventerdquo
(HEIDEGGER2002 p30)
E uma vez remetida ao mundo pela orientaccedilatildeo cotidiana a autora pode
estabelecer relaccedilotildees com os entes (livros computador papel etc) consigo mesmo (como
autora) e com os outros (leitores desse trabalho) que partilham essas possibilidades
sedimentadas Dessa forma a orientaccedilatildeo cotidiana primaacuteria revela ldquoexistir () eacute de iniacutecio
o mesmo que perder-se de sirdquo (CASANOVA 2009 p123) pois ldquoo ser-aiacute suspende a
irrealidade originaacuteria que eacute a sua e adquire ao mesmo tempo um modo de ser marcado
por uma aparecircncia de consistecircnciardquo (CASANOVA 2009 p123) Em outras palavras a
absorccedilatildeo na cotidianidade (o caraacuteter de jogado do projeto) oferece uma familiaridade ao
ser-aiacute na qual ele pode se movimentar pois oferece a confiabilidade ocircntica ao projeto de
sentido mas tambeacutem estabelece
ldquoUma relaccedilatildeo com o seu poder-ser que pode ser denominado como fuga uma vez
que a suspensatildeo [de sua irrealidade originaacuteria] promove exatamente uma
tranquilizaccedilatildeo em meio agrave supressatildeo de nadidade constitutiva de um ente marcado
pelo caraacuteter de poder-ser e o ocultamento de um tal caraacuteterrdquo (CASANOVA
2009 p123)
Em meio agrave familiaridade em que o ser-aiacute eacute jogado sua negatividade quiditativa e
seu traccedilo ontoloacutegico essencial como poder-ser satildeo obstruiacutedos agrave compreensatildeo do Dasein
em relaccedilatildeo ao seu ser Voltemos ao nosso exemplo as relaccedilotildees que a autora deste trabalho
pode exercer a partir de suas possibilidades a orientam como ser autora deste trabalho
como aquela que escreve ou ainda como aquela vinculada agrave universidade e assim por
diante Poreacutem nada poderia definir nossa existecircncia como fazem as orientaccedilotildees
cotidianas pois o Dasein que cada um de noacutes somos eacute marcado pela negatividade radical
frente a qualquer definiccedilatildeo ocircntica Como entatildeo essa fuga natildeo nos condena a reproduzir
maquinalmente e atualizar incessantemente as orientaccedilotildees cotidianas - Porque o ser-aiacute
97
mesmo jogado eacute ainda projeto e no limite de seu projeto ele pode se encontrar com seu
poder-ser mais proacuteprio como ser para a morte (das Sein zum Tod)74
Tal como as possibilidades de ser natildeo satildeo lanccediladas como disponiacuteveis agrave escolha agrave
espera de um ato de vontade do ser-aiacute a conquista de seu ser-proacuteprio ou sua
singularizaccedilatildeo tambeacutem natildeo eacute produto de sua vontade A dinacircmica de singularizaccedilatildeo do
ser-aiacute eacute possiacutevel pela tonalidade afetiva ou o modo de encontrar-se (Befindlicheit)
fundamental da anguacutestia (Angst)
O entender (Verstehen) ou abertura compreensiva eacute sempre dispositiva na medida
em que a compreensatildeo natildeo se refere agrave capacidade ou agraves faculdades cognitivas do homem
ldquoO termo disposiccedilatildeo aponta diretamente para o modo como o ser-aiacute a cada vez se
descobre em meio a uma tal abertura Na medida em que o ser-aiacute eacute um ente
marcado essencialmente por seu caraacuteter existencial e natildeo se mostra senatildeo como
um poder ser ele natildeo pode aprender a abertura do ente na totalidade por meio de
alguma faculdade cognitiva de sua subjetividade () Befindlichkeit diz o
encontrar-se de uma certa maneirardquo (CASANOVA 2006p50)
Encontrar-se de certa maneira natildeo eacute uma espeacutecie de afeto psicoloacutegico que o ser-
aiacute projeta de dentro para fora nem uma relaccedilatildeo de fora para dentro que afeta o ser-aiacute Natildeo
eacute uma relaccedilatildeo causal Eacute uma afinaccedilatildeo (ajuste do tom) que deve ser compreendida
repousando na intenccedilatildeo primaacuteria do ser-aiacute como ser-no-mundo Como o autor explicita
ainda no sect29 ldquoO ser do estado-de-acircnimo do encontrar-se constitui existenciariamente a
abertura do Dasein para o mundordquo (HEIDEGGER 2012 p393) Eacute propositadamente que
se apela para a metaacutefora musical (ldquoafinaccedilatildeordquo) para tentar compreender esse ldquoestado de
acircnimo do encontrar-serdquo como por exemplo acontece quando uma muacutesica eacute tocada ela
afina a abertura compreensiva do ser-aiacute a um estado de acircnimo que noacutes poderiacuteamos chamar
de melancoacutelico A melancolia natildeo estaacute na muacutesica (natildeo haacute como pensar que as tonalidades
afetivas sejam propriedades de um ou outro ente na medida em que o ser de todo e
74 Aqui eacute importante considerar as palavras de Juliaacuten Mariacuteas na Conferecircncia do curso ldquoLos estilos de la
Filosofiacuteardquo Madrid 19992000 Ediccedilatildeo Jean Lauand Traduccedilatildeo Sylvio Horta ldquoa preposiccedilatildeo zu natildeo quer
dizer para mas a Isto eacute a expressatildeo sein zum Tod poderia ser traduzida por estar agrave morte (estar a
la muerte) Qual eacute a condiccedilatildeo dos homens - e das mulheres evidentemente - natildeo somente quando nos
atropela um caminhatildeo ou quando temos pneumonia dupla O homem estaacute agrave morte sempre estaacute na
possibilidade de morrer estaacute em potecircncia proacutexima de morrer estaacute exposto agrave morte e eacute isso justamente o
que quer dizer sein zum Tod estar aberto agrave morte estar nessa possibilidade proacutexima real eficazrdquo
98
qualquer ente eacute aberto em funccedilatildeo do ser-aiacute que os potildee em liberdade no interior do mundo)
como tambeacutem natildeo estaacute no Dasein (natildeo haacute nada de aderente a esse ente que venha agrave tona
sua abertura eacute sempre remetida ao mundo e ao encontro com os entes) Portanto a
melancolia como no exemplo eacute a modificaccedilatildeo da atmosfera promovida pelo proacuteprio
encontrar-se do ser-aiacute em meio aos entes
Mas por qual motivo a anguacutestia aparece em Ser e Tempo como a tonalidade afetiva
ou o modo fundamental de encontrar-se Enquanto os estados de acircnimo natildeo conforme agrave
anguacutestia constituem a abertura compreensiva do ser-aiacute para a lida e para as relaccedilotildees que
podem ser realizadas no interior do mundo em meio aos entes ldquoo diante-de-quecirc da
anguacutestia eacute o ser-no-mundo como talrdquo (HEIDEGGER 2012 p521) Na anguacutestia natildeo haacute
ente que venha ao encontro no qual o ser-aiacute possa se reportar e refugiar-se mas a si mesmo
em sua indeterminaccedilatildeo
ldquoNa anguacutestia o utilizaacutevel do mundo-ambiente e em geral o ente do-interior-do-
mundo se afundam O lsquomundorsquo jaacute nada pode oferecer nem tambeacutem o Dasein-
com com os outros A anguacutestia retira assim do Dasein a possibilidade de no
decair entender-se a partir do lsquomundorsquo e do puacuteblico ser-do-interpretado Ela
projeta o Dasein de volta naquilo por que ele se angustia seu proacuteprio poder ndashser-
no-mundo () Com o porquecirc do se angustiar a anguacutestia abre portanto o Dasein
como ser possiacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012 p525)
Na anguacutestia natildeo haacute a ldquosuspensatildeo de mundordquo como se o Dasein se retirasse dele
O que haacute eacute a suspensatildeo das orientaccedilotildees cotidianas que obliteram sua constituiccedilatildeo
primaacuteria Portanto ainda e agora radicalmente transparente como ser-no-mundo o
Dasein suspende a familiaridade em meio ao ente voltando-se a si mesmo como ser-
possiacutevel que mobiliza sentido e ldquotem mundordquo Lembremos que a necessidade da ontologia
fundamental como radicalizaccedilatildeo do gesto fenomenoloacutegico indica que o ser-aiacute mesmo
natildeo pode ser intencionado natildeo haacute significado a ser encontrado nesse ente e por isso seu
caraacuteter de poder-ser E se pela anguacutestia o ser-aiacute volta-se a si mesmo o que vem eacute essa
indeterminaccedilatildeo radical revelando em uacuteltima medida o ldquoabismo da falta de sentidordquo Esse
abismo natildeo leva a qualquer espeacutecie de niilismo natildeo eacute o que estaacute em jogo aqui ao
contraacuterio pois o ldquoo ser-aiacute se vecirc confrontado com o seu caraacuteter como poder-ser Dessa
confrontaccedilatildeo nasce ao mesmo tempo a possibilidade de assunccedilatildeo de si mesmo como
cuidado (Sorge)rdquo (CASANOVA 2009 p128)
99
Recuperemos por um instante os trecircs momentos constitutivos da questatildeo descritos
no sect2 de Ser e Tempo a pergunta pelo sentido do ser em geral (3) interroga o Dasein (2)
perguntando sobre seu ser (1) A ontologia heideggeriana em Ser e Tempo requer uma
ontologia fundamental A ontologia fundamental como analiacutetica existenciaacuteria em seu
primeiro momento descreve as estruturas fundamentais do ser-aiacute com o propoacutesito de
chegar ao ser desse ente que compreende o sentido de ser (sect12 ao sect38) Contudo eacute
importante considerar que existe certa lsquoartificialidadersquo nesse processo de explicitaccedilatildeo das
estruturas do ser-aiacute Eacute importante manter o sentido de ldquoanaliacuteticardquo Pois o fenocircmeno
mesmo deve ser compreendido como um todo natildeo em funccedilatildeo das partes mas a partir de
sua proacutepria mostraccedilatildeo Em outras palavras a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein deve agora
ser recuperada e este ente deve ser assinalado de maneira propriamente fenomenoloacutegica
ou seja em sua totalidade enquanto fenocircmeno Eacute o que a segunda parte da analiacutetica deve
recuperar ldquoabrangendo os componentes que se interligam ndash a existencialidade a
facticidade e a quedardquo (NUNES 2012 p116)
A partir desses componentes Heidegger apresenta o sentido formal da
preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-em (-o-mundo)
como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo (HEIDEGGER
2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser (existencialidade ou
existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que foi
lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio aos
entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)
Poreacutem natildeo dissemos que o ser-aiacute eacute marcado pela negatividade quiditativa e que
existe segundo possibilidades as quais natildeo se esgotam na sua efetivaccedilatildeo mas na morte
como fim de todas as possibilidades Ou nas palavras de nosso autor ldquoE se a existecircncia
determina o ser do Dasein e sua essecircncia eacute constituiacuteda pelo poder-ser entatildeo o Dasein
podendo ser enquanto existir deve-ser cada vez algo de ainda natildeo sendordquo
(HEIDEGGER 2012 p645) Entatildeo essa interpretaccedilatildeo do ser do Dasein como um
fenocircmeno unitaacuterio como Sorge natildeo contradiz tal afirmaccedilatildeo Natildeo haacute qualquer
contradiccedilatildeo pois eacute exatamente
ldquoO cuidado como manifestaccedilatildeo da finitude que permite a Heidegger identificar
a morte como o chegar do Dasein ao fim () e ver nesse ente em sua totalidade
o ser para a morte() O Dasein chega pois a um fim mas que o determina desde
100
o princiacutepio como possibilidade do que viraacute a ser A morte natildeo eacute para ele portanto
o puro aniquilamento representaacutevel conforme a experiecircncia da caducidade ()
impessoal e necessaacuterio na seacuterie de causas naturais () Ontologicamente falando
o homem deixa de viver porque morre e morre porque lhe eacute inerente o morrer
enquanto poder-ser de cada qual () intrasferiacutevel e irrepresentaacutevel na relaccedilatildeo
com o ser a que a existecircncia estaacute concernidardquo (NUNES 2012 pp 117-119)
Como poder-ser (existenciariedade) o ser-aiacute adianta-se em relaccedilatildeo agrave sua
possibilidade mais proacutepria Seu ser-proacuteprio insuperaacutevel como ser-para-a-morte (porque
intransferiacutevel a qualquer outro) revela-se como a possibilidade para a impossibilidade
ou seja impossibilidade de sua existecircncia lanccedilada (facticidade) de ter um lsquoaiacutersquo sendo o
lsquoaiacutersquo a compreensatildeo dos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda)
Mas eacute importante considerar que a preocupaccedilatildeo ou o cuidado natildeo eacute a totalidade alcanccedilada
por aquele que chegou agrave singularizaccedilatildeo pela tonalidade fundamental da anguacutestia ela eacute a
constituiccedilatildeo ontoloacutegica de todo e qualquer Dasein O que a singularizaccedilatildeo promove
como possibilidade aberta pela anguacutestia eacute a transparecircncia desse ser-proacuteprio cada vez
obliterado na cotidianidade Na cotidianidade a morte eacute vista como um ldquomero deixar de
viverrdquo transferido a cada vez ao outro que morreu ldquodessa vezrdquo75 em um tratamento
radicalmente impessoal pela indiferenccedila frente a esse poder-ser proacuteprio e irrevogaacutevel
A morte como fim de todas as possibilidades enquanto poder-ser extremo eacute
indeterminada mesmo que seja a certeza mais proacutepria Pois natildeo se chega agrave morte
pensando nela o que estaacute em jogo eacute a responsabilidade do ser-aiacute frente a essa
transparecircncia a assunccedilatildeo pelo ser-aiacute de sua nulidade que atravessando-o (sem qualquer
conteuacutedo prescritivo do que deve-se ou natildeo fazer) pode orientar o caminho de sua
existecircncia Existecircncia ainda faacutetica ainda em meio aos entes de um mundo sedimentado
Em outras palavras caminho que reconduz o ser-aiacute ao ldquoaiacuterdquo que ele tem que ser e que ele
radicalmente eacute O que a singularizaccedilatildeo aponta eacute ldquoLeben ist Tod und Tod ist auch ein
75 Heidegger indica a novela de LN Tolstoacutei ldquoA morte de Ivan Ilitchrdquo para ilustrar o fenocircmeno da morte
tratada impessoalmente e o abalo dessa impessoalidade (Cf HEIDEGGER 2012 p699) Poderiacuteamos
tambeacutem indicar a partir de nossa cotidianidade exemplos do tratamento impessoal acerca da morte as
estatiacutesticas dos ldquomortos nas estradasrdquo a notiacutecia da morte de alguma personalidade puacuteblica e ainda - para
natildeo confundirmos esse fenocircmeno com um mero ldquonoticiarrdquorsquo a morte - a maneira mesma que tratamos a
morte de algueacutem proacuteximo pois mesmo tomados pelo pesar o que constatamos eacute a ldquoperdardquo do outro Seria
possiacutevel restaurar a ponte mesmo que indicativa que Heidegger natildeo admite entre o fenocircmeno impessoal
da morte e nosso ser-proacuteprio como ser-para-a-morte Talvez algo acessiacutevel pela linguagem poeacutetica Aqui
eacute oportuno considerar os belos versos do poema Na morte de Henriqueta Lisboa ldquoNa morte nos
encontramos Sim na morte Tempo de consoacutercio e de viacutenculordquo In Flor da Morte Belo Horizonte Ed
UFMG 2004
101
Leben76rdquo Nessa indicaccedilatildeo ldquoO si-mesmo que como tal tem de pocircr o fundamento de si
mesmo nunca pode se assenhorar desse fundamento e tem de existindo assumir no
entanto o ser-fundamento Ser o proacuteprio fundamento dejectado eacute o poder-ser em jogo na
preocupaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p779) Eacute pela assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo
(Sorge) que o ser-aiacute pode compreender que os sentidos mobilizados em sua existecircncia satildeo
existenciariamente remetidos ao seu ser mesmo ente histoacuterico e finito radicalmente
marcado pela nulidade essencial Isso posto recuperamos uma vez mais agora com toda
a importacircncia as palavras de nosso autor ldquoo lsquofundamentorsquo soacute eacute acessiacutevel como sentido
mesmo que ele mesmo seja o abismo da falta-de-sentidordquo (HEIDEGGER 2012 p431)
A transparecircncia de seu ser-proacuteprio ao ser-aiacute eacute assumir ldquoser como fundamento
dejectado da nulidade Mas a assunccedilatildeo da dejecccedilatildeo significa para o Dasein ser
propriamente como ele a cada vez jaacute erardquo (HEIDEGGGER 2012 p887) Em outras
palavras a assunccedilatildeo de si como preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute para o ser-aiacute reconhecer que ele
eacute existecircncia radicalmente faacutetica (Faktizitaumlt) ainda em meio aos entes de um mundo
sedimentado Desse modo ldquoentender o seu ser ainda e sempre ldquoem seu essencial ser-
culpadordquo (HEIDEGGER 2012 p887) A singularizaccedilatildeo do ser-aiacute natildeo promove um
distanciamento da vida cotidiana natildeo faz com que ele se retire da queda mas que a
assuma e assim assuma ldquoa responsabilidade pela necessidade de pagar uma diacutevida que
cada ser-aiacute tem para consigo mesmordquo (CASANOVA 2009 p136) Diacutevida de assumir
seu ser como existecircncia como projeto-jogado e como poder-ser proacuteprio marcado pela
possibilidade extrema da morte Essa culpa do ser-aiacute eacute a assunccedilatildeo de que ele jaacute sempre
desonerou seu ser ele jaacute sempre deixou seu ser sob tutela do mundo e das orientaccedilotildees
cotidianas - por sua condiccedilatildeo de soacute poder-ser a partir da absorccedilatildeo imediata no mundo
Essa culpa natildeo eacute a mesma das concepccedilotildees cristatildes Em Pascal por exemplo a culpa eacute
consequecircncia da perda de nossa primeira natureza em funccedilatildeo do pecado original77 Para
Heidegger a culpa eacute consequecircncia do fato de natildeo termos qualquer natureza Natildeo haacute como
se retirar dessa condiccedilatildeo eis nossa culpa essencial e nossa queda irremediaacutevel
76 ldquoA vida eacute morte e a morte eacute tambeacutem uma vidardquo HOumlLDERLIN Friedrich In lieblicher Blaumlue - Disponiacutevel
em httpswwwhsaugsburgde~harschgermanicaChronologie19JhHoelderlinhoe_0801html Acesso
em 21 marccedilo 2016 77 Cf por exemplo os aforismos 131 e 616 de Pascal nos Penseacutees Ediccedilatildeo e organizaccedilatildeo Lafumaacute
102
Mas se chegamos agrave totalidade originaacuteria do todo-estrutural do ser-aiacute ou em outras
palavras agrave assinalado constituiccedilatildeo propriamente fenomenoloacutegica do ser-aiacute como
preocupaccedilatildeo (Sorge) eacute necessaacuterio considerar o sentido ontoloacutegico desse fenocircmeno
Lembramos mais uma vez o que eacute ldquosentidordquo para Heidegger ldquoSentido eacute aquilo em que a
entendibilidade de algo se manteacutemrdquo (2012 p429) Se o ser-aiacute pode ser indicado em sua
totalidade fenomecircnica (ainda que radicalmente diverso dos entes do interior do mundo)
eacute necessaacuterio como expresso no sect65 perguntar ldquoQue possibilita o ser do Dasein e assim
sua existecircncia factual (faktische)
O sentido de ser do Dasein como Sorge a compreensatildeo de sua nulidade essencial
a partir do fenocircmeno unitaacuterio de seu ser aponta para aquilo que pode sustentaacute-lo ldquoA
temporalidade descobre-se como o sentido da preocupaccedilatildeo proacutepriardquo (HEIDEGGER
2012 p889)
Na continuaccedilatildeo do sect65 o autor descreve como a preocupaccedilatildeo reside na
temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-
em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo
(HEIDEGGER 2012 p891) Futuro (poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente
(presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees temporais como as que tomamos diariamente mas
o caraacuteter essencial da existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre
adiantado (futuro) em relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza
as possibilidades na facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva da
proacutepria tradiccedilatildeo histoacuterica a cada vez presente na qual nos orientamos inicialmente em
nossos comportamentos) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no
presente esse passado em seus comportamentos e projetos E como adverte o autor
ldquoOs momentos da preocupaccedilatildeo natildeo se amontoam como a temporalidade ela
mesma natildeo vai tambeacutem lsquocom o temporsquo se compondo de futuro ser-do-sido e
presente A temporalidade natildeo lsquoeacutersquo em geral nenhum ente Ela natildeo eacute mas se
temporalizardquo (HEIDEGGER 2012 p893)
Ou seja a temporalidade acontece na existecircncia do ser-aiacute na unidade do
fenocircmeno que se mostrou como preocupaccedilatildeo ou cuidado (Sorge) E ainda acontece jaacute no
que o ser-aiacute entende (Verstehen) como o sentido ontoloacutegico desse acontecimento mesmo
da compreensatildeo Por isso ainda no iniacutecio desse toacutepico dissemos que a constituiccedilatildeo aberta
103
e remetida ao mundo (ao seu ldquoaiacuterdquo) do ser-aiacute eacute dada como acontecimento compreensivo
pois em seu sentido ontoloacutegico eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) que se temporaliza78
Assim finalmente chegamos agrave dupla abertura de sentido em Ser e Tempo a que
chamamos de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo a abertura compreensiva do ser-aiacute
remetida ao mundo e o sentido de ser do ser-aiacute a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) O
caraacuteter fundamental dessa estrutura se daacute pelo fato que eacute a partir dela que o ser-aiacute pode
conceder significaccedilotildees e por isso a primeira estrutura do que pode tornar manifesto o
fenocircmeno da linguagem Agora eacute necessaacuterio descrever a relaccedilatildeo entre mundo e
significatividade ainda como parte dessa primeira estrutura para que alcancemos a
segunda estrutura o fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) e a partir dele agrave linguagem
III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)
No toacutepico anterior apresentamos a constituiccedilatildeo aberta do ser-aiacute lanccedilada e
remetida ao mundo ao seu ldquoaiacuterdquo Mas o que constitui algo assim como mundo O que
afinal quer dizer ldquomundordquo (Welt) Nesse sentido precisamos retomar a descriccedilatildeo
realizada anteriormente acerca da referecircncia e da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) Essa
retomada natildeo significa prolixidade mas consequecircncia inevitaacutevel da ligaccedilatildeo essencial
entre ser-aiacute e mundo E se antes a descriccedilatildeo foi explicitada para compreendermos a
abertura de sentido em funccedilatildeo do ser-aiacute agora seraacute exposta para compreendermos o
proacuteprio ldquoaiacuterdquo
Sem pressupor mundo como ente ou como espaccedilo a pesquisa fenomenoloacutegica
aproximou-se dos campos de mostraccedilatildeo de algo como lsquomundorsquo escapando de qualquer
preacutevia teorizaccedilatildeo Nessa direccedilatildeo vimos que algo como lsquomundorsquo se daacute inicialmente a
partir da abertura primaacuteria de sentido promovida pelo entender ou compreensatildeo
78 Como indicamos (nota 66) haacute uma questatildeo natildeo respondida em Ser e Tempo a temporalidade (Zeitlichkeit)
estaria afinal assentada no tempo histoacuterico da abertura Questatildeo expressa na uacuteltima linha daquela obra ldquoO
tempo (Zeit) ele mesmo se manifesta como horizonte de serrdquo (HEIDEGGER 2012 p1179) Essa questatildeo
aponta para o limite da obra de 1927 na medida em que o sentido de ser remetido e em funccedilatildeo de um ente
especiacutefico mesmo que privilegiado apresenta seus limites Natildeo aprofundaremos esse problema Nesse
sentido conferir inicialmente HEIDEGGER M Os problemas fundamentais da fenomenologia Trad
Marco Antocircnio Casanova Petroacutepolis RJ Vozes 2012 ndash Parte II (pp331-478) Conferir tambeacutem
CASANOVA (2009 pp 140-145) NUNES (2012 pp200-220) e STEIN (2001 pp297-309)
104
(Verstehen) Esse existenciaacuterio primaacuterio acontece sempre como interpretaccedilatildeo
(Auslegung) que jaacute potildee em visatildeo o que entende
A partir da lida praacutetica e natildeo teoacuterica que o ser-aiacute trava inicialmente com os entes
intramundanos (sect15) Heidegger chega a noccedilatildeo de mundo circundante ou mundo-
ambiente (Umwelt) Poreacutem a descriccedilatildeo do uso dos utensiacutelios (Zeug) em um mundo-
ambiente (Umwelt) eacute insuficiente para a indicaccedilatildeo do que pode vir a ser a caracteriacutestica
de todo ente em geral Assim conforme o sect 17 Heidegger descreve o fenocircmeno da
referecircncia a partir da descriccedilatildeo do sinal enquanto utensiacutelio que tem em sua serventia
especiacutefica o mostrar e ao fazecirc-lo conduz a compreensatildeo da instrumentalidade ou
utilizabilidade (Zuhandenheit) de todo e qualquer ente A relaccedilatildeo entre sinal e referecircncia
explicita o fundamento do ldquopara quecircrdquo (Wozu) da serventia dos utensiacutelios em geral ou sua
finalidade na estrutura referencial do ldquoser parardquo ldquoalgo parardquo (Um-zu) O sinal
enquanto instrumento nos mostra o mundo-circundante (Umwelt) e potildee em relevo o
caraacuteter da referecircncia que natildeo deve ser confundido com o proacuteprio sinal pois eacute a estrutura
ontoloacutegica do manual e fundamento constitutivo da mundidade como rede referencial na
qual o Dasein jaacute se encontra inserido na abertura primaacuteria remetida ao mundo na lida
praacutetica
O ldquomostrarrdquo do sinal tal como o ldquomartelarrdquo do martelo ou a emprego de todo e
qualquer ente natildeo satildeo propriedades essenciais presentes nos lsquoobjetosrsquo apreendidas pelo
ser-aiacute mas satildeo trazidas agrave luz na e pela estrutura da remissatildeo a partir do trato praacutetico E
ldquoser-remetido-ardquo como constituiccedilatildeo do utilizaacutevel eacute em uacuteltima medida ldquoconjuntar-se agraverdquo
nas palavras de Heidegger
ldquoConjuntaccedilatildeo eacute o ser do interior-do-mundo em relaccedilatildeo ao qual esse ente jaacute eacute e
de pronto cada vez posto-em-liberdade () Isto de que ele tenha uma
conjuntaccedilatildeo comjunto eacute a determinaccedilatildeo ontoloacutegica do ser desse ente e natildeo um
enunciado ocircntico sobre o enterdquo (HEIDEGGER 2012 p251)
Portanto ao estar sempre ldquoreferido a algordquo em um mundo circundante (Umwelt)
o utensiacutelio revela em seu ser a estrutura da referecircncia identificando a complexa rede de
remissotildees referenciais e revelando a totalidade conjuntural ou conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis)
A totalidade conjuntural se mostra anterior a qualquer determinaccedilatildeo particular dos entes
intramundanos - uma vez que eacute a conjuntura mesma que determinaraacute os usos possiacuteveis a
partir da conformidade dos entes nela inseridos- revelando que o utensiacutelio em si mesmo
105
e em uacuteltima medida todo e qualquer ente no interior do mundo natildeo possui qualquer
determinaccedilatildeo essencial mas a recebe a partir do campo de uso da conjuntura na qual estaacute
inserido Como a partir daiacute se chega entatildeo agrave noccedilatildeo de algo como ldquomundordquo A conjuntura
como conformaccedilatildeo de todo e qualquer ente eacute dada em funccedilatildeo do que Heidegger chama
de significatividade (Bedeutsamkeit)
ldquoAo se manter na familiaridade com a abertura das relaccedilotildees o entender as potildee
diante de si como aquilo em que seu remeter se move O entender deixa-se
remeter nestas relaccedilotildees e por elas mesmas O caraacuteter relacional dessas relaccedilotildees
do remeter noacutes o aprendemos como significar Na familiaridade com essas
relaccedilotildees o Dasein lsquosignificarsquo a si mesmo daacute-se a entender originariamente seu
ser e poder-ser relativamente a seu ser-no-mundo [] O todo relacional desse
significar noacutes o denominamos significatividade Ela eacute o que constitui a estrutura
do mundordquo (HEIDEGGER2012p261)
Essa passagem traz o elemento crucial agrave nossa investigaccedilatildeo a significatividade
como a condiccedilatildeo mesma ou melhor a proacutepria lsquointeligibilidadersquo do mundo natildeo como
arcabouccedilo teoacuterico mas como acircmbito da interpretaccedilatildeo anterior a qualquer definiccedilatildeo
predicativa do ente A totalidade conjuntural que conforma os entes intramundanos
determina-os significativamente em seu ldquocomordquo ou seja os faz ver e aparecer como ente
como algo no interior da abertura de sentido do proacuteprio mundo Isto quer dizer que a
conjuntaccedilatildeo deixa ver o ente em seu ldquoser enterdquo como algo que lsquoeacutersquo a partir de um horizonte
ldquode tal maneira que ele se torna primeiramente acessiacutevel como ente do-interior-do-
mundordquo (HEIDEGGER 2012p255)
A abertura ou entendimento preacutevio no qual o ser-aiacute histoacuterico e finito faz o ente
vir ao encontro na conjuntura e o mobiliza conforme seu foco existencial mostra o
fenocircmeno do mundo e isso como jaacute apresentamos a partir da familiaridade em que o
Dasein se movimenta pelo seu caraacuteter de jogado O fenocircmeno do mundo eacute explicitado
por Heidegger na seguinte passagem
ldquoO Dasein se remete jaacute cada vez e sempre a partir de um em-vista-de-quecirc ao
com-quecirc de uma conjutaccedilatildeo isto eacute na medida em que eacute ele deixa jaacute cada vez e
sempre o ente vir-de-encontro como utilizaacutevel Aquilo-em-que o Dasein
previamente se entende no modus do remeter-se eacute aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do
preacutevio fazer o ente vir-de-encontro O em-quecirc do entender que se-remete como
aquilo-em-relaccedilatildeo-a-que do fazer o ente vir-de-encontro no modo-de-ser da
conjuntaccedilatildeo eacute o fenocircmeno do mundo E a estrutura daquilo a que o Dasein se
remete eacute o que constitui a mundidade do mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 257)
106
Mas essa passagem tambeacutem mostra uma diferenccedila que natildeo pode ser ignorada o
fenocircmeno do mundo e a mundidade (Weltlichkeit) do mundo O primeiro diz respeito agrave
mobilizaccedilatildeo de uma determinada conjuntura jaacute familiar a partir dos focos existenciais do
ser-aiacute possiacuteveis em um horizonte descerrado (aspecto ocircntico) a segunda indica o aspecto
estrutural ontoloacutegico do mundo Por isto a significatividade explicitada inicialmente
pelo fenocircmeno da referecircncia e trazida agrave tona pela noccedilatildeo de conjuntaccedilatildeo eacute chamada de
estrutura formal da mundidade pois natildeo diz respeito a uma estrutura deste ou daquele
ldquomundordquo especiacutefico mas a estrutura ontoloacutegica de algo como ldquomundordquo
A significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que os significados
(Bedeutungen) dos entes mas sua condiccedilatildeo de possibilidade Quando um ente se mostra
na e pela ocupaccedilatildeo (Besorgen) vem agrave conjuntaccedilatildeo no momento mesmo do trato manual
e assim ele eacute posto em liberdade em seu ser como utilizaacutevel (Zuhandenes) e natildeo eacute- como
compreendeu a tradiccedilatildeo assentada na noccedilatildeo sujeito-objeto ndash uma lsquoresrsquo uma coisa um
ldquomaterial disponiacutevel no mundordquo Ou seja ele natildeo se mostra primariamente como um
subsistente (Vorhandener) jaacute que ldquofamiliaridade com o mundo natildeo exige
necessariamente uma transparecircncia teoacuterica das relaccedilotildees do mundo que constituem o
mundo como mundordquo (HEIDEGGER 2012 p 259)
Para Heidegger (ao menos em Ser e Tempo) os entes no interior do mundo (entes
intramundanos) natildeo conforme ao modo de ser do Dasein satildeo de dois modos ou como
duas categorias como Zuhanden (agrave matildeo) que se mostra de modo originaacuterio no trato
praacutetico e como Vorhanden (ente simplesmente dado ou subsistente) que aparece de
modo derivado agrave mostraccedilatildeo praacutetica Trazendo agrave tona a gecircnese praacutetica do significado
Vigo (2012) chama a atenccedilatildeo acerca do tratamento pouco extensivo agraves categorias que
Heidegger oferece em 1927
ldquoHeidegger oferece tatildeo somente um tratamento muito fragmentaacuterio desses
aspectos que jaacute foi explicado pelo fato expressamente declarado do caraacuteter
preparatoacuterio em SZ Ela natildeo conteacutem mesmo remotamente a totalidade do que
deveria conter um modelo ontoloacutegico de aspiraccedilatildeo integral que abarca as
diferentes ontologias regionais e apresentar o repertoacuterio das categorias mais
relevantes para cada uma delas mostrando aleacutem disso as correspondentes
relaccedilotildees de dependecircncia etcrdquo (p113)
O caraacuteter preparatoacuterio e ainda formal de Ser e Tempo o qual apenas estabelece a
diferenccedila categorial entre Zuhanden e Vorhanden parece querer marcar uma diferenccedila
107
mais fundamental ainda vinculada agraves primeiras preleccedilotildees da deacutecada de 1920 nas quais a
derivaccedilatildeo do teoreacutetico era atribuiacuteda a uma instacircncia primaacuteria mais originaacuteria Em Ser e
Tempo ldquoa diferenccedila entre o conhecimento matemaacutetico e o conhecimento filosoacuteficordquo ganha
um contorno definitivo como diferenccedila ldquoentre uma concepccedilatildeo de loacutegos provinda da loacutegica
e outra que adveacutem do conceito de aleacutetheiardquo (STEFANI 2009 p51)
Dessa forma qualquer ente tomado de forma teoacuterica com um significado
determinado eacute um modo de acesso ou um visar o ente de modo derivado pelo ser-aiacute (natildeo
podemos esquecer que a mobilizaccedilatildeo dos entes eacute realizada em funccedilatildeo dos focos
existenciais do Dasein o que foi chamado de ldquoestrutura fundamental de sentidordquo) Em
outras palavras como a significatividade (Bedeutsamkeit) natildeo eacute o mesmo que significado
(Bedeutung) mas sua condiccedilatildeo de possibilidade qualquer teoria ou modo de tratamento
teoacuterico de um ente subsistente (Vorhandenes) eacute tributaacuterio da sedimentaccedilatildeo de um mundo
da sedimentaccedilatildeo de uma totalidade conjuntural que vem ao encontro do ser-aiacute
originariamente na ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhandenes) Assim ldquoo mundo faacutetico
onde se desdobra a existecircncia do ser-aiacute eacute constituiacutedo pela solidificaccedilatildeo dos significados
dos entes intramundanos e pela sedimentaccedilatildeo dos sentidos em virtude dos quais o ser-aiacute
desdobra o poder-ser que ele eacuterdquo (CABRAL 2015 p94) O ser-aiacute como projeto jogado
mobiliza sentidos e atualiza essas significaccedilotildees calcificadas de um mundo histoacuterico Algo
como um conceito uma definiccedilatildeo ou um significado do ente eacute possiacutevel por essa abertura
de sentido interpretativa preacutevia e sedimentada articulada pela significatividade e dada de
maneira preacute-linguiacutestica
Mas a significatividade ela mesma com o que o Dasein jaacute estaacute a cada vez
familiarizado traz consigo a condiccedilatildeo ontoloacutegica da possibilidade de que o
Dasein-que-entende possa abrir como interpretante algo assim como
lsquosignificaccedilotildeesrsquo as quais fundam novamente o ser possiacutevel da palavra e da liacutenguardquo
(HEIDEGGER 2012p261 grifo nosso)
Prestemos atenccedilatildeo agrave uacuteltima consideraccedilatildeo dessa passagem significaccedilotildees natildeo satildeo
palavras elas fundam palavras Lembremos a orientaccedilatildeo fenomenoloacutegica o significado
natildeo eacute provido pela palavra o conceito inaugural de algo eacute correlato agrave sua mostraccedilatildeo
Vimos no capiacutetulo anterior que o loacutegos do fenocircmeno para Heidegger eacute loacutegos apofacircntico
(λόγος αποφατικός) o mostrar do fenocircmeno a respeito de seu ser e o ser ente eacute algo que
se mostra como algo de maneira indiferenciada natildeo determinada E ainda esse mostrar
do existente eacute um mostrar sempre em meio agraves relaccedilotildees dos existentes sempre em meio a
108
um campo interpretativo Ou seja agora podemos dizer eacute o mostrar o ente como ente
(algo como algo) no interior do mundo Na abertura que entende (Verstehen) remetida ao
mundo originariamente na lida praacutetica algo vem ao encontro e na medida que se mostra
jaacute se mostra interpretado (Auslegung) como algo do interior do mundo Mundo
compreendido em seu aspecto ontoloacutegico natildeo como ente espaccedilo ou soma de coisas (res)
disponiacuteveis agrave nossa apreensatildeo Mas abertura compreensiva-interpretativa do ser-aiacute
estruturalmente articulada em sua totalidade- enquanto ldquomundordquo - pela significatividade
E eacute dessa articulaccedilatildeo que podem vir significados e dos significados palavras assim
ldquoPodemos dizer que o que estaacute em jogo na discussatildeo de Heidegger com a
concepccedilatildeo husserliana natildeo eacute outra coisa em definitivo que a questatildeo relativa ao
modo fenomenoloacutegico adequado de considerar a experiecircncia antepredicativa
como tal Trata-se de uma questatildeo metodicamente fundamental justamente na
medida em que concerne de modo direto a adequada determinaccedilatildeo do terminus a
quo79 para uma possiacutevel explicaccedilatildeo da origem do enunciado predicativo como
modo derivado e fundado da interpretaccedilatildeo Atado aos preconceitod da ontologia
tradicional que se orienta a partir da estrutura do loacutegos apofatikoacutes considerando
o mesmo como algo dado lsquopresente agrave vistarsquo (Vorhandener) Husserl faz
basicamente o mesmo que jaacute havia feito a teoria tradicional das categorias desde
Aristoacuteteles em diante a saber retroprojetar a estrutura do enunciado da forma S-
P para o acircmbito dos lsquoobjetosrsquo que natildeo eacute outro que dos entes intramundanos
considerados como dados meramente lsquopresente agrave vistarsquo (VIGO 2012 p96)
Se a discussatildeo de Heidegger com a concepccedilatildeo husserliana se torna patente eacute
importante destacar tambeacutem a discussatildeo com a concepccedilatildeo diltheyniana - tendo em vista
o esclarecimento da noccedilatildeo de ldquosignificatividaderdquo Vimos que a categoria do significado
como apresentada por Dilthey possui um aspecto decisivo a relaccedilatildeo entre vivecircncia e
compreensatildeo eacute o ponto crucial para a elaboraccedilatildeo da hermenecircutica pois traz em si a
categoria do significado como o nexo da vivecircncia com a realidade concreta sem se
apoiar em qualquer elemento transcendente agrave proacutepria experiecircncia vivida Contudo como
observa Heidegger no sect43 de Ser e Tempo o viacutenculo de Dilthey agrave teoria do conhecimento
da eacutepoca compreendendo a vivecircncia como vivecircncia de consciecircncia ou ldquoa relaccedilatildeo-de-ser
da consciecircncia com o real ele mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p583) faz com que a lsquovidarsquo
seja apresentada de modo indiferenciado sem a compreensatildeo de sua sustentaccedilatildeo
ontoloacutegica jaacute que a vivecircncia particular da consciecircncia como vida conexa e estruturante
79Termo a partir do qual Ponto de partida
109
eacute a categoria epistemoloacutegica fundamental para seu projeto hermenecircutico Mas Heidegger
reconhece ldquoDilthey natildeo soacute acentua que a realidade nunca eacute dada de modo primaacuterio no
pensamento e na apreensatildeo mas indica sobretudo que o conhecer ele mesmo natildeo
consiste em julgar e que saber eacute uma lsquorelaccedilatildeo de serrsquordquo (HEIDEGGER 2012 p583)
Tentando tornar mais claro mesmo que para Dilthey o mundo natildeo apareccedila como um
conjunto de coisas prontas agrave apreensatildeo da razatildeo humana mais ainda que as coisas
enquanto res natildeo sejam tomadas como a realidade (Realitaumlt) o fato de o pressuposto da
vivecircncia provir da consciecircncia obscurece o fundamento ontoloacutegico de algo como ldquovidardquo
Por isso escapou a Dilthey a relaccedilatildeo primaacuteria entre ser-aiacute como ser-no-mundo em sua
radicalidade ontoloacutegica como relaccedilatildeo fundante de toda e qualquer compreensatildeo de ser
Talvez por esse motivo como observa DASTUR (2007)
ldquoNo trabalho publicado em 1927 Heidegger natildeo usa frequentemente termo
hermenecircutica que aparece apenas trecircs ou quatro vezes () - no paraacutegrafo 7 da
introduccedilatildeo quando eacute para definir a fenomenologia no paraacutegrafo 33 que trata da
enunciaccedilatildeo e no paraacutegrafo 45 que define o iniacutecio da segunda parte da tarefa de
uma interpretaccedilatildeo do Dasein - enquanto o termo Auslegung que significa tanto
interpretaccedilatildeo e explicaccedilatildeo eacute muito mais frequentemente utilizadordquo (p74)
E quando Heidegger retoma o termo ldquohermenecircuticardquo no sect33 ele ressalta o caraacuteter
existenciaacuterio de tal interpretaccedilatildeo
ldquoA enunciaccedilatildeo natildeo pode negar sua origem ontoloacutegica a partir da interpretaccedilatildeo
que-entende O ldquocomordquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor entendedor
(ἑρμηνεία) noacutes os chamamos lsquocomorsquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio para
diferenciaacute-lo do ldquocomordquo apofacircntico da enunciaccedilatildeo (Aussage)rdquo (HEIDEGGER
2012 p 447)
O que eacute essa diferenccedila entre o ldquocomordquo hermenecircutico-existecircnciaacuterio e o ldquocomordquo
apofacircntico da enunciaccedilatildeo Eacute a diferenccedila entre Auslegung (interpretaccedilatildeo) e Aussage
(enunciado) A diferenccedila consiste no fato de que a originariedade da mostraccedilatildeo dos entes
em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) - pela
significatividade (Bedeutsamkeit) que a articula - e sua derivaccedilatildeo como ente
simplesmente dado (Vorhanden) ndash fazendo emergir algo como significado (Bedeutung)-
ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da enunciaccedilatildeo (Aussage) em sua ligaccedilatildeo
derivativa agrave interpretaccedilatildeo (Auslegung) De outra maneira como a estrutura interpretativa
aberta pela compreensatildeo ou entendimento (Verstehen) transforma-se em proposiccedilatildeo
Na introduccedilatildeo desse capiacutetulo escrevemos que na fenomenologia heideggeriana veio agrave
110
tona o aspecto ontoloacutegico do conteuacutedo significativo Essa fenomenologia como ontologia
acabou por revelar de um lado a historicidade de todo e qualquer significado que pudesse
vir agrave palavra por outro que o campo de sentido no qual algo pode manter-se em seu
significado tambeacutem era histoacuterico Eacute necessaacuterio portanto a partir de agora mostrar como
o significado aberto pela compressatildeo-interpretativa (algo como algo) ganha sua forma
expressa inicialmente a partir do fenocircmeno da proposiccedilatildeo e a partir dessa derivaccedilatildeo
podemos ter acesso ao fenocircmeno da linguagem
II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da
interpretaccedilatildeo (Auslegung)
A anaacutelise da enunciaccedilatildeo (Aussage) conforme apresenta por Heidegger no sect33 de
Ser e Tempo constitui a segunda estrutura descrita na obra a qual nos permite
compreender o fenocircmeno da linguagem (Sprache) como a manifestaccedilatildeo uacuteltima de um
horizonte de sentido jaacute aberto que a cada vez oferece a significaccedilatildeo dos entes previamente
articulada O fenocircmeno da linguagem aparece como resultado dos trecircs objetivos de sua
investigaccedilatildeo neste momento do tratado os quais listamos a seguir
1) Como a estrutura compreensiva-interpretativa (apresentada no toacutepico anterior)
sofre uma modificaccedilatildeo
2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos
3) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade
Como antecipamos e a partir da finalidade da anaacutelise acima apresentada
podemos dizer que o que estaacute em jogo nesse momento da analiacutetica eacute compreender que ldquoa
siacutentese predicativa fundamenta-se numa daccedilatildeo originaacuteria e eacute em funccedilatildeo da experiecircncia
antepredicativa que se opera a atribuiccedilatildeo do predicado ao sujeitordquo (NUNES 2012 p165)
Em outras palavras como a estrutura interpretativa aberta pela compressatildeo (algo como
algo) transforma-se em proposiccedilatildeo (Sujeito-predicado) E essa derivaccedilatildeo eacute elencada nas
trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo (Aussage)
1) Mostraccedilatildeo (Aufzeigung)
2) Predicaccedilatildeo (Praumldikation)
111
3) Comunicaccedilatildeo (Mitteilung)
Essas significaccedilotildees do termo Aussage ainda segundo Heidegger possuem caraacuteter
analiacutetico pois satildeo ldquotiradas do fenocircmeno que ela designa as quais delimitam em sua
conexatildeo e unidade a completa estrutura da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER 2012 p437)
Essa unidade estaacute assentada nas condiccedilotildees preacutevias tendo em vista que ldquoa enunciaccedilatildeo natildeo
eacute um comportamento-que-flutua-no-ar e que possa por si mesmo abrir o ente
primariamente mas se comporta jaacute sempre sobre a base de ser-no-mundordquo
(HEIDEGGER 2012 p443)
Como vimos no capiacutetulo anterior as condiccedilotildees preacutevias conforme apresentadas no
Relatoacuterio Natorp satildeo (1) o ponto de vista (Blickstand) (2) a direccedilatildeo da
visada (Blickrichtung) e (3) o horizonte da visada ou a ldquovisibilidaderdquo (Sichtweite) De
modo mais claro em (1) temos o acircmbito da realidade dada em uma preacutevia abertura
temporal de sentido em (2) temos a direccedilatildeo que jaacute determinou algo ldquocomo-algordquo (Als-
was) e jaacute ofereceu ao objeto a interpretaccedilatildeo e seu aspecto ou melhor seu lugar
significativo no interior do acircmbito da realidade E por fim em (3) o horizonte de toda
possibilidade interpretativa e orientaccedilatildeo de todo comportamento Compreender o como
do aparecer dos entes em seu ser seu significado e as possibilidades de comportamentos
do ser-aiacute eacute evidenciar que a visibilidade ou o horizonte da visada (3) eacute delimitado aberto
(1) e jaacute interpretado (2) e por isso pode mover-se em pretensotildees de objetividade e
definiccedilatildeo Essas condiccedilotildees estatildeo articuladas com a interpretaccedilatildeo de Heidegger dos termos
respectivamente noucircs phroacutenesis e sophiacutea e assentadas na noccedilatildeo de verdade como
desvelamento (ἀλήθεια) Em Ser e Tempo Heidegger reelabora essas interpretaccedilotildees com
uma terminologia proacutepria respectivamente Vorhabe (ter-preacutevio) Vorsicht (ver-preacutevio)
e Vorgriff (conceito-preacutevio) e esse tripeacute
ldquoForma o arcabouccedilo projetivo do compreender que nos abre os entes ao sabor
dos nexos da referecircncia na conduta do trato atraveacutes dos quais se estende a rede
de significatividade () Eacute nessa conduta e portanto na experiecircncia
antepredicativa como a praacutexis maciccedila do mundo-da-vida em seu imediato e
frequente transcorrer cotidiano que Heidegger coloca a nascente do sentidordquo
(NUNES 2012 p168)
Como essas condiccedilotildees preacutevias devem ser compreendidas em vista do caraacuteter de
projeto-jogado do ser-aiacute natildeo eacute gratuita a designaccedilatildeo da abertura do ser-aiacute ao mundo como
112
ldquoabertura de sentido fundamentalrdquo A abertura compreensiva fundamental descerra o
poder-ser do ser-aiacute como projeto mas ao projetar-se ele eacute lanccedilado num ldquoaiacuterdquo histoacuterico O
seu poder-ser se lanccedila num campo de jogo jaacute descerrado interpretado e articulado por
essas condiccedilotildees E assim essas condiccedilotildees preacutevias ldquoreconduz[emcc]-nos ao ciacuterculo
hermenecircutico ontoloacutegico-histoacuterico que circunscreve por forccedila da finitude que faz do
homem um Daseinrdquo (NUNES 2012 p168) No que me lanccedilo ao mundo sou e o mundo
eacute como ele eacute como escreve Fernando Pessoa (2006 p177)
ldquoCreio no mundo como um malmequer
Porque o vejo Mas natildeo penso nele
Porque pensar eacute natildeo compreender
O Mundo natildeo se faz para pensarmos nele
(Pensar eacute estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordordquo
Talvez esses versos possam iluminar o que estaacute em questatildeo nesse paraacutegrafo
Poderiacuteamos nos questionar por qual motivo Heidegger natildeo passa da interpretaccedilatildeo
(Auslegung) ao discurso (Rede) pois este como veremos no proacuteximo capiacutetulo remete agrave
fala como fundamento ontoloacutegico da linguagem O sect 33 se refere a uma discussatildeo muito
especiacutefica mas que tem um lugar privilegiado na ontologia fundamental e estaacute
diretamente relacionada ao sect44 da mesma obra A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo de verdade
da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca que era a dos
neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa concepccedilatildeo
tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da verdade em
direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave proposiccedilatildeo Com
isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa medida
condicionando a ontologia agrave loacutegica
Courtine (1996) elabora essa problemaacutetica com clareza A partir de trecircs etapas
ele nos apresenta o caminho que conduz nosso autor da loacutegica agrave liacutengua A primeira etapa
diz respeito aos trabalhos de juventude de Heidegger ldquoainda marcados pela problemaacutetica
da validade como primeira elucidaccedilatildeo do ser no juiacutezordquo (COURTINE 1996 p14) Jaacute a
segunda etapa que Courtine denomina destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica consiste em regressar
da interpretaccedilatildeo ldquoescolarrdquo da loacutegica aristoteacutelica a uma problematizaccedilatildeo mais original do
loacutegos compreendido como modo de desvelamento Eacute nessa segunda etapa que estaacute
113
inserido o trabalho de Ser e Tempo sendo a passagem da primeira agrave segunda etapa
marcada pelo curso de 1925-1926 Logik die Frage nach der Wahrheit (GA21) A
terceira seria ainda uma etapa de destruiccedilatildeo mas de modo diferente marcada pelo que
Courtine denomina desorientaccedilatildeo ou ldquoabalordquo (erschuumlttern) e encontra sua imagem
expliacutecita no texto de 1935 ldquoIntroduccedilatildeo agrave metafiacutesicardquo
Portanto na primeira etapa a loacutegica para o jovem Heidegger eacute ainda apreendida
como loacutegica do ldquosentidordquo ou da ldquovalidaderdquo
ldquoA ideacuteia segundo a qual a Geltung a validade define o modo de ser proacuteprio das
proposiccedilotildees e das verdades vem como se sabe da loacutegica de Lotze Numa nota
das Neuere Forschungen uumlber Logik (GA I p23) Heidegger indicava a respeito
da Loacutegica de Lotze que acabava de ser reeditada sua loacutegica deve sempre ser
considerada como a obra fundamental da loacutegica moderna () E Heidegger que
ateacute aqui se exprimia como disciacutepulo fiel de Husserl terminava por acrescentar
esta questatildeo rica em posteridade para seu proacuteprio pensamento ldquoMas logo se
coloca a questatildeo o que eacute ndash sentidordquo (GA I p170)rdquo (COURTINE 1996 pp16-
17)
Vimos como o sentido (Sinn) em Ser e Tempo eacute apresentado sob uma perspectiva
radical relacionado agrave problematizaccedilatildeo mais original do lsquoloacutegosrsquo como mostraccedilatildeo do
fenocircmeno em seu ser e agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento Essa mudanccedila criacutetica
resulta da aparentemente simples interrogaccedilatildeo de Heidegger acerca da identificaccedilatildeo
ldquoWahrheit = wahrer Satz = Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade)rdquo
(COURTINE 1996 p 19) A criacutetica eacute assim expressa em Logik die Frage nach der
Wahrheit (GA21)
ldquoLotze que introduziu o conceito de lsquoGeltungrsquoem loacutegica emprega a expressatildeo
lsquoserrsquo no sentido estrito segundo o qual ser quer dizer a mesma coisa que
efetividade das coisas ser = lsquorealidadersquo (Vorhandenheit) [] Lotze natildeo conseguiu
superar o naturalismo na medida em que restringiu o significado do termo
veneraacutevel lsquoserrsquo ao ser real agrave realidade [] Na nossa terminologia utilizamos
inversamente ser no sentido amplo inserindo-nos na autecircntica tradiccedilatildeo da
filosofia grega de tal maneira que ser designa tanto a realidade quanto a
idealidade ou outras maneiras possiacuteveis de serrdquo (HEIDEGGER GA21 p62
apud COUTRINE 1996 p19)
Nesse sentido lembremos tambeacutem que para os neokantianos influenciados pela
filosofia dos valores de Lotze o conhecimento eacute possiacutevel como uma atividade valorativa
do juiacutezo (na forma ldquoEacute verdadeiro que S eacute Prdquo) Ou seja eacute o juiacutezo que reconhece o
conteuacutedo o sentido e a validade da verdade na sua pretensatildeo de necessidade e
114
universalidade algo ldquoeacuterdquo em funccedilatildeo do valor que alcanccedila no ideal de conhecimento Ora
o que a leitura de Ser e Tempo ateacute aqui jaacute demonstrou eacute que algo eacute natildeo porque um juiacutezo
loacutegico definiu seu conteuacutedo ontoloacutegico mas porque o ser-aiacute aquele que vai atribuir
sentido jaacute sempre se move numa preacute-compreensatildeo de ser a qual eacute fundamentalmente
praacutetica na visatildeo circunspecta de nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram
em seu ser Ora estabelecendo uma possiacutevel analogia parece que Heidegger desconfia
tanto do conhecimento teoacuterico-proposicional quanto Fernando Pessoa do ldquopensamentordquo
Assim reduzir qualquer ontologia agrave loacutegica atraveacutes do juiacutezo proposicional eacute como ldquoestar
doente dos olhosrdquo
No nosso entender o que Heidegger desenvolve no sect 33 soacute seraacute totalmente
elucidado se o relacionarmos com o sect 44 No sect 33 jaacute se anuncia que a forma fundamental
da predicaccedilatildeo (Praumldikation) sujeito e predicado (ldquoS eacute Prdquo) eacute derivada da mostraccedilatildeo
(Aufzeigung) originaacuteria compreensivo-interpretativa (algo como algo) e soacute por isso a
comunicaccedilatildeo (Mitteilung) uns com os outros na vida cotidiana pode expressar profericcedilotildees
como ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo ldquoHoje eacute um belo diardquo etc Antes de
entramos na apresentaccedilatildeo pormenorizada do sect33 e assim a relacionarmos ao sect44 eacute
necessaacuterio fazermos duas consideraccedilotildees
Essas camadas de derivaccedilatildeo evitam qualquer interpretaccedilatildeo relativista da noccedilatildeo de
linguagem em Heidegger Tentando escapar de uma leitura apressada devemos pensar
no acontecimento da verdade como um acontecimento compreensivo a partir de um ente
finito e histoacuterico o que eacute diferente de reduzi-lo a uma perspectiva historicista O que estaacute
em questatildeo por exemplo natildeo eacute se ldquocasardquo poderia se chamar ldquomesardquo (esse eacute um aspecto
ocircntico da linguagem) ou ainda que o fato de o enunciado possuir um fundamento
contingente ele seria menos verdadeiro Aleacutem disso haacute o fato de que o ente e as
possibilidades de ser do ser-aiacute vecircm agrave palavra por uma mostraccedilatildeo preacutevia de seu ser eacute o
ente que se mostra E na medida em que eacute mobilizado pelo ser-aiacute na interpretaccedilatildeo sua
mostraccedilatildeo pode ser modificada pela expressatildeo na forma predicativa A loacutegica deriva do
loacutegos a loacutegica natildeo eacute o lugar do loacutegos E o loacutegos eacute a maneira mesma de o ente se mostrar
e se ele se mostra para o ser-aiacute isso natildeo quer dizer que eacute o ser-aiacute que o determina Natildeo
Eacute o ser-aiacute que o potildee em liberdade O fenocircmeno natildeo estaacute fora de seu proacuteprio acontecimento
como fenocircmeno Assim o loacutegos do fenocircmeno eacute um deixar-ver (sehenlassen) Aqui a
115
expressatildeo ldquolassenrdquo indica um deixar por si mesmo doar-se Se a metafiacutesica tradicional
compreende a apariccedilatildeo dos fenocircmenos fundada na estabilidade de uma esfera para aleacutem
do acontecimento fenomecircnico a fenomenologia reconhece na sua manifestaccedilatildeo o sentido
de sua proacutepria existecircncia
Caberia ademais em uma pesquisa posterior investigar se a interpretaccedilatildeo do
loacutegos como loacutegos apofacircntico derivada da noccedilatildeo de intencionalidade essecircncia mesma da
fenomenologia ainda reconduz Heidegger a certo viacutenculo com a concepccedilatildeo tradicional
da linguagem na medida em que dizer eacute ainda dizer que algo eacute de tal ou qual maneira ou
seja ainda dizer na forma predicativa Dito de outra forma mesmo que Heidegger
demonstre o caraacuteter derivado da loacutegica ela continua a ser uma purificaccedilatildeo dos elementos
materiais da linguagem Isso significaria dizer que o problema heideggeriano da
linguagem ainda estava inserido no projeto da tradiccedilatildeo da filosofia ocidental 80
Retomemos agora as trecircs significaccedilotildees que Heidegger atribui ao termo enunciaccedilatildeo
(Aussage) Na mostraccedilatildeo (Aufzeigung) como primeiro significado Heidegger reteacutem o
sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Essa forma do enunciado estaacute diretamente
relacionada ao ente que vem ao encontro no Vorhabe (ter-preacutevio) ou noucircs em que o ser-
aiacute originariamente pela ocupaccedilatildeo com um utilizaacutevel (Zuhanden) movimenta-se e abre a
compreensatildeo em um mundo-ambiente (Umwelt) Mas toda compreensatildeo (Verstehen) jaacute
interpreta (Auslegung) o que entende e assim no trato praacutetico ou no ldquocomordquo
hermenecircutico-existenciaacuterio
ldquoA execuccedilatildeo originaacuteria da interpretaccedilatildeo natildeo consiste em uma proposiccedilatildeo-
enunciativa teoacuterica mas no fato de que no-ver-ao-redor da ocupaccedilatildeo se potildee de
lado ou se troca a ferramenta improacutepria lsquosem perder nisso uma soacute palavrarsquo Da
falta de palavras natildeo se deve concluir a falta de interpretaccedilatildeordquo (HEIDEGGER
2012 P445)
Na predicaccedilatildeo (Praumldikation) segundo significado da enunciaccedilatildeo fundado no
primeiro haacute a determinaccedilatildeo de um ente que modifica e restringe a mostraccedilatildeo de algo
como algo na forma sujeito-predicado Esse segundo significado estaacute diretamente
80 Cf Capiacutetulo I- Introduccedilatildeo
116
relacionado ao Vorsicht (ver-preacutevio) cuja base encontra-se no Vorhabe (ter-preacutevio) No
que o ser-aiacute vecirc algo e o determina ele restringe o utilizaacutevel (Zuhandenes) a um subsistente
(Vorhandener) com isso ele ldquovisa a um subsistente no utilizaacutevel Pelo olhar
contemplativo e para ele o utilizaacutevel se oculta como utilizaacutevelrdquo (HEIDEGGER 2012
p445) Esse segundo momento da enunciaccedilatildeo estaacute ligado ao significado (Bedeutung) que
emerge a partir da significatividade (Bedeutsamkeit) e nesse sentido ldquoposiccedilatildeo-de-sujeito
posiccedilatildeo-de-predicado em unidade com o-pocircr satildeo inteiramente lsquoapofacircnticosrsquo no sentido
rigoroso da palavrardquo (HEIDEGGER 2012 p439) Aqui Heidegger ainda se refere a uma
categoria do ente que se mostra no interior do mundo Mas entatildeo como ocorre a
modificaccedilatildeo de algo como algo tomado como categoria subsistente (Vorhanden) na forma
loacutegica sujeito-predicado
ldquoAgora pela primeira vez se franqueia o acesso a algo assim como propriedades
O lsquoquecircrsquo da enunciaccedilatildeo determinante do subsistente eacute extraiacutedo do subsistente
como tal () A estrutura-de-como da interpretaccedilatildeo experimenta uma
modificaccedilatildeo O lsquocomorsquo em funccedilatildeo de apropriaccedilatildeo do entendido jaacute natildeo chega ateacute
uma totalidade-de-conjuntaccedilatildeo Ele foi separado de suas possibilidades de
articular as relaccedilotildees-de-remissatildeo da significatividade que constitui o ser-do-
mundo-ambiente O lsquocomorsquo eacute reprimido no plano uniforme do soacute subsistente ()
Esse nivelamento do lsquocomorsquo originaacuterio da interpretaccedilatildeo do ver-ao-redor em como
da determinaccedilatildeo-da-subsistecircncia eacute a prerrogativa da enunciaccedilatildeordquo (HEIDEGGER
2012 p447)
O ente tomado como subsistente (Vorhanden) eacute prerrogativa da predicaccedilatildeo Seu
recorte como algo que possui essa ou aquela propriedade torna possiacutevel algo como a
forma predicativa (ldquoS eacute Prdquo) O que estaacute em jogo poreacutem pois tornou-se paradigma da
tradiccedilatildeo eacute o nivelamento de todo e qualquer ente como algo sempre presente dotado de
propriedades e desse modo disponiacuteveis agrave apreensatildeo na forma predicativa Nesse
nivelamento todo ente eacute posto sob o domiacutenio da loacutegica que obscurece sua derivaccedilatildeo
essencial agrave mostraccedilatildeo do ente em seu ser em funccedilatildeo da relaccedilatildeo primaacuteria ser-aiacute como ser-
no-mundo e assim da verdade como desvelamento (ἀλήθεια)
A terceira forma do enunciado derivado do primeiro e do segundo significados eacute
apresentada por Heidegger como comunicaccedilatildeo (Mitteilung) A palavra alematilde jaacute indica o
caraacuteter puacuteblico do que inicialmente foi mostrado e pela predicaccedilatildeo foi determinado
teilung (partilha) mit (com) O enunciado como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se puder ser
partilhado com outrem ldquover juntordquo o mostrado jaacute determinado ldquolsquoCompartilhadorsquo eacute o
comum e transparente ser para o mostrado lsquoser pararsquo que deve ser firmemente mantido
117
como ser-no-mundo [] Agrave enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo entendida assim sentido
existenciaacuterio pertence o ser expressordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Essa terceira forma
estaacute relacionada ao Vorgriff (conceito-preacutevio) ou a significaccedilotildees calcificadas de um
mundo histoacuterico faacutetico
Natildeo podemos esquecer que a anaacutelise dos existenciaacuterios (entender interpretaccedilatildeo e
disposiccedilatildeo) estatildeo na anaacutelise do ldquoser-em como talrdquo (quinto capiacutetulo) antecedida pelo
capiacutetulo intitulado ldquoo ser-no-mundo como ser-com e como ser-si-mesmo lsquoA gentersquordquo
Nesse sentido e pelo caraacuteter programaacutetico de Ser e Tempo a anaacutelise da enunciaccedilatildeo ou
proposiccedilatildeo (Aussage) jaacute pressupotildee que ser-no-mundo eacute sempre ser-com-os-outros Desse
modo ser expresso na comunicaccedilatildeo eacute a primeira manifestaccedilatildeo acerca do fenocircmeno da
linguagem que Heidegger apresenta em Ser e Tempo Poreacutem no sect34 o autor indica que
a comunicaccedilatildeo enunciativa ou informativa (ldquoO Sol eacute uma estrelardquo ldquoA cadeira eacute brancardquo
ldquoHoje eacute um belo diardquo etc) assentada na predicaccedilatildeo eacute um caso particular de comunicaccedilatildeo
(Cf HEIDEGGER 2012 p457) Mas aqui chegamos ao intuito principal de nosso
capiacutetulo descrever como a ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo fundada na predicaccedilatildeo que por
sua vez soacute eacute possiacutevel pela interpretaccedilatildeo apresenta o caraacuteter derivativo do enunciado
expresso em uacuteltima medida pela linguagem que comunica
A partir dessa apresentaccedilatildeo dos trecircs significados do enunciado (Aussage)
compreendemos sua definiccedilatildeo ldquoenunciaccedilatildeo eacute uma mostraccedilatildeo determinante que
comunicardquo (HEIDEGGER 2012 p443) Portanto chegamos agrave estrutura ontoloacutegica da
linguagem (Sprache) ou ao dizer puacuteblico acerca das coisas e do estado de coisas em um
mundo Ter chegado ao objetivo central de nosso capiacutetulo natildeo quer dizer que nossa tarefa
se encerra aqui Uma obra como Ser e Tempo nos exige mais A finalidade da investigaccedilatildeo
desse paraacutegrafo ainda natildeo foi esclarecida em seus dois uacuteltimos pontos
1) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de loacutegos
2) A anaacutelise da enunciaccedilatildeo em referecircncia agrave compreensatildeo tradicional de verdade
Se Heidegger indica que no mostrar mesmo do fenocircmeno em seu loacutegos (algo como
algo) pode surgir a forma predicativa eacute necessaacuterio explicar como no proacuteprio loacutegos a
flexatildeo ldquoeacuterdquo da forma ldquoS eacute Prdquo eacute possiacutevel Nas palavras de nosso autor
118
ldquoQue funda a unidade desse juntar Ele reside como Platatildeo reconheceu em que o
λόγος eacute sempre um λόγος tivoacuteς Na perspectiva do ente manifesto no λόγος as
palavras satildeo reunidas em um todo verbal Aristoacuteteles viu mais radicalmente todo
λόγος eacute ao mesmo tempo σύνθεσis e διαίρεσηs A mostraccedilatildeo eacute um reunir e separar
Entretanto Aristoacuteteles natildeo desenvolveu a questatildeo ateacute perguntar Que fenocircmeno eacute
o que no interior da estrutura do λόγος possibilita e ao mesmo tempo exige a
caracterizaccedilatildeo de toda enunciaccedilatildeo como siacutentese e dieacuterese () O que com as
estruturas formais do lsquoligarrsquo e lsquosepararrsquo ou mais exatamente com a unidade de
ambos devia ser fenomenicamente encontrado eacute o fenocircmeno do lsquoalgo como algorsquordquo
(HEIDEGGER 2012 p449)
A criacutetica expliacutecita se volta contra Aristoacuteteles mas tambeacutem contra toda tradiccedilatildeo
que absorveu esse pressuposto E como natildeo podemos deixar de observar ateacute seu proacuteprio
mestre Husserl quando este estabeleceu a diferenccedila entre intuiccedilatildeo sensiacutevel e categorial
Essa distinccedilatildeo desalojou o lsquoserrsquo da intencionalidade sensiacutevel e o conduziu ao uso loacutegico
sem revelar de modo originaacuterio a apariccedilatildeo de qualquer fenocircmeno ou o desvelamento dos
entes em seu ser O fenocircmeno da linguagem enunciativa (Mitteilung) em funccedilatildeo de sua
derivaccedilatildeo da predicaccedilatildeo (Praumldikation) e essa por sua vez derivada da mostraccedilatildeo
(Aufzeigung) possui uma ligaccedilatildeo com os entes na medida em que diz o que de algum
modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que lsquoalgo eacute xrsquo ou que lsquoalgo natildeo eacute xrsquo eacute possiacutevel primariamente
pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com
No interior da estrutura do proacuteprio λόγος ao indicar-se que algo eacute diz-se tambeacutem como
ele eacute ou como ele natildeo eacute [esse traccedilo estaacute relacionado ao caraacuteter intencional do discurso
(die Rede) que examinaremos no proacuteximo capiacutetulo] Contudo a linguagem habitual que
manteacutem vigente os significados calcificados natildeo reconhece esse traccedilo para aleacutem da
gramaacutetica Aleacutem disso a proposiccedilatildeo loacutegica obscurece a estrutura do loacutegos que a
condiciona pelo fato de usurpar a verdade para o juiacutezo natildeo reconhecendo o lugar
originaacuterio da verdade Originariedade somente possiacutevel pela compreensatildeo da verdade
como Aleacutetheia O que nos conduz agrave segunda finalidade da investigaccedilatildeo do sect 33
Para explicarmos esse conceito originaacuterio de verdade eacute necessaacuterio que nos
reportemos ao sect44 Quando se diz ldquooriginariedaderdquo do fenocircmeno da verdade natildeo se diz
algo como lsquocausarsquo da verdade antes se refere agrave sua origem sem sentido objetivo
lsquoObjetividadersquo eacute um conceito derivado da verdade reportada ao juiacutezo Aqui a verdade
tambeacutem natildeo deve ser considerada para aleacutem de sua compreensatildeo histoacuterica Lembremos
de que natildeo haacute ldquoserrdquo sem a compreensatildeo do sentido de ser portanto eacute necessaacuterio vincular
119
sempre ldquoserrdquo ao ser-aiacute ente finito e histoacuterico Por conseguinte compreensatildeo de ser em
Ser e Tempo estaacute como a origem mesma da verdade compreendida como desvelamento
Como jaacute apontamos antes a enunciaccedilatildeo (Aussage) enquanto mostraccedilatildeo
(Aufzeigung) eacute a forma fundante dos modos possiacuteveis de enunciaccedilatildeo e nela Heidegger
reteacutem o sentido originaacuterio de loacutegos como apofacircntico Na mostraccedilatildeo nada se funda em
representaccedilotildees que se adequam a objetos como compreendeu a tradiccedilatildeo Para serem
verdadeiros e garantirem seu estatuto ontoloacutegico os entes natildeo precisam estar de em
acordo nem se submeterem agrave adequaccedilatildeo dos juiacutezos ou proposiccedilotildees dos homens A
derivaccedilatildeo da verdade como objetividade na ciecircncia ou em todo comportamento teoacuterico
natildeo pode negar a maneira pela qual o ente eacute posto em liberdade Conhecer
originariamente eacute deixar que o ente se mostre em seu ser dessa forma
ldquoSuponha-se que algueacutem de costas para a parede profira a seguinte enunciaccedilatildeo
verdadeira lsquoO quadro pendurado na parede estaacute tortorsquo Essa enunciaccedilatildeo se
comprova quando quem a enuncia se volta para a parede e percebe o quadro torto
ali dependurado Que eacute comprovado nessa comprovaccedilatildeo Eacute constatado algo
como uma concordacircncia do lsquoconhecimentorsquo ou do conhecido com a coisa
lsquocolocadarsquo na parede Sim e natildeo conforme se faccedila cada vez uma adequada
interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica do que a expressatildeo lsquoo conhecidorsquo significa A que
se refere quem enuncia se natildeo julga o quadro na percepccedilatildeo mas soacute o representa
A algo como representaccedilotildees Certamente que natildeo se representaccedilatildeo deve aqui
significar representar como processo psiacutequico Tambeacutem natildeo se representaccedilotildees
tecircm o sentido do representado na medida em que visada uma imagem da coisa
real na parede Ao contraacuterio a enunciaccedilatildeo que soacute representa refere-se segundo
seu sentido mais proacuteprio ao quadro real na parede Soacute ele eacute visado e nada que
dele difira () O enunciar eacute um ser voltado para a coisa sendo ela mesma E que
eacute comprovado pela percepccedilatildeo Nada senatildeo que o percebido eacute o mesmo ente
visado na enunciaccedilatildeoConfirma-se que o ser enunciante para o enunciado eacute um
mostrar o ente que ele descobre o ente para o qual se volta Eacute comprovado o ser-
descobridor da enunciaccedilatildeo () o conhecer permanece referido unicamente ao
ente ele mesmo Eacute neste mesmo que se joga por assim dizer a confirmaccedilatildeo O
ente visado se mostra ele mesmo assim como ele eacute em si mesmo () A
enunciaccedilatildeo eacute verdadeira significa que ela descobre o ente em si mesmo Ela
enuncia mostra lsquofaz verrdquo (αποφανσις) o ente em seu ser-descoberto O ser
verdadeiro (verdade) da enunciaccedilatildeo se deve entender como um ser-descobridorrdquo
(Heidegger 2012 pp603-605)
O termo grego ldquoapophantikoacutesrdquo pela junccedilatildeo entre ldquoapordquo [ldquopara forardquo ldquomostrarrdquo
ldquotornar conhecidordquo] e ldquophaineinrdquo [ldquoexibir mostrarrdquo (derivado de lsquophosrsquo ldquoluzrdquo - mesma
raiz da palavra phainoacutemenon)] manteacutem sua forccedila quando articulado com as palavras
120
ldquoAuslegungrdquo e ldquoAussagerdquo Pois tal como ldquoapordquo ldquoausrdquo eacute o prefixo de liacutengua alematilde usado
nessas palavras com o sentido da preposiccedilatildeo aus que significa ldquopara forardquo ldquoderdquo Assim
uma vez interpretado (Auslegung) o ente enunciado (Aussage) jaacute mostrou jaacute trouxe a si
mesmo a conhecimento e desvelou-se como ente e nisso consiste sua verdade originaacuteria
(Aleacutetheia)
O retorno de Heidegger agrave ldquoforccedila das palavras mais elementaresrdquo ou agraves palavras
gregas como loacutegos dikeacute physis teacutechne e aleacutetheia eacute a tentativa de ir aleacutem da
sedimentaccedilatildeo histoacuterica das palavras Dito de outra forma voltar agrave origem dos termos
atraveacutes dos quais o pensamento filosoacutefico teria alcanccedilado lsquoas coisas mesmasrsquo coisas essas
que agora no presente permanecem veladas por camadas interpretativas cotidianas e
teoacutericas Sendo a concepccedilatildeo de que a proposiccedilatildeo eacute o lugar privilegiado da verdade uma
das maiores expressotildees da tradiccedilatildeo metafiacutesica Portanto eacute tarefa a que Ser e Tempo se
propotildee eacute a da descriccedilatildeo desse lugar originaacuterio ndash de mostraccedilatildeo - dos fenocircmenos
Mas se eacute o ser-aiacute na abertura de sentido fundamental que mobiliza os entes em seu
ser qual o papel desse ente marcado pela existecircncia em meio agrave verdade agora
compreendida como Aleacutetheia A compreensatildeo enquanto acontecimento de sentido
primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode custodiar o sentido
de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento
ldquoO ser-verdadeiro como ser-descobridor soacute eacute de sua parte ontologicamente
possiacutevel sobre o fundmento do ser-no-mundo Este fenocircmeno no qual
reconhecemos uma constituiccedilatildeo fundamental do Dasein eacute o fundamento do
fenocircmeno originaacuterio da verdade () Na medida em que o Dasein eacute
essencialmente sua abertura e aberto abre e descobre ele eacute essencialmente
verdadeiro O Dasein eacute lsquona verdadersquordquo (HEIDEGGER 2012 pp607-611)
O ser-aiacute em sua unidade fenomecircnica como cuidado ou preocupaccedilatildeo (Sorge)
revelou-se como o fundamento sem fundamento da abertura compreensiva portanto
aquele que como ser-no-mundo pode abrir o sentido de ser de todo ente e de suas
possibilidades Poreacutem como projeto-jogado eacute tambeacutem aquele que pode perder-se e natildeo
tornar transparente essa condiccedilatildeo ontoloacutegica fundamental o que frequentemente jaacute faz
pois sempre jaacute custodiou seu ser no mundo suas orientaccedilotildees cotidianas as sedimentaccedilotildees
121
significativas e as concepccedilotildees de verdade calcificadas Por isso o Dasein eacute o ente que
tambeacutem estaacute na natildeo-verdade (Umwahrheit)81
Recuperemos o sentido efetivo de desvelamento ldquoA aleacutetheia eacute precisamente o
que aponta para o velamento (lethe) que ficou para traacutes que mostra para aquilo que a
sustenta como presenccedila Eacute graccedilas agrave presenccedila da aleacutetheia que se torna possiacutevel a
objetivaccedilatildeo e se torna possiacutevel aquilo que o sujeito pode objetivarrdquo (STEIN2001 p89)
Em outras palavras algo soacute pode vir ao encontro em sua presenccedila (o ente soacute pode vir ao
encontro em seu significado) no desvelamento originaacuterio de seu ser mas a mostraccedilatildeo dos
fenocircmenos eacute sempre oferecida de maneira dissimulada sempre em uma objetificaccedilatildeo de
seu ser como ente determinado pois ldquoos fenocircmenos em geral soacute se deixam apresentar na
medida em que partimos de seu encobrimento Sem isso o conceito heideggeriano de
descoberta perde seu sentido mais efetivordquo (FIGAL 2005 p46) Entatildeo ldquodizer que o
Dasein estaacute e natildeo estaacute na verdade eacute compreender que o encobrimento (Verschlossenheit)
eacute [] a contraparte da aberturardquo (NUNES 2012 p197)
Depois dessa exposiccedilatildeo eacute necessaacuterio apresentar como a linguagem estaacute assentada
na constituiccedilatildeo proacutepria ao ser-aiacute em relaccedilatildeo agrave verdade Tentaremos mostrar como o
discurso (Rede) eacute para Heidegger o fundamento ontoloacutegico da linguagem mas ao
mesmo tempo como o proacuteprio fenocircmeno da linguagem jaacute sempre se apresenta como
falatoacuterio (Gerede) Essa eacute a tarefa do proacuteximo e uacuteltimo capiacutetulo de nosso trabalho
81 Cf HEIDEGGER 2012 sect44 p615
122
Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)
Em vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdos Sob a pele das palavras haacute cifras e coacutedigos O sol consola os doentes e natildeo os renova
As coisas Que tristes satildeo as coisas consideradas sem ecircnfase (A flor e a naacuteusea Carlos Drummond de Andrade)
Introduccedilatildeo
No capiacutetulo anterior descrevemos de que modo o fenocircmeno da linguagem eacute
apresentado pela primeira vez em Ser e Tempo como ldquocomunicaccedilatildeo enunciativardquo e ainda
como a linguagem eacute derivada da mostraccedilatildeo preacutevia dos entes em seu ser a partir da relaccedilatildeo
primaacuteria ser-aiacute como ser-no-mundo O Dasein como ente privilegiado estaacute remetido ao
mundo e sempre jaacute possui uma compreensatildeo preacutevia do ser A compreensatildeo ou
entendimento (Verstehen) de ser eacute o fundamento originaacuterio da verdade agora
compreendida como desvelamento aleacutetheia Poreacutem desvelar eacute apontar para o que
permanece velado ou seja a contraparte da abertura eacute o velamento
Mesmo sem se transformar em problema no presente trabalho desde os gregos a
ontologia sempre esteve atrelada agrave linguagem ou de forma mais precisa agrave sua purificaccedilatildeo
material agrave busca do loacutegos Lembremos dos diaacutelogos platocircnicos sobretudo os aporeacuteticos
que se assemelham a uma trageacutedia da linguagem E tambeacutem das categorias aristoteacutelicas
que compotildeem as quatro possibilidades semacircnticas Ou ainda na escolaacutestica e na querela
dos universais a importacircncia da linguagem enfatizando seu aspecto loacutegico para se
estabelecer o que eacute Como esqueceriacuteamos os versos de Parmecircnides ldquoNatildeo conheceraacutes o
123
que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o enunciaraacutes82rdquo E tambeacutem sua advertecircncia de que
somos biceacutefalos Por isso precisamos a partir de Heidegger mostrar como estamos em
fuga do solo em que o loacutegos se mostra Eacute a tarefa de nosso quarto e uacuteltimo capiacutetulo
Nele examinaremos especialmente as noccedilotildees de discurso (Rede) interpretado por
Heidegger como fundamento ontoloacutegico da linguagem e falatoacuterio (Gerede) como um
fenocircmeno atraveacutes do qual a proacutepria linguagem sempre se apresenta Na repeticcedilatildeo
incessante e difusatildeo da linguagem no mundo cotidiano o mundo eacute tomado sempre como
descoberto e os entes sempre disponiacuteveis A essa repeticcedilatildeo do discurso no mundo
cotidiano Heidegger chama de ldquoGerederdquo que pode ser traduzido por ldquofalatoacuteriordquo ou
ldquotagarelicerdquo Referir-se ao falatoacuterio natildeo eacute desqualificar a linguagem cotidiana pois o que
esta expressatildeo indica eacute um fato jaacute encerrado um discurso jaacute concluiacutedo ou seja as coisas
tomadas como oacutebvias e sempre disponiacuteveis pelos nossos recursos linguiacutesticos
I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem
A anaacutelise do discurso (Rede) por Heidegger eacute apresentada no sect34 de Ser e Tempo e
eacute assim descrita
ldquoCom a enunciaccedilatildeo ficou visiacutevel um derivado extremo da interpretaccedilatildeo A
elucidaccedilatildeo da terceira significaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo (ou
manifestaccedilatildeo verbal) conduziu ao conceito de dizer e falar que intencionalmente
sem duacutevida natildeo fora considerado ateacute aquele momento O fato de que a linguagem
seja tematizada somente agora deve servir de indicaccedilatildeo de que esse fenocircmeno
tem suas raiacutezes na constituiccedilatildeo existenciaacuteria da abertura do Dasein O fundamento
ontoloacutegico-existenciaacuterio da linguagem eacute o discurso () O discurso eacute
existenciariamente de igual originariedade que o entenderrdquo (HEIDEGGER
2012 p453)
Esse trecho nos coloca diante de uma constataccedilatildeo reveladora Afinal o que
fundamenta a linguagem estaacute remetido a abertura primaacuteria de sentido Mas isso jaacute natildeo
estaacute claro a partir da descriccedilatildeo da enunciaccedilatildeo De certa forma sim contudo de maneira
indireta pois a enunciaccedilatildeo (Aussage) comunicativa estaacute remetida aos significados ou
seja ao entendimento jaacute articulado e interpretado Agora poreacutem o que Heidegger nos
82 Traduccedilatildeo retirada de CORDERO Neacutestor Luis Sendo se eacute A tese de Parmecircnides Trad Eduardo
Wolf Satildeo Paulo Odysseus 2011pp221-249
124
apresenta eacute o discurso como fundamento da interpretaccedilatildeo e da enunciaccedilatildeo De outra
forma o fundamento da linguagem na proacutepria abertura de sentido (Sinn) de maneira que
o discurso eacute o proacuteprio entendimento articulado que pode interpretar
ldquoO discurso eacute a articulaccedilatildeo da entendibilidade Por isso o discurso fundamenta a
interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo Ao que pode ser articulado na interpretaccedilatildeo e
mesmo mais originariamente jaacute no discurso demos o nome de sentido O
articulado na articulaccedilatildeo discursiva como tal denominamos de o-todo-da-
significaccedilatildeo e este pode ser decomposto em significaccedilotildees As significaccedilotildees como
o articulado do articulaacutevel satildeo sempre providas de sentido () A entendibilidade
do encontrar-se do ser-no-mundo exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER
2012 p455)
O tratamento sobre o discurso (Rede) em Ser e Tempo eacute pouco extensivo mas
cabe a noacutes tentar compreendecirc-lo em todo sua radicalidade O iniacutecio da filosofia grega
denominado como ldquofilosofia da naturezardquo eacute marcado pela tentativa de encontrar a ordem
imanente agrave totalidade substancial do mundo material Essa totalidade estaacute expressa na
palavra physis que nada tem a ver com a natureza empiacuterica e manipulaacutevel que
conhecemos hoje pelas ciecircncias naturais83 Essa totalidade soacute pode ser vista como tal em
sua constituiccedilatildeo una se suas partes estiverem organicamente reunidas sem as quais natildeo
haacute totalidade mas eacute a partir da totalidade que as partes ganham sentido Mesmo que
Heidegger natildeo trate o discurso nesses termos e ainda mesmo que o termo physis apoacutes a
viragem ganhe uma conotaccedilatildeo toda especiacutefica nos valemos dessa explicaccedilatildeo para tentar
compreender a especificidade do discurso Desse modo podemos observar o que estaacute em
jogo no trecho acima O discurso eacute a articulaccedilatildeo da abertura de sentido sem ele o todo
natildeo poderia ser decomposto e a totalidade seria apenas um todo indistinto Nesse sentido
que o discurso fundamenta a interpretaccedilatildeo e a enunciaccedilatildeo E isso nos revela um pouco
mais
ldquoA tatildeo comum definiccedilatildeo do iniacutecio da filosofia como a substituiccedilatildeo da explicaccedilatildeo
miacutetica ou (como eacute o recorte nos manuais de histoacuteria da filosofia) a passagem do
mito ao logos eacute por demais simplista para descrever o que representou a histoacuteria
e filosoficamente essa origem Compreender a filosofia antiga a partir da relaccedilatildeo
entre logos e physis eacute de fato compreender que o iniacutecio da especulaccedilatildeo filosoacutefica
sobre o mundo eacute em grande parte acompanhado pela tradiccedilatildeo miacutetica grega de
unidade entre espiacuterito e natureza e ao mesmo tempo pelo iniacutecio de um certo
83 Cf GONCcedilALVES M 2006 pp7-11
125
estranhamento entre o ser humano pensante e o ser natural ou () a natureza em
sua totalidaderdquo (GONCcedilALVES 2006 p12)
Como vimos o loacutegos para Heidegger natildeo eacute algo que estaacute no Dasein e por isso ele
pode pensar a totalidade Loacutegos segundo Heidegger em seu sentido originaacuterio grego natildeo
eacute ratio Ao contraacuterio o loacutegos estaacute na totalidade ele eacute a articulaccedilatildeo da totalidade que se
mostra ao mostrar os entes ou os fenocircmenos (loacutegos eacute loacutegos apofacircntico) E por isso o ser-
aiacute o acessa inicialmente de modo praacutetico pois natildeo se separa dessa totalidade (por isso a
originariedade da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser no trato praacutetico (Zuhanden) a partir da
conjuntaccedilatildeo (Bewandtnis) significativamente articulada) Na realidade o ser-aiacute soacute se
afasta dessa totalidade quando natildeo acessa mais o loacutegos de maneira originaacuteria relativo agrave
derivaccedilatildeo como ente simplesmente dado (Vorhanden) fazendo emergir algo como
significado (Bedeutung) que ganha sua forma expressa a partir do fenocircmeno da
enunciaccedilatildeo (Aussage)
Mas qual a relaccedilatildeo entre loacutegos e discurso (Rede) Precisamos ir ao sect7 de Ser e
Tempo ldquoQuando dizemos que o significado-fundamental de λόγος eacute discurso essa
traduccedilatildeo literal soacute eacute plenamente validada a partir da determinaccedilatildeo do que o discurso ele
mesmo significardquo (HEIDEGGER 2012 p113) Loacutegos e discurso satildeo portanto o mesmo
Mas isso soacute torna a questatildeo ainda mais difiacutecil Afinal o loacutegos como loacutegos apofacircntico natildeo
eacute o mostrar do ente em seu ser Como mostrar e dizer podem ser o mesmo
ldquoλόγος como discurso significa () algo assim como δηλοῦν tornar manifesto
aquilo de que lsquose discorrersquo no discurso Aristoacuteteles explicitou mais nitidamente
essa funccedilatildeo do discurso como αποφανέσται O λόγος faz ver algo (φαίνεισθαι) a
saber aquilo sobre o que se discorre e faz ver a quem discorre (voz media) e aos
que discorrem uns com os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p113)
Discurso eacute a mostraccedilatildeo (ἀπόφανσις) que torna-se clara (δηλοῦν) Lembremos que
a plurivocidade do ente na tradiccedilatildeo loacutegica estaacute assentada nas possibilidades semacircnticas
submetidas a um princiacutepio loacutegico fundamental o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo vinculado
ao princiacutepio de identidade Pensamos que o que Heidegger potildee em tela eacute que a
ldquoidentidaderdquo e a ldquonatildeo-contradiccedilatildeordquo natildeo satildeo princiacutepios loacutegicos mas o mostrar e o torna-
se claro dos fenocircmenos em seu ser na totalidade articulada Ou seja o sentido de ser dos
126
fenocircmenos o mostrar o existente como existente eacute o loacutegos que manifesta e diz a si
mesmo pois reporta-se a palavra legein tornar manifesto aquilo de que se fala num
discurso deixar que algo seja visto manifesto porque posicionado em relaccedilatildeo uns com
os outros Tentemos esboccedilar um exemplo mas natildeo esqueccedilamos a fragilidade das palavras
sedimentas e o obscurecimento que elas oferecem a problemaacutetica ontoloacutegica Quando no
nosso cotidiano uma mesa ldquode trabalhordquo sem os livros sem a cadeira sem as canetas e
sobretudo sem a intenccedilatildeo de ser usada para o trabalho natildeo possui qualquer sentido Ela
eacute apenas um pedaccedilo de madeira ou mesmo passa obtusa aos nossos olhos Do mesmo
modo os livros as canetas e a cadeira A articulaccedilatildeo preacutevia desses objetos ou em seu
sentido ontoloacutegico a articulaccedilatildeo desses fenocircmenos eacute o que faz com que cada um deles
possa ser visto como um ldquoistordquo Notemos como o exemplo nos reporta exatamente a noccedilatildeo
de Umwelt descrita por Heidegger O que o discurso indica eacute a articulaccedilatildeo preacutevia para
que as coisas apareccedilam como tais jaacute no mundo circundante Articulaccedilatildeo anterior a
qualquer interpretaccedilatildeo de um ldquoistordquo ou de algo como algo e consequentemente anterior
ao enunciado (Aussage) Assim o caraacuteter ontoloacutegico dessa articulaccedilatildeo sempre dada a
noacutes em um mundo jaacute descerrado em que pode-se travar atividades praacuteticas com os entes
e em uacuteltima instacircncia falar de ldquomesardquo ldquocadeirardquo ldquocanetardquo etc eacute dado pelo discurso (die
Rede) compreendido como sendo o significado fundamental de λόγος
Nesse sentido podemos ver tambeacutem o caraacuteter intencional do discurso Como
indicamos no capiacutetulo anterior loacutegos como loacutegos apofacircntico possui uma ligaccedilatildeo com os
entes na medida que diz o que de algum modo eacute (loacutegos tinoacutes) Dizer que ldquoalgo eacute xrdquo ou
que ldquoalgo natildeo eacute xrdquo eacute possiacutevel primariamente pela mostraccedilatildeo do ente em seu ser da
mostraccedilatildeo de algo como algo e algo junto com No interior da estrutura do proacuteprio λόγος
ao mostrar que algo eacute diz tambeacutem como ele eacute ou como ele natildeo eacute
ldquoPara tanto tomar-se-aacute uma sentenccedila elementar como exemplo de realizaccedilatildeo do
discurso (λόγος) ldquoa caneta eacute azulrdquo Acabou-se de dizer que um dos elementos
constitutivos do falar (λέγειν) eacute o sobre-o-quecirc Este sobre-o-quecirc em direccedilatildeo ao
qual se realiza o movimento intencional de desvelamento se encontra
simplesmente dado como um todo discreto e a interpelaccedilatildeo discursiva destaca
dele certos elementos O que ocorre ao se proferir o enunciado do tipo ldquoa caneta
eacute azulrdquo eacute uma cisatildeo de um todo subsistente o discurso opera no uno indistinto a
fixaccedilatildeo de limite de certas determinaccedilotildees particulares de modo a destacar
componentes pertencentes a esse elemento temaacutetico da fala () Assim natildeo se
tem uma mostraccedilatildeo da totalidade do sobre-o-quecirc mas apenas de determinados
aspectos seus Juntamente com este movimento de distinccedilatildeo do discurso
denominado de cisatildeo (διαίρεσις) ocorre outro a siacutentese (σύνθεσις) Dissociando-
127
se do todo indistinto certos elementos a ele pertencentes estes natildeo satildeo
simplesmente colocados uns ao lado dos outros Ao fixar os limites das
determinaccedilotildees pertencentes ao uno discreto o discurso reuacutene os elementos que
foram por ele destacados posicionando-os uns com os outros Assim a
interpelaccedilatildeo discursiva que demarca um elemento temaacutetico como sendo caneta e
azul atribui a cor azul ao ente utilizaacutevel caneta sendo esses elementos
visualizados conjuntamente como um no enunciado ldquoa caneta eacute azulrdquo Atraveacutes da
siacutentese o que se dava como um todo indistinto eacute visualizado em sua unidade
destacada por determinados aspectos seus Com base nesses dois momentos a
siacutentese (σύνθεσις) e a cisatildeo (διαίρεσις) vecirc-se que o desencobrimento realizado
pelo discurso eacute uma articulaccedilatildeo delimitadora do quecirc para o qual ele se dirigerdquo
(SALGADO 2015 p145)
Contudo o discurso natildeo eacute apenas o ldquosobre-quecircrdquo a ele tambeacutem pertencem ldquoo dito
discursivamente como tal a comunicaccedilatildeo e o anuacutenciordquo (HEIDEGGER 2012 p459) Isto
porque ldquoo discurso eacute a articulaccedilatildeo significacional da entendibilidade [ou da compreensatildeo
(Verstehen)] do encontrar-se (befindlichen) no ser-no-mundordquo (HEIDEGGER 2012
p459) Ou seja natildeo eacute apenas aos entes e a um estado de coisas natildeo conforme ao ser-aiacute
que o discurso se reporta Mas a proacutepria abertura que possui sentido sendo o sentido
ldquoaquilo que a entendibilidade de algo se manteacutem Denominamos sentido o que eacute
articulaacutevel no abrir que entenderdquo (HEIDEGGER 2012 p429) O discurso como o
significado originaacuterio de loacutegos eacute o proacuteprio ser-no-mundo Pois na medida em que a
proacutepria abertura compreensiva se manteacutem por estar articulada pode sustentar em seu
acircmbito o que quer que seja entes sensaccedilotildees projetos etc E para fora dela bem natildeo haacute
nem mesmo fora Nesse sentido que ldquoa entendibilidade do encontrar-se do ser-no-mundo
exprime-se como discursordquo (HEIDEGGER 2012 p455) e ldquoo todo-de-significaccedilatildeo da
entendibilidade acede agrave palavra Das significaccedilotildees nascem as palavras e natildeo satildeo as
palavras que entendidas como coisas se proveem de significaccedilotildeesrdquo (HEIDEGGER
2012 p455) A situaccedilatildeo insustentaacutevel de considerar as palavras como as portadoras
originaacuterias de significados pode ser exemplificada por um trecho da obra Cem anos de
solidatildeo de Gabriel Garciacutea Maacuterquez no momento em que Joseacute Arcadio Buendiacutea previu
que as inscriccedilotildees graacuteficas poderiam natildeo mais reportar agrave utilidade das coisas
ldquoFue Aureliano quien concibioacute la foacutermula que habiacutea de defenderlos durante varias
meses de las evasiones de la memoria La descubrioacute por casualidad Insomne
experto por haber sido uno de las primeros habiacutea aprendido a la perfeccioacuten el
arte de la plateriacutea Un diacutea estaba buscando el pequentildeo yunque que utilizaba para
laminar los metales y no recordoacute su nombre Su padre se lo dijo laquotasraquo Aureliano
128
escribioacute el nombre en un papel que pegoacute con goma en la base del yunquecito tas
Asiacute estuvo seguro de no olvidarlo en el futuro No se le ocurrioacute que fuera aquella
la primera manifestacioacuten del olvido porque el objeto teniacutea un nombre difiacutecil de
recordar Pero pocos diacuteas despueacutes descubrioacute que teniacutea dificultades para recordar
casi todas las cosas del laboratorio Entonces las marcoacute con el nombre respectivo
de modo que le bastaba con leer la inscripcioacuten para identificarlas Cuando su
padre le comunicoacute su alarma por haber olvidado hasta los hechos maacutes
impresionantes de su nintildeez Aureliano le explicoacute su meacutetodo y Joseacute Arcadio
Buendiacutea lo puso en praacutectica en toda la casa y maacutes tarde la impuso a todo el pueblo
Con un hisopo entintado marcoacute cada cosa con su nombre mesa silla reloj
puerta pared cama cacerola Fue al corral y marcoacute los animales y las plantas
vaca chivo puerca gallina yuca malanga guineo Paca a poca estudiando las
infinitas posibilidades del olvido se dio cuenta de que podiacutea llegar un diacutea en que
se reconocieran las cosas por sus inscripciones pero no se recordara su utilidad
Entonces fue maacutes expliacutecito El letrero que colgoacute en la cerviz de la vaca era una
muestra ejemplar de la forma en que los habitantes de Macondo estaban
dispuestas a luchar contra el olvido Eacutesta es la vaca hay que ordentildearla todas las
mantildeanas para que produzca leche y a la leche hay que herviriacutea para mezclarla
con el cafeacute y hacer cafeacute con lecherdquo (MAacuteRQUEZ 1999 p102)
A doenccedila da insocircnia em Macondo na obra de Maacuterquez e o esquecimento como
sua consequecircncia eacute ndash se nos permitem uma comparaccedilatildeo livre ndash como na cotidianidade
consideramos os entes disponiacuteveis e sempre presentes Partimos sempre desse
encobrimento oferecido pela liacutengua que a cada vez quer fixar os entes e assim as palavras
satildeo instrumentalizadas pois definem afinal nessa insocircnia o que cada coisa eacute O
esquecimento eacute portanto o desligamento da mostraccedilatildeo originaacuteria dos entes em seu ser
E em uacuteltima medida o esquecimento da verdade como desvelamento (Aleacutetheia) Dito de
outro modo aquilo que Heidegger jaacute havia indicado em 1923-1924 ldquoO que importa eacute
somente que essas coisas existem aiacute () Mas que falte um nome para essas coisas mostra
contudo que nossa liacutengua (teoria das categorias) eacute uma liacutengua do dia84(HEIDEGGER
2006p31)
Mas o que consiste esse dizer falar do discurso Se ele eacute o fundamento ontoloacutegico
da linguagem certamente natildeo eacute o mesmo que profericcedilotildees verbais e nominais e sobretudo
natildeo diz respeito a natureza fiacutesica da produccedilatildeo e da percepccedilatildeo dos sons da fala humana
como compreende o estudo da foneacutetica Heidegger nos apresenta entatildeo como o dizer do
discurso pode ser visualizado de forma clara pelo ouvir
84 Cf Nota 45
129
ldquoA conexatildeo do discurso com o entender e com a entendibilidade se torna clara a
partir de uma possibilidade existenciaacuteria do discurso ele mesmo a saber a partir
do ouvir Natildeo eacute por acaso que ao natildeo ouvir lsquodireitorsquo dizemos natildeo lsquoter entendidorsquo
Para o discurso o ouvir eacute constitutivo E assim como a prolaccedilatildeo verbal se funda
no discurso a percepccedilatildeo acuacutestica tambeacutem se funda no ouvir () O Dasein ouve
porque entende Como entendedor ser-no-mundo com os outros ele eacute no seu
ouvir lsquoobedientersquo ao Dasein-com e a si mesmo e nessa audiecircncia obediente ele
se torna dependenterdquo (HEIDEGGER 2012 p461)
Essa dependecircncia diz respeito agrave articulaccedilatildeo jaacute aberta de um mundo descerrado O
discurso articula um mundo esse que sempre nos movimentamos e nos orientamos Sem
essa obediecircncia natildeo haveria qualquer possibilidade de accedilotildees e projetos do ser-aiacute E o
ouvir como possibilidade existenciaacuteria do discurso eacute a manifestaccedilatildeo de seu traccedilo
intencional que ilumina sua presenccedila na abertura de sentido Pois o ouvir eacute o fundamento
ontoloacutegico do escutar ldquofenomenicamente mais originaacuterio do que se determina lsquode
imediatorsquo em psicologia como ouvir ter sensaccedilotildees de sons e perceber ruiacutedosrdquo
(HEIDEGGER 2012 p461) De modo mais claro o fenocircmeno desde Husserl indica
aquilo que se manifesta o modo de doaccedilatildeo fenomecircnico eacute sempre uma doaccedilatildeo com
significado Assim a intencionalidade fenomenoloacutegica para Heidegger agora voltada ao
mundo e a facticidade como o campo de mostraccedilatildeo dos fenocircmenos em seu ser acontece
na e pela articulaccedilatildeo discursiva que ouve porque jaacute articulou a totalidade e por isso
entende tendo em vista que essa totalidade natildeo se apresenta como um todo indistinto Ou
seja o ser-aiacute em sua constituiccedilatildeo primaacuteria voltado agrave abertura compreensiva articulada
pelo discurso pode escutar a doaccedilatildeo fenomecircnica
ldquolsquoDe imediatorsquo nunca ouvimos barulhos e o conjunto de ruiacutedos mas o carro que
range a motocicleta O que se ouve eacute a coluna em marcha o vento norte o pica-
pau bicando o fogo crepitando Eacute preciso uma atitude muito artificial e
complicada para lsquoouviursquo um lsquobarulho purorsquo Que em primeiro lugar ouccedilamos
motocicletas e carros eacute a prova fenomecircnica de que o Dasein como ser-no-mundo
manteacutem-se cada vez junto ao utilizaacutevel do interior-do-mundo e de modo algum
imediatamente junto a lsquosensaccedilotildeesrsquo cuja concatenaccedilatildeo tivesse primeiramente de
ser formada para que se proporcionasse o trampolim a partir do qual o sujeito
saltaria para alcanccedilar finalmente um lsquomundorsquo O Dasein como essencialmente
entendedor eacute de pronto junto ao entendidordquo (HEIDEGGER 2012 p461)
A doaccedilatildeo fenomecircnica possibilitada pelo traccedilo intencional do discurso se estende
agrave escuta e ao calar de um outro ser-aiacute pois como ser-no-mundo que eacute sempre ser-com-
os-outros o Dasein jaacute estaacute ldquode antematildeo com o outro junto ao ente sobre o qual discorrerdquo
130
(HEIDEGGER 2012 p463) Por isso quando outra pessoa nos fala algo natildeo ouvimos
primeiramente os sons para depois agregaacute-los e formarmos palavras compreensiacuteveis Ou
ainda quando o outro silencia ainda expressa algo e tambeacutem pode lsquodar a entenderrsquo
ldquoOuvindo compreendemos o que o interlocutor diz E o dizer nos coloca de
imediato com o interlocutor junto ao ente a respeito do qual o discurso se
pronuncia O genuiacuteno silecircncio tambeacutem modo de ouvir e de dizer calando Essa
preeminecircncia do dizer se reflete nos componentes dos do discurso que se
estruturam a partir daquilo que acede agrave palavra do ente que ela torna manifesto
Dizer algo de certa maneira para algueacutem numa tonalidade ou disposiccedilatildeo de
acircnimo nisso consiste o fenocircmeno do discurso em sua completa estrutura
comunicativa-expressivardquo (NUNES 2012 p 170)
Poderiacuteamos dizer que a articulaccedilatildeo da compreensatildeo (Verstehen) pelo discurso
(Rede) na reuniatildeo dos elementos que foram por ele destacados posicionando-os
discursivamente opera como a harmonia de uma muacutesica que daacute aos fenocircmenos seu lugar
na melodia em funccedilatildeo do ritmo Sendo o ritmo o ldquomundordquo como abertura histoacuterica que
sustenta o sentido de ser de cada parte da melodia que continuaraacute agrave tona ou que teraacute
sentido
Portanto para o ser-aiacute estar lanccedilado em um mundo como projeto-jogado eacute estar
familiarizado atraveacutes da abertura que entende dispositivamente o horizonte de sentido E
esse horizonte eacute compartilhado por todos que convivem em um mesmo mundo faacutetico e eacute
neste sentido que a comunicaccedilatildeo o terceiro significado de enunciaccedilatildeo como vimos no
capiacutetulo anterior ldquoefetua lsquoa partilharsquo do co-encontrar-se e do entendimento do ser-comrdquo
(HEIDEGGER 2012 p457) O que eacute compartilhado natildeo eacute meramente um conteuacutedo
significativo de um lsquopacto-linguiacutesticorsquo assim como comunicar natildeo eacute trazer um desejo
uma expressatildeo uma afirmaccedilatildeo de lsquoforarsquo de um sujeito para o lsquointeriorrsquo de outro mas ldquosua
tendecircncia-de-ser consiste em pretender que o ouvinte participe do ser aberto por aquilo-
sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012 p 473) ou seja a partilha da
experiecircncia da abertura compreensiva jaacute articulada como horizonte de possibilidades que
vem agrave linguagem De outro modo
ldquoDado que o fundamento ontoloacutegico natildeo possui existecircncia agrave parte daquilo que
funda o discurso que eacute a condiccedilatildeo transcendental da linguagem relevando-se da
abertura do Dasein de seu ser-no-mundo tambeacutem eacute lsquolinguagem extensivarsquo (SZ
p61) Inversamente a linguagem como totalidade de palavras (Wortganzheit) de
uma liacutengua eacute o discurso pronunciado De onde se conclui que a primeira eacute a forma
131
estabilizada do segundo na perspectiva do ser-no-mundo da existecircncia cotidiana
que lhe impotildee a condiccedilatildeo de ente intramundano como utensiacutelio As palavras que
podem espedaccedilar-se e coisificar-se seriam o veiacuteculo dessa condiccedilatildeo instrumental
() E que eacute aceder agrave palavra senatildeo falar e que eacute falar senatildeo usar a linguagem
Satildeo pois equivalentes as duas afirmaccedilotildees de Heidegger- que ser no-mundo eacute
falante e que ele tem linguagem (Sprache)() Ambas concernem a um soacute
fenocircmeno captado no conceito aristoteacutelico de homem como ser capaz de falar ndash
zoacuteon loacutegon eacutechon- complemento agrave tese do zoacuteon politikoacuten (animal poliacutetico) - que
revela a interlocuccedilatildeo o lsquofalar uns com os outrosrsquo em que o cotidiano grego estava
politicamente enraizadordquo (NUNES 2012 p170)
Eacute um tanto embaraccediloso os caminhos conceituais que levam o discurso (die Rede)
agrave linguagem (die Sprache) e ainda como essa se apresenta sempre como falatoacuterio (das
Gerede) pela essecircncia mesma da comunicaccedilatildeo (Mitteilung) Pois a linguagem cotidiana
- o dizer uns com os outros em um mundo faacutetico - eacute um discurso que jaacute se expressou ou
seja o acontecimento da linguagem jaacute eacute articulado por um discurso preacutevio e o discurso
jaacute expresso eacute comunicaccedilatildeo Mesmo que a analiacutetica indique uma estratificaccedilatildeo e ainda a
fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da linguagem pelo discurso haacute um caraacuteter ciacuteclico
consequecircncia mesma do ciacuterculo hermenecircutico Se as palavras natildeo tecircm significados fixos
mas histoacutericos provenientes de uma abertura de sentido articulada que sustenta esses
significados Ainda assim os significados acumulam-se nas palavras e essas satildeo afinal a
maneira pela qual o mundo eacute dito nas relaccedilotildees interpessoais e nas relaccedilotildees das pessoas
com as coisas Desse modo se os significados acumulam-se nas palavras o discurso (die
Rede) sempre se manifesta na linguagem cotidiana E eacute na cotidianidade que a absorccedilatildeo
da linguagem eacute imediatamente tomada pela impessoalidade atraveacutes do uso instrumental
das palavras na tendecircncia de oferecer um mundo sempre estaacutevel Eacute essa uacuteltima descriccedilatildeo
que Heidegger chama de falatoacuterio (Gerede) Pois
ldquoO substantivo alematildeo Rede deriva-se diretamente do verbo reden que significa
falar O particiacutepio dos verbos em alematildeo eacute feito na maior parte das vezes por meio
da inserccedilatildeo da partiacutecula lsquogersquo() O que temos na cotidianidade mediana do ser-
aiacute eacute falatoacuterio natildeo porque podemos constatar empiricamente um esvaziamento da
linguagem impessoal e porque sempre eacute possiacutevel acompanhar a falta de
profundidade desses discursos Ao contraacuterio eacute falatoacuterio porque natildeo se realiza
senatildeo a partir de um ato jaacute concluiacutedordquo (CASANOVA 2006 p63)
Mas antes de passarmos agrave descriccedilatildeo do falatoacuterio eacute preciso indicar como esses
ldquoembaraccedilos conceituaisrdquo em torno do discurso indicam a ldquotransiccedilatildeo do pensamento
132
heideggeriano ndash em sua segunda fase nucleado em torno da linguagem- ldquo(NUNES 2012
p169) pois ldquoestampam-se na proacutepria equivocidade do termo designativo die Rede que
significa aleacutem de discurso conversaccedilatildeo e pronunciamentordquo (NUNES 2012 p169)
Essa equivocidade torna-se clara no fato que o discurso (die Rede) natildeo se funda em
qualquer ekstase determinada ou seja natildeo eacute possiacutevel encontrar na temporalidade do ser-
aiacute um momento constitutivo no qual ele emerge Dando assim em Ser e Tempo um
caraacuteter transcendental ao discurso
ldquoconotando o loacutegos grego retraduzido o discurso que nos daria a plena abertura
do Dasein em seu aiacute eacute incluindo portanto a disposiccedilatildeo de acircnimo eacute como modo
eminente de temporalizaccedilatildeo a que natildeo cabe o predomiacutenio de um ecircxtase
determinado o existentivo da linguagem o seu fundamento ontoloacutegicordquo
(NUNES 2012 p169)
Apresentamos no capiacutetulo anterior que no sect65 de Ser e Tempo o autor apresenta
o sentido ontoloacutegico da preocupaccedilatildeo (Sorge) na temporalidade (Zeitlichkeit) ldquoO adiantar-
se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O
ser junto-a soacute eacute possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Futuro
(poder-ser) passado (ser-do-sido) e presente (presencizar) natildeo satildeo determinaccedilotildees
temporais como as que tomamos diariamente mas o caraacuteter essencial da
existenciariedade o ser-aiacute em seu caraacuteter de poder-ser eacute sempre adiantado (futuro) em
relaccedilatildeo a si mas projeta sentido remetido ao mundo pois mobiliza as possibilidades na
facticidade dadas pelo passado (a partir da abertura compreensiva oferecida pela tradiccedilatildeo
histoacuterica ) e ao fazecirc-lo jaacute encontra-se em meio aos entes atualizando no presente esse
passado em seus comportamentos e projetos
No Quarto Capiacutetulo da Segunda Seccedilatildeo denominado Temporalidade e
cotidianidade Heidegger retoma a multiplicidade dos fenocircmenos da anaacutelise preparatoacuteria
da primeira seccedilatildeo para compreendecirc-los em sua unidade em funccedilatildeo da totalidade estrutural
fundante da Sorge E se a analiacutetica existenciaacuteria do ser-aiacute inicia sua investigaccedilatildeo a partir
da cotidianidade mediana tendo em vista que a impropriedade oferecida por suas
orientaccedilotildees eacute em suma a orientaccedilatildeo inicial do ser-aiacute para seus possiacuteveis modos de ser Eacute
necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos na cotidianidade a partir da
temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico
133
Nesse sentido no sect 68 item d de Ser e Tempo intitulado ldquoA temporalidade do
discursordquo Heidegger diz A plena abertura do aiacute constituiacuteda pelo entender o encontrar-
se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) recebe a articulaccedilatildeo pelo discurso
(Rede) Por isso o discurso natildeo se temporaliza primariamente numa ekstase determinada
(HEIDEGGER 2012 p949) e ainda o discurso eacute temporal em si mesmordquo
(HEIDEGGER2012 p949) Na continuidade do paraacutegrafo o autor prossegue dizendo
que natildeo obstante o discurso seja expresso na facticidade na linguagem e deste modo o
presente (Gegenwaumlrtige) desempenha uma funccedilatildeo constitutiva ainda assim
Mas porque o discurso cada vez discorre sobre o ente se bem que natildeo primaacuteria
e principalmente no sentido da enunciaccedilatildeo teoacuterica a anaacutelise da constituiccedilatildeo
temporal do discurso e a explicaccedilatildeo dos caracteres temporais das formaccedilotildees da
liacutengua soacute podem ser levados a cabo quando se tenha resolvido o problema da
conexatildeo de princiacutepio de ser e verdade a partir da problemaacutetica da
temporalidade Poder-se-ia delimitar entatildeo o sentido ontoloacutegico do lsquoeacutersquo que uma
superficial teoria da proposiccedilatildeo e do juiacutezo deformou em lsquocoacutepularsquo Soacute a partir da
temporalidade do discurso isto eacute a partir da temporalidade do Dasein em geral
pode-se elucidar a lsquoorigemrsquo e pode-se entender ontologicamente a possibilidade
de uma formaccedilatildeo-do-conceito (HEIDEGGER2012 p949 grifo nosso)
O problema reside no fato de que o Dasein em Ser e Tempo eacute apresentado como
o fundamento sem fundamento de outra forma a compreensatildeo enquanto acontecimento
de sentido primaacuterio eacute remetida ao Dasein que ao compreender jaacute interpreta e pode
custodiar o sentido de ser dos entes portanto fundamento originaacuterio do desvelamento
Entatildeo na medida em que a temporalidade (Zeitlichkeit) eacute o sentido ontoloacutegico desse ente
privilegiado qualquer fenocircmeno exposto na analiacutetica preparatoacuteria precisaria encontrar
seu fundamento ontoloacutegico em alguma ekstase determinada futuro o ser-do-sido ou
presencizar Por exemplo o presente desempenha a funccedilatildeo constitutiva da linguagem
(Sprache) na medida em que o ser-aiacute lanccedilado em um mundo encontra-se em meio aos
entes e jaacute junto aos outros atualizando os significados sedimentados pela linguagem (pela
liacutengua) oferecidos no presente Isso poreacutem natildeo ocorre com o discurso (die Rede) que eacute
ldquotemporal em si mesmordquo Desse modo seu sentido ontoloacutegico ou aquilo que sustenta sua
origem compreendida como seu sentido de ser a partir do desvelamento natildeo eacute elucidado
em Ser e Tempo Pensamos que a partir dessa constataccedilatildeo pelo comprometimento
fenomenoloacutegico de Heidegger a estratificaccedilatildeo da linguagem presente em Ser e Tempo
natildeo pode mais manter-se apoacutes a viragem Pois o fenocircmeno da linguagem precisa ser
134
reconsiderado a partir de si mesmo para que seja possiacutevel encontrar seu fundamento
ontoloacutegico85
Esse breve momento da obra de 1927 acerca da temporalidade do discurso em
Ser e Tempo eacute de extrema importacircncia para pensarmos como o fenocircmeno da linguagem
possui jaacute um importante e amplo papel no interior do tratado Pois ele estaacute intimamente
ligado agrave noccedilatildeo de verdade como desvelamento (Aleacutetheia) revelando natildeo soacute um impasse
acerca da estratificaccedilatildeo da linguagem na obra bem como traz agrave tona que o encobrimento
como contraparte da mostraccedilatildeo dos entes em seu ser ganha uma imagem peculiar
exatamente na manifestaccedilatildeo da linguagem E desse modo apesar da apresentaccedilatildeo do
discurso e de sua especificidade em Ser e Tempo encontramos apenas a descriccedilatildeo da
linguagem (Sprache) que chamamos de ldquonegativardquo como sedimentaccedilatildeo interpretativa
pelo falatoacuterio (Gerede) Eacute o que vamos expor a seguir
II- O Falatoacuterio (das Gerede)
Ainda no sect34 Heidegger alerta que a anaacutelise do discurso (Rede) perdeu de vista a
cotidianidade do ser-aiacute solo fenomecircnico que a analiacutetica se guia naquele momento Pois
as estruturas existenciaacuterias da abertura do ser-no-mundo entender (Verstehen) encontrar
(Befindlichkeit) discurso (Rede) e interpretar (Auslegen) na medida em que se manteacutem
pela abertura primaacuteria do ser-aiacute remetido ao mundo inicialmente no modo de ser de ldquoa-
genterdquo (das Man) devem ser compreendidas em seu modo especiacutefico na cotidianidade
mediana Como o ser-aiacute eacute de iniacutecio lanccedilado nas possibilidades faacuteticas de um mundo
sedimentado a anaacutelise propriamente fenomenoloacutegica deve se orientar pelos fenocircmenos
expressos nesse horizonte
ldquoDe imediato eacute preciso que fique visiacutevel a partir de alguns fenocircmenos
determinados a abertura de a-gente isto eacute pela elucidaccedilatildeo do modo-de-ser-
cotidiano de discurso visatildeo e interpretaccedilatildeo No relativo a esses fenocircmenos natildeo
eacute supeacuterfluo observar que a interpretaccedilatildeo tem um propoacutesito puramente ontoloacutegico
estando muito longe de uma criacutetica moralizante do Dasein cotidiano e estaacute muito
longe de qualquer aspiraccedilatildeo de lsquofilosofia da culturarsquordquo (HEIDEGGER 2012
p471)
85 Nesse sentido Cf LAFONT 1997 pp46-52
135
A anaacutelise do que Heidegger denomina ldquoA-genterdquo (das Man) eacute apresentada no
quarto capiacutetulo da primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo e tem em vista elucidar o ldquoser-no-mundo
como ser-comrdquo e ldquocomo ser-si-mesmordquo Essa descriccedilatildeo estaacute diretamente relacionada ao
conceito de queda ou decair (Verfallen) pois eacute esse solo imediato que o ser-aiacute se
movimenta e terceiriza seu ser agraves orientaccedilotildees cotidianas cada vez em fuga de seu ser-
proacuteprio mas condiccedilatildeo inexoraacutevel para que possa conquistaacute-lo E ainda como expresso
no trecho acima esses conceitos nada tem a ver com uma criacutetica moral como que uma
criacutetica agrave sociedade de massa A anaacutelise eacute uma elucidaccedilatildeo fenomenoloacutegica e por isso
ontoloacutegica O que estaacute em jogo nessa descriccedilatildeo eacute o acesso aos fenocircmenos como eles se
mostram para entatildeo chegar ao fundamento ontoloacutegico que sustenta seu sentido de ser
Desse modo a facticidade ou o mundo cotidiano eacute o maneira pela qual os fenocircmenos e
as possibilidades do ser-aiacute vecircm ao encontro O que anaacutelise sobre ldquoA-genterdquo (das Man)
realizada no sect25 ao sect27 potildee em tela eacute 1) o esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein 2) o
Dasein-com dos outros e o cotidiano ser-com 3) o cotidiano ser-si-mesmo e a-gente
Se no sect9 Heidegger expotildee o sentido formal do ser-aiacute como esse ente que a cada
vez noacutes mesmos somos e ainda como a essecircncia desse ente reside em sua existecircncia o
esclarecimento de ldquoquemrdquo do Dasein deve agora voltar-se ao campo situacional histoacuterico
que extraiu esse conceito
ldquoNo presente contexto de uma analiacutetica existenciaacuteria do Dasein factual surge a
pergunta sobre se o referido modo de o eu se dar abre o Dasein em sua
cotidianidade supondo-se que em geral o abra () Pode-se sempre muito bem
dizer sobre esse ente em termos onticamente justificaacuteveis que lsquoeursquo o sou
Contudo a analiacutetica ontoloacutegica ao empregar essas proposiccedilotildees deve fazecirc-lo com
reservas de princiacutepio O lsquoeursquo somente deve ser entendido no sentido de um como
indicador formal e indiferente de algo que em sua concreta conexatildeo-de-ser
fenomecircnica talvez se desvende como o lsquoopostorsquo do que parecia lsquoNatildeo eursquo de
modo algum significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo [privado de
lsquoegoidadersquo] mas significa um determinado modo-de-ser do lsquoeursquo ele mesmo por
exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012 p337)
A interpretaccedilatildeo moderna da essecircncia do ser humano baseada na egoidade em um
ldquoeurdquo que se reconhece como tal e em uacuteltima medida fundamenta toda e qualquer
descriccedilatildeo dos entes obscurece o solo em que esse conceito aparece Referir-se ao ldquoeurdquo eacute
possiacutevel no trato diaacuterio e comum da existecircncia cotidiana (onticamente) na medida em que
136
o ldquoaiacuterdquo existe cooriginariamente Natildeo haacute sujeito sem mundo por esse motivo a
ldquolsquosubstacircnciarsquo do homem natildeo eacute o espiacuterito como a siacutentese de alma e corpo mas a
existecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p341) E desse modo se a existecircncia acontece em um
mundo ela natildeo se reconhece primariamente para depois reconhecer ldquomundordquo e os
ldquooutrosrdquo mas existindo o ser humano eacute as possibilidades disponiacuteveis em seu ldquoaiacuterdquo
compartilhando com os outros pois ldquonatildeo haacute afinal de pronto um eu isolado que se decirc sem
os outrosrdquo (HEIDEGGER 2012 p337)
A abertura primaacuteria de sentido ou a abertura compreensiva-interpretativa sempre
disposta do ser-aiacute o remete ao mundo junto aos entes e aos outros que partilham a mesma
abertura compreensiva-interpretativa e assim noacutes temos mundo De outro modo
ningueacutem tem lsquoseu mundorsquo particular emergente da consciecircncia que se auto reconhece a
partir da qual lsquoenxergarsquo o mundo puacuteblico Tudo que algueacutem possa vir a pensar sentir
compor dizer etc eacute primariamente aquilo que o mundo puacuteblico compartilhado sustenta
como algo que tem sentido Natildeo sou porque penso antes penso porque sou Quando
tentamos pensar em qualquer significado que natildeo seja sustentado pelo sentido do mundo
puacuteblico natildeo encontramos o que possa ser dito ou pensado
Mas o que o autor quer dizer quando indica que o ldquonatildeo eursquo de modo algum
significa um ente essencialmente lsquofalto-de-eursquo mas significa um determinado modo-de-
ser do lsquoeursquo ele mesmo por exemplo a perda-de-si mesmordquo (HEIDEGGER 2012
p337) Imersos nas ocupaccedilotildees diaacuterias empreendidas com os outros o ser-aiacute ldquocomo
cotidiano ser-um-com-o-outro estaacute na sujeiccedilatildeo aos outros Ele natildeo eacute si-mesmo os outros
lhe retiram o ser () Nisso os outros natildeo satildeo determinadosrdquo (HEIDEGGER 2012
p363) Na liacutengua portuguesa essa indeterminaccedilatildeo eacute ilustrada pela partiacutecula ldquoserdquo como
iacutendice de indeterminaccedilatildeo do sujeito Por exemplo Necessita-se de empregados Nesse
lugar se eacute tratado muito bem etc O ldquosujeitordquo o ldquoeurdquo do ser-aiacute na cotidianidade natildeo eacute seu
ser-proacuteprio mas a perda de si pois compreende seu ser inicialmente pela imposiccedilatildeo
impessoal indeterminada de suas possibilidades e as realiza sob o domiacutenio dessa
orientaccedilatildeo estuda-se casa-se tem-se filhos etc Nas palavras do autor
ldquoO Dasein cotidiano tira a interpretaccedilatildeo preacute-ontoloacutegica de seu ser do imediato
modo-de-ser de a-gente A interpretaccedilatildeo ontoloacutegica segue de imediato essa
tendecircncia interpretativa e entende o Dasein a partir do mundo e o encontra como
ente do-interior-do-mundo E natildeo somente isso mas a ontologia lsquoimediatarsquo do
137
Dasein faz que se lhe decirc a partir do lsquomundorsquo o sentido de ser em relaccedilatildeo ao qual
esses entes lsquosujeitosrsquo satildeo entendidos Mas porque nessa absorccedilatildeo no mundo
passa-se por cima do fenocircmeno do mundo ele mesmo em seu lugar se introduz o
subsistente do-interior-do-mundo as coisas O ser do ente que eacute -lsquoaiacutersquo-com eacute
concebido como subsistecircnciardquo (HEIDEGGER 2012 p 373)
Como vimos esse modo de ser do ser-aiacute eacute consequecircncia do fato de natildeo termos
qualquer natureza Natildeo haacute como se retirar dessa condiccedilatildeo ontoloacutegica mesmo que
onticamente somos impelidos a cada vez determinarmos nosso ser de alguma forma
indicando noacutes mesmos e os outros como meros subsistentes por exemplo em expressotildees
como ldquoEu sou professorardquo ldquoEle eacute pairdquo ldquoNoacutes somos brasileirosrdquo etc E por isso ldquoo ser-
si-mesmo proacuteprio natildeo repousa sobre um estado-de-exceccedilatildeo de um sujeito desprendido de
a-gente mas eacute uma modificaccedilatildeo existencial de a-gente como um existenciaacuterio essencialrdquo
(HEIDEGGER 2012 p373) ou seja ser-si-mesmo-proacuteprio natildeo eacute se retirar dessa
indeterminaccedilatildeo ontoloacutegica mas ter transparecircncia dessa condiccedilatildeo irremediaacutevel
A partir dessa explicaccedilatildeo retomemos a interpretaccedilatildeo do ser do Dasein a partir do
sentido formal da preocupaccedilatildeo ou do cuidado (Sorge) ldquoser ndashadiantado-em-relaccedilatildeo-a-si-
em (-o-mundo) como ser-junto- (ao-ente-do-interior-do-mundo que vem-de-encontro)rdquo
(HEIDEGGER 2012 p539) No que o ser-aiacute eacute ele eacute projeto eacute poder-ser
(existenciariedade) mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que
foi lanccedilado em um mundo (facticidade) e compreende a si mesmo os outros em meio
aos entes jaacute descobertos e sedimentados na cotidianidade (queda) O que sustenta o
sentido de ser desse ente eacute a temporalidade (Zeitlichkeit) pois a temporalidade descobre-
se como o sentido da preocupaccedilatildeo (Sorge) proacutepria ldquoO adiantar-se-em-relaccedilatildeo-a-si funda-
se no futuro O jaacute-ser-em manifesta-se em si o ser-do-sido O ser junto-a soacute eacute
possibilitado no presencizarrdquo (HEIDEGGER 2012 p891) Contudo a preocupaccedilatildeo
proacutepria natildeo eacute a noacutes de pronto transparente e natildeo eacute o modo que inicialmente e na maioria
das vezes estamos e nos orientamos no mundo Ser-no-mundo eacute a abertura compreensiva
disposta jaacute em meio ao mundo articulado e sedimentado portanto eacute constituiacuteda pelo
entender o encontrar-se e o decair (Verstehen Befindlickeit und Verfallen) (Cf
HEIDEGGER 2012 p949) Eacute necessaacuterio portanto compreender os fenocircmenos descritos
nessa abertura primaacuteria ao mundo a partir da temporalidade (Zeitlichkeit) para afinal
compreendecirc-los em seu fundamento ontoloacutegico O autor entatildeo nos apresenta que ldquoo
138
entender funda-se no futuro (adiantar-se ou aguardar) O encontrar-se temporaliza-se
primariamente no ser-do-sido (repeticcedilatildeo ou esquecimento) O decair tem raiz temporal
primariamente no presente (presencizar ou instante)rdquo (HEIDEGGER 2012 p951)
Aguardar (Gewaumlrtigen) esquecimento (Vergessenheit) e instante (Augenblck) satildeo
os modos impessoais de realizaccedilatildeo do ser do ser-aiacute na cotidianidade a partir de seu sentido
ontoloacutegico (Sorge) fundado na temporalidade (Zeitlichkeit) O futuro aparece como
espera na cotidianidade na medida em que estaacute submerso na familiaridade de um mundo
descerrado em que o ser-aiacute pode ocupar-se com os entes e travar relaccedilotildees com os outros
na normalidade da vida cotidiana Na familiaridade o ser-aiacute sabe o que esperar O passado
ou o ser-do-sido nada tem a ver com ldquofalta de lembranccedilardquo mas refere-se a imersatildeo na
dejecccedilatildeo ou no modo de ser-jogado do ser-aiacute Nesse sentido o ser-aiacute sempre ocupado abre-
se ao mundo mas fecha-se ao seu ser-proacuteprio esquecendo de si e de sua indeterminaccedilatildeo
em funccedilatildeo do que jaacute estaacute a cada de vez posto como possiacutevel no mundo O decair no modo
proacuteprio refere-se ao presente ou presencizar ou seja a transparecircncia ao ser-aiacute de sua
condiccedilatildeo de jogado em um presente aberto que a vida e a compreensatildeo de ser decorrem
Na cotidianidade poreacutem o decair como instante refere-se a incessante fala apariccedilatildeo e
apropriaccedilatildeo (natildeo como de si mesmo como ser-proacuteprio mas das possibilidades disponiacuteveis
publicamente) das coisas e de um estado de coisas Incessante porque atualiza as
possibilidades postas descerradas e sedimentadas no mundo movimentando a existecircncia
pela retroalimentaccedilatildeo daquilo que jaacute foi e eacute a cada vez compreendido sem pocircr em questatildeo
afinal aquilo que se compreende e o ente que pode compreender ou seja ente que noacutes
somos
Na anaacutelise preparatoacuteria ou na primeira seccedilatildeo de Ser e Tempo o decair foi descrito
na ldquointerpretaccedilatildeo do falatoacuterio da curiosidade e da ambiguidaderdquo (HEIDDEGGER 2012
p941) Desse modo esclarecido como a queda ou o decair funda-se na temporalidade do
ser-aiacute portanto esclarecido seu fundamento ontoloacutegico a partir do ente que abre a
compreensatildeo de ser Podemos a partir de agora entender o fenocircmeno da linguagem na
cotidianidade do ser-aiacute e em seu modo de ser improacuteprio De outro modo compreender o
falatoacuterio como queda
A anaacutelise do falatoacuterio (das Gerede) eacute realizada no sect35 precedida exatamente pela
exposiccedilatildeo do discurso como fundamento ontoloacutegico da linguagem Essa linha de
139
apresentaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria antes revela que tambeacutem o fenocircmeno da linguagem parte
de seu encobrimento E revela que seu fundamento eacute a cada vez obliterado no uso comum
das liacutenguas e das palavras no cotidiano poreacutem
ldquoA expressatildeo lsquofalatoacuteriorsquo natildeo deve ser aqui empregada numa acepccedilatildeo pejorativa
Ela significa terminologicamente um fenocircmeno positivo que constitui o modo-
de-ser do entender e interpretar do Dasein cotidiano No mais das vezes o
discurso se expressa e jaacute se expressou em palavras O discurso eacute linguagemrdquo
(HEIDEGGER 2012 p471)
A anaacutelise da cotidianidade eacute um caraacuteter fenomecircnico positivo para a analiacutetica
existenciaacuteria pois eacute a partir dele a partir de um modo de ser improacuteprio que o ser-aiacute eacute
lanccedilado em um mundo e se encontra inicialmente e na maioria das vezes Natildeo eacute apenas
lsquoum aspectorsquo do ser-aiacute estar ou natildeo na cotidianidade mas seu modo de ser
ontologicamente irremediaacutevel Nesse sentido apresentar a linguagem como manifestaccedilatildeo
uacuteltima da abertura histoacuterica remetida ao mundo que jaacute compreendeu jaacute articulou e jaacute
interpretou eacute apresentar um caminho agrave pergunta Como a linguagem que eacute essencialmente
generalizante pode afinal ser histoacuterica Questatildeo jaacute exposta nos primeiros escritos de
Heidegger que acaba por expor a origem dessa problemaacutetica em Ser e Tempo como por
exemplo essa passagem do texto de 1919
ldquoA objeccedilatildeo mais elementar mas carregada de suficiente perigosidade tinha a ver
com a linguagem Toda descriccedilatildeo eacute um lsquoconceber-em-palavrasrsquo - a lsquoexpressatildeo
verbalrsquo eacute generalizante Essa objeccedilatildeo eacute baseada na crenccedila de que toda linguagem
eacute jaacute em si mesma objetiva isto eacute viver em um significado implica eo ipso uma
concepccedilatildeo teoacuterica do que se entende que a realizaccedilatildeo do significado natildeo eacute mais
do que a exibiccedilatildeo do objeto () A universalidade do significado das palavras
assinala primariamente algo originaacuterio o caraacuteter mundano da vivecircncia vividardquo86
(HEIDEGGER (GA5657) 2005 pp134-142)
Esse eacute tambeacutem o risco do uso das palavras e da linguagem na cotidianidade ou
do falatoacuterio A manifestaccedilatildeo da linguagem na expressatildeo eacute comunicaccedilatildeo e o enunciado
86 ldquoLa objecioacuten maacutes elemental pero cargada de suficiente peligrosidad teniacutea que ver con el lenguaje Toda
descripcioacuten es un laquoconcebir-en-palabrasraquo -la laquoexpresioacuten verbalraquo es generalizante Esta objecioacuten descansa
en la creencia de que todo lenguaje es ya en siacute mismo objetivante es decir que vivir en un significado
implica eo ipso una concepcioacuten teoreacutetica de lo que es significado que la plenificacioacuten del significado es
sin maacutes soacutelo una exhibicioacuten del objeto() La universalidad del significado de las palabras sentildeala
primariamente algo originario el caraacutecter mundano de la vivencia vivida rdquo Opcit pp134-142
140
como comunicaccedilatildeo eacute o que eacute se pode partilhar com outrem lsquover juntorsquo o mostrado no
modo do determinar Nesse sentido ldquoo discurso (Rede) que-se-expressa eacute comunicaccedilatildeordquo
(HEIDEGGER 2012 p473) E os conceitos-preacutevios oferecidos na comunicaccedilatildeo acabam
por determinar objetivamente as coisas e o estado de coisas ldquosem que tenham perto de si
tangiacutevel e visiacutevel o ente mostrado e determinadordquo (HEIDEGGER 2012 p 439) Dessa
forma ldquoo acircmbito dessa visatildeo compartilhada amplia-se Mas ao mesmo tempo na
repeticcedilatildeo o mostrado pode precisamente vir a se encobrir de novo () O ouvir-dizer eacute
tambeacutem um ser-no-mundo e ser em relaccedilatildeo ao que eacute ouvidordquo (HEIDEGGER 2012
p439)
A essecircncia do falatoacuterio eacute esse ouvir-dizer comunicado que pode ser repetido E
conforme a compreensatildeo mediana orienta-se pela expressatildeo da linguagem expressa ldquoo
discurso comunicado pode ser entendido amplamente sem que o ouvinte tenha de se pocircr
originariamente entendedor daquilo sobre-que o discurso discorrerdquo (HEIDEGGER 2012
p473) A relaccedilatildeo com a linguagem torna-se nesse sentido meramente instrumental Um
exemplo paradigmaacutetico eacute a linguagem jornaliacutestica pois em seu traccedilo essencialmente
comunicativo e divulgador pode a cada vez informar sobre as coisas e um estado de
coisas sem que o leitor ou o ouvinte tenha de fato clareza acerca da compreensatildeo de tais
coisas mas pode repetir o que leu e o que ouviu com os outros e ser entendido A ldquofalta
de clarezardquo nesse exemplo natildeo diz respeito a algo como falta de ldquoacesso agraves fontesrdquo mas
deve ser compreendido em seu caraacuteter ontoloacutegico ou seja o que estaacute em jogo eacute o fato
que a linguagem repetida natildeo coloca em questatildeo seu proacuteprio fundamento A relaccedilatildeo entre
a cotidianidade impessoal e o uso da linguagem eacute algo tatildeo intriacutenseco que Heidegger em
1946 no texto Carta sobre o Humanismo diz
ldquoO que foi dito sobre o lsquoimpessoalrsquo em Ser e Tempo (1927) nos paraacutegrafos 27 e
35 de modo algum deve ser reduzido a um contributo secundaacuterio agrave sociologia
Mas o lsquoimpessoalrsquo tampouco se refere apenas agrave imagem oposto compreendida
de maneira eacutetico-existenciaacuteria do ser proacuteprio da pessoa Ao contraacuterio o que disse
ali conteacutem a indicaccedilatildeo agrave pertinecircncia inicial da palavra com o ser e essa
indicaccedilatildeo eacute pensada segundo a verdade do ser Essa relaccedilatildeo permanece oculta
sob o predomiacutenio da subjetividade que se apresenta como opiniatildeo puacuteblicardquo
(HEIDEGGER 2008 p330 grifo nosso)
141
A linguagem eacute portanto submetida ao que eacute compreensiacutevel na opiniatildeo puacuteblica e
aquilo que a cotidianidade mediana natildeo compreende eacute simplesmente descartado como
incompreensiacutevel Ou seja a proacutepria compreensatildeo (Verstehen) estaacute irremediavelmente
orientada agrave queda e essa mantecircm-se como tal no falatoacuterio Na tentativa de objetivar o
que as coisas satildeo e como elas satildeo tudo que eacute compreendido obscurece seu ldquocomordquo ou
seu mostrar que vem ao encontro no mundo histoacuterico pois ldquosoacute se procura ouvir o
discorrido como talrdquo (HEIDEGGER p473)
ldquoEm meio a essa dinacircmica retoma-se incessantemente uma atitude ontoloacutegica em
relaccedilatildeo aos entes intramundanos em geral e ao ser-aiacute em especiacutefico uma atitude
marcada fundamentalmente por uma opacidade primordial Todos satildeo a
princiacutepio homogeneizados a partir da noccedilatildeo de uma subsistecircncia por si todos
passam a ser desde o princiacutepio considerados como entes simplesmente dados e
detentores ao mesmo tempo de propriedades igualmente dadas() O falatoacuterio
tende entatildeo a coibir o aparecimento de uma outra forma discursiva que se
perfaccedila por meio de um real questionamento do ser do ente e de uma apropriaccedilatildeo
originaacuteria do ente consideradordquo (CASANOVA2006 p70)
O falatoacuterio como linguagem sedimentada e repetida eacute o que inicialmente orienta
o ser-aiacute em seu ldquoairdquo A cotidianidade mediana na qual estamos sempre imersos abre
inicialmente a compreensatildeo do mundo ao ser-aiacute mas ao abri-la acaba por fechaacute-la pois
desenraiza o ser-aiacute do solo originaacuterio dessa compreensatildeo de ser dos entes De outro modo
o loacutegos como discurso articula mundo e o abre agrave compreensatildeo o falatoacuterio como
linguagem sedimentada encobre esse mostrar originaacuterio O falatoacuterio diz e indica as coisas
e o estado de coisas mas natildeo os coloca em sua mostraccedilatildeo a partir de seu ser ou como
nos diz Carlos Drummond ldquoO sol consola os doentes e natildeo os renovardquo Nesse sentido
que a repeticcedilatildeo e a difusatildeo satildeo traccedilos essenciais do falatoacuterio pois movimentam a
existecircncia baseada na estabilidade do compreendido previamente articulado e
compartilhado na vida comum manifesto em uacuteltima medida pela linguagem e pelos
conceitos herdados
ldquoA falta-de-solo natildeo o impede de ingressar no que eacute puacuteblico mas favorece seu
ingresso O falatoacuterio eacute a possibilidade de tudo entender sem uma preacutevia
apropriaccedilatildeo da coisa O falatoacuterio jaacute protege por antecipaccedilatildeo contra o perigo de
malograr em tal apropriaccedilatildeo O falatoacuterio que qualquer um pode obter natildeo soacute
dispensa da tarefa de um entendimento autecircntico mas desenvolve uma
entendibilidade indiferente para a qual nada estaacute fechadordquo (HEDEGGER 2012
p475)
142
A objetividade promovida pelo falatoacuterio ou esse jaacute ser-interpretado natildeo eacute algo
que podemos negar e suspender A queda ou decair (Verfallen) constitui ldquoa plena abertura
do aiacuterdquo e o ldquoDasein nunca eacute capaz de rejeitar esse cotidiano ser-do-interpretado no qual
de imediato cresceurdquo (HEIDEGGER 2012 p477) Ele nos constitui porque eacute
inicialmente nosso ldquoaiacuterdquo e ldquotodo entendimento interpretaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo genuiacutenos
toda redescoberta se efetuam nele a partir dele e contrariamente a elerdquo (HEIDEGGER
2012 p477) ldquoTer mundordquo (abertura compreensiva) para o ser-aiacute que o constitui como
ente privilegiado eacute tambeacutem ser absorvido pelo mundo (queda) A verdade (Aleacutetheia)
como desvelamento eacute tambeacutem encobrimento Ser na verdade eacute tambeacutem estaacute na natildeo-
verdade Ouvir o loacutegos eacute tambeacutem se perder na linguagem
ldquoEacute soacute por isso que (sect34) Ser e Tempo conteacutem uma indicaccedilatildeo essencial da
linguagem tocando na questatildeo simples que pergunta em que modo do ser a
linguagem eacute sempre linguagem como tal O esvaziamento da linguagem que
avanccedila violentamente e se estende com rapidez por toda parte natildeo corroacutei apenas
a responsabilidade esteacutetica e moral em todos os usos da linguagem Proveacutem de
uma ameaccedila da essecircncia do ser humanordquo (HEIDEGGER 2008 p331)
Mas entatildeo qual o caminho Como ir agrave linguagem como tal Heidegger nos
adverte ldquoUm mero uso cuidado da linguagem ainda natildeo demonstra que escapamos desse
perigo essencialrdquo (HEIDEGGER 2008 p331) Na realidade reduzir o problema agrave essa
soluccedilatildeo poderia indicar que nem sequer vemos o perigo pois o esconderia sob agraves vestes
de usos como lsquosabedoriarsquo lsquoculturarsquo lsquoconhecimentorsquo etc ou seja a ldquosoluccedilatildeordquo ainda
estaria submetida ao domiacutenio puacuteblico do que eacute compreensiacutevel
Portanto se ldquoa linguagem ainda nos nega sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2008
p331) entatildeo ainda eacute necessaacuterio seguir a orientaccedilatildeo socraacutetica no diaacutelogo A Repuacuteblica
Diante da pergunta de Adimanto acerca da conveniecircncia da trageacutedia e da comeacutedia na
cidade Soacutecrates responde ldquo() onde o loacutegos como um sopro nos levar ali eacute preciso
irrdquo87 Para que afinal busquemos a relaccedilatildeo entre loacutegos e ser
87 Platatildeo Repuacuteblica 394d8-9
143
Conclusatildeo
O que vem agrave palavra Essa foi a questatildeo que nos guiou nesse trabalho Ela
atravessa outras perguntas por que falamos de uma determinada forma por exemplo
com sujeito e predicado Como eacute possiacutevel nossa comunicaccedilatildeo Como eacute possiacutevel falar que
algo eacute de tal e qual maneira
Fomos ao livro Ser e Tempo natildeo para dizer sobre o que um autor pensou fomos
ao Ser e Tempo para encontrar elementos que poderiam nos guiar nessas questotildees Entatildeo
a tarefa desse tratado revelou-se tambeacutem como um problema de linguagem Pois eacute a
tentativa de reformulaccedilatildeo da pergunta pelo ser E que essa pergunta alcance seu sentido
depende justamente daquela reformulaccedilatildeo ou da recolocaccedilatildeo da pergunta pelo sentido do
ser Vimos aiacute uma imbricada problemaacutetica a pergunta pelo sentido de ldquoserrdquo (Sinn von
Sein) eacute tambeacutem a pergunta sobre o que pode sustentar sentido e significados e por isso
o que pode sustentar a linguagem Se natildeo nos incomodasse a tautologia poderiacuteamos
perguntar qual o sentido do sentido
A necessidade de recolocaccedilatildeo da pergunta estaacute diretamente relacionada agrave criacutetica
imanente de Heidegger agrave fenomenologia de Husserl Abordado sempre e a cada vez como
um ente o ser natildeo eacute no entanto um predicado real Perguntar ldquoo que eacute o serrdquo eacute abordar
o ser como um ente na tentativa de encontrar algo como um aspecto material predicaacutevel
e atributivo Ser natildeo eacute um ente o acesso agrave compreensatildeo de ser deve ser reformulado natildeo
com vistas agrave forma categorial do ente mas ao ser mesmo e assim a pergunta se altera
para ldquoQual o sentido de serrdquo Atraveacutes da apropriaccedilatildeo da hermenecircutica Heidegger potildee
em tela o caraacuteter histoacuterico do sentido de ser dos entes E dessa maneira indica como as
palavras em seu contexto de enunciaccedilatildeo retiram seu significado da estrutura preacutevia da
experiecircncia hermenecircutica Contudo diferentemente de como a concebeu Dilthey a
experiecircncia revelou-se natildeo como um meacutetodo de acesso ao caraacuteter histoacuterico do sentido e
144
dos significados mas compreensatildeo fundamentalmente praacutetica jaacute na visatildeo circunspecta de
nosso mundo mais imediato onde os entes se mostram em seu ser
Poreacutem um problema central deveria ser abordado ldquocomo eacute possiacutevel a forma
loacutegicardquo ou ldquoPor que seguimos a foacutermula lsquosujeito e predicadorsquordquo Essa questatildeo nos levou
ateacute a maneira pela qual essa problemaacutetica foi abordada pelos neokantianos mais
especificamente agravequeles representantes da escola de Baden Esses reduziam a
possibilidade de verdade agrave forma do juiacutezo agrave identificaccedilatildeo entre ldquoWahrheit = wahrer Satz
= Geltung (verdade = proposiccedilatildeo verdadeira = validade) A discussatildeo se refere agrave noccedilatildeo
de verdade da metafiacutesica tradicional sobretudo contra a noccedilatildeo predominante na eacutepoca
que era a dos neokantianos fundada por sua vez na filosofia dos valores de Lotze Essa
concepccedilatildeo tomava as categorias linguisticamente e assim arrastava a compreensatildeo da
verdade em direccedilatildeo agrave semacircntica extensional a qual conferia um lugar privilegiado agrave
proposiccedilatildeo Com isso reduziam a verdade ao ldquovalor de verdaderdquo aderente ao juiacutezo nessa
medida condicionando a ontologia agrave loacutegica
Foi esse mapa complexo dos problemas que foi desenhado nos dois primeiros
capiacutetulos os quais consideramos imprescindiacuteveis para uma exposiccedilatildeo completa da
estrutura ontoloacutegica da linguagem em Ser e Tempo Expondo o contexto das filosofias de
Dilthey Husserl e dos neokantianos de Baden bem como o posicionamento de Heidegger
frente a essas teorias a abordagem fenomenoloacutegico-hermenecircutica revelou-se como o
meacutetodo de acesso ao sentido de ser de todo ente Esse meacutetodo acaba ainda por demonstrar
que a linguagem - o dizer puacuteblico sobre as coisas e sobre o estado de coisas - natildeo eacute um
campo de signos referenciais fechados que doam significado agraves coisas mas uma
manifestaccedilatildeo derivada e histoacuterica que a cada vez se faz presente na facticidade da
existecircncia concreta Last but not least revelou-se a diferenccedila entre uma concepccedilatildeo de
loacutegos proveniente da loacutegica e outra advinda do conceito de aleacutetheia
Foi a partir daiacute que ficaram claros os contornos dos dois uacuteltimos capiacutetulos desta
Dissertaccedilatildeo Tentamos mostrar como em Ser e Tempo a linguagem estaacute assentada em
duas estruturas (1) compreensatildeo-interpretativa e (2) enunciado revelando a diferenccedila
entre sentido significado e predicaccedilatildeo os quais se mantecircm articulados pela imbricaccedilatildeo
radical entre Aleacutetheia Loacutegos e Fenocircmeno Poreacutem natildeo poderiacuteamos nos sentir satisfeitos
nessa descriccedilatildeo Heidegger nos adverte que estamos em fuga do solo em que o loacutegos se
145
mostra Pois o desvelamento enquanto Aleacutetheia eacute tambeacutem encobrimento por isso o
fenocircmeno sempre se nos mostra de maneira dissimulada Tambeacutem a partir de Ser e Tempo
tentamos evidenciar como a linguagem depende da constituiccedilatildeo proacutepria da verdade Ou
seja como o discurso (Rede) eacute apresentado como fundamento ontoloacutegico da linguagem
mas como o fenocircmeno mesmo da linguagem jaacute sempre se apresenta como falatoacuterio
(Gerede) O fenocircmeno da linguagem na cotidianidade mediana enquanto comunicaccedilatildeo
ou seja discurso (die Rede) que jaacute se expressou e a cada vez se expressa eacute repetido e
difundido no falatoacuterio Ao reduzir todos os entes a uma homogeneizaccedilatildeo indiferenciada
pondo-os agrave disposiccedilatildeo dos nossos recursos linguiacutesticos o falatoacuterio oblitera o horizonte
compreensivo que eacute a abertura primaacuteria de sentido de ser de todo e qualquer ente Mas
como entes sem qualquer essecircncia preacutevia sem qualquer natureza definida somos a
proacutepria compreensatildeo (Verstehen) irremediavelmente orientada agrave queda sendo o falatoacuterio
a manifestaccedilatildeo uacuteltima dessa condiccedilatildeo
Esse foi o caminho do nosso trabalho que eacute apenas um iniacutecio Ele natildeo pretende
encerrar com respostas mas com perguntas Dentre elas se se pode compreender o papel
da poesia na obra de Heidegger apoacutes os anos 1930 como uma tentativa de desvencilhar-
se do imperativo da tradiccedilatildeo de purificaccedilatildeo da linguagem Ou ainda se a estratificaccedilatildeo
da linguagem segundo a formulaccedilatildeo de Ser e Tempo precisou ser revista apoacutes a viragem
tendo em vista que em 1927 natildeo foi possiacutevel encontrar seu fundamento ontoloacutegico a partir
do Dasein
Por enquanto preferimos a tensatildeo e a suspensatildeo do estado de pergunta Preferimos
o pensar como caminho agraves respostas como soluccedilotildees afinal
ldquoCom seu dizer o pensar abre sulcos imperceptiacuteveis na linguagem Esses satildeo
ainda mais imperceptiacuteveis que os sulcos que a passos lentos o camponecircs abre pelo
campo aforardquo (HEIDEGGER 2008 p376)
146
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- Introduccedilatildeo
- I - Dilthey uma nova psicologia para o conhecimento das ciecircncias do espiacuterito e o sentido do conhecimento como essencialmente histoacuterico
- II - Neokantismo a anaacutelise da validade do conhecimento e o lugar proacuteprio da filosofia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias
- II I) Windelband e Rickert Filosofia dos valores e a razatildeo praacutetica
- III -Husserl Uma filosofia sem pressupostos
- Capiacutetulo II ndash Da Fenomenologia agrave Fenomenologia Hermenecircutica
- Introduccedilatildeo
- I - Os limites da filosofia dos valores
- II) A derivaccedilatildeo do teoreacutetico ao preacute-teoacuterico O Es gibt originaacuterio
- II- A apropriaccedilatildeo da fenomenologia por Heidegger
- III- Fenomenologia como meacutetodo indicativo- formal
- III - A apropriaccedilatildeo da hermenecircutica por Heidegger
- Capiacutetulo III ndash O que vem agrave palavra A estrutura ontoloacutegica da linguagem (Sprache) em Ser e Tempo
- Introduccedilatildeo
- I ndash A primeira estrutura (sentido significatividade e significado) Ser-aiacute como ser-no-mundo ou o ldquocomordquo hermenecircutico
- II A dupla abertura de sentido (Sinn)
- III- Mundo e significatividade (Bedeutsamkeit)
- II- A segunda estrutura O enunciado (Aussage) como modus da interpretaccedilatildeo (Auslegung)
- Capiacutetulo IV ndash A queda no falatoacuterio (Gerede)
- Introduccedilatildeo
- I- O Discurso (die Rede) O fundamento ontoloacutegico da linguagem
- II- O Falatoacuterio (das Gerede)
- Conclusatildeo
- Bibliografia
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