monografia ximena feliu

Upload: toninho-psicoton

Post on 19-Oct-2015

24 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • XIMENA FELI

    ENFRENTANDO A MORTE: A EXPERINCIA DE LUTO EM FAMLIAS DE DOADORES DE RGOS E TECIDOS

    4 ESTAES INSTITUTO DE PSICOLOGIA SO PAULO

    2009

  • XIMENA FELI

    ENFRENTANDO A MORTE: A EXPERINCIA DE LUTO EM FAMLIAS DE DOADORES DE RGOS E TECIDOS

    Monografia do Curso de Aprimoramento Teoria, Pesquisa e Interveno em Luto

    sob a superviso da Profa. Valria Tinoco.

    4 ESTAES INSTITUTO DE PSICOLOGIA SO PAULO

    2009

  • SUMRIO

    1. RESUMO................................................................................................................IV 2. ABSTRACT.............................................................................................................V 3. OBJETIVO.............................................................................................................VI 4. INTRODUO.....................................................................................................07 5. MTODO................................................................................................................12 6. MORTE....................................................................................................................13 7. MORTE ENCEFLICA.....................................................................................17 8. LUTO.......................................................................................................................20 9. O PROCESSO DE DOAO...........................................................................29 10. A FAMLIA COMO AGENTE DE DOAO..........................................35 11. A VIVNCIA DOS FAMILIARES DURANTE O PROCESSO DE DOAO DE RGOS E TECIDOS................................................................41 12. EQUIPE DE SADE.........................................................................................53 13. DISCUSSO........................................................................................................58 14. CONCLUSO.....................................................................................................65 15. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..........................................................66 16. ANEXOS...............................................................................................................69

  • iv

    1. RESUMO

    No Brasil, ainda h uma desproporo entre a demanda de rgos e o nmero de doadores disponveis. Muitos rgos ainda se perdem desnecessriamente e potenciais receptores morrem nas filas de espera de transplante. Dentre os fatores que contribuem para isso, est a recusa da famlia em doar. As famlias de potenciais doadores sofrem experincias de angstia e sofrimento, em um curto perodo, desde a internao causada pelo acidente ou doena aguda at o pedido de doao. As etapas se sucedem rapidamente com uma avalanche de informaes que, num momento to particular e sofrido, dificultam a compreenso da realidade e a autorizao para a doao. Vrias famlias doadoras enfrentam um processo de doao lento, burocrtico e confuso. Estas experincias negativas influenciam a sociedade a no doar rgos. Algumas medidas podem incentivar a doao, como o treinamento das equipes de sade, em contato dirio com os doadores e suas famlias. primordial sua capacitao, tanto para o cuidado fsico do doador, quanto o da sua famlia, dando-lhe apoio especializado nas diferentes etapas do processo. O psiclogo aparece como profissional qualificado para integrar as equipes que atuam no processo de doao de rgos, seja no cuidado da famlia potencialmente doadora, seja no apoio equipe multiprofissional. A extenso da atuao do psiclogo, auxiliando as famlias que doaram rgos na elaborao de seu luto, por um perodo de 6 meses aps a doao, pode contribuir para que a experincia seja menos traumtica, incentivando a doao. Palavras chave: doao de rgos, famlia, morte, luto.

  • v

    2. ABSTRACT

    Brazil has developed very good organ transplant skills. More and more patients have been helped with this therapeutic tool. But, even so, we find here an unbalance between potential receptors and donors. We still waste organs that could have been donated while potential receptors die on the waiting lists. The refusal of potential donor families is one of the main contributing factors. From the moment the loved one is admitted to the hospital until the donation request, these families go through rapidly changing dramatic situations in a short period of time. They are flooded with a great deal of information they can barely deal with, either because they do not understand it or, they are unable to process it at that painful moment. Deciding about organ donation is a challenge. Some families who donated their loved ones organs have witnessed a negative experience because the whole process was bureaucratic, time consuming and confusing. Health teams who deal with organ transplant, ought to be trained in order to give the best possible care to the potential donors and their families as well. Taking good care of the patient is as important as taking care of their families, being close, giving all the information needed and supporting them during the difficult moments they have to face. The psychologist seems to be a highly qualified professional to take part of these teams, giving support to the families and to the members of the team as well. He could also keep working for a larger period of time say six months after the donors death, with the families who agreed to organ donation. This task might be sponsored by the institution in charge of transplants and would help those families with the grief process, making the whole experience less painful and less traumatic. Key words: organ donation, family, death, grief.

  • vi

    3. OBJETIVO

    O presente trabalho pretende ampliar e aprofundar o conhecimento sobre a experincia da famlia enlutada no processo de doao de rgos.

  • 7

    4. INTRODUO

    No Brasil, os transplantes de rgos tiveram incio na dcada de 1960, na rea de nefrologia. No entanto, esta opo teraputica ganhou lugar de destaque nos meios de comunicao aps a divulgao de que o primeiro transplante cardaco havia sido feito por Barnard, em dezembro de 1967, na frica do Sul. A partir deste episdio, a sociedade passou a debater os transplantes, em seus aspectos biolgicos, ticos, filosficos, morais e culturais (Rocha, 1993; Parizi e Silva, 1998; Lamb, 2000 apud Roza, 2005).

    Na Amrica do Sul, em 1968, o primeiro transplante cardaco foi realizado por Zerbini, no Hospital das Clnicas da Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo.

    No final da dcada de 1970, o desenvolvimento da ciclosporina, um medicamento imunossupressor, permitiu um controle muito mais efetivo do principal problema biolgico relacionado aos transplantes, a rejeio do rgo transplantado pelo hospedeiro (Freitas, 2003 apud Alencar, 2006). Os recentes avanos no manejo imunolgico, nas tcnicas cirrgicas, nos cuidados intensivos e a introduo de drogas imunossupressoras mais modernas assim como solues de preservao de rgos mais eficientes contriburam para melhorar os resultados dos transplantes. Desde ento, houve um aumento do nmero e do tipo de rgos transplantados e da sobrevida dos indivduos receptores, incitando a comunidade cientfica a buscar sofregamente inovaes e aprimoramento (Pereira, 2004 apud Kioroglo, 2005).

    Os transplantes so, hoje, uma opo de tratamento bem definida, do ponto de vista estritamente teraputico, e abrem uma perspectiva slida de melhoria e prolongamento de vida para pacientes que necessitam substituir rgos ou tecidos doentes por outros sadios. Por exemplo, o transplante oferece para a maioria dos pacientes urmicos a melhor oportunidade de sobrevida a longo prazo e de reabilitao, com menor custo social que a dilise. , ainda, de maior valor para os pacientes com cardiopatia, hepatopatia ou pneumopatia terminal, por ser a nica teraputica capaz de prevenir a morte certa, em poucos meses, oferecendo a expectativa de uma nova vida.

    Estima-se que, em todo o mundo, em torno de 500.000 pacientes desenvolvam insuficincia renal crnica, 300.000 insuficincia cardaca e 200.000 insuficincia heptica, provocando uma demanda grande destes rgos (RBT, 2008).

  • 8

    O Brasil desenvolveu, em poucas dcadas, uma notvel capacidade tcnica para vrias modalidades de transplante, aumentando tambm sua demanda para rgos a serem transplantados (Sadala, 2004; RBT, 2008).

    A caracterstica principal dos transplantes, que os distinguem das outras cirurgias, convertendo-os em uma teraputica nica e que alguns consideram uma grande desvantagem, a necessidade da utilizao de um rgo ou tecido proveniente de um doador vivo ou falecido. Na grande maioria dos transplantes, com exceo de uma parcela dos transplantes renais, de alguns casos de transplantes hepticos e de casos excepcionais de transplante pulmonar e pancretico, os rgos so obtidos de doadores falecidos. A grande limitao ao transplante com doador falecido que apenas uma pequena frao dos indivduos que morrem pode se converter em doadores de rgos. A remoo de rgos, na grande maioria dos casos, s possvel em pacientes com morte enceflica, isto , naqueles que apresentam destruio completa e irreversvel do crebro e tronco cerebral, mas que mantm, temporria e artificialmente, os batimentos cardacos e a circulao sangunea.

    Estima-se que somente 1 a 4% das pessoas que morrem em hospital e 10 a 15% das que morrem em Unidades de Terapia Intensiva, desenvolvem morte cerebral. A taxa estimada de potenciais doadores em um determinado pas ou regio de 50 a 60 por milho de populao por ano (pmp/ano). A taxa almejada de efetivao da doao entre os potenciais doadores de 50%. No entanto, na maioria dos pases, essa taxa de efetivao oscila entre 15 e 70%. Vrios so os motivos para isso, como a falta de notificao do potencial doador, a no deteco de morte enceflica, a impossibilidade de manter as condies vitais do potencial doador, contra-indicaes mdicas e a recusa da famlia em doar os rgos (Garcia, 2006).

    No Brasil h estudos sugerindo a possibilidade de termos um grande nmero de doadores potenciais, em torno de 60 a 100 pmp/ano, pelo exagerado nmero de acidentes de trnsito e ferimentos por arma de fogo, que produzem doadores geralmente jovens e previamente sadios. Com uma populao de 180 milhes de habitantes e 1 milho de mortes ao ano, pode-se estimar em 11.000 a 18.000 o nmero de doadores potenciais. Entretanto, no ano de 2005, apenas 4.714 (28 pmp) notificaes foram feitas s Centrais de Transplantes, das quais apenas 1078 (6,3 pmp) se tornaram doadores efetivos (Roza, 2005).

    Segundo Santos e Massarollo, (2005), a taxa obtida no Brasil de 5,4 doadores por milho de habitantes/ano. Ainda em 2005 realizou-se metade dos transplantes de crnea necessrios segundo a demanda, 1/3 dos transplantes renais, 1/4 dos hepticos e

  • 9

    um nmero ainda menor de transplantes de corao e pulmo. A resultante uma mortalidade de 10 a 30% das pessoas que aguardam por um rgo nas filas de espera (Garcia, 2006).

    Embora estudos evidenciem que os profissionais de sade e a populao esto predispostos doao de rgos e que existe grande nmero de potenciais doadores, a realidade mostra que a demanda muito maior do que a oferta de rgos, por um elevado nmero de recusas. Este fato pode estar relacionado ao processo de doao (Bousso, 2008).

    A escassez de rgos doados atribuda tanto desinformao da populao como aos problemas estruturais do sistema de sade, que tem se mostrado incompetente no processo de captao de rgos (O Estado de S. Paulo, 1997).

    O Registro Brasileiro de Transplantes -RBT- veculo oficial da Sociedade Brasileira de Transplante de rgos, atesta em sua publicao que, embora o nmero de doadores venha aumentando progressivamente, ele ainda insuficiente para a demanda (RBT, 2008).

    O panorama internacional da captao de rgos para transplantes mostra os seguintes aspectos: com a exceo da Espanha que apresenta uma taxa de doadores efetivos em torno de 34 pmp/ano, na maioria dos pases desenvolvidos esta taxa varia de 15 a 25 doadores pmp/ano (Idem).

    No Chile, segundo estudo de Gonzles et al., (2001), 50% dos doadores potenciais so perdidos por negativa da famlia em doar os rgos.

    Os rgos do doador-cadver tornaram-se motivo de anseio por parte dos receptores que desejam sobreviver sua doena e resgatar uma vida mais digna. O cadver torna-se, repentinamente, til sociedade, inovando atitudes morais (Martins, 2003 apud Alencar, 2006).

    Portanto, ao lado do aprimoramento tecnolgico e cientfico, convivem questes de natureza econmica, scio-cultural, tica e legal que se refletem na falta de disponibilidade de rgos para transplante (Mendes et al., 1997 apud Sadala, 2001).

    O transplante tornou-se uma vtima do seu prprio sucesso. As questes recorrentes que aparecem na literatura (Sadala, 2002; Roza, 2005;

    Santos e Massarollo, 2005; Bousso, 2008) sobre doao de rgos so: a negativa da famlia em consentir na doao de rgo citada como o principal entrave na efetivao do transplante; o comportamento dos familiares em relao doao est condicionado a questes culturais e psicolgicas; h a tendncia de familiares consentirem na doao quando bem orientados a respeito do conceito de morte enceflica e da finalidade

  • 10

    humanstica de doar; o sucesso na captao de rgos depende das habilidades comunicativas dos profissionais da sade ao se relacionarem com os familiares de doadores.

    Para os familiares, o cadver representa a imagem e a memria da pessoa falecida. Embora, as manifestaes culturais em relao ao cadver sejam diferentes entre os povos, o respeito ao corpo da pessoa morta est presente em todas as crenas religiosas. A sua mutilao , culturalmente, inaceitvel (Lamb, 2000).

    A necessidade da doao de rgos para transplantes e a conseqente mutilao de cadveres lutam com fortes razes culturais, mas, progressivamente vencem as barreiras, pois as famlias cada vez mais entendem que a mutilao de um corpo para doao de rgos tem uma finalidade teraputica e no caracteriza um desrespeito (Idem). No Brasil so poucos os trabalhos de pesquisa a respeito de famlias de doadores de rgos. Nesses estudos, a famlia emerge como um elemento central de todo o processo. Ela vista tanto como o principal entrave efetivao de transplantes quanto a vtima, acrescendo-se dor da perda brusca e traumtica o grande estresse que representa a deciso de doar (Sadala, 2004).

    O consentimento familiar para a doao em um momento to delicado sofre a influncia de vrios fatores, como apontado a seguir.

    A confiana estabelecida entre famlia e equipe de sade que assistiu o doador fortalece a possibilidade de doao, assim como a segurana de que o doador foi assistido de forma adequada em uma estrutura hospitalar igualmente adequada (Bousso, 2008).

    Familiares de doadores apresentam uma compreenso inadequada sobre a definio precisa de morte enceflica. Dvidas decorrentes disso podem surgir antes, durante e aps a doao de rgos como um medo de doar os rgos da pessoa viva ou sentir-se responsvel por autorizar o desligamento dos aparelhos (Sadala, 2004, Bousso, 2008).

    O momento e a maneira da abordagem da famlia so muito importantes, exigindo conhecimento e destreza da equipe responsvel pelo contato, favorecendo a compreenso das informaes recebidas (Radecki e Jaccard 1997, apud Wellausen e Piccinini, 2005).

    O processo de luto por si s causa de sofrimento emocional; no entanto, h dois importantes complicadores: a morte violenta no possibilita um luto antecipatrio que auxilia no processo de luto posterior, como ocorre em doenas terminais. Ela a

  • 11

    primeira causa das mortes enceflicas, acometendo em sua maioria jovens que so considerados os melhores doadores. Assim, os familiares so violentamente surpreendidos com a notcia, dificultando a aceitao do fato (Kioroglo, 2005).

    A doao ainda pode assumir diversos significados para os familiares: conforto, satisfao, honra, dor, processo longo, entre outros.

    Este trabalho tem o intuito de aprofundar o conhecimento sobre a experincia das famlias enlutadas no processo de doao de rgos, identificar fatores que possam torn-lo mais doloroso para elas, dificultando a autorizao da doao, e, sugerir medidas que visem minimizar o sofrimento que as circunstncias impem e a angstia da deciso de doar, alm de apoi-las durante o perodo mais crtico da doao.

  • 12

    5. MTODO

    Reviso da literatura correspondente atravs do LILACS e Google Acadmico

  • 13

    6. MORTE

    A morte a nica certeza da condio humana e faz parte da estrutura da vida. Quando somos concebidos e nascemos j comeamos a morrer, pois os dois eventos caminham juntos (Camanzi, 2005). Vida e morte no se opem, so complementares. A morte um evento universal, mas preocupa o ser humano pelo mistrio que representa, pela imprevisibilidade de sua trajetria, pelo medo do desconhecido, pela imponderabilidade que se tem em falar, pensar e agir em relao a ela. Desperta uma busca frentica e incessante por explicaes, pelo sentido que damos nossa existncia, pelo momento, pelas circunstncias, pela idade, pela causa determinante que se impe sem aviso prvio. Assim, ela no pensada como um evento natural da vida, ao contrrio, colocada habitualmente num futuro distante e sempre relacionada ao outro. A funo do imaginrio erguer uma barreira contra a finitude (Durand, 1997, apud Alencar, 2006). Os sentimentos mais diversos afloram com a morte. Alguns so negativos como o insucesso, a impotncia, o silncio, o rancor, a indignao, a dor, a culpa, o sentimento de perplexidade e de injustia diante da perda, o desamparo; outros so positivos representados pela paz, celebrao da prpria vida, do valor da pessoa em vida, do fim do tempo terreno, do cumprimento de uma etapa de vivncia (Alencar, Lacerda e Centa, 2005, apud Alencar, 2006).

    O senso comum, no entanto, entende a morte como um evento devastador na vida do ser humano, um fato inesperado e inimaginvel, pois natural ao indivduo ter a percepo da morte com os outros e para os outros, nunca ligada sua existncia ou de um dos seus. Geralmente, a morte como acontecimento inevitvel, mantida em estado de latncia (Kbler-Ross, 2002, apud Alencar, 2006). Paradoxalmente mais fcil aceitar a morte dos outros e as estatsticas progressivamente crescentes de mortes violentas urbanas, nas estradas, nas guerras, do que aceitar a prpria morte ou a de entes queridos. Isto porque o homem valoriza a imortalidade e nega sistematicamente a sua morte.

    Viorst (1988, apud Alencar, 2006) aponta as inmeras perdas com que o ser humano se depara no decorrer da vida: o final da infncia, o fim de um casamento ou amizade, a aposentadoria, as limitaes fsicas impostas por uma doena ou pela idade. Embora, o homem no correr de sua histria possa lidar com as perdas que a vida lhe traz, no pode aceitar a perda maior: o fim da vida. Portanto, nega a morte subjetivamente, mas ela se impe de modo objetivo e irrecupervel pela parada dos batimentos cardacos, pelo corpo que esfria, pela vida que se esvai.

  • 14

    difcil a aceitao da morte como processo integrante da vida, pois a sociedade no est familiarizada com esta idia e, ainda, porque morrer implica na renncia vida e convivncia com familiares e pessoas de nossas relaes afetivas. Ela surpreende a todos, indiscriminadamente, independente de status ou posio social, do fato de sermos bons ou maus, pessoas conhecidas ou annimas; essa imprevisibilidade e inevitabilidade que a torna um evento que inquieta e apavora as pessoas (Kbler-Ross, 1996 apud Alencar, 2006). ela que iguala todos os seres humanos, na fragilidade e na vulnerabilidade (Bernini, 1998 apud Alencar, 2006).

    A morte, dentro da cultura ocidental, talvez represente de forma mais traumtica o sentimento de perda. Com os avanos da tecnologia, os pacientes terminais ganharam sobrevida e o convvio por mais tempo com a proximidade do fim, gerando intenso sofrimento emocional.

    A morte poderia ser encarada como um ato supremo de libertao, mas no o , porque tememos o desconhecido.

    Kyes e Hofling (1985, apud Sadala, 2004) descrevem os quatro aspectos da morte: a morte sociolgica, a morte psquica, a morte biolgica e a morte fisiolgica. A morte sociolgica a superao emocional do paciente das figuras importantes de sua vida, a morte psquica a aceitao da morte iminente pelo paciente, a morte biolgica o ponto em que o ser humano deixa de existir como um todo atuante (morte da mente), e a morte fisiolgica o ponto em que a funo dos sistemas orgnicos cessa.

    O conceito social de morte vem sofrendo alteraes substanciais com o tempo. O homem ocidental de antes era muito mais ancorado pela religiosidade. Havia uma f mais slida em Deus, no Paraso, no encontro com os entes queridos que j morreram, na vida eterna. As manifestaes de luto eram espontneas e a dor exaltada socialmente na literatura, na pintura, nas artes cnicas. No havia vergonha na demonstrao social da dor.

    A ritualizao do luto na Idade Mdia impunha famlia uma recluso, para que esta pudesse sentir a dor e superar a perda. Com o tempo, essa recluso passou a ser voluntria, sendo um direito da famlia viver o seu luto. No entanto, no sculo XX, ocorre a negao do luto. A morte substituiu o sexo, passando a ser a maior interdita do mundo moderno (Gorer,1965, apud Camanzi, 2005).

    Antigamente, dizia-se s crianas que elas haviam nascido de um repolho, mas elas participavam dos ritos de morte dos parentes prximos. A presena das crianas nesses rituais se tornou cada vez mais incmoda e, hoje, todas so iniciadas desde a mais tenra idade na fisiologia do amor e do nascimento, mas no vem mais o av

  • 15

    morrer e ser enterrado. J no so as crianas que nascem em repolhos, mas os mortos que desaparecem neles (Aris, 2003).

    Como nunca, a morte virou um tabu social. Algo para ser temido. Deixou a casa, o cotidiano, para ocupar os hospitais, onde o doente sofre um processo de despersonalizao, de perda de autonomia e de poder de deciso. Perde o direito de saber sobre a sua morte e de se preparar para ela.

    A sociedade e a famlia mudaram a maneira de ver e viver a morte. Freqentemente, o paciente morre s, numa UTI, cercado profissionalmente por pessoas estranhas. Transforma-se numa parafernlia de fios, tubos que o conectam a aparelhos e drogas, distanciando-se brutalmente do que se imagina que uma vida deva ser. Sempre s, e muitas vezes sem nenhuma perspectiva de cura, cumpre sua saga, numa viso distorcida de vida e de morte.

    At a metade do sculo XIX, a medicina procurava aliviar o sofrimento. Hoje, ela procura evitar a morte. Apia-se na tecnologia mais complexa, perseguindo a manuteno da vida a qualquer preo e a qualquer custo, como se a morte no representasse o fim natural de todos ns, mas, fosse sempre um inimigo aliengena a ser derrotado. Percebemos como a morte encarada com freqente dificuldade nos dias de hoje.

    A morte, no contexto deste estudo, traz uma dificuldade ainda maior, pois se refere morte sbita e trgica, geralmente de pessoas jovens e, at ento, sadias que no mais voltaram para seus familiares.

    Kyes e Hofling, (1985), ressaltam que o processo de aceitao da morte de pessoas queridas ocorre aos poucos. A morte social, ou seja, a extino da convivncia com o meio familiar acontece lentamente. preciso um tempo para se lidar com a perda e o luto, e, esse processo se faz atravs de rituais religiosos e culturais. Os sentimentos de negao e de revolta persistem at que haja a aceitao da morte do ente querido e a superao do luto. O tema morte se torna um terreno ainda mais delicado quando abordado em associao com o tema doao de rgos (Silva e Silva, 2007).

    Bachega et al. (1997, apud Alencar, 2006) apontam que a morte sbita impossibilita quaisquer condies e tempo hbil para haver um preparo psicolgico, capaz de absorver o choque da notcia, em to curto espao de tempo. O despreparo cultural e educacional da sociedade para lidar com a questo do morrer dificulta a aceitao, por parte dos familiares. Este fato deve alertar sobre como os parentes tm

  • 16

    dificuldade de encarar este momento e a necessidade de serem abordados de forma especial, com um acompanhamento multiprofissional.

    Assim, as informaes envolvendo os potenciais doadores de rgos so difceis de serem elaboradas pelos familiares, pois se traduzem, segundo Emed e Emed (2003, apud Alencar, 2006), em um grande impacto para a famlia, que vivencia uma sucesso de fatos, como saber da notcia do acidente seguida de internao em UTI, o estado de coma e, na seqncia, a informao a respeito da ME (morte enceflica) de seu familiar. Apoiada nesse referencial, a morte enceflica remete morte psquica e biolgica, porm a fisiolgica ainda se mantm e a sociolgica determinada pelos familiares. Dessa forma, os familiares o vem como pessoa, no somente como um

    corpo.

  • 17

    7. MORTE ENCEFLICA

    Segundo Glezer, (2004), o diagnstico da morte enceflica eminentemente clnico, porm, para a finalidade de transplante, alguns servios do mundo exigem realizao de exames subsidirios comprobatrios. Talvez os exames comprobatrios sejam exigidos por problemas puramente jurdicos, uma vez que os mdicos temem serem levados aos tribunais por acusao de terem levado morte uma pessoa que j morreu.

    Para esse autor, o conceito de morte vem sofrendo mudanas no decorrer do tempo. Os avanos da medicina, que incluem tcnicas de ressuscitao cardaca, respiradores artificiais e circulao extracorprea, tornaram obsoleta a definio tradicional de morte clnica. As dificuldades no atendimento de pacientes crticos nas Unidades de Urgncia e Emergncia e nas Unidades de Cuidados Intensivos levam tambm necessidade da definio do diagnstico de morte enceflica com a finalidade de estabelecer o prognstico dos pacientes, orientar a conduta mdica, oferecer informaes aos familiares, alm de otimizar leitos dentro das complexas instituies hospitalares.

    A tecnologia moderna que prolonga uma vida de modo indefinido atravs de tcnicas artificiais torna imperativo que se defina a morte clnica.

    Os programas de transplante de rgos exigem uma conceituao perfeita do critrio de morte.

    Hrcules, (2005), afirma que entre todos os que de alguma forma se preocupam ou se dedicam ao cuidado de seres humanos, h grande dificuldade em definir quando a vida termina. Como vivemos em um ambiente social e cultural de pluralidade, no qual as pessoas no compartilham da mesma idia sobre a vida e a morte, a questo suscita conflitos.

    Silva e Silva, (2007), apontam que de acordo com a Comisso para Estudos dos Problemas ticos na Pesquisa Comportamental Mdica e Biomdica, morte enceflica um quadro clnico num paciente portador de doena estrutural ou metablica conhecida, de carter completo e irreversvel, expressando falncia total de todas as funes de todo encfalo, inclusive do tronco enceflico; quadro clnico que persiste de maneira invarivel por um perodo mnimo de seis horas.

    importante diferenciar morte enceflica de morte cerebral; nesta ltima, partes ou todo o tronco enceflico (mesencfalo, ponte e bulbo) e ainda o cerebelo podem

  • 18

    funcionar, sendo esta condio, chamada de sndrome aplica, estado vegetativo persistente.

    Segundo Glezer, (2004), atualmente, se aceita o conceito de morte enceflica como o de morte clnica, contando-se com o apoio da grande maioria das autoridades civis e religiosas.

    A responsabilidade para determinao da cessao irreversvel da atividade cerebral cabe ao neurologista.

    O papa Pio XII, em 1958, declarou que todo pronunciamento sobre a morte de responsabilidade da medicina e no da Igreja. Concerne ao mdico dar uma precisa e clara definio de morte e do momento em que ocorreu.

    Mollaret e Goullon (1959, apud Glezer, 2004) descreveram a situao de coma dpasse, situao essa em que encontramos um crebro morto num corpo vivo. Desde ento, muitos autores tm tentado demonstrar como se define e se diagnostica a morte enceflica. O trabalho mais reconhecido o da Ad Hoc Committee of the Harvard Medical School, que passa a definir o chamado coma irreversvel.

    Os critrios utilizados atualmente so muito semelhantes, diferindo apenas em relao ao tempo de observao do paciente e em relao realizao ou no de exames subsidirios comprobatrios da morte enceflica.

    Em quaisquer dos protocolos hoje utilizados para definir morte enceflica existem dois pontos bsicos e indispensveis:

    1. A causa da leso cerebral deve ser necessariamente conhecida, seja ela uma leso estrutural ou metablica;

    2. Estruturas vitais do encfalo, necessrias para manter a conscincia e a vida vegetativa, esto lesadas irreversivelmente.

    No Brasil, o conceito de morte enceflica foi feito por ocasio do primeiro transplante a partir de cadver em 1968. Tal conceito era baseado apenas em critrios eletroencefalogrficos.

    Em 1983, o Hospital das Clnicas da Faculdade de Medicina da USP, pioneiro no transplante de rgos na Amrica Latina, estabeleceu seu critrio de morte enceflica.

    Tal critrio baseado na constatao clnica de um coma aperceptivo, ausncia de reflexos ou movimentos supra-espinais, sendo excludas as situaes de hipotermia e depresso medicamentosa com uma observao mnima de seis horas. Tal achado clnico deve ser necessariamente respaldado por um exame subsidirio que demonstre

  • 19

    inequivocamente ausncia de atividade eltrica cerebral ou ausncia de perfuso sangnea cerebral ou de atividade metablica.

    A grande maioria dos critrios de morte enceflica exclui as crianas com menos de sete dias, pois no h um consenso na literatura sobre o diagnstico e confirmao da situao de morte enceflica em crianas abaixo de sete dias.

    No que tange aos exames comprobatrios de morte enceflica, os mais confiveis e aceitos atualmente so os que demonstram a total ausncia de perfuso sangnea enceflica. Como tcnicas disponveis temos a angiografia cerebral completa, angiografia cerebral radioisotpica, Doppler trans-craniano, tomografia computadorizada com contraste ou com xennio, SPECT, entre outros. Tambm podemos utilizar como exame subsidirio o eletroencefalograma e o estudo dos potenciais evocados, que devero revelar a ausncia de atividade eltrica cerebral e o Pet-scan, que revela ausncia de atividade metablica.

    Em suma, para o diagnstico da morte enceflica interessa exclusivamente a arreatividade supra-espinal, pupilas paralticas, ausncia de reflexo crneo-palpebral e ausncia de reflexos culo-vestibulares.

    A presena de sinais de reatividade infra-espinal (atividade reflexa medular), tais como reflexos osteo-tendinosos, cutneo abdominal, cutneo plantar em flexo ou extenso, cremastrico superficial ou profundo, ereo peniana reflexa, arrepio, reflexos flexores de retirada dos membros inferiores ou superiores e reflexo tnico cervical no invalidam o diagnstico de morte enceflica.

    Em relao prova da apnia, ver anexo I.

  • 20

    8. LUTO

    Segundo Parkes, (1998), o luto a manifestao de reaes a uma perda significativa, pois h o rompimento dos vnculos que as pessoas estabelecem umas com as outras. A perda de uma pessoa significativa uma situao altamente estressante, sendo o luto uma resposta normal de enfrentamento. Portanto, no uma doena. um processo e no um estado.

    Todas as famlias ao longo de suas histrias passam por momentos de crise que desestruturam certa ordem estabelecida. A durao deste momento, bem como as conseqncias que trar, ir depender de fatores como: a preparao da famlia para o evento, a estrutura social na qual est inserida, a intensidade e a forma como tudo transcorreu. A morte de um dos membros da famlia um desses momentos marcantes de crise pelos quais ela passar. A forma como a morte encarada varia drasticamente de cultura para cultura, e de uma poca para outra (Silva, 2003).

    Aps a morte de um ente querido espera-se que a famlia inicie o processo de luto e durante esse perodo delicado que as equipes de sade devem fazer o pedido de doao famlia. Assim, o incio do luto dessa famlia deve ser considerado pelo profissional que vai pedir a doao. Ele deve perceber o estado emocional do familiar e ainda, levar em conta seus comportamentos, sentimentos, sintomas e cognies, identificando possveis interferncias que o seu estado pode acarretar antes de dar incio entrevista para a captao de rgos.

    A aceitao da morte de pessoas prximas ocorre de modo gradual e lento. O envolvimento com a pessoa que se foi, como se ainda pudesse estar viva, e os sentimentos de revolta e negao da realidade persistem entre os familiares at que haja a aceitao da perda e a superao do luto.

    Assim, percebe-se a necessidade de um acompanhamento profissional dos familiares de doadores para que de alguma forma o processo, doloroso por si s, no fique associado a uma percepo negativa a respeito da doao.

    Vale a pena compreender como o processo de luto se desenvolveu ao longo da histria do homem.

    At o sculo XVIII, todas as pessoas admitiam a morte com certa tranqilidade; esperavam-na e a consideravam uma cerimnia pblica e organizada. Philippe Aris (2003, apud Kioroglo, 2005) a descreve como a morte domada, isto quer dizer, uma morte ao mesmo tempo familiar e prxima. Porm, ao longo dos tempos a idia da morte foi sutilmente sofrendo modificaes, chegando atualmente a amedrontar as

  • 21

    pessoas a ponto de seu nome ser temido. O que antes era aceito como parte da vida, de modo a no ser evitado e nem exaltado, passou outra extremidade, sendo constantemente negada. Kovcs (2003, apud Kioroglo, 2005), diz que o ritual da morte e do luto passou a ter um carter dramtico com uma carga de emoo que antes no possua e a morte passou a se associar com fracasso.

    No sculo XVIII, as relaes passaram a se fundamentar no sentimento. s famlias enlutadas era permitido manifestar sua dor, mas no exalt-la em demasia, pois tambm lhes era imposto um perodo de visitao social aps a morte do ente querido.

    No sculo XIX, o luto perdeu essa defesa e ganhou a expresso insupervel de grande dor, atravs de desmaios, choros e desfalecimentos.

    Tornou-se mais difcil aceitar a morte. O grande sofrimento ligado a ela fez com que fosse sistematicamente ocultada. A famlia tentava poupar o doente, ocultando a gravidade de seu estado. O doente que porventura reconhecesse a gravidade da sua doena, ou pelas informaes de seu prprio corpo, ou pelo que captava ao seu redor, fingia que nada sabia para poupar do sofrimento os seus familiares. Assim, cada um se entrincheirava em uma mentira, e, como conseqncia, uma comunicao importante

    deixava de existir. No sculo XX, o luto passou a ser solitrio e vergonhoso e passou a se valorizar

    as atitudes discretas. A morte interdita se instalou ocorrendo uma recusa da morte e um medo do sofrimento daqueles que esto enlutados. O hospital passou a ser o cenrio no qual a morte ocorria e, em geral, o paciente a experimentava sozinho.

    A obrigao de o enlutado sofrer, s e s escondidas, o recalque da dor e a interdio de sua manifestao pblica agravava consideravelmente o trauma devido perda de um ente querido.

    A famlia participa do processo de morte de um ente. As atitudes frente a esta situao variam desde uma apatia, passividade e afastamento at uma preocupao excessiva e aproximao. O luto uma situao de crise na qual uma relao anteriormente estabelecida rompida. Isto traz uma demanda sistmica de ordem emocional e relacional que recai sobre a famlia e grupos sociais relacionados pessoa morta. E para que um luto saudvel ocorra importante dar vazo ao sofrimento, ao contrrio do luto complicado no qual as emoes so bloqueadas e o choro engolido. Segundo Fonseca, (2004, apud Kioroglo, 2005) quando o luto inibido, adiado ou se torna crnico, estamos frente ao luto complicado ou patolgico.

  • 22

    O luto faz parte da vida das pessoas e inclui respostas psicolgicas, fisiolgicas, sociais e comportamentais. O luto vivenciado na famlia envolve reaes em cada indivduo, mas tambm no sistema familiar como um todo.

    Neste processo, pode estar presente uma dificuldade e embarao em mencionar a morte ou o morto, lidar com seu prprio luto e com o dos outros membros da famlia; pode faltar um contexto familiar para expressar a raiva, a tristeza e a culpa. O luto um ritual de expresso dos sentimentos mais intensos de amor e afeto da existncia humana, o que para Tavares (2001, apud Alencar, 2006) definido como estar do lado da morte, como evento e tambm do lado da vida, como processo. um processo em duas direes, que visa preservao das lembranas do falecido e a predisposio para o estabelecimento de novos vnculos afetivos. preciso assimilar a perda e a transformao para que a famlia enlutada possa efetivamente continuar sua trajetria de vida.

    Os enlutados tm que aprender a desempenhar novos papis, at ento vividos pela pessoa falecida, num momento de sofrimento e instabilidade emocional. (Parkes, 1998).

    Segundo Viorst (1988 apud Alencar, 2006), o tempo decorrido entre uma perda significativa, sua aceitao e a minimizao das lamentaes no pode ser determinado, contando com a possibilidade de que elas nunca terminem. A durao das lamentaes varivel, pois depende da forma como cada um a sente, da idade de quem vivencia a perda e a de quem falece, de quanto o familiar est preparado para enfrentar a perda, as circunstncias em que a morte ocorreu, da trajetria de vida do enlutado e de sua histria ao lado da pessoa que morreu, das significaes particulares em relao ao amor e s perdas.

    A morte de um familiar obriga a uma abrupta necessidade de reflexo e questionamento em relao sua vida, seus valores, crenas, sobre a sua revolta diante da perda. Durante esse perodo, sua vida permanece suspensa entre dois patamares, o passado e o futuro, e o indivduo precisa angariar foras internas e externas para transpor esta distncia que os separa. Nesse rduo trajeto, coisas do passado devem ser abandonadas, afastadas, desligadas da vida da pessoa e outras coisas podem ser usadas como base para a construo do futuro (Viorst, 1988, apud Alencar, 2006).

    Aps a perda de uma pessoa amada h uma demanda de atendimento em servios de sade, e grande parte dessas queixas fsicas so apenas expresses do luto (Parkes, 1998).

  • 23

    Segundo Viorst (1988, apud Alencar, 2006), a pessoa enlutada deve escolher como conduzir sua vida. Dentre as opes esto morrer junto com o morto, ou seja, perder a alegria de viver; continuar vivendo como uma pessoa incapaz de transpor a barreira determinada pela perda; ou super-la, buscando uma nova maneira de enfrentar a vida, com a dor e a lembrana, porm retomando gradativamente as atividades do cotidiano, com as adaptaes pertinentes. Para essa autora, por meio do lamento, podemos reconhecer, sentir e superar a dor da perda, aceitando as dificuldades advindas da morte do ente querido.

    Antigamente se enxergava o trabalho de superao do luto como cognitivo, comportamental e emocional. O objetivo era o desaparecimento dos sintomas e a superao do luto. Isto no quer dizer que se desconsiderassem as manifestaes do luto mesmo aps a sua resoluo.

    Modernamente, foca-se o luto como um processo que dura por toda a vida, contemplando experincias de sofrimento e aspectos de celebrao, mantendo-se a conexo com o ser que morreu. Dentro do luto h aspectos de dor intensa, mas a dor intensa pode acabar, permanecendo o luto como experincia duradoura atravs do tempo (Moules, 2004).

    No h a resoluo do luto, mas a incorporao da perda vida cotidiana, mantendo-se a conexo com a pessoa que morreu de forma a permitir que a vida continue sem percalos (White, 1989; Klass et al, 1996; Moules et al, 2004).

    Este trabalho de Moules et al, (2004), desenvolvido por profissionais treinados para tal, tem seu foco em auxiliar a famlia a mudar a estrutura conectiva, reestruturar, reordenar, ressignificar e recriar relaes e conexes. No h escolhas quanto ao fato da perda, mas pode haver escolhas quanto ao processo de luto. E este pode ser construtivo, de acordo com a resilincia do esprito humano (Moules et al, 2008). A proposta desses autores que profissionais habilitados trabalhem com as famlias, conduzindo-as por um caminho atravs do sofrimento e da dor, para construrem uma relao com o luto que seja aceitvel, criativa e que torne a vida mais rica. As intervenes mais apropriadas so as que abrem a idia de que no h respostas, mas que o desafio do luto viver com as perguntas. O luto comparado a um mar com ondas, s vezes muito altas e fortes, que fazem a pessoa quase se afogar, e, s vezes, pequenas e brandas, permitindo que se nade confortavelmente. Como no mar, esses momentos se alternam no luto. Uma outra interveno auxiliar a pessoa a no lutar contra o mar, mas se

    adaptar a ele e aprender como dom-lo.

  • 24

    Outra forma de interveno , de forma metafrica, considerar o luto como um hspede que no foi convidado, mas que interfere em todos os aspectos da sua casa. Se no se fizer um quarto para esse hspede indesejado, ele continuar indefinidamente a atrapalhar o lar (Moules et al, 2004).

    O luto deve ser a experincia de se manter uma relao com a pessoa que se foi, que, embora ausente fisicamente, permanece como um membro da famlia. A morte no deve significar o fim de um relacionamento, mas a mudana deste, com novas dimenses e possibilidades (Klass, Silverman e Nickman, 1996).

    Um paciente com doena crnica ou terminal possibilita famlia uma vivncia de luto antecipatrio e a possibilidade de se despedir lentamente. Quando a morte ocorre subitamente, por motivos como acidente, homicdio e suicdio, as reaes emocionais desencadeadas so devastadoras e podem trazer a sensao de irrealidade sobre o ocorrido; acrescenta-se a essas famlias a dor do pedido de doao de rgos do seu ente querido.

    nesse contexto que a famlia vivencia o processo de luto. Para que haja melhor aceitao sobre o processo de doao, os familiares devem ter tempo para aceitar a morte de seu parente, tempo esse que escasso. Estudos de Roza, (2005, apud Kioroglo, 2005) mostram que a famlia necessita de informao e suporte emocional desde o momento de internao do familiar. O que pode possibilitar o incio do processo de luto, quando h o consentimento sobre doao, que a famlia tenha apoio da instituio e do profissional de sade em todo o processo, recebendo informaes e tendo a oportunidade de visitar o doador, antes e aps a doao.

    Para que a doao seja efetivada necessria a responsabilidade legal da famlia que sofre as reaes do processo de luto descrito por Fonseca, (2004, apud Kioroglo, 2005), e so elas: choque, negao, ambivalncia, revolta, negociao, depresso, aceitao e adaptao. Num processo de doao de rgos, a famlia as vivencia com o agravante de no ter disposio o corpo do familiar e, algumas vezes, o sofrimento pela sensao de mutilao do mesmo. Verble e Worth (1999 apud Kioroglo, 2005) descrevem que o medo da mutilao uma significante barreira para a doao de rgos, e, podemos pensar que tambm seja um obstculo para a elaborao do luto. A apropriao do corpo do familiar, sem previso para devoluo famlia e as dificuldades em visit-lo nesse perodo alteram os hbitos e rituais religiosos que fazem parte do processo de luto e da despedida da famlia, que se prepara, aos poucos, para lidar com a sua perda.

  • 25

    Muitas famlias referem que o processo de doar torna-se menos doloroso quando sabiam do desejo do doador em vida a respeito da doao (Sadala, 2001).

    As reaes dos familiares so diversas em resposta s prprias necessidades de se despedir do corpo, assim como cada um apresenta formas diferentes de interpretar os significados de doar rgos. Portanto, no se trata somente dos familiares terem conhecimento e informao a respeito de morte enceflica e doao de rgos, mas sim das formas peculiares que cada um reage situao de acordo com suas crenas, e seus valores. Cada um tem seu modo de encarar morte e vida e essas diferenas dentro do ncleo familiar provocam conflitos em relao ao consentimento para a doao (Sadala, 2004).

    importante reconhecer a dificuldade das famlias no entendimento do conceito de morte enceflica, cujo diagnstico pode demorar horas ou dias. Os familiares tm que vivenciar o processo de luto associado necessidade de consentir ou no na doao em curto espao de tempo. A deciso complexa e a famlia deve se pronunciar sobre um assunto no qual a pessoa em morte enceflica pode nunca ter mencionado ou ter sido abordado no meio familiar, alm de poderem surgir opinies conflitantes e desconcertantes entre os membros da famlia. Devemos considerar tambm no processo de doao o tipo de famlia que vivencia o processo de luto. Assim, em famlias que tenham dificuldades intrnsecas nas tomadas de deciso, ou onde haja muitos dos seus membros extremamente participantes, podem surgir desavenas e conflitos na tomada da deciso final. J, famlias que mantm distanciamento entre seus membros, executam a tomada de deciso de maneira mais eficiente, embora no menos dolorosa, porm, possivelmente permeada por culpa e arrependimento devido comunicao ineficaz entre si.

    A doao pode assumir diversos significados para os familiares. H os positivos como conforto, satisfao e honra, confiana na equipe de sade, qualidade e satisfao no atendimento hospitalar, segurana nas informaes fornecidas, respeito s crenas/valores dos familiares pela equipe de sade, acolhimento famlia durante o processo da morte e consentimento Livre e Esclarecido que podem contribuir positivamente no processo de elaborao do luto. Mas, h tambm os negativos como dor, sofrimento e processo longo e burocrtico que podem interferir negativamente. Pearson et al (1995 apud Kioroglo, 2005), descrevem que a doao est inevitavelmente associada ao luto, podendo representar aumento de estresse para os familiares.

    H dois importantes complicadores do processo de luto durante o processo de doao de rgos. O primeiro envolve o fato de a morte ser geralmente violenta ou

  • 26

    repentina, que surpreende e choca, no possibilitando um luto antecipatrio, diferentemente do que ocorre em doenas terminais. O segundo complicador envolve o fato de os indivduos serem jovens e saudveis, configurando-se uma morte no natural, na qual o processo de luto ainda mais doloroso, pois envolve o luto do futuro, correspondente s expectativas daquilo que a pessoa morta poderia vir a ser.

    A idia de manter um parte do ente-querido vivo em outras pessoas pode configurar deciso consciente do familiar para aliviar o seu sofrimento, o que pode possibilitar auxlio no processo de luto por doao. Por outro lado, possvel refletir esse desejo como a negao da morte do ente querido que de alguma forma permanece vivo em um outro corpo, o que lhe acarreta alvio e consolo. A necessidade de algumas famlias em estabelecer contato com os receptores pode significar grande dificuldade em lidar com o processo de luto.

    Os familiares doadores vivenciam momentos ambguos, como a morte de um ente querido e a possibilidade de melhorar ou salvar a vida de pessoas que aguardam pela doao. Os familiares se defrontam com questionamentos e discusses que podem resultar ou no na recusa doao de rgos, mas que certamente interferem no processo de luto.

    Para Silva, (2003), a morte sempre tem algo de doloroso que necessita ser vivenciado. Por esta razo, as diversas sociedades criaram formas especficas de rituais de passagens na tentativa de aliviar a dor e poder se adaptar a uma nova realidade.

    Segundo Sadala, (2004), as cerimnias e rituais de passagem nas situaes de desaparecimento das pessoas esto determinados por fatores culturais e religiosos peculiares s comunidades. Eles envolvem um tempo de permanncia com o cadver, o tempo de despedida e um tempo para os ritos religiosos. A aceitao da perda e o perodo de luto acontecem atravs desses rituais culturais e religiosos que paulatinamente preparam a famlia para lidar com a perda. Dentro desse contexto, o impacto da notcia da morte acompanhada pelo pedido da doao de rgos representa uma ruptura na cronologia dos rituais necessrios admisso da morte do outro, podendo dificultar o processo de luto. Para Silva, (2003), a famlia a fora primria que opera nesses momentos. ela, mais do que a cultura, que determina a qualidade emocional dessas ocasies e o sucesso da passagem.

    Desse modo, compreende-se o quanto as famlias so importantes nestes rituais. O ritual moldado pela cultura, mas a energia para ele emana da famlia. Assim, a famlia que conduz o luto.

  • 27

    O luto, em nossa cultura ocidental, at bem pouco tempo era bastante facilitado pelos velrios que eram assistidos por toda a comunidade. As pessoas mesmo que relativamente desconhecidas, vinham prestar suas condolncias famlia. Vizinhos assumiam as tarefas da casa durante esse perodo, que podia persistir por dias. Desse modo, as pessoas enlutadas viam-se livres e acolhidas pelo coletivo para vivenciar o seu processo, o que de uma forma geral, trazia uma boa elaborao da perda. Nessa tentativa de dominar a morte, os familiares enlutados desenvolvem maneiras de agir, utilizando-se de suas referncias culturais, expressas por meio dos ritos fnebres. Os atos fnebres, portanto, pretendem reorganizar o caos desencadeado pela morte, atendendo s funes agregadoras, protetoras, re-ordenadoras e de separao (Martins, 2001, apud Alencar, 2006).

    O funeral representado pelo momento em que ocorrem as ltimas despedidas, buscando-se o domnio do sofrimento e a conscientizao da perda, demarcando o recomeo da vida sem a pessoa falecida e o enfrentamento da morte como fato real e concreto (Nichols e Nichols, 1996 apud Alencar, 2006). nesse momento que tem incio o processo de luto.

    Porm, nos dias de hoje, onde o tempo transformou-se em um bem precioso, tais rituais tornaram-se menos viveis. A antiga presena fsica e solidria cada vez mais substituda por telefonemas e cartes de condolncias. A prpria morte no mais vivenciada em casa, mas, sim em um hospital, com um velrio rpido, realizado no prprio cemitrio poucas horas antes do enterro, quase apenas para cumprir um protocolo. A prpria sociedade assim, se prejudica, pois quanto mais evita o contato com a morte, maior seu desconhecimento sobre ela e maior o medo.

    Entretanto, mesmo que de uma forma precria, as famlias e os prprios indivduos desenvolvem formas especficas de lidar com as perdas. As interaes sociais mostraram-se extremamente importantes neste processo.

    Bousso, (2008), aponta que a famlia cita a influncia positiva dos amigos e parentes no processo de deciso de doao de rgos e apresenta, enfaticamente, como a conversa com parentes pode lev-la a enxergar a morte iminente do seu ente querido, abrindo-se ento para a possibilidade para a doao dos rgos. importante ressaltar que, em nossa perspectiva, a influncia positiva no aquela que leva a famlia a

    autorizar a doao, mas sim, a que conduz a famlia a uma trajetria de recuperao do sofrimento, seja ela autorizando, ou no, a doao de rgos.

    As famlias revelam a dor e o sofrimento pela perda e tambm pelo processo de doao, sendo que aps esse momento h uma longa espera para o recebimento do

  • 28

    corpo, o que as obriga a tomar todas as providncias quando esto extenuados, sem orientao ou apoio de qualquer ordem. A demora no processo de doao de rgos um fator complicador para essas famlias iniciarem o processo do luto.

    Para concluir citamos Bousso, (2008), a qual afirma que o profissional de sade deve cuidar da famlia, durante a experincia de morte e luto. Em vez de oferecermos a possibilidade da doao e depois abandonarmos a famlia, podemos extrair o melhor da famlia estimulando processos fundamentais para encorajar seu crescimento diante do caos. A interveno precoce constitui uma medida preventiva e nossa obrigao.

  • 29

    9. O PROCESSO DE DOAO

    Em janeiro de 1997, uma nova lei dos transplantes foi publicada. A Lei n 9.434, de iniciativa do Legislativo, sem a participao do Ministrio da Sade e das associaes mdicas, modificou a forma de consentimento para a doao no pas, passando para uma doao presumida, ou seja, determinando que todo indivduo era um potencial doador, a menos que houvesse uma clara disposio em contrrio.Isto trouxe luz uma grande discusso na mdia.

    Essa lei teve efeito contrrio ao pretendido, pois, os familiares de pessoas em morte enceflica passaram a recusar a doao, contrariando o disposto na lei (Sadala, 2004, Alencar, 2006).

    A partir de 22 de dezembro de 2000, a lei, em seu artigo 2o determina que as manifestaes da vontade de doar, constante nos documentos, perdem sua validade, determinando que a deciso familiar seja a nica forma de autorizao para doao de rgos e tecidos. Segundo Lei Federal no 10.211, de 23 de maro de 2001, a autorizao vir obrigatoriamente de cnjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessria, reta ou colateral, at o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes verificao da morte (Alencar, 2006).

    No decreto que regulamentou a lei (Decreto Lei n 2.268), em junho de 1997, o Ministrio da Sade criou o Sistema Nacional de Transplante (SNT) e as Centrais de Notificao, Captao e Distribuio de rgos (CNCDOs), conhecidas como Centrais Estaduais de Transplante, e estabeleceu a forma de distribuio dos rgos e tecidos atravs das listas de espera regionalizadas (Alencar, 2006).

    Os anos de 1997 e 1998 foram de grande movimentao na rea dos transplantes, participando todos os segmentos da sociedade, com destaque para a atuao da Associao Brasileira de Transplante de rgos, que delineou uma proposta de poltica de transplante para o pas. Em agosto de 1998 foi nomeado o Coordenador do SNT (Sistema Nacional de Transplantes) e criado o Grupo Tcnico de Assessoramento (GTA) e a partir de ento foram implantadas muitas das medidas consideradas como indispensveis para a efetivao desta poltica de transplante. Nesta poltica de transplantes implementada no pas, a partir de 1997, foram empregadas simultaneamente medidas legais, financeiras, organizacionais e educacionais (Kioroglo, 2005).

    Portanto, no Brasil, o processo de transplantes de rgos e tecidos atualmente regulamentado por uma legislao rigorosa, cujos tpicos principais contemplam

  • 30

    requisitos mnimos como o credenciamento de hospitais e equipes, a permisso de usar doadores falecidos, os critrios de diagnstico de morte, a forma de consentimento e permisso para uso de rgos de doadores vivos no parentes, a proibio do comrcio de rgos e as penalidades para as infraes (RBT, 2008).

    Sob o ponto de vista de legislao, eliminam barreiras legais que inviabilizem a realizao de transplantes no pas, e tentam torn-lo um procedimento seguro e tico.

    A criao de um fundo para financiamento dos transplantes, ressarcindo todas as principais etapas envolvidas foi fundamental para a implementao da poltica de transplantes no pas. Pela primeira vez na histria do transplante no pas se passou a trabalhar com dados reais de financiamento pblico para todos os transplantes, e com possibilidade de atualizar estes valores de acordo com o nmero de transplantes, de potenciais doadores identificados ou de novas medicaes imunossupressoras mais efetivas que ingressem no mercado. Este fundo, se mantido e reajustado de forma adequada, praticamente elimina a falta de financiamento como uma barreira ao desenvolvimento dos transplantes no pas (Idem).

    Algumas outras atitudes tm sido propostas para aprimorar os aspectos legais na rea, muitas delas visando um controle mais rgido da documentao exigida para a realizao de transplantes, outras, de ordem econmica, propondo auxlio funeral para as famlias dos doadores e acompanhamento mdico ps-transplante para doadores vivos, assim como um seguro de vida para o doador vivo, j que o procedimento de retirada de rgos para doao envolve risco de vida (Idem).

    Segundo Santos e Massarollo, (2005), o processo de doao definido como o conjunto de aes e procedimentos que transforma um potencial doador em doador efetivo. O potencial doador o paciente com diagnstico de morte enceflica, no qual tenham sido descartadas contra-indicaes clnicas que representem riscos aos receptores dos rgos. Este procedimento regulado pela Resoluo do Conselho Federal de Medicina n 1.480/97, que por determinao da Lei federal n 9.434/97, exige o parecer de dois mdicos no ligados equipe de transplantes para diagnosticar o evento. Esse processo pode demorar horas ou dias, o que pode causar estresse e trauma famlia e, com isso, comprometer desfavoravelmente o nmero de doaes.

    Aps a confirmao do diagnstico de morte enceflica, momento bastante difcil para a famlia, que o processo de doao de rgos, propriamente dito, tem incio. Imediatamente, os coordenadores de transplante, na maioria enfermeiros, que trabalham nas Organizaes de Procura de rgos (OPOs), fazem a avaliao do potencial doador e, se vivel, realizam a entrevista familiar quanto doao (ver anexo

  • 31

    II). Colocam a possibilidade da doao de rgos, averiguam o conhecimento e o preparo da famlia sobre a questo, explicam o processo de doao e aconselham que os outros familiares sejam consultados para a tomada de deciso.

    O segredo do sucesso na captao de rgos est na busca da doao, que implica nesta procura da famlia para a formalizao do pedido. Este pedido quase sempre feito em situaes desfavorveis, pois a famlia est assoberbada com informaes tcnicas de difcil compreenso, de notcias trgicas de difcil aceitao e elaborao que se sucedem e avolumam rapidamente. Portanto, preciso que se adotem condutas de aproximao pessoal que criem condies propcias doao, sem acrescentar mais sofrimento ou mais danos famlia. Uma das caractersticas principais de que a pessoa responsvel pelo primeiro contato no tenha pressa e que tenha um treinamento e dedicao especiais para o proposto (Faria e Sousa e Barretto, 1999).

    Para a manifestao do consentimento, importante que os familiares tenham os esclarecimentos necessrios sobre o processo de doao, incluindo o diagnstico de morte enceflica. Segundo pesquisa de Sadala publicada em 2004 onde estuda a inter-relao entre enfermeiras, mdicos e familiares de doadores fica claro que muitas dessas famlias tem dificuldade para compreender as orientaes dadas, to necessrias para tomar a deciso de doar.

    A informao de que o paciente est em morte enceflica gera dor e desespero nos familiares, principalmente em pacientes vtimas de morte violenta, em sua maioria jovens. O tempo decorrido entre a causa determinante da internao e a evoluo para morte enceflica geralmente exguo para que a famlia absorva todas as informaes que se sucedem intempestivamente, ou seja, internao, tratamento, suspeita e confirmao de morte enceflica, pedido de doao de rgos. A famlia fica chocada ao receber essa informao, principalmente quando no h esclarecimento prvio sobre essa possibilidade. J a famlia que informada sobre o incio dos exames para confirmao do diagnstico de morte enceflica tem a possibilidade de se preparar melhor para a morte do parente.

    O entendimento correto de morte enceflica um dos fatores que influem no processo de doao de rgos. O desconhecimento e/ou no aceitao da morte enceflica compreensvel, uma vez que, classicamente, a morte era definida como a cessao irreversvel das funes cardaca e respiratria. Na morte enceflica, h o perodo pr-transplante, em que a viabilidade dos rgos a serem doados mantida atravs de mtodos artificiais que garantem a oxigenao e perfuso dos tecidos e permitem a continuidade das funes vitais. Ento, o paciente est morto, mas, ainda

  • 32

    que artificialmente, permanece quente, com o corao batendo, respirando, sinais que normalmente reconhecemos como presena de vida. Isto pode gerar confuso e resistncia, no somente na populao, mas, tambm, entre os profissionais de sade (Sadala, 2004).

    A famlia informada que, aps a autorizao da doao de rgos, o potencial doador ser transferido para um hospital, quando necessrio, para a realizao do exame complementar para a confirmao do diagnstico de morte enceflica. O coordenador de transplante assegura que, caso esse diagnstico no se confirme, a famlia comunicada. A famlia, sabendo do diagnstico clnico de morte enceflica e consciente da irreversibilidade do quadro, sente-se mais tranqila e segura quando constatada a morte atravs do exame complementar, e quando eventualmente acompanha de forma mais prxima os exames complementares de confirmao.

    A famlia, ento, informada sobre os possveis atrasos na liberao do corpo, em funo de intercorrncias na realizao dos exames para o diagnstico de morte enceflica, do tempo de cirurgia necessrio para a extrao dos rgos e do encaminhamento do corpo ao Instituto Mdico Legal (IML), nos casos de morte traumtica (Sadala, 2004).

    Nestes ltimos, torna-se necessrio lavrar o boletim de ocorrncia do bito, a fim de que o delegado solicite o transporte do corpo ao IML, para a realizao da necrpsia. As informaes sobre como proceder, onde ir e o tempo para a liberao do corpo so imprecisas, fazendo com que os familiares considerem que os nicos que so atenciosos e que do informaes claras so as pessoas que vendem o servio funerrio em frente ao IML. O longo tempo, os trmites e as informaes contraditrias no processo de liberao do corpo pelo IML causam transtornos e incomodam os familiares (Idem).

    A sensao de impotncia diante da nica perspectiva -esperar pela liberao do corpo, aumenta o estresse da famlia, que se encontra cansada, sem energia e num estado emocional abalado. Alm disso, na situao de espera pela liberao, o estresse intensificado, quando existe a possibilidade de atraso ou presso dos demais membros da famlia, para a liberao rpida do corpo (Alencar, 2006).

    Uma das famlias participantes do estudo de Alencar, (2006), relata que no doaria e no recomendaria a doao de rgos e tecidos, devido insatisfao ocasionada pelo processo. Esta ocorrncia interferiu na famlia a ponto de os membros que se consideravam reconhecidamente doadores em vida ficarem em dvida ou desistirem de ser doadores; conforme relato da me de um doador:

  • 33

    Se eu tivesse algum conhecido com o filho na UTI, eu no iria falar para eles doarem rgos, pela lentido [...] porque a angstia deles vai ser pior e depois eles vo ficar bravos comigo. Conforme relato do pai do doador: At o pessoal da Central [de Transplantes] queria que a gente fizesse parte daquela campanha para fazer doao de rgos. No, no vamos fazer no, eu fiz, mas eu no sou mais a favor. Se fosse uma

    coisa rpida, da tudo bem, eu falaria para todo mundo. Mas essa angstia que voc tem [...] no sabe que horas vai poder ter o corpo do teu menino para poder enterrar, nada [...] a gente no sabia o que dizer para as pessoas [...] os parentes foram todos para o hospital, os amigos comearam a ir l em casa a noite e a gente no sabia mais nada. Se voc tem a certeza, agora vai ser rpido [...] no mximo tantas horas, da voc j se prepara, mas ali no sabia em quantas horas [...] voc vai falar para um pai ou uma me, que v, que ajude as pessoas, tudo bem que ajuda, ns ajudamos, eu sei que muitas pessoas morrem porque no pode receber o rgo, mas se o sistema fosse mais gil, da daria para fazer uma campanha, seno coitada, a famlia sofre muito. S se mudou em dois anos, de repente, em dois anos j mudou, ficou mais gil, mudou tudo, porque se for o mesmo que h dois anos atrs, eu no falo, para ningum (p. 126).

    A respeito da atuao do Hospital das Clnicas no processo de captao de rgos, alguns familiares consideram que, aps a doao, h o descaso com a famlia: ...a assistente social deu a maior fora incentivando a fazer isso...eles se prontificaram a ajudar, fazer tudo o que possvel. Depois eles fazem isso, eles abandonam tudo. A fica difcil para a famlia; At o momento da doao de rgo...mdico que eu nunca vi na frente...me cumprimentar, que seu gesto bonito, vai ajudar a gente e isso e aquilo. E depois da doao... o descaso que encontrei.... Alm do descaso, a demora no processo de retirada dos rgos provoca sofrimento. Torna-se, ento, muito complicado doar: ...alm de ser um mau aproveitamento, um processo muito lento...; ...fazer a doao tambm muito complicado...Ns ficamos com meu marido no hospital, ele morreu no dia 12, ele foi liberado no dia 14 de madrugada... (Sadala, 2001).

    A autora (Idem) cita ainda que dados semelhantes so encontrados na literatura: as famlias solicitam apoio da instituio durante todo o processo de doao, esperando por informaes e autorizao de visitas ao doador antes, durante e aps a retirada dos rgos. Notcias a respeito do sucesso do transplante, estado do receptor e finalizao de todo o processo so valorizadas pelas famlias.

    Este trecho do depoimento de indivduos estudados por Alencar em 2006 exprime bem o quanto as famlias doadoras valorizam essas informaes. Foi doado os

  • 34

    rgos dela tudo, j vai fazer um ano e oito meses, ningum se comunicou, ningum d satisfao [...] desse jeito ningum mais vai doar [...] a gente no sabe nada (p. 125).

    Pesquisas com enfermeiras e auxiliares de enfermagem de UTI descreveram situaes similares em relao s falhas das instituies que captam rgos: uma delas se refere assistncia aos familiares de doadores. Em contraposio, o Banco de Olhos do Hospital das Clnicas constitui uma exceo no tratamento dos familiares: agradece-lhes a doao dos olhos por meio de carta e oferece missa anual, homenageando os doadores. Embora, sejam atitudes ainda aqum do que se poderia oferecer, as famlias consideram um reconhecimento pelo seu gesto humanitrio (Sadala, 2001).

    Segundo Santos e Massarollo, (2005), o processo de doao inicia-se com a internao do paciente e termina somente com o sepultamento do mesmo, sendo considerado burocrtico, demorado, desgastante e cansativo. percebido como uma situao de empenho, complicaes e esperana no tratamento adequado e recuperao do paciente; de choque, dor, desespero e dvidas com a informao de morte enceflica; de espanto, irritao e desconfiana com a solicitao de doao; dificuldade e insegurana na tomada de deciso; de ansiedade na liberao do corpo e satisfao pela ajuda s pessoas necessitadas atravs da doao de rgos. A situao vivenciada sofrida e estressante, mas, freqentemente, no h arrependimento quanto doao dos rgos, pois, embora a dor da perda no termine, a atitude da doao conforta e traz satisfao.

  • 35

    10. A FAMLIA COMO AGENTE DE DOAO

    A perda de um membro da famlia vista como um estressor que afeta seu funcionamento normal e atinge as relaes sociais dentro do sistema familiar. A rotina da famlia muda, afetando todas as pessoas que convivem com ela. A doao de rgos do familiar, mesmo que este o desejasse em vida deixa marcas. Autorizar a retirada de rgos de um terceiro, que no pode decidir por estar morto, sem saber se essa seria a sua vontade prvia, significa assumir a responsabilidade de um ato lesivo contra a pessoa. Fatores de ordem religiosa e crenas pessoais dificultam muitas vezes essa deciso. A doao, portanto, sempre um ato difcil de enfrentar e a famlia, nesse momento dramtico e sofrido se une para que todos juntos possam chegar a um consenso. Dessa forma se faz necessrio entender o significado de famlia.

    Para Minuchin, (1982), a famlia um sistema aberto e em transformao constante pela troca de informaes com os sistemas extra familiares. As aes de cada um de seus membros so orientadas pelas caractersticas intrnsecas do prprio sistema familiar, mas podem mudar diante das necessidades e das preocupaes externas. Tais relaes, idealmente, se caracterizam por unio e por influncia recproca direta, intensa e duradoura (Laing, 1983).

    Calil, (1987), considera a famlia como um sistema que se autogoverna atravs de regras que definem o que e o que no permitido. No se trata de normas escritas. So crenas, fantasias, expectativas carregadas de emoes, segundo as quais so distribudos os papis e funes dentro da famlia; tais crenas do origem aos mitos familiares, e atravs deles constroem-se projetos de vida, atribuem-se papis (Silva, 2000). O sistema familiar oferece resistncia a mudanas alm de certo limite, mantendo, tanto quanto possvel, os seus padres de interao sua homeostasia.

    Gomes, (1999), define a famlia como um grupo de pessoas com caractersticas distintas formando um sistema social, baseados em uma ligao afetiva, estabelecendo, dessa forma, uma relao de cuidado dentro de um processo histrico de vida. A noo de sade da famlia depende dos recursos de cada membro e dela como unidade, para superao de crise e conflitos, evidenciando a busca por normalizar seu funcionamento atravs do cuidado e do estar com o outro.

    Segundo Messa, (2002), a famlia o primeiro grupo ao qual o homem est inserido, a rede inicial de relaes de uma pessoa. Funciona como uma matriz de identidade, dando a possibilidade de este pertencer a um grupo especfico e tambm se separar, participando de subsistemas e grupos sociais.

  • 36

    Para a famlia muito difcil aceitar e suportar a morte sbita de um familiar, freqentemente jovem e sadio. O processo desencadeado pelo pedido de doao de rgos agrega um fator estressor consideravelmente maior a um momento doloroso. Em funo da perda e da doao os familiares vivenciam uma experincia de choque, descrena, sofrimento e confuso, e mostram-se incapazes de compreender e aceitar a realidade (Johnson, 1992). Freqentemente, a famlia, mesmo informada da irreversibilidade do quadro do paciente, mantm a esperana de que seu ente querido possa sobreviver, esperana essa que termina com o anncio da morte enceflica (Santos e Massarollo, 2005).

    A dor muito intensa e ter tempo fundamental para que a famlia possa se acostumar com a idia da morte do paciente. Esta condio, entretanto, nem sempre possvel, uma vez que a informao da morte vem seguida da solicitao de doao, no possibilitando que os familiares elaborem a realidade.

    Distinguem-se, ento, segundo Sadala, (2001), duas formas de consentir: a doao como deciso escolha consciente que expressa a vontade da famlia e a doao apenas como concordncia forma passiva, um simples consentimento determinado pela presso externa. Entre essas duas formas, possvel identificar posies intermedirias: h famlias que concordam imediatamente com a doao ou que, aps reunies e conversas entre si, acabam por autoriz-la. Em outras situaes, aparece o conflito: alguns membros so contrrios doao, negam que o familiar tivesse consentido em vida, contrariamente ao depoimento de outros. Nesse caso, seus depoimentos so muito sofridos e contraditrios.

    Segundo Bousso, (2008), a tomada de deciso da famlia um processo composto por 4 fases:

    1. O impacto da tragdia. A experincia comea com a famlia vivendo o impacto da tragdia,

    caracterizada pelo anncio do acidente e/ou da internao do familiar na UTI. A famlia encontra-se vivendo um pesadelo. Neste incio da experincia, surpresa com a ocorrncia do acidente, ela fica preocupada com o prognstico e amedrontada com a possvel morte do familiar. O desconhecimento dos detalhes dos momentos que antecederam a tragdia ou da causa do agravamento do quadro clnico faz com que a famlia se perceba sem recursos para entender o que levou seu ente querido a esta situao e passa a viver um vazio na histria da tragdia.

    A famlia procura, ento, significados e respostas para a atual condio de sade do familiar e para a sua prpria condio como unidade familiar. O que visto, ouvido e

  • 37

    sentido permanece com ela durante todo o processo. A experincia segue com a piora do quadro clnico. Esta outra condio leva a famlia a receber a notcia da provvel morte enceflica e da possibilidade de doao de rgos, dando incio segunda fase da experincia, que caracterizada pela famlia trabalhando com as incertezas da morte enceflica.

    2. Trabalhando com as incertezas da morte enceflica Compreender as mudanas nas condies clnicas e aceitar a morte enceflica,

    reconhecendo a morte do seu ente querido a condio que determina a disposio da famlia doar ou no rgos.

    Num contexto de dor e sofrimento, compreender as informaes recebidas e interpretar os comportamentos da equipe torna-se um desafio. A famlia capaz de entender o conceito de morte enceflica, mas, precisa de seu tempo para que este conceito faa sentido na sua realidade. Muitas vezes, os familiares no dispem do tempo de que necessitam para refletir e se dar conta da gravidade do estado clnico do seu familiar e, portanto, no conseguem definir a realidade da mesma forma que a equipe mdica, deparando-se com diferentes realidades e tempos.

    Embora muitos estudos mostrem que o desejo de ajudar os outros seja o motivo para doar, Pearson et al. (1995, apud Sadala, 2001) consideram que frases como: doar para ajudar outras pessoas refletem uma presso social, no sentido de forar uma deciso positiva.

    H o medo de doar os rgos da pessoa viva: Ser que ela estava morta mesmo? Ento, s vezes um coma profundo...Meu pai e minha me tava com muito medo (p. 145).

    A morte enceflica compreendida como a morte apenas do crebro: duro...a gente v l no aparelho e fala: vai tirar pra matar... (p. 145).

    O familiar imagina-se responsvel por desligar os aparelhos: ...sabendo que tinha um da famlia que tem que desligar o aparelho, ...quem desligou no sei... (p. 146).

    Segundo Sadala, (2004), as reaes dos familiares so diversas em resposta s prprias necessidades de despedir-se do corpo, assim como cada um apresenta formas diferentes de interpretar os significados de doar rgos. Portanto, no se trata somente de terem conhecimento e informao a respeito de morte enceflica e doao de rgos, mas sim de formas peculiares que cada um reage s suas crenas, aos seus valores e situao de perda e de como cada um encara a morte e a vida. Essas diferenas em

  • 38

    reagir, pensar e sentir dentro do ncleo familiar pode provocar conflitos em relao ao consentimento para a doao.

    3. Manejando o problema da deciso O suporte social influencia fortemente na reduo das incertezas. Os significados

    e respostas vo surgindo medida que os familiares interagem com os profissionais de sade, amigos, membros da famlia e com o meio. A famlia interpreta a situao e busca nas interaes sociais uma confirmao para sua interpretao. As conversas com familiares e amigos ajudam a confirmar sentimentos, percepes e valores. A confirmao da realidade ou novas formas de enxergar a situao ajudam na reduo da incerteza at se dar conta da complexidade e gravidade do caso.

    A credibilidade na equipe de sade constitui condio determinante no grau de incerteza da famlia. A segurana de que seu familiar foi atendido de forma exemplar, dentro de uma estrutura hospitalar que lhe ofereceu todas as possibilidades de tratamento, assim como estabelecer um vnculo de confiana com a equipe, ou com determinado profissional favorecem muito a tomada de deciso sobre a doao de rgos.

    Trabalhar com as incertezas da morte enceflica o componente do processo que habilita ou no a famlia a definir a realidade. A partir do momento em que ela se conscientiza de que tem um problema para resolver decidir sobre a doao de rgos inicia-se uma srie de redefinies em relao ao que considera certo. Dessa maneira, vai manejando o problema da deciso, para atingir seu objetivo de tentar minimizar a dor e aliviar o sofrimento de todos.

    O futuro importante para definir e avaliar a carga da deciso, em funo das possveis conseqncias que viro. A famlia imagina-se no futuro em ambas as situaes: autorizando ou no a doao. Assim, o futuro constitui objeto social para a deciso.

    Manejando o problema da deciso representa as estratgias da famlia tentando minimizar a dor e aliviar o sofrimento, que podem ocorrer de diferentes maneiras e em diversos nveis do sistema familiar. A famlia pode trabalhar chegando a um consenso quanto deciso; um nico membro da famlia pode assumir decidindo sem consultar os outros membros ou um ou mais deles acabam concordando com os outros, mesmo sem aceitar a deciso.

    A experincia como um todo pode estimular ou inibir a famlia a concordar com a doao de rgos. Ela se depara com o significado social da doao de rgos, que o de dar vida a outras pessoas. Para a famlia considerar esta possibilidade, implica,

  • 39

    necessariamente, que ela reconhea que o quadro irreversvel e que o seu familiar est morto. Diante desta condio, a deciso de autorizar a doao direcionada, tambm, por um aspecto moral, que determina a ao de salvar a vida de outras pessoas e tem como objetivo minimizar a dor e aliviar o sofrimento, durante o processo de luto.

    No entanto, a negao da realidade da morte do familiar ou a construo de qualquer outra realidade impede a famlia de autorizar a doao de rgos. Sente-se diante da possibilidade de estar alterando o curso natural da histria. Considera que o momento da morte estaria sendo demarcado pelo momento da retirada dos rgos, e isto no natural. E a famlia opta, ento, por outra estratgia: no autorizar a doao. Isto no quer dizer que seja uma deciso fcil, mas sim, que ela se encontra to saturada pelas emoes da experincia que prefere se manter em um contexto no qual se sinta mais segura, sem novas notcias ou eventos desconhecidos. A famlia procura evitar mais incertezas e assim se pronuncia, no autorizando a doao.

    A deciso da famlia comandada pelo objetivo de aliviar o sofrimento de todos, tanto fsico quanto emocional.

    4. Reconstruindo a histria da morte do seu ente querido. Reconstruir a histria da morte do seu ente querido faz parte do processo de luto.

    A aceitao da morte e da nova condio do sistema familiar so elementos essenciais ao esforo consciente da famlia rumo aprendizagem de como continuar vivendo.

    A famlia precisa de um tempo maior para abrir um espao perda e seguir em frente com a vida. Ela rev sua histria refletindo, avaliando, dando significado s suas aes e confirmando a deciso como certa.

    Se, por um lado, a deciso da autorizao da doao conforta e ajuda a famlia a dar sentido morte do seu familiar e prpria vida, por outro, no poder conhecer o receptor lhe uma grande frustrao. A famlia segue sua vida tendo a expectativa de conhecer o receptor e passa a conviver com esta conseqncia do processo. Esta interao simblica famlia e sociedade torna-se permanente para as famlias que autorizam a doao.

    Segundo Sadala, (2004), famlias manifestam o desejo de conhecer os receptores dos rgos doados. Essa vontade justificada pela necessidade da constatao de que os rgos foram utilizados e beneficiaram pessoas, no havendo a inteno de criar vnculo com os receptores ou causar transtorno. A famlia lamenta a informao de que no possvel conhecer os receptores.

    Freqentemente, a famlia doadora recebe uma carta notificando-a sobre o nmero de receptores beneficiados pela sua doao. Quando esse nmero no condiz

  • 40

    com o nmero de rgos doados, surge o questionamento quanto efetivao do transplante. H a crena de que todos os rgos doados so efetivamente transplantados, evidenciando a ausncia de esclarecimento sobre a possibilidade da no utilizao desses rgos.

    As quatro fases de transio reforam a natureza dinmica da experincia da famlia no processo de tomada de deciso e demonstram que o tempo limitado do qual ela dispe para se dar conta da terminalidade da vida do seu familiar uma condio que pode impedir a deciso de doar os rgos. Diante do caos que vivencia, precisa de tempo para dar um sentido s conseqncias irreversveis que a morte do seu ente querido vai acarretar para suas vidas.

  • 41

    11. A VIVNCIA DOS FAMILIARES DURANTE O PROCESSO DE DOAO DE RGOS E TECIDOS

    Neste captulo focaremos o trabalho de Alencar, (2006), sobre relatos fornecidos pelas famlias participantes do seu estudo, o qual evidencia a complexidade do processo de doao de rgos e tecidos. O estudo avalia o perodo compreendido entre o momento da entrevista familiar e da solicitao de rgos e tecidos at a liberao do corpo para a realizao dos ritos de velrio e sepultamento.

    Segundo a autora, na vivencia dos familiares no desencadeamento do processo de doao h cinco subcategorias, designadas: deciso de doar; percepo da famlia sobre o trabalho da equipe hospitalar; vivenciando os procedimentos de retirada de rgos e tecidos; distanciamento da CET-PR (Central Estadual de Transplantes do Paran) e ritos de velrio e sepultamento do doador.

    Os participantes do estudo referem o processo, como um momento de indefinies, marcado pela imprevisibilidade de tempo para liberao do corpo, sendo ressaltada a insuficincia de acompanhamento dos profissionais de sade dos estabelecimentos hospitalares aos familiares, os quais referiram sentimentos de solido e desamparo, acrescidos sobrecarga emocional decorrente da situao.

    1. Deciso de Doar Os familiares relataram a vivncia do processo de doao, desde o momento da

    entrevista realizada pela equipe hospitalar, o profissional que fez a abordagem visando obter a autorizao familiar para a doao de rgos e tecidos e como foi tomada a deciso. Relato do irmo de uma doadora:

    A assistente social do hospital no forou, simplesmente perguntou se a gente optaria por doaes, que tem uma fila grande e ela to saudvel, to nova [...] com 18 anos... Ela simplesmente perguntou e deu o caso para a gente decidir. A gente pediu [...] um prazo para a gente se reunir com a famlia, para ver, da a gente voltou at l [...] e assinou a documentao de doao (p. 85). Segundo me de uma doadora:

    A assistente social me chamou l na mesinha, me explicou os passos e tal,

    perguntou o que eu achava. Eu assim como me, nossa, eu no pensei duas vezes. Eu falei no, eu vou doar, eu libero [...] em momento algum, no tive dvida (p. 85).

    Os familiares expuseram que a entrevista a respeito da doao de rgos e tecidos foi realizada por assistente social na maioria dos casos e em apenas uma

  • 42

    situao foi citado o profissional psiclogo. Um dos argumentos utilizados na tentativa de sensibilizar os familiares foi a fila de espera, o estado de sade e a idade do potencial doador. Os familiares enfatizaram que nada foi forado e que lhes foi dada liberdade para decidir.

    Roza (2005, apud Alencar, 2006) ao falar sobre a entrevista para captao de rgos, aponta que o momento escolhido para conversar com os membros da famlia de um potencial doador em ME (Morte Enceflica). Esta deve ser conduzida por um ou mais profissionais que saibam orientar e esclarecer os parentes, para que possam optar em relao doao. Devido ao estado emocional dos familiares e especificidade do assunto, o profissional de sade responsvel pela entrevista deve estar capacitado para conversar com eles, dando informaes com clareza e pertinncia, esclarecendo suas dvidas e apoiando-os em suas necessidades. A atitude receptiva e a disponibilidade do profissional ao prestar os esclarecimentos famlia podem influenciar na deciso.

    Dentre a seis famlias residentes em cidades do Estado do Paran que participaram do estudo de Alencar, (2006), cinco relataram que optar pela doao resultou de um momento de reunio dos membros da famlia para tomar a deciso. Relato do pai de uma doadora:

    A me consentiu, ns todos da famlia, que podia doar [...] V o que presta do corpo dela para servir a muitas vidas de pessoas [...] a gente sabia que a gente ia fazer o bem para a outra pessoa [...] a vida dela tinha terminado em comparao aqui nesta terra, mas ia proteger outras vidas [...] ela podia dar certo no corpo daquela pessoa e aquela pessoa ter mais vida (p. 86). Relato de um irmo da doadora:

    A gente optou, no s eu, como toda a famlia. Se tivesse um que dissesse no, a gente aceitaria. Uma hora dolorida, assim como a gente queria salvar a vida dela de qualquer forma, se fosse possvel, tambm, salvar a vida de outros. Foi decidido por toda a famlia, para optar pela doao (p. 86). Relato da me de um doador:

    Eu e ele conversamos, decidimos e foi feita a doao, que eles falaram que ele j tinha entrado em bito [...] a gente via as mquinas batendo, o corao batendo tudo, mas sabia que uma hora ia parar, e a hora que o corao parasse de bater, j no tinha mais...Ele morreu e logo ia virar p [...] ele beneficiou mais cinco ou oito pessoas, podendo enxergar, no estar nas mquinas l da hemodilise...[...] ele foi, mas deixou outras pessoas vivendo(p. 86).

  • 43

    Ainda segundo Alencar, (2006), alguns familiares relataram a ocorrncia de argumentao e negociao at que pudessem chegar deciso final, como expressam os relatos a seguir:

    Na hora ali, todo mundo concord, que o pai dela [...] na verdade, acho que ele no tava muito querendo, despois, como tudo concord... (Me de uma doadora, p. 87).

    O pai falou, eu no vou fazer nada, ningum vai mexer aqui, ele no aceitava a hiptese de poder fazer uma doao [...] tnhamos que resolver rpido, naquele dia, de um dia para outro, o que ns iramos fazer, se caso desse a morte cerebral [...] se ele morresse l no asfalto, a nica coisa que a gente poderia doar eram as crneas, nada mais. Se ele recebeu a graa de poder sobreviver mais um pouco [...] se ele foi um anjo que esteve com a gente todos esses 14 anos e na hora dele ir, ainda ele conseguiu ter mais uma chance, eu falei no, no vamos deixar em vo. Da que eu comecei a brigar, conversar com meu marido, vamos fazer a doao [...] ele no queria que mexesse, ningum mexesse mais [...] a deciso final era nossa mesma e o irmo concordou, quando o pai concordou [...] ns falamos, agora vai ser (Me de um doador, p. 87).

    A psicloga veio me avisar l, j que ele tinha morrido, que a me j tinha assinado o papel, s faltava eu s assinar [...] mantive a deciso dela, na hora ali quem estava tomando conta de tudo foi ela, ela no veio conversar comigo sobre nada (Pai de uma doadora, p. 87).

    Roza (2005, apud Alencar, 2006) em seu estudo aponta que a deciso pelo ato de doar influenciada pela determinao dos membros da famlia e pelo desejo do doador, mas fica evidenciada a presena de conflito envolvendo esta situao.

    Se ela no tinha mais vida, ento, que desse a vida para uma outra pessoa. A mesma coisa se a gente tivesse uma pessoa que precisasse um rgo, uma outra pessoa

    doasse, a gente a ficar alegre [...] se ela no tinha mais vida, a ajudar uma outra pessoa (Me de uma doadora, p. 88).

    dodo para a gente sabe, a perda, mas como se diz, fortalecia mais ns a idia de que algum ia sobreviver [...] um pedacinho dela [...] o que nos fortalece pensar que tem algum sobrevivendo com os olhos dela (Pai de uma doadora, p. 88).

    Eu fiz porque ela falou [...] se ela no tivesse falado, eu no iria doar [...] como ela falou, quinze dias antes... Estava eu e ela [...] ns estvamos assistindo TV e da deu a propaganda desse moreno, que ganhou o corao [ator Norton Nascimento], a eu falei que eu no doaria meus rgos e ela levantou dali e falou: eu doaria. Fiz isso a porque ela falou, seno [pausa] (Me de uma doadora, p. 90).

  • 44

    Ao falar a respeito da morte e do processo de doao os familiares afirmam que o conhecimento prvio da vontade da criana, adolescente ou adulto de ser doador tornou a deciso mais fcil, menos angustiante e sofrida, pois a deciso tem que ser tomada em momento de muita dor pela perda (Pesquisa de Doering e Roza 1996, 2005 apud Alencar, 2006). Segundo o pai de uma doadora:

    Ela (me de uma doadora) j tinha liberado, eu liberei tambm, eu tambm sou doador de rgos, vai dar vida em outras pessoas [...] quem sabe Deus quis assim para salvar outras vidas, a igreja sempre fala isso para a gente(p. 90).

    Uma das famlias comenta que o fato de um de seus membros ser receptor de crneas ajudou no processo de convencimento e tomada de deciso, como expresso a seguir:

    O meu cunhado [...] ele pegou e falou [...] se for para fazer a doao, ele ficaria contente tambm, porque ele s est enxergando porque ele recebeu crneas de uma mocinha e de um rapaz, seno ele no estaria enxergando [...] quando o meu cunhado passou isso, da eu fui apertando at que chegou um ponto que ele [pai do doador] falou, no, ento vamos esperar, de acordo com o resultado, a gente faz a doao (p. 91).

    A preocupao quanto ao processo de doao de rgos e tecidos ser ilegal foi referida pelos participantes deste estudo, os quais exteriorizaram sentimentos de medo e dvida que os rgos de seu ente querido sejam vendidos, o que os deixa apreensivos e confusos:

    Nem bom tocar nesse assunto, porque esse negcio de rgos... [...] agora, a gente sabe que tudo no papel ali, tudo marcadinho, ento agora a gente no tem medo assim que seja uma doao ilegal. O medo que a gente pensava era isso. Agora no, agora voc [pesquisadora] veio procurar nis e agora nis tamo mais contente (Pai de um doador, p. 91).

    Na poca de doao tinha com