monografia final
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - UFMG FACULDADE DE DIREITO
O Fim da CPMF e os Decretos n.º 6.339/08 e n.º 6.345/08: uma análise acerca da inconstitucionalidade da majoração
das alíquotas do IOF
Felipe Vieira Drummond
Belo Horizonte 2009
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Felipe Vieira Drummond
O Fim da CPMF e os Decretos n.º 6.339/08 e n.º 6.345/08: uma análise acerca da inconstitucionalidade da majoração
das alíquotas do IOF
Orientador: Thiago Zanini Godinho
Belo Horizonte 2009
Monografia de Conclusão de Curso apresentado pelo aluno Felipe Vieira Drummond ao Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para a conclusão de curso e para a obtenção do título de Bacharel em Direito
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Banca Examinadora
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A Monografia de Conclusão de Curso “O Fim da CPMF e os Decretos n.º
6.339/08 e n.º 6.345/08: uma análise acerca da inconstitucionalidade da majoração
das alíquotas do IOF”, elaborado por Felipe Vieira Drummond, foi avaliado como
requisito parcial para obtenção do grau de Bacharelado em Direito, tendo sido
________________________________________________________ , com a nota
_____________________________________________________________.
Belo Horizonte, 26 de novembro de 2009
_________________________________________________________________
PROFESSOR THIAGO ZANINI GODINHO
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO................................................................................... 7
2. LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR....................................... 9
2.1 Princípio da Legalidade........................................................ 9
2.2 Princípio da Anterioridade................................................... 15
2.3 Exceções aos Princípios da Legalidade e Anterioridade. 19
3. O IMPOSTO SOBRE OPERAÇÕES FINANCEIRAS...................... 22
3.1. Aspectos Gerais.................................................................. 23
3.2. Extrafiscalidade.................................................................. 26
3.3. O IOF e as Atenuações à Legalidade e à Anterioridade.. 30
4. O ATO ADMINISTRATIVO E A ALTERAÇÃO DAS ALÍQUOTAS
TRIBUTÁRIAS...................................................................................... 33
4.1. O Decreto Presidencial....................................................... 33
4.2. A Motivação Dos Atos Administrativos............................ 36
4.3. O Desvio De Finalidade dos Atos Administrativos.......... 39
5. DA INCONSTITUCIONALIDADE DOS DECRETOS N.º 6.339/08
E N.º 6.345/08....................................................................................... 40
5.1. A Tese do Partido Democratas - Ação Direta de
.......Inconstitucionalidade n.º 4002........................................... 40
5.2. A Tese da Advocacia-Geral Da União................................ 41
6
5.3. O Confronto entre os Argumentos Suscitados - Exame
........dos Decretos n.º 6.339/08 e n.º 6.345/08.......................... 42
6. CONCLUSÃO.................................................................................... 49
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................. 52
7
1. INTRODUÇÃO
Em 15 de agosto de 1996, instituía-se, por intermédio da Emenda
Constitucional n.º12, a Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão
de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira.
Posteriormente, em 24 de outubro de 1996, o Governo Federal Brasileiro
publicou a Lei n.º 9.311, regulamentando o referido tributo, usualmente denominado
CPMF, cujo aspecto material era, como o nome aduz, toda movimentação ou
transmissão bancária, salvo exceções previstas na própria Lei n.º 9.311/96, bem
como aquelas definidas posteriormente pela Lei n.º 10.306/01.
O parágrafo único do art. 1º do diploma de 1996 determinava com maior
precisão o que se compreendia por movimentação ou transmissão de valores e de
créditos e direitos de natureza financeira, conforme se segue:
Art. 1º É instituída a Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira - CPMF.
Parágrafo único. Considera-se movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira qualquer operação liquidada ou lançamento realizado pelas entidades referidas no art. 2°, que representem circulação escritural ou física de moeda, e de que resulte ou não transferência da titularidade dos mesmos valores, créditos e direitos1
A CPMF, substituta do extinto IPMF, destinava-se integralmente ao Fundo
Nacional de Saúde, encerrando o nobre intuito de financiar ações e serviços de
1 BRASIL. Lei n.º 9.311/96. Institui a Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira - CPMF, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 25 out. 1996
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saúde.
No entanto, em razão de proporcionar efeitos duvidosos sobre a economia
brasileira, a CPMF, tal qual o IPMF, teve sua constitucionalidade posta à prova
quando do julgamento da ADI-MC 1497/DF, em 2002, pelo Supremo Tribunal
Federal que, diferentemente do que se observou em relação ao IPMF, decidiu pela
constitucionalidade da referida contribuição2.
A despeito de originariamente prevista para vigorar durante exíguos treze
meses, a transitoriedade da CPMF foi reiteradamente desarranjada pelas Emendas
Constitucionais n.º 21/99, n.º 37/02 e, por fim, a EC 42/03, a qual acrescentou o
artigo 90 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, logrando prorrogar a
vigência da aludida contribuição à data de 31 de dezembro de 2007. A arrecadação
em 2008, caso fosse mantida a contribuição, estimava-se, era da ordem de R$40
bilhões, segundo informações da Nota Técnica n.º 02, da Secretaria de Política
Econômica do Ministério da Fazenda, uma vez que a alíquota em vigor, 0,38%,
representava, para cada 0,01%, o montante arrecadatório de R$1 bilhão.
Nada obstante, ao arrepio da Constituição Federal de 1988, o Estado
brasileiro, em sua verve arrecadatória, surpreendeu os contribuintes com o anúncio,
em janeiro de 2008, da majoração das alíquotas do Imposto sobre Operações
Financeiras, IOF, mediante a expedição dos Decretos n.º 6.339 e n.º 6.345, atos
administrativos que, no entanto, não encerravam qualquer fundamentação.
À época, a imprensa pátria registrou ainda que membros do governo
justificaram o aumento das alíquotas do IOF através do inaceitável argumento de
2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC 1497/DF. Relator: Ministro Marco Aurélio, Julgamento: 09/10/1996 Órgão Julgador: Tribunal Pleno. http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?numero=1497&classe=ADI-MC Acessado em: 15/09/2009.
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compensar as perdas na arrecadação decorrentes da extinção da CPMF, isto é,
visando a elevação dos níveis arrecadatórios do Fisco, verdadeira desvio de
finalidade em se tratando do IOF. Isso porque o Imposto sobre Operações
Financeiras, sendo um tributo eminentemente regulatório (não apenas arrecadatório,
portanto), tem por objetivo preeminente estimular ou desestimular determinadas
condutas, e, diante deste propósito, constitui-se exceção às limitações
constitucionais ao poder de tributar.
O tema foi objeto de acaloradas discussões no meio jurídico, pois, além do
desvirtuamento da extrafiscalidade constitucional, como visto, o Presidente da
República não dotou de fundamentação o ato mediante o qual majorou as alíquotas
em comento.
Demais disso, dois partidos integrantes do bloco que constitui a oposição ao
governo federal, os Democratas (DEM) e o Partido da Social Democracia Brasileira
(PSDB), ingressaram, respectivamente, com as Ações Diretas de
Inconstitucionalidade n.º 4002 e n.º 4004, questionando o desvio de finalidade dos
atos administrativos publicados pela Presidência da República, pois que o Executivo
teria se utilizado do IOF para fins arrecadatórios, contrariando a interpretação
restritiva que se deve dar à excepcionalidade constitucional proporcionada pela
extrafiscalidade.
2. LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR
2.1. O Princípio da Legalidade
10
É cediço que o direito pátrio encontra-se sob o império da lei. O ordenamento
jurídico brasileiro consagrou, portanto, em matéria tributária, o princípio da
legalidade, a fim de condicionar a criação ou mesmo a majoração das espécies
tributárias à prévia existência de autorização legal.
Explica Luciano Amaro3 que a legalidade assume destacada relevância, por
comportar os ideais de justiça e segurança jurídica, sem os quais estariam sujeitos
ao alvedrio do administrador não somente a instituição e majoração de tributos, mas
ainda a especificação dos aspectos da exação fiscal, isto é, aqueles definidores do
fato gerador tributário. Essa prevalência da legalidade é parte do conceito de Estado
de Direito, em que a maximização da segurança contrasta com a minimização do
arbítrio dos governantes, isto é, o exercício do poder se submete ao Direito.
Outrossim, confira-se o ensinamento de Eduardo Maneira:
Garantir a segurança jurídica à coletividade é papel fundamental do Estado e é o que permite adjetivá-lo de Estado de Direito. O primeiro passo em direção à segurança jurídica deve ser sempre dado pelo Estado de Direito ao submeter ou restringir o exercício do poder ao Direito, bem como na lealdade com que deve agir o Estado-legislador e o Estado-administrador para com os seus cidadãos. Na relação jurídico tributária, a segurança jurídica traduz-se, precipuamente, na subsunção do fato à norma previamente posta por meio de lei, a fim de que possa torná-lo em fato jurígeno de obrigação tributária.4
Ademais, dada a vigência do princípio da legalidade, fundado na expressão
nullum tributum sine lege, não se admite a criação de vínculo obrigacional em direito
3 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro.14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. 4 MANEIRA, Eduardo. Princípio da Legalidade: Especificação Conceitual x Tipicadade. Revista Internacional de Direito Tributário. Volume I. N.º I. Belo Horizonte: Del Rey, 2004
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tributário por mera liberalidade de uma das partes, tampouco contratualmente, mas
tão-só por meio de Lei.
Veja-se que, segundo a lógica de repartição das atribuições dos poderes que
constituem o Estado brasileiro, a decisão de tributar reside no seio do Legislativo,
corpo de representantes eleitos diretamente pelo povo, restando denegada ao
Administrador, como regra geral, a competência para a criação de tributos, pois,
como dito, o império da lei sustenta que ninguém está obrigado a fazer ou deixar de
fazer algo senão em virtude de lei.
Para maior clareza sobre o princípio da legalidade, há de se fazer referência à
Sacha Calmon Navarro Coelho:
Com o volver dos séculos, o princípio da legalidade da tributação vai incorporar outra conotação. Isto ocorre precisamente com o surgimento da teoria e da prática da tripartição dos Poderes, na esteira de uma concepção na qual o Estado, antes, uno, aparece, necessariamente, dividido, com três Poderes, exercentes de três funções: a de criar a lei, deferida ao Legislativo, a de aplicar a lei de ofício, entregue ao Executivo, e a de dirimir os conflitos em razão da aplicação da lei, cometida ao Judiciário. O princípio da legalidade da tributação assume a conotação de norma feita pelo Poder Legislativo (forma) com o caráter de prescrição impessoal, abstrata e obrigatória. Noutras palavras, a tributação passa a exigir lei escrita (Lex escripta), em sentido formal (ato do congresso) e material (norma impessoal, abstrata e obrigatória).5
A redação do artigo 150, I, da Constituição Federal de 1988 tornou clara a
prevalência da legalidade sobre o arbítrio da Administração:
5 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
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Art. 150 Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça
Por outras palavras, tal expediente impede que o Executivo defina os tipos
tributários, independentemente das variações no comando do governo ou mesmo da
adoção de uma postura intervencionista, competindo-lhe tão somente a aplicação
das leis tributárias, isto é, recolher o que for devido pelo contribuinte, afastando-se o
administrador público das atividades criativas de tais leis.
Ressalta-se também que, em matéria tributária, a Constituição de 1988 se
refere à lei como norma em sentido material – geral, abstrata e impessoal, bem
como em sentido formal – formulada por órgão titular de função legislativa, e não
mero ato administrativo. Mais ainda, em regra, trata-se de lei ordinária, salvo as
situações excepcionais em que o texto constitucional fizer remissão expressa à lei
complementar, a exemplo do artigo 154, I, em que se define a competência residual
da União.
A norma em direito tributário, ensina Coêlho6, é norma de conduta de
estrutura dual. Apresenta hipótese de incidência constituída de fato lícito e o
mandamento da norma tributária é entregar dinheiro ao Estado. Acrescenta o
doutrinador que “os fatos que entram na composição da hipótese de incidência da
norma tributária são escolhidos pelo legislador no mundo fático. Uma vez postos na
norma, tais fatos passam a ser modelos de fatos jurídicos”.
Ainda na lição de Sacha Calmon Navarro Coêlho, são quatro os aspectos
significativos presentes nos fatos que compõem a hipótese de incidência da norma
6 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria Geral do Tributo e da Exoneração Tributária. 2 ed. Belo Horizonte, Del Rey: 1999, p. 105.
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tributária, a saber: espacial, temporal, pessoal, material. Vale reproduzir as palavras
do jurista:
O aspecto pessoal da hipótese de incidência diz respeito à pessoa envolvida com o fato eleito como jurígeno – para fins tributários – pelo legislador. O aspecto material, nuclear, entronca com o fato jurídico mesmo: ser proprietário, ter renda, fazer circular mercadorias, ter imóvel valorizado por obra pública, receber alvará de funcionamento fornecido por autoridade administrativa, etc. O aspecto espacial define as coordenadas espaciais ligadas ao fato, e o aspecto temporal, as coordenadas de tempo, tornando possível determinar o momento da sua ocorrência7.
Veja-se que o artigo 114 do Código Tributário Nacional, apesar de publicado
em 1966, já ressaltava a primazia do princípio da legalidade em matéria tributária, ao
definir como fato gerador da obrigação principal aquela situação especificada em lei
como necessária e suficiente à sua ocorrência, dispositivo que, portanto, foi
recepcionado pela Carta atual.
O referido artigo estabelece que “fato gerador da obrigação principal é a
situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”. Em outras
palavras, o comando do art. 114 do CTN informa que, uma vez verificado no mundo
fático a situação eleita por lei, isto é, quando o fato se subsumir a norma, haverá a
produção de efeitos jurídicos.
Não obstante, cabe observar que o princípio em comento é relativizado pela
possibilidade de instituição, pelo Poder Executivo, de tributo através da edição de
medida provisória, o que não está a salvo de severas críticas por parte da doutrina
7 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria Geral do Tributo e da Exoneração Tributária. 2 ed. Belo Horizonte, Del Rey: 1999, p. 110.
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especializada, apesar de entendimento favorável ser adotado pelo Supremo Tribunal
Federal8.
Sacha Calmon Navarro Coelho, por outro lado, afirma que, tendo em vista os
ideais de justiça e segurança jurídica, estabeleceu-se uma ligação intrínseca entre a
legalidade e os princípios da anterioridade e da irretroatividade, os quais se prestam,
respectivamente, a determinar que “a lei tributária seja conhecida com antecedência,
de modo que os contribuintes, pessoas naturais ou jurídicas, saibam com certeza e
segurança a que tipo de gravame estarão sujeitos no futuro imediato, podendo,
dessa forma, organizar e planejar seus negócios e atividades”, assim como a
assegurar “às pessoas segurança e certeza quanto a seus atos pretéritos em face
da lei”9.
A formulação desses princípios, decorrentes da legalidade, busca aproximar
ainda mais a atuação do poder executivo aos ideais supracitados, uma vez que se
espera da administração, portanto, um adequado planejamento orçamentário, sem a
utilização de recursos autocráticos, inventivos ou em inobservância aos comandos
provenientes do Poder Legislativo. Pelo contrário, legalidade, anterioridade e
irretroatividade, em conjunto, favorecem a atuação dialética dos dois poderes,
elaborador e executor da Lei.
8 EMENTA: Agravo regimental. - Falta de prequestionamento das questões relativas aos artigos 62, "caput", e 59 da Constituição Federal. - Além de não ter sido atacado o despacho agravado quanto à improcedência da alegação, no recurso extraordinário, de ofensa ao parágrafo único do artigo 62 da Carta Magna, inexiste, no caso, infringência ao artigo 150, I, da Constituição, porque esta Corte tem entendido que a medida provisória é idônea para instituir tributo, inclusive contribuição social, e, conseqüentemente, também para alterar a sua disciplina. Agravo a que se nega provimento. BRASIL Supremo Tribunal Federal. AI n.º 370.209/MG Relator: Ministro Moreira Alves. Julgamento: 14/05/2002. Órgão Julgador: Primeira Turma. http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?numero=370209&classe=AI-AgR Acessado em 20/11/2009. 9 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 214.
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Vale mencionar, ainda que brevemente, a existência de algumas situações
elencadas pelo Diploma Maior de 1988, em que o princípio da legalidade também é
mitigado pela faculdade concedida ao Poder Executivo de alterar as alíquotas de
determinados impostos, permitindo-se, por conseguinte, maior adaptabilidade do
sistema tributário frente às oscilações econômicas, o que será objeto de análise
posterior.
2.2. O Princípio da Anterioridade
O desenvolvimento da sociedade ao longo dos últimos anos, em especial no
que tange ao avanço e prevalência do aspecto econômico dessas, principiou uma
série de conseqüências diretas para a organização e das relações estabelecidas
entre os seus integrantes.
Dada a importância reunida em torno do âmbito comercial, a coexistência
entre os contribuintes do Estado Democrático de Direito e a imprevisibilidade dos
seus encargos fiscais tornou-se inviável. O princípio da anterioridade, nesse
contexto, exsurge como solução encontrada para evitar que os sujeitos passivos da
relação obrigacional tributária sejam apanhados de surpresa pela publicação e
imediata aplicação das leis tributárias.
Privilegia-se, portanto, o planejamento econômico, uma vez que a eficácia da
lei tributária somente encontra seus contornos definitivos após a passagem pelo
crivo da observância do princípio da anterioridade. Assim, pela anterioridade, a
aplicação da lei tributária é diferida até o exercício seguinte àquele em que fora
publicada, o que significa dizer, segundo o ordenamento jurídico pátrio, que em
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matéria tributária, as leis publicadas em determinado ano terão que aguardar até 1º
de janeiro do ano subseqüente para começarem a produzir efeito.
Convém salientar que o princípio da anterioridade não se confunde com o
antigo princípio da anualidade, o qual sequer fora recepcionado pela Constituição
Federal de 1988. Acerca dessa distinção principiológica, Hugo de Brito Machado10
aduz:
Pelo princípio da anualidade, nenhum tributo pode ser cobrado, em cada exercício, sem que esteja prevista a sua cobrança no respectivo orçamento. Distingue-se, assim, nitidamente, do princípio da anterioridade, pelo qual nenhum tributo será cobrado em cada exercício sem que a lei que o criou, ou aumentou, tenha sido publicada no exercício anterior.
Assim, para que reste corretamente delimitada a extensão do princípio da
anterioridade, alocado no artigo 150, III, “b”, da Constituição Federal de 1988, traz-
se à baila a redação do referido dispositivo:
Art. 150 Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
III - cobrar tributos:
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os institui ou aumentou;
Demais disso, em 2003, a Emenda Constitucional n.º 42 acrescentou ao
referido inciso III do art. 150 da Constituição de 1988, a alínea “c”, inserindo mais
uma garantia aos contribuintes contra atos abusivos por parte do Executivo nacional,
10 MACHADO, Hugo de Brito. Os Princípios Jurídicos da Tributação na Constituição de 1988. 5ª Ed. São Paulo: Dialética, 2004, p. 93.
17
a anterioridade nonagesimal ou noventena, que era prevista apenas para as
contribuições sociais de que trata o art. 195, §6º, da Carta Magna.
Isso porque, conquanto a primazia do princípio da anterioridade vigorasse em
favor da segurança jurídica dos contribuintes, percebeu-se a reiterada (e não menos
lastimável) prática da instituição, bem como a majoração tributária, às vésperas do
início do ano civil, prática que ficou conhecida como Réveillon Tributário (o ano fiscal
coincide com o civil – 1º de janeiro a 31 de dezembro).
Destarte, o princípio da anterioridade era reforçado pela necessária
decorrência de noventa dias para que a União pudesse vir a cobrar tributos novos ou
aumentados, independentemente da publicação, em exercício anterior, de ato que
assim estabelecesse. Por conseqüência, os últimos dias de dezembro não mais são
reservados para a instituição ou majoração tributária quase imediata, de modo a
resguardar a segurança jurídica acima da sanha arrecadadora do Estado.
Misabel Abreu Machado Derzi, em comentários sobre a função da
anterioridade e da espera nonagesimal, na obra de Aliomar Baleeiro, assim se
exprime:
Enfim, o princípio da anterioridade das leis tributárias tem como efeito obstar a eficácia das normas que criam ou aumentam qualquer tipo de exação fiscal (salvo as exceções expressamente consignadas no Texto), impedindo a sua aplicabilidade, executoriedade e exigibilidade até o exercício subseqüente àquele no qual tenham entrado em vigor. A espera nonagesimal tem como efeito impedir a eficácia das normas que instituem ou majoram contribuição social, incidente sobre o lucro, o faturamento ou a folha de salário, destinada a custear a Seguridade Social11.
11 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro, atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro, Forense: 2002, p. 104.
18
Ainda na esteira da doutrina de Hugo de Brito Machado12, conquanto o
avanço proporcionado pela noventena seja digno de elogios, a segurança jurídica
teria sido melhor preservada acaso o instituto exigisse que o ato de criação ou
majoração do tributo fosse publicado, como condição de validade, com antecedência
mínima de noventa dias em relação ao exercício em que se pretende proceder à
exação tributária.
Noutro giro, apesar da recente adoção, pela Constituição Federal de 1988, da
noventena para os tributos de maneira geral, o princípio da anterioridade há muito
figura no ordenamento jurídico brasileiro. Já em 1963 o Supremo Tribunal Federal
publicava a Súmula n.º 67, reputando “inconstitucional a cobrança de tributo que
houver sido criado ou aumentado no mesmo exercício financeiro”.
Igualmente, o Código Tributário Nacional13, promulgado em 1966, desde
então estabelecia a necessidade de se observar a anterioridade da lei em relação ao
exercício financeiro, não obstante incidisse a regra unicamente sobre os impostos
sobre patrimônio e renda, em descompasso com o texto da Carta de 1988.
Tal qual observado em relação à legalidade, contudo, ressalta-se que a
Constituição Federal de 1988 excepciona a sujeição de determinados tributos aos
efeitos da anterioridade, bem como da noventena, permitindo-se, a título de
exemplo, a majoração imediata do IOF mediante o expediente do Decreto
presidencial.
12 MACHADO, Hugo de Brito. Os Princípios Jurídicos da Tributação na Constituição de 1988. 5ª Ed. São Paulo: Dialética, 2004, p.108 13 BRASIL. Lei n.º 5.172/66. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário Oficial da União, Brasília, 27 out. 1966, art. 104.
19
2.3. Exceções aos Princípios da Legalidade e Anterioridade
A obrigatoriedade da edição de lei em sentido formal e material para
promover alterações nas alíquotas de espécies tributárias, já se aduziu, não é
absoluta. Da mesma maneira, a observância da anterioridade da norma tributária em
relação ao exercício financeiro, apesar de se tratar de princípio que norteia o
sistema tributário, comporta exceções.
No que toca à atenuação do princípio da legalidade, o art. 153 da Carta de
1988 traz a seguinte redação:
Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
I - importação de produtos estrangeiros;
II - exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados;
IV - produtos industrializados;
V - operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários;
§ 1º - É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V14.
O texto constitucional, como exposto acima, se refere expressamente aos
impostos de importação e exportação, imposto sobre produtos industrializados,
assim como ao imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro ou relativas a
títulos ou valores imobiliários ao tratar dos casos em que a União, atendidas as
condições e os limites previstos em lei, está autorizada a alterar as alíquotas dos
referidos tributos. 14 BRASIL, Constituição Federal de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 5 out. 1988.
20
A Carta de 1988 faz, ainda, menção aos impostos explicitados no § 1º, do art.
153, excetuando-os da observância da anterioridade do exercício financeiro,
conforme se depreende da leitura do art. 150:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
III - cobrar tributos:
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;
§ 1º A vedação do inciso III, b, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, IV e V; e 154, II; e a vedação do inciso III, c, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, III e V; e 154, II, nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, III, e 156, I15.
O Código Tributário, por outro lado, estendia o alcance do permissivo à
alteração da base de cálculo dos impostos, uma vez que a Constituição Federal de
1967 assim o permitia. Não obstante, com a promulgação da Carta de 1988, essa
faculdade foi extirpada do ordenamento jurídico brasileiro, limitando-se a exceção,
por conseguinte, à faculdade de alteração, pelo Poder Executivo, das alíquotas dos
tributos supracitados.
Há, no entanto, que se atentar para o fato de que a definição da alíquota deve
ser inicialmente prevista na lei que criou o tributo, não se prestando a prerrogativa
do Executivo a criar uma alíquota aplicável, mas tão-somente facultar ao
Administrador à alteração desta, consoante o ensinamento de Luciano Amaro16.
15 BRASIL, Constituição Federal de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 5 out. 1988. 16 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro.14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 117.
21
No mesmo sentido a doutrina de Roque Antônio Carrazza17:
Alterar, como é cediço, pressupõe algo preexistente. Só se altera o que já está posto. No caso, só se alteram as alíquotas dentro dos limites e condições que a lei previamente traçou. Se a lei não estabelecer limites mínimo e máximo para as alíquotas, o Executivo nada poderá fazer, neste particular.
Daí a razão para Carrazza18 afirmar que a doutrina pátria labora em erro
quando afirma que o comando constitucional faculta ao Executivo a inobservância
do princípio da legalidade. Na lição do jurista, o dispositivo da Constituição de 1988,
em verdade, permite ao legislador estabelecer os limites e condições para o
Executivo alterar as alíquotas dos impostos regulatórios, isto é, tal alteração
somente é possível se estiver em consonância com o que o Legislativo prescrever.
Outrossim, Misabel Abreu Machado Derzi19, afirma:
Não obstante, em certas hipóteses excepcionais, contempladas na Constituição, a legalidade absoluta é quebrada, estabelecendo o legislador apenas os limites mínimo e máximo, dentro dos quais o Poder Executivo poderá alterar quantitativamente o dever tributário. Trata-se de mera atenuação do princípio da especificidade conceitual ou da legalidade rígida.
17 CARRAZZA. Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 210. 18 CARRAZZA. Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 210. 19 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, atualizado por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro, Forense: 2001, p. 67-68.
22
Vale mencionar, ainda na esteira de Misabel Derzi20, que o legislador
brasileiro anteviu o liame lógico entre a atenuação dos princípios da legalidade e da
anterioridade, isto é, a necessidade de o primeiro vir acompanhado pelo segundo.
Isso porque, a faculdade de o poder executivo alterar as alíquotas tributárias tem
como fundamento a intervenção célere do estado no âmbito tributário, sem que haja
a obrigatoriedade de se percorrer todo o procedimento legislativo próprio da
elaboração de leis ordinárias. Nada mais apropriado do que conferir eficácia
imediata ao ato do Poder Executivo.
Todavia, em que pese o alargamento do âmbito de ação do Executivo, sua
atuação, uma vez que contida pelos limites e condições especificados em lei, não
prescinde, no caso concreto, da edição de lei em sentido material, geral, abstrata e
impessoal. Trata-se de ato administrativo de competência do Presidente da
República e que assume a forma de decreto, devendo, necessariamente, ser
acompanhado de fundamentação, dentro da qual se insere a finalidade da alteração
da alíquota de um determinado tributo.
A importância da fundamentação e, conseqüentemente, a indicação da
finalidade do ato, encontra-se, precisamente, no controle de constitucionalidade
exercido sobre os atos do administrador público. As condições de validade dos atos
administrativos serão examinadas com maior profundidade nos capítulos
posteriores.
3. O IMPOSTO SOBRE OPERAÇÕES FINANCEIRAS
20 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, atualizado por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro, Forense: 2001, p. 68.
23
3.1. Aspectos Gerais
A Carta de 1988 atribuiu mediante o art. 153, V, a competência para a União
instituir imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos
ou valores mobiliários. Institui-se, portanto, o Imposto sobre Operações Financeiras,
nome que procura abarcar aquelas operações referidas pelo dispositivo
constitucional.
Em que pese a controvérsia em torno da designação “operações financeiras”,
certo é que o IOF se presta a regular a economia, mediante a tributação de
atividades essenciais ao funcionamento do mercado, razão pela qual Sacha Calmon
Navarro Coêlho afirma que “o IOF nasceu como imposto extrafiscal para equalizar o
mercado financeiro, daí a licença para o Executivo manejar as suas alíquotas por ato
administrativo”21.
Nesse esteio, veja-se que o IOF permite que o Governo reaja às oscilações
da economia internacional, uma vez que a interconexão entre os diversos mercados
mundiais expõe o Estado brasileiro a situações de instabilidade resultantes de ações
não controláveis pelo governo brasileiro, mas que geram reflexos no contexto
nacional.
De fato, o Imposto sobre Operações Financeiras faculta à União intervir no
funcionamento do mercado financeiro, atuando dentro dos quatro núcleos
econômicos distintos a que se refere o texto constitucional, em redação que não
21 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 511.
24
alterou as bases que já figuravam no art. 63 do Código Tributário Nacional, desde
outubro de 1966. Veja-se, abaixo, a íntegra do dispositivo:
Art. 63. O imposto, de competência da União, sobre operações de crédito, câmbio e seguro, e sobre operações relativas a títulos e valores mobiliários tem como fato gerador:
I - quanto às operações de crédito, a sua efetivação pela entrega total ou parcial do montante ou do valor que constitua o objeto da obrigação, ou sua colocação à disposição do interessado;
II - quanto às operações de câmbio, a sua efetivação pela entrega de moeda nacional ou estrangeira, ou de documento que a represente, ou sua colocação à disposição do interessado em montante equivalente à moeda estrangeira ou nacional entregue ou posta à disposição por este;
III - quanto às operações de seguro, a sua efetivação pela emissão da apólice ou do documento equivalente, ou recebimento do prêmio, na forma da lei aplicável;
IV - quanto às operações relativas a títulos e valores mobiliários, a emissão, transmissão, pagamento ou resgate destes, na forma da lei aplicável.
Parágrafo único. A incidência definida no inciso I exclui a definida no inciso IV, e reciprocamente, quanto à emissão, ao pagamento ou resgate do título representativo de uma mesma operação de crédito22.
Mais uma vez, vale mencionar os ensinamentos de Sacha Calmon Navarro
Coelho, a fim de elucidar os termos do artigo acima transcrito:
é tipicamente imposto sobre negócios jurídicos específicos. Nas operações de crédito, a instituição financeira coloca dinheiro atual nas mãos do tomador em troca de mais dinheiro no futuro (mútuo). Nas operações de câmbio, o negócio é trocar moedas. Nas operações com seguros, paga o segurado ex contractu quantias em dinheiro para forrar-se de riscos a bem e interesses os mais variados. As operações com títulos e valores imobiliários pegam os papéis representativos de bens e direitos em circulação no mercado
22 BRASIL. Lei n.º 5.172/66. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário Oficial da União, Brasília, 27 out. 1966.
25
financeiro. Muito recentemente, o Decreto n.º 4.494/02 consolidou a regulamentação do IOF, ampliando a incidência deste tributo e trazendo à tributação os mútuos privados entre pessoas jurídicas ou pessoa jurídica e pessoa física 23.
Soma-se aos núcleos impositivos acima, a incidência do IOF sobre as
operações com o ouro, quando esse for definido como ativo financeiro. Isso porque
o ouro, enquanto mercadoria, já é tributado pelo ICMS, mas a previsão não abarca o
ouro utilizado como instrumento cambial ou financeiro que, por conseguinte, sofrerá
tributação somente na operação de origem ou desembaraço aduaneiro, pelo IOF. O
mandamento constitucional do art. 153, §5º traz o seguinte teor:
Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
V - operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários;
§ 5º - O ouro, quando definido em lei como ativo financeiro ou instrumento cambial, sujeita-se exclusivamente à incidência do imposto de que trata o inciso V do "caput" deste artigo, devido na operação de origem; a alíquota mínima será de um por cento, assegurada a transferência do montante da arrecadação nos seguintes termos:
I - trinta por cento para o Estado, o Distrito Federal ou o Território, conforme a origem;
II - setenta por cento para o Município de origem24.
Examinando a incidência do IOF sobre as operações com o ouro, o
Magistrado Leandro Paulsen esclarece:
O transcrito § 5º, pois, exige que, em face de operações ouro, identifiquemos a sua finalidade, verificando se é comercializado
23 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 513. 24 BRASIL, Constituição Federal de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 5 out. 1988.
26
como simples mercadoria (metal destinado à confecção de jóias, relógios ou outras mercadorias), hipótese em que se submeterá à incidência de ICMS, ou se é objeto de negócios como instrumento cambial ou como ativo financeiro (investimentos em ouro), hipótese em que não incidirá o ICMS, mas apenas o IOTVM (Imposto sobre Operações com Títulos ou Valores Mobiliários) e, ainda, assim, tão-somente na operação de origem, pois o § 5º acabou por estabelecer imunidade para as operações posteriores à primeira.25
3.2. Extrafiscalidade
Os tributos, em especial os impostos, possuem como função proeminente a
arrecadação de recursos financeiros com o fito de custear o funcionamento da
máquina pública. De fato, o Estado é incapaz de se sustentar sem o amparo dos
contribuintes, tendo em vista que a sua estrutura é por demasiado complexa e
extensa.
Assim, com a consolidação das ciências econômica e financeira, estabeleceu-
se que o tributo prestava-se exclusivamente à arrecadação de recursos, sendo o
aspecto fiscal dos tributos a motivação central de todo o sistema tributário, afirma
Marco Aurélio Pereira Valadão26.
Denominou-se tributo fiscal ou neutro, portanto, aquele que visa a arrecadar
recursos financeiros aos cofres públicos, a fim de custear os encargos do Estado.
Não obstante a função arrecadatória dos tributos sobrelevar-se em
importância, a evolução das ciências econômica e financeira, tanto quanto do
25 PAULSEN, Leandro / MELO, José Eduardo Soares de. Impostos Federais, Estaduais e Municipais. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 140-141. 26 VALADÃO, Marco Aurélio Pereira. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar e Tratados Internacionais. 1º Ed. Del Rey: Belo Horizonte, 2000, p. 48
27
próprio direito tributário, demonstraram que a exigência de prestação pecuniária dos
contribuintes acaba por produzir reflexos sobre a atividade econômica.
Conseguintemente, a figura do tributo no modelo do Estado de Direito
assumiu novos contornos, garantindo não apenas a subsistência do ente público,
mas a consecução dos verdadeiros fins do Estado, a implementação dos direitos
fundamentais dos cidadãos.
Segundo Misabel Derzi27, o tributo extrafiscal não busca, precipuamente,
suprir as burras do Estado, “mas antes visa a ordenar a propriedade de acordo com
a sua função social ou a intervir em dados conjunturais (injetando ou absorvendo a
moeda em circulação) ou estruturais da economia”.
Dessa forma, o Estado passou a se utilizar dos efeitos provocados pela
tributação para influir nas condutas de seus administrados, segundo interesses e
valores prevalentes na sociedade, de maneira tal que algumas espécies tributárias
adquiriram funções precípuas que extrapolariam a arrecadação de recursos para os
cofres públicos, a que se denominou extrafiscalidade, isto é, que vai além da função
fiscal.
Roque Antônio Carrazza expõe, com clareza, que:
Há extrafiscalidade quando o legislador, em nome do interesse coletivo, aumenta ou diminui as alíquotas e/ou as bases de cálculo dos tributos, com o objetivo principal de induzir os contribuintes a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa. Por aí se vê que a extrafiscalidade nem sempre causa perda de numerário; antes, pode
27 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro, Forense: 2001, p. 576.
28
aumentá-lo, como, por exemplo, quando se exacerba a tributação sobre o consumo de cigarros28.
Decerto, o desenvolvimento do Direito Tributário veio a consagrar a
extrafiscalidade como a consecução de fins não fiscais, encontrando-se no
ordenamento jurídico brasileiro espécies tributárias com as mais diversas
finalidades, abrangendo o desenvolvimento da indústria nacional, a política
monetária, o desestímulo à manutenção de propriedades rurais improdutivas, a
formação de poupança pelos contribuintes, estimular a desconcentração da
propriedade fundiária, dentre outras.
Assim, diz-se que um tributo é fiscal se possuir finalidade arrecadatória, isto é,
se sua função precípua for carrear recursos para os cofres públicos, submetendo-se
às limitações ao poder de tributar, enquanto um tributo será extrafiscal se
empregado, primordialmente, para fim diverso, não arrecadatório.
Vale ressaltar, contudo, que os tributos extrafiscais não se limitam a exercer
função diversa da arrecadação financeira, mas a exercem com primazia sobre a
função fiscal e, igualmente, os tributos notavelmente fiscais também encerram
finalidade extrafiscal, não obstante a relegarem ao segundo plano.
Nesse sentido, o ensinamento de Misabel Abreu Machado Derzi:
Entretanto, a questão não é tão simples, pois os estudos mais aprofundados sobre esse tema demonstram que não é fácil distinguir os fins fiscais daqueles extrafiscais. Seus limites são imprecisos, fluidos, e não raramente o ente estatal tributante, ávido
28 CARRAZZA. Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 106-107.
29
de recursos, será tentado a usar a extrafiscalidade como desculpa ou pretexto para estabelecer maior pressão fiscal29.
Contrariamente, para a doutrina clássica, a caracterização da extrafiscalidade
ou da fiscalidade importava na separação dos tributos em compartimentos
estanques, bastando, para tanto, a identificação do principal propósito do comando
tributário, qual o fim perseguido pelo Estado na determinação dos encargos
tributários.
Adotar-se-á, portanto, a corrente doutrinária moderna, segundo a qual
fiscalidade e extrafiscalidade não se excluem, mas se complementam, pois que
independentemente do fim precípuo de qualquer tributo, esse sempre encerrará
ambos os efeitos.
Nesse sentido também aponta José Marcos Domingues30, para quem a
extrafiscalidade é raramente encontrada isoladamente, tendo em vista que as
políticas públicas dependem de recursos para a sua implementação, do mesmo
modo que os tributos fiscais têm, no mais das vezes, efeitos sobre a vida
econômica, política e social do Estado.
Ademais, a Constituição Federal de 1988, a fim de favorecer a consecução de
objetivos extrafiscais de determinados tributos, conforme brevemente se adiantou,
atenuou certos limites ao poder de tributar, em especial e de maior relevância para o
presente trabalho, os princípios da legalidade, anterioridade e espera nonagesimal,
conforme se examinará abaixo.
29 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro, Forense: 2001, p. 577. 30 DOMINGUES, José Marcos. O Desvio de Finalidade das Contribuições e o seu Controle Tributário e Orçamentário no Direito Brasileiro . Revista Internacional de Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, Volume 7, p. 32-33.
30
3.3. O IOF e as Atenuações à Legalidade e à Anterioridade
Inicialmente, salienta-se que, em se tratando do IOF, encontra-se no artigo
153, §1º, o comando constitucional que mitiga o princípio da legalidade,
ressalvando-se, no entanto, que para tanto devem também ser atendidas as
condições e limites previstos em lei.
Outrossim, o Código Tributário Nacional31 confere autorização ao Poder
Executivo para modificar a alíquota do IOF, em dispositivo parcialmente
recepcionado pela Constituição Federal de 1988, uma vez que a redação original
contida no dispositivo do art. 65 permitia, ainda, a alteração da base de cálculo do
imposto, o que não condiz com a lógica do atual texto constitucional. A lei n.º
8.894/9432, artigos 1º e 5º, da mesma forma, prevê que os ajustes das alíquotas do
IOF deverá levar em consideração os objetivos da política monetária, cambial e
fiscal.
No tocante à atenuação do princípio da anterioridade, o art. 150, §1º, da Carta
de 1988, da mesma forma, concede ao decreto expedido pelo Executivo vigor
imediato, excetuando o ato, ainda, de obediência à espera nonagesimal.
Veja-se, portanto, que para o Poder Executivo alterar a alíquota do IOF,
segundo preceituam os artigos 153, §1º, e 150, §1º, da Carta de 1988, bem como os
31 BRASIL. Lei n.º 5.172/66. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário Oficial da União, Brasília, 27 out. 1966, art. 65. 32 BRASIL. Lei n.º 8.894, de 21 de junho de 1994. Dispõe sobre o Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos e Valores Mobiliários, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 22 jun. 1994
31
dispositivos dos artigos 65 do CTN, 1º e 5 da Lei n.º 8.894/94, foi necessário
abrandar o princípio da legalidade, como também os princípios da anterioridade e da
espera nonagesimal. Contudo, o legislador constitucional, bem como seu par
infralegal, não optaram por mitigar os princípios citados a fim de, tão-somente,
conceder maior grau de liberdade ao Executivo, mas pura e simplesmente em razão
de lhe facultar a atuação mais célere diante das flutuações mercadológicas, em
função do caráter extrafiscal do IOF.
A fundamentação do ato normativo que promove a modificação da alíquota,
todavia, há de explicitar a finalidade da medida, requisito para a o ato não reste
eivado de desvio de finalidade.
Isso porque, nos termos do dispositivo constitucional, a possibilidade de se
alterar a alíquota do IOF por ato de competência do Presidente da República é
atrelada ao atendimento das condições e os limites previstos em lei. Destarte,
estando a legislação pátria a exigir que a alteração promovida se coadune com a
política monetária nacional, faz-se da maior relevância a fundamentação consistente
do decreto expedido pelo Poder Executivo, a fim de que sejam analisados seus
requisitos de validade.
Ademais, já se adiantou, o exercício do permissivo constitucional pressupõe a
existência da lei que estabeleça os “limites e condições” para tanto. Veja-se que
esse é também o entendimento de Sacha Calmon Navarro Coelho, para quem “o
dispositivo que a autoriza é não auto-executável por ter eficácia limitada. Sem
32
condição e limites não pode o Executivo operar a delegação”33. Mais à frente,
prossegue o autor:
A delegação dada ao Executivo para manejar ditos impostos por ato administrativo, no tocante às suas alíquotas, implica suspender o princípio da anterioridade, altamente constritor e paralisante. A suspensão do princípio da legalidade arreda o princípio da anterioridade.34
Invariavelmente, os juristas pátrios revisitam as exceções conferidas ao IOF,
fruto de discórdia tanto doutrinária quanto jurisprudencial. Hugo de Brito Machado,
discorrendo acerca de suas implicações sobre o imposto em artigo publicado por
revista especializada, bem pontuou:
O Código estabelece uma finalidade a ser alcançada com a alteração do IOF, que é o ajustamento desse imposto aos objetivos da política monetária. Indispensável, portanto, que o ato administrativo com o qual o Poder Executivo altere esse imposto não pode prescindir de motivação, pois com o exame desta é que se poderá exercer o controle de constitucionalidade desse ato administrativo. [...] Em se tratando de um decreto, essa motivação geralmente é colocada sob a forma de considerando. E no caso do aumento de alíquotas do IOF essa motivação, para que o ato seja válido, deve indicar qual é o objetivo da política monetária ao qual o imposto está sendo com ele ajustado. Não basta a indicação genérica, a dizer que o aumento de alíquotas está sendo feito para ajustar o imposto aos objetivos da política monetária, porque indicação assim, excessivamente genérica, não se presta como elemento de controle35.
33 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. O Controle de Constitucionalidade das Leis e do Poder de Tributar na Constituição de 1988. 3ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 413. 34 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. O Controle de Constitucionalidade das Leis e do Poder de Tributar na Constituição de 1988. 3ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 436-437. 35 MACHADO, Hugo de Brito. Inconstitucionalidade do aumento do IOF com desvio de finalidade. Revista Dialética de Direito Tributário n.º 154, jul/08, pag. 55-56
33
Nesse esteio, Leandro Paulsen36 também afirma que o ajuste, pelo Executivo,
das alíquotas do IOF aos ditames da política monetária não se confunde com a mera
majoração daquelas, isto é, a razão de ser do permissivo decorre da finalidade
extrafiscal do imposto. A alteração das alíquotas do IOF por decreto presidencial,
portanto, deve encontrar justificativa no plano regulatório da economia,
harmonizando-se com os objetivos da política monetária. Daí a necessidade de a
medida vir acompanhada da devida motivação. Insta salientar, no entanto, que tal
decreto presidencial deve sujeição à regra da irretroatividade da lei tributária, isto é,
não têm o condão de alterar aquelas situações jurídicas perfeitas.
4. O ATO ADMINISTRATIVO E A ALTERAÇÃO DAS ALÍQUOTAS TRIBUTÁRIAS
4.1. O Decreto Presidencial
A figura do decreto presidencial é espécie do gênero ato administrativo, e que
assim é classificado em razão da forma adotada quando de sua exteriorização.
Trata-se de ato que provém da manifestação da vontade do Chefe do Executivo
Federal, o que o torna resultante de competência administrativa exclusiva, segundo
ensinamento de José dos Santos Carvalho Filho37.
36 PAULSEN, Leandro / MELO, José Eduardo Soares de. Impostos Federais, Estaduais e Municipais. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p.139. 37 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 16ª Ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p.117.
34
A Constituição de 1988 autorizou o Chefe do Executivo a expedir decretos
com o fito de efetivar a execução das leis, conforme se depreende da leitura do
dispositivo constitucional abaixo:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução38;
Daí classificarem-se esses atos em decretos regulamentares. Se amparados
pelo permissivo constitucional do art. 84, VI, no entanto, serão denominados
decretos autônomos, uma vez que não disciplina matéria regulamentada em lei.
Afirma Maria Sylvia Zanella di Pietro que, os decretos podem, ainda, se dirigir a
todas as pessoas em determinada situação ou a pessoa ou grupo de pessoas
determinadas, adquirindo, respectivamente, a denominação de decreto geral ou
individual39.
Embora evidentemente diverso de lei em sentido formal, o decreto se
distingue da lei pela perspectiva material no que se refere ao elemento inovação. Lei
em sentido material, aduz Mendonça40, é ato que encerra conteúdo de lei, gerador
dos mesmos efeitos dessa, apesar de variar quanto à sua forma, denominação ou
agente. Diz-se que o decreto, ato infralegal, presta-se a regulamentar a lei,
porquanto não cria permissões, deveres ou vedações, previstos na lei que o alicerça
e fundamenta sua validade. Diversamente da lei, o decreto não inova.
38 BRASIL, Constituição Federal de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 5 out. 1988. 39 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, p.222. 40 MENDONÇA, Gabriel Prado Amarante de. A Irretroatividade, Anterioridade e Espera Nonagesimal nas Modificações de Jurisprudência em Direito Tributário. 2009, 227f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 160.
35
Nesse diapasão, Maria Sylvia Zanella Di Pietro41 diferencia decreto
regulamentar, ato normativo derivado, e lei, ato normativo originário, eis que aquele
não logra criar direito novo, ao passo em que esta gera direito novo originário de
órgão estatal.
O decreto presidencial, como espécie de ato administrativo, é conseqüência
da verificação de razões de fato ou direito que levam o agente da Administração
Pública – o Chefe do Poder Executivo, a exteriorizar sua vontade, isto é, do motivo
que o impeliu a praticar aquele ato. Registra-se que motivo e motivação não se
confundem. Conquanto o motivo seja o pressuposto de fato e de direito que
fundamenta o ato administrativo, Carvalho Filho sustenta que a motivação “exprime
de modo expresso e textual todas as situações de fato que levaram o agente à
manifestação da vontade”42. Por outras palavras, motivação é a exposição dos
motivos.
A não indicação do motivo ou a menção de motivo falso, explicita Di Pietro43,
invalida o ato administrativo.
O decreto presidencial, enquanto ato administrativo, deve conter finalidade
específica, elemento essencial que dirija o ato ao interesse público. A finalidade da
atividade administrativa, afirma Carvalho Filho44, há de coincidir com o bem comum,
representado na conduta do agente.
41 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 222. 42 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 16ª Ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 100. 43 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 202. 44 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 16ª Ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 104.
36
4.2. A Motivação dos Atos Administrativos
A Constituição Federal de 1988 discrimina no art. 37 cinco grandes princípios
retores da atividade do administrador público:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte45:
Decorre dos princípios citados, lógica e racionalmente, o princípio da
motivação dos atos administrativos, cuja função é facultar o controle desses atos,
como forma de impedir a arbitrariedade do administrador, favorecendo a segurança
jurídica dos administrados, e de vigência inquestionável nos âmbitos doutrinário e
jurisprudencial.
A obrigatoriedade de motivação dos atos administrativos já figurou dentre os
temas controversos para a doutrina pátria. Celso Antônio Bandeira de Mello46
considera tal necessidade para os atos vinculados e discricionários que, à exceção
de casos excepcionais, verificada a ausência de motivação, restariam eivados de
vício e, por conseguinte, invalidados. Isso porque a Administração poderia produzir
as razões que fundamentam o ato posteriormente à sua publicação, caso houvesse
iminente risco de sua invalidação, o que traria insegurança ao administrado.
45 BRASIL, Constituição Federal de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 5 out. 1988. 46 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22ª Edição, São Paulo: Malheiros, 2007, p. 380.
37
Lado outro, José dos Santos Carvalho Filho47 adota posição contrária,
afirmando que inexiste a obrigatoriedade de motivação dos atos administrativos,
uma vez que o legislador constituinte não a elencou dentre os princípios e regras
aplicáveis à Administração Pública, sendo, contudo, forçosa a exposição dos
motivos caso haja norma legal expressa nesse sentido.
Maria Sylvia Zanella de Pietro, cujo posicionamento se encontra em
consonância com a maior parte da doutrina e jurisprudência atuais, assim se
manifesta sobre a obrigatoriedade da motivação nos atos administrativos:
O princípio da motivação exige que a Administração Pública indique os fundamentos de fato e de direito de suas decisões. Ele está consagrado pela doutrina e pela jurisprudência, não havendo mais espaço para as velhas doutrinas que discutiam se a sua obrigatoriedade alcançava só os atos vinculados ou só os atos discricionários, ou se estava presente em ambas as categorias. A sua obrigatoriedade se justifica em qualquer tipo de ato, porque se trata de formalidade necessária para permitir o controle de legalidade dos atos administrativos.48
No mesmo sentido, Hugo de Brito Machado49 aduz, ainda, que o legislador
brasileiro assentou as bases para a consolidação do entendimento supra, com a
edição da Lei n.º 9.784/99.
De fato, o exame dos dispositivos do diploma citado não deixa dúvidas quanto
à necessidade de motivação dos atos administrativos, em especial, no que se refere
47 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 16ª Ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 100. 48 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 82.
49 MACHADO, Hugo de Brito. Inconstitucionalidade do aumento do IOF com desvio de finalidade. Revista Dialética de Direito Tributário n.º 154, jul/08, p. 53.
38
ao decreto presidencial que alterou (revogou) as alíquotas vigentes do Imposto
sobre Operações Financeiras:
Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:
I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;
(...)
VIII - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo.
§ 1o A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato.
É, portanto, mediante o exame da motivação expressa no decreto
presidencial que se realizará o controle de constitucionalidade do ato, sujeitando-o à
apreciação judicial de sua legalidade, isto é, à verificação da conformidade da
atividade do Presidente da República com o disposto em lei. A motivação permite
não somente a verificação da existência dos pressupostos de fato, mas ainda, o
controle do ato administrativo.
A Lei n.º 4.717/6550 prevê que o ato administrativo será nulo acaso contenha
vício de inexistência de motivos. Além da inexistência material do motivo, a norma
em tela aponta como vício de nulidade incongruência do motivo com o resultado do
ato, senão veja-se:
50 BRASIL. Lei n.º 4.717/65. Regula a ação popular. Diário Oficial da União, Brasília, 5 jul. 1965, art. 2º, “d”.
39
Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de:
(...)
d) inexistência dos motivos;
e) desvio de finalidade.
Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas:
(...)
d) a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido;
e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência.
4.3. O Desvio de Finalidade dos Atos Administrativos
O desvio de finalidade ou desvio de poder dos atos administrativos, como
define a Lei n.º 4.717/6551, art. 2º, “se verifica quando o agente pratica o ato visando
a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de
competência”. Em comentários acerca do tema, Maria Sylvia Zanella Di Pietro
esclarece o conceito:
Visto que a finalidade pode ter duplo sentido (amplo e restrito), pode-se dizer que ocorre o desvio de poder quando o agente pratica o ato com inobservância do interesse público ou com objetivo diverso daquele previsto explícita ou implicitamente na lei. O agente desvia-se ou afasta-se da finalidade que deveria atingir para alcançar fim diverso, não amparado pela lei. (...) A grande dificuldade com relação ao desvio de poder é a sua comprovação, pois o agente não declara a sua verdadeira intenção; ele procura ocultá-la para produzir a enganosa impressão de que o ato é legal.
51 BRASIL. Lei n.º 4.717/65. Regula a ação popular. Diário Oficial da União, Brasília, 5 jul. 1965.
40
Por isso mesmo, o desvio de poder comprova-se por meio de indícios52.
Ademais, Carvalho Filho53 afirma que o desvio de finalidade é vício que não
se dissocia da vontade do agente público. Para a sua caracterização, o desvio
requer, além do distanciamento entre o exercício da competência e a finalidade
legal, a intenção deliberada para a concreção de resultado contrário ao interesse
público, à lei.
5. DA INCONSTITUCIONALIDADE DOS DECRETOS N.º 6.339/08 E N.º 6.345/08
5.1. A Tese do Partido Democratas - Ação Direta de
Inconstitucionalidade n.º 4002
Legitimado pela previsão constitucional do art. 103, VIII, bem como pela Lei
9.868/99, o partido dos Democratas ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade
n.º 400254 em face dos atos normativos expedidos pelo Presidente da República,
publicados no Diário Oficial em 03 (três) e 07 (sete) de janeiro de 2008,
respectivamente, os quais lograram elevar as alíquotas do IOF em diversas das
52 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 97. 53 FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 16ª Ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 105. 54 O partido questiona, também, outros pontos acerca dos decretos n.º 6.339/08 e n.º 6.345/08 que, no entanto, demonstram-se de menor importância para o presente trabalho, motivo pelo qual não se procederá à análise dos mesmos. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n.º 4002. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2586593 Acessado em 26/10/2009.
41
operações reguladas pelo imposto. Segundo o requerente, esses atos, decretos n.º
6.339/2008 e n.º 6.345/2008, autônomos, sem natureza regulamentar, majoraram o
imposto sobre tais operações em virtude de seus efeitos fiscais, configurando
desvirtuamento da mitigação do princípio da reserva legal.
Isso porque, à época, membros do governo teriam fornecido informações à
imprensa confirmando o propósito compensador das medidas, em virtude da
extinção da CPMF e da conseqüente queda da arrecadação. Nesses termos, o
partido Democratas apontou o desvio de finalidade em que teria incorrido o
Executivo brasileiro, eis que a majoração do IOF deve se fundamentar no ajuste da
balança comercial, ou mesmo, no controle do mercado de capitais, sempre com
vistas ao desenvolvimento da economia, preponderando a finalidade extrafiscal do
tributo sobre a arrecadatória.
Insta observar que o autor, apesar de suscitar outros vícios de somenos
importância para o presente trabalho, sequer chegou a indicar a ausência de
motivação nos atos normativos em comento, elemento central para a caracterização
da ilegalidade dos decretos do Poder Executivo Federal.
5.2. A Tese da Advocacia-Geral da União
Em defesa dos atos normativos expedidos pelo Presidente da República, a
Advocacia-Geral da União informou que a Constituição da República, embora confira
a função extrafiscal ao IOF, não lhe retira o viés arrecadatório, que, de fato, é o
intuito da elevação das alíquotas em comento.
42
Não obstante, a Advocacia-Geral da União argumentou ainda que, de acordo
com a Nota Técnica n.º 02 da Secretaria de Política Econômica do Ministério da
Fazenda, a alteração promovida pelos Decretos n.º 6.339/08 e n.º 6.345/08 também
encerram finalidades regulatórias, como a diminuição da pressão inflacionária,
reduzindo-se o consumo à crédito, desestimulando o endividamento das pessoas
físicas, ao passo em que a tributação sobre pessoas jurídicas restou mantida em
níveis inferiores.
5.3. O Confronto entre os Argumentos Suscitados - Exame dos Decretos
n.º 6.339/08 e n.º 6.345/08
A extinção da CPMF, como já se afirmou, foi acompanhada, em janeiro de
2008, pela publicação dos Decretos Presidenciais n.º 6.339/0855 e n.º 6.345/0856.
Esses atos normativos foram responsáveis pela alteração das alíquotas do
IOF, dispostas no Decreto n.º 6.306/07, elevando-as, de maneira geral, em 0,38%.
Ademais, os decretos lograram instituir uma alíquota adicional, também de 0,38%,
sobre todas as operações em que incide o IOF.
Por outro lado, em que pesem as alterações promovidas, não se propõe,
mediante o presente trabalho, que os referidos atos feriram os limites constitucionais
55 BRASIL Decreto Nº 6.339, DE 3 DE JANEIRO DE 2008 Altera as alíquotas do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários - IOF. Diário Oficial da União, Brasília, n.2-A, p.03, 3 jan. 2008. Seção 1, Edição Extra. 56 BRASIL Decreto Nº 6.345, DE 4 DE JANEIRO DE 2008 Altera o Decreto no 6.306, de 14 de dezembro de 2007, que regulamenta o Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários – IOF. Diário Oficial da União, Brasília, n.4, p.01, 7 jan. 2008. Seção 1.
43
ao poder de tributar. Ao contrário, como demonstrado acima, constitui o IOF exceção
aos princípios da legalidade, anterioridade e da espera nonagesimal.
Vale, nesse sentido, trazer à lume o ensinamento de Misabel Derzi:
A Constituição de 1988 facultou ao Poder Executivo variar as alíquotas do imposto, uma vez atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei (art. 153, §1º). A licença se destina a fornecer ao Executivo, de forma ágil, os insrumentos necessários à realização da política monetária e fiscal, mas restringe-se às variações de alíquotas sem estender-se à base de cálculo, que continua sendo matéria rigidamente reservada ao legislador. E decorre diretamente da Constituição vigente. (...) Além disso, é inaplicável o princípio da anterioridade ao imposto federal sobre operações de crédito, câmbio, seguro e relativas a títulos e valores imobiliários, de tal modo que não há necessidade de se aguardar o exercício financeiro seguinte ao da publicação da lei que houver instituído ou majorado o tributo, para início de sua vigência e eficácia57.
Decerto, já se adiantou que tais exceções permitem ao Poder Executivo a
modificação das alíquotas do IOF e demais impostos extrafiscais, através de ato
normativo de competência do Presidente da República, atenuando-se, portanto, o
princípio da legalidade, bem como a anterioridade e a espera nonagesimal, desde
que atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei. A lei n.º 8.894/9458,
nos parágrafos únicos dos artigos 1º e 5º, prevê que os ajustes das alíquotas do IOF
deverão levar em consideração os objetivos da política monetária, cambial e fiscal.
Da mesma maneira, o art. 65 do Código Tributário Nacional prescreve que tais
alterações deverão observar os objetivos da política monetária.
57 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro, atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro, Forense: 2002, p. 475. 58 BRASIL. Lei n.º 8.894, de 21 de junho de 1994. Dispõe sobre o Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos e Valores Mobiliários, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 22 jun. 1994
44
Ressalta-se que, consoante a lição de Mendonça59, exceção que se constitui
a majoração do IOF aos princípios supracitados, o decreto presidencial que altera a
alíquota de um tributo, conquanto ostente denominação e forma de decreto e seja
ato de competência do Poder Executivo, inova no ordenamento jurídico,
classificando-se como ato materialmente legal, e não regulamentar. Daí que os
decretos presidenciais n.º 6.339/08 e n.º 6.345/08 devem sujeição à regra da
irretroatividade da lei tributária, isto é, não têm o condão de alterar as situações
jurídicas perfeitas.
Nesse diapasão, Luciano Amaro60, taxativamente, explana que mesmo os
tributos que comportam a mitigação à regra da anterioridade, não deixam de se
submeter ao princípio da irretroatividade, que é absoluto.
Insta, também, salientar que, a fim de cumprir os ditames legais, os atos
normativos devem mencionar com precisão as razões adotadas pelo Executivo para
realizar tais alterações. Nesse sentido, a doutrina de Hugo de Brito Machado:
O Poder Executivo pode alterar as alíquotas dos impostos flexíveis, vale dizer, impostos de função extrafiscal, entre eles o IOF, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei. (...) Em cada caso é necessária a motivação específica. Não basta que o ato do Poder Executivo repita o enunciado genérico do art. 65 do Código Tributário Nacional, reportando-se à necessidade de ajustar o imposto aos objetivos da política monetária. É necessária a indicação do objetivo específico a ser alcançado com a alteração da alíquota61.
59 MENDONÇA, Gabriel Prado Amarante de. A Irretroatividade, Anterioridade e Espera Nonagesimal nas Modificações de Jurisprudência em Direito Tributário. 2009, 227f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, p.160. 60 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro.14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 127 61 MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. Volume I. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 640.
45
E, se o Código Tributário Nacional, assim como a Lei n.º 8.894/9462, dispõem
que tal alteração deve visar o ajuste do tributo aos objetivos da política monetária, os
decretos em tela andaram mal ao não informar as razões adotadas pelo Presidente
da República, que justificassem as alterações promovidas nas alíquotas do IOF,
como ensina a melhor doutrina.
A Advocacia-Geral da União, em defesa dos decretos em questão, invocou a
desnecessidade de a motivação do ato administrativo vir contida no próprio corpo do
texto normativo, podendo ser alocada no processo administrativo pertinente. In casu,
alegou que a motivação para ambos os decretos se encontra na Nota Técnica n.º
02, da Secretaria de Política Econômica, do Ministério da Fazenda, conforme
precedentes do Supremo Tribunal Federal. A jurisprudência da Corte Superior63, de
fato, admite que a motivação dos decretos que se prestem a tanto se encontre nos
procedimentos administrativos de sua formação:
EMENTA: - CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMPORTAÇÃO: ALÍQUOTAS: MAJORAÇÃO POR ATO DO EXECUTIVO. MOTIVAÇÃO. ATO. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO: FATO GERADOR. C.F., art. 150, III, a e art. 153, § 1º. I. - Imposto de importação: alteração das alíquotas, por ato do Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei: C.F., art. 153, § 1º. A lei de condições e de limites é lei ordinária, dado que a lei complementar somente será exigida se a Constituição, expressamente, assim determinar. No ponto, a Constituição excepcionou a regra inscrita no art. 146, II. II. - A motivação do decreto que alterou as alíquotas encontra-se no procedimento administrativo de sua formação, mesmo porque os motivos do
62 BRASIL. Lei n.º 8.894, de 21 de junho de 1994. Dispõe sobre o Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos e Valores Mobiliários, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 22 jun. 1994 63 BRASIL Supremo Tribunal Federal. RE n.º 225.602/CE Relator: Ministro Carlos Velloso. Julgamento: 25/11/1998. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28225602.NUME.%20OU%20225602.ACMS.%29&base=baseAcordaos Acessado em: 20/11/2009
46
decreto não vêm nele próprio. III. - Fato gerador do imposto de importação: a entrada do produto estrangeiro no território nacional (CTN, art. 19). Compatibilidade do art. 23 do D.L. 37/66 com o art. 19 do CTN. Súmula 4 do antigo T.F.R.. IV. - O que a Constituição exige, no art. 150, III, a, é que a lei que institua ou que majore tributos seja anterior ao fato gerador. No caso, o decreto que alterou as alíquotas é anterior ao fato gerador do imposto de importação. V. - R.E. conhecido e provido.
Não obstante, em que pesem os argumentos suscitados pela Advocacia-
Geral da União, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se posiciona no
sentido de permitir que a motivação do ato administrativo se encontre no
procedimento administrativo que deu ensejo à sua formação, ao passo em que não
se trata a Nota Técnica n.º 02, do Ministério da Fazenda, de ato preparatório à
formação dos decretos em comento, mas de ato posterior à sua constituição.
Demais disso, busca-se demonstrar que, além de os decretos não
apresentem motivação para a elevação das alíquotas do IOF, a União valeu-se de
um imposto regulatório para, primordialmente, elevar os níveis de arrecadação,
contrariamente à finalidade da hipótese excepcional de alteração quantitativa do
dever tributário pelo Executivo.
Tal conclusão pode ser extraída da defesa apresentada pela Advocacia-Geral
da União contra os argumentos levantados pelo partido Democratas na ADI n.º
4002/08, na qual resta manifestamente claro o intuito essencialmente fiscal das
medidas do Poder Executivo. Igualmente, a citada nota técnica n.º 02, da Secretaria
de Política Econômica, do Ministério da Fazenda, ressaltou o caráter essencialmente
fiscal das alterações promovidas pelos decretos. Insta observar, ainda, que a
majoração das alíquotas do IOF alcançou os mesmos 0,38% vigentes para a CPMF,
quando da extinção desta, reforçando o aspecto compensatório dos atos normativos.
47
Lado outro, conforme examinado anteriormente, a mens legis constitucional é
facultar ao Poder Executivo a alteração das alíquotas do IOF mediante a célere
expedição do decreto presidencial, a fim de garantir o cumprimento da função
extrafiscal do imposto. Demais disso, não bastasse a ausência de motivação dos
atos, as declarações de membros do governo acerca da finalidade das medidas, as
quais, reportou-se à época, visavam suprir a deficiência orçamentária provocada
com a extinção da CPMF, evidenciando-se o desvio de finalidade dos decretos.
Isso porque, a permissão para a modificação das alíquotas dos impostos
extrafiscais pelo Executivo se alinha com a consecução de objetivos diversos do
arrecadatório, tendo em vista não ser esta a função proeminente desses tributos. Os
tributos fiscais, esses sim detêm finalidade primordialmente fiscal, produzindo efeitos
extrafiscais tão-somente por reflexo da sua incidência e, as ações do Executivo que
visem o aumento da arrecadação aos cofres da União devem se alinhar com o
trâmite dos impostos de natureza fiscal, como cediço no ordenamento jurídico.
Ensina Luciano Amaro:
A constituição não dá à lei o poder de delegar ao Executivo a livre fixação da alíquota. Em relação aos impostos excepcionados, também não lhe permite que autorize o Executivo a modificar as alíquotas quando ele julgue conveniente, ou de acordo com as diretrizes ou razões que ele próprio venha a traçar, um vez que a atuação do Executivo se submete ao cumprimento das condições especificadas pela lei, a par de observar os limites nela fixados64.
64 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro.14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 117
48
Conseguintemente, identificando-se na elevação das alíquotas do IOF a
finalidade eminentemente fiscal, resta configurada a ilegalidade dos decretos n.º
6.339/08 e n.º 6.345/08.
Veja-se, ainda, que ao contrário de outros atos administrativos defeituosos,
aos decretos que encerrem desvio de finalidade resta impossibilitada a
convalidação, pois se assim não fosse, a reprodução do seu conteúdo geraria
efeitos ilegais mais uma vez, consoante a lição de Maria Sylvia Zanella di Pietro65.
Por fim, vale reproduzir as palavras de Kiyoshi Harada, para quem os
decretos em comento traduzem evidente desvio de finalidade por parte do
Executivo:
Afirmar que o Executivo pode majorar os impostos extrafiscais sempre que houver desequilíbrio das finanças públicas, motivado pela expansão de despesas, é o mesmo que destruir o Sistema Tributário, estruturado em torno do princípio da legalidade. Mais do que isso, seria destruir o Estado Democrático de Direito. Seria o mesmo que um penalista sustentar que o Executivo pode aumentar as penas cominadas para determinados tipos criminais em função da expansão do índice de criminalidade. O princípio do nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege fundamenta o Direito Penal, assim como o princípio do nullum tributum sine lege, nullum amplicatio vectigalium sine lege representa a espinha dorsal do Direito Tributário. (...)Vale dizer, o Executivo só pode majorar as alíquotas do IOF por Decreto, quando for para atender os objetivos previstos na Lei 8.894/94. Fora das hipóteses previstas nessa lei, o aumento das alíquotas do IOF deverá ocorrer por meio de lei em sentido estrito. (...)À luz da ordem jurídica vigente os Decretos hostilizados pelas Adins traduzem, sem sombra de dúvida, desvio de finalidade e, como tal, são inconstitucionais66.
65 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 233. 66 HARADA, Kiyoshi. Aumento do IOF. Insubsistência dos argumentos do governo federal perante o STF. Acessado em 10 de novembro de 2009. http://www.fiscosoft.com.br/main_index.php?home=home_artigos&m=_&nx_=&viewid=194734
49
6. CONCLUSÃO
O Imposto sobre Operações Financeiras, como o próprio nome aduz, permite
a tributação de atividades de significação financeira, incidindo sobre operações de
títulos e valores mobiliários, de câmbio, seguros e crédito. Não obstante, a
incidência do IOF sobre tais atividades extrapola a finalidade arrecadatória
identificável em outros impostos. E, se é certo que a função precípua do IOF
transpõe o mero recolhimento de recursos ao Fisco, a extrafiscalidade encerrada
pelo tributo permite que o governo exerça certo controle sobre a economia, uma vez
que o habilita a determinar a intensidade da tributação sobre aquelas operações
sujeitas ao imposto.
Isso porque, como visto, a Constituição de 1988 faculta ao Presidente da
República, mediante a edição de ato normativo, a alteração das alíquotas do IOF, a
fim de que seja atendida satisfatoriamente a finalidade regulatória do tributo.
Ademais, não apenas optou-se por mitigar o princípio da legalidade, como também
restou assegurado ao Chefe do Executivo a atenuação de outros limites ao poder de
tributar, quais sejam, anterioridade e noventena.
De outra forma não poderia ser. A necessidade da célere intervenção
governamental na economia, diante de suas imprevisíveis oscilações, coaduna-se
com a presteza na expedição do decreto presidencial. Dessa maneira, uma vez que
o IOF se destina, primordialmente, a regular o mercado financeiro, permite-se que o
Executivo goze de exceções quanto aos princípios constitucionais tributários, desde
que atenda aos condicionantes legais.
50
Em outras palavras, a extrafiscalidade justifica as prerrogativas concedidas ao
Executivo na alteração das alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras.
Por outro lado, ao majorar as alíquotas do IOF através dos Decretos
Presidenciais n.º 6.339/08 e n.º 6.345/08, o Presidente da República buscou
alcançar, precipuamente, objetivos fiscais, conforme se depreende da análise da
defesa favorável aos decretos em tela, em evidente desvirtuamento da finalidade
das prerrogativas que lhes são concedidas. E, não bastasse a natureza
arrecadatória das medidas, tratam-se, ainda, de atos administrativos imotivados.
Certamente, valer-se das exceções proporcionadas pela Constituição de 1988
para majorar as alíquotas do imposto, com o fito de compensar as perdas
decorrentes da extinção da CPMF é incorrer em ilegalidade, pois prescreve o texto
constitucional que a alteração das alíquotas do IOF deve atender às condições e os
limites previstos no dispositivo do art. 65, do Código Tributário Nacional, bem como
nos artigos 1º e 5º, da Lei n.º 8.894/94, ou seja, que a medida ajuste o imposto aos
objetivos da política monetária nacional.
Nesse sentido, Hugo de Brito Machado:
É certo que o parágrafo 1º, do art. 153, da Constituição Federal, libera o IOF do alcance do princípio da legalidade porque faculta ao Poder Executivo alterar suas alíquotas. Em outras palavras, a Constituição Federal permite que esse imposto seja aumentado por ato do Poder Executivo. E certo é também que em relação a esse imposto a Constituição não impõe a anterioridade anual, nem a anterioridade nonagesimal. A inconstitucionalidade desse aumento do IOF, todavia, não decorre do desatendimento dos princípios da legalidade e da anterioridade, anual ou nonagesimal. Quanto a esses princípios constitucionais é importante que apenas se considere que a liberação do IOF constitui uma exceção, como acontece, aliás, com a não-aplicação dos princípios constitucionais também aos demais impostos. A regra é a submissão de todos os tributos aos princípios constitucionais limitadores do poder tributário. Assim, exceção que é a não-aplicação do princípio da legalidade ao
51
IOF esta há de ser vista com as devidas cautelas a fim da que não seja ampliado o seu alcance para além da finalidade política que a justifica67.
Destarte, evidenciada a ilegalidade dos Decretos hostilizados pela ADI n.º
4002, faz-se forçosa a declaração de nulidade desses, eis que incompatíveis com o
Ordenamento Jurídico brasileiro.
67 MACHADO, Hugo de Brito. Inconstitucionalidade do aumento do IOF com desvio de finalidade. Revista Dialética de Direito Tributário n.º 154, jul/08, p. 53.
52
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