monjardim, adelpho. a torre do silêncio ·...

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1 A torre do silêncio 1 (Adelpho Monjardim) Sumário Vinte minutos na lua ....................................................................... 5 Uma noite de horror ....................................................................... 47 A torre do silêncio ....................................................................... 55 O satanás de Iglawaburg ....................................................................... 67 O purba ....................................................................... 79 O diário da “Medusa” ....................................................................... 131 Vinte minutos na Lua [5] 2 Chapéu batido para trás, paletó desabotoado, colarinho aberto e a gravata frouxa, embarafustouse, pela redação do Star, o repórter Bill. Como sempre atrasado. O’Connor, o redator, mirouo por cima dos óculos. Sem darlhe tempo, Bill deixou cair sobre a sua mesa algumas tiras de papel, e gritou para que todos ouvissem: – Os Yankees venceram! E, vertiginosamente, foise, por entre as mesas, em busca da sua. Arrastou a cadeira e deixouse cair sobre ela com todo o peso do corpo, soltando ruidoso suspiro de alívio. Maquinalmente estendeu as longas pernas e pousouas sobre a secretária, ajeitando entre elas a Remington portátil. Em tão cômoda posição começou a dedilhar o teclado com ímpeto heróico das sinfonias de Beethoven. A pobre estremecia e ameaçava desconjuntarse sob o peso daquelas mãos. O carro constantemente arremessado de um extremo a outro, percutia, sem descanso, o marginador, fazendoo vibrar em tlim tlins sonoros, verdadeiros “SOS” de dor e de desespero. [6] Mr. O’Connor, que o não perdia de vista, resmungando e mascando a ponta do charuto, inclinouse sobre o ditafone e mantevese concentrado por alguns instantes, findos os quais levantouse, resoluto, e a passos largos encaminhouse na direção de Bill. Apreensivo Bill viuo chegar. E tinha as suas razões. Sem delongas ou preâmbulos Mr. 1 MONJARDIM, Adelpho. A torre do silêncio. Rio de Janeiro: A Noite, 1944. 2 Os números entre colchetes referemse aos números das páginas dos originais.

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  • 1

    A  torre  do  silêncio1  (Adelpho  Monjardim)  

     

    Sumário  

    Vinte  minutos  na  lua   .......................................................................   5  

    Uma  noite  de  horror   .......................................................................   47  

    A  torre  do  silêncio   .......................................................................   55  

    O  satanás  de  Iglawaburg   .......................................................................   67  

    O  purba   .......................................................................   79  

    O  diário  da  “Medusa”   .......................................................................   131  

     

    Vinte  minutos  na  Lua  

     

      [5]2   Chapéu   batido   para   trás,   paletó   desabotoado,   colarinho   aberto   e   a   gravata  

    frouxa,   embarafustou-‐se,   pela   redação   do   Star,   o   repórter   Bill.   Como   sempre   atrasado.  

    O’Connor,  o  redator,  mirou-‐o  por  cima  dos  óculos.  Sem  dar-‐lhe  tempo,  Bill  deixou  cair  sobre  

    a  sua  mesa  algumas  tiras  de  papel,  e  gritou  para  que  todos  ouvissem:  

      –  Os  Yankees  venceram!  E,  vertiginosamente,  foi-‐se,  por  entre  as  mesas,  em  busca  da  

    sua.   Arrastou   a   cadeira   e   deixou-‐se   cair   sobre   ela   com   todo   o   peso   do   corpo,   soltando  

    ruidoso   suspiro   de   alívio.  Maquinalmente   estendeu   as   longas   pernas   e   pousou-‐as   sobre   a  

    secretária,   ajeitando   entre   elas   a  Remington   portátil.   Em   tão   cômoda   posição   começou   a  

    dedilhar  o   teclado   com   ímpeto  heróico  das   sinfonias  de  Beethoven.  A  pobre  estremecia  e  

    ameaçava  desconjuntar-‐se  sob  o  peso  daquelas  mãos.  O  carro  constantemente  arremessado  

    de  um  extremo  a  outro,   percutia,   sem  descanso,  o  marginador,   fazendo-‐o   vibrar   em   tlim-‐

    tlins  sonoros,  verdadeiros  “SOS”  de  dor  e  de  desespero.  [6]  

      Mr.   O’Connor,   que   o   não   perdia   de   vista,   resmungando   e   mascando   a   ponta   do  

    charuto,  inclinou-‐se  sobre  o  ditafone  e  manteve-‐se  concentrado  por  alguns  instantes,  findos  

    os   quais   levantou-‐se,   resoluto,   e   a   passos   largos   encaminhou-‐se   na   direção   de   Bill.  

    Apreensivo   Bill   viu-‐o   chegar.   E   tinha   as   suas   razões.   Sem   delongas   ou   preâmbulos   Mr.   1  MONJARDIM,  Adelpho.  A  torre  do  silêncio.  Rio  de  Janeiro:  A  Noite,  1944.  2  Os  números  entre  colchetes  referem-‐se  aos  números  das  páginas  dos  originais.  

  • 2

    O’Connor  foi-‐lhe  atirando  sobre  a  mesa  as  mesmas  tiras  de  papel,  dizendo  em  tom  que  não  

    admitia  réplicas:  

      –  Mr.   Bill!   Escreva  mais   e   trabalhe  menos!  Que  pretende  dizer   com  estas   tiras   em  

    branco  e  meia  dúzia  de  rabiscos?!  

      –  É  o  jogo  de  beisebol  entre  Yankees  e  Giants.  

      –  Então  é  novo  sistema  de  taquigrafia?  

      Embaraçado,   Bill   procurou   desviar   a   tempestade.   Curvando-‐se   sobre   a   máquina  

    disse:  

      –  Um  minutinho  Mr.  O’Connor  e  completarei  o  desenrolar  da  peleja.  Um  minutinho  e  

    será  uma  nota  sensacional.  

      Pouco  faltou  para  que  Mr.  O’Connor  se  lhe  atirasse  ao  pescoço.  Jogando  o  charuto  ao  

    chão  e  pisando-‐o  com  violência,  berrou  a  plenos  pulmões:  

      –  Basta!  Basta  de  palhaçadas  e  mentiras!  Soubesse  você  onde  tem  a  cabeça  e  saberia  

    que  o   jogo   foi   transferido!  Vou  dar-‐lhe  um  minutinho  para   falar   com  Mr.  Randall,   em  seu  

    gabinete.  

      –  Mr.  Randall!  Fez  Bill,  pondo-‐se  de  pé.  

      –  Sim,  Mr.  Randall,  confirmou  O’Connor,  sarcasticamente.  

      Uma  bomba  atômica  não  lhe  teria  causado  maior  surpresa.  O  ranzinzíssimo  e  temido  

    Mr.  Randall  [7]  não  era  mais  nem  menos  que  o  diretor  proprietário  do  Star.  

      –   Que   deseja   ele   de   mim?   –   gemeu   Bill,   deixando-‐se   cair,   desamparado,   sobre   a  

    cadeira.  

      –  Apresse-‐se!  Ordenou  O’Connor  de  modo  que  mais  parecia  o  rosnar  dos  buldogues.  

    E  arrematou  com  sarcasmo  que  punha  à  tona  a  alegria  que  lhe  ia  n’alma:  Creio  que  esta  será  

    a  sua  definitiva  oportunidade.  E  repetiu  sílaba  por  sílaba:  de-‐fi-‐ni-‐ti-‐va.  

      –  Por  favor  Mr.  O’Connor,  que  deseja  de  mim  Mr.  Randall?  Vai  dar-‐me  as  contas?  

      –  Não  é  propriamente  isso,  mas  no  fim  será  o  mesmo.  

      –  Com  mil  bombas!  Eu  estou   ficando  doido!  E   ameaçador:   –  Eu  o   responsabilizarei  

    pelo  que  acontecer!  

      –  Pois  creia  Mr.  Bill,  que  ambos   lucrarão  se  acontecer  algo  do  que  o  espera.  O  Star  

    não  anda  na  sua  cabeça,  em  compensação  a  sua  cabeça  anda  nas  estrelas!  E,   já  de  costas,  

    completou  a  tirada:  

      –  Passe  bem  Mr.  Bill,  e  vá  dar  um  passeio  na  Lua!  

  • 3

      Boas  risadas  coroaram  esta  tirada,  enquanto  Bill  permanecia,  indeciso,  com  a  cabeça  

    apoiada  entre  as  mão  e  os  cotovelos  na  mesa.  

      –  Apresse-‐se  rapaz!  gritou,  de  lá,  Mr.  O’Connor.  

      Enchendo-‐se   de   coragem,   pela   primeira   vez,   procurou   alinhar-‐se,   chegando   ao  

    requinte  de  mirar-‐se  ao  espelho  e  corrigir  o  laço  da  gravata.  E  passos  firmes  dirigiu-‐se  para  o  

    gabinete   do   diretor.   Com   [8]   coração   aos   pulos   parou   à   porta.   Contou   até   dez   e,  

    timidamente,  bateu.  Uma  voz  ríspida  ordenou  do  lado  de  dentro:  –  Came  in!  

      Era  a  primeira  vez  que  Bill  entrava  no   luxuoso  gabinete  de  Mr.  Randall.  Este  era  de  

    estatura   inferior   à   média   e   de   compleição   delicada;   possuidor   de   enorme   cabeça,   quase  

    calva,  que  à  primeira  vista  denunciava  o  intelectual.  A  barba  preta,  bem  cuidada,  os  bigodes  

    frisados,   emprestavam-‐lhe   maior   dignidade   à   fisionomia   fidalga,   que   um   pince-‐nez,  

    cintilante,   mais   acentuava.   Trajava-‐se   com   apuro   e   no   momento   envergava   terno   cinza,  

    tendo   à   lapela   vistosa   gardênia.   Ao   surgir   Bill,   parou   de   escrever.   Descansou   a   caneta   e  

    esperou   com   a   formalidade   de   estilo.   Bill   preparava-‐se   para   murmurar   uma   desculpa,  

    quando  Mr.  Randall  ordenou  pela  segunda  vez:  Came  in!  

      Com  a  cautela  de  quem  se  aproxima  de  um  fio  de  alta  tensão,  aproximou-‐se  Bill  do  

    homem  poderoso  do  Star.  A  custo  murmurou  algumas  palavras  à  guisa  de  apresentação.  Mr.  

    Randall  franziu  o  cenho  e,  com  afetado  espanto,  mediu-‐o  de  alto  a  baixo,  dizendo:  Ah!  É  o  

    famoso  Mr.  Bill!  

      Bill   sentiu   a   ironia.   As   tartarugas   quando   pressentem  o   perigo   escondem  a   cabeça  

    dentro  do  casco,  e  ele  achou  prudente  defender-‐se  com  um  meneio,  afirmativo,  de  cabeça.  

      –  Queira  sentar-‐se  e  esteja  à  vontade.  Aceita  um  charuto?  E  estendeu-‐lhe  a  caixa  com  

    belos  e  dourados  cubanos.  [9]  

      Os  olhos  cobiçosos  do  repórter  acariciaram-‐nos,  por  alto,  mas,  entre  tímido  e  polido  

    declinou.   Cedo   Mr.   Randall   compreendeu   que   estava   a   fazer,   com   o   subordinado,   o  

    antipático  jogo  do  gato  com  o  rato,  que  não  era  propósito  seu.  Bill  conhecia-‐se  muito  bem,  

    mas  o  mesmo  não  se  dava  com  Mr.  Randall.  

      –  Mr.  Bill,  voltou  a   falar  Randall,  eu  tenho  as  melhores   informações  a  seu  respeito.  

    Afirmou-‐me  Mr.  O’Connor,  que  é  rapaz  de  futuro  e,  sobretudo,  ativo.  

      Bill   estremeceu   de   ódio.   Sanguínea   nuvem   deslizou,   lenta,   diante   das   suas  

    esbraseadas  pupilas.  Punhais,  facas,  revólveres,  povoaram-‐lhe  os  pensamentos.  E  viu-‐se  com  

    um  joelho  sobre  o  estômago  do  velho  O’Connor,  tendo  as  mãos  cingidas  à  sua  garganta.  A  

  • 4

    voz  de  Mr.  Randall  despertou-‐o  do  devaneio  assassino:  –  Conhece,  ou  já  ouviu  falar  no  Dr.  

    Nherú?  

      Bill  olhou  para  o  teto,  pensativo.  Alisou  a  ponta  do  queixo  e,  finalmente,  confessou  

    não  o  conhecer.  

      –  Não  importa.  Ele  chegou  há  dois  dias  apenas.  Um  suspiro  de  alívio  escapou-‐se  do  

    peito  do  repórter.  

      –  Nherú  é  um  cientista  indiano.  Vem  precedido  de  grande  fama.  Contam  maravilhas  a  

    seu  respeito.  Até  que  pode  fazer  a  transmigração  da  alma!  É,  também,  hipnotizador  notável.  

    No  terreno  da  metafísica  é  considerado  autoridade  ímpar.  

      Para   Bill,   grandes   e   célebres   eram   só   os   jogadores   de   beisebol.   Fora   do   mundo  

    esportivo   nada   [10]   mais   lhe   merecia   ou   despertava   atenção.   Foi,   portanto,   com   certa  

    surpresa  e  espanto  que  olhou  para  Mr.  Randall,  para  ver  se  não  estava  a  pilheriar.  

      –  Não,  Mr.  Randall,  nunca  ouvi  falar  nesse  homem.  

      –   É   possível.   Ele   está   apenas   a   quarenta   e   oito   horas   nesta   cidade.   Espero   e   faço  

    questão   que   o   nosso   jornal   seja   primeiro   a   entrevistá-‐lo.   O   senhor   compreende   o   meu  

    interesse.  

      Bill   meneou   a   cabeça   meio   aparvalhado   com   a   enorme   responsabilidade   que   lhe  

    pesava  sobre  os  ombros.  Fazer  reportagem  sobre  beisebol  era  com  ele,  porém,  entrevistar  

    cientistas   era   coisa   muito   diferente.   Era   mandar   um   mudo   confessar   um   surdo.   Em   que  

    enrascada  me  meti,   pensava   quando   a   voz   inquisitorial   de  Mr.   Randall   chamou-‐o   à   dura  

    realidade:  

      –  Confio  na  sua  capacidade.  Estou  informado  que  é  o  homem  talhado  para  a  missão,  

    que   requer   diplomacia   e   tato.   Devo   preveni-‐lo   de   uma   coisa:   Dr.   Nherú   é   extremamente  

    suscetível.  Não  deve  ser  contrariado.  De  uma  irascibilidade  capaz  dos  maiores  desatinos.  A  

    ignorância  é  para  ele  imperdoável.  Foge  às  reuniões  por  esta  razão.  Seria  incapaz  de  trocar  

    duas  palavras  com  pessoa  de  nível  mental  inferior.  Não  tome  o  aviso  como  para  o  senhor.  E  

    acrescentou  com  um  sorriso:  –  Estou  bem  informado  a  seu  respeito.  

      Um  gosto  de  sangue  encheu  a  boca  de  Bill.  Crispou  os  punhos  de  cólera  impotente  e  

    deixou-‐os  pender,  molemente,  ao  longo  do  corpo;  invadido  de  [11]  fatal  desânimo,  em  que  

    o  homem  se  deixa  aniquilar  sem  um  gesto,  sem  uma  queixa.  

      Com   vivacidade  Mr.   Randall   consultou   o   relógio   e   com   vivacidade   exclamou:   –  By  

    God!  São  3  horas!  Não  temos  tempo  a  perder.  Vá  entrevistar  o  seu  homem!  

  • 5

      Numa   confusão   terrível   Bill   arrastou-‐se   para   fora   do   gabinete   e   as   últimas  

    recomendações  de  Mr.  Randall,  pareciam-‐lhe  odiosos  sarcasmos:  

      –   Não   se   esqueça   de   colocar,   de   quando   em   quando,   umas   pitadinhas   de   sal  

    científico  na  sua  palestra.  Vá  pelo  caminho  pondo  ordem  nos  seus  conhecimentos.  Procure  

    pôr-‐se  em  dia  com  Kant.  

      Dito   isto   com   certa   afetação   literária,  Mr.   Randall   fechou   a   porta   para   abri-‐la,   em  

    seguida,  e  gritar  para  Bill,  que  ia  longe:  

      –  Quarta  Avenida,  219!  

      Bill  nem  se  virou.  Limitou-‐se  a  sacudir,  afirmativamente,  a  cabeça,  pela  primeira  vez  

    cheia  de  alguma  coisa.  Cabisbaixo  continuou  por  entre  as  mesas  surdo  e  cego  às  perguntas  e  

    acenos   dos   companheiros.   Nem   mesmo   viu   O’Connor,   que   o   mirava   com   o   mais  

    impertinente  dos  sorrisos.  

      As   últimas   palavras   do   diretor   verrumavam   os   ouvidos   de   Bill   como   um   disco  

    defeituoso.  Acorreram-‐lhe  as  mais  desencontradas   ideias  e  a  que  mais  se  avolumava  era  a  

    de  abandonar  o  emprego  e  fugir.  Era  a  única  que  lhe  dava  calma  e  tranqüilidade  ao  espírito.  

    Ora  bolas,  pensava:  Para  que  amofinar-‐me?  Não  sou  bom  repórter  esportivo?  O  Newspaper  

    deseja  os  meus  serviços.  É  verdade  que  é   jornal   [12]  mais  modesto,  mas  pagar-‐me-‐á  mais  

    dez   dólares   e   um   contrato   por   quatro   anos.   E   como   quem   toma   resolução   definitiva   e  

    inabalável:  –  Passe  bem  Mr.  Randall!  Eu  me  demito!  E  assoviando  para  um  cab  que  passava,  

    nele  embarafustou-‐se  ordenando:  –  Quarta  Avenida,  219!  

      O   auto   parou   diante   de   suntuoso   arranha-‐céu   de   aspecto   severo.   Muitos   carros  

    estacionavam  à  porta   e  muitas   pessoas   se   aglomeravam  no   vestíbulo.  Não   foi   difícil   a   Bill  

    reconhecer   muitos   dos   seus   colegas   dos   outros   jornais   e   os   fotógrafos   se   denunciavam  

    naturalmente.   Aglomerada   diante   dos   elevadores   fechados   a   pequena  multidão   gritava   e  

    gesticulava  contra  um  homenzinho  que  lhe  retribuía  na  mesma  moeda.  Compreendeu  logo  

    que   repórteres  não  eram  personas  gratas  ao  cientista.  Uma   ideia  ocorreu-‐lhe  para   furar  o  

    bloqueio.   A   primeira   providência   foi   despachar   o   automóvel.   Numa   pequena   loja,   à  

    esquerda,  do  edifício,  modesta   tabuleta  anunciava:   “Encanador”.  Em  dois   saltos  estava  no  

    interior  da  loja.  O  dono,  velhote  amável  e  loquaz,  atendeu-‐o.  

      –  Quero  alugar  umas  ferramentas  de  encanador,  falou  Bill.  

      O   proprietário   fez-‐lhe   ver   que  não   alugava   e   nem  vendia   ferramentas   e   que  o   seu  

    estabelecimento   apenas   atendia   chamados.   As   maneiras   afáveis   do   velhinho   cativaram   a  

  • 6

    confiança   de   Bill,   que   achou  melhor   explicar-‐lhe   a   situação.   Largo   sorriso   iluminou   [13]   o  

    semblante   simpático  do   velho   Smith,   que  em   tempos  de  moço   fora   repórter   esportivo  de  

    The  Rings.  

      –  Vocês,  meninos  são  endiabrados.  Fazem-‐me  recordar  os  bons   tempos.  E  mostrou  

    os  dentes  num  sorriso  franco.  Só  queria  ver-‐lhe  a  cara  quando  descobrir  o  logro.  Batendo  no  

    ombro  de  Bill,  disse:  –  Pode  levar  a  caixa  que  está  junto  ao  balcão.  

      Quando  Bill  quis  pagar-‐lhe  o  preço  do  aluguel,  apôs-‐se  dizendo:  –  Não  aceito  nada.  

    Considerar-‐me-‐ei   pago   com   a   leitura   da   sua   entrevista   roubada.  Nela   encontrarei   algo   de  

    mim  mesmo.  Adeus  e  boa  chance.  

      Ligeiro  Bill   safou  o  paletó  e  pendurou-‐o  no   cabide  e   sopesando  a   caixa   saiu  dando  

    alegre  goodbye  ao  velho  Smith.  

      Quase  correndo  dirigiu-‐se  para  os   fundos  do  edifício.  O  elevador  de  cargas   ia   subir  

    carregado  de  bagagens.  O  ascensorista  não  parecia  de  bom  humor.  A  um  grito  de  Bill  parou  

    de  fechar  a  porta.  

      –  Sou  o  encanador.  Chamado  urgente  para  o  apartamento  do  Dr.  Nherú.  

      O   homem   olhou-‐o   com   maus   olhos   e   resmungou   qualquer   coisa,   virando-‐lhe   as  

    costas.   Por   cima   do   seu   ombro   Bill   viu-‐o   apertar   o   botão   do   14o   andar.  O   elevador   subiu  

    direto   com   a   velocidade   do   raio.   A   brusca   parada   fez   com   que   Bill   saltasse   por   cima   das  

    malas   e   fosse   chocar-‐se   com   a   parede   de   aço.   Cioso   da   sua   importância   o   ascensorista  

    apanhou  duas  maletas  e  secamente  ordenou:  Acompanhe-‐me!  [14]  

      Bill   que   não   esperava   por   aquela,   seguiu-‐o   gostosamente.   No   fundo   do   corredor  

    pararam   diante   de   pesada   porta   de   carvalho,   lisa   e   polida   como   espelho.   1.485   era   o  

    número,   artisticamente   trabalhado   em   metal   dourado.   Batendo   à   porta   o   ascensorista  

    seguiu   o   seu   caminho   sem  esperar   qualquer   agradecimento.  Do   lado  de  dentro,   cristalina  

    risada  chegou  aos  ouvidos  de  Bill,  que  nem  teve  tempo  para  pensar,  pois  a  porta  abriu-‐se  e  a  

    cara   azeitonada   de   circunspecto   criado   apareceu.   Como   que   movido   por   ideia   súbita   ia  

    fechá-‐la  de  novo,  quando  Bill  se  interpôs  entre  ela  e  o  batente.  Tomado  de  surpresa  o  criado  

    preparava-‐se  para  reagir,  quando  Bill  lhe  falou:  -‐  Sou  o  encanador!  

      –  Mas  não  chamei  nenhum  encanador,  respondeu  o  criado  em  seu  meio  inglês.  

      –  Mandado  da  gerência,  redarguiu  Bill,  de  modo  convincente.  

      –   Neste   caso   vou   chamar   sahib,   decidiu   o   criado,   olhando-‐o   com   desconfiança.  

    Queira  esperar  aqui  mesmo.  E  entrou  na  sala  contígua.  

  • 7

      Bill   encontrava-‐se   na   sala   de   espera   mobiliada   com   a   sóbria   elegância   americana,  

    nada  apresentando  que  despertasse  particular  atenção.  

      Ao  retornar  o  criado,  cessaram  as  risadas  cristalinas  e  aos  ouvidos  de  Bill  chegaram  

    vagos  murmúrios   de   um   diálogo   e   de   passos   que   se   dirigiam   ao   seu   encontro.   Procurou  

    tomar  a  mais  ingênua  atitude  possível.  Firme,  quase  em  posição  de  sentido,  com  a  caixa  de  

    ferramentas  na  destra,  mais  parecia  um  soldado  da  warmacht  que  simplório  [15]  encanador.  

    A  impressão  que  lhe  causou  a  súbita  irrupção  de  Nherú,  foi  surpreendente.  Jamais  imaginara  

    tipo   igual.   Magro,   estatura   mediana,   trajando   a   rigor,   o   Dr.   Nherú   destacar-‐se-‐ia   em  

    qualquer   meio.   Como   se   não   bastasse,   alvíssimo   turbante,   enfeitado   com   vistosa   pérola,  

    completava-‐lhe  a   impressionante  figura.  Do  rosto  comprido  e  seco  destacava-‐se  o  aquilino  

    nariz   entre   dois   penetrantes   olhos   negros,   que   lhe   davam   ar   arrogante   e   agressivo.   Um  

    bigode   fino,   à   chinesa,   sombreava-‐lhe   a   boca   de   lábios   delgados),   fortemente   unidos,  

    denunciadores   de   vontade   imperiosa   e   espírito   dominador.   Diante   daqueles   olhos  

    inquiridores,  olhos   raio  X,  que  atravessavam  a  matéria  e  perscrutavam  a  alma,  Bill   vacilou  

    como  Édipo  frente  à  Esfinge.  Ensaiou  um  sorriso  enquanto  o  doutor  o  examinava  de  alto  a  

    baixo.  

      –  Eu  sou  o  encanador,  tartamudeou.  E  o  doutor  limitou-‐se  a  imperceptível  franzir  de  

    lábios.   Eu...   ia   Bill   repetir,   desconfiado   de   que   o   doutor   desconhecesse   o   inglês,   quando  

    ouviu,  no  seu  próprio   idioma,  a   resposta   irônica:  –   Já  sei.  É  o  encanador.  E   tornou  a  sorrir  

    enigmaticamente.  

      O  brilho  daqueles  olhos  parados,   fixos   como  duas   estrelas,   enchiam  de   confusão  a  

    alma  de  Bill.  E  se  ao  menos  aquele  rosto  se  contraísse  num  ricto  de  cólera.  Numa  expressão  

    de  dúvida,  de  espanto.  Não.  Mantinha-‐se  imperturbável,  indiferente  como  lousa  tumular.  

      Diante  daquele  sorriso  e  daquelas  pupilas  fixas,  Bill  começou  a  sentir  a  vista  turva  e  

    tudo  mover-‐se-‐lhe  ao  redor.  Num  esforço  supremo  apelou  para  as  [16]  energias  que  ainda  

    lhe   restavam.   Tudo   não   passava   de   mera   sugestão.   A   entrada   de   uma   moça,   na   sala,  

    quebrou  o  encanto  que  o  sujeitava.  A  linda  platinum  blond,  de  olhos  azuis  e  tez  rosada  como  

    as   maçãs   da   Califórnia,   conteve,   surpresa,   a   gargalhada   franca,   levando   aos   lábios   dois  

    mimosos  dedos  de  unhas  esmaltadas   cor  de   sangue.  Meio   confusa   correu  os  olhos  de  Bill  

    para   o   doutor.   Bill   sentiu   renascer-‐lhe   a   coragem.   Voltou   a   ser   o   dinâmico   repórter   das  

    grandes   competições   esportivas.   Era,   novamente,   cem   por   cento,   o   repórter   Século   XX.  

    Quase   soltou   um   assovio   daqueles   com  que   os   jovens   costumam   saudar   as   beldades   que  

  • 8

    passam.  Alta,  esbelta,   tipo  esportivo  era  o  que  se  poderia  chamar  último  modelo  made   in  

    USA.  Bonita,  aliava  à  beleza  a  graça  natural,  que  mais   lhe  aumentava  os  encantos.  Tentou  

    desculpar-‐se,  porém,  o  doutor   tranquilizou-‐a  com  um  gesto.  Ele  parecia  gozar  o  embaraço  

    de  Bill  e  nada  fez  para  ajudá-‐lo  a  sair  do  impasse.  

      –   Esperá-‐lo-‐ei   lá   dentro,   disse   a  moça,   não   querendo   ser   importuna,   retrocedendo  

    sobre  os  próprios  passos.  

      –  Não,  Diana.  Fique!  –  ordenou  o  doutor.  

      A  jovem  parou  à  entrada  da  sala,  junto  ao  reposteiro.  

      Sem  desviar  os  olhos  do  repórter,  disse  o  doutor  para  a  jovem:  

      –   País   extraordinário   é   o   seu,  Diana!  Na  minha   terra   só   aos   iniciados   é   dado   ler   o  

    pensamento   alheio.   Aqui,   mal   descansei   as   malas   no   hotel   e   já   [17]   sabem   que   estou  

    precisando  de  um  encanador!  É  edificante!  Simplesmente  assombroso!  E  dava  à  voz  tom  de  

    indisfarçável  ironia.  

      Crédula   ela   fitava  Bill   como   se   estivesse  presenciando  um   fenômeno.  Bill   gaguejou  

    qualquer  coisa  que  ela  não  chegou  a  ouvir.  O  olhar  perscrutador  do  indiano  ora  se  detinha  

    nas   suas   calças   impecavelmente   frisadas   ou   na   finíssima   camisa   de   seda,   quando   não   se  

    detinha  nas  mãos  bem  tratadas,  que  denunciavam  cuidados  especiais  de  manicure.  Cansado  

    daquele  jogo  felino,  ordenou  bruscamente:  

      –  O  senhor  encanador  pode  começar.  E  mandou  o  criado  acompanhá-‐lo  até  o  quarto  

    de  banho.  

      De  passagem  pela   loira  miss,  Bill  ensaiou  o  seu  melhor  sorriso,  conseguindo  apenas  

    articular   uma   careta   cômica.   Na   segunda   sala   os   seus   olhos   se  maravilharam   com   o   luxo  

    asiático.  Móveis,  nenhum.  Grosso  tapete  persa  não  deixava  a  descoberto  polegada,  sequer,  

    de  piso.  Almofadas,  dos  mais   ricos   tecidos,  enfeitadas  a  ouro,  distribuíam-‐se  com  arte  por  

    todos  os  cantos.  Tapetes  cobriam  as  paredes  envolvendo-‐as  em  sombras  e  mistérios  como  

    nos  contos  orientais.  Apenas  esguia  coluna  de   jade,  a  um  canto,  contrastava  com  as  cores  

    severas   do   ambiente.   O   que   mais   intrigou   a   Bill   foi   a   minúscula   esfera   de   prata   que   a  

    encimava.   Pensou   estar   sendo   vítima   de   alguma   alucinação.   Julgou-‐se   transportado   a   um  

    palácio   das  Mil   e   Uma   Noites.   Para   certificar-‐   se   que   não   sonhava,   esfregou   os   olhos.  

    Enquanto  caminhava  para  a  porta  que  do  outro  lado  dava  acesso  ao  corredor,  seguindo  os  

    passos  do   [18]   soleníssimo  criado,  viu  a   jovem   ir  ao  encontro  do  Dr.  Nherú   junto  à  coluna  

    que  tanto  o  intrigava.  Sobre  o  corredor  abriam-‐se  três  portas:  uma  de  cada  lado  e  a  terceira  

  • 9

    no   fundo.  Para  essa  dirigiu-‐se  o  criado.  Abrindo-‐a  com   largo  gesto,  convidou-‐o  a  entrar.  O  

    desespero   de   Bill   era   visível.   Amaldiçoou,   com   os   seus   botões,   a   ideia   que   tivera.   Como  

    poderia,   de   tão   longe,   entabular   conversação   com   o   famoso   cientista?  O   criado   fechou   a  

    porta.   Desanimado   Bill   deixou   cair   a   caixa   de   ferramentas.   Incontinente   ela   se   abriu   e   a  

    mesma  cara  apareceu.  De  sentinela  à  vista,  pensou.  Como  farei  para  recompor  a  situação?  

    Enchendo-‐se  de  coragem  abriu  a  porta  e  foi  esbarrar  em  cima  do  formalizado  fâmulo.  Sem  

    mesmo  se  dignar  a  olhá-‐lo,  afastou-‐o  de  forma  um  tanto  rude  e  encaminhou-‐se  para  a  sala  

    em   que   se   encontrava   o   doutor.   Vendo-‐o   entrar   o   cientista   fitou-‐o   com   surpresa,   tendo  

    ainda  entre  os  dedos  a  pequenina  esfera  de  prata.  O  leve  sorriso  que  perpassou  pelos  lábios  

    da  jovem  era  algo  parecido  com  o  que  dispensamos  àqueles  que  nos  tentam  iludir.  Bill  era  

    fino  para  não  compreender  e  como  bom  sportman  estava  pronto  para  confessar-‐se  vencido.  

    O   olhar   que   lhe   dirigiu   Nherú,   valia   por   uma   pergunta,   e   Bill   voltou   a   ser   o   impetuoso  

    repórter  do  Star.  

      –  Perdão,  Doutor.  Mas  gostava  de   saber  qual  o  defeito  que  acusa  o   seu  quarto  de  

    banho.  

      Inefável   sorriso   iluminou   o   semblante   do   enigmático   doutor   e   os   seus   olhos  

    adquiriram  singular  expressão,  em  que  o  sarcasmo  e  o  espanto  se  mesclavam:  

      –  Pois  gostaria,  também,  que  mo  dissesse.  [19]  

      –  Eu?!  

      –  Sim,  o  senhor!  Por  ventura  não  lê  o  pensamento  alheio?  

      –  O  doutor  graceja.  Eu  apenas  entendo  de  torneiras  e  de  serpentinas...  

      –   É   só   do   que   não   entende.   Talvez   lhe   sejam   familiares   as   serpentinas   de   papel  

    colorido!  

      –  O  senhor  não  estará  sendo  injusto?  –  interveio,  conciliadora,  a  jovem.  

      –  Não,  Diana.  Sei  o  que  digo  e  porque  o  estou  dizendo.  

      A   campainha   retiniu   no   vestíbulo.   O   doutor   interrompeu-‐se   para   dar   ordens   ao  

    criado:  –  Veja  quem  está.  Se  –outro  encanador  despache-‐o!  Enquanto  o  criado  desaparecia  o  

    doutor   voltou-‐se   para   Bill:   -‐   Não   sei   como   o   senhor   denomina   o   que   em  minha   terra   se  

    chama  abuso.  Aqui,  onde  tudo  é  grande  e  excessivo,  talvez,  chamem  liberdade.  Porém,  deve  

    ter,  como  em  todo  lugar,  o  seu  limite.  A  liberdade  de  um  termina  onde  começa  a  de  outro.  

    Este  é  o  seu  caso...  

      –  Mas,  balbuciou  Bill,  prenunciando  tempestade.  

  • 10

      O   Dr.   Nherú,   que   agora   lhe   falava,   era   outro.   O   cenho   carregado   e   as   palavras  

    sibilantes,   revelavam   cólera.   Para   maior   desassossego,   como   brotado   do   solo,   surgiu  

    soberbo   latagão,   de   bíceps   volumosos,   que   se   foi   postar   pouco   distante.   Neste   comenos  

    chega  um  ruído  de  vozes,  que  vai  crescendo  até  à  altercação  violenta.  É  o  criado  e  o  recém-‐

    vindo.   O   doutor   interrompe-‐se   e   com   o   rosto   voltado   para   a   porta   de   entrada   espera   o  

    resultado.  [20]  A  discussão  assume  alturas   inquietantes.  Ouve-‐se  como  que  um  choque  de  

    corpos.   A   porta   fecha-‐se   violentamente   e   alguém   tomba,   com   estrondo,   no   corredor.   A  

    seguir   entra   o   criado   ajeitando  os   punhos   e   com  a   gravatinha  preta   virada  de   encontro   à  

    alvura  imaculada  do  colarinho  duro.  Curvando-‐se  diante  do  doutor,  disse  suavemente:  –  Era  

    o  novo  encanador.  

      Bill   sobressaltou-‐se.   A   moça   sorriu   e   o   doutor   acrescentou:   –   Talvez   fosse   o  

    verdadeiro!  Mas  foi  melhor  assim.  

      Bill  esforçou-‐se  para  sorrir,  mas  estava  por  demais  nervoso  para   tão   ingente   tarefa  

    poderia,  quando  muito,  imitar  o  sorriso  de  um  enforcado.  A  voz  sibilante  de  Nherú  cortou-‐

    lhe  o  fio  do  pensamento:  –  O  senhor  é  um  transgressor  da   lei:   invadiu  o  meu  lar  sob  falso  

    pretexto!  Merece  ser  castigado!    

      –  Protesto!  Eu  sou  encanador!  

      –  Impostor  é  o  que  você  é!  

      –  Ofende-‐me!  

      –  O  senhor  é  que  ofende  a  minha  inteligência  com  esta  grosseira  mistificação!  Onde  

    se  viu  encanador  assim?  –  disse  dirigindo-‐se  à  jovem.  Onde,  em  serviço,  usaria  sapatos  tão  

    caros?  

      Bill  esfriou.  Nem  coragem  teve  para  olhar  para  os  pés.  Diana  não  pôde  sopitar  o  riso.  

    Minucioso  nas  suas  observações,  prosseguiu  o  doutor:  –  Veja  o  friso  das  calças,  que  dobras  

    só  conhece  as  do  cabide!  E  que  tecido!  Casimira  para  $  100,00!  Camisa  de  seda!  Botões  de  

    punhos,  de  ouro!  Que  maravilha  [21]  os  encanadores  americanos.  Aposto  que  usam  relógios  

    de  platina  cravejados  de  diamantes!  

      Com   um   riso   amarelo   Bill   levou   a   mão   ao   pescoço,   procurando   ajeitar   a   gola   da  

    camisa.  

      –  Por  certo,  continuou  Nherú,  aí  devia  estar,  há  pouco,  caríssima  e  vistosa  gravata.  E  

    que  mãos  delicadas!  Permita-‐me  a  indiscrição.  O  senhor  trabalha  de  luvas?  

  • 11

      A  esta  altura  Bill  não  sabia  se  devia  zangar-‐se  ou  continuar  representando  o  papel  de  

    encanador.  Achou  prudente  não  responder.  

      –   Nem   manchinhas   de   óleo   quer   nas   mãos,   quer   na   roupa.   Que   admiráveis   os  

    encanadores  americanos!  

      A  moça  não  podia  refrear  o  riso,  que  tanto  encabulava  o  atribulado  repórter,  muito  

    embora  fossem  por  ele  as  suas  simpatias.  

      O  doutor  abandonou  o  sarcasmo  para  retornar  à  atitude  severa  de   juiz   inflexível:  –  

    Quero  que  saiba  que  me  não  enganou  desde  o  momento  que  aqui  pôs  os  pés.  O  senhor  é  

    um  daqueles  que  se  aglomeram  lá  em  baixo.  Vai  fazer-‐lhes  companhia.  E  se  dê  por  feliz  não  

    saindo  pela  janela.  

      –  É  uma  violência!  O  senhor  não  pode  fazer  semelhante  coisa!  Estamos  na  América!  

      –  E  eu  estou  em  minha  casa!  E  fazendo  sinal  ao  latagão  de  bíceps  atléticos.  

      Ali,  o  serviçal,  aproximou-‐se.  Recuando,  Bill  caiu  em  guarda,  na  mais  correta  postura  

    da  “nobre  arte”.  Agachado,  Ali  avançava,  cautelosamente,  como  enorme  aranha.  Antes  que  

    se   verificasse   o   choque   [22]   entre   os   dois   homens,   Diana   gritou:   –   Não,   professor!   Não  

    consinta!  

      Bastou  um  olhar  de  Nherú  para  o  serviçal  voltar  à   impassibilidade  de  estátua.  Mais  

    aliviado  Bill  readquiriu  a  sua  atitude  pacífica.  Friamente  ordenou-‐lhe  o  doutor:  Retire-‐se!  

       –   Resta-‐me   obedecer,   replicou   Bill,   dando   de   ombros.   E   para   ser   por   ele  

    compreendido:  –  Razão  tinha  Mr.  O’Connor.  Antes   fosse  passear  na  Lua!  E  a  passos   largos  

    dirigiu-‐se  para  o  quarto  de  banho,  em  busca  das  ferramentas.  

      Quando  ele  saiu  a  moça  falou:  –  O  senhor  está  sendo  demasiado  severo.  Esse  moço  

    demonstrou   ousadia   e   engenho.  Merece   ser   recompensado.   Se   for   um   repórter   dê-‐lhe   a  

    oportunidade  que  procura.  

      –  Os  repórteres  são  todos  uns  néscios!  –  respondeu,  mal  humorado,  o  doutor.  

      –  Não  seja  pessimista.  Se  o  importunam  culpe  à  sua  celebridade.  O  moço  mostrou  ser  

    diferente.  Foi  o  único  a  chegar  à  sua  presença.  

      –   Bem,   para   satisfazer-‐lhe   vou   dar-‐lhe   uma  oportunidade.  Deixe-‐o   voltar.   Ele   disse  

    algo  que  me  despertou  um  velho  desejo.  

       –  Que  foi?  –  perguntou  a  moça,  espicaçada  em  sua  curiosidade  feminina.  

      –  Já  vai  saber.  Aí  vem  ele.  

  • 12

      Muito   desajeitado   vinha   Bill   segurando   a   maleta   e   maldizendo   as   roupas   que   o  

    fizeram   fracassar;   ao   mesmo   tempo   que   aparafusava   as   mentiras   com   que   revestiria   a  

    entrevista  gorada.  E,  filosoficamente,  concluía  em  paz  com  a  consciência:  –  [23]  mais  difícil  é  

    criar  que  copiar.  Reservou  o  mais  amável  sorriso  para  a  jovem,  a  quem  cumprimentou  com  

    elegante  curvatura  de  corpo  e  erguendo  a  elevada  estatura  passou  pelo  cientista  com  altiva  

    arrogância.  Doido  para  vê-‐lo  pelas  costas  o  criado  já  estava  abrindo  a  porta.  

      –   Um   momento,   disse-‐lhe   o   doutor.   Creio   tê-‐lo   ouvido   mencionar   a   Lua.   A   que  

    propósito?  Enganar-‐me-‐ia?  

      Surpreso,   sem   saber   o   “porquê”   daquele   interesse,   Bill   respondeu   curioso   e  

    desconfiado:  –  Disse  que  antes  tivesse  ido  passear  na  Lua.  Os  olhos  de  Nherú  brilharam  de  

    satisfação   e   os   seus   lábios   se   entreabriram   num   sorriso   de   felicidade.   –   Passear   na   Lua,  

    murmurou  repetindo  as  palavras  de  Bill.  Sem  dar  importância,  Bill  ia  retira-‐se,  quando  Nherú  

    lhe  falou  em  tom  sério:  –  O  senhor  quer  dar  um  passeio  na  Lua?  

      Bill  olhou-‐o  como  quem  olha  um  louco.  O  doutor  adivinhou-‐lhe  o  pensamento:  –  Não  

    estou  louco.  Faço-‐lhe  uma  proposta.  Responda-‐me  agora:  A  que  jornal  pertence?  

      –  Ao  Star.  

      –  Interessante!  Das  estrelas  à  Lua  um  pulo!  

      Pela  primeira  vez  Bill  pensou  seriamente  em  pular  do  décimo  quarto  andar  à  rua.  

      –   Façamos  um  acordo.  O   senhor  quer  uma  entrevista   sensacional   e   eu   lhe  ofereço  

    coisa  mais  extraordinária.  Uma  autêntica  viagem  à  Lua,  para  ser  contada  em  seu  jornal.  [24]  

      –  O  doutor  está  brincando.  Tomar-‐me-‐iam  por  louco!  

      –  Dou-‐lhe  a  palavra  de  honra!  Farei  com  o  senhor  a  experiência  que  busco  há  anos.  

      Não  obstante  o  tom  sério  com  que  falava  o  Dr.  Nherú,  Bill  ainda  duvidava,  e  arriscou  

    uma  pilhéria:  

      –  Só  se  me  transformar  em  “radar”.  

      –   À   sua   alma   sim,   respondeu-‐lhe   Nherú   com   voz   grave.   Ela   será   o   radar   vivo   e  

    pensante   com   que   esquadrinharei   as   maravilhas   do   universo!   Os   olhos   do   doutor,  

    adquiriram  brilho  diabólico  e  as  suas  mãos  crisparam-‐se  como  garras  de  fera.  

      Entre   assustado   e   indeciso   Bill   olhou   para   a  moça,  mas   ao   vê-‐la   sorridente   tomou  

    novo  alento:  

      –   Confesso   que   não   me   agrada   a   perspectiva   de   me   ver   transformado   em   radar,  

    bisbilhotando  a  amplidão  sidérea,  porém,  é  a  minha  profissão.  Aceito!  

  • 13

      O  cientista  estendeu-‐lhe  a  mão  de  dedos  longos  e  trêmulos  como  pernas  de  aranha.  

    Estava   selado   o   pacto   como   dois   bons   desportistas.   Operou-‐se   radical   transformação   nos  

    modos  e  até  na  fisionomia  do  doutor.  De  taciturno  e  ríspido  passou  a  loquaz  e  solícito.  Como  

    prova  de  excelente  humor  exclamou:  

      –   Creio   que   estamos   fugindo   às   regras   de   bom   tom.   Bill   e   Diana   entreolharam-‐se,  

    intrigados   e   ele   completou.   Vou,   primeiramente,   apresentar-‐me:   Panda   Nherú,   de   Agra.  

    Doutor  em  ciências  físicas  e  naturais  e  Grão  Mestre  do  Himalaia.  Aqui  Miss  Diana  Morgan,  

    minha  amiga  e  quase  secretária.  A  moça  estendeu  a  mão,  que  Bill  apertou  enquanto  se  [25]  

    apresentava:   –   Eu,   Bill   Brennan,   de   New   York.   Repórter   esportivo   do   Star.   E   com   ar   de  

    espanto:  Diana  Morgan?!  A  filha  do  Presidente  do  Import  and  Export  Bank?  

      –  Exatamente,  respondeu  o  doutor.  

      A   jovem   gozou   o   espanto   de   Bill.   E   este   continuou:   –   É-‐me   familiar   o   seu   nome,  

    através  dos  noticiários  esportivos.  Jamais  pensei  conhecê-‐la  de  forma  tão  singular.  Creia  que  

    me  proporciona  grande  satisfação.  

      –  Obrigada.  

      –  Esperava  conhecê-‐la  no  próximo  campeonato  de  Forrest  Hill.  

      –  Sim?  Entretanto  depende  das  provas  de  Daytona  Beach.  

      –  Que  me  diz!  Daytona  Beach?!  

      A  resposta  de  Miss  Diana  foi  um  sorriso.  O  Dr.  Nherú  explicou:  

      –  Você  não  conhece  Diana.  Tem  coragem  para  coisas  mais  arriscadas.  

      –  E  que  pode  haver  mais  arriscado  que  Daytona  Beach?  

      –  Os  espaços  interplanetários!  

      –  Refere-‐se  à  aviação?  

      –  A  uma  aviação  em  que  se  é  a  um  tempo  aparelho  e  piloto.  

      –  Está  sendo  transcendental,  doutor.  

      –  Explico,  falou  Diana,  tornando  à  conversa:  –  Não  sei  se  você  sabe  o  que  vem  a  ser  

    um  Mestre  do  Himalaia.  [26]  

      Bill  fez  sinal  negativo  e  ela  continuou:  

      –  Os  Mestres  do  Himalaia  ou  os  Homens  Sábios  do  Oriente,  são  uma  seita  que  habita  

    certo  mosteiro  perdido  nos   flancos  da  grande  cordilheira,  nas   lindes  extremas  do   fabuloso  

    Tibet.  De  há   séculos  detêm  os  grandes   segredos  da  vida  e  da  morte.  O  Universo  não   lhes  

    apresenta  mistérios.  Tempo  e  espaço  não  têm  para  eles  significação  transcendental.  Brincam  

  • 14

    com   a   alma   como   brincamos   com   um   bichano.   As   forças   da   natureza   são-‐lhes   dóceis  

    instrumentos.  Eis  o  que  é  o  professor  Nherú.  

      –  Bill  olhou-‐o  de  modo  a  deixar  transparecer  o  assombro  de  permeio  com  a  dúvida.  

    Existiria  alguém  assim?!  De  certo  não!  Espírito  esportivo   resolveu  aceitar  o   jogo  como   lho  

    apresentavam.  Nherú  aproveitou  a  pausa  para   retomar  a  palavra:  Depois  do  que   lhe  disse  

    Diana,   creio   já   nos   conhecermos   bem.   Por   tudo   que   ouviu   não   me   julgue   fabricante   de  

    milagres  ou  coisa  parecida.  Se  algo  extraordinário  há  nos  meus  trabalhos  deve  ser  procurado  

    na  ignorância  dos  que  desconhecem  os  segredos  do  Himalaia.  Nós  que  vivemos  nas  imensas  

    solidões,  que  estamos  em  mais  íntimo  contacto  com  a  natureza,  e  mais  perto  do  verdadeiro  

    Deus,  herdamos  a  sua  sabedoria.  

      Enquanto   falava   as   suas   feições   iam   adquirindo   o   aspecto   selvagem   dos   velhos  

    monges   das   lendas   tibetanas,   perdidos   para   além   do   horizonte,   na   noite   dos   tempos.   O  

    silêncio   caiu   entre   os   três.   Diana   foi   colocar-‐se   junto   à   coluna   de   jade.   Nherú,   de   cabeça  

    baixa,  entregara-‐se  à  meditação.  Assim  [27]  passaram-‐se  os  minutos  e  Bill  esperava  sem  dar  

    sinal  de  impaciência.  Por  fim  Nherú,  num  movimento  rápido,  levantou  a  cabeça  e  respondeu  

    a  Bill  o  que,  mentalmente,   se  perguntara:  –  Não!  Diana  não  se  submeterá  a  essa  prova!  E  

    como  Bill  lhe  fizesse  muda  interrogação,  apressou-‐se  a  explicar:  –  Ela  quer  prestar-‐se  para  a  

    minha  experiência,  mas  não  consentirei.  Os  riscos  superam  as  suas  forças.  

      –  De  que  fala?  –  perguntou  Bill,  que  continuava  não  entendendo.  

      –  Lembra-‐se  do  que   lhe   falei   sobre  os  espaços   interplanetários  ?  Numa  aviação  em  

    que  se  era,  simultaneamente,  aparelho  e  piloto?  

      –  Recordo-‐me,  mas  continuo  na  mesma.  

      –   Tem   razão.   V.   não   sabe   ainda   o   que   vem   a   ser   o   que   chamo   a   grande   prova.  

    Quando  falei  em  empregar  a  alma  humana  como  radar  não  falei  em  sentido  figurado.  Nunca  

    ouviu  falar  na  transmigração  da  alma?  

      –  Já,  mas  nunca  lhe  dei  crédito.  

      –   Para   um   leigo   tal   opinião   não   desdoura,   retrucou   o   cientista   com   indisfarçável  

    azedume,  porém,  em  nosso  meio  vale  o  que  ouro  vale.  

      Bill  corou  e  tossiu  para  disfarçar  o  embaraço.  

      –  A  grande  experiência  consiste  no  emprego  da  alma  em  pesquisas  pelas  regiões  do  

    universo,  onde  as  distâncias  e  o  frio  superam  tudo  que  a  imaginação  possa  criar.  As  viagens  

    aos   mais   distantes   planetas   poderão   ser   realizadas   sem   as   ridículas   máquinas   que   os  

  • 15

    ficcionistas  engendraram  para  tais  intentos;  máquinas  que  jamais  chegariam  [28]  ao  destino,  

    mesmo  que  pudessem  vencer  a  atração  da  Terra.  Pudesse  o  engenho  humano  construir  um  

    bólido   que   atingisse   a   Lua   com   a   velocidade   da   luz   e   nenhum   homem   chegaria   lá   vivo!  

    Morreria   congelado   nos   espaços   interplanetários,   mesmo   em   tão   insignificante   fração   de  

    tempo!  

      –  Espantoso!  

      –  Sim,  espantoso.  Mais  espantoso  é  encontrar  quem  queira  tentar  a  prova.  

      –  O  professor  exagera,  interrompeu-‐o  Diana.  Eu  mesma  me  ofereci.  

      –  E  que  lhe  disse  eu?  

      –  Desculpou-‐se  que  eu  era  mulher.  

      Bill  aparteou-‐o:  

      –  Assim  o  doutor  contraria  o  princípio  espírita  de  que  a  alma  não  tem  sexo.  

      –  Não  discuto   teorias,   respondeu  o  doutor.  Devemos   ser   coerentes   se   buscamos   a  

    verdade.  Quem  ignora  as  prerrogativas  que  entre  vivos  goza  o  suposto  sexo  fraco?  

      –  Boa  saída,  exclama  Diana.  

      –  De  perfeito  gentleman,  concordou  Bill.  

      Sorrindo,  prosseguiu  o  doutor:  

      –  Poupam-‐me,  assim,  explicações.  Você  Diana,  conhece  os  meus  projetos.  Deixe-‐me  

    explicá-‐los  a  Bill.  

      –  Que  venha  depressa.  Que  reportagem  para  o  Star.  

      –  Será  a  maior  de  todos  os  tempos,  emendou  o  doutor,  contagiado  pelo  entusiasmo  

    do  repórter.  Ouça  com  atenção  o  que  lhe  vou  dizer:  apesar  de  [29]  todas  as  probabilidades  

    de  enviar  um  habitante  da  Terra  à  Lua,  ainda  não  a  realizei  por  uma  razão...  

      –   A   impossibilidade   de   vencer   a   atração   da   Terra   e   o   frio   dos   grandes   espaços,  

    respondeu  Bill.  

      –  Não.  Esta  razão  deixou  de  existir.  O  corpo  astral  não  se  subordina  às  contingências  

    da  matéria.  O  astral  é  o  próprio  espírito.  É  a  alma.  Ele  se  movimenta  no  espaço  livre  como  o  

    pensamento,  que  é  mais   rápido  que  a   luz!  É   insensível  às   leis  da  natureza.  Não  sente   frio,  

    nem   fome;   não   respira   e   não   se   cansa.   O   problema   é   encontrar   um   homem   bastante  

    corajoso  para  submeter-‐se  à  prova.  

      –  Se  procura  assustar-‐me,  perde  tempo  doutor.  

      Os  olhos  do  cientista  traíram  a  emoção  que  lhe  ia  n’alma  e,  com  voz  trêmula  falou:  

  • 16

      –  Não,   apenas  estou   sendo   sincero.   Teoricamente  os   riscos   são  mínimos,  porém,  a  

    prática  poderá  reservar-‐nos  surpresas.  

      –  Haja  o  que  houver,  estou  às  suas  ordens.  

      –  Obrigado.  Não  me  descuidarei  para  que  tudo  corra  como  espero.  

      –  Devo  fazer  o  testamento?  –  gracejou  Bill.  

      –   Poderá   fazê-‐lo.   E   caminhando   para   o   corredor   dos   fundos,   convidou   Bill   e   Diana  

    para   que   o   acompanhassem.   Abriu   a   porta   da   direita   e   entrou   em   pequeno  mas   luxuoso  

    escritório.  Sem  dar  palavra  sentou-‐se  à  escrivaninha  e  começou  a  escrever,  ligeiro  e  nervoso.  

    Ao   findar   passou   o   papel   para   Bill,   que   assinou   com  mão   firme.   Era   a   declaração   de   que  

    corria   livre  e  espontaneamente  os   riscos  da  experiência.  Por  cima  do  ombro  de  Bill,  Diana  

    lera   [30]  os  seus   termos,  e  em  tom  de  quem  não  admite   réplica  exigiu  que   lhe   fosse   feita  

    declaração   idêntica.   Debalde   o   professor   argumentou,   implorou,   até   que   Bill   julgou  

    descobrir   a   fórmula   conciliatória.   Ele   tomaria   conta   de   Diana,   na   Lua!   E   a   romântica  

    perspectiva   avolumava-‐se   e   crescia   na   sua  mente   exaltada.   Até   então   contentavam-‐se   os  

    namorados  com  idílios  ao  luar.  Ele  iria  viver  o  seu  romance  em  pleno  coração  da  rainha  da  

    noite!  Piramidal!  Simplesmente  piramidal!  Diante  dos  quixotescos  argumentos  de  Bill,  Nherú  

    capitulou.  

      Novamente  voltaram  à  sala  guarnecida  de   tapetes  e  da  estranha  coluna  de   jade.  O  

    doutor  fê-‐los  sentar,  frente  a  frente,  à  moda  oriental.  Posto  que  entre  eles  colocou  a  coluna,  

    de  forma  que  a  bola  de  prata  lhes  ficasse  à  altura  dos  olhos.  Assumindo  atitude  majestosa  

    bateu  palmas  por  duas  vezes.  O  criado  surgiu.  Trocaram  palavras  em  sua  língua  natal  e  todas  

    as  portas  se  fecharam.  Diana  e  Bill  viviam  pelos  olhos.  Com  voz  cava  falou-‐lhes  o  doutor:  

      –  O  momento  é  decisivo.  Não  lhes  exagerei  os  riscos.  Há  tempo  para  recuar.  Que  diz,  

    Diana?  

      –  Que  estou  pronta  para  a  prova!  

      –  E  você,  Bill?  

      –  Que  poderia  estar  de  volta  se  não  fosse  esta  demora.  

      Apesar  dos  pesares  o  doutor  sorriu,  tranquilizado  com  a  soberba  coragem  de  ambos.  

      –  Pois  não  os  impacientarei  mais.  Ouçam  o  que  lhes  vou  dizer:  por  certo  estranharão  

    que  tendo  [31]  eu  poderes  extraordinários  não  pesquise,  pessoalmente,  aquilo  que  tanto  me  

    fascina.   Explicarei:   poderia   fazê-‐lo,   mas   seria   demasiado   esforço   para   mim.   Não   os  

    molestarei  com  inúteis  explicações  científicas.  Direi  apenas  que  fora  do  âmbito  terrestre  ser-‐

  • 17

    me-‐ia   difícil   e   perigosa   a   experiência,   por  motivos   óbvios.   Dentro   dele   as   auras   são  mais  

    favoráveis   e   a   auto-‐magnetização   pode   ser   praticada   sem   inconvenientes.   Assim   pude  

    realizar  a  façanha  que  a  nenhum  outro  mortal  foi  possível.  Pisar  o  cimo  do  Everest!  Apenas  

    um  me   precedeu.   E   esse   lá   está,   enregelado,   sobre   o   paredão   do   noroeste!   Chamava-‐se  

    Mallory.   Enormíssimos   riscos   correria   se  me   aventurasse   em   outros  mundos   sob   a  minha  

    própria  influência.  Precisaria  fazer  duas  coisas  capitais  a  um  tempo:  uma  ditada  pelo  instinto  

    e   outra   pela   inteligência.   Claro   que   uma   prejudicaria   a   outra.   Assim   terei   intactas,   em  

    potência,   todas   as   minhas   faculdades.   Poderei   concentrar-‐me,   exclusivamente,   nos   meus  

    objetivos.  Sob  os  efeitos  da  auto-‐magnetização  eu  seria  vulnerável  sob  múltiplos  aspectos.  O  

    tempo   é   questão   primordial.   Ninguém   resistiria   por   mais   de   vinte   minutos   à   tão   árdua  

    missão.  Vocês  terão  vinte  minutos  para  ir  à  Lua  e  voltar.  

      –  Só?  –  exclamou,  desapontada,  Diana.  

      –   Tempo   suficiente   para   quem   se   move   pelo   pensamento,   esclareceu   Nherú.  

    Pensando,  quanto  tempo  precisaria  V.,  para  ir  à  Lua?  

      –  Uma  fração  de  segundo.  

      –  Será  o  tempo  para  alcançá-‐la.  [32]  

      –  Lembre-‐se,  doutor,  que  a  distância  que  nos  separa  dela  equivale  a   trinta  viagens,  

    ida  e  volta,  de  New  York  a  Berlim!  –  ponderou  Bill.  

      –  Não  me  esqueci,  e  para  seu  governo  acrescento:  a  distância  poderia  conter,  lado  a  

    lado,  como  contas  de  um  colar,  trinta  esferas  do  tamanho  da  Terra.  

      –  Subiremos  a  tão  grande  altura?  –  interrogou  Diana,  visivelmente  assombrada.  

      –  Não,  querida.  No  grande  espaço  universal  não  existe  em  baixo  nem  em  cima.  São  

    concepções   adstritas   apenas   ao   nosso  meio.   A   distância   da   Terra   ao   seu   satélite   varia   de  

    363,310  a  405,530  quilômetros.  

      Bill  e  Diana  entreolharam-‐se  estarrecidos.  O  Dr.  Nherú  prosseguiu:  

      –  Faço  tais  citações  a  título  de  curiosidade,  porque  representam  cifras  e  nada  mais.  

    Em   nosso   caso   têm   o   valor   de   zero   à   esquerda.   Os   fenômenos   que   lá   se   observam   não  

    atuarão  sobre  vocês,  embora  os  seus  corpos  sejam  tangíveis.  Não  sei  se  ignoram  que  os  dias  

    lunares   representam  15  dos  nossos.  É   fácil   imaginar-‐se  a   tragédia  de  um  céu  sem  nuvens,  

    num   planeta   sem   atmosfera,   sem   vento,   sem   chuva,   exposto   à   radiação   de   um   sol  

    abrasador.  A  temperatura  sobe  a  120°C  e  nas  trevas  que  se  seguem,  por  igual  período,  cai  a  

    mais   de   100°   abaixo   de   zero!   Que   organismo   poderia   resistir   a   temperaturas   tais?   Como  

  • 18

    respirar  se  ar  não  existe?  E  não  existindo  são  também  inexistentes  o  som,  o  aroma  e  o  fogo.  

    E   tudo  porque  a   sua  pequenez   a   impede  de   reter   a   [33]   atmosfera  necessária   à   sua   vida.  

    Todos  os  átomos  de  gás,  existentes,  se  escaparam  para  o  espaço  e  nele  se  perderam.  

      –  Entretanto,  a  Lua  parece-‐nos  bem  grande,  objetou  Diana.  

      –  Sim,  por  estar  mais  próxima  que  os  demais  astros.  Para  convencê-‐la  direi  que  a  sua  

    a   superfície  não   comportaria  mais  do  que  o   continente  africano.  A  parte  que   se   vira  para  

    nós,  é  apenas  o  dobro  da  superfície  da  Europa.  Seriam  necessário  81  Luas  para  obter-‐se  o  

    mesmo  peso  e  massa  da  Terra.  Daí  exercer  menor  atração  sobre  os  objetos,  resultando  que  

    um  corpo  que  aqui  pesa  seis  quilos   lá  pesaria  um!  Pela  mesma  razão  um  homem  que  aqui  

    salta   dois  metros   lá   saltaria   doze.   Não   obstante   tudo   isto   ser-‐lhes-‐á   indiferente.   O   corpo  

    astral  não  sofre  a  influência  do  meio  físico.  Para  locomover-‐se  basta  o  pensamento.  

      –  Contudo,  blasonou  Bill,  eu  gostaria  de  gozar,  lá,  os  mesmos  privilégios  que  desfruto  

    aqui.  

      –  Não  lhes  seriam  de  nenhuma  utilidade.  Viveria  menos  que  um  peixe  fora  d’água.  E  

    se   tal   não   sucedesse,   o  menor  mal   seria   um  enjoo   crônico,   desconhecido  na   Terra.   Como  

    sabe  os  enjoos  produzidos  pelas  viagens  marítimas  são  provocados  pela  ação  da  gravidade,  

    que  na  Terra  varia  entre  10  e  20%,  ao  passo  que  na  Lua  varia  em  torno  de  90%!  

      –  Não  acrescente  mais  nada  doutor!  Já  estou  sentindo  náuseas.  Explique-‐me,  então,  

    como  orientar-‐me  naquele  mundo  estranho.  [34]  

      Nherú  sorriu  e  respondeu:  

      –  Não   lhe   aflijam  detalhes.   Eu   serei   o   guia.  A   Lua   é  o  mundo  do   silêncio.   Lá   vocês  

    serão   mudos   como   as   rochas.   Conversarão   pelo   pensamento.   Quanto   a   ser   um   mundo  

    estranho   é   apenas   força   de   expressão.   E   note:   serão   os   primeiros   a   pisar   e   a   reivindicar  

    aquele  solo  que  é  parte  integrante  do  nosso  planeta.  

      –  O  professor  divaga,  murmurou  Diana.  

      –Não,   filha.   Ocorreu   isso   há   uns   1.200  milhões   de   anos,   quando   a   Terra   ainda   se  

    encontrava-‐se  em  estado  gasoso.  É  coisa  sabida  por  qualquer  estudante  de  geologia.  

      –  Que  atestado  de  ignorância  nos  está  passando,  chasqueou  Bill.  

      –  Absolutamente!  Não   lhes  posso  exigir   conhecimentos  que   lhes  não   interessam,  e  

    nem   dizem   respeito.   Os   meus   estudos   aprofundaram-‐me   na   matéria,   mas   se   justificam.  

    Hoje,   sem   os   recursos   da   ficção,   sem   as   balas   de   Júlio   Verne   ou   a   cavorite   de   Wells,  

    desvendarei  os  segredos  da  Lua  com  os  olhos  de  vocês.  Quando  lá  estiverem  as  suas  reações  

  • 19

    serão  por  mim  registradas  como  se  fora  eu  próprio  que  a  estivesse  palmilhando.  Bem,  falei  o  

    que  devia   falar.  Agora   tome  posição,  Bill.  Você  também,  Diana.  Assim.  E   fez  Bill   retomar  a  

    posição  frente  à  coluna  de  jade,  encimada  pela  bolinha  de  prata.  Corrigiu  a  posição  de  Diana,  

    para  que  o  busto  lhe  ficasse  mais  ereto.  Aproximou  os  seus  rostos  o  mais  possível  e  pediu-‐

    lhes   fixassem  a   bolinha,   fazendo   com  que   as   extremidades   dos   dedos   de  Bill   tocassem  as  

    [35]  têmporas  da  sua  companheira.  Em  seguida  bateu  palmas  três  vezes,  compassadamente.  

    Surgiu  o  criado  com  uma  taça  de  ouro  em  uma  bandeja,  trazendo  cuidadosamente  dobrada,  

    sobre   o   braço   direito,   alvíssima   toalha   de   linho.   –   Concentrem-‐se!   Ordenou.   Fixem   o  

    pensamento  no  que  desejam   fazer.   E  dizendo,  mergulhou  os  polegares  no  óleo  aromático  

    contido   na   taça   e   pousou-‐o   sobre   a   fronte   de   Bill,   entre   os   supercílios,   conservando   as  

    palmas  das  mãos  e  os  dedos  estendidos  sobre  a  cabeça.  Assim  permaneceu  por  espaço  de  

    meio  minuto.  Os  dois  fixaram  a  bola  de  prata  e  quando  acentuado  estrabismo  começava  a  

    exigir-‐lhes  grande  esforço  físico  o  doutor  retirou  a  mão  direita  da  cabeça  de  Bill  e  pousou-‐a  

    sobre  a  de  Diana,  repetindo  com  voz  grave  as  seguintes  palavras:  Aum!  Aum!  Aum!  

      Acometidos  de  súbita  sonolência  os  dois   jovens  deixaram-‐se  resvalar,  mansamente,  

    para  as  almofadas  dispersas  sobre  o  tapete.  Com  um  sorriso  de  triunfo  Nherú  contemplou  os  

    corpos  inanimados  e,  cautelosamente,  retirou-‐se  para  o  canto  mais  distante  da  sala,  fazendo  

    sinal  ao  criado  para  que  se  retirasse.  Em  seguida  sentou-‐se  à  oriental.  Cruzando  os  braços  

    deixou  a  cabeça  pender  sobre  o  peito  e  quedou  imóvel  como  estátua.  

    ***  

      Depois  de  fixar  por  algum  tempo  a  bola  de  prata,  Bill  sentiu  viva  e  dolorosa  contração  

    dos  músculos   visuais,   ao   tempo  que   tênue  névoa   luminosa   se   espalhava,   gradativamente,  

    por  todo  o  campo  visual,  ofuscando  tudo  que  o  rodeava,  e  parecia  [36]  emanar  do  próprio  

    cérebro.  Viu-‐se  de  repente  mergulhado  em  trevas,  nas  quais  se  debateu  até  sentir-‐se  cair  no  

    vácuo   infindável  e  perder  a   consciência  de   tudo.  Ao   recobrar-‐se,   achou-‐se  atravessando  o  

    espaço  com  incrível   rapidez,  dentro  da  noite  eterna.  Começou  a  sentir  a  vertigem  daquela  

    espantosa  velocidade,  mas  foi  apenas  impressão.  Em  outras  circunstâncias  o  terrível  frio  dos  

    espaços   tê-‐lo-‐ia   enregelado   em   milésimos   de   segundo.   O   seu   rosto   fendia   a   tenebrosa  

    imensidade  produzindo  vagas  geladas  de  vento,  que  lhes  corriam  pelas  faces,  alucinantes.  E  

    do   fundo   daquela   noite   espantosa   começou   a   surgir   indecisa   claridade   que   se   foi  

    pronunciando   até   transformar-‐se   em  esplendorosa   aurora.   Como   se   lhe   tivessem   tirado   a  

    venda  dos  olhos,  um  grito  de  assombro  encheu-‐lhe  a  alma.  Via  a   Lua   como   jamais   a   vira!  

  • 20

    Voava  ao  seu  encontro  e  o  seu  disco  crescia,  crescia,  sem  cessar!  Divisava,  nítidas,  as  suas  

    montanhas   pontiagudas   como   agulhas   de   catedrais.   Abismos   silenciosos   e   profundos.  

    Crateras   espantosas,   verdadeiras   alucinações   de   pesadelos,   e   depressões   infinitas   que   a  

    distância   se   destacavam   como   grandes   manchas   e   se   multiplicavam   de   forma   a   parecer  

    impossível   descer-‐se   ali   sem   ir   parar   no   fundo   de   um   daqueles   abismo.   Justificava-‐se   a  

    definição  de  Nasmyth:   ser   a   superfície  da   Lua   verdadeira  espuma  de   crateras.  De   repente  

    abriu-‐se-‐lhe  aos  pés  uma  cratera  que  a  vista  não  conseguia  abranger  em  toda  a  plenitude.  

    Sentiu   a   opressão   do   medo,   pois   para   aquele   abismo   o   arrastava   a   fatalidade   da   sua  

    trajetória.   Nem   bem   pensou   e   se   viu   mergulhado   [37]   em   trevas.   A   sensação   que  

    experimentou   foi   a   de   estar   descendo   por   um   poço.   Alucinado   gritou,   gritou,   sem   ouvir,  

    sequer,  um  único  som.  Esquecera-‐se  que  estava  no  país  do  silêncio.  Desorientado,  no  auge  

    do   desespero,   sentiu   os   pés   tocarem   o   solo.   Cessara   a   descida.   Receoso,   procurou  

    ambientar-‐se  às  trevas.  Percebeu  pisar  terreno  áspero  e  difícil,  onde  os  pés  se  mergulhavam  

    em   camadas   de   seixos   que   cediam   ao   seu   peso.   Procurou   orientar-‐se   e   olhou   para   cima.  

    Estarrecido   viu   que   do   alto,   do   céu   completamente   negro,   grossos   jorros   de   luz   desciam,  

    obliquamente,  por  extenso  paredão,  em  semi-‐círculo,  a  perder-‐se  de  vista.  As  paredes,  cuja  

    cor  cambiava  entre  o  pardo  e  o  amarelo,  caiam  a  pique  de  vertiginosa  altura.  A  Bill  o  que  

    mais  intrigava  era  a  muralha  não  se  fechar,  embora  estivesse  quase  certo  de  se  encontrar  no  

    fundo   de   uma   gigantesca   caldeira.   Bastava-‐lhe   observar   o   semicírculo   fantástico   que,   ao  

    alto,   emergia   banhado   de   luz.   Ao   tatear   as   suas  mãos   tocavam   em   arestas   agudas   como  

    punhais,  quando  não  deslizavam  por  paredes  lisas  ou  esbarravam  em  grandes  blocos  que  lhe  

    tolhiam   o   passo.   Naquele   silêncio   de   abismo   começou   a   sentir   as   angústias   do   medo.  

    Lembrou-‐se   então   de   Diana,   e   com   assombro   sentiu-‐se   logo   em   contato   com   ela.  

    Ocorreram-‐lhe   à   mente   as   instruções   do   Dr.   Nherú.   Aquele   seria   o   meio   de   trocarem  

    impressões,  uma  vez  que  o  som  não  encontraria  elementos  de  propagação.  

      –  Onde  está  V.,  Diana?  [38]  

      –  Num  lugar  horrível!  Percebo  tudo  vagamente.  Não  me  habituei  ainda  à  escuridão.  

    Penso  estar  à  beira  de  um  precipício.  

      –  Mas  estamos  no  mesmo  lugar!  

      –  Como  sabe?!  

      –  O  Dr.  Nherú,  lá  da  Terra.  

      –  Como  farei  para  encontrá-‐lo?  

  • 21

       Esqueceu-‐se!  Use  o  pensamento.  

      Bill   sentiu  algo   tocar-‐lhe,  de   leve,  o  braço.  Apesar  de   toda  a   coragem,  assustou-‐se.  

    Jamais   esperara   aquele   passe   de  mágica.   –   Em  que   lugar   fomos   cair,   queixou-‐se  Diana.   –  

    Pavoroso!  Pior  que  não  me  acostumei  ainda  à  escuridão.  –  Aqui  parece-‐me  mais  escuro.  Lá  

    onde  eu  me  encontrava  podia  perceber  a  montanha  que  se  erguia  a  meu  lado,  cujo  cimo  se  

    coroava  de  luz.  –  Olhe  Diana!  Lá  V.,  via  aquela  muralha  banhada  pelo  sol?  –  Não!  Não  a  via!  

    Que  céu  negro!  Como  pode  ser  dia  se  brilham  as  estrelas?  –  É  porque  V.  está  acostumada  ao  

    nosso   céu.   Falta   aqui   a   atmosfera,   que   ao   ser   iluminada   pelo   sol   sobrepuja,   com   a   sua  

    claridade,  o  fulgor  das  estrelas,  devido  à  refração  dos  raios  luminosos.  Dando  uma  palmada  

    na   testa,   exclamou   Bill:   –   Desvendei   o   mistério!   Estamos   num   cone   dentro   de   um   dos  

    círculos  da  Lua!  A  razão  de  ser  este  lugar  mais  escuro  explicasse  por  estarmos  no  lado  que  se  

    encosta   à   muralha   que   circunda   esta   imensa   cratera.   –   Cratera?!   É   isto   um   vulcão?!  

    Perguntou  Diana,  horrorizada.  –  Creio,  mas  não  lhe  dê  cuidados.  Isso  foi  há  milênios.  Devia  

    ter  sido  um  engenho  de  destruição  como  não  [39]  conhecemos  na  Terra.  –  Por  que  fala  em  

    círculos   e   crateras   se   estas   muralhas   não   se   fecham?   –   Ilusão   apenas.   Devemo-‐la   ao  

    pequeno  raio  da  Lua.  Todo  o  aspecto  fantástico  que  de  fora  se  observa,  desvanecer-‐se-‐ia  se  

    nos  pudéssemos  situar  no  interior  ele  um  desses  círculos.  Não  seria  mais  interessante  que  o  

    de  uma  planície  comum,  pela  mesmíssima  razão  que  acabo  ele  explicar.  

      –  Já  estou  distinguindo  melhor  as  causas,  Bill.  

      –   E   eu   também.  O   terreno  é  que  é  duro  para   se   andar.   –  Nunca   vi   tanta  pedra  na  

    minha   vida!   Por   aí   poderá   V.   fazer   ideia   das   formidáveis   erupções   deste   monstro.   Tanto  

    quanto  me  permite  a  escuridão  vejo  que  estamos  quase  no  cume  de  um  monte.  

      Diana   e   Bill   atentaram   para   os   diversos   aspectos   da   região.   Esforçava-‐se   ela   para  

    classificar  um  pedaço  de  rocha,  que  sustinha,  encostado  aos  olhos,  enquanto  Bill  sondava  a  

    escarpa.  Ao  lado  montanhas  mais  altas  se  elevavam,  passo  que  outras  se  deixavam  ficar  para  

    baixo,   porém,   terminavam,   todas,   como   dentes   de   imenso   serrote.   Pelos   cálculos   deviam  

    estar  a  altura  de  alguns  milhares  de  metros.  –  Eu  daria  um  ano  de  vida  para  saber  em  que  

    lugar   me   encontro,   falou   Diana.   –   Pois   acabo   de   saber   sem   sacrifício   algum.   Estamos   na  

    cratera  de  Tycho.  –  Também  ouvi  a  voz  do  professor,  Bill.  Pois  saiba,  Diana,  que  esta  é  uma  

    das  maiores  crateras  da  Lua.  Creio  que  maiores  só  as  de  Ptolomeu  e  Platão.  Tycho  é  um  dos  

    gigantes  da  orografia  lunar.  Supera  em  muito  o  nosso  Monte  Branco.  –  Está  ouvindo  a  voz  do  

    Dr.  Nherú?  –  [40]  Estou,  Bill.  –  Pois  bem,  ele  quer  que  saiamos  em  direção  às  montanhas  de  

  • 22

    Doerfel.   Concentremo-‐nos.   Junto   de   elevada   falésia   deram-‐se   as   mãos   e   por   instantes  

    mantiveram-‐se  cabisbaixos.  O  que  se  seguiu  não  pode  ser  descrito.  Viram-‐se,  de  repente,  em  

    assombrosa  região  à  plena  luz  de  um  sol  estranhamente  rubro,  sem  auréola,  engastado  num  

    céu  negro  e  recamado  de  estrelas.  Diana  pensou:  –  Que  mundo  estranho!  

      Apesar  da  intensa  luz  do  Sol,  a  superfície  lunar  é  relativamente  escura.  Tudo  porque  

    as  suas  rochas  não  refletem  bem  a  luz  recebida.  Aos  assombrados  olhos  dos  dois  terrícolas  

    surgiu  a  espantosa  realidade  daquele  estranho  mundo.  Achavam-‐se  entre  cordilheiras  como  

    jamais   viram.   Uma   das   montanhas   era   duas   vezes   mais   alta   que   o   Cervino.   As   seguintes  

    formavam  um  conjunto   sombrio  de   rochas   a  pique  e   inacessíveis.   Cavernas  escancaravam  

    bocas   imensas,  negras  como  a  consciência  de  Judas.  De  quando  em  quando  avalanches  de  

    rochas   despencavam-‐se   do   alto   e   se   abatiam   no   vale   sem   o   mínimo   ruído.   Eram,   pela  

    continuidade,   inquietadoras,   como  se  a  Lua  se   tivesse  desmoronando.  Panorama  trágico  e  

    desolador.   Pedraria   bruta   e   revolta   a   erguer-‐se,   em   ânsias,   buscando   a   abóbada   fria,  

    indiferente,  negra  mortalha  a  lembrar-‐lhe  a  condição  de  astro  morto,  de  cadáver  insepulto.  

      Bill   e   Diana,   avistavam-‐se   com   as   montanhas   de   Doerfel,   que   tantas   vezes  

    observaram  no   hemisfério   sul   da   Lua.   Como   era   decepcionante   a   realidade   naquele   astro  

    inocente  e  belo,  que  enche  de  [41]  encanto  e  de  poesia  as  noites  da  Terra.  Lembrou-‐se  Bill  

    das   suas   cidades   subterrâneas   e   do   seu   povo   assim   forçado   a   viver   para   fugir   ao   seu  

    descontrolado   clima.   Ali   naquelas   cavernas,   talvez,   residisse   o   seu   grande   segredo.  

    Entretanto  a  desolada  paisagem  que  o  cercava  valia  por  um  desmentido.  O  chão,  para  bem  

    dizer,   formava-‐se   de   lavas   e   cinzas   vulcânicas   Por   todos   os   lados   rochosas   formações  

    despidas  da  mais  leve  camada  de  terra.  Vegetação  não  existia,  parecendo  mesmo  nunca  ter  

    existido.  Nenhum  ser  vivo  por  mais  insignificante:  Apenas  um  sol  sem  brilho,  que  parecia  ser  

    sugado   pelas   próprias   rochas.   De   distância   em  distância   curiosas   formações   circulares,   de  

    grandes   proporções,   erguiam   muralhas   a   alturas   espantosas.   Percebia-‐se,   de   pronto,   a  

    ligação  daqueles  fenômenos  com  a  ação  vulcânica  e  os  efeitos  de  um  rápido  resfriamento  da  

    crosta  lunar.  De  mãos  dadas  Bill  e  Diana,  puseram-‐se  em  movimento,  procurando  contornar  

    os  montões  de  lavas  e  cinzas  solidificadas,  de  arestas  cortantes.  Caminhos  nunca  existiram.  

    O  solo  um  amontoado  de  escórias  e  rugas  só  comparáveis  à  superfície  de  uma  pinha.  A  certa  

    altura  achou-‐se  Bill  entre  duas  camadas  distintas  de  lavas.  Uma  se  dirigia  do  norte  para  o  sul  

    e  a  outra  em  sentido   inverso.  A  primeira  explicava-‐se:  partia  das  crateras  que   ficavam  nas  

    montanhas  à  retaguarda.  E  a  segunda?  A  própria  lava  era  de  natureza  diversa.  Parecia  vidro  

  • 23

    e  brilhava  refletindo  o  sol.  Mais  uma  arrancada,  e  galgaram  o  promontório  assim  formado.  O  

    assombro  encheu-‐lhes  as  almas.  Ante  à  visão  recuaram.  Sob  [42]  os  pés  abria-‐se  um  abismo  

    a  perder-‐se  de  vista,  vindo  das  bandas  de  Tycho  e  cortando  o  vale  formado  pelas  Montanhas  

    Doerfel.  A  largura  calculava-‐se  por  três  dezenas  de  quilômetros.  O  mais  extraordinário  era  o  

    brilho   que   dele   se   irradiava,   como   se   fosse   constituído   de   vidro   líquido.   Mal   refeitos   do  

    espanto  quedaram  mais  estupefatos  ainda,  quando  descobriram  outra  fenda  que  partindo,  

    também,   de   Tycho   dirigia-‐se   rumo   oposto   depois   de   caminharem   paralelas   vários  

    quilômetros.  

      –   São   estes,   disse   Bill,   os   pontos   luminosos   avistados   da   Terra,   e   que   intrigam   os  

    sábios   astrônomos.   Lava   vítrea   e   mais   nada.   –   Deve   ser   isto   mesmo,   respondeu   Diana.  

    Partem  de  Tycho,  onde  as  radiações  são  visíveis.  Entretanto  as  atenções  de  Bill,  viravam-‐se  

    para   as   cavernas   abertas   nas   escarpas   de  Doerfel.   Resolveu   transportar-‐se   até   lá.   Por   um  

    erro  de  concentração,  ou  por  uma  força  superior,  foram  parar  no  mais  profundo  abismo  da  

    montanha.  Diante  do  ocorrido  Bill  não  se  mostrou  contrariado.  Aproveitou  para  certificar-‐se  

    das   possibilidades   de   uma   vida   igual   à   da   Terra,   em   tais   circunstâncias:   a   existência   de  

    camadas   de   oxigênio;   vestígios   de   água;   de   vida   animal   ou   vegetal  mesmo   nas   suas  mais  

    ínfimas  espécies.  Trabalho  árduo  e  infrutífero.  O  fundo  da  voragem  era  apenas  depósito  de  

    incríveis   camadas   de   rochas   desprendidas   das   montanhas.   De   água   nem   vestígio   e   as  

    famosas   nuvens   de   vapor   aquoso,   mera   fantasia.   A   vida,   enfim,   não   se   manifestava   em  

    nenhuma   das   suas   formas.   Nem   um   líquen,   sequer,   para   quebrar   a   [43]   monotonia   dos  

    paredões   acobreados   e   lisos   como   almas   puras.   Em   determinado   ponto   Bill,   que   em   sua  

    juventude   trabalhara   em   campos   de   mineração,   julgou   descobrir   vestígios   do   precioso  

    metal,   o   que   vinha   observando   em   outros   pontos.   Tomado   de   natural   interesse   entrou   a  

    pesquisar   o   que   lhe   parecia   inexaurível   veio.   Não   foram   longe   os   seus   passos.  

    Interromperam-‐nos   profunda   greta   que   se   abria   no   solo,   formando  um  abismo  dentro   de  

    outro.  A  grande  altura  acima  de  sua  cabeça,  Bill  divisou  a  abertura  de  enormíssima  caverna.  

    Nada  mais  lhe  restava  fazer  naquelas  estéreis  profundezas,  onde  não  existia  um  só  palmo  de  

    terra  como  conhecemos.  Restava-‐lhe,  entretanto,  a  esperança  de  nas  cavernas  encontrar  a  

    possível  história  do  nosso  satélite.      

      Por  prevenidos  que  estivessem  os  dois  terrícolas  não  puderam  sopitar  o  assombro  ao  

    se  verem  no  pórtico  monumental  da  caverna.  Em  confronto,  as  da  Terra  não  passavam  de  

    miseráveis  tocas  de  ratos.  No  seu  interior  poderiam  fazer  evoluções  várias  esquadrilhas  dos  

  • 24

    maiores  e  mais  modernos  aviões  conhecidos.  No  pórtico  caberiam,  com  folga,  os  mais  altos  

    edifícios  de  New  York!  

      Bill   não   precisava   ser   forte   em   geologia   para   perceber,   à   simples   vista,   a   natureza  

    daquela  caverna.  As  paredes  de  basalto,  polidas  como  o  mármore,  pontilhadas  por  miríades  

    de   cristais,   faiscavam   como   estrelas   de   céu   de   inverno.   Fantasmagoria   de   sonhos   com  

    ressaibos   de   pesadelo.   O   piso   era   um   rio   de   lava,   vítrea,   petrificado   em   pleno   fastígio.   E  

    sobre   a   lava   [44]   resplandecente   os   dois   filhos   da   Terra,   quedaram-‐se   extáticos.   Mas  

    também  ali  a  natureza  estava  morta.  O   imenso  túnel  parecia  não  ter  fim.  Urgia  explorá-‐lo.  

    Para  ambos  o  assombro  deveria   ser  um  sentimento  extinto.  A  caverna  abria  outro  pórtico  

    para  o  interior  da  própria  montanha,  que,  como  todas  as  da  Lua,  era  perfeitamente  oca.  O  

    vazio   insondável   abria-‐se   se   diante   dos   seus   olhos.   Estavam   no   interior   de   um   vulcão!  

    Transidos  de  medo  ergueram  os  olhos  para  o  alto,  onde  de  encontro  ao   céu   rasgava-‐se  o  

    gigantesco  cone.  Desejaram  estar  lá  e,  no  mesmo  instante,  acharam-‐se  no  mais  alto  pico  de  

    Doerfel.   Admiração,   espanto   e   medo   foram   sentimentos   contraditórios   em   suas  

    maravilhadas  almas  ao  surpreenderem  o  grande  segredo  do  universo  –  a  face  oculta  da  Lua!  

    Maravilha  das  maravilhas!  Por  sobre  as  suas  cabeças  um  astro  maior  do  que  o  Sol  brilhava  

    no   espaço!   Ocorreu-‐lhes   a   ideia   de   que,   também,   a   Lua   possuísse   o   seu   satélite.   Não  

    tardaram  em  reconhecer,  no  astro  de  esplêndida  magnitude,  a  própria  Terra!  Diana  quedou  

    emocionada   diante   da   extraordinária   realidade.   Ver   o   seu   próprio   mundo   a   gravitar   no  

    espaço!  Não   tardaram  reconhecer,  na   face  do  novo  astro,  embora  de   forma   imprecisa,  os  

    contornos   familiares   do   continente   americano   e   as   grandes   manchas   formadas   por   seus  

    mares.  

      O  cume  do  Doerfel  é  um  amontoado  sinistro  de  rochas   ígneas,  em  parte  calcinadas  

    pela   ação   vulcânica   dos   primitivos   tempos   e,   em   parte,   pelas   fantásticas   mutações   de  

    temperatura.   Dir-‐se-‐iam   as   caprichosas   formações   dos   planaltos   do   Brockem,   nas   [45]  

    Montanhas  do  Harz,  transportadas  para  lá.  À  direita  erguia-‐se  altíssima  cordilheira  formando  

    imponente   maciço   superior   ao   Dorfel.   Não   lhes   foi   difícil   reconhecer   o   Leibinitz,   ponto  

    culminante  da  Lua.  O  resto  da  paisagem  lunar  ajusta-‐se  aos  tipos:  Grand  Canyon  e  Kalahari,  

    sendo   deste   os   chamados   mares,   como   o   Imbrium,   enormíssima   depressão   de   mais   de  

    setenta  quilômetros  de  diâmetro,  coberta  de  cascalhos  e  blocos  de  rocha  enegrecida,  onde  

    jamais   flutuou   uma   só   gota   d’água.   Costumamos   dizer   que   nada   se   cria   e   nada   se   perde,  

    tudo   se   transforma.   Na   Lua   não   acontece   nenhuma   destas   coisas.   É   imutável   através   das  

  • 25

    idades.  Nem  o  vento,  nem  a  chuva  prestam  concurso  à  sua  modelagem  bizarra.  Os  únicos  

    artífices  são  o  frio  e  o  calor.  

      Vis-‐à-‐vis  ao  Doerfel  estreito  território,  sulcado  de  fendas,  limitava-‐se  com  a  zona  das  

    sombras.   Tenebrosa   escuridão   despejava-‐se   sobre   aquelas   paragens   como   a   maldição   de  

    Cain.   Ali   se   ocultavam   as   mesmas   formações   caprichosas:   montanhas,   círculos,   fendas   e  

    mares  e  os  terrenos  pedregosos  e  áridos.  Enfim  –  a  morte  e  a  desolação  

      Faltavam  dois  segundos  para  expirar  o  tempo  concedido  a  Bill  e  Diana.  Prepararam-‐

    se  os  dois  para  o  regresso  ao  planeta  natal,  convencidos  de  ser  ele  o  melhor  dos  mundos.  

    Pela  última  vez  contemplaram  as  silenciosas  paragens  e,  melancolicamente,  concluíram  que  

    também  os  astros  têm  o  seu  destino  e  que  a  Lua  é  um  cadáver  sideral,  errante  entre  as  luzes  

    celestes.  [46]  

  • 26

    Uma  Noite  de  Horror  

     

      [47]   Embora   decorridos   trinta   anos,   sobre   o   que   vos   relato   agora,   sinto,   ainda,  

    percorrer-‐me   a   espinha   um   frêmito   de   mortal   pavor   ao   recordar-‐me   daquela   estranha  

    aventura.  

      Por  uma  tarde  escaldante  de  junho  de  1901,  exuberante  de  luz,  descia  eu,  ao  passo  

    tardo  do  meu  cavalo,  os  abruptos  pendores  da  Serra  do  Amambaí,  em  busca  de  Nioaque.  O  

    sol,   descambando   por   detrás   dos   elevados   cerros,   emprestava-‐lhes   dourados   reflexos.   Ao  

    alcançar  o  vale,  nos  últimos  contrafortes  da  cordilheira,  era  quase  noite.  Um  vento  morno,  

    soprando  das  bandas  do  planalto,  pressagiava  mau  tempo.  A  noite  caiu  rápida,  negra,  e  sem  

    estrelas.  Na  estreita   vereda,   entre   cerradas  matas,   fustiguei  o   cavalo,  que  dava  o  máximo  

    das  suas  forças.  Lúgubre  gemia  o  vento  nas  altas  ramas  e  do  chão,  em  revoada,  erguia-‐se  a  

    folhagem  seca,  que,  impiedosamente,  me  açoitava  o  rosto.  A  tempestade  caíra  com  todo  o  

    tenebroso  cortejo.  

      Ao   primeiro   ribombo   do   trovão,   ecoando   nas   queb