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:: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas. Nº 4, Ano II, Abril de 2006, periodicidade semestral – Edição Especial: Dossiê Marx – ISSN 1981-061X. A EXTERIORIZAÇÃO DA VIDA NOS MANUSCRITOS ECONÔMICO- FILOSÓFICOS DE 1844 * Mônica Hallak M. da Costa ** Resumo Os Manuscritos de 44 são freqüentemente compreendidos como textos superados pelo suposto Marx “maduro” e “científico”, sendo, portanto, retratados como uma curiosidade do passado “filosófico” do autor. O presente artigo pretende demonstrar que a superação fundamental com o idealismo já havia se concretizado por ocasião da redação dos Manuscritos, assim como colocar em evidência a categoria central e fio condutor desses rascunhos: aquela da exteriorização da vida - tanto em seus aspectos abstratos, quanto na configuração da vida social nos marcos do capitalismo. Palavras-chave: apropriação humana, exteriorização, ser social. The exteriorization of life in Karl Marx’s 1844 Economic and Philosophic Manuscripts Abstract Karl Marx’s 1844 Economic and Philosophic Manuscripts are frequently regarded as outdated texts if compared to other works written by a more “mature” and “scientific” Marx. Economic and Philosophic Manuscripts are thus seen as a curiosity from Marx’s philosophical past. This paper aims at demonstrating that Marx’s idealism had already been consolidated at the time Manuscripts was written. 1

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:: Verinotio - Revista On-line de Educao e Cincias Humanas. N 4, Ano II, Abril de 2006, periodicidade semestral Edio Especial: Dossi Marx ISSN 1981-061X.

A EXTERIORIZAO DA VIDA NOS MANUSCRITOS ECONMICO-

FILOSFICOS DE 1844*

Mnica Hallak M. da Costa**

Resumo

Os Manuscritos de 44 so freqentemente compreendidos como textos

superados pelo suposto Marx maduro e cientfico, sendo, portanto, retratados

como uma curiosidade do passado filosfico do autor. O presente artigo pretende

demonstrar que a superao fundamental com o idealismo j havia se

concretizado por ocasio da redao dos Manuscritos, assim como colocar em

evidncia a categoria central e fio condutor desses rascunhos: aquela da

exteriorizao da vida - tanto em seus aspectos abstratos, quanto na configurao

da vida social nos marcos do capitalismo.

Palavras-chave: apropriao humana, exteriorizao, ser social.

The exteriorization of life in Karl Marxs 1844 Economic and Philosophic Manuscripts

Abstract

Karl Marxs 1844 Economic and Philosophic Manuscripts are frequently

regarded as outdated texts if compared to other works written by a more mature

and scientific Marx. Economic and Philosophic Manuscripts are thus seen as a

curiosity from Marxs philosophical past. This paper aims at demonstrating that

Marxs idealism had already been consolidated at the time Manuscripts was written.

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http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn1#_edn1http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn1#_edn1http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn2#_edn2

It also aims at highlighting Marxs Manuscritps most important feature: the

exteriorization of life in its abstracts aspects as well as in the configuration of social

life as a part of Capitalism.

Key-words: appropriation of human life, exteriorization, social being.

Trazer tona os Manuscritos de 44 significa retomar questes que se

perderam no cenrio contemporneo: qual a razo de ser da propriedade privada

(do capital), qual a necessidade de existncia desta forma social de produo?

Quando, em 1859, no prefcio Para a Crtica da Economia Poltica,

Marx revela os motivos que o levaram a se dedicar ao estudo de economia

poltica, ele identifica como base de anlise as relaes materiais de vida

(MARX, 1974:135), afirmando, assim, que a sociedade civil que determina o

estado. Mas o politicismo que dominou crescentemente a esquerda do sculo XX

fez com que esta se esquecesse das razes materiais da vida e se dedicasse a

buscar unicamente na poltica a resposta para as questes humanas. Assim, em

tal esfera estaria a soluo para o problema da liberdade circunscrito

liberdade de expresso e expanso das liberdades democrticas, como o direito

ao voto e a livre associao. Na poltica estaria tambm a chave para o

tratamento da desigualdade entre os homens que seria, por esta via, superada,

ou amenizada, pela distribuio da riqueza atravs de polticas sociais pblicas e

outras aes governamentais. No este o momento de nos voltarmos para as

bases materiais da produo da prpria vida humana sem estarmos aprisionados

por esta ou aquela tendncia poltica? No seria hora de repor a

discusso explicitada por Marx nos Manuscritos na qual ele situa o trabalho como

produtor da propriedade privada? De fato, a centralidade do trabalho na produo

e reproduo da existncia humana a grande novidade e fio condutor dos

Manuscritos de 44. Da anlise dos economistas clssicos discusso com Hegel,

todas as formulaes se atm a esta descoberta: o homem como produtor de si

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mesmo atravs da atividade sensvel. Atividade que envolve objetividade e

subjetividade, entrelaadas na produo material, que faz da vida do homem uma

forma radicalmente nova de existncia, distinta e mais complexa do que todo

movimento da natureza. esta riqueza analtica que ainda fascina os leitores dos

Manuscritos. E esta compreenso que pretendemos trazer luz neste artigo.

Em 1932 vem a pblico os textos conhecidos hoje como Manuscritos

Econmico-Filosficos. Redigidos no decorrer do ano de 1844 formam, com

alguns outros trabalhos, um conjunto que compreende a fase decisiva que

marcar todo o itinerrio posterior de Marx. Com efeito, o pensamento prprio de

Marx se instaura enquanto tal a partir de trs crticas ontolgicas desencadeadas

pela crtica poltica, resultado de uma reviso da Filosofia do Direito de Hegel

empreendida por Marx em meados de 1843[1]. No prefcio de 1859 a Para a

Crtica da Economia Poltica, Marx resume os resultados deste estudo de 43 no

qual situa a verdadeira relao entre estado e sociedade civil, rompendo com a

especulao ao denunciar a inverso que esta opera quando parte da "idia como

origem ou princpio de entificao do multiverso sensvel" (CHASIN, 1995:357).

Em 1843 clara a ruptura com a especulao que se desenvolveu a

partir dos primeiros delineamentos da crtica poltica que se tornar evidente em

Sobre A Questo Judaica e nas Glosas Crticas ao artigo O Rei da Prssia e a

Reforma Social por um Prussiano, nas quais a afirmao da ontonegatividade da

poltica explcita[2].

A terceira crtica se estabelece, segundo o prprio depoimento de Marx,

em consonncia com as duas anteriores: "Minha investigao [de 43] desembocou

no seguinte resultado: relaes jurdicas, tais como formas de estado, no podem

ser compreendidas nem por si mesmas, nem a partir do chamado

desenvolvimento geral do esprito humano, mas pelo contrrio, elas se enrazam

nas relaes materiais da vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome

de 'sociedade civil', seguindo os ingleses e os franceses do sculo XVIII, a

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http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn3#_edn3http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn4#_edn4

anatomia da sociedade civil dever ser procurada na economia poltica" (MARX,

1974:135).

Os Manuscritos so o primeiro trabalho em que Marx se debrua sobre o

vasto e denso terreno da sociedade civil, estendendo "o mbito da anlise desde a

raiz ao todo da mundaneidade, natural e social, incorporando toda gama de

objetos e relaes"(CHASIN, 1995:379). No so, portanto, anotaes arbitrrias

sem relao com o conjunto de seu pensamento. Ao contrrio, se configuram ao

mesmo tempo como resultado e ponto de partida de um modo peculiar e original

de reflexo sobre a vida humano-social.

Estas poucas linhas, que pretendem contextualizar minimamente o lugar

dos Manuscritos no itinerrio de Marx, so certamente insuficientes para trazer

para o leitor atual uma idia, genrica ao menos, do impacto causado

pelo descobrimento destes escritos na dcada de 30 do sculo XX. Para este fim,

a transcrio do depoimento de um dos decifradores dos Manuscritos, , sem

dvida, mais eficaz. Vejamos como se expressa Lukcs a respeito destes

rascunhos: "pela primeira vez na histria da filosofia, as categorias econmicas

aparecem como categorias da produo e reproduo da vida humana, tornando

assim possvel uma descrio ontolgica do ser social sobre bases materialistas"

(LUKCS, 1979:14-5). De fato esta descrio que encontramos nos Manuscritos

e preciso que se registre aqui o reconhecimento da contribuio de Lukcs na

elucidao das bases ontolgicas do pensamento de Marx. O trabalho do grupo

de pesquisa responsvel pela publicao dos artigos desta coletnea no seria

possvel sem os seus indicativos, o que no significa que se limite s

argumentaes do filsofo hngaro. Ao contrrio, as pesquisas mais recentes do

grupo, bem como as publicaes da ltima dcada de J. Chasin, apontam

discordncias e superaes em relao a Lukcs. De todo modo, o texto

apresentado a seguir fruto em primeiro lugar de suas indicaes, em segundo,

da tenacidade do professor Chasin que dedicou sua vida redescoberta de Marx

e, com o qual tive o privilgio de trabalhar.

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Apesar dos resultados divergentes, as diretrizes bsicas do artigo que se

segue so as indicadas por Lukcs na citao acima. Tanto assim que a anlise

de abertura diz respeito exatamente aos lineamentos mais gerais encontrados nos

Manuscritos sobre a produo e reproduo da vida humana.

1) A EXTERIORIZAAO DA VIDA HUMANA

especialmente na crtica especulao que se pode encontrar os

lineamentos gerais daquilo que Lukcs chamou de ontologia do ser social. No

terceiro manuscrito, dedicado crtica da Fenomenologia de Hegel, Marx trata do

carter objetivo de toda ao humana denunciando a absurdidade do ser abstrato

presente na especulao. Suas palavras so claras: "Um ser que no tenha sua

natureza fora de si no um ser natural, no faz parte da essncia da natureza.

Um ser que no tem nenhum objeto fora de si no um ser objetivo. Um ser que

no por sua vez objeto para um terceiro ser no tem nenhum ser como objeto

seu, isto , no se comporta objetivamente, seu ser no objetivo. Um ser no

objetivo um no-ser (137/578)[3].

Marx se reporta imediatamente objetividade[4] enquanto fundamento de

todo ser, situando o seu carter relacional como a primeira evidncia desta

determinao, e no deixa dvidas sobre a identidade entre ser e objetividade ao

afirmar que "um ser no objetivo um no ser". Essa identidade se traduz no

reconhecimento da objetividade como categoria primria de toda entificao. Marx

procura demonstrar como esta determinao se apresenta na existncia concreta:

"A fome um carecimento natural; precisa, pois, de uma natureza fora de si, um

objeto fora de si para satisfazer-se, para acalmar-se. A fome a necessidade

confessa que meu corpo tem de um objeto que est fora dele e indispensvel

para sua integrao e para sua exteriorizao essencial(137/578). Situa, portanto,

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http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn5#_edn5http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn6#_edn6

em primeiro lugar, a identidade entre ser e objetividade demonstrando o carter

relacional de toda entificao sensvel.

Em sua explicitao da especificidade da objetividade humana Marx

identifica primeiramente o ser em geral e a natureza. Nessa linha de reflexo, a

relao objetiva entre os seres uma relao de reciprocidade e essa interao

objetiva, segundo Marx, se realiza a partir da sensibilidade, pois "to logo eu

tenha um objeto, este objeto me tem a mim como objeto", ou seja, "ser sensvel,

isto , ser efetivo, ser objeto dos sentidos, ser objeto sensvel, e, portanto, ter

objetos sensveis fora de si, ter objetos de sua sensibilidade. Ser sensvel

padecer" (137-8/579). V-se que Marx procura centrar sua posio no

reconhecimento do ser enquanto objetividade sensvel afirmando, no entanto, que

na vida humana, o carter relacional da objetividade transforma-se no motor que

a impulsiona atividade. Nesse sentido, ele afirma: "O homem imediatamente

ser natural. Como ser natural, e como ser natural vivo, est, em parte, dotado de

foras naturais, de foras vitais, um ser natural ativo; essas foras existem nele

como disposio e capacidade, como instintos, em parte como ser natural,

corpreo, sensvel, objetivo, um ser que padece, condicionado e limitado, tal

qual o animal e a planta; isto , os objetos de seus instintos existem exteriormente

como objetos independentes dele, entretanto (grifo meu), esses objetos so objetos de seu carecimento, objetos essenciais, imprescindveis para a efetuao

e confirmao de suas foras essenciais (136/578). Portanto, em comum com a

natureza, o homem um ser corpreo, sensvel, objetivo, ou seja, "condicionado

e limitado". Como qualquer outro ente natural, ele necessita de objetos exteriores,

"como objetos independentes dele". Mas, em seguida, Marx salienta que "esses

objetos so objetos de seu carecimento", ou seja, "objetos essenciais", sem os

quais ele no se efetiva como homem.

A subsuno natural aparece como determinante apenas pelos seus

limites, pelo condicionamento objetivo que, no entanto, no aprisiona o ser

humano. Ao contrrio, "como ser natural ativo", ele transforma o carecimento em

"confirmao de suas foras essenciais". Assim, Marx situa o ser ativo como

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entificao peculiar que transcende os limites naturais, pois capaz de se pr

como uma objetividade sensvel que apresenta atributos especficos.

A identidade entre ser e objetividade aparece nos escritos de Marx, j em

44, como forma peculiar da existncia dos homens, numa reconfigurao que

transforma a necessidade de objetos exteriores na confirmao das foras

essenciais humanas. Mas esta reconfigurao s possvel em sociedade. Nas

palavras de Marx: A essncia humana da natureza existe somente para o

homem social, pois somente assim existe para ele como vnculo com o homem,

como existncia sua para o outro e do outro para ele, como elemento vital da

efetividade humana, s assim existe como fundamento de sua prpria existncia

humana. S ento sua existncia natural se torna para ele sua existncia

humana e a natureza se torna para ele o homem. A sociedade , pois, a plena

unidade essencial do homem com a natureza, verdadeira ressurreio da

natureza, o naturalismo realizado do homem e o humanismo realizado da

natureza(89/537-8). Portanto, somente para o ser social o vnculo com a

natureza ao mesmo tempo sua relao com os demais homens e apenas desse

modo a inter-relao entre os homens se realiza na relao com a objetividade

natural que, assim, reemerge como objetividade social.

Na vida humana essa reconfigurao se traduz em primeiro lugar na

produo dos prprios homens: "Um ser s se considera autnomo, quando

senhor de si mesmo, e s senhor de si, quando deve a si mesmo seu modo de

existncia. Um homem que vive graas a outro se considera a si mesmo um ser

dependente, vivo, no entanto, totalmente por graa de outro, quando lhe devo no

s a manuteno de minha vida, como tambm o fato de que ele alm disso criou

minha vida; e minha vida tem necessariamente o fundamento fora de si mesma

quando no minha prpria criao" (97/544-5).

A prpria vida humana, portanto, a confirmao da interdependncia

efetiva que a caracterstica de toda objetividade. Ou seja, a recriao contnua

dos homens a prova cabal de que "minha vida tem necessariamente o

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fundamento fora de si mesma". Marx, citando Aristteles, afirma "tu foste

engendrado por teu pai e tua me, isto , o coito de dois seres humanos, um ato

genrico dos homens, produziu em ti o homem. Vs, pois, que inclusive

fisicamente o homem deve ao homem sua existncia" (98/545). A gerao do

homem fsico se apresenta como ato natural. No entanto, para o ser ativo, a

procriao se converte em confirmao da vida humana e no uma determinao

cega da natureza.

Tal evidncia se manifesta no fato de que a prpria relao humana que

perpetua a espcie uma atividade que distingue os homens da mera reproduo

natural. Assim, segundo Marx, "a relao imediata, natural e necessria do

homem com o homem a relao do homem com a mulher. Nesta relao

genrica natural, a relao do homem com a natureza imediatamente sua

relao com o homem, do mesmo modo que a relao com o homem

imediatamente sua relao com a natureza, sua prpria destinao natural. Nesta

relao aparece pois de maneira sensvel, reduzida a um fato concreto, em que

medida a essncia humana se converteu para o homem em natureza ou a

natureza tornou-se a essncia humana do homem (86/535).

Ademais, Marx vai identificar na relao concreta entre o homem e

mulher a medida da humanidade do homem, j que esta relao a mais simples,

natural e espontnea relao do homem com o homem e "nela se mostra em que

medida o comportamento natural do homem tornou-se humano, ou em que

medida a essncia humana tornou-se para ele essncia natural, em que medida a

sua natureza humana tornou-se para ele natureza" (86/535). Vale dizer, como

relao mais natural do homem consigo mesmo, a relao homem-mulher

demonstra em que medida o homem "em seu modo de existncia mais individual,

, ao mesmo tempo, ser social " (87/535), pois somente para o ser social, a vida

individual ao mesmo tempo vida genrica.

Justamente com o propsito de demonstrar o carter social da existncia

individual, Marx considera: "A vida individual e a vida genrica no so distintas,

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por mais que, necessariamente, o modo de existncia da vida individual seja um

modo mais particular ou mais geral da vida genrica, ou que a vida do gnero

seja uma vida individual mais particular ou mais geral" (90/539). Ou seja, cada

existncia concreta pode ser uma forma mais ampla ou mais restrita de vivenciar

a generidade. Do mesmo modo, a vida do gnero pode se reproduzir atravs da

existncia individual voltada para um mbito limitado da generidade ou para

dimenses mais extensas do ser social. Nessa direo, preciso assinalar que "o

homem - por mais que seja um indivduo particular, e justamente sua

particularidade que faz dele um indivduo e um ser social individual real - na

mesma medida, a totalidade, a totalidade ideal, a existncia subjetiva da

sociedade pensada e sentida para si, tanto como contemplao e gozo da

existncia social, quanto como totalidade de manifestao de vida humana

(90/539), pois cada individualidade a expresso efetiva, sensvel da totalidade

da vida humana. Vale dizer, cada ser social individual, real, em sua especificidade,

ao mesmo tempo essncia genrica sensvel, a expresso singular que

concentra em si a complexidade de seu ser plural - o gnero humano.

Por este motivo, Marx adverte: deve-se evitar antes de tudo fixar a

'sociedade' como outra abstrao frente ao indivduo. O indivduo o ser social. A

exteriorizao da sua vida - ainda que no aparea na forma imediata de uma

exteriorizao da vida coletiva, cumprida em unio e ao mesmo tempo com outros

- , pois, uma manifestao e confirmao da vida social" (90/538-9). E

exemplifica: "mesmo quando atuo cientificamente, etc., uma atividade que

raramente posso levar a cabo em comunidade imediata com outros homens,

tambm sou social porque atuo enquanto homem. No s o material de minha

atividade - como a prpria lngua na qual o pensador ativo - me dado como

produto social, porque o que eu fao de mim o fao para a sociedade e com a

conscincia de mim enquanto ser social" (89/538).

Assim, a exteriorizao da vida humana produz a totalidade do ser social

em sua expresso bipolar, na forma do indivduo e do gnero. A relao entre

estes dois plos do ser pode se manifestar sob diversos modos, mas enquanto

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unidade esto sempre em condicionamento recproco: "O carter social , pois, o

carter de todo movimento; assim, como a prpria sociedade que produz o

homem enquanto homem, assim tambm ela produzida por ele (89/537).

Para Marx, portanto, somente a partir da compreenso do carter social

de toda ao humana se pode pensar a prpria relao do homem com a

natureza. Para ele, esta nova relao entre os homens e a natureza, que gera o

ser genrico como modalidade peculiar de entificao, uma realizao concreta,

pois, a "produo prtica de um mundo objetivo, a elaborao da natureza

inorgnica, a confirmao do homem como ser genrico consciente, ou seja, um

ser que se comporta em relao ao gnero como sua prpria essncia ou em

relao a si mesmo como ser genrico" (63/516-7).

O carter genrico da vida humana emerge desde logo na resposta

necessidade de reproduo da existncia. por essa razo que Marx afirma: "a

atividade vital, a vida produtiva mesma aparecem ao homem apenas como meio

de satisfazer uma necessidade, a necessidade de conservar a existncia fsica

(62/516). De todo modo, j nesse momento, ela a realizao do humano em sua

marca peculiar que produzir o mundo e a si enquanto generidade. Assim, pode-

se dizer que o gnero humano qualitativamente distinto da natureza em geral

mesmo no mais primrio estgio de sua gerao, visto que mesmo neste

momento sua produo genrica. Ou, nas palavras de Marx: "no tipo de

atividade vital reside todo carter de uma espcie, seu carter genrico, e a

atividade livre consciente, o carter genrico do homem" (62/516); isto significa

que sua atividade "no uma determinao com a qual ele se confunde

imediatamente" (63/516) como nos animais, pois a atividade humana livre,

consciente. Desse modo, "o animal imediatamente uno com a sua atividade vital.

No se distingue dela. essa atividade. O homem faz de sua atividade vital

objeto de sua vontade e de sua conscincia. Possui atividade vital consciente"

(63/516). Em sua atividade, o homem no se reproduz enquanto mero ser natural,

mas enquanto ser genrico, pois sua atividade possui outra legalidade, outro

estatuto que no o simplesmente natural. Melhor dizendo, sua atividade no se

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realiza segundo as leis naturais, na medida em que como ser genrico " O

homem faz de sua atividade vital objeto de sua vontade e de sua conscincia ".

Ou ainda, sua atividade "no uma determinao com a qual ele se confunde

imediatamente. A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da

atividade vital dos animais, s por essa razo ele um ser genrico. Ou melhor,

s um ser consciente, quer dizer, sua vida constitui para ele um objeto,

precisamente porque um ser genrico (63/516).

Observa-se, portanto, que Marx situa ao mesmo tempo (1) generidade e

(2) atividade consciente como marcos que distinguem o homem da natureza em

geral. Essas duas determinaes, ainda segundo ele, se realizam e se expressam

em condicionamento mtuo, como sntese que desloca o humano para um novo

patamar na escala do ser. Essa reciprocidade entre generidade e atividade

consciente transparece tambm no fato de a vida humana se constituir como

objeto para o homem, ao contrrio do que acontece no movimento da natureza,

onde as objetividades se reproduzem perpetuando a circularidade natural. Em

outras palavras, a produo humana produo genrica porque no est restrita

aos limites naturais, pois o homem s produz verdadeiramente na liberdade

(64/517) da necessidade fsica imediata. Deste modo, o animal apenas se

produz a si, ao passo que o homem reproduz toda a natureza(64/517). E isso

porque o produto do homem pertence ao gnero, no imediatamente consumido

pelo corpo fsico. Assim como sua produo constitui um ato de liberdade, visto

que no se realiza como resposta direta a necessidade fsica imediata, do mesmo

modo o homem livre diante do produto.

Por via de conseqncia, a liberdade humana deriva do fato de o homem

se reproduzir como ser social. Sendo assim, pode-se dizer com Marx que ele "no

apenas ser natural, mas ser natural humano, isto , um ser genrico, que

enquanto tal deve atuar e confirmar-se tanto em seu ser quanto em seu saber

(138/579).

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Na citao acima, a determinao do homem no recai sobre a natureza,

mas sobre a generidade. Desse modo, no ato humano, a produo genrica

porque implica a produo do mundo humano para si num movimento que se

supera atravs da construo de novas objetividades que aproximam o homem

de si enquanto ser social. A atividade que assim se realiza envolve, portanto, o

ser que vive e se reproduz como outra objetividade distinta da natural e a

sensibilidade peculiar que o torna capaz para a apropriao e produo genricas.

Esse atributo Marx chama, na passagem acima, de saber. O homem, ao se

apropriar da natureza sensvel e de si mesmo em sua sensibilidade prpria,

transforma a objetividade natural em objetividade social, em objetos da produo

e reproduo do ser social, do gnero humano. Esta transformao se realiza a

partir da atividade social, pois como Marx afirma: "nem os objetos humanos so

os objetos naturais, tais como se oferecem imediatamente, nem o sentido humano

tal como imediata e objetivamente sensibilidade humana, objetividade

humana" (138/579). Natureza e sentido, portanto, se transfiguram em novas

objetividades ao se tornarem humanos.

Vejamos como a anlise de Marx se desenvolve a este respeito, tomando

como ponto de partida a exposio feita por ele, j no primeiro Manuscrito, acerca

do carter da apropriao humana da natureza. Ele afirma: "A vida genrica, tanto

do homem quanto do animal, consiste de incio, do ponto de vista fsico, no fato de

que o homem (como o animal) vive da natureza inorgnica e quanto mais

universal o homem em relao ao animal, tanto mais universal o mbito da

natureza inorgnica de que ele vive" (61-2/515).

O carter universal da produo humana aparece imediatamente a partir

da universalidade da natureza inorgnica que o homem tem como seu objeto,

pois "Fisicamente o homem no vive seno dos produtos naturais que aparecem

sob a forma de alimento, calor, vesturio, habitao, etc. A universalidade do

homem aparece na prtica precisamente na universalidade que faz de toda

natureza seu corpo inorgnico, tanto por ser 1) um meio de subsistncia imediato

como por ser 2) a matria, o objeto e o instrumento de sua atividade vital (62/515-

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6). Desse modo, mesmo a satisfao da necessidade imediatamente fsica , para

o homem, atividade genrica, portanto universal, na qual toda natureza se reverte

ao mesmo tempo em meio de subsistncia e matria de sua atividade vital.

A universalidade da apropriao humana se manifesta, pois,

precisamente no fato de toda natureza aparecer ao homem como instrumento e

matria de sua atividade genrica. Em outras palavras, enquanto ser social, o

homem transforma continuamente a natureza em ser para si, em natureza para o

homem, emergindo (a natureza) desse modo enquanto objetividade social. A este

respeito Marx afirma: "Da mesma forma que as plantas, os animais, os minerais, o

ar, a luz, etc. constituem do ponto de vista terico uma parte da conscincia

humana, seja enquanto objeto da cincia da natureza, seja como objetos da arte

sua natureza inorgnica espiritual, meios da subsistncia intelectual, que ele deve

primeiramente preparar para o gozo e a assimilao assim tambm constituem

do ponto de vista prtico uma parte da vida e da atividade humanas (62/515).

Desse modo, os elementos naturais so constitutivos da conscincia,

justamente porque so objetos da vida e da atividade humanas. Mas, enquanto

tais, precisam ser preparados pelo homem para sua prpria assimilao. Nesse

preparo, os elementos naturais se convertem para o homem em parte da

conscincia terica, o que significa que eles se transformam em objeto da cincia

da natureza e da arte. Assim, nas mos humanas, a objetividade natural se

transfigura em objetividade social a partir da atividade genrica na qual "o homem

se apropria de seu ser multilateral de forma multilateral, isto , como homem total"

(91/539).

Tal apropriao se realiza atravs dos atributos sensveis do homem.

Segundo Marx: "Cada uma de suas relaes humanas com o mundo - ver, ouvir,

cheirar, saborear, sentir, pensar, observar, perceber, querer, atuar, amar - em

resumo, todos os rgos de sua individualidade, como rgos que so

imediatamente sociais em sua forma, so em seu comportamento objetivo ou em

seu comportamento para com o objeto, a apropriao deste. A apropriao da

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efetividade humana, seu comportamento frente ao objeto a manifestao da

efetividade humana, eficcia humana e sofrimento humano, pois o sofrimento,

humanamente entendido, o gozo prprio do homem (91/539-0).

O pensamento, portanto, no a primeira nem a nica forma de

apropriao da objetividade sensvel. Ao contrrio, o comportamento do homem

frente ao objeto algo "to mltiplo como so as determinaes essenciais e

atividades humanas" (91/540 - nota). Em sendo a apropriao humana atividade

social, os prprios rgos dos sentidos so "imediatamente sociais em sua

forma", ou seja, se produzem na relao dos homens entre si. Desse modo, a

sensibilidade se converte continuamente em sensibilidade universal, em

sensibilidade humana, "pois o sofrimento humanamente entendido o gozo

prprio do homem", j que, enquanto ser sensvel, o homem um ser que padece,

mas seu sofrimento direciona sua sensibilidade ao universo humano que o

determina como forma especfica de ser.

Resumidamente, pode-se dizer que a apropriao humana universal

porque o sofrimento do homem universal, na medida em que a vida em

sociedade abre um campo de possibilidades de carecimentos, e satisfaes de

carecimentos, infinitos. No entanto, esse campo de possveis orienta a

apropriao por uma via dada socialmente pelo desenvolvimento histrico e ao

mesmo tempo se pe enquanto tal como resultado do conjunto das aes dos

indivduos particulares. Esse caminho de mo dupla a j mencionada unidade do

ser social consigo mesmo em seus plos individual e genrico.

Retomando a argumentao de Marx, faz-se necessrio acompanhar a

sua anlise em que situa a apropriao como ato genrico, que produz a

objetividade social na forma da exterioridade sensvel e da sensibilidade humana.

Ele o faz em estilo direto: "O olho se fez um olho humano, assim como seu objeto

se tornou um objeto social humano, vindo do homem para o homem (92/540),

pois o objeto apropriado pelo homem se converte em objetividade social. Do

mesmo modo os rgos dos sentidos humanos, nessa apropriao, transformam-

14

se continuamente em sentido universal. "Os sentidos fizeram-se assim

imediatamente tericos em sua prtica. Comportam-se para com a coisa por amor

da coisa, mas a coisa mesma um comportamento humano objetivo para consigo

mesma e para com o homem e inversamente (92/540), pois, em sua prtica, os

sentidos sabem concretamente de si e da coisa. E a relao entre ambos se

realiza na necessidade de apropriao, isto , "s posso me relacionar na prtica

de um modo humano com a coisa quando a coisa se relaciona humanamente com

o homem (92/540 - nota), ou seja, s quando a coisa desperta a necessidade

humana e se torna apropriao humana de si e da objetividade exterior.

Desse modo, "carecimento e gozo perderam sua natureza egosta e a

natureza perdeu sua mera utilidade, ao se converter a utilidade em utilidade

humana" (92/540). O objeto exterior como relao humana objetiva se converte

em vida e no apenas em algo que sacia uma necessidade imediata, pois o

carecimento humano se satisfaz na apropriao humana e, portanto, multilateral,

no somente para o ser individual, mas para o gnero. Assim, "o sentido e o gozo

dos outros homens se converteram em minha prpria apropriao " (92/540),

propiciando para a atividade e para os sentidos um vasto campo de atuao

concreta tanto individualmente como em conjunto, pois "alm destes rgos

imediatos se constituem, por isso, rgos sociais, na forma da sociedade, assim,

por exemplo, a atividade imediatamente na sociedade com os outros etc. se

converteu em rgo de exteriorizao de vida[5] e um modo de apropriao da vida

humana" (92/540).

Sendo assim, o sentido e o gozo dos outros homens, a vida social,

aparece ela mesma como apropriao de cada homem, pois posso me apropriar

do modo de apropriao do outro: posso ouvir com os outros, ver com os olhos

dos outros, constituir assim meus prprios rgos dos sentidos a partir da

sensibilidade do outro.

Por outro lado, a prpria vida social, a atividade social torna-se rgo por

excelncia da exteriorizao da vida humana, pois, para alm dos rgos dos

15

http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn7#_edn7

sentidos imediatamente fsicos (que so sociais em sua forma), o sentido e o gozo

do conjunto dos homens a forma do humano se expressar.

Assim, a apropriao humana universal porque a apropriao de todos

os homens se converte em apropriao de cada homem e vice-versa, o objeto de

cada apropriao particular ao mesmo tempo, apropriao universal. Nesse

sentido, Marx afirma: "enquanto de um lado, para o homem em sociedade, a

efetividade objetiva se transforma em geral em efetividade das foras essenciais

humanas, em efetividade humana, e portanto em efetividade de suas prprias

foras essenciais, todos os objetos se tornaro objetivao de si prprio, objetos

que confirmam e realizam sua individualidade, em seus objetos, isto , o objeto

vem a ser ele mesmo (92-3/541). Porquanto toda objetividade social da qual e na

qual o homem vive sua prpria produo, toda ela a expresso sensvel de

que o mundo que ele cria o seu mundo, no qual cada objeto a confirmao de

si mesmo, mas "como vm a ser seu, depende da natureza do objeto e da

natureza da fora essencial que corresponde a ele, pois precisamente a

determinidade dessa relao constitui o modo particular, real da afirmao

(93/541). Ou seja, na realidade concreta, a apropriao uma relao que

envolve o objeto em sua especificidade e a fora essencial humana em sua

capacidade particular de apropriao. Nessa relao, o objeto se afirma enquanto

objeto humano na mesma medida em que a fora essencial que lhe corresponde

for a expresso da universalidade do homem.

Quanto especificidade dessa relao Marx afirma: "o objeto se

apresenta ao olho de maneira diferente do que ao ouvido, e o objeto do olho

diferente do objeto do ouvido A particularidade de cada fora essencial

justamente sua essncia particular, logo tambm o modo particular de sua

objetivao, de seu ser objetivo, real, vivo. Por isso, o homem se afirma no mundo

no apenas no pensar, mas sim com todos os sentidos (93/541). Assim, segundo

Marx, o ser social se manifesta objetivamente atravs de todos os sentidos, sendo

que o pensamento mais uma forma de expresso e apropriao humana, mas

no a primeira nem a nica. A especificidade de cada fora essencial (ver, ouvir,

16

cheirar, sentir, etc.) o que faz dela essncia objetiva, viva, real; pois somente em

sua especificidade essencial o homem real, vivo.

Cada uma dessas foras essenciais uma forma do homem se apropriar

da objetividade exterior, portanto tambm outra face de sua universalidade. Essa

a expresso da sociabilidade onde o sentido e o gozo de cada homem so

apropriados por todos os homens (e vice-versa) e se manifestam, em primeiro

lugar, na universalidade da natureza que se converte em corpo inorgnico do

homem - o que s acontece porque o padecimento humano universal, e se

satisfaz a partir da atividade sensvel na qual cada rgo do sentido uma fora

essencial capaz de se apropriar da objetividade exterior de uma maneira particular.

A esse respeito, Marx afirma ainda: "subjetivamente considerado: primeiramente

a msica que desperta o sentido musical do homem, para o ouvido no musical a

mais bela msica no tem sentido algum, no objeto, porque meu objeto s

pode ser a confirmao de uma de minhas foras essenciais, isto , s pode ser

para mim na medida em que minha fora essencial para si como capacidade

subjetiva, porque o sentido de um objeto para mim (somente tem sentido para um

sentido a ele correspondente) chega justamente at onde chega meu sentido; por

isso tambm os sentidos do homem social so distintos dos do no social

(93/541).

Por um lado, os sentidos se humanizam, confirmam-se enquanto fora

essencial a partir do grau de apropriao da sua capacidade universal. Usando o

prprio exemplo de Marx, o ouvido de cada homem torna-se musical a partir da

apropriao do ouvir humano possvel naquele momento. Sem essa apropriao o

seu sentido no capacidade subjetiva, isto , no tem condies para a

apropriao humana, no tem na "mais bela msica" um objeto, pois suas foras

essenciais no so capazes de fru-la.

Por outro lado, mas na mesma linha de reflexo, " somente graas

riqueza objetivamente desenvolvida da essncia humana que a riqueza da

sensibilidade humana subjetiva em parte desenvolvida, em parte criada, que o

17

ouvido se torna musical, que o olho percebe a beleza da forma, em resumo, que

os sentidos se tornam capazes do gozo humano, tornam-se sentidos que se

confirmam como foras essenciais humanas (93/541). Para Marx, portanto, a

objetividade o solo, o momento preponderante para o surgimento e

desenvolvimento da sensibilidade humana. Essa, por sua vez, torna-se capaz de

engendrar objetividades direcionadas para a realizao humana. Tal

engendramento, por seu turno, torna-se a base de um novo patamar da

sensibilidade e assim sucessivamente, numa contnua interao entre objetividade

que se transforma em sensibilidade que, por sua vez, se transforma em nova

objetividade.

Esse intercmbio , antes de mais nada, intercmbio entre os homens,

pois "no s os cinco sentidos, como tambm os chamados sentidos espirituais,

os sentidos prticos (vontade, amor etc.), em uma palavra, o sentido humano, a

humanidade dos sentidos, vm a ser unicamente mediante a existncia de seu

objeto, mediante a natureza humanizada" (94/541). A objetivao da vida humana,

portanto, produz simultaneamente objetividades sociais exteriores ao homem e o

prprio homem como ser objetivo a partir da relao dos homens entre si com a

natureza humanizada. Esta, enquanto objeto do homem, a prpria sociedade, ,

assim, o homem mesmo em sua expresso genrica. A sensibilidade humana se

constitui somente no interior dessas condies, pois a "A formao dos cinco

sentidos um trabalho de toda histria universal at nossos dias (94/541-2) e

continuar sendo enquanto a humanidade existir.

Marx procura demonstrar essa realidade voltando-se para o modo atual

da produo humana: "V-se como a histria da indstria e a existncia tornada

objetiva da indstria so o livro aberto das foras humanas essenciais, a

psicologia humana sensivelmente presente (94/542). Marx afirma, assim, que a

ao humana genrica se presentifica na indstria, pois este o espao por

excelncia da produo e reproduo da sensibilidade humana concreta.

18

O carter da exteriorizao humana tem, portanto, para Marx, j em 44,

sua figura concreta na indstria, que para ele a sntese das foras humanas

materializadas.

Em resumo, para Marx de 1844, o homem um ser objetivo que,

como toda objetividade sensvel, necessita de objetos exteriores a si para existir.

No entanto, para o homem, estes objetos so objetos de seu carecimento como

homem e no da mera necessidade de reproduo fsica. Sendo assim, em sua

relao com a objetividade sensvel o homem se reproduz como homem e no

como natureza, justamente porque o carter relacional de toda objetividade se

expressa, na vida humana, primeiramente na necessidade dos homens se

relacionarem entre si. Mas, por sua vez, a prpria relao do homem com a

natureza s possvel a partir do vnculo entre os homens. Assim, a partir desse

vnculo, a natureza reemerge como nova objetividade.

A relao do ser social com a natureza diferencia-se da

circularidade do movimento natural em funo da universalidade da apropriao

humana, que faz de toda natureza o corpo inorgnico do homem. Essa

apropriao pode se expressar assim, porque os sentidos humanos tornam-se

continuamente capazes de se apropriar dos objetos sob suas mais diversas

formas (som, imagem, textura etc.). Essa capacidade s possvel, por seu turno,

porque a apropriao de cada homem ao mesmo tempo apropriao de todos os

homens, assim o sentido e o gozo dos homens aparecem como "rgos sociais,

na forma da sociedade" (92/540).

A categoria da exteriorizao aparece nos Manuscritos no interior desta

argumentao. Marx afirma que a "atividade imediatamente na sociedade com

outros etc., se converteu em um rgo de exteriorizao de vida e um modo da

apropriao da vida humana (92/540). Esta categoria est associada

necessariamente ao movimento efetivo, sensvel. Segundo as prprias palavras

de Marx: "que o homem seja um ser corpreo, dotado de foras naturais, vivo

efetivo, sensvel, objetivo significa que tem como objeto de seu ser, de sua

19

exteriorizao de vida, objetos efetivos, sensveis, ou que s em objetos reais,

sensveis, pode exteriorizar sua vida. Ser objetivo, natural, sensvel e ao mesmo

tempo ter fora de si objeto, natureza, sentido, ou inclusive ser objeto, natureza e

sentido para um terceiro se equivalem" (136-7/578). Assim, mesmo quando se

trata do pensar, "o elemento da exteriorizao de vida do pensamento - a

linguagem - natureza sensvel" (97/544). Pois, somente em sua manifestao

efetiva, ela torna real o pensamento.

Pode-se afirmar, portanto, que o que torna o homem homem so suas

exteriorizaes, entendidas como expresses objetivas, como ato sensvel. Neste

sentido, Marx assevera: "o homem rico , ao mesmo tempo, o homem carente de

uma totalidade de exteriorizao de vida humana. O homem no qual sua prpria

efetivao existe como necessidade interna, como carncia" (97/544).

A compreenso da exteriorizao humana enquanto movimento genrico,

presente em qualquer forma social especfica, nos permite analisar a realidade

contempornea luz desta descoberta central do pensamento marxiano: o

trabalho enquanto centro de gravidade da sociedade[6] como Marx dir em 1875.

Vejamos, a seguir como esta exteriorizao se realiza no interior do domnio da

propriedade privada.

2) A EXTERIORIZAO DA VIDA NO INTERIOR DA PROPRIEDADE PRIVADA

O movimento descrito at aqui, da exteriorizao da vida humana, se

desenvolve em toda e qualquer forma social. Ele , portanto, apenas uma

abstrao razovel, no enquanto um tipo ideal, mas como um elemento comum a

todos os modos de ser humano. Vamos nos voltar agora para a compreenso

deste movimento no interior da apropriao privada dos meios de produo. Nos

20

http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn8#_edn8

Manuscritos, depois de anotar vrias citaes de autores da chamada economia

poltica clssica, Marx passa a abordar o tema por sua prpria pena, criticando,

em primeiro lugar, a forma como os economistas empreendem sua anlise. Diz ele:

a economia poltica parte do fato da propriedade privada. No o explica. Concebe

o processo material da propriedade privada, como ele ocorre na realidade, em

frmulas gerais e abstratas, que em seguida valem para ela como leis. No

compreende tais leis, isto , no demonstra como elas derivam da essncia da

propriedade privada. A economia poltica no fornece qualquer explicao sobre o

fundamento da diviso entre trabalho e capital, e entre capital e terra. Por exemplo,

ao determinar a relao entre o salrio e o lucro do capital, o interesse dos

capitalistas vale para ela como fundamento ltimo, quer dizer, pressupe o que

deveria desenvolver(55-6/510).

Situando, desde logo, a especificidade de sua anlise, ele afirma: No

nos colocamos, como o economista poltico quando quer explicar algo, num

estado original imaginrio. Um tal estado original nada explica. Apenas desloca a

questo para uma distncia opaca e nebulosa. Pressupe sob a forma de fato, de

acontecimento, o que deveria deduzir, a saber, a relao necessria entre duas

coisas, por exemplo entre a diviso do trabalho e a troca. assim que a teologia

explica a origem do mal pelo pecado original, isto , pressupe como fato, como

histria, o que deveria explicar (56/511). Expe, ento, seu ponto de partida:Ns

partiremos de um fato econmico atual (57/511). Fato este que assim

sintetizado por Marx:O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza

produz, quanto mais sua produo cresce em poder e volume. O trabalhador se

torna uma mercadoria tanto mais barata, quanto mais mercadorias produz. Com a

valorizao do mundo das coisas aumenta em proporo direta a desvalorizao

do mundo dos homens. O trabalho no produz apenas mercadorias produz

tambm a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na

mesma proporo em que produz mercadorias em geral (57/511). Marx, portanto,

toma como ponto de partida de sua anlise a relao entre o produto do trabalho e

o seu produtor: Este fato exprime nada mais que: o objeto produzido pelo trabalho,

seu produto, o afronta como ser estranho, como um poder independente do

21

produtor. O produto do trabalho o trabalho que se fixou num objeto, que se

tornou concreto, que se fez coisa, a objetivao do trabalho. A efetivao do

trabalho sua objetivao. Nas condies da economia poltica, esta efetivao

do trabalho aparece como desefetivao do trabalhador, a objetivao como perda

e servido do objeto, a apropriao como estranhamento, como

alienao[7](57/512). A apropriao aqui no aparece simplesmente como

momento da exteriorizao, pois na produo atual, esse movimento se realiza

sob a determinao do estranhamento, da alienao, visto que a efetivao do

homem que produz - o trabalhador - se reverte em perda e servido dos objetos. E,

isto a tal ponto que "o trabalhador se desefetiva at a morte pela fome. A

objetivao se revela a tal ponto como perda do objeto que o trabalhador fica

privado dos objetos mais essenciais no s vida mas tambm dos objetos de

trabalho" (57/ 512).

Portanto, de fato, a apropriao humana da natureza e das objetividades

em geral, significa para o trabalhador estranhamento, alienao. Nas palavras de

Marx: "a apropriao do objeto se manifesta a tal ponto como estranhamento que

quanto mais objetos o trabalhador produz tanto menos ele pode possuir e tanto

mais se submete ao domnio de seu produto, do capital" (57/ 512).

Desse modo, a produo no tem conexo efetiva com a vida do

trabalhador e, segundo Marx, isso se deve ao seguinte fato: "o trabalhador se

relaciona com o produto de seu trabalho como com um objeto estranho. A partir

desse pressuposto , pois, evidente: quanto mais o trabalhador se exterioriza

tanto mais poderoso diante dele se torna o mundo estranho, objetivo, que ele criou,

tanto mais pobre se torna ele mesmo e seu mundo interior, tanto menos dono de

si prprio" (57/512). Marx parte, portanto, da relao direta do homem que produz

atualmente com o produto de sua produo. E encontra uma inverso na qual o

trabalhador se desapropria de si enquanto homem ao produzir o mundo como

objetividade estranha a ele. Mas esta relao apenas a manifestao objetiva da

forma como se processa o prprio trabalho: "o produto , de fato, apenas a sntese

da atividade, da produo. Se por conseguinte, o produto do trabalho

22

http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn9#_edn9

alienao, a prpria produo deve ser alienao em ato, a alienao da

atividade, a atividade da alienao. O estranhamento do objeto do trabalho

apenas sintetiza o estranhamento, a alienao na prpria atividade do trabalho"

(60/514).

Nesse aparente jogo de palavras, Marx exprime a determinao mtua do

complexo objetividade/subjetividade como fundamento da produo humana, pois

o produto do trabalho ao mesmo tempo objetividade sensvel e subjetividade

efetivada. Para o trabalhador, o produto do trabalho alienao, enquanto algo

fora de si, renncia. Sua atividade, portanto, a realizao da separao entre

ele e o produto, entre ele e a prpria atividade, pois nela (na atividade), o

trabalhador produz essa separao enquanto realidade objetiva. Ou seja, produz o

objeto e a atividade enquanto objetividades estranhas, separadas, alienadas dele

enquanto homem. E assim acontece porque "o estranhamento no se mostra

somente no resultado, mas no ato da produo, no interior da prpria atividade

produtiva. Como poderia o trabalhador se enfrentar com o produto de sua

atividade como algo estranho, se no ato mesmo da produo no se tornasse j

estranho a si mesmo? (60/514).

O estranhamento aparece, portanto, como resultado de um movimento no

qual o trabalhador produz a alienao como forma de sua atividade ou produz sua

atividade como alienao de si.

No entanto, a atividade sensvel que se realiza a partir da relao entre os

homens a verdadeira vida humana, o verdadeiro ato de nascimento do homem,

sua real forma de ser. Assim, se o produto do trabalho humano se encontra numa

relao de oposio frente ao homem que produz, sua prpria atividade aparece

como "passividade, a fora como impotncia, a procriao como castrao, a

prpria energia fsica e mental do trabalhador, a sua vida pessoal - e o que vida

seno atividade? - como atividade dirigida contra ele, independente dele, que no

lhe pertence. O auto-estranhamento[8] como acima o estranhamento da coisa" (61/

515). Desse modo, o homem se encontra em oposio a ele mesmo como gnero,

23

http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn10#_edn10

pois " medida que o trabalho estranhado torna o homem estranho 1) natureza,

2) a si mesmo, a sua prpria funo ativa, a sua atividade vital, assim torna o

homem estranho ao gnero; faz da sua vida genrica um meio da sua vida

individual (62/516), transforma portanto sua realizao humana em meio de

manter sua existncia fsica. Opera-se, assim, uma terceira inverso que

"primeiramente torna estranha a vida genrica e individual, em seguida, faz da

ltima, em sua abstrao, a finalidade da primeira, igualmente em sua forma

abstrata e estranhada (62/516).

Vimos que, segundo Marx, sociedade e indivduo so apenas expresso

plural e singular de um mesmo ser. V-se agora que no interior da produo que

se exerce a partir da alienao, essa unidade entre gnero e indivduo se

manifesta como antagonismo e oposio, o que coloca a vida genrica a servio

da mera sobrevivncia individual. Nas palavras de Marx: " medida que o trabalho

estranhado degrada em meio a atividade autnoma, a atividade livre, igualmente

transforma a vida genrica do homem em meio de sua existncia fsica. A

conscincia que o homem tem do prprio gnero se transforma por meio do

estranhamento de tal maneira que a vida genrica se transforma para ele em

meio" (64/517).

Assim, o seu modo prprio de ser homem aparece somente como um

meio de se manter enquanto indivduo abstrato. A vida individual apartada da

generidade se volta para si mesma enquanto sobrevivncia fsica imediata e toda

produo humana tem apenas o objetivo de manter o homem fsico individual vivo.

A autntica essncia humana transforma-se assim em meio da existncia

individual abstrata. A individualidade separada do gnero uma abstrao porque

transforma em meio a essncia ltima do homem e em fim os meios de

sobrevivncia. Marx conclui afirmando que o trabalho estranhado transforma o

ser genrico do homem, tanto a natureza como suas faculdades intelectuais

genricas, em um ser a ele estranho, em meio de sua existncia individual. Torna

estranho ao homem seu prprio corpo, a natureza fora dele, sua essncia

espiritual, sua essncia humana. - Uma conseqncia imediata do estranhamento

24

do homem em relao ao produto do seu trabalho, sua atividade vital, sua

essncia genrica, o estranhamento do homem relativamente ao homem.

Quando o homem se contrape a si mesmo, contrape-se aos outros homens

(64-5/517-8).

Tm-se portanto quatro determinaes desveladas a partir do carter

exterior e invertido do trabalhador em relao ao seu produto. A primeira se

mostra fenomenicamente: o estranhamento entre trabalhador e produto, sendo

apenas expresso concreta da segunda determinao: o estranhamento do

trabalhador no interior da atividade produtiva, que significa, necessariamente, (3) o

estranhamento do homem em relao ao gnero humano que, por sua vez, se

manifesta efetivamente no (4) estranhamento do homem em relao aos outros

homens. Ou segundo as prprias palavras de Marx: "o estranhamento do homem,

e em geral toda a relao do homem consigo mesmo, se efetiva e se exprime

primeiramente na relao dos homens com os outros homens (65/518).

Nesse sentido, Marx afirma que se o homem "se relaciona com o produto

de seu trabalho, com o seu trabalho objetivado, como com um objeto estranho,

hostil, poderoso, independente, ento se relaciona com ele de tal modo que outro

homem, a ele estranho, hostil, poderoso e independente o senhor deste objeto.

Se ele se relaciona com a prpria atividade como com uma atividade no livre,

ento se relaciona com ela como com uma atividade a servio, sob o domnio, a

coero e o jugo de outro homem (66/519). Bem entendido, o trabalho no

produz apenas objetos externos ao homem, mas tambm ele prprio enquanto

homem e, ao mesmo tempo, a realidade social na qual os homens se relacionam.

Vale dizer: "pelo trabalho estranhado o homem gera no somente sua relao com

o objeto e o ato de produo enquanto homens estranhos e que lhe so hostis;

gera tambm a relao dos outros homens com sua produo e seu produto e

sua relao com estes outros homens. Assim como ele faz de sua prpria

produo sua privao de realidade, sua punio, e de seu prprio produto uma

perda, um produto que no lhe pertence, igualmente ele cria a dominao daquele

que no produz sobre a produo e sobre o produto. Assim torna estranha a si

25

sua prpria atividade, igualmente, atribui a um estranho a atividade que no lhe

pertence (66/519).

A essa altura do texto, Marx admite ter partido de um fato econmico, "o

estranhamento do trabalhador e da sua produo", admite ainda ter expressado

"o conceito desse fato como trabalho estranhado, alienado" e que analisou esse

conceito como fato econmico. Ou seja, partindo do fato econmico da relao do

trabalhador com sua produo, Marx analisou as conseqncias e o significado

dessa relao em sua forma abstrata, segundo ele, como conceito. Ele se volta

agora para sua expresso real: "Vejamos ainda como o conceito de trabalho

estranhado, alienado deve expressar-se e revelar-se na realidade". Ento, se

pergunta: "Se o produto do trabalho me estranho e se contrape a mim como

poder estranho, a quem pertencer ento? Se a minha prpria atividade no me

pertence, se uma atividade estranha, forada, a quem pertencer portanto?"

(65/518). A resposta apresentada logo em seguida: "o ser estranho a quem

pertence o trabalho e o produto do trabalho, a cujo servio est o trabalho e a cuja

fruio se destina o produto do trabalho, s pode ser o prprio homem" (65-6/518).

Desse modo, "por intermdio do trabalho estranhado, alienado, o

trabalhador gera a relao com este trabalho de um homem estranho ao trabalho

e que se encontra fora dele. A relao do trabalhador com o trabalho gera a

relao do capitalista, do dono do trabalho se se quiser cham-lo assim com o

trabalho. A propriedade privada , pois, o resultado, a conseqncia necessria do

trabalho alienado, da relao exterior do trabalhador com a natureza e consigo

mesmo (67/519-0). Chega-se, portanto, propriedade privada como resultado "da

anlise do conceito de trabalho alienado, ou seja, do homem alienado, do trabalho

estranhado, da vida estranhada, do homem estranhado (67/520).

Pode-se dizer que, de acordo com Marx, o trabalho alienado anterior ao

estranhamento, enquanto sua base, seu sustentculo. Nas passagens acima,

Marx identifica o trabalho alienado como relao exterior do trabalhador com a

natureza e consigo mesmo e, adiante, afirma que a propriedade privada ,

26

primeiramente, fruto do homem alienado e, em seguida, tambm "do homem

tornado estranho". O homem, o trabalho, a vida tornam-se estranhas a partir da

alienao do produto e da atividade. Nesse sentido, a propriedade privada o

produto da atividade humana apartada do homem.

Marx demonstra, assim, que a propriedade privada conseqncia do

trabalho alienado afirmando, no entanto, que "mais tarde essa relao se

transforma em ao recproca" (67/520). Ou seja, "S no derradeiro ponto

culminante do desenvolvimento da propriedade privada evidencia-se novamente

este seu segredo, a saber por um lado, que ela produto do trabalho alienado, e

por outro, que o meio pelo qual o trabalho se aliena, a realizao desta

alienao" (67/520).

Importa salientar que o trabalho alienado uma forma da exteriorizao

da vida se realizar. Da mesma maneira, a propriedade privada uma expresso

da apropriao humana abstrada das determinaes especficas do objeto.

Portanto, "o trabalho alienado resultou para ns em dois elementos que se

condicionam reciprocamente ou que so apenas expresses distintas de uma s e

mesma relao. A apropriao aparece como estranhamento, como alienao e a

alienao como apropriao, o estranhamento como verdadeira naturalizao"

(69/522).

Vale dizer, a apropriao aparece como estranhamento, como alienao,

justamente porque ela no a apropriao do homem de seu corpo inorgnico (da

natureza), mas apropriao privada da natureza e do trabalho, onde se verifica

uma inverso na qual a propriedade privada se apropria do prprio homem. Na

alienao do trabalho, a prpria atividade uma renncia do trabalhador em

benefcio de outro ser, um ser forjado na produo alienada que retm

os atributos objetivos do homem: a propriedade privada. Assim, a apropriao

privada se sobrepe "apropriao genuinamente humana e social" (68/521), e se

converte no motor do desenvolvimento humano.

27

Para Marx de 44 este movimento se torna real atravs da venda. A

compreenso deste ato se desenvolve nos Manuscritos a partir da seguinte

questo colocada por Marx: "Em que consiste a alienao?"

A resposta aparece logo a seguir: "Primeiramente no fato de que o

trabalho exterior ao trabalhador, ou seja, no pertence sua essncia, que,

portanto, no trabalho ele no se afirma mas se nega, no se sente bem, mas

infeliz, no desenvolve uma livre atividade fsica e intelectual, mas mortifica seu

corpo e arruna seu esprito (60/514).

A alienao do trabalho, portanto, se identifica imediatamente com sua

exterioridade em relao ao trabalhador, na qual o trabalho no sua realizao

enquanto homem, mas sua negao, sua runa fsica e espiritual. Por conseguinte,

continua Marx, "O trabalhador s se sente em si fora do trabalho, e no trabalho se

sente fora de si. Ele est em casa quando no trabalha, e quando trabalha no

est em casa. Assim, seu trabalho no voluntrio, mas imposto, trabalho

forado. No constitui, pois, a satisfao de uma necessidade, mas apenas um

meio de satisfazer outras necessidades exteriores ao trabalho. O seu carter

estranho se evidencia nitidamente no fato de se fugir do trabalho como da peste,

quando no existe nenhum constrangimento fsico ou de qualquer outro tipo"

(60/514). Mas essa reao tem, para Marx, uma razo de ser. Ele afirma: "a

exterioridade do trabalho para o trabalhador transparece no fato de que ele no

seu prprio, mas de outro, no fato de que no pertence a si mesmo, mas a outro

(60/514). Ou seja, no fato de que o trabalho alienado sua runa enquanto homem.

Desse modo, "o homem (o trabalhador) s se sente livremente ativo nas

suas funes animais - comer, beber, procriar, quando muito, na habitao e no

adorno, etc. e em suas funes humanas sente-se como animal. O bestial torna-

se humano, e o humano, bestial" (60/514-5).

Como j se sabe, segundo Marx, o homem, mesmo na satisfao de suas

necessidades de sobrevivncia, se reproduz enquanto ser social e no como

simples ser natural, j que a prpria reproduo e manuteno de sua existncia

28

fsica resultado da atividade sensvel que exercida em interatividade. Mas,

quando o trabalho se realiza como exterioridade, o homem (o trabalhador) se volta

para a reproduo da existncia fsica como expresso autntica de sua atividade

livre. No entanto, afirma Marx, "comer, beber, procriar etc. so tambm certamente

genunas funes humanas. Mas, na abstrao na qual se separam dos outros

campos de atividades humanas e se transformam em fim ltimo e nico, elas so

bestiais (61/515).

Assim, a atividade vital do homem, sua essncia concreta enquanto

gnero humano, transforma-se em meio de sua existncia abstrata. Vale dizer, no

trabalho alienado a objetivao aparece como atividade em troca de sobrevivncia

fsica.

A atividade humana que assim se exerce resulta numa objetividade social

especfica que rege todo movimento da produo humana . Tal resultado a

apropriao privada como forma da vida humana se pr.

A anlise da produo realizada pelos economistas inicia-se a partir deste

ponto de seu desenvolvimento, passando a ser abordada como se a apropriao

privada fosse sua gnese e finalidade, ou seja, como se a produo humana s

fosse possvel no interior da propriedade privada.

Em sua crtica economia poltica, Marx denuncia a operao efetuada

por Adam Smith que incorpora a propriedade privada ao homem, colocando,

assim, o homem sob a determinao da propriedade privada. Segundo Marx: "Sob

a aparncia de um reconhecimento do homem, a economia poltica, cujo princpio

o trabalho, muito mais a conseqente realizao da negao do homem, na

medida em que ele prprio no se encontra numa tenso externa com o ser

exterior da propriedade privada, mas sim tornou-se a essncia tensa da

propriedade privada" (80/530-1). A economia poltica converte o trabalho e,

portanto, o homem, em essncia da propriedade privada. Assim, a propriedade

privada, que "antes era ser-exterior-a-si[9], alienao real do homem, converteu-se

agora em ato de alienao, em venda[10] (80/531).

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http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn11#_edn11http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn12#_edn12

Os homens em sua atividade sensvel, portanto, apenas realizam a

atividade da propriedade privada atravs da venda. Sabe-se j que o trabalho

alienado produz a exterioridade propriedade privada, ou que, atravs da alienao

do trabalhador, a propriedade privada produzida enquanto ser-exterior ao

homem. Mas, para os economistas que reconhecem o trabalho como "essncia

subjetiva da riqueza no interior da propriedade privada", a alienao do

trabalhador que produz um ser exterior a si no mais que uma atividade da

prpria propriedade privada em seu movimento de se auto-pr: o ato de

alienao da propriedade privada, venda.

Mas, j se sabe tambm que, segundo Marx, a propriedade privada

produto da atividade humana que se exerce de uma determinada forma, ou melhor,

fruto do trabalho alienado.

Desse modo, a venda o meio atravs do qual os homens se relacionam

e o seu trabalho se produz. Assim, a relao de compra e venda a forma da

efetivao da troca entre os homens.

No interior desse movimento, "O dinheiro, uma vez que possui a

qualidade de comprar tudo, uma vez que possui a qualidade de se apropriar de

todos os objetos, , pois, o objeto por excelncia. A universalidade de sua

qualidade a onipotncia de seu ser; ele vale, pois, como ser onipotente... o

dinheiro o proxeneta entre a necessidade e o objeto, entre a vida e os meios de

vida do homem (119/563).

O dinheiro , portanto, o objetivo do trabalho, na medida em que ele o

verdadeiro poder capaz de possuir todos os objetos. Nessas condies, o trabalho

se torna um meio para conseguir o dinheiro que paga a alienao do trabalhador.

O dinheiro, como objeto dos objetos, com o qual possvel se apropriar

dos demais objetos , pois, o objeto por excelncia. Portanto, a apropriao dos

objetos no aqui apropriao especfica do objeto especfico.

30

Marx desenvolve a seguinte reflexo com a qual torna-se proveitoso

dialogar: "Se as sensaes, paixes etc. do homem no so apenas

determinaes antropolgicas em sentido estrito, mas sim verdadeiras afirmaes

ontolgicas do ser (natureza) e se s se afirmam efetivamente porque seu objeto

sensvel para elas, ento claro, 1) que o modo de sua afirmao no em

absoluto um e o mesmo, mas sim muito mais o modo diverso da afirmao

constitui a peculiaridade de sua existncia, de sua vida; o modo pelo qual o objeto

para elas o modo prprio de seu gozo" (119/562-3).

Mas onde cada apropriao, cada momento de objetivao venda, esta

afirmao se constitui somente pelo dinheiro que capaz de se apropriar dos

objetos independentemente de sua peculiaridade prpria. Assim, o sentido

especfico capaz de se apropriar e elaborar o objeto especfico substitudo pelo

gozo de se apropriar do dinheiro que a condio de possibilidade de apropriao

dos demais objetos. Marx acrescenta em seguida: "2) ali onde a afirmao

sensvel supresso direta do objeto em sua forma independente (comer, beber,

elaborar o objeto, etc...), esta a afirmao do objeto (119/563). Mas a

viabilidade de cada afirmao sensvel s real pela mediao do dinheiro, pois

ele o mediador entre a "necessidade e o objeto, entre a vida e os meios do

homem (119/563).

Na mesma medida que cada objeto perde sua especificidade para o

dinheiro, cada homem s na medida do dinheiro. Nas palavras de Marx: "aquilo

que mediante o dinheiro para mim, o que posso pagar, isso sou eu, o prprio

possuidor do dinheiro (121/564). O dinheiro ento a medida da relao do

homem com os outros homens pois "o que media minha vida, media tambm a

existncia dos outros homens para mim. Isto para mim o outro homem (119-

0/563).

Assim, "se o dinheiro o lao que me liga vida humana, que liga a

sociedade a mim, que me liga com a natureza e com o homem, no o dinheiro o

lao de todos os laos? No pode ele atar e desatar todos os laos? No por

31

isso tambm o meio geral da separao? a verdadeira marca divisria, assim

como o verdadeiro meio de unio, a fora qumica da sociedade (121/565).

Neste contexto, os homens, a natureza e os produtos elaborados pelo

homem no so determinados pela sua natureza prpria, mas pela fora do

dinheiro. Todas as qualidades humanas e naturais so abstradas de sua

determinidade especfica e convertidas na medida do dinheiro. Marx afirma: "O

que eu sou e posso no determinado de modo algum por minha individualidade.

Sou feio, mas posso comprar a mais bela mulher. Portanto, no sou feio, pois o

efeito da feira, sua fora afugentadora, aniquilado pelo dinheiro (121/564).

O dinheiro pode, portanto, negar a determinao real do ser e convert-la

em seu contrrio. No entanto, a fora do dinheiro no apenas a de abstrair as

entificaes objetivas e reais, mas tambm o poder efetivo de inverter sua

posio concreta: "O dinheiro, enquanto meio e capacidade universais exteriores,

no derivados do homem enquanto homem, nem da sociedade enquanto

sociedade - para transformar a representao efetividade e a efetividade uma

mera representao - transforma igualmente as foras essenciais efetivas

humanas e naturais em meras representaes abstratas e, por isto, em

imperfeies, em dolorosas quimeras, assim como, por outro lado, transforma as

imperfeies e quimeras efetivas, as foras essenciais realmente impotentes, que

s existem no imaginrio do indivduo, em foras essenciais e capacidade

efetivas (122-3/566).

Vrios aspectos da citao acima merecem destaque. Primeiramente, o

dinheiro, ao abstrair as determinaes efetivas das entificaes especficas, acaba

por transform-las em seu contrrio, pois ele passa a ser a possibilidade real de

dotar uma individualidade de algo que ela no tem, "de acordo com esta

determinao, o dinheiro a inverso geral das individualidades, que as

transforma em seu contrrio e que adiciona, s suas propriedades, propriedades

contraditrias (123/566).

32

Em segundo lugar, preciso sublinhar que a objetivao humana se

exerce em um movimento objetivo/subjetivo, mas a subjetividade em si mesma

no necessariamente uma fora essencial objetivante, que encontra respaldo

nos seres objetivos para se pr enquanto objeto efetivo. Ao contrrio, ela pode

expressar apenas uma representao imaginria, uma quimera, que no encontra

no mundo social e na natureza efetiva possibilidade de se objetivar. Mas, onde o

dinheiro o verdadeiro poder efetivador, tais representaes, para aquele que tem

dinheiro, transformam-se em verdades efetivas. Marx refere a este respeito a

seguinte situao exemplificadora: "Se tenho vocao para estudar, mas no

tenho dinheiro para isso, no tenho nenhuma vocao, isto nenhuma vocao

efetiva, verdadeira, para estudar. Ao contrrio, se realmente no tenho vocao

alguma para estudar, mas tenho vontade e o dinheiro, tenho para isto uma

vocao efetiva (122/566). Conseqentemente, o dinheiro " a confuso e a troca

gerais de todas as coisas, isto , o mundo invertido, a confuso e a troca de todas

as qualidades naturais e humanas (123/566).

Em suma, o dinheiro - como exterioridade que possui todos os homens e

todas as coisas - inverte as determinaes reais dos seres, transformando os

laos reais e o mundo humano em seu contrrio. De acordo com Marx, portanto,

"O dinheiro no se troca por uma coisa determinada, por um fora essencial

humana, mas sim pela totalidade do mundo objetivo humano e natural 123/566-7).

Vale dizer, o dinheiro atua como "essncia genrica do homem estranhado,

alienando, que se vende. O dinheiro a capacidade alienada da humanidade

(122/565).

Por via de conseqncia, a totalidade de atributos humanos so

transferidos para algo exterior. O prprio destino do homem lhe escapa, pois sua

capacidade de constru-lo est em algo fora de si - no dinheiro. Este aparece

como verdadeira essncia genrica, j que toda possibilidade humana sintetiza-se

em seu poder de se apropriar do mundo humano indeterminadamente, mas tal

essncia se volta contra o homem como um poder estranho que nega sua

determinao real e a transforma em seu contrrio.

33

Entretanto, o poder do dinheiro se instaura a partir de uma determinada

relao dos homens entre si com a objetividade social; como j se sabe, a partir

do trabalho alienado. Este, por sua vez, produz a objetividade propriedade privada

que se reproduz a partir da relao de compra e venda.

Em tais condies, o enriquecimento dos sentidos do homem que trabalha

se perde na indeterminao da propriedade privada, para a qual a especificidade

do objeto ou das foras essenciais humanas no tm importncia, mas apenas o

ganho que se ter em troca deles. Em relao ao preo pago pelo trabalho, Marx

afirma: "salrio e propriedade privada so idnticos, pois o salrio como o produto,

o objeto do trabalho, remunera o prprio trabalho, apenas uma conseqncia

necessria do estranhamento do trabalho, e no salrio, o trabalho tambm no

aparece como fim em si, mas como servo do salrio (68/520).

Em suma, a alienao do trabalho que possibilita a efetivao da

propriedade privada, resulta, ao mesmo tempo, na formao de um circuito de

relaes estranhas no interior do seu movimento: "o salrio uma

conseqncia direta do trabalho estranhado e o trabalho estranhado a causa

direta da propriedade privada,. Conseqentemente, o desaparecimento de um

dos termos arrasta consigo o outro (68/521). O que significa, em ltima anlise,

que este circuito no uma necessidade do trabalho. Veremos adiante que sua

superao, sim, necessria para subsistncia do homem.

Por ora, possvel resgatar desta passagem a concluso de que o

trabalho a causa de sua objetivao: "O trabalho estranhado a causa direta da

propriedade privada". Vale dizer, o trabalho estranhado se tornou estranho atravs

da relao exterior do trabalho com o produtor e, no interior dessa situao, o

processo de objetivao que produz e reproduz a propriedade privada se exerce a

partir de tal estranhamento. Assim, o trabalho estranhado o nome do trabalho

que produz propriedade privada e, no interior desse movimento, o homem (o

trabalhador) se aliena em sua produo ao vender sua exteriorizao de vida

como uma mercadoria exterior a si. Neste contexto, "a exteriorizao da vida, a

34

alienao da vida e sua efetivao, sua desefetivao, uma efetivao

estranha"(90,91/539). Atravs da venda a exteriorizao se expressa como

alienao que, por sua vez, se transforma em estranhamento.

preciso evidenciar que nos Manuscritos a categoria alienao se refere

mais diretamente a uma relao de separao, enquanto o estranhamento traduz

uma relao de antagonismo. Ambas, no entanto, compem um mesmo

movimento que faz com que o trabalho humano produza e se exera a partir da

propriedade privada. Portanto, nem uma nem outra so uma necessidade do

trabalho. Mas o antagonismo, expresso por Marx como estranhamento, surge da

separao, que ele identifica como alienao. Pode-se afirmar ainda que a venda

seria uma categoria mediadora entre a exteriorizao que se realiza como

alienao e o estranhamento, ou seja, a venda transforma a exteriorizao da vida

em alienao da vida, duas expresses contrapostas.

A venda , pois, o ato prprio da propriedade privada se produzir,

reproduzindo o trabalho como atividade exterior ao homem, como atividade

alienada, estranhada.

3) A NECESSIDADE DA PROPRIEDADE PRIVADA NO PROCESSO DE OBJETIVAO DO HOMEM

O homem, ao produzir propriedade privada, se desproduz, ao mesmo

tempo que efetivamente exterioriza sua vida, engendrando o mundo objetivo

humano que lhe estranho. Marx assim se expressa: "A objetivao da essncia

humana, tanto no aspecto terico como no prtico, , pois, necessria tanto para

tornar humano o sentido do homem, como para criar o sentido humano

correspondente riqueza plena da essncia humana e natural" (94/542).

35

Esta objetivao se realiza a partir da propriedade privada e atravs

dela, como afirma Marx, que os sentidos humanos se desenvolvem. Nesse

movimento de constituio do ser do homem em si, a produo se liberta das

determinaes humanas para constituir-se enquanto movimento autnomo,

independente, com determinaes prprias. Neste percurso, "o trabalho aparece

primeiro unicamente como trabalho agrcola para ser reconhecido depois como

trabalho em geral" (83/533). Segundo Marx, a propriedade fundiria a primeira

forma de propriedade privada, oposta, de incio, indstria que seu escravo

liberado.

A progresso deste movimento - da propriedade fundiria indstria

liberada - segue o caminho do estranhamento, ou seja, o percurso onde cada

entificao se ope a si mesma. Neste movimento, o produto da atividade humana

o capital, "no qual se dissolve toda determinidade natural e social do objeto, em

que a propriedade privada perdeu sua qualidade natural e social (portanto, perdeu

todas as iluses polticas e sociais e no mais se mistura a nenhuma situao

aparentemente humana), em que tambm o mesmo capital permanece o mesmo

nos mais diversos modos de existncia natural e social, totalmente indiferente ao

seu contedo real" (73/525).

Em que, portanto, cada objeto especfico se encontra frente ao capital

como uma abstrao na qual seu ser particular se dissolve na indiferena? Nas

consideraes sobre a venda foi possvel afirmar que esta abstrao de toda

determinao real o primeiro passo da inverso total que coloca o homem em

oposio a si mesmo.

Subjetivamente considerado, neste percurso tambm desaparecem "as

iluses romnticas do proprietrio fundirio, sua pretensa importncia social e a

identidade de seus interesses com os da sociedade" (73/525), para transform-lo

"em capitalista inteiramente ordinrio e prosaico" (74/525). Objetivamente, "A

terra enquanto terra, a renda fundiria enquanto renda fundiria perderam sua

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distino de casta e se converteram em capital e interesse mudos, ou melhor, que

s dizem dinheiro" (74/525).

A liberao da propriedade , pois, necessariamente (como tudo que

humano) um processo objetivo/subjetivo. Mas, ao se libertar do homem, a

propriedade j aparece como sujeito do movimento. Este o caminho do estra-

nhamento que os economistas polticos bem conhecem, mas consideram

todas as suas contradies e antagonismos como imanentes ao homem:

medida que convertem em sujeito a propriedade privada em sua figura ativa,

portanto ao mesmo tempo fazem tanto do homem um ser, como do homem como

no-ser um ser, ento a contradio da realidade corresponde perfeitamente

essncia contraditria que fora reconhecida como princpio. A realidade dilacerada

da indstria, muito longe de refut-lo, confirma o prprio princpio dilacerado em si.

Seu princpio justamente o princpio desta dilacerao" (81/531).

Os economistas s conhecem o homem no interior do estranhamento,

pois so, segundo Marx dos Manuscritos, os porta-vozes do movimento da

propriedade privada e tm um papel a desempenhar neste processo. Por um lado

so o "produto da energia real e do movimento da propriedade privada,

um produto da indstria moderna, assim como por outro lado, acelera e enaltece

a energia e o movimento dessa indstria, transforma-a numa fora da conscincia"

(79/530).

Neste sentido, no contexto de liberao da propriedade das amarras da

propriedade da terra, a economia poltica desempenha uma funo de vanguarda.

Mas ela situa propriedade fundiria e indstria como opostas uma outra. No en-

tanto, esclarece Marx: "a distino entre capital e terra, entre lucro e renda da terra,

e a distino entre os dois e o salrio, a indstria, a agricultura, a propriedade

privada imvel e mvel, ainda uma distino histrica, no como diferena

fundada na essncia das coisas" (74/525).

Trata-se, portanto, no de uma verdadeira distino ontolgica, mas de

alteraes histricas de um mesmo ser, que aparece a cada momento em nova

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roupagem. uma oposio que se faz necessria em um determinado momento

do movimento, mas no subsiste enquanto tal. Segundo Marx: "Esta diferena s

subsiste como um tipo especial de trabalho, como uma diferena essencial,

importante, vital, enquanto indstria (vida urbana) se forma em contraposio

propriedade rural (vida aristocrtica feudal) e leva ainda em si mesma o carter

feudal de seu contrrio na forma do monoplio, o grmio, a corporao etc. No

interior de cujas determinaes, o trabalho tem ainda uma aparente significao

social, tem ainda o significado da comunidade real, no progrediu ainda at a

indiferena em relao ao seu contedo, at o pleno ser para si mesmo, ou seja,

at a abstrao de todo outro ser, e por isso no se tornou ainda capital liberado"

(74/525-6).

Portanto, em consonncia com Marx, a progresso do ser da propriedade

privada at sua forma plena exige, a cada passo, no somente a negao de sua

forma anterior como algo a ser superado, mas o estabelecimento de uma oposio

que coloca o velho e o novo enquanto entificaes antagnicas.

Nesta situao de aparente oposio, os economistas se dividem entre os

dois plos e no percebem que este apenas o antagonismo de um nico ser em

seu processo de constituio. Marx conhece o vencedor deste jogo: "Do curso real

do desenvolvimento (...), resulta a vitria necessria do capitalista, ou seja, da

propriedade privada desenvolvida sobre a propriedade indefinida no

desenvolvida, sobre o proprietrio fundirio, da mesma forma que, em geral, o

movimento vence a imobilidade, a baixeza aberta e consciente a baixeza oculta e

inconsciente, a ambio, a avidez de prazer, o egosmo totalmente declarado e

desenfreado do iluminismo, o egosmo da superstio local, prudente, bonacho,

preguioso e fantstico, assim como o dinheiro vence qualquer outra forma de

propriedade privada" (77/528). E o dinheiro, j se sabe, a abstrao de toda

determinao real, a propriedade liberada de toda entificao efetiva.

Em sntese: "A propriedade fundiria, diferentemente do capital, a

propriedade privada, o capital ainda preso a preconceitos locais e polticos, que

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ainda no se livrou inteiramente de seu emaranhado com o mundo para chegar a

si mesmo, o capital ainda no acabado. No decurso de seu desenvolvimento

universal, ele deve alcanar sua expresso abstrata, ou seja, pura" (78/528-9).

Este movimento, portanto, um processo de explicitao da propriedade

privada, ou ainda, do ser do homem que se perdeu em seu objeto e ainda no se

conhece como ser para si.

Entretanto, neste movimento que o homem se constitui, pois "Na

indstria material costumeira (...) temos perante ns as foras essenciais

objetivadas do homem sob a forma de objetos sensveis, estranhos e teis, sob a

forma de estranhamento " (95/542-3).

Atravs da indstria, o homem pode reconhecer-se a si enquanto homem,

enquanto gnero efetivo que produz seu prprio mundo a partir da atividade

genrica. A produo do mundo humano atravs do movimento da propriedade

privada fornece, assim, ao homem a medida efetiva, concreta de sua

potencialidade, pois "tanto o material do trabalho como o homem enquanto sujeito

so, ao mesmo tempo, resultado e ponto de partida do movimento (e no fato de

que tem de ser este ponto de partida reside justamente a necessidade histrica da

propriedade privada)" (89/537).

Ou seja, para o homem iniciar o movimento humano, no qual ele sujeito,

necessrio um processo em que ele se constitua enquanto homem. Este movi-

mento em si se processa como movimento autnomo, independente dele. Da

mesma forma, o material do trabalho enquanto possibilidade objetiva de libertao

do homem se produz tambm neste contexto. Desse modo, em consonncia com

a reflexo marxiana, a propriedade privada a mediao necessria da auto

construo humana, pois "a sociedade em vir-a-ser se encontra, por meio do

movimento da propriedade privada, de sua riqueza e de sua misria - ou de sua

riqueza e de sua misria espiritual e material, - todo o material para esta

formao" (94/542).

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A nova sociedade portanto, no simplesmente a negao da atual,

tambm, num certo sentido, sua continuidade, ou seja, verdadeira superao da

forma de produo vigente sem negar as conquistas reais gestadas a partir do

movimento da propriedade privada.

Em suma, o movimento efetivo das foras essenciais humanas que se

exerce como atividade estranha produz objetividades que aparecem ao homem

como objetos estranhos. Este movimento, como vimos, produz a objetividade

propriedade privada - "expresso material, sensvel da vida humana estranhada.

Seu movimento - a produo e o consumo - a manifestao sensvel do

movimento de toda produo at o presente, isto , da efetivao ou efetividade

do homem" (88/537).

A objetividade propriedade privada manifesta, portanto, a um s tempo, a

apropriao efetiva do mundo sensvel e a desapropriao do homem como seu

produtor. Ela "apenas a expresso sensvel do fato de que o homem se torna

objetivo para si e, ao mesmo tempo, se converte efetivamente em um objeto

estranho e inumano, do fato de que sua exteriorizao de vida a alienao de

sua vida, sua efetivao sua desefetivao, uma efetividade estranha" (90-

1/539).

Numa forma social onde homem e objeto se encontram numa relao de

oposio, onde o homem no se realiza no objeto mas se nega, onde o objeto ao

fazer-se humano nega o homem e converte-o em seu escravo, toda unidade - que

se realiza verdadeiramente na diferena,- so tomadas como oposio, como

antagonismos.

No campo das cincias tal antagonismo se expressa na oposio entre

cincias naturais e cincias humanas. Eis a tematizao de Marx a respeito: "As

cincias naturais desenvolveram uma enorme atividade e se apropriaram de um

material que aumenta sem cessar. A filosofia, no entanto, permaneceu to

estranha para elas como elas para a filosofia" (95/543). Pois, a apropriao e

transformao efetivas do mundo efetivo no so objeto da filosofia, do mesmo

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modo que as cincias naturais se expandem efetivamente na liberdade do

compromisso com o homem: "Quanto mais praticamente a cincia natural, por

meio da indstria, se introduziu na vida humana, transformou-a e preparou a

emancipao humana, tanto mais teve que consumar diretamente a

desumanizao" (95/543).

Esta a prova decisiva da necessidade da propriedade privada para o de-

senvolvimento das foras produtivas: atravs da propriedade privada, a indstria

se torna "a relao histrica efetiva da natureza, e, por isso, da cincia natural

com o homem", mas somente de forma estranhada, pois as cincias naturais

(atravs da efetivao da indstria) so a base da vida humana efetiva em

oposio filosofia. Mas somente a base efetiva da vida humana pode ser a base

real da cincia do homem, j que "supor uma base vida e outra cincia de

antemo uma mentira" (96/543).

Em sntese, toda riqueza produzida pelo trabalho humano aparece como

autnoma e independente do homem e, no campo das cincias, este antagonismo

manifesta-se no est