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Projeto Institucional Edital nº 015/2010/CAPES/DED Fomento ao uso de tecnologias de comunição e informação nos cursos de graduação Ciência, Tecnologia e Sociedade I Módulo Introdução aos estudos CTS Carla Giovana Cabral Guilherme Reis Pereira

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Projeto Institucional

Edital nº 015/2010/CAPES/DEDFomento ao uso de tecnologias de comunição e informação nos cursos de graduação

Ciência, Tecnologia e Sociedade I

Módulo Introdução aos estudos CTS

Carla Giovana CabralGuilherme Reis Pereira

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Carla Giovana CabralGuilherme Reis Pereira

Módulo Introdução aos estudos CTS

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Natal – RNJaneiro/2012

Módulo Introdução aos estudos CTS

Carla Giovana CabralGuilherme Reis Pereira

Ciência, Tecnologia e Sociedade I

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COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOSMarcos Aurélio Felipe

GESTÃO DE PRODUÇÃO DE MATERIAISLuciana Melo de LacerdaRosilene Alves de Paiva

PROJETO GRÁFICOIvana Lima

REVISÃO DE MATERIAISRevisão de Estrutura e LinguagemEugenio Tavares BorgesJanio Gustavo BarbosaJeremias Alves de AraújoKaline Sampaio de AraújoLuciane Almeida Mascarenhas de AndradeRossana Delmar de Lima ArcoverdeThalyta Mabel Nobre Barbosa

Revisão de Língua PortuguesaCamila Maria GomesCristinara Ferreira dos SantosEmanuelle Pereira de Lima DinizJanaina Tomaz CapistranoPriscila Xavier de MacedoRhena Raize Peixoto de LimaRossana Delmar de Lima Aroverde

Revisão das Normas da ABNTVerônica Pinheiro da Silva

EDITORAÇÃO DE MATERIAISCriação e edição de imagensAdauto HarleyAnderson Gomes do NascimentoCarolina Costa de OliveiraDickson de Oliveira TavaresLeonardo dos Santos FeitozaRoberto Luiz Batista de LimaRommel Figueiredo

DiagramaçãoAna Paula ResendeCarolina Aires MayerDavi Jose di Giacomo KoshiyamaElizabeth da Silva FerreiraIvana LimaJosé Antonio Bezerra JuniorRafael Marques Garcia

Módulo matemáticoJoacy Guilherme de A. F. Filho

IMAGENS UTILIZADASAcervo da UFRNwww.depositphotos.comwww.morguefi le.comwww.sxc.huEncyclopædia Britannica, Inc.

FICHA TÉCNICA

Catalogação da publicação na fonte. Bibliotecária Verônica Pinheiro da Silva.

Cabral, Giovana.

Ciência, Tecnologia e Sociedade I / Giovana Cabral e Guilherme Reis Pereira. – Natal:

EDUFRN, 2011.

76 p.: il.

Conteúdo: Aula 1 – A questão da neutralidade da ciência. Aula 2 – Ciência, Tecnologia e

Sociedade: primeiras leituras. Aula 3 – Conversando sobre tecnologia. Aula 4 – Tecnologias

sociais e desenvolvimento.

Aulas 1 e 4 – autoria do professor Guilherme Reis Pereira. Aulas 2 e 3 – autoria da professora

Giovana Cabral.

1. Tecnologia - Ciência. 2. Sociedade. 3. Desenvolvimento. I. Pereira, Guilherme Reis. II. Título.

CDU 62:001.1

C117c

Governo FederalPresidenta da RepúblicaDilma Vana Rousseff

Vice-Presidente da RepúblicaMichel Miguel Elias Temer Lulia

Ministro da EducaçãoAloizio Mercadante Oliva

Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRNReitoraÂngela Maria Paiva Cruz

Vice-ReitoraMaria de Fátima Freire Melo Ximenes

Secretaria de Educação a Distância (SEDIS)

Secretária de Educação a DistânciaMaria Carmem Freire Diógenes Rêgo

Secretária Adjunta de Educação a DistânciaEugênia Maria Dantas

© Copyright 2005. Todos os direitos reservados a Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – EDUFRN.Nenhuma parte deste material pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização expressa do Ministério da Educacão – MEC

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Apresentação Institucional

A Secretaria de Educação a Distância – SEDIS da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, desde 2005, vem atuando como fomentadora, no âmbito local, das Políticas Nacionais de Educação a Distância em parceira com a Secretaria de Educação

a Distância – SEED, o Ministério da Educação – MEC e a Universidade Aberta do Brasil – UAB/CAPES. Duas linhas de atuação têm caracterizado o esforço em EaD desta instituição: a primeira está voltada para a Formação Continuada de Professores do Ensino Básico, sendo implementados cursos de licenciatura e pós-graduação lato e stricto sensu; a segunda volta-se para a Formação de Gestores Públicos, através da oferta de bacharelados e especializações em Administração Pública e Administração Pública Municipal.

Para dar suporte à oferta dos cursos de EaD, a Sedis tem disponibilizado um conjunto de meios didáticos e pedagógicos, dentre os quais se destacam os materiais impressos que são elaborados por disciplinas, utilizando linguagem e projeto gráfi co para atender às necessidades de um aluno que aprende a distância. O conteúdo é elaborado por profi ssionais qualifi cados e que têm experiência relevante na área, com o apoio de uma equipe multidisciplinar. O material impresso é a referência primária para o aluno, sendo indicadas outras mídias, como videoaulas, livros, textos, fi lmes, videoconferências, materiais digitais e interativos e webconferências, que possibilitam ampliar os conteúdos e a interação entre os sujeitos do processo de aprendizagem.

Assim, a UFRN através da SEDIS se integra o grupo de instituições que assumiram o desafi o de contribuir com a formação desse “capital” humano e incorporou a EaD como moda-lidade capaz de superar as barreiras espaciais e políticas que tornaram cada vez mais seleto o acesso à graduação e à pós-graduação no Brasil. No Rio Grande do Norte, a UFRN está presente em polos presenciais de apoio localizados nas mais diferentes regiões, ofertando cursos de graduação, aperfeiçoamento, especialização e mestrado, interiorizando e tornando o Ensino Superior uma realidade que contribui para diminuir as diferenças regionais e o conhecimento uma possibilidade concreta para o desenvolvimento local.

Nesse sentido, este material que você recebe é resultado de um investimento intelectual e econômico assumido por diversas instituições que se comprometeram com a Educação e com a reversão da seletividade do espaço quanto ao acesso e ao consumo do saber E REFLE-TE O COMPROMISSO DA SEDIS/UFRN COM A EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA como modalidade estratégica para a melhoria dos indicadores educacionais no RN e no Brasil.

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA SEDIS/UFRN

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Sumário

Aula 1 A questão da neutralidade da ciência 7

Aula 2 Conversando sobre tecnologia 25

Aula 3 Ciência, Tecnologia e Sociedade: primeiras leituras 39

Aula 4 Tecnologias sociais e desenvolvimento 55

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A questão da neutralidade da ciência

1Aula

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Aula 1 Ciência, Tecnologia e Sociedade I 9

Apresentação

Nesta aula, vamos discutir a ideia de neutralidade da ciência, partindo das origens da ciência moderna, constituída a partir do século XVI. A questão da neutralidade da ciência está no centro do debate entre os estudos sobre as características da ciência e seu

papel na sociedade. A questão principal do debate é se a ciência é ou não infl uenciada pelo contexto sociocultural, pelos valores sociais, interesses políticos e econômicos. Tal discussão é importante porque a visão da ciência neutra tem implicações na escolha dos temas, na política que defi ne as prioridades de pesquisa e infl uencia as relações entre o ambiente científi co e os outros setores da sociedade.

Faremos um breve resgate das raízes da ideia de ciência neutra, autônoma e universal a partir do processo de formação da ciência moderna. É importante sabermos que a questão da neutralidade da ciência está relacionada a um modo de produzir conhecimento sobre os fenômenos da natureza baseado na matemática, que procurou defi nir leis gerais de alcance universal para controlar e transformar a natureza. Esse modo de fazer ciência separa a natureza (objeto) da sociedade (sujeito).

Veremos que a visão dominante de ciência neutra, autônoma e universal está sendo ne-gada pelo próprio avanço do conhecimento, com o surgimento de novas teorias nas ciências naturais que superam as anteriores, e por fatos históricos que estão relacionados ao uso da ciência para fi ns político-militares no desenvolvimento de armas e aplicação no processo de produção capitalista.

Objetivos

Estabelecer uma relação entre o método científi co e a visão dominante de ciência.

Conhecer o debate sobre a questão da neutralidade da ciência, a qual tem recebido muitas críticas por diversos autores ao longo do século XX.

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Determinismo mecanicistaé a ideia de que o mundo estático da matéria é sus-ceptível a ser determinado através de leis físicas e matemáticas.

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A construção da ciência moderna

Desde o século XVI, a ciência moderna foi se formando de acordo com um modo de produzir conhecimento que deveria se diferenciar do conhecimento da época, que estava ligado ao pensamento religioso. Este pensamento justifi cava a ordem feudal e o exercício do poder. De acordo com Hessen (1984, p. 49), as universidades, cujo sistema pedagógico era escolástico fechado, eram o centro das tradições feudais e toda a ciência era baseada na lógica aristotélica. “Tudo que não fosse encontrado em Aristóteles não existia”, diz Hessen (1984, p. 50). As universidades ligadas à Igreja não davam espaço para o desenvolvimento das ciências naturais. Enquanto os fi lósofos buscavam a verdade nos textos, os cientistas naturais buscavam a verdade no mundo, na natureza, inspirados pelos problemas técnicos da nascente burguesia mercantil.

As grandes descobertas desse período, como o heliocentrismo de Copérnico e os estudos de mecânica de Galileu e Newton, convergiam para uma lógica da investigação na qual a mate-mática era um instrumento de análise e também fornecia um modelo de representação da própria estrutura da matéria. Com base na matemática, eram feitas observação e experimentação para se alcançar um conhecimento profundo e rigoroso da natureza. Naquela época, o novo modo de fazer ciência teve a contribuição das refl exões fi losófi cas de Descartes, que também fundou a geometria analítica. Descartes introduziu um racionalismo radical, no qual as ideias eram colhidas independentemente da experiência.

Esse modo de fazer ciência se inicia com ideias claras e simples e não do sensível e dos fatos. Essas ideias são as ideias matemáticas que podem ser comprovadas. Para Galileu, o livro da natureza está inscrito em caracteres geométricos. Desse modo, a matemática vai propiciar um caráter racional para a ciência fazendo assim uma distinção hierárquica entre conhecimento científi co e conhecimento vulgar. Como consequência, para conhecer é preciso quantifi car e o rigor científi co é verifi cado pelo rigor das medições. Eram consideradas boa ciência as hipóteses que pudessem ser comprovadas.

Outra característica do método científi co, que é a base da ciência moderna, é a simplifi -cação da realidade porque a mente humana não consegue compreender a totalidade. Isso quer dizer que para conhecer é preciso dividir e classifi car e depois estabelecer relações sistemáticas. A primeira divisão consiste em separar as leis da natureza das condições iniciais, presumindo que essas leis têm uma ordem e estabilidade, isto é, elas não mudam com o tempo, são inva-riáveis e determinantes. Em função disso, podem-se fazer previsões, controlar e transformar a natureza. A ciência moderna procura saber a causa formal dos fenômenos naturais, ou seja, como funcionam as coisas sem se preocupar com a fi nalidade dessas coisas. Diferente do conhecimento prático, no qual a causa e a intenção convivem.

A ideia do mundo-máquina presente no determinismo mecanicista se tornou a hipótese universal da época moderna e foi um dos pilares da ideia de progresso que surgiu no contexto da ascensão da burguesia e revolução industrial no século XVIII. A capacidade de entender leis da natureza que apresentam a ordem e estabilidade do mundo vai permitir a transformação tecnológica da realidade e do mundo. Como exemplo do avanço da ciência que propiciou a

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O Estado Modernoé entendido como sendo

um conjunto de instituições que procura manter a

ordem e a paz social, bem como promover o desenvol-

vimento socioeconômico.

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transformação da sociedade, podemos citar a descoberta da termodinâmica, que permitiu a introdução da máquina a vapor na produção industrial, aumentando o ritmo do trabalho e impulsionando o sistema capitalista industrial.

Como o determinismo mecanicista das leis de Newton possibilitava dominar e transformar a natureza, era uma forma de conhecimento que teve grande aceitação na época pela sua utilidade e funcionalidade em pleno período de transformação da sociedade industrial. O estudo dos fenô-menos da natureza atendia aos interesses da burguesia de expansão econômica transformando matéria-prima em produtos industrializados. As demandas por certos conhecimentos, colocadas pela indústria da época, eram objeto de estudo dos físicos e matemáticos. Se o contexto histórico estabelece os desafi os para a ciência, então não há neutralidade. A racionalidade da ciência era adequada aos interesses de crescimento da economia capitalista e também contribuiu para a consolidação do Estado Moderno através das aplicações militares do conhecimento.

Da mesma forma que era possível conhecer as leis da natureza, alguns intelectuais acredi-taram que era possível investigar as leis que determinam a forma de organização da sociedade e prever os resultados das ações coletivas.

O método das ciências naturais foi utilizado pelos pesquisadores que queriam entender o funcionamento da sociedade. A aplicação desse método nos estudos sobre a sociedade do século XIX foi chamado de positivismo lógico e foi compartilhado por vários pensadores, entre eles Saint Simon, August Comte, Spencer, Durkheim e outros intelectuais do Círculo de Viena.

Entre muitos cientistas formou-se um consenso de que era possível explicar os fenôme-nos da natureza identifi cando leis invariáveis que não dependiam da ação humana. O método positivo de conhecimento da sociedade procurava identifi car as leis sociais que determinam o funcionamento da sociedade para prever fenômenos e agir visando à ordem e ao progresso.

Desse modo, as ciências utilizavam regras de como produzir conhecimento que passavam uma visão determinista do mundo e um discurso de neutralidade da ciência para justifi cá-la como verdadeira.

Em seu livro, M. Löwy caracteriza o positivismo por meio de três proposições:

1. A sociedade é regida por leis naturais, isto é, leis invariáveis, independentes da vontade e ação humanas; na vida social, reina uma harmonia natural.

2. A sociedade pode, portanto, ser epistemologicamente assimilada à natureza (o que classifi caremos como “naturalismo positivista”) e ser estudada pelos mesmos métodos, démarches e processos empregados pelas ciências da natureza.

3. As ciências da sociedade, assim como as da natureza, devem limitar-se à observação e à explicação causal dos fenômenos, de forma objetiva, neutra, livre de julgamentos de valor ou ideologias, descartando previamente todas as prenoções e preconceitos (LÖWY, 1994, p. 17).

Os pioneiros do positivismo, Condorcet e Saint-Simon, faziam a defesa da neutralidade da ciência em relação às paixões e interesses das classes dominantes da época. Os positivistas se colocavam contra as doutrinas religiosas e o argumento de autoridade da ordem feudal--absolutista. A intenção deles era livrar o conhecimento da infl uência das crenças e da política feudal e absolutista.

Diferente dos pioneiros que atacavam os preconceitos do Antigo Regime, Comte e Durkheim são autores positivistas que assumiram uma posição de defesa da ordem estabe-lecida ao reconhecer a ideia de lei social natural, isto é, a existência de elementos imutáveis

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na sociedade. Eles se tornaram conservadores da ordem estabelecida ao atacar os chamados preconceitos revolucionários do Iluminismo, as ideias socialistas e o marxismo.

A infl uência do positivismo ao analisar a realidade de forma objetiva, baseada na comprova-ção das hipóteses com dados empíricos, livre dos preconceitos, interesses e ideologias continuou no início do século XX com os autores do Círculo de Viena. O Círculo de Viena era um movimento a favor da concepção científi ca do mundo em termos de seu conteúdo lógico, epistemológico e metodológico e contra a teologia e a infl uência da Igreja Católica. Na medida em que os autores positivistas davam um papel de destaque para a ciência no projeto político de uma sociedade em transformação, reconheciam que a ciência podia ter um impacto na sociedade. Então, como fi ca a ideia de neutralidade da ciência? Vamos discutir esse ponto na seção a seguir.

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Você viu que no período de formação da ciência moderna foi preciso estabelecer formas de conhecer que se diferenciavam do conhecimento tradicional da Idade Média. Escreva um texto explicando quais características da ciência moderna permanecem até nossa época. Registre sua refl exão em seu caderno ou em arquivo eletrônico.

A neutralidade da ciência O debate sobre se a ciência deve ser neutra, livre de valores e interesses perpassa todo

o século XX. Alguns autores defendem que a ciência deve ser descomprometida e não pode sofrer infl uência externa dos políticos e da cultura na qual o cientista está imerso, enquanto outros autores argumentam sobre a necessidade de orientar o desenvolvimento da ciência para atender interesses econômicos, políticos e sociais. Mas, antes de entrar nesse debate, você precisa compreender o que se entende por ciência neutra.

A ideia da neutralidade signifi ca que a ciência não é infl uenciada pelo contexto social, político e econômico. Existe uma muralha separando a comunidade científi ca que protege a produção de conhecimento científi co das interferências dos interesses econômicos e políticos. Também não pode haver uma infl uência dos valores da sociedade em que vive o cientista. A imagem clássica do cientista é de um sujeito genial que fi ca em uma torre de marfi m isolado da sociedade. Os dados do objeto da pesquisa precisam ser analisados objetivamente sem serem contaminados pelo olhar do que a sociedade considerar bom ou mau. Uma vez que a ciência não sofreu nenhum tipo de infl uência externa ao ambiente científi co, ela é considerada neutra porque se criou uma barreira virtual entre a ciência e a sociedade. Nessa concepção, a produção de conhecimento científi co tem um desenvolvimento livre e espontâneo em busca da verdade.

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Figura 1 – Imagem clássica do cientista

Apesar de alguns autores, como os humanistas ingleses, defenderem um direcionamento da ciência para atender objetivos sociais e econômicos específi cos, era dominante no início do século XX a visão da ciência neutra. Só para citar alguns nomes, Polanyi, em sua confe-rência Autogoverno na Ciência, se opõe à ideia da ciência dirigida e defende uma comunidade científi ca baseada na concepção de liberdade da ciência e sua desvinculação de interferências políticas e religiosas. Outro autor importante foi Merton que, em 1942, introduziu a ideia de que o cientista deve desempenhar suas atividades de acordo com um conjunto de normas e valores específi cos, entre eles o desinteresse.

É importante lembrar que o mundo estava em plena Segunda Guerra Mundial e sob regi-mes totalitários, como o nazismo, que obrigava os cientistas a fazer pesquisa para produção de armas de destruição em massa. A intenção de Merton era mostrar que o nazismo e a ciência não podiam andar juntos. O autor concebe a comunidade científi ca como um subsistema autônomo em relação à sociedade. Dessa forma, Merton reforça a tradição da sociologia do conhecimento de que a ciência é neutra, isto é, o fenômeno deve ser investigado sem interferência dos valores sociais, interesses e opinião. Para fazer ciência, a razão precisa estar separada da emoção.

Como você pode notar, havia um consenso sobre a liberdade e autonomia da ciência em relação à sociedade que começou no Iluminismo, continuou nos estudos da sociedade, denominado de positivismo, e permanece impregnado nas mentes de muitos cientistas no fi nal do século XX. A valorização do conhecimento científi co baseado na observação dos fenôme-nos para entender a realidade com ela é colocava a ciência acima da sociedade. Os cientistas acreditavam que a acumulação pura e simples de conhecimentos científi co-tecnológicos seria sufi ciente para garantir o progresso econômico e social de todos. Desse modo, essa visão de ciência introduziu a ideia de progresso como um desenvolvimento linear que começa com o avanço do conhecimento que transborda e se espalha para a sociedade, benefi ciando a todos.

A consequência dessa visão de ciência neutra que prega a necessidade de distanciamen-to em relação ao contexto social, político e econômico tornou a ciência um assunto técnico exclusivo dos cientistas. Os demais segmentos e pessoas da sociedade não estariam capaci-tados a discutir sobre quais problemas os cientistas deveriam se debruçar. Isso fez com que a política científi ca, que estabelecia quais eram as prioridades de pesquisa para receber recursos

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públicos, fosse defi nida pelos próprios cientistas. Só que o conhecimento científi co tornou-se importante demais para ser deixado por conta dos cientistas, demasiadamente ocupados em fazer ciência.

Existem vários exemplos na História que comprovam o impacto causado pela ciência na relação entre os países, como exemplo, temos o desenvolvimento de armas como a bomba nuclear. Você pode perceber o impacto da aplicação da ciência na vida das pessoas com a popularização de tecnologias, como o automóvel movido a álcool, celular, internet, micro-ondas etc. Ao longo do século XX, a ciência e a tecnologia assumiram um caráter político, ou seja, ambas são de interesse público por causa das transformações provocadas na vida das pessoas e no desenvolvimento socioeconômico. Mesmo com tantas evidências, existe uma tradição entre os cientistas naturais de manter uma autonomia e liberdade da ciência pura que os fazem resistir às iniciativas do governo de administração e direção do desenvolvimento científi co.

Apresentamos para você como se formou a ideia de neutralidade da ciência a partir da revolução científi ca dos séculos XVI e XVII. Na sequência, vamos discutir como essa ideia é questionada por diversos autores das ciências naturais e sociais.

Faça uma pesquisa na internet sobre algum caso de pesquisa em que houve interferência de valores morais, interesses políticos ou econômicos no desen-volvimento da ciência.

Crítica da neutralidade da ciência

Nesse tópico, vamos apresentar a crítica de alguns autores à ideia de neutralidade da ciência. Veremos como as teorias mais recentes de físicos colocaram em xeque as bases da ciência moderna e também a interpretação de cientistas sociais que destacam a infl uência do momento histórico na produção de conhecimento científi co.

Crítica dos cientistas naturais baseada em novas teorias

A partir da segunda metade do século XX, a visão de ciência neutra, construída a partir das contribuições de Galileu, Newton, Descartes e dos positivistas, é colocada em dúvida em função do avanço do conhecimento de novas teorias que questionam as bases desse modelo de ciência. Essa visão também recebe críticas sociológicas de autores que defendem que

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existe infl uência do contexto sociocultural na produção de conhecimento. Quando teorias que formam as bases da ciência são negadas por outras, ocorre uma situação chamada de revolução científi ca. Se as bases da ciência moderna que deram origem à visão de ciência neutra estão sendo questionadas, consequentemente a objetividade e neutralidade da ciência também caem por terra.

O primeiro abalo no alicerce da ciência está relacionado à teoria da relatividade de Eins-tein. Esse cientista contradisse a lei da física de Newton sobre as ideias de simultaneidade universal e de tempo e espaço absolutos. Einstein distingue a medição de acontecimentos em um mesmo lugar de acontecimentos em lugares distantes. Ele questiona como o observador pode saber o que aconteceu primeiro em lugares diferentes. Mesmo que o observador saiba qual é a velocidade da luz, não é possível medir porque não sabe qual é a simultaneidade dos acontecimentos. Nesse sentido, Einstein conclui que é impossível verifi car a simultaneidade temporal em espaços diferentes. Se não há simultaneidade universal, a ideia de tempo e espaço absoluto de Newton deixa de existir. As leis da física se baseiam em medições locais, não têm a abrangência universal.

O segundo abalo no alicerce da ciência é o princípio da incerteza de Heisenberg e Bohr, na área da mecânica quântica. Eles demonstram-nos que o conhecimento que temos da realidade é, inevitavelmente, afetado pela nossa interferência no objeto. O que conhecemos do real é a alteração que provocamos nele, não é o real em si. Um objeto que sai de um processo de medição é diferente de como entrou. Portanto, a mecânica quântica demonstra a interferência estrutural do sujeito no objeto. Se o rigor do conhecimento é limitado, as leis da física não são mais que probabilidades. Por outro lado, a hipótese do determinismo mecanicista é inviável porque a totalidade do real não é a soma das partes que dividimos para observar e medir.

O terceiro abalo no alicerce da ciência é o teorema da incompletude de Gödel, que ques-tiona o rigor da matemática. O resultado puramente matemático desse teorema é que prova a afi rmação de que nenhuma teoria formal pode ser, simultaneamente, poderosa, consistente e completa. Diz Santos (1988; p. 55-6): “Se as leis da natureza fundamentam o seu rigor no rigor das formalizações matemáticas em que se expressam, as investigações de Gödel vêm demonstrar que o rigor da matemática carece ele próprio de fundamento.”

Crítica dos cientistas sociais Alguns críticos da ideia de neutralidade da ciência adotam a sociedade como foco da

análise para afi rmar a não neutralidade da ciência e da tecnologia. Boris Hessen, em “As raízes sociais e econômicas do Principia de Newton”, descreve os problemas técnicos colocados pela navegação marítima, pelas indústrias de mineração, metalúrgica e da guerra que demandavam conhecimento de mecânica.

Os problemas técnicos da navegação impulsionaram estudos de hidrostática, aerostática e ótica. O problema da trajetória da bala inspirou Galileu a estudar o movimento dos corpos, resistência e velocidade, a queda livre dos corpos. O recuo do canhão levou ao estudo da lei de ação e reação. Estes são exemplos de temas que a ciência procurou explicar que foram deter-minados pelas necessidades da nascente burguesia, pelos interesses econômicos e políticos. A principal obra de Newton, Principia, sistematizou todos os problemas físicos da mecânica da época numa linguagem matemática abstrata sem indicar as fontes de inspiração.

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Valores sociaisSegundo Lacey (1999, p. 124), valor social é uma característica muito importante para a socie-dade, como por exemplo, o respeito aos direitos humanos. Valor cognitivo é uma característica que é valorizada em teorias (hipóteses); é uma carac-terística de teorias aceitas como “boas”.

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Além de Boris Hessen, que descreve o desenvolvimento da física a partir dos interesses econômicos e políticos, outros autores construtivistas mostram, com base em estudos de caso, que há infl uência das relações sociais e econômicas no desenvolvimento da ciência e tecnologia (C&T). Esses autores entendem que a C&T é uma construção social, ou seja, o desenvolvimento científi co e tecnológico é infl uenciado pela política, economia e cultura e também produz efeitos sociais e políticos.

O desenvolvimento tecnológico envolve confl ito e negociação entre grupos sociais com concepções diferentes acerca dos problemas e soluções. O desenho dos artefatos tecnológicos é defi nido pelas correlações de força entre os diferentes grupos sociais; portanto, não é um processo determinista. Um dos exemplos usados pelos construtivistas Wiebe Bijker e Trevor Pinch de como os usuários interferem no desenho do artefato é a história da bicicleta, que inicialmente tinha a roda dianteira grande e com tração para alcançar velocidade que servia como equipamento esportivo, mas não era adequada como meio de transporte devido à instabi-lidade. O desenho da bicicleta gradativamente foi se adequando para atender melhor o usuário.

Figura 2 – Evolução da bicicleta

Entre os críticos da neutralidade da ciência, o fi lósofo Lacey faz uma discussão com foco na diferenciação entre valores cognitivos e valores sociais. Como já dissemos ante-riormente, as características da metodologia científi ca devem seguir o interesse de entender os fenômenos. As prioridades e direção da pesquisa não devem ser moldadas por valores sociais particulares, isto é, devem ser neutras em relação a eles. Porém, para Lacey, a ciência moderna é conduzida de acordo com estratégias materialistas que valorizam o controle dos objetivos naturais. Só que no momento da aplicação fi ca evidente que a ciência não está livre de valores particulares. Para exemplifi car, o autor cita o caso das sementes transgênicas cujas pesquisas seguem uma estratégia materialista, deixando de lado estratégias alternativas, como a agroecologia, que poderia ser aplicada pelos movimentos sociais rurais nas comunidades.

Para você entender melhor os confl itos de valores que podem ocorrer com o avanço da ciência, vamos tomar como exemplo o caso da pesquisa em genética. A polêmica em torno da pesquisa de manipulação genética com embrião humano deu origem a uma discussão sobre a ética na ciência e os limites do desenvolvimento científi co. A possibilidade de clonagem humana

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“Minha concepção de vida faz com que eu prefi ra a destruição de um embrião à sua instrumentalização como fábrica de órgãos por um projeto de pesquisa.” (Arnold Munnich, chefe do serviço de genética do hospital Necker, em Paris)

“Polêmica, que polêmica? Todos os especialistas estão de acordo.” (François Thépot, então diretor adjunto da Agência de Biomedicina da França, 2008).

“Temos receio que seja um golpe contra a continuidade das pesquisas.” (Diretora da Agência de Biomedicina demitida pelo governo de Nicolas Sarkosy)

é vista como um risco, principalmente, pelas pessoas ligadas à religião. Mas, por outro lado, os resultados da pesquisa podem contribuir para evitar doenças transmitidas de pais para fi lhos, como o câncer. Veja algumas opiniões a respeito dessa questão:

Na década de 1970, vários autores passaram a questionar a visão positiva e neutra da ciência e denunciavam os impactos negativos que podiam ser observados no uso da ciência e tecnologia (C&T). Havia vários casos que evidenciavam os efeitos nocivos da ciência. Só para citar alguns exemplos, os trabalhadores estavam perdendo o emprego por conta da introdução de novas tecnologias, o pesticida DDT provocava efeitos prejudiciais à saúde humana e o uso da C&T na Guerra do Vietnã com as bombas de Napalm.

Nesse sentido, a degradação ambiental, o desemprego tecnológico e o uso destrutivo da C&T vão contribuir para a desconstrução da ciência neutra e conter a euforia sobre os resulta-dos do avanço científi co e tecnológico. Vários autores afi rmam que a ciência carrega valores e não está isolada da sociedade e muito menos é neutra e livre de infl uências externas ao meio acadêmico. Nesse período, se fortalece o argumento de que a ciência precisa ser controlada e dirigida para solucionar problemas relevantes da sociedade.

Já os críticos mais radicais da neutralidade, como os marxistas Coriat e Gorz, vão defen-der a tese de que a C&T é gerada sob a égide da sociedade capitalista e, por isso, é construída de forma que seja útil e funcional para aquela sociedade, isto é, ela faz parte da engrenagem do sistema capitalista. A ciência e tecnologia estão comprometidas com a manutenção da sociedade onde foi produzida e, por isso, não seria funcional e nem adequada em um sistema social muito diferente, como se imaginava o socialismo. Também não poderia ser utilizada para a construção de uma nova sociedade em uma direção diferente daquela que orientou o seu desenvolvimento.

Os marxistas argumentam que as ciências e as técnicas de produção trazem a marca das relações de produção e da divisão de trabalho capitalistas na sua orientação e especialização. Para fi car mais claro para você, vamos exemplifi car com o caso do socialismo da União Sovi-ética. Coriat afi rma que um dos principais motivos da falência do socialismo soviético foi ter copiado o modelo de organização de produção capitalista. Foi mantida a hierarquia na divisão do trabalho e a burocracia assumiu o papel que era da burguesia no capitalismo.

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Assim, pode-se dizer que C&T não existe historicamente de forma abstrata como é en-sinada nos diversos cursos. A C&T tem características de sua época e da sociedade onde se desenvolve. O sucesso do cientista está ligado à utilidade do conhecimento para alcançar os objetivos da sociedade. No caso da sociedade capitalista, esse objetivo é promover a inovação para gerar mais riqueza para as grandes empresas. Desde os tempos de Galileu e Newton, a C&T tem sido predominantemente uma ferramenta utilizada na sociedade capitalista para dominar a natureza e explorar os desprovidos de meios de produção. Por isso, por mais que a C&T tenha se desenvolvido, isso não implicou em desenvolvimento social e nem em uma relação sustentável com a natureza.

Com base no que foi apresentado anteriormente, escreva um texto argumentan-do a favor ou contra a neutralidade da ciência, respondendo à seguinte questão: Para você, a busca de conhecimento é independente de interesses pessoais, econômicos e políticos ou procura atender objetivos específi cos?

Nova concepção da ciênciaA ideia da neutralidade da ciência que se desenvolve a partir de uma lógica interna, da

curiosidade do cientista desprovido de interesse que se isola no laboratório, passou a con-viver com a visão de que a ciência é condicionada pelo contexto social, pelas circunstâncias do momento histórico e orientada por objetivos de desenvolvimento econômico e social. A ciência também deixa de ser vista como ponto de partida para se alcançar desenvolvimento tecnológico e passa a atender as necessidades dos usuários. Dito de outra forma, não é mais a ciência que empurra a tecnologia de forma linear, mas o mercado e as necessidades dos usuários que puxam o desenvolvimento científi co.

Essa mudança de entendimento sobre como é produzido o conhecimento científi co e, principalmente, sobre os impactos benéfi cos ou maléfi cos que podem ser gerados, provocou uma mudança da política de C&T, na qual as agências de fi nanciamento passam a defi nir temas e áreas do conhecimento que recebem recursos visando o desenvolvimento científi co e tecnológico em áreas consideradas mais importantes para o país. Nesse novo contexto do fi nal do século XX, os cientistas continuam a ser os principais atores da política de C&T, mas tiveram que dividir espaço com os gestores públicos, os empresários e os políticos na defi nição das prioridades.

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Aula 1 Ciência, Tecnologia e Sociedade I20

Política científi ca e tecnológicaAgora vamos mostrar como essa mudança da política ocorreu na prática usando a ex-

periência do governo brasileiro.No caso do Brasil, foram elaborados os Planos Básicos de Desenvolvimento Científi co e

Tecnológico (PBDCT) a partir da década de 1970, visando à geração e transferência de conhe-cimento científi co e tecnológico para diversos setores produtivos nacionais, principalmente investir nas áreas de energia, agropecuária, transporte, telecomunicações e defesa. Em função da crise do petróleo, o País precisava descobrir mais reservas para diminuir a dependência de importação. Além de fi nanciar pesquisa de fontes alternativas de energia como biomassa, geração de energia hidrelétrica e o Programa Nacional do Álcool.

No fi nal da década de 1990, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) fi nanciou uma pesquisa científi ca de sequenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, causadora da doença chamada amarelinho que ocorre na produção de laranja. A pesquisa foi realizada por uma rede de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento. O projeto foi reconhecido por duas das mais conceituadas revistas científi cas: a americana Science e a inglesa Nature publicaram um artigo sobre a pesquisa.

Figura 3 – Imagem dos genes da bactéria Xylella fastidiosa

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Leituras complementares

Aula 1 Ciência, Tecnologia e Sociedade I 21

Considerações fi naisQuando se faz uma crítica à herança da ciência moderna, não podemos esquecer os

benefícios propiciados pelo seu avanço como a melhoria das condições de vida. Quero dizer que devemos reconhecer que a ciência desempenhou um papel importante na transformação da sociedade e na geração de riqueza. Através dela, também passamos a conhecer melhor o mundo em que vivemos. A lógica de conhecer para poder dominar os recursos naturais foi útil para um estágio de desenvolvimento, mas teve como consequência uma relação predatória com o meio ambiente. Nos últimos anos, a humanidade tem sido afetada pelos desastres na-turais que são provocados pela própria ação do homem. Ademais, a visão determinista e de neutralidade da ciência mascara a utilização do conhecimento pelo capital e difi culta projetar estratégias alternativas de desenvolvimento.

PIZANI, Marilia. Tecnologia e Política em Marcuse. Revista Cult, ed. 127, mar. 2010. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/tecnologia-e-politica-em-marcuse/>. Acesso em: 23 fev. 2011.

A autora faz uma análise da crítica de Marcuse à neutralidade da ciência presente no livro Ideologia da sociedade industrial. Segundo Pizani, Marcuse argumenta sobre o uso da tecno-logia como forma de controle e coesão social que começa com a introdução das máquinas nas fábricas e se estende para a vida social.

A ILHA. Direção de Michael Bay. EUA: DreamWorks Distribution LLC, 2005. O fi lme retrata uma situação em que cientistas e empresários inescrupulosos produzem

clones humanos. O fi lme é um bom exemplo para se pensar os objetivos da ciência e os limites éticos para seu desenvolvimento. Veja detalhes no endereço: <http://www.planetaeducacao.com.br/portal/artigo.asp?artigo=472>.

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Resumo

Aula 1 Ciência, Tecnologia e Sociedade I22

Nesta aula, você aprendeu que a ideia de neutralidade da ciência tem sua origem no modo de produzir conhecimento científi co que procurava identifi car as leis que determinam o mundo, o que permitia que a sociedade pudesse controlar e transformar a natureza. De acordo com esse objetivo da ciência de conhecer as leis de funcionamento da natureza para poder dominar os fenômenos naturais, as ciências naturais foram úteis para o desenvolvimento da sociedade industrial. Exemplifi camos como os estudos da mecânica foram importantes para o desenvolvimento da navegação e da indústria do sistema capitalista. Entretanto, a ciência moderna deixou como herança uma forma de conceber o mundo na qual a sociedade se vê separada da natureza e o progresso signifi ca controlar e transformar a natureza. Também foi passada uma visão determinista, na qual a evolução social e econômica da sociedade é resultado do desenvolvimento científi co e tecnológico. Mostramos que a ciência não é neutra, isto é, ela é infl uenciada pelos interesses econômicos, políticos e valores de um determinado período.

AutoavaliaçãoVocê concorda ou discorda com a ideia de neutralidade da ciência?

Explique as implicações da visão de neutralidade da ciência na relação entre ciên-cia e sociedade.

Discuta a relação entre natureza e sociedade com base nos desastres naturais, identifi cando a forma de ocupação nas cidades.

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Anotações

Aula 1 Ciência, Tecnologia e Sociedade I 23

ReferênciasBIJKER, W. et al. The Social construction of Technological systems. Cambridge: MITPress, 1990.

DAGNINO, Renato. Neutralidade da ciência e determinismo tecnológico: um debate sobre a tecnociência. Campinas: Editora Unicamp, 2008.

HESSEN, Boris. Raízes Sociais e Econômicas do Principia de Newton. Revista Brasileira do Ensino de Física, v. 6, nº1, pp.37 - 55, 1984. Disponível em: <http://www.sbfi sica.org.br/rbef/pdf/vol06a06.pdf>. Acesso em: 23 fev. 2011.

LACEY, H. Is science value-free? values and Scientifi c Understanding. Londres: Routledge, 1999.

LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positi-vismo na sociologia do conhecimento, 5ª ed. revista. São Paulo, Cortez, 1994.

OLIVEIRA, Marcos. Sobre o Signifi cado Político do Positivismo Lógico. Revista Espaço Acadêmico, ano II, n. 13, jun. 2002.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós--moderna. Estud. av. [online]., v. 2, n. 2, p. 46-71, 1988. ISSN 0103-4014.

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Anotações

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Conversando sobre tecnologia

2Aula

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Aula 2 Ciência, Tecnologia e Sociedade I 27

Apresentação

Nós todos temos um entendimento do que seja tecnologia. Esse entendimento pode se originar das nossas vivências e experiências cotidianas, do que assistimos na televisão, lemos na internet, em livros, de aulas que tivemos na escola e na própria universidade.

O que vamos discutir nesta aula é o quanto do que entendemos por tecnologia está impregnado de uma visão restrita e como essa visão restrita limita um entendimento ampliado e crítico. O que estamos tentando dizer? No senso comum, na mídia, e também teoricamente, há uma visão de tecnologia que a considera apenas ciência aplicada. Isso deixa de lado todo o conhecimento tecnológico que o homem construiu ao longo de sua existência, da história da humanidade e leva-nos a acreditar que a tecnologia e o seu avanço são as responsáveis pelo bem-estar e a qualidade de vida das pessoas. É sempre assim?

Refl etir sobre esse assunto implica conhecer as imagens mais correntes sobre tecnolo-gia – intelectualista e instrumentalista – e um conceito que desconstrói essa ideia, atraindo as dimensões social, ambiental, ética para ampliar o nosso entendimento. Esse conceito é o de tecnologia como prática cultural ou prática tecnológica.

Com isso, a exemplo do que discutimos no texto anterior sobre a não-neutralidade da ciência, vamos tentar compreender que a tecnologia não é neutra: há interesses, crenças, valores envolvidos; há relações de poder, um tempo, uma história.

Essas questões permeiam os objetivos desta aula. Vamos conhecê-los?

ObjetivosCompreender que a tecnologia não é neutra e está permeada por interesses, crenças, valores.

Conceituar prática tecnológica.

Refl etir sobre a relação entre tecnologia e desenvolvimento social e humano.

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A tecnologia nossa de cada diaVamos começar a nossa aula com uma pesquisa. Vamos lá!

Escolha um site de busca e coloque a palavra-chave “tecnologia”. O que você encontrou? Liste os três primeiros links e faça um resumo (até 30 linhas) do que eles contêm sobre tecnologia. Vamos discutir os seus achados em sala de aula.

Em sua pesquisa, você encontrou uma série de textos e fi guras representando a tecnolo-gia. De uma forma geral, elas simbolizam a visão preponderante, que é a de perceber/entender a tecnologia como aplicação da ciência. Uma vez que se tenha um conhecimento científi co e este seja aplicado, temos uma tecnologia. Essa ideia se concretiza especialmente em artefatos.

A visão de tecnologia como aplicação da ciência é restrita e traz vários problemas que limitam nossa visão de mundo, o que se refl ete no modo como pensamos e agimos em socie-dade, seja no âmbito da esfera privada (nossa casa, família, amigos, companheiro/a), seja na esfera pública (trabalho, cidade, país, etc.). Vamos discutir alguns desses problemas.

Em primeiro lugar, pensar em tecnologia apenas como artefato leva-nos a não considerar a ideia de tecnologia como um conhecimento que não está necessariamente relacionado à ciência na forma como a conhecemos hoje. Ciência pode ter vários signifi cados. Aqui, simplifi cando, estamos considerando-a como o resultado do trabalho e da decisão dos cientistas, não es-quecendo as relações que empreendem com outros grupos e os contextos social e histórico em que se realizam. Automóveis, telefones celulares, computadores, relógios, televisores são exemplos de artefatos. Em sua pesquisa na internet, você encontrou vários deles, não é mesmo? Pense no signifi cado desses artefatos em sua vida, em seu cotidiano.

Outro problema é que ao entendermos tecnologia apenas como um resultado da aplicação da ciência mostramos certo desprezo por uma análise singular do que é tecnologia, ou seja, a vemos como redutível à ciência.

Em outro sentido, a tecnologia como aplicação da ciência está relacionada ao chamado modelo linear de desenvolvimento, que tem infl uenciado sobremaneira as políticas públicas em ciência e tecnologia de vários países, inclusive o Brasil, nos últimos tempos. Nesse mode-lo, tudo começa com a pesquisa científi ca, que depois é aplicada. Convertida em tecnologia, levaria ao desenvolvimento científi co e tecnológico que, por sua vez, geraria desenvolvimento econômico, e a partir dele, desenvolvimento social e humano. Esse é um modelo que embute a ideia de determinismo tecnológico. Em poucas palavras, que a ciência e a tecnologia de-terminariam a vida em sociedade, trariam bem-estar e qualidade de vida, necessariamente.

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Veja que apresentamos duas importantes questões: pensar a tecnologia apenas como artefato e aplicação da ciência (reducionismo); entendê-la como determinante da vida em sociedade (determinismo). Vamos discutir essas questões?

O fenômeno técnico A cultura distinguiu o homem de outros animais e uma série de atributos seus o levou a

desenvolver ferramentas técnicas. Pedras, paus e ossos empunhados habilmente foram usados pelos hominídeos para caçar ou se defender. Logo, essas pedras, paus e ossos transformaram--se em lanças, facas e machados, suprindo de certa maneira no homem a falta de garras, presentes em predadores melhor dotados anatomicamente (PALACIOS et al, 2001, p. 35). O homem desenvolveu uma habilidade técnica (BAZZO; PEREIRA, 2009, p. 66).

Assim, essa habilidade técnica dotou a pedra de outro sentido. Podemos dizer que deu ao homem mais poder e, a grosso modo, ele passou de “caça” a “caçador”. A habilidade téc-nica do homem evoluiu: ele dominou o fogo, aprendeu a cozinhar os alimentos, domesticar os animais, construir casas, fundir metais, etc. Isso não se deu sem intervenções no meio.

Segundo Palacios et al (2009, p. 36), a técnica transforma o meio e/ou recria as condições da existência humana: (1) ela permitiu a transformação do meio em que os seres humanos desenvolveram sua vida, mudou as formas de vida humana; (2) também criou obras para durar longo tempo, prolongou a vida das pessoas, por exemplo.

Em certo sentido, a existência humana é um produto técnico, tanto quanto os próprios artefatos que a fazem possível. Não se pode pensar, portanto, em separar a técnica da essência do ser humano. Seguramente, a técnica é uma das produções mais características do homem, mas também é certo que os seres humanos são, sem dúvida, o produto mais singular da técnica. (PALACIOS et al, 2009, p. 36).

Em cada época há um tipo de intervenção humana em especial. Em outras palavras, desde que percebeu suas habilidades, o homem vem modifi cando o meio em que vive. Essa não é uma questão simples e requer uma permanente contextualização.

Se no Paleolítico, por exemplo, o homem vivia em poucos grupos na terra e os mate-riais que utilizava para acender uma fogueira provocavam pequeno impacto sobre o meio, isso mudou radicalmente ao longo da história da humanidade: fl orestas foram devastadas, rios desviados ou cobertos por cidades, vilarejos inundados por barragens e hidrelétricas, praias e morros invadidos por construções ilegais e clandestinas. E o que isso tem a ver com tecnologia? Bombas nucleares mataram milhares de pessoas, navios derramaram oceanos de petróleo no mar, pesticidas contaminam fauna, fl ora e seres humanos, reatores de usinas nucleares explodiram; contas bancárias e bases de dados são invadidas por crackers; nossa vida é controlada por celulares e vigiada por câmeras a que se atribui segurança. Vamos per-guntar mais uma vez: e o que isso tem a ver com tecnologia?

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Aula 2 Ciência, Tecnologia e Sociedade I 31

As imagens da tecnologia Nós vimos no início deste texto que uma das visões mais usuais sobre tecnologia defi ne-a

como aplicação da ciência. Já pontuamos que isso traz uma série de problemas e restringe nosso entendimento, especialmente se buscamos uma visão mais ampla da relação entre ciência, tecnologia e sociedade. Vamos discutir um pouco esse conceito usual. Em primeiro lugar, vejamos este trecho de Palacios et al (2001, p. 37).

“A tecnologia poderia ser considerada como o conjunto de procedimentos que permitem a aplicação dos conhecimentos próprios das Ciências Naturais à pro-dução industrial, fi cando a técnica limitada ao momento anterior do uso dos conhecimentos científi cos como base do desenvolvimento industrial.”1

1 Tradução livre da autora, em julho de 2011.

Ele nos traz diversas questões para discutirmos. Tratemos de pelo menos duas:

1) A dependência da tecnologia de outros saberes;

2) A utilidade da tecnologia.

Quando consideramos a tecnologia como aplicação da ciência, esta, na sua forma tra-dicional, exerce enorme infl uência nos produtos e processos resultantes. Isso quer dizer que o caráter de atividade pretensamente neutra, autônoma e universal da ciência se refl ete na tecnologia, que é entendida apenas como a sua aplicação. Em outras palavras, ciência seria o conhecimento teórico; tecnologia, o conhecimento prático.

Uma tradição acadêmica que amparou e respaldou essas ideias foi a que se originou do Positivismo Lógico. Na opinião dos positivistas, segundo Palacios et al (2001, p. 38), as teorias científi cas explicavam o mundo por meio de enunciados objetivos, racionais e livres de valores externos à ciência.

Na mesma linha, o conhecimento científi co era visto como um processo progressivo e acumulativo, que substituía a ciência anterior. Essas teorias poderiam ser aplicadas em alguns casos, já a ciência pura não tinha qualquer relação com a tecnologia.

Positivismo Lógico é uma fi losofi a oriunda das discussões de um grupo de pensadores que se reunia no chamado Círculo de Viena, no início do século 20. Eles foram responsáveis por uma re-tomada da ideia de ciência pretensamente neutra e autônoma em relação à sociedade.

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Aula 2 Ciência, Tecnologia e Sociedade I32

Tomas Kuhn criticou essa ideia oferecendo como alternativa a teoria das revolu-ções científi cas. Segundo essa teoria, a ciência evoluiu por rupturas: há períodos normais (ou estáveis) e momentos de “anomalias”, que dão origem às revolu-ções científi cas. São construídas, então, novas teorias, que apresentam melhores resultados para um determinado problema, constituindo um novo paradigma.

Assim, uma consequência marcante dessa concepção é que, ao se conferir um estatuto de neutralidade à ciência, este é diretamente transferido à tecnologia (BAZZO; PEREIRA; VON LINSINGEN, 2008, p. 182). Como vimos, conferir neutralidade à tecnologia a destitui de re-lações com a sociedade, seja em sua produção ou aplicação. Essa visão constrói a imagem intelectualista de tecnologia. E a relação entre tecnologia e utilidade?

Há quem considere, como Bazzo, Pereira e von Linsingen (2008, p. 182), que a percepção do caráter utilitarista da tecnologia é a mais presente no meio técnico, ou seja, nos lugares em que circulam profi ssionais como os/as engenheiros/as. Acreditamos que fora desse meio, no chamado senso comum, também é habitual que se veja a tecnologia como algo que auxilia, melhora a vida das pessoas, torna certas tarefas mais fáceis, traz bem-estar. O que você pensa sobre isso? Já parou para pensar nessas questões?

Vista de uma maneira utilitarista, a tecnologia acaba restringindo-se a uma analogia com ferramentas e produção de bens e serviços oriundos da aplicação de conhecimentos científi cos. Esta é a visão instrumentalista da tecnologia. Também temos aqui o problema da transferência do estatuto de pretensa neutralidade da ciência. Não é raro que ouçamos que a tecnologia não é boa nem ruim, e que os prejuízos são advindos do seu uso.

Quer dizer, então, que os usuários é que são responsáveis por seus benefícios ou male-fícios? E quanto a quem projetou? A empresa ou indústria que produziu e comercializou não teriam nenhuma responsabilidade?

Isso é bastante problemático. Vejamos o que dizem Bazzo, Pereira e von Linsingen (2008, p. 183).

“Segundo essa visão, a universalidade associada à tecnologia avaliza a trans-ferência de tecnologia entre sociedades independentes e, muitas vezes, em detrimento de suas especifi cidades culturais. Por conta disso, o ensino das técnicas, a princípio, pode ser vinculado à ética da responsabilidade social ape-nas em sentido restrito. Por extensão, permite-se ao engenheiro a isenção da responsabilidade pública do que produz e de seus efeitos”.

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Os/As engenheiros/as e outros/as profi ssionais das áreas científi cas e tecnológicas estão realmente isentos de eventuais “efeitos colaterais” de seus projetos, cálculos, processos, produtos e serviços? O que sabem sobre assumir uma postura ética?

Uma postura ética e comprometida com uma sociedade mais igualitária e justa requer a superação de entendimentos de tecnologia que passam pelas visões intelectualista e instru-mentalista. Isso pede que se veja a tecnologia não apenas como artefato, mas que se tenha em conta seu caráter sistêmico.

O conceito de prática tecnológica Ao desconstruir o conceito de tecnologia apenas como ciência aplicada, podemos

defi ni-la também como uma série de sistemas que são projetados para realizar alguma função, instrumentos materiais e tecnologias de caráter organizativo (PALACIOS et al, 2001, p. 42).

“O tecnológico não é somente o que transforma e constrói a realidade física, mas também aquilo que transforma e constrói a realidade social.” (PALACIOS et al, 2001, p. 42)

Na concepção de Radder (1996 apud PALACIOS et al, 2001, p. 42), há cinco caracterís-ticas que distinguem a tecnologia. Vejamos o quadro a seguir (Quadro 1).

Características da tecnologia

RealizabilidadeConfere concretude à tecnologia, ou seja, a tecnologia tem que estar realizada; perguntar “onde”, “quando”, “por quem”, “para quê” e “por quê” são fundamentais para estudá-la.

Caráter sistêmico

Uma tecnologia não se resume a artefatos. Qualquer tecnologia está inserida em um ambiente sociotécnico que a viabiliza. Por exemplo, um automóvel é uma tecnologia que necessita de uma série de elementos para funcionar – rodovias, postos de abastecimento, refi narias, gasodutos, publicidade, consumidores, etc.

Heterogeneidade Tecnologias são constituídas de componentes que não são iguais, têm diferentes tipos e procedência.

Relação com a ciência

Há uma ampla e diversa relação entre a ciência e a tecnologia. Além do conhecimento científi co, há o “saber como fazer”, materializado em habilidades, técnicas teóricas, observacionais e experimentais, assim como resultados científi cos objetivados em produtos, materiais e instrumentos.

Divisão do trabalhoA realização de uma tecnologia pressupõe uma dependência entre os agentes envolvidos, não um funcionamento incondicional. Há uma divisão do trabalho e diferentes relações de poder entre quem desenvolve, produz, opera e usa a tecnologia.

Quadro 1 – Características da tecnologia

Fonte: Palacios et al (2001, p. 42-43), com base em Radder (1995). Traduzido e ligeiramente modifi cado pela autora.

A considerar o caráter sistêmico, a interpretação de tecnologia como prática tecnológica é um dos conceitos mais interessantes e contributivos para desconstruir a ideia reducionista de tecnologia como ciência aplicada.

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Definições de tecnologia e prática tecnológica

ASPECTO CULTURALObjetivos, valores e códigos éticos; crença no progresso consciência e criatividade

ASPECTO ORGANIZACIONALAtividade econômica e industrial; atividade profissional; usuários e

consumidores; sindicatos

ASPECTO TÉCNICOConhecimento, destreza e técnica; ferramentas, máquinas, químicos,

pessoal, recursos e resíduos

Significado geral de tecnologia

Significado geral de tecnologia

Aula 2 Ciência, Tecnologia e Sociedade I34

O conceito de prática tecnológica foi proposto por Arnold Pacey na década de 1980. Ele expressa diferentes aspectos envolvidos na tecnologia: o organizacional, o técnico e o cultural. Antes de discutirmos, vamos conhecê-los de maneira esquematizada nesta fi gura.

Figura 1 – Defi nições de tecnologia e prática tecnológica

Fonte: Pacey (1990, p. 19).

Nesta fi gura, vemos que aos aspectos organizacional, cultural e técnico correspondem diferentes questões. Em geral, eles são compreendidos de maneira estanque. Ao aspecto cultural, por exemplo, vinculam-se valores, questões éticas; o aspecto organizacional vincula a atividade industrial, profi ssional e usuários/consumidores; já conhecimento, destreza, má-quinas e ferramentas pertencem à esfera do técnico.

Erroneamente se acredita que essa esfera funcione de maneira independente às demais. Assim, costuma-se tratar as dimensões social e humana e seus problemas no âmbito dos aspectos cultural e organizacional da tecnologia. Dessa forma, isentamos a técnica de seu conteúdo humano e social, ignorando a existência de valores nessa atividade (PACEY, 1990, p. 18; CABRAL, 2006, p. 28-50).

O que o conceito de prática tecnológica propõe é um diálogo entre os aspectos orga-nizacional, cultural e técnico, mostrando-nos que a tecnologia não é autônoma em relação à sociedade, tão pouco neutra em termos de valores. Segundo Palacios et al (2001, p. 44), o conceito de prática tecnológica permite uma relação que não é linear: entre indivíduos e gru-pos (os que desenvolvem, produzem, comercializam e consomem), agentes (individuais e/ou coletivos), materiais e meios disponíveis e fi ns a desenvolver.

Agora, comece a prestar mais atenção no que você ouve, lê, assiste sobre tecnologia(s). Tente perceber se a ideia de tecnologia que está sendo construída corresponde a uma imagem intelectualista, instrumentalista ou ambas. Veja se em algum dos espaços (virtuais também!) se trata da tecnologia considerando suas relações com a ciência e a sociedade, ou seja, se é

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Resumo

Aula 2 Ciência, Tecnologia e Sociedade I 35

promovido um diálogo entre os aspectos cultural, organizacional e técnico. Este texto termina aqui, mas a nossa conversa sobre tecnologia está apenas começando.

Neste texto, vimos que todos nós temos um entendimento do que seja tecnologia e que, muitas vezes, esse entendimento nos condiciona a ver tecnologia apenas como ciência aplicada. Discutimos que essa é uma visão muito restrita, limitada. Isso traz uma série de problemas, por exemplo, ignora-se todo o conhecimento tecnológico que o homem construiu ao longo de sua existência, da história da humanidade; leva-nos a acreditar que a tecnologia, seu avanço, são, por si só, responsáveis pelo bem-estar e a qualidade de vida das pessoas. Nesta aula, percebemos que a relação entre avanço tecnológico e bem-estar e/ou qualidade de vida das pessoas não é tão direto. Refl etimos sobre as imagens mais correntes sobre tecnologia – intelectualista e instrumentalista. Conhecemos o conceito de prática tecnológica, ou seja, o fazer tecnológico desconstrói a ideia restrita de tecnologia como ciência aplicada, considerando os aspectos cultural, organizacional e técnico, há uma série de interesses, crenças, valores envolvidos. Em outras palavras, quer dizer que a tecnologia não é neutra.

AutoavaliaçãoNo princípio desta aula, você pesquisou sobre tecnologia na internet e elaborou um resumo a respeito. Nós discutimos vários aspectos concernentes aos seus achados de pesquisa. Agora, retome o seu resumo e, a partir dele, escreva um comentário crítico com base nas questões do texto Conversando sobre tecnologia.

Com base nas discussões desta aula, vamos refl etir sobre as tecnologias e o nosso cotidiano. Primeiro, pense em um período do seu cotidiano (manhã, tarde ou noi-te) e com quais tecnologias você interage. Depois, imagine esse mesmo período sem as tecnologias as quais você está habituado a usar e escreva um texto de até 30 linhas.

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Anotações

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ReferênciasBAZZO, Walter Antonio; PEREIRA, Luiz Teixeira do Vale. Introdução à Engenharia. Florianó-polis: EDUFSC, 2009.

BAZZO, Walter Antonio; PEREIRA, Luiz Teixeira do Vale; VON LINSINGEN, Irlan. Educação Tecnológica: enfoques para o ensino de engenharia. Florianópolis: EDUFSC, 2008.

CABRAL, C. G. O conhecimento dialogicamente situado: histórias de vida, valores huma-nistas e consciência crítica de professoras do Centro Tecnnológico da UFSC. 2006. 205 f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Pós-Graduação em Educação Científi ca e Tecnológica, Florianópolis, 2006.

PACEY, Arnold. La cultura de la tecnología. México: Fondo de Cultura Económica, 1990.

PALACIOS, Eduardo Marino García et al. Ciência, tecnología y sociedad: una aproximación conceptual. Madrid: Organizacíon de Estados Iberoamericanos, 2001.

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Anotações

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Anotações

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Ciência, Tecnologia e Sociedade: primeiras leituras

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Aula 3 Ciência, Tecnologia e Sociedade I 41

Apresentação

Você sabe o que é CTS? CTS não é apenas a disciplina que você cursa na Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ECT/UFRN), tão pouco somente é uma sigla que embute Ciência, Tecnologia e Sociedade. Em um sentido

mais geral, estamos falando das inúmeras possibilidades de relacionar a ciência, a tecnologia e a sociedade; já em um sentido mais específi co, falamos de um campo interdisciplinar, cujas refl exões buscam desconstruir a ideia de que ciência é um conhecimento neutro e tecnologia somente artefatos e sistemas que trazem sempre benefícios para as pessoas.

Nesta aula, você vai conhecer as origens do campo Ciência, Tecnologia e Sociedade e como suas discussões têm sido apropriadas na educação científi ca e tecnológica em diversos países. Vamos dialogar sobre o signifi cado dessas discussões para a sua formação no Ensino Superior e a sua atuação profi ssional.

O que você pensa a respeito e as suas expectativas têm muito a contribuir nesse diálogo. Vamos começar?

ObjetivosConceituar ciência e tecnologia, levando em consideração aspectos históricos e sociais.

Identifi car as dimensões sociais e éticas da atuação de cientistas e engenheiros.

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Aula 3 Ciência, Tecnologia e Sociedade I 43

Antes de continuarmos a nossa leitura, vamos realizar uma atividade. Escreva em seu caderno ou em um arquivo eletrônico um breve texto (até 20 linhas) que responda a seguinte questão: o que são relações entre a ciência, a tecnologia e a sociedade? Esse registro é importante para que o(a) professor(a) possa considerar o seu entendimento, e que você mesmo possa verifi car se houve alguma mudança em sua forma de pensar sobre o tema.

Após a conclusão dessa atividade, retome a aula. Boa leitura!

Um campo interdisciplinar, uma disciplina nova

Nesta aula, aproximamo-nos da ciência e da tecnologia por meio da História e Filosofi a das Ciências. Agora, vamos inter-relacionar ambas com o ambiente de sua realização: a sociedade. Quer dizer que vamos discutir como ciência e tecnologia interagem entre si e com a sociedade e também como nos situamos nessa relação.

Vamos ver que a expressão Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) tem uma história e que essa história começa em meados da década de 1960 e início dos anos 1970, quando diversos grupos passam a contestar com mais veemência o uso da ciência e da tecnologia em guerras, seu impacto ambiental, o controle da aplicação dos conhecimentos pelo Estado. De lá para cá, vários países se apropriaram da expressão CTS. No Brasil, por exemplo, há diversos grupos que realizam pesquisas com base no campo interdisciplinar CTS em universidades públicas. Há também uma discussão sobre a relação ciência, tecnologia e sociedade que não necessariamente se utiliza do pensamento desse campo interdisciplinar.

De qualquer forma, essa é uma discussão nova e que aos poucos integra currículos de pós-graduação e de graduação. A Escola de Ciências e Tecnologia é um exemplo. Pensando em uma formação mais ética e responsável de seus alunos, integrou a discussão CTS em seu currículo, criando três componentes curriculares CTS obrigatórios e outros eletivos. Isso quer dizer que você terá a oportunidade de se qualifi car diferenciadamente em relação a outros es-tudantes, entender o importante lugar que você ocupa como profi ssional e cidadão. Lembre-se que ciência e tecnologia são atividades humanas e construídas social e historicamente, e você se relaciona com elas o tempo todo.

Os textos didáticos que estamos começando a escrever e as aulas que construímos com vocês levam em conta fi nalidades. Vamos conhecer algumas delas (PALACIOS; OTERO; GARCÍA, 1996, p. 25).

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Aula 3 Ciência, Tecnologia e Sociedade I44

FINALIDADES

RELACIONAR conhecimentos de campos acadêmicos que estão habitualmente separados, por exemplo, Filosofi a da Ciência, História da Tecnologia, Sociologia do Conhecimento, Economia.

REFLETIR sobre os fenômenos sociais e as condições da existência humana a partir da perspectiva da ciência e da técnica/tecnologia.

ANALISAR as dimensões sociais do desenvolvimento tecnológico.

Quadro 1 – Alguns objetivos da Educação CTS.

Fonte: Baseado em Palacios, Otero e García (1996, p. 25).

Esses aspectos aliam-se a propósitos formativos. Quer dizer que buscamos, com o componente curricular CTS 1, que você desenvolva competências e habilidades afi ns com esses propósitos (Idem, 1996).

PROPÓSITOS FORMATIVOS

ANALISAR e avaliar criticamente as realidades do mundo contemporâneo e os antecedentes e fatores que nele infl uem.

COMPREENDER os elementos fundamentais da investigação e do método científi co.

CONSOLIDAR uma maturidade pessoal, social e moral que lhe permita atuar de forma responsável e autônoma.

PARTICIPAR de forma solidária no desenvolvimento e melhoria do seu entorno pessoal.

DOMINAR os conhecimentos científi cos e tecnológicos fundamentais e as habilidades básicas da área/profi ssão que você escolher.

Quadro 2 – Ações para uma leitura crítica do mundo

Fonte: Baseado em Palacios, Otero e García (1996, p. 25).

Aspectos e objetivos assim já são trabalhados no Ensino Médio, em países como a Espa-nha. Naquele país, a trajetória de discussão crítica da relação ciência, tecnologia e sociedade e também do campo interdisciplinar CTS é um pouco mais longa que no Brasil. E tem infl uenciado fortemente o que tem sido feito aqui e em outros países da América Latina. Mas Brasil e outros países latino-americanos também têm sido infl uenciados por correntes do pensamento CTS oriundas da Inglaterra e dos Estados Unidos da América do Norte.

Por meio do chamado “silogismo CTS” (VON LINSINGEN, 2004, p. 2), grupos de pes-quisadores buscam uma educação científi ca e tecnológica que abandone o lugar de partícipe tímido e contribua na busca de soluções para os problemas sociais (BAZZO; PEREIRA; LIN-SINGEN, 2008, p. 159).

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Aula 3 Ciência, Tecnologia e Sociedade I 45

Esses autores, que são professores de Engenharia há muitos anos no Brasil, entendem que:

A inclusão de estudos no campo CTS toma importância ímpar em países que começam a aprofundar suas análises na imbricada relação entre desenvolvimento tecnológico e desenvolvimento humano. E parece consenso que, apesar da importância dos avanços dos conhecimentos que permitem dominar mais e mais a natureza, por mais paradoxal que possa parecer, a maior parte da civilização experimenta ainda necessidades básicas ainda não atendidas que se confi guram como absurdas, dadas as muitas possibilidades técnicas que dominamos para resolver os problemas que as geram. Também é consen-so que, para resolver tais problemas, bastaria, em princípio, animar a vontade política de nossas sociedades e dos que elegemos como representantes (BAZZO; PEREIRA; LINSINGEN, 2008, p. 160).

Vamos refl etir?

As questões que seguem serão preferencialmente trabalhadas em grupo e em sala, com a orientação de seu/sua professor/a. Mas você pode escolher duas delas e refl etir a respeito. Registre sua refl exão em seu caderno ou em arquivo eletrônico. Escreva quantas linhas desejar.

1) Quais são os elementos tecnológicos do meu entorno?

2) Poderíamos suprimir esses elementos das nossas vidas?

3) Que relações você acredita haver entre ciência, tecnologia e sociedade?

4) Alguns grupos estão à margem do desenvolvimento tecnológico. Há algo a corrigir?

5) Poderia descrever alguma mudança na sua vida cotidiana que tenha relação com a aparição de elementos tecnológicos?

A origem do campo interdisciplinar CTSA expressão CTS representa tanto um objeto de estudo quanto um campo interdisciplinar.

O que isso quer dizer? Vamos nos apropriar do texto de um pensador espanhol do campo CTS, José A. López Cerezo (2003), para explicar.

Quando nos referimos ao objeto de estudo, estamos levando em conta os fatores sociais que infl uenciam a mudança científi co-tecnológica e também as consequências sociais e am-bientais dessa mudança. Há muitos exemplos. Pense sobre o impacto de uma guerra que se

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Aula 3 Ciência, Tecnologia e Sociedade I46

utiliza de armas biotecnológicas e nucleares. Qual o objetivo das tecnologias produzidas em guerras? E os resultados do Projeto Manhattan, você conhece?

Também encontramos muitos exemplos de sérios impactos ambientais relacionados à ciência e tecnologia, desde derramamentos de petróleo, acidentes com usinas nucleares, poluição industrial, intoxicação de fauna, fl ora e seres humanos por pesticidas e outras subs-tâncias tóxicas.

Veja este quadro! Ele faz uma cronologia que nos interessa conhecer.

1957A União Soviética lança o Sputnik, o primeiro satélite artifi cial ao redor da Terra. Causou uma espécie de convulsão social, política e educacional nos Estados Unidos da América do Norte e outros países ocidentais.

O reator nuclear de Windscale, Inglaterra, sofre um grave acidente, criando uma nuvem radioativa que se espalha pela Europa Ocidental.

Explode nos Urais o depósito nuclear Kyshtym, contaminando uma grande extensão circundante à União Soviética.

1958 A NASA é criada como uma das consequências do Sputnik.

1959 Conferência de C.P. Snow, em que se denuncia o abismo entre as culturas humanística e científi co-tecnológica.

Anos 60 Desenvolvimento do movimento de contracultura, em que a luta política contra o sistema vincula o seu protesto em relação à tecnologia.

1961 A talidomida é proibida nos Estados Unidos, após causar mais de 2.500 defeitos de nascimento.

1962Publicação de Silent Spring, de Rachel Carson. Essa autora denuncia, entre outras coisas, o impacto ambiental de pesticidas sintéticos como o DDT. É o que defl agra o movimento ecológico.

1963 Tratado de limitação de provas nucleares.

Afunda o submarino nuclear USS Thresher, seguido pelo USS Scorpion (1968).

1966 Um B 52 com quatro bombas de hidrogênio explode perto de Palomares, Almeria, contaminando com radioatividade uma grande área.

Com base em motivos éticos e políticos, profi ssionais de informática constituem um movimento de oposição à proposta de criar um banco de dados nacionais nos EUA.

1967O petroleiro Torry Canyon sofre um acidente e verte uma grande quantidade de petróleo nas praias do Sul da Inglaterra. A contaminação por petróleo começa a ser algo comum em todo o mundo desde então.

1968 O papa Pablo VI torna público um rechaço à contracepção artifi cial.

Graves revoltas nos EUA contra a Guerra do Vietnã (a participação norte-americana incluiu

sofi sticados métodos bélicos, como o napalm).

Maio de 68 na Europa e EUA: protestos generalizados contra o sistema.

Quadro 3 – Breve cronologia de um fracasso

Fonte: Adaptado de García et al (1996 apud PALACIOS, 2001).

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Aula 3 Ciência, Tecnologia e Sociedade I 47

Repare na cronologia e você verá que os eventos registrados em nosso quadro se situam, principalmente, nas décadas de 60 e 70 do século XX. É um período de intensa movimentação social, de reivindicações e contestações contra regimes ditatoriais, preconceitos contra mu-lheres, negros, grupos étnicos, homossexuais – um tempo que mudou a história.

Esse é o contexto em que se origina o campo interdisciplinar CTS. Ele reuniu as refl exões das Ciências Sociais e das Humanidades para pensar esse momento de crise em relação à credibilidade da ciência e da tecnologia e seu apoio público; voltou seu olhar a um uso irracional dos recursos naturais e à falsa crença da neutralidade científi ca e sua autonomia em relação à sociedade. Cientistas e engenheiros também são pessoas com valores, crenças, interesses e tudo isso se enreda nas pesquisas em que eles investem. O problema é que o entendimento ainda corrente do que é ciência “neutraliza” as relações sociais que uma determinada pessoa tem e até mesmo sua história. Isso continua sendo ensinado aos cientistas, aos engenheiros que, por sua vez, continuam pensando que as suas pesquisas e projetos são neutros, ou seja, não têm impacto social, ambiental, político. Essa seria uma postura ética?

No contexto em que o campo CTS surgiu também circulava certo ceticismo em relação à ciência e à tecnologia, divinizadas após a Segunda Guerra. Um conceito que se tornou muito conhecido foi o de Síndrome de Frankenstein.

Esse conceito remete diretamente ao texto publicado em 1818 por Mary Shelley – Frankenstein, ou o moderno Prometeu. Remete-se à relação homem e natureza, referencia um temor de que as mesmas forças que são utilizadas para controlar a natureza podem se voltar contra nós, homens e mulheres, destruindo-nos. O trecho do livro em que o “monstro” diz a Victor Frankenstein “tu és o meu criador, mas eu sou o teu senhor” expressa essa pos-sibilidade (CEREZO, 2003, p. 117). Frankenstein faz uma citação ao mito de Prometeu. Você conhece esse mito?

Pesquise em sites da internet sobre o mito de Prometeu e escreva um resumo entre 10 e 20 linhas.

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Não temos os 100 mil genes com que

sonhávamos...

Mas, em compensação...

Temos carrões... DVD... fornos mico-ondas!!!

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Adaptado de: João Garcia – Os cientistas. Disponível em: <http://jaogarcia.blog.uol.com.br/>. Acesso em: 18 jan. 2011.

Frankenstein é um exemplo de literatura que entremeia em seu discurso a TECNOFOBIA, ou seja, um medo exagerado da tecnologia moderna.

Em um outro extremo, ao aceitarmos os desenvolvimentos da ciência e da tecnologia e suas inovações de forma acrítica, nos vinculamos à TECNOFILIA.

Vamos pensar a respeito? Você tem ou já teve atitudes tecnofóbicas e tec-nofílicas? Compartilhe essas experiências com seus colegas.

Leia a tirinha a seguir.

Tirinha “Os Cientistas”, de João Garcia.

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Posso viver sem televisão, celular e internet? Eu não consigo, e você? Ninguém precisa deixar a tecnologia de lado. Ser crítico em relação a ela não é desconsiderá-la, mas procurar enxergá-la sob vários prismas e não permanecer passivo. Langdon Winner (1987) chamou esse comportamento apassivado de “sonambulismo tecnológico”.

Esse sonambulismo se origina da ideia de que não podemos criticar, interferir ou mesmo participar das decisões que dizem respeito aos desenvolvimentos científi cos e tecnológicos. Você já pensou por quê?

Um outro conceito do campo CTS que vale a pena conhecer é o de alfabetização científi ca e tecnológica. Para entendê-lo, vamos comentar alguns aspectos relacionados aos entendi-mentos que temos do que é ciência e do que é tecnologia.

Concepções de ciência? Há uma concepção tradicional, que ainda impera no senso comum (por exemplo, o

imaginário popular) e também entre os pesquisadores de que ciência é um empreendimento objetivo, neutro, baseado em um código de racionalidade não infl uenciada por fatores externos e autônomo em relação à sociedade (PALÁCIOS et al, 2001, p. 12). Esse é um dos entendi-mentos. Pode ser o mais comum, ainda, mas não é o único e vem sofrendo fraturas desde a segunda metade do século 20. Nós lemos sobre isso ao comentar a origem do campo CTS.

Nós podemos denominar essa concepção como ciência neutra, mas também podemos nos utilizar da expressão concepção essencialista e triunfalista da ciência.

Esse entendimento fundamenta um modelo clássico de política científi ca baseado no que denominamos “modelo linear de inovação”, ou seja:

Uma das questões que está na origem desse entendimento e das suas repercussões na política de ciência e de tecnologia é a própria metodologia da ciência. Em vários momentos da história da humanidade, defendeu-se a ideia de que havia uma forma infalível de se obter a verdade e essa forma seria por meio do método científi co. Cerezo (2003, p. 119) descreve o método científi co como uma combinação de racionalidade lógica e observação cuidadosa. A avaliação por pares, ainda segundo o mesmo autor, “se encarregará de velar sobre a integrida-de intelectual e profi ssional da instituição” (CEREZO, 2003, p. 119-120). Em outras palavras, quer dizer que a correta aplicação do método é que vai garantir o bom funcionamento desse código de conduta. Assim,

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Aula 3 Ciência, Tecnologia e Sociedade I50

[...] nessa visão clássica, a ciência somente pode contribuir com um maior bem-estar se esquece da sociedade para buscar exclusivamente a verdade. Quer dizer, a ciência só pode avançar perseguindo o fi m que lhe é próprio, o descobrimento de verdades sobre a natureza, se mantém livre da interferência dos valores sociais por mais beneméritos que sejam. Analogamente, só é possível que a tecnologia possa atuar como cadeia transmis-sora no desenvolvimento social se se respeita sua autonomia, se esquece da sociedade para atender unicamente a um único critério de efi cácia técnica (CEREZO, 2003, p. 120).

Dessa forma, ciência e tecnologia são apresentadas à sociedade como formas que sobre-vivem autonomamente em relação à cultura, como atividades com valor neutro, uma espécie de “aliança heroica de conquista da natureza”.

No século 20, essa ideia foi bastante fortalecida por um movimento que fi cou conhecido como Empirismo Lógico, que surge nos anos 1920 e 1930, por meio de Rudolf Carnap, que acaba se aproximando da sociologia funcionalista da ciência desenvolvida por Merton nos anos 1940 (CEREZO, 2003, p. 120; PALACIOS et al, 2001, p. 14).

Esse tipo de pensamento foi contestado e uma de suas críticas mais conhecidas é a que Tomas Kuhn escreveu, em 1962, no livro A estrutura das revoluções científi cas.

Kuhn buscou responder à clássica questão “O que é ciência?” pesquisando episódios da história da ciência, como o desenvolvimento da teoria dos corpos celestes da era moderna (heliocentrismo). Na teoria de Kuhn, a ciência tem períodos estáveis, que ele denominou ciência normal. São períodos sem alterações bruscas na dinâmica da ciência, sem alterações que levem a uma mudança mais pronunciada. Para esse pensador, esse é um período em que os cientistas se dedicam a resolver “quebra-cabeças” por meio de um paradigma que é com-partilhado em determinada comunidade científi ca. A acumulação de problemas não resolvidos nesse período pode acarretar o surgimento de anomalias, que podem fraturar o paradigma vigente. Isso pode dar lugar a um outro período, extraordinário, que Kuhn denominou revolução científi ca (KUHN, 2000).

Veja que, dessa forma, o critério para defi nir o que é ciência deixa de ser empírico e passa a ser social.

Concepções de tecnologia? E a tecnologia? Veja que a maneira como entendemos a ciência infl uencia diretamente

a forma como concebemos a tecnologia, ainda mais se a considerarmos tão somente uma aplicação da ciência (conceito ainda mais corrente). Se a tratamos assim – uma aplicação da ciência – a vemos de forma determinista. O que é isso? É pensar que a ciência determinará a tecnologia, em outras palavras, que a tecnologia deriva da ciência.

Uma olhadela na história da ciência e da tecnologia vai nos mostrar que a habilidade técnica diferenciou o homem de outros animais que habitam no planeta Terra. As alavancas, polimento de pedras e o fogo são técnicas milenares (BAZZO; PEREIRA, 2009, p. 66). O alfabeto e a escrita são sistemas de símbolos organizados que o homem desenvolveu há pelo menos 2 mil anos. Esses sistemas são técnicas ou tecnologias?

Lembremos, por exemplo, que o fogo é um legado da pré-história e que esse é um mo-mento em que o homem ainda não tinha investido em um sistema de conhecimento racional

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Aula 3 Ciência, Tecnologia e Sociedade I 51

e que dará origem, na Grécia, especialmente, ao pensamento ocidental de onde deriva o que entendemos por ciência.

É importante observar que a ciência atual, essa que é produzida nos laboratórios, espe-cialmente os das universidades e institutos de pesquisa, está longe da forma como os gregos estudavam a natureza ou mesmo astrônomos célebres, como Copérnico, ou criadores fantás-ticos, como Leonardo da Vinci, realizavam seus trabalhos.

Se a ciência e a tecnologia têm uma história, esta não se deu aleatoriamente. O ambiente social (cada época teve o seu) e a forma como as pessoas (mulheres e homens, ricos e pobres, negros, brancos, indígenas etc.) se relacionavam são elementos a ser considerados.

Falar em prática tecnológica (PACEY, 1990), levando-se em conta que sistemas e artefatos tecnológicos não são apenas produtos técnicos, mas estão ligados a aspectos organizacionais e imersos numa cultura, é mais adequado se queremos discutir valores e sua incorporação. Um entendimento mais restrito de tecnologia reduzirá dimensões sociais e humanas e seus problemas ao aspecto organizacional da tecnologia – é um dos terrenos do seu signifi cado mais geral. Esse entendimento solapa o conteúdo humano no fazer tecnológico, ignora a existência de valores nessa atividade (CABRAL, 2006, p. 46).

Vamos refl etir?

1) Os cientistas e os engenheiros são alheios às aplicações sociais de suas investigações?

2) Os consumidores têm alguma responsabilidade no desenvolvimento tec-nológico?

3) Você conhece instrumentos que permitam ao cidadão intervir nos processos de controle da pesquisa?

À discussão do conceito de tecnologia, especialmente a partir do século 20, também se agregam aspectos econômicos, como os advindos do sistema capitalista. É quando se insti-tucionaliza a inovação na maior parte dos países do mundo.

Toda essa discussão está relacionada ao conceito de alfabetização científi ca e tecnológica: uma formação das pessoas para que possam entender a ciência e a tecnologia de maneira crítica e refl exiva e como parte das suas vidas, não apenas como realização de cientistas sob o controle do Estado; trata-se, também de problematizar com os próprios cientistas e engenheiros a maneira como compreendem e realizam ciência e tecnologia, os valores, interesses, contextos que estão em jogo. Pense você também sobre esse conceito e como ele poderia ser aplicado.

Esta aula buscou apresentar elementos para uma aproximação ao campo CTS e a discussão que ele enseja sobre as relações entre ciência, tecnologia e sociedade. Há muito mais a ser de-batido, certamente, e você se dará conta disso no decorrer do nosso curso. Aproprie-se desses

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Resumo

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conhecimentos como uma espécie de primeira leitura. Esperamos que você possa refl etir sobre o papel da CTS e entendido melhor essa relação, levando em conta aspectos sociais e históricos, sejam os mundiais, do seu país ou da cidade em vive. Até a próxima aula!

Vamos retomar importantes aspectos do que estudamos nesta aula? Em primeiro lugar, procuramos situar você quanto ao estudo das relações entre ciência, tecnologia e sociedade e à sua formação no Ensino Superior, à carreira que escolheu ou vai escolher e à sua atuação como profi ssional, respeitando princípios éticos e sendo responsável socialmente. Vimos também uma apresentação do campo de estudos interdisciplinar Ciência, Tecnologia e Sociedade, afi nal, como, onde e por que surgiram sérias críticas à ciência e tecnologia? Depois, retomamos a discussão sobre o conceito de ciência e de tecnologia e refl etimos sobre o modelo linear de inovação. Por fi m, destacamos a importância de uma alfabetização científi ca e tecnológica crítica.

AutoavaliaçãoNo início desta aula, você escreveu sobre a relação entre a ciência, a tecnologia e a sociedade. Agora, reelabore o que você respondeu anteriormente a partir da discussão realizada em grupo na sala de aula, ou mesmo com base no que você escreveu individualmente.

Pesquise em um jornal da sua cidade uma situação do cotidiano e a analise do ponto de vista da CTS.

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Aula 3 Ciência, Tecnologia e Sociedade I 53

ReferênciasBAZZO, W. A.; PEREIRA, L. T. V. Introdução à engenharia. Florianópolis: EDUFSC, 2009.

BAZZO, W. A.; PEREIRA, L. T. V.; VON LINSINGEN, I. Educação Tecnológica: enfoques para o ensino de engenharia. Florianópolis: EDUFSC, 2008.

CABRAL, C. G. O conhecimento dialogicamente situado: histórias de vida, valores huma-nistas e consciência crítica de professoras do Centro Tecnológico da UFSC. 2006. 205 f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Pós-Graduação em Educação Científi ca e Tecnológica, Florianópolis, 2006.

CEREZO, J. A. P. Ciencia, tecnologia y sociedad. In: IBARRA, A.; OLIVÉ, L. Cuestiones éticas em ciencia, tecnologia y sociedad em el siglo XXI. Madrid: OEI, 2003.

KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científi cas. São Paulo: Perspectiva, 2000.

LISINGEN, I. V. O Enfoque CTS e a Educação Tecnológica: Origens, Razões e Convergên-cias Curriculares. Florianópolis: Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Tecnológica, 2004. Disponível em: <http://www.nepet.ufsc.br/Artigos/Texto/CTS%20e%20EducTec.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2010.

PACEY, A. La cultura de la tecnología. México: Fondo de Cultura Económica, 1990.

PALACIOS, E. M. G. et al. Ciência, tecnologia y sociedad: uma aproximación conceptiual. Madrid: OEI, 2001.

PALACIOS, F. A.; OTERO, G. F. P; GARCÍA, T. R. Ciencia, tecnología y sociedad. Madrid: Ediciones del Laberinto, 1996.

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Anotações

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Tecnologias sociais e desenvolvimento

4Aula

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Apresentação

Nesta aula, vamos explicar o que são tecnologias sociais, para que servem, qual é seu público-alvo e como elas estão sendo desenvolvidas no Brasil. Para isso, é feita uma comparação entre as características das tecnologias sociais e das tecnologias capi-

talistas e suas funções, na qual a as primeiras são apresentadas como alternativa para as segundas. Procuramos mostrar que a utilização das tecnologias sociais está associada a um modelo de desenvolvimento alternativo que promove a inclusão social. Estamos falando de um tipo de desenvolvimento que busca gerar oportunidade de trabalho e renda para as pessoas desempregadas, excluídas do mercado de trabalho ou em condições de vida precárias.

As tecnologias sociais são voltadas para as pessoas que se encontram em uma situação de pobreza, ou seja, não têm as necessidades básicas atendidas como alimentação, saúde, edu-cação, transporte, moradia. Vamos esclarecer que as pessoas envolvidas no desenvolvimento e difusão das tecnologias sociais são pesquisadores e lideranças de movimentos sociais e organizações não governamentais (ONGs). Para exemplifi car são apresentados alguns casos dessas tecnologias que foram desenvolvidas em diferentes regiões do país.

ObjetivosCompreender o conceito de tecnologias sociais e identifi car quais são os atores envolvidos.

Descrever o estágio de desenvolvimento dessas tecnolo-gias no Brasil.

Movimentos SociaisPara Touraine (2006, p. 18), movimento social é uma ação coletiva que procura questionar um modo de dominação social que tem um impacto generalizado na vida das pessoas. O exemplo mais evidente de movimento social são as manifesta-ções nos países árabes (Egito, Tunísia, Líbia, Irã, etc) contra os regimes ditatoriais em 2011.

ONGsJá as ONGs, são defi nidas como entidades civis sem fi ns lucrativos que realizam trabalhos em be-nefício de uma coletivida-de como dar assistência a menores carentes, defesa da mulher, preservação do meio ambiente, etc.

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Tecnologias sociais

Quando se fala em tecnologia, a noção mais corriqueira é o produto inovador que acaba de ser lançado nos Estados Unidos ou Japão. Muitos se esquecem que várias tecnologias fazem parte de nosso cotidiano como a luz elétrica, telefone, TV, internet, antibiótico,

etc. Nesse mesmo raciocínio, o entendimento mais comum sobre desenvolvimento tecnológico se refere aos esforços relacionados às guerras e ao processo de industrialização do sistema capitalista nos países desenvolvidos.

A literatura que trata da inovação tecnológica analisa a trajetória das grandes empresas sediadas, em grande parte, nos países desenvolvidos. Isto não quer dizer que não tenha havido tentativas de buscar desenvolvimento tecnológico alternativo compatível com a realidade social e econômica de países subdesenvolvidos, pensando na satisfação das necessidades básicas da sociedade, como água tratada, alimentação, energia, emprego e renda ou melhorar os processos produtivos de pequena escala. Desse modo, a fi nalidade desta aula é mostrar que há possibilidade de desenvolver tecnologias adequadas à realidade de países subdesenvol-vidos, onde as necessidades básicas da maioria da população não foram atendidas, visando o desenvolvimento social. Da mesma forma que foram criados projetos de pesquisa durante a II Guerra Mundial, que envolviam equipes muitos grandes com vários tipos de formação, fi nanciados pelo governo e voltados para fi ns militares, denominado de Big Science, também podia haver uma política de criação de projetos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico voltados para as demandas sociais e redução da pobreza.

Desde já, colocamos algumas questões que precisam ser discutidas levando em conta as potencialidades da ciência e tecnologia. Cabe lembrar que a história nos mostra que es-forços concentrados em pesquisa e desenvolvimento (P&D) resultaram na transformação do mundo em que vivemos, mesmo que estes esforços tenham atendido interesses econômicos e/ou políticos de busca de hegemonia através do poder militar. Será que as profundas desi-gualdades entre as pessoas tendem a se cristalizar ou poderemos vislumbrar um cenário em que o abismo socioeconômico seja reduzido? É possível construir um modelo de desenvolvi-mento que procure reduzir a pobreza humana e ausência de cidadania se valendo do avanço do conhecimento e desenvolvimento de tecnologias? Para tentar responder estas questões, discutiremos o conceito de tecnologias sociais.

Escreva um texto curto explicando o que você entende por tecnologia.

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Desenvolvimento desigualExistem países e regiões que não atraem o interesse das grandes corporações para reali-

zação de investimentos e promoção do desenvolvimento tecnológico, econômico e social. Estas regiões subdesenvolvidas que estão na periferia do sistema capitalista mundial têm processos produtivos que utilizam técnicas tradicionais, implicando em baixa eficiência e produtividade, degradação ambiental e, consequentemente, qualidade de vida precária. Nesse sentido, em lugares que não interessam ao capital há uma demanda por desenvolvimento tecnológico adequado às características econômicas, sociais e culturais do local. Neste caso, o Estado pode estabelecer políticas que promovam um desenvolvimento tecnológico alternativo para pequenos empreendimentos de regiões menos desenvolvidas como o Nordeste do Brasil.

Para você entender melhor, vamos lembrar que ao longo do século XX no Brasil a interven-ção do Estado foi no sentido de fortalecer os setores produtivos mais dinâmicos e promover a concentração industrial no Sudeste, o que fez aumentar a desigualdade regional. Como o Estado não conseguiu estimular o desenvolvimento de todas as regiões do país simultaneamente por meio de políticas federais, outros atores ligados à sociedade civil começaram a se articular com universidades e centros de pesquisa para desenvolver tecnologias que visam à inclusão social e melhoria das condições de vida nas regiões subdesenvolvidas. Esta mobilização de instituições da sociedade civil em parceria com determinados segmentos de pesquisadores é um fenômeno recente que merece nossa atenção, uma vez que procuram orientar a ciência e tecnologia para o desenvolvimento social. Tais experiências apontam a possibilidade do fortalecimento de um modelo de desenvolvimento descentralizado, baseado em pequenos empreendimentos familiares e solidários com uso de tecnologias de baixo custo adequadas às características socioeconômicas locais.

Estado é um conjunto de institui-

ções que são responsáveis por garantir a ordem e a paz social em um dado

território através do mono-pólio da força.

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Reforça essa ideia, a evidência da impossibilidade de universalizar o padrão de consumo dos países desenvolvidos devido à limitação dos recursos naturais existente no planeta Terra. Desde a década de 1970, autores como Celso Furtado (1974) no livro Mito do Desenvolvimento, e os pesquisadores do Clube de Roma já afi rmavam que não era viável estender o padrão de consumo dos países desenvolvidos para o restante do planeta e falavam da necessidade de crescimento zero por causa da insufi ciência dos recursos naturais disponíveis.

É cada vez mais urgente a necessidade de se pensar em novos modelos de desenvolvi-mento que procurem conciliar a geração de riqueza (econômico) com a ampliação da melhoria das condições de vida para toda a população (social) de forma sustentável para garantir que as próximas gerações possam ter acesso aos recursos naturais (ambientais). Pensar em soluções para esses problemas envolve necessariamente a orientação do desenvolvimento científi co e tecnológico de modo que ela possa responder aos desafi os que estão postos no contexto atual.

No caso do Brasil, a tentativa de copiar o elevado padrão de consumo de países como os Estados Unidos levou a um modelo de desenvolvimento que concentrou a renda e aumentou a desigualdade social e regional. Só para você ter uma noção desse modelo de desenvolvi-mento desigual, nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste alguns indicadores sociais são comparáveis a países africanos. Menos de 20% da população nestas regiões tem acesso a saneamento básico e água tratada. No Nordeste, cerca de 30% da população está abaixo da linha da pobreza. Em 2008, a taxa de analfabetismo na região Nordeste era de 17,7%, sendo que na Paraíba, Piauí e Alagoas fi cava entre 19 e 24%, enquanto que nas regiões Sul e Sudeste as taxas eram de 5% e 5,4%, respectivamente (IBGE/PNAD, 2009).

Rio Grande do Norte O estado do Rio Grande do Norte contava com uma população de 3.137.541, segundo a

Pesquisa Nacional de Domicílio do IBGE de 2008, sendo 45% de pessoas de 0 a 24 anos. Em 2008, a taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais era de 20%, dos quais 52,1 % são pessoas com mais de 60 anos. 56% das famílias com crianças de 0 a 6 anos de idade tem rendimento familiar per capita até 1/2 salário mínimo. Os domicílios que possuem microcom-putador com acesso à internet representam 13,56%. Apenas 17,68 % dos domicílios possuem serviços de rede coletora de esgoto e 30% fossa séptica (PNAD, 2008). Planejar soluções para estes problemas requer necessariamente a utilização da base científi ca e tecnológica de universidades como a UFRN e outras instituições de pesquisa.

Esta aula está organizada da seguinte forma. Na primeira parte será feita uma breve discussão da trajetória das tecnologias alternativas em contraposição à tecnologia capitalista até chegar ao conceito de tecnologias sociais. Na segunda parte será associada a emergência das tecnologias sociais no Brasil à organização de entidades da sociedade civil. Na terceira, serão apresentados casos de tecnologias sociais que foram desenvolvidas por instituições de pesquisa, organizações não governamentais (ONGs), associações de trabalhadores em interação com as comunidades de diversas regiões do país.

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Trajetória da tecnologia alternativa

Na Índia do fi nal do século XIX houve a tentativa de lutar contra a injustiça social do siste-ma de castas e do domínio britânico através do desenvolvimento das tecnologias tradicionais. Gandhi procurou despertar a consciência da população hindu sobre a possibilidade de ser dona de seu destino (autodeterminação do povo) por meio da popularização da roca de fi ar manual. A estratégia se baseava no desenvolvimento tecnológico a partir da base técnica existente e não através de importação de um padrão tecnológico europeu. A proposta de desenvolvimento de Gandhi era a popularização da máquina de fi ar e o melhoramento das técnicas locais, tendo como objetivo fi nal a transformação da sociedade hindu.

A ideia de tecnologia alternativa foi aplicada na República Popular da China e infl uenciou pesquisadores que estavam preocupados com o desenvolvimento econômico nos países pe-riféricos e percebiam que as tecnologias convencionais das empresas capitalistas não eram adequadas a esses países por terem um custo elevado (intensiva em capital) e por gerar desem-prego. Um economista alemão - Schumacher - cunhou a expressão “tecnologia intermediária” para designar uma tecnologia de baixo custo de capital, pequena escala, simplicidade e respeito ao meio ambiente. Para o autor, esta tecnologia, também conhecida como tecnologia apro-priada, seria mais adequada aos países pobres (DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES, 2004, p. 20).

Durante as décadas de 1970 e 1980 cresceu o número de partidários da tecnologia apro-priada, pensando na redução da pobreza nos países periféricos e em fontes alternativas de energia para os países avançados. Os pesquisadores que procuravam pensar em alternativas de desenvolvimento tecnológico levavam em conta também o contexto socioeconômico e político no qual eram construídos os artefatos e processos. Passava-se a refl etir a nova relação entre ciência, tecnologia e sociedade (CTS), incorporando a questão da participação de diferentes grupos sociais no processo decisório de escolha tecnológica, baseado em critérios de baixo custo dos produtos e do investimento, pequena ou média escala, facilidade de operação e, principalmente, geração de benefícios sociais para as comunidades envolvidas.

Os pesquisadores preocupados com a temática do desenvolvimento tecnológico para inclusão social nos países periféricos questionavam o modelo linear de inovação, segundo o qual o desenvolvimento social seria uma consequência do progresso técnico baseado na ciência básica. Esse modelo ainda está arraigado entre os cientistas e burocratas.

Nos anos 1990, o movimento intelectual que procurava refl etir sobre um novo estilo de desenvolvimento baseado nas noções de tecnologia apropriada, também chamada de democrá-tica, popular, libertária, limpa, etc., entrou em declínio em função da hegemonia do pensamento neoliberal e do processo de globalização que provocou o aumento da competitividade das empresas, reorganização da produção em escala mundial e reestruturação industrial em países como o Brasil. A reestruturação produtiva na indústria brasileira combinada com a abertura comercial e baixa taxa de crescimento econômico aumentou o desemprego e enfraqueceu o movimento sindical que passou a ter uma postura mais defensiva de preservação de empre-go. A adesão ao pensamento neoliberal resultou na renúncia a um projeto nacional baseado em uma trajetória própria mediante a busca de maior autonomia tecnológica. Os programas

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tecnológicos nas áreas estratégicas (espacial, defesa, aeronáutico) foram sucateados com a redução de recursos disponíveis.

Em 2000, a estabilização macroeconômica, crescimento e redução da dependência ex-terna criaram as condições para investir mais em ciência e tecnologia com a expectativa de gerar impactos no desenvolvimento do país. Em função disso, o dispêndio em C&T triplicou nos últimos dez anos no Brasil, acompanhando uma tendência dos países desenvolvidos e os chamados emergentes. No entanto, a pobreza, a desigualdade regional e o uso predatório dos recursos naturais ainda não são tratados como problemas centrais da política de ciência, tecnologia e inovação. Em 2008, apenas 1% dos recursos do Ministério da Ciência e Tecnologia foi destinado à rubrica do desenvolvimento social.

Pesquise na internet exemplos de tecnologias alternativas utilizadas em pequenas unidades de produção ou empreendimentos solidários (cooperativas).

Obstáculos para uma política de CTI voltada ao desenvolvimento social

Existem vários fatores que contribuem para que a política de CTI fi que circunscrita ao mundo científi co ou, como denominam os especialistas tecnocratas, ao sistema de ciência, tecnologia e inovação. Um dos principais fatores é a permanência da concepção de ciência autônoma e neutra que acabou mantendo a atividade científi ca distante da sociedade e do debate público. Associado a isso, a comunidade científi ca não aceitava interferências de in-teresses políticos ou econômicos no desenvolvimento científi co. Quem estabelecia a política científi ca eram os cientistas mais infl uentes. Como consequência, a política científi ca fi cava condicionada aos interesses das elites do ambiente científi co de preservação do prestígio so-cial, do capital científi co, em uma palavra do status quo. O ambiente científi co é conservador e tem uma estrutura desigual. A agenda de pesquisa está mais condicionada à lógica interna do ambiente científico que procura estar na fronteira da ciência universal e, por isso, é pouco contextualizado. Na maioria das vezes, as prioridades para o desenvolvimento científi co e tecnológico fi nanciadas pelo Estado não respondem aos problemas reais, como a pobreza e a baixa qualidade de vida, de países periféricos.

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Outro fator, que está relacionado à forma de organização autônoma do ambiente científi co e o distanciamento das demandas sociais, é a limitada percepção pública da temática ciência e tecnologia e a difi culdade dos diferentes grupos sociais de levar à “academia” as demandas mais prementes da população para o processo decisório.

Existem fóruns e conferências na área de C&T que, em tese, deveriam debater os proble-mas e estabelecer diretrizes para alocação de recursos, mas mantêm espaço privilegiado para os cientistas. Contudo, paulatinamente, tem havido um avanço na participação de organizações da sociedade civil e movimentos sociais na proposição de prioridades visando à inclusão social e a solução dos problemas mais imediatos da sociedade. Esta mobilização de novos atores da sociedade civil possibilitou a inclusão de propostas relacionadas ao incentivo e fi nancia-mento do desenvolvimento de tecnologias sociais na política de CTI expressa no Livro Azul, divulgado em 2010. Este documento sinaliza o aumento de aporte de recursos para ações e estratégicas que procurem orientar a geração de conhecimento científi co e tecnológico para o desenvolvimento social. No contexto desta mobilização de entidades da sociedade civil, tem sido elaborado o marco analítico-conceitual da tecnologia social como uma alternativa mais efi caz na solução de problemas sociais, que procura estabelecer uma nova relação entre ciência, tecnologia e sociedade.

No entanto, em 2010, algumas políticas de combate à pobreza ainda têm um caráter assistencialista e não promovem a emancipação. Outra característica das instituições que trabalham com o conceito de tecnologias sociais é a forma de organização em rede, visando reutilizar soluções tecnológicas em diferentes locais que tenham a mesma necessidade.

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Tecnologias sociais entendidas como processo de construção social

Quando falamos em tecnologia como processo de construção social, queremos dizer que as características de um determinado artefato tecnológico é fruto da negociação de diferentes grupos sociais que têm preferências e interesses. Desse modo, o desenho da tecnologia está relacionado aos interesses políticos, econômicos ou sociais. Para alguns autores (PINCH; BIJKER, 1990; FEENBERG, 1999) a decisão sobre o desenho da tecnologia passa pelo crivo da escolha social, refl ete as práticas sociais e culturais de um determinado período e local. Esta concepção pode ser verifi cada no conceito de tecnologias sociais. Os próprios atores da sociedade civil concebem as tecnologias sociais “como aquelas que compreendem produtos, técnicas e metodologias desenvolvidas na interação dos saberes científi co e popular e que representam efetivas soluções de transformação da sociedade” (RTS, 2010). A perspectiva destes atores parte da premissa de que a sociedade também tem um conhecimento baseado na experiência de vida e que, em interação com pesquisadores que detêm um conhecimento científi co, produzem soluções para os seus problemas relacionados ao processo produtivo ou para o atendimento de necessidades básicas como acesso a água, tratamento de doenças, alimentação, etc. Desse modo, tal perspectiva é diferente da visão de que o único detentor de conhecimento é o pesquisador. Ao contrário, o conceito de tecnologias sociais parte do entendimento de que o conhecimento é produzido em diferentes lugares como resultado de interação social e a tecnologia é o resultado de uma construção coletiva que leva em conta os recursos materiais e humanos disponíveis. O conceito de tecnologias sociais tem uma proximidade com o conceito de tecnologia estudado pelos construtivistas. Os construtivistas entendem que a tecnologia é construída na interação de diferentes grupos sociais que dão um signifi cado para os artefatos tecnológicos. Para eles, a tecnologia é o resultado da negociação de diferentes grupos sociais que compartilham um signifi cado, uma imagem do artefato.

É possível identificar uma convergência entre estudiosos da tecnologia da corrente construtivista, os autores do campo de Ciência, Tecnologia e Sociedade e as lideranças das instituições da sociedade civil que trabalham com o conceito de tecnologias sociais. Os pontos em comum entre estes três segmentos são: o conhecimento é produzido em diferentes lugares como empresas, hospitais, ONGs, não sendo exclusividade da universidade; o processo de construção da tecnologia sendo processo participativo que envolve a interação de diferentes grupos sociais, inclusive aqueles que detêm o saber popular. Esta visão estabelece forte vín-culo entre democratização e desenvolvimento tecnológico, na medida em que o desenho da tecnologia se dá num processo de interação do conhecimento científi co e popular, o que requer formas de organização mais democráticas.

A visão de tecnologias construídas a partir das demandas sociais se aproxima da teoria crítica da tecnologia de Andrew Feenberg (1999). Segundo o autor, a concepção de neutrali-dade da tecnologia desconsidera que está enraizada nela valores antidemocráticos comum à lógica capitalista que visa o controle dos trabalhadores e recursos para aumento de efi ciência e lucros. Para Feenberg, o poder tecnocrático está presente nas decisões sobre o desenho da tecnologia, em função da necessidade de controle do processo produtivo. Nesse sentido, existe

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uma dimensão política na construção dos artefatos e processos tecnológicos. O conceito de tecnologias sociais considera esta dimensão e se caracteriza por ter relação estreita com a prática democrática de envolver as comunidades no desenvolvimento da tecnologia, levando em conta o saber popular para atender suas necessidades.

Para você entender as principais diferenças entre as tecnologias empregadas nas grandes empresas e as tecnologias sociais, apresentamos uma comparação no Quadro 1. No contexto do sistema capitalista mundial, as tecnologias convencionais visam à maximização do lucro, o que não signifi ca bem estar social. Como exemplo, podemos destacar o caso do Fordismo, uma tecnologia de processo que maximizou o volume de produção e do lucro, desqualifi cou a mão de obra com a subdivisão do trabalho e reduziu o trabalho humano a movimentos repetitivos. Desse modo, enquanto as tecnologias capitalistas são utilizadas nas grandes em-presas, as tecnologias sociais são empregadas entre os pequenos produtores e cooperativas de trabalhadores. Ao contrário das tecnologias capitalistas que tendem a substituir o trabalho humano por máquinas, as tecnologias sociais melhoram o processo produtivo e geram mais oportunidade de trabalho e aumentam a renda dos pequenos produtores. Outra diferença entre as tecnologias, é que no caso capitalista há a necessidade de controle do ritmo do trabalho através da hierarquia e velocidade das máquinas para garantir um aumento do lucro das em-presas, enquanto no caso dos pequenos empreendimentos e cooperativas de trabalhadores, os produtores também tomam decisão, têm funções administrativas e têm o controle do processo. Portanto, não há uma separação entre os que pensam e os que executam, como há nas fábricas capitalistas.

Tecnologias capitalistas Tecnologias sociais

Utilizada na propriedade privada. Utilizada na propriedade coletiva, cooperativas e associações.

Voltada para produção em grande escala. Os empreendimentos são pequenas unidades produtivas

Poupadora de mão de obra. Geradora de ocupação e renda.

Controle coercitivo do trabalho. Autonomia no trabalho e estrutura ocupacional homogênea.

Segmentada para evitar o controle do produtor no processo de trabalho. Controle social (produtor) do processo produtivo.

Visa o lucro em detrimento do social e meio ambiente.

Atende necessidades básicas e procura conciliar o social e o manejo sustentável.

Quadro 1 – Características das tecnologias

Fonte: Adaptado de Dagnino, Brandão e Novaes (2004).

O desenvolvimento tecnológico das multinacionais está orientado para o atendimento do mercado formado por pessoas de alta renda. O destino preferencial dos produtos de alta tecnologia são os países desenvolvidos e as classes mais abastadas dos países periféricos. Vale lembrar que a industrialização no Brasil esteve associada a um processo de concentra-ção de renda para que uma camada privilegiada da sociedade formasse o mercado interno (FURTADO, 2003).

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Somos induzidos a pensar que existe apenas um único caminho de desenvolvimento tecnológico, que é a trajetória dos países desenvolvidos e suas multinacionais, e países como Brasil precisam dar saltos (catting-up) para alcançar este estágio tecnológico. Em outras palavras, segundo a visão dominante, para países como o Brasil ser desenvolvido é preciso dominar as tecnologias dos países avançados, isto é, seguir o padrão tecnológico.

A ideia da possibilidade de desenhar alternativas tecnológicas para novos estilos de de-senvolvimento fi ca restrita a poucos pesquisadores e militantes das causas sociais. Perdeu-se a capacidade de criar, imaginar e projetar desvinculado da visão dominante. A ideia da trajetória única dos países desenvolvidos está tão arraigada na mente das pessoas, inclusive na comu-nidade de pesquisa que procura seguir as tendências dos centros mundiais. O determinismo tecnológico não modifi ca a relação de dependência entre países centrais e periféricos.

Com base no que você viu sobre o fi lme “Tempos Modernos” que indicamos na Aula 4 (algumas cenas estão disponíveis no Youtube), descreva as características do Fordismo como uma tecnologia capitalista.

Organização da sociedade civil e tecnologias sociais

Para Dagnino, Brandão e Novais (2004) o marco analítico-conceitual das tecnologias sociais trata a tecnologia como processo e não como produto. Isto quer dizer que consideram o processo de produção da tecnologia. No caso do conceito de tecnologias sociais, há uma ênfase no processo de produção da tecnologia que considera a interação entre pesquisadores que detêm o conhecimento técnico-científi co e a comunidade que participará do desenvolvi-mento das tecnologias para melhorar sua condição de vida. Este caráter de rede atribuído às tecnologias sociais, que articula diferentes grupos sociais e diversas instituições, estabelece um novo padrão de governança no qual o Estado deixa de ter o papel protagonista na consecução de políticas de C&T voltadas para os problemas sociais. A rede é uma forma de organização aberta, descentralizada e não hierarquizada.

Concomitantemente à evolução do entendimento sobre a produção de tecnologia orien-tada para o desenvolvimento social em países periféricos, foram sendo criadas algumas insti-tuições na sociedade civil para promover o desenvolvimento e a difusão de tecnologias sociais a partir dos anos 2000.

Organização da Sociedade CivilNesta aula, a sociedade civil é entendida como um espaço onde se ma-nifestam os interesses e necessidades de diversos setores da sociedade, incluindo as camadas mais carentes, e ocorre um esforço de geração de consenso e defi nição de uma direção política no sentido de promover um desenvolvimento qualitati-vamente distinto do exis-tente. Um projeto político de desenvolvimento que sintetize as necessidades sociais, a vontade coletiva e a garantia da preserva-ção dos recursos naturais para as gerações futuras.

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Primeiras instituições a atuar na área de tecnologia social � Fundação Banco do Brasil (FBB): Uma das primeiras instituições a atuar na área de tecno-

logia social foi a Fundação Banco do Brasil (FBB). Dada a ausência de programas, projetos e publicações sobre tecnologias sociais, a Fundação Banco do Brasil resolveu lançar em 2001 o Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social e o Banco de Tecnologias Sociais. O Banco de Tecnologias Sociais serve para armazenar soluções, desenvolvidas em um determinado local, para atender as necessidades de geração de energia, acesso à água, educação, habitação, agricultura, renda, e estimular o desenvolvimento de projetos semelhantes em outras regiões que enfrentam os mesmos problemas.

� Instituto de Tecnologia Social (ITS): Criado em 2002, o ITS é uma ONG que desenvolve e aproveita tecnologias voltadas para o interesse social. O ITS desenvolveu o Sistema de Acompanhamento das Tecnologias Sociais (SATECS) que possibilita identifi car, caracterizar, fortalecer e potencializar as atividades da política pública.

� A Secretaria de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social (SECIS), do Ministério de Ciência e Tecnologia: Foi criada em 2003 para fi nanciar projetos de desenvolvimento de tecnologias.

� O Centro Brasileiro de Referência em Tecnologia Social: criado em 2004; e o Centro Avançado de Tecnologias Sociais Ayrton Senna também fazem parte da rede de institui-ções ligadas às tecnologias sociais.

Tais instituições passaram a se articular por meio da organização de fóruns e conferências que discutem a formulação de política de CTI voltada para o desenvolvimento social. Entre 2000 e 2002, nos preparativos da II Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia, Irma Passoni, uma das fundadoras do Instituto de Tecnologias Sociais, foi convidada pelo ministro Ronaldo Sardenberg para auxiliar na organização do evento e mobilização de parlamentares e movimen-tos sociais1. A partir da II Conferência, um conjunto de instituições da sociedade civil vem se articulando para contribuir na elaboração da Política de CTI voltada para a inclusão social. Em 2005, as ONGs formularam diretrizes e propostas para a III Conferência. Na ocasião decidiu-se criar um Fórum Nacional das ONGs que atuam com tecnologia social para consolidar e apro-fundar a participação das ONGs no processo de construção de CTI, no Brasil, em articulação com o poder público, universidades, instituições de pesquisa, agências de fomento de CTI e empresas. Entre as propostas apresentadas no “Manifesto do Fórum Nacional de CTI para a III Conferência Nacional”, destacam-se: o fortalecimento da Secretaria de C&T para Inclusão Social (SECIS) como órgão de articulação interministerial e entre governo e sociedade civil para execução das ações de C&T visando à inclusão social; criação de espaços de participação de representantes da sociedade civil em órgãos colegiados como o Conselho Nacional de Ciência e

1 Entrevista da gerente executiva do Instituto de Tecnologia Social concedida a Rede de Tecnologias Sociais.

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Tecnologia, Conselho Deliberativo do o CNPq, agência federal que fi nancia pesquisas, Comitês Assessores do CNPq e Comitês Gestores dos Fundos Setoriais2. A questão da necessidade de fortalecimento institucional da SECIS com aumento do aporte de recursos foi levantada novamente na Conferência Regional do Nordeste em 2010. Telles et al. (2010) afi rmam que a maior parte dos recursos da SECIS tem como fonte as emendas parlamentares e sugerem a criação e manutenção de um fl uxo de recursos orçamentários de forma regular. Desse modo, apesar de haver abertura por parte do governo federal para participação das instituições da sociedade civil no Eixo IV - C&T para o Desenvolvimento Social das Conferências, a mobilização de instituições da sociedade civil e participação nas discussões não implicam na implementação de políticas que orientam a produção e aplicação do conhecimento para gerar desenvolvimento inclusivo e benefi ciar os segmentos mais carentes da sociedade. Na IV Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, foi apresentada proposta de criação de um Programa Nacional de Tecnologias Sociais pelo Fórum Brasileiro de Tecnologia Social e Inovação com recursos da Finep para fi nanciar atividades de pesquisa e desenvolvimento de tecnologias sociais. As propostas do movimento da TS foram atendidas na Política Nacional de CTI.

2 Manifesto do Fórum Nacional de CT&I para a III CNCTI, 2005.

Agora que você conhece algumas entidades da sociedade civil que promovem as tecnologias sociais, faça uma pesquisa nos sites das instituições envolvidas com tecnologias sociais, identifi cando tecnologias que poderiam ser utilizadas na Região Nordeste e no Rio Grande do Norte.

Casos de tecnologias sociais Nesta seção, faremos uma descrição de alguns exemplos de tecnologias sociais que foram

fi nalistas do concurso realizado pela Fundação Banco do Brasil com o objetivo de esclarecer a você, através de casos, o que são tecnologias sociais. Você pode perceber que as tecnologias sociais são desenvolvidas para aperfeiçoar processos produtivos de pequenos empreendi-mentos, aumentar a renda dos produtores e melhorar as condições de vida das comunidades.

Podemos citar como exemplo o projeto da Minifábrica de Castanha de Caju - Módulo Agroindustrial Múltiplo de Processamento e Comercialização de Amêndoa de Castanha de Caju realizado no interior do Ceará. A tecnologia visa organizar minifábricas para reduzir a quebra de 40% a 45% através da adoção do processo e linha de equipamentos desenvolvidos pela Embrapa em parceria com a iniciativa privada; da formação de um conjunto de minifábricas e a implantação de uma unidade central responsável pelo fornecimento da castanha previamente classifi cada. Com isso, houve o aumento em 50% de amêndoas inteiras.

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Figura 1 – Minifábrica de Castanha de Caju

Em 2003, foi premiada a Solução Compacta e de Baixo Custo para Tratamento de Esgotos Domésticos, desenvolvida pelo Núcleo de Bioengenharia Aplicada em Saneamento da UFES desde 1995 em Vitória - Espírito Santo. O projeto consistia numa estação de tratamento base-ada em tecnologias limpas para aplicação na urbanização de zonas de baixa renda que utiliza um reator anaeróbio no início do tratamento biológico, 70% da matéria orgânica presente no esgoto é removida sem consumo de energia. O resultado foi a redução signifi cativa do nível de contaminação dos corpos d’água; eliminação do contato direto da população com o esgoto; redução dos gastos com tratamento médico-hospitalar.

A Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas da ilha das Cinzas em parceria com a FASE (ONG) e a prefeitura do município de Gupurá – PA implantou um sistema de produção para melhorar a qualidade do camarão a partir da adaptação das armadilhas, introdução de viveiros para estocagem in natura, capacitação das famílias em produção, gestão ambiental e gestão de organizações associativas. Os resultados alcançados foram: aumento no tama-nho dos camarões comercializados (de 4,5 para 9,2 cm); aumento do preço recebido pelos produtores (de R$ 0,80 para R$ 2,50) e da renda familiar mensal oriunda do camarão (de 1/2 para 1,2 salário mínimo); estabilização da produção e, consequentemente, da renda anual proveniente do camarão; garantia de mercado para o produto com preço justo, mesmo em época de pico de produção.

O Centro de Estudos e Projetos de Energias Renováveis de Recife – PE desenvolveu dis-positivo de geração de energia solar para bombeamento de água dos poços em pequenas áreas de irrigação, visando à produção de culturas alimentares consorciadas com frutíferas, melho-rando a alimentação e a renda na agricultura familiar de comunidades rurais do semiárido. A adoção desta tecnologia permitiu o aumento da produtividade nas áreas irrigadas e aumento da renda familiar. Estes são alguns exemplos de tecnologias sociais que foram desenvolvidas com poucos recursos para atender demandas socioeconômicas de comunidades de baixa renda.

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Resumo

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Perspectiva de longo prazo Ainda que a mobilização de diversas instituições para estabelecer uma estratégia alternati-

va de desenvolvido seja um fenômeno recente, é possível identifi car avanços tanto na discussão sobre o conceito das tecnologias sociais, quanto nas ações empreendidas de desenvolvimento de tecnologias em interação com as comunidades de diversas regiões. Embora tenha ocorrido uma abertura do governo federal para aproximar a ciência e tecnologia das questões sociais, os dispêndios têm sido muito reduzidos. Iniciativas de gerar tecnologias para inclusão social não têm o peso compatível com as necessidades da população.

Numa perspectiva de longo prazo, vislumbra-se a multiplicação de ações de C&T para o desenvolvimento social na medida em que fortaleça as articulações entre as instituições da sociedade civil e organizações de pesquisa, permitindo o avanço do processo de democrati-zação do país. De todo modo, está cada vez mais evidente que é preciso investir em trajetórias tecnológicas para pequenos empreendimentos, alternativas ao avanço tecnológico das mul-tinacionais para estimular o desenvolvimento de regiões menos desenvolvidas que estão na periferia do sistema capitalista mundial.

Identifi que no seu cotidiano que necessidades poderiam ser atendidas por meio do desenvolvimento de tecnologias sociais.

Nesta aula, você aprendeu que existem tecnologias que são desenvolvidas para solucionar problemas sociais, aumentar a efi ciência de processos produtivos de pequena escala como as minifábricas de castanha de caju e melhorar as condições de vida das comunidades de baixa renda. Você aprendeu também que as tecnologias sociais são fruto da interação do conhecimento popular e científi co e os novos atores envolvidos nesse processo são originários de movimentos sociais e ONGs. Estes atores se organizam em rede, isto é, de forma não hierárquica. Entre as diferenças descritas na aula, as tecnologias sociais possibilitam ao trabalhador o controle dos meios de produção, enquanto as tecnologias capitalistas utilizadas pelas grandes empresas procuram manter o controle sobre os trabalhadores e o processo produtivo para obtenção de lucros.

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AutoavaliaçãoAgora que você compreendeu o que são tecnologias sociais, pesquise na internet alguns exemplos de tecnologias sociais que se enquadrem no conceito apreendido.

Tomando como referência a cidade onde você mora, aponte que demandas po-deriam ser atendidas pelas tecnologias sociais e quais segmentos da sociedade poderiam ser benefi ciados.

Pesquisa qual é o estágio de desenvolvimento das tecnologias sociais no Rio Gran-de do Norte ou na Região Nordeste.

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Anotações

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