modernismo na literatura brasileira

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Modernismo na Literatura

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Page 1: Modernismo Na Literatura Brasileira

2009Frederico BarbosaElaine Cuencas Santos

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IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

Todos os direitos reservados.

© 2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

B238 Barbosa, Frederico; Santos, Elaine Cuencas / Modernismo na Literatura Brasileira. / Frederico Barbosa; Elaine Cuencas

Santos — Curitiba : IESDE Brasil S.A., 2009.280 p.

ISBN: 978-85-387-0741-7

1. Modernismo – Brasil. 2. Literatura Brasileira. 3. História e crítica. 4. Poesia brasileira. I. Título. II. Santos, Elaine Cuencas.

CDD 709.04

Capa: IESDE Brasil S.A.

Crédito da imagem: IESDE Brasil S.A.

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É graduado em Letras Português pela Universidade de São Paulo (USP). Diretor do Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura (Casa das Rosas), em São Paulo. Poeta, é autor de Nada Feito Nada (1993), Cantar de Amor entre os Escom-bros (2002) e A Consciência do Zero (2004).

Frederico Barbosa

Mestra em Estudos Comparados de Literatura em Língua Portuguesa pela USP, graduada em Letras Português e Italiano pela USP.

Elaine Cuencas Santos

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Sumário

Vanguardas modernistas e a Semana de 22 ................... 11

O que buscavam as vanguardas modernistas? .............................................................. 11

Poesia de vanguarda ................................................................................................................ 14

Narrativa de vanguarda .......................................................................................................... 18

A fase heroica do Modernismo brasileiro ......................................................................... 22

Oswald de Andrade ................................................................. 37

Biografia ........................................................................................................................................ 37

Oswald romancista ................................................................................................................... 38

Oswald poeta .............................................................................................................................. 39

Mário de Andrade .................................................................... 51

Macunaíma e a renovação da linguagem literária ........................................................ 53

Manuel Bandeira ....................................................................... 71

Vida que podia ter sido ........................................................................................................... 71

Libertinagem ................................................................................................................................ 74

A poesia da Geração de 1930 no Brasil ............................ 87

Por que a Geração de 1930 foi tão fértil? .......................................................................... 87

A poesia da Geração de 1930 ................................................................................................ 87

Murilo Mendes ........................................................................................................................... 88

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Cecília Meireles ........................................................................................................................... 90

Vinicius de Moraes .................................................................................................................... 92

Outros poetas de importância do período ...................................................................... 93

Carlos Drummond de Andrade .........................................107

Quase um século de poesia .................................................................................................107

A estreia em livro .....................................................................................................................113

O romance da Geração de 1930 ........................................127

O precursor: José Américo de Almeida ...........................................................................127

Graciliano Ramos .....................................................................................................................128

José Lins do Rego ....................................................................................................................128

Erico Verissimo .........................................................................................................................134

Rachel de Queiroz ...................................................................................................................138

Jorge Amado ............................................................................................................................139

O romance urbano ..................................................................................................................142

Graciliano Ramos ....................................................................155

Prefeito, educador e escritor ...............................................................................................155

Com as mesmas vinte palavras ..........................................................................................157

Caetés ...........................................................................................................................................158

São Bernardo .............................................................................................................................158

Vidas Secas .................................................................................................................................160

Memórias do Cárcere ...............................................................................................................162

João Guimarães Rosa ............................................................175

A Geração de 1945 ..................................................................................................................175

Mineiro e universal .................................................................................................................175

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O estilo insólito ........................................................................................................................176

A obra ..........................................................................................................................................176

Clarice Lispector .....................................................................193

A ação interior ..........................................................................................................................194

A Hora da Estrela .......................................................................................................................198

João Cabral de Melo Neto ...................................................211

O poeta do rigor ......................................................................................................................211

O rigor das coisas ....................................................................................................................216

As duas águas ...........................................................................................................................218

Morte e Vida Severina ..............................................................................................................220

Poesia concreta .......................................................................237

O grupo Noigandres ...............................................................................................................237

A poesia concreta: rock’n’roll da poesia? ........................................................................238

O contexto .................................................................................................................................240

As propostas ..............................................................................................................................241

Re-visões e traduções ............................................................................................................251

Gabarito .....................................................................................259

Referências ................................................................................271

Anotações .................................................................................279

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Apresentação

Pelas próximas 12 aulas, estudaremos o Modernismo brasileiro, come-çando pelas vanguardas europeias que influenciaram os jovens artistas brasilei-ros, culminando na Semana de Arte Moderna de 1922. Durante a segunda, ter-ceira e quarta aulas, iremos nos aprofundar nos três grandes nomes da primeira geração modernista: Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Na quinta aula, conheceremos a poesia da Geração de 1930 e mais espe-cificamente, durante a sexta aula, Carlos Drummond de Andrade. Em seguida, ve-remos o romance da chamada Geração de 30 e Graciliano Ramos, respectivamen-te na sétima e oitava aulas. Na reta final do livro, abordaremos em cada aula um escritor específico: João Guimarães Rosa (nona aula), Clarice Lispector (décima aula) e João Cabral de Melo Neto (décima primeira aula). Finalizamos, na décima segunda aula, com a poesia concreta, talvez o único movimento literário a surgir, se não antes, pelo menos ao mesmo tempo no Brasil e no resto do mundo.

Frederico Barbosa

Elaine Cuencas Santos

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O que buscavam as vanguardas modernistas? A literatura de vanguarda, como todos os movimentos culturais consi-

derados vanguardistas, é antes de qualquer coisa uma ruptura, uma nega-ção de tudo que a precede. Há uma procura de novos métodos de criação, novas formas e novos temas. Os prosadores e poetas de vanguarda esta-vam de acordo, basicamente, quanto à recusa das normas de composição vigentes, defendendo a total liberdade de criação e a busca de uma nova linguagem. Esse anseio de novidade é justificado pelo próprio termo van-guarda, que significa “avanço”, “movimento de liderança” do grupo ou da sociedade que se tenta transformar. Essa ruptura com o passado refletiu-se na utilização de uma linguagem nova, cheia de mensagens por decifrar, de difícil digestão.

Foram cinco os principais movimentos de vanguarda que tomaram a Europa:

Futurismo; �

Expressionismo; �

Cubismo; �

Dadaísmo; �

Surrealismo. �

Cada um deles com manifestos e características próprias.

Vanguardas modernistas e a Semana de 22

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FuturismoO Futurismo tem como marco inicial a publicação do Manifesto do Futurismo, de

Filippo Tommaso Marinetti. Com raízes fortemente italianas, o Futurismo era ufanis-ta, antipassadista e exaltava a tecnologia, a modernidade e a guerra. “Nós declara-mos que o esplendor do mundo se enriqueceu com uma beleza nova: a beleza da velocidade” (MARINETTI, 1909). Aos poucos, o Futurismo aproximou-se muito do fas-cismo italiano de Mussolini, sendo até considerado sua expressão artística. Além de Marinetti, alguns expoentes do Futurismo foram os poetas Paolo Buzzi e Cavacchioli, os pintores Russolo e Carrá, o arquiteto Antônio Sant’Elia e o músico Bailla Pratella.

Expressionismo Ao contrário do Futurismo, o Expressionismo nunca foi um movimento organi-

zado e nem se autodenominava dessa maneira. Seus principais nomes surgiram na Alemanha e entre seus temas estavam a decadência do mundo burguês e ca-pitalista, a denúncia de um universo em crise e a sensação de impotência frente a “um mundo sem alma”. Os expressionistas utilizavam visões negativistas, a inte-rioridade do “eu”, a deformação do mundo e a busca pelo absoluto. Um trecho do único manifesto da poesia expressionista, de Kasimir Edschmid (1918) diz:

Assim o universo total do artista expressionista torna-se visão. Ele não vê, mas percebe. Ele não descreve, acumula vivências. Ele não reproduz, ele estrutura (gestaltet). Ele não colhe, ele procura. Agora não existe mais a cadeia dos fatos: fábricas, casas, doença, prostitutas, gritaria e fome. Agora existe a visão disso. Os fatos têm significado somente até o ponto em que a mão do artista os atravessa para agarrar o que se encontra além deles.

Cubismo O Cubismo surgiu primeiro na pintura. Em 1905, Apollinaire conheceu Picas-

so. Em 1909, o movimento cubista já se destacava nas artes plásticas. Na literatu-ra, o primeiro manifesto dessa tendência apareceu em 1913, escrito por Apolli-naire. Em contraste com os futuristas, os cubistas combinavam a destruição da estética clássica com a construção de um novo modo de representar o mundo. Suas principais características na literatura eram o ilogismo, a simultaneidade, o instantaneísmo e o humor. Em um artigo de 1913, Apollinaire afirmava:

Os grandes poetas e os grandes artistas têm por função social remover continuamente a aparência que reveste a natureza, aos olhos dos homens. Sem os poetas, sem os artistas, os

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homens aborrecer-se-iam depressa com a monotonia natural. A ideia sublime que eles têm do universo cairia com vertiginosa rapidez. A ordem, que aparece na natureza e que não é senão um efeito da arte, logo se evaporaria. Tudo se desmancharia no caos.

DadaísmoDentre todos os movimentos de vanguarda, o Dadaísmo foi o mais radical.

Nascido em 1916, em um café em Zurique, na Suíça, um dos únicos lugares segu-ros na Europa durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), seus fundadores eram cinco refugiados pacifistas revoltados com a situação social da Europa. O Dadaísmo lançava-se contra todos os valores culturais, atacando todas as con-venções e formas e combinando a ironia ácida com o nonsense e a visão infan-til. Hugo Ball, um dos fundadores do movimento, escrevendo um verbete para um dicionário alemão, definiu o dadaísta como um “homem infantil, quixotesco, ocupado com os jogos de palavras e com as figuras gramaticais”. As obras da-daístas caracterizavam-se pela improvisação, pela desordem, pela percepção e pela negação de qualquer tipo de equilíbrio de formas, ideias ou sentimentos. Em seu Manifesto Dadá, de 1918, Tristan Tzara, líder do movimento, afirmou:

Eu redijo um manifesto e não quero nada, eu digo portanto certas coisas e sou por princípio contra os manifestos, como sou também contra os princípios [...] dadá não significa nada [...] Eu sou contra os sistemas, o mais aceitável dos sistemas é aquele que tem por princípio não ter princípio nenhum...

SurrealismoCronologicamente, o Surrealismo foi o último movimento das vanguardas

europeias. Com raízes no Expressionismo alemão e a redescoberta de autores como Sade, Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé, utilizava as teorias de Freud e do marxismo para tentar enxergar o homem livre de suas ligações psicológicas e culturais. Apoiados no desenvolvimento da psicologia, nas experiências com o sono hipnótico, no método da escrita automática e no pensamento falado, os surrealistas procuravam explorar o inconsciente humano e o sonho. Em seu pri-meiro manifesto, de 1924, Breton escreveu:

Eu o defino, portanto, de uma vez por todas: surrealismo, s. m. Automatismo psíquico pelo qual alguém se propõe a exprimir seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de qualquer preocupação estética ou moral.

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Poesia de vanguarda

Apollinaire Guillaume Apollinaire nasceu em Roma, em 1880, e morreu em Paris, em

1918. Filho de pai italiano e mãe polonesa, mudou-se para Paris em 1899. Ali se integrou à vida cultural francesa e conheceu Picasso e Max Jacob. Sua poesia tentou romper com as estruturas tradicionais da linguagem, criando formas po-éticas revolucionárias capazes de criar realidades surpreendentes. Seus caligra-mas, poemas visuais cubistas, publicados em 1918, foram parte desse projeto.

O caligrama La Colombe Poignardée et le Jet d’Eau (A pomba apunhalada e a fonte), de Apollinaire. Disponível em: <www.ubu.com/historical/app/app5.html>.

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Tristan TzaraO Dadaísmo foi o mais extremo movimento de vanguarda. Os poetas dada-

ístas negaram e destruíram a tudo: a rima, o ritmo e sobretudo o significado lógico. Por exemplo, os dadaístas compunham seus poemas recolhendo re-cortes de jornais a esmo e colando-os um após o outro. Com isso, desejavam atacar o discurso racional que, segundo eles, havia levado à Primeira Guerra Mundial, que o mundo sofria na época. O fundador do Dadaísmo foi Tristan Tzara (1896-1963), de origem romena, que publicou seu Manifesto Dadá em 1918.

André BretonNasceu na região francesa da Normandia, em 1896, e morreu em Paris, em

1966. Fundador do Surrealismo, ele defendia a ideia de que na mente humana há uma vida interior que age por si mesma, sem que possamos intervir, e que na composição poética ela deve manifestar-se sem obstáculos. Muito influen-ciado por Sigmund Freud, Breton praticou a escrita automática, escrevendo as palavras e imagens que lhe ocorriam livremente à consciência, tal como ocorre quando sonhamos. Publicou Os Passos Perdidos (1924), O Surrealismo e a Pintura (1928), Fata Morgana (1942) e a Arte Mágica (1957).

Aragon e Éluard Louis Aragon nasceu em Paris, em 1897, e morreu na mesma cidade, em 1982.

Junto com Breton e Éluard, foi um dos fundadores do Surrealismo e suas ideias sobre esse movimento apareceram em seus livros de poemas Fogo de Gozo (1920), O Movimento Perpétuo (1926) e A Grande Alegria (1929).

O também francês Paul Éluard nasceu em Saint-Denis, em 1895, e morreu em Charenton, em 1952. Seu verdadeiro nome era Eugène Grindel. No início defen-sor do movimento surrealista, acabou por renunciar a essa filosofia, demasiado centrada nos processos mentais do indivíduo. Entre seus livros de poemas se destacam Morrer por não Morrer (1924), Os Olhos Férteis (1976), Poesia Ininterrup-ta (1946) e Últimos Poemas de Amor (1963).

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Filippo Tomaso MarinettiNascido em Alexandria, em 1876, e morto em Bellagio, em 1944, Marinetti foi o

principal teórico das ideias do Futurismo italiano, que defendia a todo custo o pro-gresso baseado na tecnologia, o ímpeto da máquina e a velocidade. Seu desprezo absoluto pela dignidade humana e sua defesa do maquinalismo o levou a aderir, nos anos de 1920, ao fascismo italiano liderado por Mussolini. Os títulos de suas obras são uma clara mostra de suas ideias, como por exemplo Canto Heroico e Má-quinas da Guerra Mussoliniana (1942) ou O Exército Italiano, Poesia Armada (1942).

Giuseppe UngarettiNascido em Alexandria, em 1888, e falecido em Milão, em 1970, Ungaretti foi

uma das principais figuras da chamada poesia hermética. Caracterizou-se pela brevidade e pela simplicidade expressiva, como reação à grandiloquente e pom-posa retórica fascista da época. Escreveu Alegria do Naufrágio (1919) e Sentimen-to do Tempo (1933). Depois da morte de seu filho, publicou A Dor (1947).

Outros poetas herméticos foram Eugenio Montale (1896-1981) e Salvatore Quasimodo (1901-1968), que receberam Prêmio Nobel, respectivamente em 1975 e 1959.

Lírica de vanguarda soviéticaO vanguardismo esteve bem vivo na Rússia antes e depois da Revolução

Soviética (1917). Antes de se converter no poeta oficial da revolução, Vladimir Maiakovski (1893-1930) foi o grande poeta do Futurismo. Entretanto, as auto-ridades soviéticas não toleravam o caráter individualista dos vanguardistas, a maioria dos quais foram assassinados pelo novo regime, morreram em campos de concentração ou se suicidaram, como Serguei Essenin (1895-1925), Ossip Mandelstam (1891-1958) e Marina Tsvetáieva (1892-1941).

Poesia de vanguarda em língua inglesa Os três principais poetas em língua inglesa são Ezra Pound, T. S. Eliot e e. e.

cummings.

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Nascido em Hailey (Estados Unidos), em 1885, e falecido em Veneza, em 1972, Ezra Pound chegou à Itália em 1924 e ali se entusiasmou pela cultura do país, seu passado clássico e sua literatura, chegando a defender o fascismo de Mussolini. Naquela época, Pound começou a composição de sua grande obra poética, que ocupou várias décadas de sua vida – Os Cantos, destacando-se os Cantos pisa-nos, escritos entre 1945 e 1946.

Thomas Stearns Eliot (1888-1965) publicou em 1922 o poema The Wasteland, que é um testemunho da desilusão dos poetas depois da Primeira Guerra Mun-dial. Sua poesia é meditativa, muito rigorosa na forma e repleta de citações clás-sicas, com certo tom místico. Seu livro culminante é Quatro Quartetos, de 1943. Em 1948, recebeu o Prêmio Nobel.

Eliot influenciou toda uma geração de poetas de grande valor, como Robert Graves (1895-1985) e W. H. Auden (1907-1973). e. e. cummings.

cummings, que fazia questão de grafar seu nome em letras minúsculas, nasceu em Cambridge, Massachussets, em 1894, e morreu em New Hampshire, em 1962. Em 1922, publicou seu primeiro livro de poemas, Tulipas e Chaminés, influenciado pelas ideias dadaístas, que combinavam imagens e conceitos de um modo absurdo, como amostra da condição absurda da vida humana. Suas preocupações com a sonoridade e a disposição gráfica das palavras o levaram a fazer experiências muito originais com a poesia.

Poesia de vanguarda alemã A poesia de vanguarda em língua alemã é marcada por duas influências fun-

damentais: a de Nietzsche e a do movimento expressionista.

O expressionismo critica ferozmente a sociedade alemã capitalista, indus-trial, acumuladora de riquezas e exploradora das classes trabalhadoras. Gottfried Benn, nascido em Mansfeld, em 1886, e falecido em Berlim, em 1956, é um de seus melhores expoentes. De sua fase expressionista, destacam-se os poemas Morgue (1913), Filhos (1913), Carne (1917) e Ruína (1924).

Outros poetas da vanguarda alemã foram Georg Trakl (1887-1914), que em seus versos expressou como poucos a angústia perante a morte, e morreu em combate na Primeira Guerra Mundial; Stefan George (1868-1923) e Hugo von Hofmannsthal (1874-1929).

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Narrativa de vanguardaA narrativa do princípio do século XX pautou-se por dois princípios básicos:

a inovação estética e a representação de uma realidade sociopolítica cruel. Este último aspecto marcou o mundo da cultura na Europa no período entre as duas guerras mundiais e dificilmente poderia ausentar-se da arte, muito menos da literatura. Frente a essa destruição, levantou-se uma nova estética, oposta a tudo o que a precedeu. No terreno narrativo, duas correntes de pensamento se so-bressaem: o Existencialismo e o Marxismo. Ambas iriam prevalecer depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

As vanguardas na ItáliaÉ na Itália que aparece o primeiro grupo vanguardista europeu: o Futurismo.

Seu representante máximo foi Marinetti (1876-1944), cujo primeiro manifesto data de 1909. Segundo Marinetti, entre as inovações formais da literatura futu-rista devem estar:

a destruição da sintaxe, dispondo os substantivos a esmo; �

o uso dos verbos no infinitivo; �

a abolição dos adjetivos, advérbios e sinais de pontuação. �

Futuristas como Palazzeschi ou Paolo Duzzi exploraram o terreno do mecâ-nico e do irreal.

Porém, frente à retórica artificial, mecanicista e fantasiosa do Futurismo apa-receram, na Itália, correntes opostas encabeçadas pela chamada prosa d’arte, cujos escritores mais representativos foram Cesare Pavese (1908-1950) e Alberto Moravia (1907-1990). Esse tipo de literatura em prosa se caracteriza pelo pre-domínio de um realismo moralista e ético, que vê a experiência futurista como inconsequência.

Já Italo Svevo (1861-1928) é considerado o precursor de Joyce e Proust por seu romance A Consciência de Zeno (1923), em que analisa a consciência humana segundo o método psicanalítico de Sigmund Freud.

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Vanguarda narrativa na França A literatura francesa do início do século XX oscilou entre as experiências de

vanguarda (Surrealismo e Existencialismo) e uma literatura mais tradicional. Na primeira tendência, destacam-se romances como Nadja (1928), de André Breton, e Moravagine (1926), do franco-suíço Blaise Cendras; na segunda vertente, auto-res como François Mauriac (1885-1970) e Georges Bernanos (1888-1948), os cha-mados moralistas católicos. Outros romancistas importantes foram André Mal-raux (1901-1976), autor de A Condição Humana (1933), e Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), autor de Viagem ao Fim da Noite (1932), no qual retrata um mundo dominado pela irracionalidade e pela crueldade do destino, com uma lingua-gem raivosa e violenta que muito influenciou os escritores que vieram depois. Mas, acima de todos, se sobressai a figura de Marcel Proust (1871-1922).

Marcel Proust O romance de vanguarda teve na França um precursor indiscutível: Marcel

Proust, cuja obra se enquadra na linha do Simbolismo realista. Proust tentou fazer da literatura uma confidência pessoal e um meio de expressão global da experiência do homem no mundo. Seu primeiro romance foi Os Prazeres e os Dias (1896). De 1895 a 1905, escreveu sua extensa obra Jean Santeuil, publicada em 1952. Em 1910, começou a trabalhar em uma das obras mais importantes do século XX, Em Busca do Tempo Perdido (1913-1927), que, com seu poder de penetração nas profundezas da memória e da psicologia humana, e suas frases longas e musicais, marcou definitivamente toda a literatura posterior.

Franz Kafka O escritor de língua alemã mais importante deste período foi Franz Kafka

(1883-1924), de ascendência judaica, nascido em Praga (na então Tchecoslo-váquia), mas de formação germânica. Em 1906, concluiu seus estudos e pouco depois foi trabalhar em uma companhia de seguros, ocupação que manteve até 1922, e que fez dele um deprimido funcionário de escritório, buscando ansiosamente uma maneira de se dedicar à sua vocação literária. Em sua obra

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se observa um bloqueio causado pela culpa e um desejo silencioso de mar-ginalidade, aumentado por sua condição de judeu. Sua produção literária se aproxima de um realismo fantástico e expressionista, sem abandonar o caráter existencialista que parece ter marcado toda a sua vida. O tema do julgamen-to e do castigo é uma constante em sua obra. Kafka deixou inacabados três romances: América (1927), O Processo (1925) e O Castelo (1926). Seus contos também são muito importantes: Descrição de uma Luta (1909), Considerações (1912) e, o mais famoso, A Metamorfose (1915).

Hesse, Broch e MusilHermann Hesse (1877-1962) desenvolveu em seus romances Demian (1919)

e O Jogo das Contas de Vidro (1943) certo misticismo por meio de elementos simbólicos.

Hermann Broch (1886-1951) descreve, em Os Sonâmbulos (1931-1932), a de-gradação da sociedade alemã desde a proclamação do Segundo Império até a derrota na Primeira Guerra Mundial. Escreveu também A Morte de Virgílio (1945) e O Tentador (1953).

Robert Musil (1880-1942) é considerado, ao lado de Proust, Joyce e Kafka, o grande renovador do romance do século XX, especialmente por sua obra O Homem sem Qualidades (1930-1943), em que, ao longo de duas mil páginas, ana-lisa a decomposição do Império austro-húngaro por meio de numerosos perso-nagens com diferentes psicologias.

James JoyceJames Joyce (1882-1941) foi o escritor mais importante da língua inglesa nos

primeiros anos do século XX, trazendo para a literatura a autoconsciência da lin-guagem e a captação do subconsciente. Retratou, de forma complexa, a realidade cotidiana da Dublin da sua infância e juventude. Em 1914, publicou seu livro de contos Dublinenses. Em 1916, o romance Retrato do Artista quando Jovem, verda-deiro prólogo à sua obra mais representativa: Ulisses (1922), epopeia que transcor-re ao longo de um único dia da vida de Leopold Bloom. Esse romance se estrutura a partir de complexas técnicas narrativas como o monólogo interior e as tramas si-multâneas. Sua última obra é Finnegans Wake, que foi publicada aos poucos, como um work in progress “obra em andamento”, e teve edição integral em 1939. Nesse

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livro, Joyce radicaliza o processo de experimentação: as imagens se sobrepõem e palavras são criadas a partir de numerosas línguas.

Virginia WoolfVirginia Woolf (1882-1941) se dedicou a investigar o transcorrer do tempo e a

situação da mulher. Em O Quarto de Jacob (1922), narra a vida de um rapaz desde a infância até sua morte no campo de batalha. Mrs. Dalloway (1925) e Ao Farol (1927) são dois importantes romances em que Virginia Woolf investe menos na ação ou na intriga e mais em uma reflexão sobre a profundidade da consciência. Também se destaca As Ondas (1931), e em Orlando (1929), a ambiguidade sexual da personagem central perdura durante séculos.

D. H. LawrenceDavid Herbert Lawrence (1885-1930) retratou duramente o convencionalis-

mo da moral burguesa e puritana inglesa. Suas obras de alto conteúdo sexual sofreram processos e condenações judiciais. Destacam-se Filhos e Amantes (1913) e O Amante de Lady Chatterley (1928). Lawrence foi pouco a pouco se distanciando de um mundo que não suportava, dominado pelo puritanismo, a moral burguesa e a industrialização. Fez da literatura uma experiência solitária e pessoal, que transformou em um grito dirigido aos seres humanos de quem se havia distanciado.

Gertrude SteinNascida na Pensilvânia, Gertrude Stein (1874-1946) se mudou para Paris em 1902,

tornando-se grande colecionadora de arte e amiga de artistas como Cézanne e Picas-so, que pintariam retratos seus. A casa em que morava com Alice B. Toklas na rue de Fleurus tornou-se um dos pontos de encontro favoritos de pintores e escritores de vanguarda de todas as nacionalidades. Sua prosa revolucionária, próxima da poesia, constrói-se por meio de repetições constantes e o abandono de todas as convenções, inclusive as gramaticais. Destacam-se seu livro de contos Três Vidas (1909), Tender But-tons (1914), e The Making of the Americans (1925). O retrato mais vibrante da Paris do início do século foi pintado por Stein no livro Autobiografia de Alice B. Toklas (1933), em que escreve a “autobiografia” de sua companheira e retrata a vida de ambas e de seus amigos pintores e escritores, como Picasso, Matisse, Apollinaire e Hemingway.

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A fase heroica do Modernismo brasileiro

Por que chamamos de fase heroica o início do Modernismo brasileiro?

No Brasil, os modernistas tiveram que lutar muito para impor a sua revolução. O reacionarismo da sociedade brasileira e o atraso cultural generalizado colo-caram inúmeras barreiras à renovação artística e cultural do país. A Academia Brasileira de Letras transformou-se, então, na guardiã das tradições, defendendo com afinco a estética parnasiana contra os ataques dos “heróis” vanguardistas. Suas propostas de modernização das técnicas de composição poética, abolindo a rima e a métrica, assim como de aproximação entre a literatura e a linguagem popular, valorizando a língua e a cultura do povo, jamais poderiam ser aceitas pelos defensores da norma culta e da arte pela arte. Essa foi, portanto, uma fase de árdua destruição dos valores antigos, em busca da construção de uma nova e vigorosa literatura.

Antecedentes do ModernismoDurante as duas primeiras décadas do século XX, período que se convencio-

nou chamar de pré-modernista, as ideias das vanguardas modernistas europeias começaram a penetrar na arte brasileira. Além dos aspectos antecipatórios das obras dos pré-modernistas, como o Expressionismo e o Prosaísmo de Augusto dos Anjos, a linguagem coloquial de Lima Barreto e a análise crítica da realidade brasileira levada a cabo por Euclides da Cunha, Monteiro Lobato e Graça Aranha, manifestações já propriamente modernistas começaram a ocorrer.

Ainda em 1909, o Manifesto Futurista de Marinetti foi reproduzido em jornais brasileiros e, assim, no Brasil, as manifestações de vanguarda passaram a ser de-nominadas, genericamente, de “futuristas”.

Contagiado pelas novidades durante uma viagem à Europa, em 1912, Oswald de Andrade traz ao Brasil as ideias que redundariam na revolução de 1922.

Em 1917, a exposição de pinturas expressionistas de Anita Malfatti, em São Paulo, gerou uma polêmica entre Oswald e Monteiro Lobato sobre as inovações estéticas.

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Em 1921, Oswald saudou, pelos jornais, o jovem Mário de Andrade chamando-o de “meu poeta futurista”, o que, embora desagradando a Mário, uniu os dois poetas.

Por essa época, o escultor Victor Brecheret e o músico Heitor Vila-Lobos já apresentavam uma obra modernista.

E, em 1922, a Semana de Arte Moderna aglutinou todas essas manifestações.

A Estudante, tela de Anita Malfatti incluída na exposição de 1917.

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A Semana de Arte Moderna A Semana, na realidade, durou apenas três dias, mas nunca três dias abalaram

tanto o mundo da arte brasileira. Nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, sob o apadrinhamento do romancista pré-modernista Graça Aranha, os jovens paulis-tanos empenhados em revolucionar a arte apresentaram, pela primeira vez em

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conjunto, suas ideias de vanguarda. Realizada no Teatro Municipal de São Paulo, a Semana foi aberta com a conferência “A emoção estética na arte”, em que Graça Aranha atacava o conservadorismo e o academicismo da arte brasileira. Seguiram-se leituras de poemas de, entre outros, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira, que não pôde comparecer e cujo poema “Os sapos” foi lido por Ronald de Carvalho sob um coro de coaxos e vaias. Mário de Andrade leu seu ensaio “A escrava que não é Isaura” nas escadarias do teatro, obras de Anita Malfatti, Di Ca-valcanti, Victor Brecheret e outros artistas plásticos e arquitetos foram expostas. Por fim, apresentaram-se a pianista Guiomar Novaes e o maes-tro e compositor Heitor Vila-Lobos, que não foi poupado das vaias. Como se vê, a recepção da Semana não foi tranquila. As ousadias mo-dernistas inquietavam e irritavam o público.

A literatura paulistana confirmava sua tendência à ruptura consequente, sempre fundamentada na erudição de um estudioso como Mário de Andrade ou de um permanente revolucionário que foi Oswald de Andrade. Procurava, também, esta-belecer certa independência da nossa literatura em relação à europeia. Cerca de 20 anos depois, Mário de Andrade comentou a experiência de enfrentar a plateia:

[...] como tive coragem para dizer versos diante duma vaia tão bulhenta que eu não escutava no palco o que Paulo Prado me gritava da primeira fila das poltronas?... Como pude fazer uma conferência sobre artes plásticas, na escadaria do Teatro, cercado de anônimos que me caçoavam e ofendiam a valer?... O meu mérito de participante é mérito alheio: fui encorajado, fui enceguecido pelo entusiasmo dos outros.

Grupos e movimentos Após a Semana de Arte Moderna, surgiram no Brasil diversos grupos que pro-

curavam, cada um a seu modo, difundir a arte moderna. Alguns logo se desta-caram pelo feroz antagonismo. Os movimentos Pau-Brasil (1925) e Antropofagia

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(1928) foram criados por Oswald de Andrade e reuniam jovens como Raul Bopp e Antônio de Alcântara Machado.

O Pau-Brasil defendia a produção de uma literatura de exportação, primitiva mas sofisticada, que pudesse competir com as estrangeiras.

O Movimento Antropófago pregava uma relação de igualdade da cultura bra-sileira com as demais: não a rejeição pura e simples do que vem de fora, mas consumir aquilo que há de bom na arte estrangeira; não evitá-la, mas, como um antropófago, comer o que mereça ser comido.

Já os movimentos Verde-amarelo (capitaneado por Menotti del Picchia e Cas-siano Ricardo) e Anta (que, sucedendo o Verde-amarelo, era liderado por Plínio Salgado, um admirador do fascismo), pautavam-se por um nacionalismo xenó-fobo, avesso a tudo que viesse do estrangeiro.

Os dois grupos (um que dialogava com a cultura estrangeira e outro que a repudiava) só poderiam se confrontar. “Verde e amarelo dá azul? Não, dá azar” – publicou a Revista de Antropofagia.

As revistas modernistas Os modernistas se agrupavam em torno de publicações. A primeira revista

modernista no Brasil apareceu em São Paulo: a Klaxon (1922), de projeto gráfico inovador e contando com as colaborações, entre outros, de Mário de Andrade, Guilherme de Almeida e Manuel Bandeira.

No Rio de Janeiro, surgiu a Estética (1924), dirigida por Prudente de Moraes Neto e Sérgio Buarque de Holanda, bem menos ousada do que a corresponden-te paulistana.

Além de outras revistas lançadas em São Paulo e no Rio, aparecem publica-ções por todo o país. Podemos citar, entre outras:

em Cataguases (MG), a revista � Verde (1927);

em Porto Alegre (RS), a � Madrugada (1929);

em Fortaleza (CE), � Maracajá (1929).

Mas a de maior impacto foi a Revista de Antropofagia (1928-29), publicada por Oswald de Andrade. Nela foram lançados poemas de Carlos Drummond de

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Andrade e Murilo Mendes; o primeiro capítulo de Macunaíma, de Mário de An-drade, e numerosos outros textos de importância.

Texto complementar

Manifesto Antropófago

Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupi, or not tupi that is the question.

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicolo-gia impressa.

O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.

Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos tou-ristes. No país da cobra grande.

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.

Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.

Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência pal-pável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.

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Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unifi-cação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.

A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.

Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Où Villegaignon print terre. Mon-taigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos.

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.

Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.

Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo.

Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.

O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfis-mo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religi-ões de meridiano. E as inquisições exteriores.

Só podemos atender ao mundo orecular.

Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.

Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquis-tas interiores.

Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.

O instinto Caraíba.

Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu.

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Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.

Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de sena-dor do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.

Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.

Catiti Catiti

Imara Notiá

Notiá Imara

Ipeju

A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.

Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Ma-thias. Comi-o.

Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?

Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.

A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.

Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.

Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.

Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.

Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viven-tes. Jaci é a mãe dos vegetais.

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Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social planetário.

As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.

De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.

O pater familias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas + falta de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.

É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à ideia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.

O objetivo criado reage como os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.

A alegria é a prova dos nove.

No matriarcado de Pindorama.

Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.

Somos concretistas. As ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as ideias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.

Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.

A alegria é a prova dos nove.

A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contra-dição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modus vi-vendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O

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que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao avilta-mento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristiani-zados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.

Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Irace-ma, – o patriarca João.

Ramalho fundador de São Paulo.

A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.

Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a re-alidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.

Oswald De Andrade

Em Piratininga

Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.

(ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropólogo. – Revista de Antropofagia, São Paulo,

maio 1928. Ano1, n.1.)

Estudos literários1. Leia o texto abaixo e responda à questão.

Manifesto do Futurismo (trecho)Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito à energia e à temeridade.1.

Os elementos essenciais de nossa poesia serão a coragem, a audácia 2. e a revolta.

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Tendo a literatura até aqui enaltecido a imobilidade pensativa, o êx-3. tase e o sono, nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo ginástico, o salto mortal, a bofetada e o soco.

Nós declaramos que o esplendor do mundo se enriqueceu com uma 4. beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre adornado de grossos tubos como serpentes de fôlego ex-plosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia.

Nós queremos cantar o homem que está na direção, cuja haste ideal 5. atravessa a Terra, arremessada sobre o circuito de sua órbita.

É preciso que o poeta se desgaste com calor, brilho e prodigalidade, 6. para aumentar o fervor entusiástico dos elementos primordiais.

Não há mais beleza senão na luta. Nada de obra-prima sem um caráter 7. agressivo. A poesia deve ser um assalto violento contra as forças des-conhecidas, para intimá-las a deitar-se diante do homem.

Nós estamos sobre o promontório extremo dos séculos!... Para que 8. olhar para trás, no momento em que é preciso arrombar as portas misteriosas do impossível? O tempo e o espaço morreram ontem. Nós vivemos já no absoluto, já que nós criamos a eterna velocidade oni-presente.

Nós queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo – o mi-9. litarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas ideias que matam, e o menosprezo à mulher.

Nós queremos demolir os museus, as bibliotecas, combater o moralis-10. mo, o feminismo e todas as covardias oportunistas e utilitárias.

Nós cantaremos as grandes multidões movimentadas pelo trabalho, 11. pelo prazer ou pela revolta; as marés multicoloridas e polifônicas das revoluções nas capitais modernas; a vibração noturna dos arsenais e dos estaleiros e suas violentas luas elétricas; as estações glutonas comedoras de serpentes que fumam; as usinas suspensas nas nuvens pelos barbantes de suas fumaças; as pontes para pulos de ginastas lançadas sobre a cutelaria diabólica dos rios ensolarados; os navios aventureiros farejando o horizonte; as locomotivas de grande peito,

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que encoucinham os trilhos, como enormes cavalos de aço freados por longos trilhos, e o voo deslizante dos aeroplanos, cuja hélice tem os estalos da bandeira e os aplausos da multidão entusiasta.

(MARINETTI apud TELLES, 1976, p. 85-86.)

Identifique no trecho do Manifesto do Futurismo quais itens demonstram o apreço desse movimento pela modernidade, qual os aproxima dos ideais fascis-tas e quais indicam o rompimento com a arte e literatura até então. Justifique.

2. Leia com atenção o poema a seguir e responda à questão.

Os saposManuel Bandeira

Enfunando os papos, Saem da penumbra, Aos pulos, os sapos. A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra, Berra o sapo-boi: - “Meu pai foi à guerra!” - “Não foi!” - “Foi!” - “Não foi!”.

O sapo-tanoeiro, Parnasiano aguado, Diz: - “Meu cancioneiroÉ bem martelado.

Vede como primo Em comer os hiatos! Que arte! E nunca rimo Os termos cognatos.

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O meu verso é bom Frumento sem joio. Faço rimas com Consoantes de apoio.

Vai por cinquenta anos Que lhes dei a norma: Reduzi sem danos A fôrmas a forma.

Clame a saparia Em críticas céticas:Não há mais poesia, Mas há artes poéticas...”

Urra o sapo-boi: - “Meu pai foi rei!”- “Foi!” - “Não foi!” - “Foi!” - “Não foi!”. Brada em um assomo

O sapo-tanoeiro: - A grande arte é como Lavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário. Tudo quanto é belo, Tudo quanto é vário, Canta no martelo”.

Outros, sapos-pipas (Um mal em si cabe), Falam pelas tripas, - “Sei!” - “Não sabe!” - “Sabe!”.

Longe dessa grita, Lá onde mais densa A noite infinita Veste a sombra imensa;

Lá, fugido ao mundo, Sem glória, sem fé, No perau profundo solitário, é

Que soluças tu, Transido de frio, Sapo-cururu Da beira do rio...”

“Os sapos” faz uma analogia com a poesia da época em que foi escrito. Qual o conflito retratado no poema?

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Poema tirado de uma notícia de jornalManuel Bandeira

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilô-nia num barracão sem número

Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro

Bebeu

Cantou

Dançou

Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

Que características presentes nesse poema são marcadamente modernistas?

3. Leia com atenção o poema abaixo e responda à questão.

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BiografiaNasceu e morreu em São Paulo. Poucos, entre estes dois momentos,

agitaram tanto, mudaram tanto e, no entanto, foram tão desprezados. Rico e comunista, perdeu a fortuna, em parte graças à quebra da Bolsa de Valores de Nova York (1929), em parte por seu desregramento. Casou-se seis vezes. Criou movimentos vários, e viu, no final da vida, o seu sonhado Modernismo triunfar, enquanto ele, seu maior defensor, era esquecido e relegado ao papel de mero incendiário irresponsável. Arrogante e gene-roso, Oswald de Andrade é uma das figuras mais contraditórias, ricas e fascinantes da literatura brasileira. Além de seu papel primordial na divul-gação do Modernismo no Brasil, Oswald de Andrade deixou uma obra ex-tensa, composta por ensaios de estética e política, manifestos, memórias e, acima de tudo, seus poemas e romances inovadores.

O próprio Oswald escreve, em nota autobiográfica publicada pelo Diário de Notícias em 8 de janeiro de 1950:

Viajei, fiquei pobre, fiquei rico, casei, enviuvei, casei, divorciei, viajei, casei... já disse que sou conjugal, gremial e ordeiro. O que não me impediu de ter brigado diversas vezes à portuguesa e tomado parte em algumas batalhas campais. Nem ter sido preso 13 vezes. Tive também grandes fugas por motivos políticos.

E podemos completar com um trecho do prefácio de Serafim Ponte Grande: “Seja como for. Voltar para trás é que é impossível. O meu relógio anda sempre para a frente. A História também.”

Oswald de Andrade se bacharelou em Direito em São Paulo, em 1919. Dois anos depois, começou a articular a campanha modernista, com a pu-blicação do artigo “O meu poeta futurista” (que lançou o poeta Mário de Andrade, no Jornal do Comércio) e o contato com artistas e intelectuais como Anita Malfatti e Manuel Bandeira, que participariam da Semana de Arte Moderna, em 1922.

Oswald de Andrade

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Na década de 1920, Oswald colaborou em vários periódicos, principalmente nos modernistas, como a revista Klaxon, publicou os romances da Trilogia do Exílio e tra-balhou na divulgação da estética modernista com os manifestos Pau-Brasil (1924) e Antropofágo (1928). Nos anos seguintes, publicou romances – entre eles Serafim Ponte Grande e Marco Zero – além de peças teatrais, dentre as quais se destaca O Rei da Vela.

Foi integrante do Partido Comunista, entre 1931 e 1945, e sofreu persegui-ções políticas por causa dessa militância.

Em 1945, tornou-se livre-docente em Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo com a tese A Arcádia e a Inconfidência.

Em 1954, publicou o livro de memórias Um Homem Sem Profissão.

Em sua obra poética, destacam-se os livros Pau-Brasil (1925) e Primeiro Cader-no do Aluno de Poesia Oswald de Andrade (1927).

Oswald de Andrade é um dos nomes fundamentais do Modernismo. A respei-to de sua poesia, Haroldo de Campos afirmou:

Oswald recorreu a uma sensibilidade primitiva (como fizeram os cubistas, inspirando-se nas geometrias elementares da arte negra) e a uma poética da concretude (“Somos concretistas”, lê-se no Manifesto Antropófago) para comensurar a literatura brasileira às novas necessidades de comunicação engendradas pela civilização técnica.

Oswald foi também cronista inovador: em 1912, criou a crônica da imigração na revista O Pirralho, escrevendo em estilo macarrônico.

Ao longo da vida, “registrou e comentou, de modo crítico, praticamente todos os grandes e momentosos temas e problemas do seu e do nosso tempo”, segun-do Mário da Silva Brito.

Oswald romancista Entre os romances, destacam-se Memórias Sentimentais de João Miramar

(1924) e Serafim Ponte Grande (1933), ambos obras que efetuam a ruptura das fronteiras entre poesia e prosa. Escritos em linguagem telegráfica, elíptica e me-tafórica, utilizam-se de uma técnica narrativa cinematográfica, composta por sucessivos flashes da vida das personagens dos títulos, sem que haja uma linea-ridade ou lógica, comuns à narrativa tradicional. A criação de neologismos (pala-vras novas) é outro traço inovador dos romances, que são escritos com humor e ironia, revelando os aspectos mais mesquinhos da sociedade paulista da época.

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Primeiro contato de Serafim e a malícia

A - e - i - o - u

Ba - be - bi - bo - bu

Ca- ce - ci - co - cu

O primeiro capítulo do romance � Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, revela sua técnica de composição inovadora e seu humor.

Oswald poetaAo contrário de Manuel Bandeira e mesmo de Mário de Andrade, Oswald

poeta já nasce modernista.

Seu primeiro volume de poemas, Pau-Brasil (1924), já se caracteriza por uma radical recusa da poética tradicional. Apresenta ready mades, poemas que Oswald “encontra” em textos dos cronistas quinhentistas, como Caminha e Gândavo, pa-ródias de poemas românticos, textos bem humorados sobre a colonização, sobre a cidade de São Paulo, sobre Minas Gerais etc. Ilustrado com desenhos de Tarsila do Amaral, uma das mulheres do poeta, trata-se de uma obra extremamente coe-rente com os princípios modernistas.

Outro livro fundamental é O Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade (1927), ilustrado pelo próprio autor com desenhos que se misturam aos textos poéticos na criação de uma poesia visual muito à frente do seu tempo e que serão precursoras diretas da poesia concreta.

Quando o português chegou

Debaixo duma bruta chuva

Vestiu o índio

Que pena!

Fosse uma manhã de sol

O índio tinha despido

O português.

Erro de Português

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E a luta continua...

Escrevendo sua Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira, Otto Maria Carpeaux afirmou que, “Sendo Oswald de Andrade a figura mais combativa e com-batida do Modernismo brasileiro, a bibliografia a seu respeito é principalmente de natureza polêmica”. Em outras palavras, ao se escrever sobre um homem que jamais deixou de tomar posição, certo ou não, é impossível deixar de se tomar po-sição. Oswald obriga o leitor a se posicionar. Nesse sentido, continua sendo o mais modernista dos modernistas: aquele que incomoda e não se deixa acomodar.

Principais característicasEntre as principais características das obras de Oswald de Andrade estão o

verso livre, o poema-pílula, o prosaísmo e coloquialismo, o poema-piada, que usa do humor e ironia para parodiar amplos domínios da própria literatura, de forma simpática ou demolidora.

A paródia simpática, como é, no caso, a de Oswald, focaliza costumes e tradi-ções do povo.

Já a paródia demolidora, que Oswald também praticou, volta-se contra as elites pretensiosas.

Ambas propõem uma revisão da cultura brasileira: impõe-se uma tradição de ruptura baseada na crítica exacerbada, na negação contínua, na revolta permanen-te. Na visão dialética de Oswald de Andrade, “Precisamos descabralizar o Brasil”, pro-movendo o canibalismo cultural, um ato “marxilar”, segundo ele. Oswald também faz uso de neologismos e a mistura de gêneros. Sua obra muitas vezes apresenta a fragmentação cubista e a técnica cinematográfica de corte e montagem, além da linguagem metonímica, prosa telegráfica e o uso de capítulos-relâmpago na prosa. Toda sua obra é permeada por uma visão crítica da realidade brasileira.

Texto complementar

Manifesto da Poesia Pau-Brasil A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da

Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.

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O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.

Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.

O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.

A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.

Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.

A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, critica, donas de casa tratando de cozinha.

A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.

Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo: o teatro de tese e a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris.

Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a poesia.

A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.

Uma sugestão de Blaise Cendrars: – Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.

Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de ju-risconsultos, perdidos como chineses na genealogia das ideias.

A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribui-ção milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.

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Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros.

Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.

Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instituíra-se o Naturalismo. Copiar. Quadros de carneiros que não fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário oral das Esco-las de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho... Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado – o artista fotógrafo.

Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela. Stravinski.

A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas.

Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano.

Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram desmanchando. Duas fases: 1) a deformação através do impres-sionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e Malarmé, Rodin e Debussy até agora. 2) o lirismo, a apresentação no templo, os materiais, a inocência construtiva.

O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil.

Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento dinâmico dos fatores destrutivos.

A síntese

O equilíbrio

O acabamento de carrosserie

A invenção

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A surpresa

Uma nova perspectiva

Uma nova escala.

Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil.

O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.

Uma nova perspectiva.

A outra, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de apogeu. Era uma ilusão ética. Os objetos distantes não diminuíam. Era uma lei de aparência. Ora, o momento é de reação à aparência. Reação à cópia. Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem: sentimental, inte-lectual, irônica, ingênua.

Uma nova escala:

A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos livros, crianças nos colos. O redame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O correspondente da sur-presa física em arte.

A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de tese era um arranjo monstruoso. O romance de ideias, uma mistura. O quadro histórico, uma aberração. A escultura eloquente, um pavor sem sentido.

Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.

Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.

A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos can-tando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente.

Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.

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Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de “dorme nenê que o bicho vem pegá” e de equações.

Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas; nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu Na-cional. Pau-Brasil.

Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar. A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensu-al, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar. Pau-Brasil.

O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.

Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.

O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser uma atitude do espírito.

O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.

A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.

Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecâni-ca, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.

Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A ve-getação. Pau-Brasil.

(ANDRADE, Oswald de. Manifesto da poesia pau-brasil. Correio da Manhã, São Paulo,

18 mar. 1924)

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Os selvagensOswald de Andrade

Mostraram-lhes uma galinha

Quase haviam medo dela

E não queriam pôr a mão

E depois a tomaram como espantados.

Estudos literários1. Qual vertente do Modernismo brasileiro é representada no poema?

2. Que intenções ideológico-literárias se configuram nos textos a seguir?

AtelierOswald de Andrade

Arranha-céus

Fordes

Viadutos

Um cheiro de café

No silêncio emoldurado

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Poema elétrico Luís Aranha

O atropelo dos automóveis depois de um grande match de foot-ball

Buzinas rouquidões motores algazarras

O Vento correndo sobre pneumáticos.

3. Nos trechos abaixo, flashes de Memórias Sentimentais de João Miramar, são bem explicitadas as concepções modernistas de Oswald de Andrade. A par-tir desses flashes, comente ao menos duas dessas concepções.

47. Soho SquarePicadilly fazia fluxo e refluxo de chapéus altos e corredores levando ingle-

ses duros para música e talheres de portas móveis e portas imóveis.

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Elevadores klaxons tubes caíam de avião na plataforma preta de Trafalgar.

Mas nosso quarteirão agora grupava nas calçadas casquettes heterogê-neas penetrando sem nariz no whisky dos bars. Bicicletas levantavam coxas velhas de girls para napolitanos vindos da Austrália. E Isadora Duncan hele-nizava operetas no Hipódromo.

[...]

60. NamoroVinham motivos como gafanhotos para eu e Célia comermos amoras em

moitas de bocas.

Requeijões fartavam mesas de sequilhos.

Destinos calmos como vacas quietavam nos campos de sol parado. A vida ia lenta como poentes e queimadas.

Um matinal arranjo desenvolto de ligas morenava coxas e cachos.

[...]

161. História do BrasilE Celiazinha maleta pelas portas lampiões, ia-me explicando que D. Pedro

I era um perdulário que se arrependeu na hora da morte e mandou chamar o neto do seu neto para lhe dizer que não fizesse que nem ele.

— E D. Pedro II?

— Esse era um grande preguiçoso. Quando a professora chegava, dizia que ia jogar cartas e nem queria ver os livros.

A noite vinha e desembarcava meu anjo noturno.

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“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta”, escreveu Mário de An-drade. Em carta ao escritor Pedro Nava, em 1928, ele conta o que está fa-zendo naquele momento:

Estou datilografando Macunaíma pra entrar no prelo. Estou dando última demão pra um estudo [...] sobre Poesia Argentina. Estou tomando notas pra um romance [...] O Avacalhado. Estou escrevendo um estudo sério sobre música folclórica pra Exposição Internacional de Arte Popular de Praga este ano. Estou dando última demão à Bucólica sobre a Música Brasileira livro inda pra este ano. Eta mundo! Vou ao cinema diariamente, sou festeiro como poucos, escrevo artiguete diário no Diário Nacional, dou lições pra burro, leio pra burro...

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Mário de Andrade

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De origem humilde, por toda a vida Mário de Andrade (1893-1945) foi um grande estudioso. Estudou e lecionou música, realizando profundas pesquisas sobre a música popular brasileira.

Escreveu poesia, com destaque para os livros Pauliceia Desvairada (1922), em que radicaliza as experimentações de vanguarda modernistas, e Clã do Jabuti (1927), em que trabalha poeticamente as tradições populares que pesquisava.

Além disso, Mário planejou e empreendeu duas viagens para conhecer melhor o Brasil e, assim, colher material para seus escritos. A primeira foi à região amazô-nica, em 1927, e a segunda, ao Nordeste, no final de 1928 e começo de 1929. En-quanto procurava conhecer a vida, os costumes, as músicas e tradições populares dessas regiões, ele registrava tudo na forma de um diário, inclusive os modos de falar das pessoas. Esses textos foram publicados como crônicas no Diário Nacional e só se transformaram em livro em 1976, sob o título de O Turista Aprendiz.

Contista, ele deixou inacabado o livro Contos Novos (1946) em que se des-tacam narrativas de inspiração freudiana, como “Vestida de preto” e “Frederico paciência”, e contos de preocupação social, como “O poço” e “Primeiro de maio”.

Primeiro de maio (fragmento)Mário de Andrade

Decidiu ir a-pé pra casa, foi a-pé, longe, fazendo um esforço penoso para achar interesse no dia. Estava era com fome, comendo aquilo passava. Tudo deserto, era por ser feriado, primeiro de maio. Os companheiros estavam trabalhando, de vez em quando um carrego, os mais eram conversas diver-tidas, mulheres de passagem, comentadas, piadas grossas com as mulatas do jardim, mas só as bem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos simpatizavam logo com ele, ora por que que hoje me deu de lembrar aquela moça do apartamento!... Também: moça morando sozinha é no que dá. Em todo caso, pra acabar o dia era uma ideia ir lá, com que pretexto?... Devia ter ido em Santos, no piquenique da Mobiliadora, 12 paus o convite, mas o pri-meiro de maio... Recusara, recusara repetindo o “não” de repente com raiva, muito interrogativo, se achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Então conseguiu imaginar que esse piquenique monstro, aquele jogo de futebol que apaixonava eles todos, assim não ficava ninguém pra celebrar o primeiro de maio, sentiu-se muito triste, desamparado.

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Em carta a Carlos Drummond de Andrade, em 1924, Mário descreve a sua literatura desta maneira: “Estraçalho a minha obra. Escrevo língua imbecil, penso ingênuo, só pra chamar a atenção dos mais fortes do que eu pra este monstro mole e indeciso ainda que é o Brasil.”

Como crítico literário, seu legado é imenso. Em A Escrava que não é Isaura (1925), por exemplo, reúne ensaios provocativos contra o passadismo. Já em As-pectos da Literatura Brasileira (1943) aborda, de maneira bem menos passional, os mais importantes escritores da literatura brasileira.

Como romancista, Mário de Andrade criticou a hipocrisia sexual da alta so-ciedade paulistana em Amar, Verbo Intransitivo (1927) e escreveu uma das obras- -primas da literatura brasileira, a rapsódia Macunaíma, em que reúne numerosas lendas e mitos indígenas para compor a história do “herói sem nenhum cará-ter”, que, invertendo os relatos dos cronistas quinhentistas, vem da mata para a cidade de São Paulo. O tom bem-humorado e a inventividade narrativa e lin-guística fazem de Macunaíma uma das obras modernistas brasileiras mais afi-nadas com a literatura de vanguarda no mundo na sua época. Nesse romance, encontram-se Dadaísmo, Futurismo, Expressionismo e Surrealismo aplicados a um vasto conhecimento das raízes da cultura brasileira.

Obras como Macunaíma ou Clã do Jabuti colocam em evidência o trabalho de pesquisa de Mário de Andrade, que nelas frequentemente mistura elementos de diversas regiões do país para desregionalizar sua obra.

Macunaíma e a renovação da linguagem literária

Publicado em 1928, em uma tiragem de apenas 800 exemplares (Mário de Andrade não conseguira editor), Macunaíma, o herói sem nenhum caráter é um dos pilares da cultura brasileira.

Em uma narrativa fantástica e picaresca ou, melhor dizendo, “malandra”, her-deira direta das Memórias de um Sargento de Milícias (1852) de Manuel Antônio de Almeida, Mário de Andrade reelabora literariamente temas da mitologia in-dígena e visões folclóricas da Amazônia e do resto do país, fundando uma nova linguagem literária, saborosamente brasileira.

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Assim como o foram Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933), ambas de Oswald de Andrade, Macunaíma foi uma obra re-volucionária na medida em que desafiou o sistema cultural vigente e, valendo-se de uma nova organização da linguagem literária, propôs o lançamento de outras informações culturais, diferente em tudo das posições mantidas por uma socie-dade até então dominada pelo reacionarismo e o atraso cultural generalizado.

Nacionalista crítico, sem xenofobia, Macunaíma é a obra que melhor con-cretiza as propostas do movimento da Antropofagia (1928), que foi criado por Oswald de Andrade e buscava uma real igualdade entre a cultura brasileira e as demais: não a rejeição pura e simples do que vem de fora, mas consumir aquilo que há de bom na arte estrangeira; não evitá-la, mas, como um antropófago, comer o que merece ser comido.

A rapsódia Mário de Andrade conta que escreveu Macunaíma em seis dias, deitado, bem

à maneira de seu herói, em uma rede na Chácara de Sapucaia, em Araraquara (SP),

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no ano de 1926. Diz ainda: “Gastei muito pouca invenção neste poema fácil de escrever […]. Este livro afinal não passa duma antologia do folclore brasileiro.”

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Mário de Andrade na Rede – desenho de Lasar Segall.

Todavia, a obra é fruto de anos de pesquisa das lendas e mitos indígenas e folclóricos que o autor reuniu utilizando a linguagem popular e oral de várias re-giões do Brasil. Trata-se, por isso mesmo, de uma rapsódia – assim os gregos de-signavam obras como a Ilíada ou a Odisseia de Homero, que reúnem séculos de narrativas poéticas orais, resumindo as tradições folclóricas de todo um povo.

Para o musicólogo Mário de Andrade, o termo rapsódia certamente remete às fantasias instrumentais que utilizam temas e processos de composição improvi-sada, tirados de cantos tradicionais ou populares, como as rapsódias húngaras de Liszt. Segundo Oswald de Andrade, “Mário escreveu nossa Odisseia e criou duma tacapada o herói cíclico e por cinquenta anos o idioma poético nacional”.

É importante notar que, além de relatar numerosos mitos recolhidos e diver-sas fontes populares, Mário de Andrade também inventa, de maneira irônica, vários mitos da modernidade. Apresenta, entre outros, os mitos da criação do

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futebol, do truco, do gesto da “banana” ou da expressão “Vá tomar banho!”. Por-tanto, há em Macunaíma, além da imensa pesquisa, muita invenção.

As fontes Mário de Andrade nunca escondeu que tomou como fonte principal para a

redação de Macunaíma a obra Vom Roroima zum Orinoco (Do Roraima ao Ore-noco), de Theodor Koch-Grunberg, publicada em cinco volumes, entre 1916 e 1924. Graças ao monumental trabalho de Manuel Cavalcanti Proença, Roteiro de Macunaíma, podemos acompanhar como o escritor paulista foi reelaborando as narrativas colhidas na obra do alemão, mesclando-a com outras fontes, como livros de Capistrano de Abreu, Couto Magalhães, Pereira da Costa ou mesmo relatos orais – como o que o grande compositor Pixinguinha lhe fez de uma ce-rimônia de macumba – para ir tecendo sua rapsódia.

Os indígenas taurepangues ou arecunas habitam Roraima e Venezuela. Nas lendas de heróis dessa tribo, apresentadas por Koch-Grunberg, Mário de Andra-de encontrou o herói Macunaíma, que, segundo o estudioso alemão, “ainda era menino, porém mais safado que todos os outros irmãos”. Nas palavras do poeta e crítico Haroldo de Campos,

O próprio Koch-Grunberg, em sua “Introdução” ao volume, ressalta a ambiguidade do herói, dotado de poderes de criação e transformação, nutridor por excelência, ao mesmo tempo, todavia, malicioso e pérfido. Segundo o etnógrafo alemão, o nome do supremo herói tribal parece conter como parte essencial a palavra maku, que significa “mau”, e o sufixo ima, “grande”. Assim, Macunaíma significaria “O Grande Mau”, nome – observa Grunberg – “que calha perfeitamente com o caráter intrigante e funesto do herói”. Por outro lado, os poderes criativos de Macunaíma levaram os missionários ingleses em suas traduções da Bíblia para a língua indígena a denominar o Deus cristão pelo nome do contraditório herói tribal, decisão que Koch-Grunberg comenta criticamente.

O herói sem nenhum caráter Foi, portanto, na obra do etnólogo alemão que Mário de Andrade, paradoxal

e muito antropofagicamente, encontrou a essência do brasileiro. O próprio autor de Macunaíma, em prefácio que nunca chegou a publicar com o livro, conta como ocorreu a descoberta:

O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado isso antes de mim porém a minha conclusão é uma novidade para mim porque tirada da minha experiência pessoal. E com a palavra caráter não determino apenas

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uma realidade moral não, em vez entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na língua na História na andadura, tanto no bem como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional.

Os franceses têm caráter e assim os jorubas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo iminente, ou consciência de séculos tenham auxiliado, o certo é que esses uns têm caráter. Brasileiro não. Está que nem o rapaz de 20 anos: a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma. […] Pois quando matutava nessas coisas topei com Macunaíma no alemão de Koch-Grunberg. E Macunaíma é um herói surpreendentemente sem caráter. (Gozei).

As metamorfoses pelas quais passa a personagem, de sabor surrealista, podem muito bem ser associadas à sua “falta de caráter”, assim como o fascínio que revela pela “língua de Camões”, na “Carta pras Icamiabas”, capítulo no centro do livro.

Foco narrativo Embora predomine o foco da terceira pessoa, Mário de Andrade inova utili-

zando a técnica cinematográfica de cortes bruscos no discurso do narrador, in-terrompendo-o para dar vez à fala dos personagens, principalmente Macunaíma. Essa técnica imprime velocidade, simultaneidade e continuidade à narrativa.

Lá chegado ajuntou os vizinhos, criados a patroa cunhãs datilógrafos es-tudantes empregados-públicos, muitos empregados-públicos! Todos esses vizinhos e contou pra eles que tinha ido caçar na feira do Arouche e matara dois…

– …mateiros, não eram viados mateiros, não, dois viados catingueiros que comi com os manos. Até vinha trazendo um naco pra vocês mas porém escorreguei na esquina, caí derrubei o embrulho e o cachorro comeu tudo.

(Capítulo XI – A Velha Ceiuci)

Espaço e tempo As sucessivas estripulias de Macunaíma são vividas em um espaço mágico,

próprio da atmosfera fantástica e maravilhosa em que se desenvolve a narrati-va. Em seu Roteiro de Macunaíma, Cavalcanti Proença afirma que Macunaíma se aproxima da epopeia medieval, pois

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[...] tem de comum com aqueles heróis a sobre-humanidade e o maravilhoso. Está fora do espaço e do tempo. Por esse motivo pode realizar aquelas fugas espetaculares e assombrosas em que, da capital de São Paulo foge para a Ponta do Calabouço, no Rio, e logo já está em Guarajá-Mirim, nas fronteiras de Mato Grosso e Amazonas para, em seguida, chupar manga- -jasmim em Itamaracá de Pernambuco, tomar leite de vaca zebu em Barbacena, Minas Gerais, decifrar litóglifos na Serra do Espírito Santo e finalmente se esconder no oco de um formigueiro, na Ilha do Bananal, em Goiás.

Macunaíma é um personagem outsider, um marginal, um anti-herói, um fora- -da-lei na medida em que se contrapõe a uma sociedade moderna, organizada em um sistema racional, frio e tecnológico. Assim, o tempo é totalmente subver-tido na narrativa. O herói do presente entra em contato com figuras do passado, estabelecendo-se um curioso “diálogo com os mortos”: Macunaíma fala com João Ramalho (séc. XVI), com os holandeses (séc. XVII), com Hércules Florence (séc. XIX) e com Delmiro Gouveia (pioneiro da usina hidrelétrica de Paulo Afonso e industrial nordestino que criou a primeira fábrica nacional de linhas de costura).

Enumerações e desregionalização Em Macunaíma, chama a atenção do leitor atento a abundância de enumera-

ções. Já na primeira página do romance encontramos a enumeração das danças tribais: “frequentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô a cucui-cogue, todas essas danças religiosas da tribo”.

Tais listas colocam em evidência o trabalho de pesquisa de Mário de Andrade, que nessas listas frequentemente mistura elementos de diversas regiões do país ao buscar desregionalizar sua obra, procurando “conceber literariamente o Brasil como entidade homogênea – um conceito étnico, nacional e geográfico”. Telê Porto Ancona Lopez, grande estudiosa da obra de Mário, resume bem o problema:

Mário de Andrade realizava em suas leituras, pesquisa de palavras, termos e expressões características dos diversos recantos do Brasil. Grifava e recolhia. Depois os empregava, nos conjuntos os mais heterogêneos, procurando anular as especificações do regional, e dar uma visão geral de Brasil […]. É pois, graças à coleta de palavras que Mário de Andrade desenvolve, que Macunaíma pode apresentar tão frequentes enumerações de aves, peixes, insetos ou frutas. Essas enumerações, além de válidas para a quebra do regionalismo, contribuem para a criação de ritmo de embolada, alternando sílabas longas e breves, no trecho em que se inserem. Ritmo procurado, aliás, porque o autor não usa vírgulas.

É importante ressaltar que tais listagens não devem afastar o leitor, que muitas vezes se assusta com tantos nomes “estranhos”. Eles precedem sempre uma de-finição generalizadora como “todas essas danças religiosas da tribo”. Assim, o

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leitor não deve se apavorar com a nomenclatura desconhecida e pode deixar a leitura fluir, sem necessariamente recorrer ao dicionário para verificar todos os termos – mesmo porque não vai encontrar a maioria deles.

A “Carta pras Icamiabas”Precisamente no meio da narrativa, no nono capítulo da obra, encontramos

um intermezzo, como o chamava o autor. Trata-se da “Carta pras Icamiabas”, sátira feroz ao beletrismo parnasiano da época. Macunaíma escreve a suas súditas para descrever-lhes a cidade de “São Paulo construída sobre sete colinas, à feição tra-dicional de Roma, a cidade cesárea, capita da Latinidade de que provimos”. Mário de Andrade inverte, aqui, portanto, os relatos dos cronistas quinhentistas, como Pero Vaz de Caminha, Gabriel Soares de Sousa ou Pero de Magalhães Gândavo. Agora é o índio que descreve a terra desconhecida para seus pares distantes. Sem caráter, Macunaíma o faz tomando emprestada a linguagem rebuscada de um Rui Barbosa ou de um Coelho Neto. A paródia torna-se hilariante devido aos erros grosseiros cometidos pelo falso erudito, que escreve asneiras como “testí-culos da Bíblia” por “versículos” ou “ciência fescenina” por “feminina”.

Com seu estilo pomposo, Macunaíma enuncia, na “Carta pras Icamiabas”, o slogan que irá adotar para definir os problemas do Brasil:

Tudo vai num descalabro sem comedimento, estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes! Em breve seremos novamente uma colônia da Inglaterra ou da América do Norte!... Por isso e para eterna lembrança destes paulistas, que são a única gente útil do país, e por isso chamados de Locomotivas, nos demos ao trabalho de metrificarmos um dístico, em que se encerram os segredos de tanta desgraça:

POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA,

OS MALES DO BRASIL SÃO.

Este dístico é que houvemos por bem escrevermos no livro de Visitantes Ilustres do Instituto Butantã, quando foi da nossa visita a este estabelecimento famoso na Europa.

Esse slogan recupera conhecido poema de Gregório de Matos (1636-1695), em que o poeta satírico baiano enumera as vilezas do país, terminando cada estrofe com o irônico refrão “Milagres do Brasil são.” Remete, também, à frase do cronista Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853): “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”.

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Texto complementar

Trechos escolhidos da “Carta pras Icamiabas”(ANDRADE, 1988, p. 72-85)

I

Às mui queridas súbditas nossas Senhoras Amazonas.

Trinta de Maio de Mil Novecentos e Vinte e Seis, São Paulo.

Senhoras:

Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura desta missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas de saudades e muito amor, com desagradável nova. É bem verdade que na boa cidade de São Paulo – a maior no universo, no dizer de seus prolixos habitantes – não sois conhecidas por “icamiabas”, voz espúria, sinão que pelo apelativo de Ama-zonas; e de vós, se afirma, cavalgardes ginetes belígeros e virdes da Hélade clássica; e assim sois chamadas. Muito nos pesou a nós, Imperador vosso, tais dislates da erudição porém heis de convir conosco que, assim, ficais mais heroicas e mais conspícuas, tocadas por essa plátina respeitável da tradição e da pureza antiga. Mas não devemos esperdiçarmos vosso tempo fero, e muito menos conturbarmos vosso entendimento, com notícias de mau cali-bre; passemos, pois, imediato, ao relato dos nossos feitos por cá.

Nem cinco sóis eram passados que de vós nos partíramos, quando a mais bela desdita pesou sobre nós. Por uma bela noite dos idos de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitã [...]

II

Sabereis mais que as donas de cá não se derribam a pauladas, nem brin-cam por brincar, gratuitamente, senão que a chuvas do vil metal, repuxos brasonados de champagne, e uns monstros comestíveis, a que, vulgarmente, dão o nome de lagosta. E que monstros encantados, senhoras Amazonas!!!

[...]

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Pois é com esse delicado monstro, vencedor dos mais delicados véus pa-ladinos, que as donas de cá tombam nos leitos nupciais. Assim haveis de compreender de que alvíçaras falamos; porque as lagostas são caríssimas, caríssimas subditas, e algumas hemos nós adquiridas por 60 contos e mais; o que convertido em nossa moeda tradicional, alcança a vultosa soma de 80 milhões de bagos de cacau... Bem podereis conceber, pois, quanto hemos já gasto; e que já estamos carecido do vil metal, para brincar com tais difíceis donas. Bem quiséramos impormos à nossa ardida chama uma abstinência, penosa embora, para vos pouparmos despesas; porém que ánimo forte não cedera ante os encantos e galanteios de tão agradáveis pastoras!

Andam elas vestidas de rutilantes joias e panos finíssimos, que lhes acentuam o donaire do porte, e mal encobrem as graças, que, a de nenhuma outra cedem pelo formoso do torneado e pelo tom. São sempre alvíssimas as donas de cá; e tais e tantas habilidades demonstram, no brincar, que enumerá-las, aqui, seria fastiendo porventura; e, certamente, quebraria os mandamentos de discrição, que em relação de Imperator para súbditas se requer. Que beldades! Que ele-gância! que cachet! Que degagé flamífero, ignívomo, devorador!! Só pensamos nelas, muito embora não nos descuidemos, relapso, da nossa muiraquitã.

Nós, nos parece, ilustres Amazonas, que assaz ganharíeis em aprender-des com elas, as condescendências, os brincos e passes do Amor. Deixaríeis então a vossa orgulhosa e solitária Lei, por mais amáveis mesteres, em que o Beijo sublima, as Volúpias encandecem, e se demonstra gloriosa, urbit et orbe, a subtil força do Odor di Fêmia, como escrevem os italianos.

E já que nos detivemos neste delicado assunto, não no abandonaremos sem mais alguns reparos, que vos poderão ser úteis. As donas de São Paulo, sobre serem mui formosas e sábias, não se contentam com os dons e exce-léncia que a Natura lhes concedeu; assaz se preocupam elas de si mesmas; e não puderem acabarem consigo, que não mandassem vir de todas as partes do globo, tudo o que de mais sublimado e gentil acrisolou a sciéncia fesce-nina, digo, feminina das civilizações avitas. Assim é que chamaram mestras da velha Europa, e sobretudo de França, e com elas aprendera a passarem o tempo de maneira bem diversa da vossa. Ora se alimpam, e gastam horas nesse delicado mester, ora encantam os convívios teatrais da sociedade, ora não fazem coisa alguma; e nesses trabalhos passam elas o dia tão entreteci-das e afanosas que, em chegando a noute, mal lhes sobra vagar para brin-carem e presto se entregam nos braços de Orfeu, como se diz. Mas heis de

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saber, senhoras minhas, que por cá dia e noute divergem singularmente do vosso horário belígero; o dia começa quando para vós é o pino dele, e a noute, quando estais no quarto sono vosso, que, por derradeiro, é o mais reparador.

[...]

Já agora vos falaremos ainda, bem que por alto, dum nitente armento de senhoras, originárias da Polónia, que aqui demoram e imperam generosa-mente. São elas mui alentadas no porte e mais numerosas que as areias do mar oceano. Como vós, senhoras Amazonas, tais damas formam um gineceu; estando os homens que em suas casas delas habitam, reduzidos escravos e condenados ao vil ofício de servirem. E por isso não lhes chamam homens, sinão que à voz espúria de garçons respondem; e são assaz polidos e silentes, e sempre do mesmo indumento gravebundo trajam.

Vivem essas damas encasteladas num mesmo local, a que chamam por cá de quarteirão, e mesmo de pensões ou “zona estragada”; sobrelevando notar que a derradeira destas expressões não caberia, por indina nesta notí-cia sobre as coisas de São Paulo, não fora o nosso anseio de sermos exacto e conhecedor. Porém si como vós, formam essas queridas senhoras um clã de mulheres, muito de vós se apartam no físico, no género de vida e nos ideais. Assim vos diremos que vivem à noute, e se não dão aos afazeres de Marte nem queimam o destro seio, mas a Mercúrio cortejam tão somente; e quanto aos seios, deixam-nos evolverem, à feição de gigantescos e flácidos pomos, que, si lhes não acrescentam ao donaire, servem para numerosos e árduos trabalhos de excelente virtude e prodigiosa excitação.

Ainda lhes difere o físico, tanto ou quanto monstruoso, bem que de amável monstruosidade, por terem elas o cérebro nas partes pudendas, e, como tão bem se diz em linguagem madrigalesca, o coração nas mãos.

Falam numerosas e mui rápidas línguas; são viajadas e educadíssimas; sempre todas obedientes por igual, embora ricamente díspares entre si, quais morenas, quais fossem maigres, quais rotundas; e de tal sorte abun-dantes no número e diversidade, que muito nos preocupa a razão, o serem todas e tantas, originais dum país somente. Acresce ainda que a todas se lhe dão o excitante, embora injusto, epíteto de “francesas”. A nossa desconfiança é que essas damas não se originaram todas da Polónia, porém que faltam à verdade, e são iberas, itálicas, germánicas, turcas, argentinas, peruanas, e de todas as outras partes férteis de um e outro hemisfério.

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[...]

II

É São Paulo construída sobre sete colinas, à feição tradicional de Roma, a cidade cesárea, capita da Latinidade de que provimos; e beija-lhe os pés a grácil e inquieta linfa do Tietê. As águas são magníficas, os ares tão amenos quanto os de Aquisgrana ou de Anverres, e a área tão a eles igual em salubri-dade e abundância, que bem se podera afirmar, ao modo fino dos cronistas, que de três AAA se gera espontaneamente a fauna urbana.

Cidade é belíssima, e grato o seu convívio. Toda cortada de ruas habilmente estreitas, tomadas por estátuas e lampiões graciosíssimos e de rara escultura; tudo diminuindo com astúcia o espaço de forma tal, que nessas artérias não cabe a população. Assim se obtém o efeito dum grande acúmulo de gentes, cuja estimativa pode ser aumentada à vontade, o que é propício às eleições que são invenção dos inimitáveis mineiros; ao mesmo tempo que os edis dis-põem de largo assunto com que ganhem dias honrados e a admiração de todos, com surtos de eloquência do mais puro estilo e sublimado lavor.

As ditas artérias são todas recamadas de ricocheteantes papeizinhos e velí-volas cascas de fruitos; e em principal duma finíssima poeira, e mui dançarina, em que se despargem diariamente mil e uma espécimens de vorazes macró-bios, que dizimam a população. Por essa forma resolveram, os nossos maiores, o problema da circulação; pois que tais insetos devoram as mesquinhas vidas da ralé e impedem o acúmulo de desocupados e operários: e assim se conser-vam sempre as gentes em número igual. E não contentes com essa poeira ser erguida pelo andar dos pedestrianistas e por urrantes máquinas a que chamam automóveis e eléctricos, (empregam alguns a palavra Bond, voz espúra, vinda certamente do inglês) contrataram os diligentes edis, uns antropóides, mons-tros hipocentáureos azulegos e monótonos, a que congloba o título de Lim-peza Pública; que per amica silentia lunae, quando cessa o movimento e o pó descansa inócuo, saem das suas mansões, e, com os rabos girantes a modo de vassouras cilíndricas, puxadas por muares, soerguem do asfalto a poeira e tiram os insectos do sono, e os concitam à actividade com largos gestos e grita formidanda. Estes afazeres nocturnos são discretamente conduzidos por pequeninas luzes, dispostas de longe e longe, de maneira a permanecer quasi total a escuridade, não perturbem elas os trabalhos de malfeitores e ladrões.

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[...]

III

Porém, senhoras minhas! Inda tanto nos sobra, por este grandioso país, de doenças e insectos por cuidar!... Tudo vai num descalabro sem comedimen-to, estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes! Em breve seremos no-vamente uma colônia da Inglaterra ou da América do Norte!... Por isso e para eterna lembrança destes paulistas, que são a única gente útil do país, e por isso chamados de Locomotivas, nos demos ao trabalho de metrificarmos um dístico, em que se encerram os segredos de tanta desgraça:

POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA,

OS MALES DO BRASIL SÃO.

Este dístico é que houvemos por bem escrevermos no livro de Visitantes Ilustres do Instituto Butantã, quando foi da nossa visita a este estabeleci-mento famoso na Europa.

[...]

IV

Ora sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra. Assim chegado a estas plagas hospitalares, nos demos ao trabalho de bem nos inteirarmos da etnologia da terra, e dentre muita surpresa e assombro que se nos deparou por certo não foi das menores tal originalidade linguística. Nas conversas, utilizam-se os paulistanos dum linguajar bárbaro e multifário, crasso de feição e impuro na vernaculidade, mas que não deixa de ter o seu sabor e força nas apóstrofes, e também nas vozes do brincar. Destas e daquelas nos inteiramos, solícito; e nos será grata empresa vô-las ensinarmos aí chegado. Mas si de tal des-prezível língua se utilizam na conversação os naturais desta terra, logo que tomam da pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino, de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana, no dizer dum panegirista, meigo idioma, que, com imperecível galhardia, se intitula: língua de Camões! De tal originalidade e riqueza vos há-de ser grato ter sciéncia, e mais ainda vos espantareis com saberdes, que a grande e quasi total maioria, nem essas duas línguas bastam, senão que se enrique-cem do mais lídimo italiano, por mais musical e gracioso, e que por todos

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os recantos da urbs é versado. De tudo nos inteiramos satisfactoriamente, graças aos deuses; e muitas horas hemos ganho, discreteando sobre o z do termo Brazil e a questão do pronome se. Outrossim, hemos adquirido muitos livros bilíngues, chamados burros, e o dicionário Pequeno Larousse; e já esta-mos em condições de citarmos no original latino muitas frases célebres dos filósofos e os testículos da Bíblia.

Estudos literários1. Que características da prosa modernista podem ser identificadas no trecho

de Macunaíma reproduzido a seguir?

A chegada de Macunaíma e seus irmãos a São PauloE foi numa boca-da-noite fria que os manos toparam com a cidade macota

de São Paulo esparramada a beira-rio do igarapé Tietê. Primeiro foi a gritaria da papagaiada imperial se despedindo do herói. E lá se foi o bando sarapin-tado volvendo pros matos do norte.

Os manos entraram num cerrado cheio de inajás ouricuris ubusssus baca-bas mucajás miritis tucumãs trazendo no curuatá uma penachada de fumo em vez de palmas e cocos. Todas as estrelas tinham descido do céu branco de tão molhado de garoa e banzavam pela cidade. Macunaíma lembrou de procurar Ci. Êh! dessa ele nunca poderia esquecer não, porque a rede feiticeira que ela armara pros brinquedos fora tecida com os próprios cabelos dela e isso torna a tecedeira inesquecível. Macunaíma campeou campeou mas as estradas e terrei-ros estavam apinhados de cunhãs tão brancas tão alvinhas, tão!… Macunaíma gemia. Roçava nas cunhãs murmurejando com doçura: “Mani! Mani! filhinhas da mandioca…” perdido de gosto e tanta formosura. Afinal escolheu três. Brincou com elas na rede estranha plantada no chão, numa maloca mais alta que a Para-naguara. Depois, por causa daquela rede ser dura, dormiu de atravessado sobre os corpos das cunhãs. E a noite custou pra ele quatrocentos bagarotes.

A inteligência do herói estava muito perturbada. Acordou com os berros da bicharia lá embaixo nas ruas, disparando entre as malocas temíveis. E aquele

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diacho de sagui-açu que o carregara pro alto do tapiri tamanho em que dor-mira… Que mundo de bichos! que despropósito de papões roncando, mauaris juruparis sacis e boitatás nos atalhos nas socavas nas cordas dos morros furados por grotões donde gentama saía muito branquinha branquíssima, de certo a filharada da mandioca!… A inteligência do herói estava muito perturbada. As cunhãs rindo tinham ensinado pra ele que o sagui-açu não era saguim não, chamava elevador e era uma máquina. De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos esturros não eram nada disso não, eram mas cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás as inajás de curu-atás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés… Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! O herói aprendendo calado. De vez em quando estremecia. Voltava a ficar imóvel escutando assuntando maqui-nando numa cisma assombrada. Tomou-o um respeito cheio de inveja por essa deusa de deveras forçuda, Tupã famanado que os filhos da mandioca chama-vam de Máquina, mais cantadeira que a Mãe-d’água, em bulhas de sarapantar.

Então resolveu ir brincar com a Máquina pra ser também imperador dos filhos da mandioca. Mas as três cunhãs deram muitas risadas e falaram que isso de deuses era gorda mentira antiga, que não tinha deus não e que com a máquina ninguém não brinca porque ela mata. A máquina não era deus não, nem possuía os distintivos femininos de que o herói gostava tanto. Era feita pelos homens. Se mexia com eletricidade com fogo com água com vento com fumo, os homens aproveitando as forças da natureza. Porém jacaré acreditou? nem o herói! Se levantou na cama e com um gesto, esse sim! bem guaçu de desdém, tó! batendo o antebraço esquerdo dentro do outro dobra-do, mexeu com energia a munheca direita pras três cunhãs e partiu. Nesse instante, falam, ele inventou o gesto famanado de ofensa: a pacova.

E foi morar numa pensão com os manos. Estava com a boca cheia de sa-pinhos por causa daquela primeira noite de amor paulistano. Gemia com as dores e não havia meios de sarar até que Maanape roubou uma chave de sacrário e deu pra Macunaíma chupar. O herói chupou chupou e sarou bem. Maanape era feiticeiro.

Macunaíma passou então uma semana sem comer nem brincar só maqui-nando nas brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a Máquina. A Máquina

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era que matava os homens porém os homens é que mandavam na Máquina… Constatou pasmo que os filhos da mandioca eram donos sem mistério e sem força da máquina sem mistério sem querer sem fastio, incapaz de explicar as infelicidades por si. Estava nostálgico assim. Até que uma noite, suspenso no terraço dum arranhacéu com os manos, Macunaíma concluiu:

- Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nesta luta. Há empate.

Não concluiu mais nada porque inda não estava acostumado com discur-sos porém palpitava pra ele muito embrulhadamente muito! que a máquina devia de ser um deus de que os homens não eram verdadeiramente donos só porque não tinham feito dela uma Iara explicável mas apenas uma reali-dade do mundo. De toda essa embrulhada o pensamento dele sacou bem clarinha uma luz: Os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens. Macunaíma deu uma grande gargalhada. Percebeu que estava livre outra vez e teve uma satisfa mãe. Virou Jiguê na máquina telefone, ligou pros cabarés encomendando lagostas e francesas.

(Capítulo V – Piaimã)

Leia os textos a seguir e depois responda as questões 2 e 3.

IracemaJosé de Alencar

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.

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O favo da jati não era doce como o seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como o seu hálito perfumado.

Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.

Macunaíma Mário de Andrade

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhu-mas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.

Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:

— Ai! que preguiça!...

2. Romantismo e Modernismo são dois movimentos literários de fundo nacio-nalista. Com base nessa afirmação, indique pontos de contato entre as obras Iracema e Macunaíma que podem ser comprovados pelos excertos.

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Mário de Andrade

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3. Encontre, nos trechos, ao menos uma diferença entre o estilo de Mário de Andrade e o de José de Alencar.

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Vida que podia ter sido Manuel Bandeira (1886-1968) nasceu no Recife, mas se mudou cedo

para o Rio de Janeiro. Segundo conta em Itinerário de Pasárgada (1954), ele redescobriu Recife por meio de Gilberto Freyre (1900-1987), que co-nhecera em 1925 e “cuja sensibilidade tão pernambucana muito concor-reu para me reconduzir ao amor da província, e a quem devo ter podido escrever naquele mesmo ano a minha “Evocação do Recife”.

Aos 17 anos, Bandeira ingressou na Escola Politécnica de São Paulo, em que, naquela época, formavam-se os arquitetos. Descobriu, então, ter contraído tuberculose (doença que descreve com melancólica ironia no poema “Pneumotórax”, publicado em 1930 no livro Libertinagem) e foi obrigado a desistir do curso:

Manuel Bandeira

PneumotóraxFebre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.

A vida inteira que podia ter sido e que não foi.

Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:

— Diga trinta e três.

— Trinta e três... trinta e três... trinta e três...

— Respire.

....................................................................................................................................

— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.

— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?

— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

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Modernismo na Literatura Brasileira

Em 1913, viajou para a Suíça, a fim de se tratar. No sanatório de Clavadel, entrou em contato com o poeta surrealista Paul Éluard (1895-1952) e, como conta no Itinerário de Pasárgada, “pela primeira vez pensou seriamente em publi-car um livro de versos”. Ficou na Suíça até 1914. Em 1917, publicou seu primeiro livro, A Cinza das Horas, de forte influência simbolista, mas já apresentando, ainda que de forma tímida, o uso do verso livre modernista. Seus dois livros seguintes, Carnaval (1919) e O Ritmo Dissoluto (1924) continuam essa linha – Simbolismo, como no poema “Alumbramento” de Carnaval (“Eu vi o mar! Lírios de espuma/ Vinham desabrochar à flor/ Da água que o vento desapruma...”, salpicado de al-gumas inovações modernistas, como o famoso poema “Os sapos”, publicado em Carnaval e lido na Semana de Arte Moderna, em 1922.

O contato com os jovens poetas paulistanos, principalmente Mário de Andra-de (1893-1945) e Oswald de Andrade (1890-1954), fez com que Bandeira inten-sificasse o experimentalismo de vanguarda e em 1930 ele publicou o seu livro mais ousado, Libertinagem, em que sua adesão ao Modernismo se cristaliza in-teiramente, como nos poemas “Poética” e “Poema tirado uma notícia de jornal”:

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número.Uma noite ele chegou no bar Vinte de NovembroBebeuCantou Dançou Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

Essa tendência é continuada no livro seguinte, Estrela da Manhã (1936). Vivendo modestamente e lutando contra a doença (como Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), descreve no poema “Rotinas”: “o poeta/ cumprindo sem revolta/ sem amargura/ o estatuto civil da pobreza”), Manuel Bandeira atingiu a década de 1940, quando os avanços da medicina garantiram, se não a cura, ao menos uma vida melhor para os tuberculosos (no poema “Autorretrato”, Manuel Bandeira assim se resume: “E em matéria de profissão/ Um tísico profissional”). Nessa época, passou a lecionar literatura no Colégio Dom Pedro II e, em seguida, na Universidade do Brasil. Admirado por todo o país, ele continuou a construir uma obra pautada pela inova-ção e a curiosidade, mas sempre retornando ao tema da morte com um humor para-doxalmente melancólico. O espírito aberto não o abandonou até a morte, em 1968.

No final dos anos de 1950, foi com entusiasmo que Bandeira recebeu a revo-lução feita na poesia brasileira pelos poetas concretistas e chegou a fazer alguns poemas concretos.

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Manuel Bandeira

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Sua obra poética completa, incluindo os poemas traduzidos (isto é, poemas de outros autores traduzidos por Bandeira), foi reunida no volume Estrela da Vida Inteira.

Quando “a indesejada das gentes” chegou, em 1968, por certo encontrou muito mais do que “a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar”: a morte levou um poeta que, apesar de prever que viveria uma “vida inteira que podia ter sido e que não foi”, deixou, com sua arte, sua humilde e rigorosa poesia, uma marca profunda na memória do povo brasileiro. Como o próprio Bandeira colocou no Itinerário de Pasárgada, “Não sou arquiteto, como meu pai deseja-va, não fiz nenhuma casa, mas reconstruí e ‘não como forma imperfeita neste mundo de aparências’, uma cidade ilustre, que hoje não é mais a Pasárgada de Ciro, e sim a ‘minha’ Pasárgada.”

Preparação para a morteManuel Bandeira

A vida é um milagre.

Cada flor,

Com sua forma, sua cor, seu aroma,

Cada flor é um milagre.

Cada pássaro,

Com sua plumagem, seu voo, seu canto,

Cada pássaro é um milagre.

O espaço, infinito,

O espaço é um milagre.

O tempo, infinito,

O tempo é um milagre.

A memória é um milagre.

A consciência é um milagre.

Tudo é milagre.

Tudo, menos a morte.

– Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.

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Libertinagem Publicado em 1930, Libertinagem é composto de 38 poemas – três poemas

em formas tradicionais, dois em prosa e 33 em verso livre. A obra tem como temas principais a infância, a família, os amigos, Recife, a tuberculose, o amor, a morte, Pasárgada e a própria poesia (metalinguagem).

É possível notar em Libertinagem a influência das vanguardas europeias. Além da forte presença do verso livre, pode-se perceber o coloquialismo, o uso da oralidade e da subversão gramatical. Esse recurso enfatiza o prosaísmo, a re-presentação do comum, do trivial e do cotidiano:

Porquinho-da-índia

Quando eu tinha seis anos

Ganhei um porquinho-da-índia.

Que dor de coração me dava

Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!

Levava ele pra sala

Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos

Ele não gostava:

Queria era estar debaixo do fogão.

Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...

– O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.

Há ainda na obra o poema-piada, carregado de humor e ironia, que muitas vezes utiliza a paródia e a intertextualidade. Ou o poema-pílula, em sua brevidade e concisão:

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Irene no céu

Irene pretaIrene boaIrene sempre de bom humor.Imagino Irene entrando no céu:— Licença, meu branco!E São Pedro bonachão:— Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.

A poesia de Bandeira é permeada por um lirismo confessional, um “romantismo modernista”. Com estilo humilde e simplicidade sublime, sua poesia é um alum-bramento, uma epifania ou apreensão intuitiva da realidade, uma iluminação:

O impossível carinho

Escuta, eu não quero contar-te meu desejo; Quero apenas contar-te minha ternura; Ah se em troca de tanta felicidade que me dás; Eu te pudesse repor; - Eu te soubesse repor -; No coração despedaçado; As mais puras alegrias de tua infância!

Com base nessas características e no livro Manuel Bandeira: humildade, paixão e morte (1990), do crítico Davi Arrigucci Jr., a poética de Manuel Bandeira poderia ser representada no esquema abaixo.

Morte Humildade

Alumbramento“à margem“Ironia

Paixão

É compreensível que a morte seja uma grande preocupação do poeta. Ela sempre é vista com ironia e o seu perigo (por causa da tuberculose) o coloca “à margem” das atividades e da normalidade da vida social:

Uns tomam éter, outros cocaína.Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.Tenho todos os motivos menos um de ser triste. Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...

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Abaixo Amiel1!E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff2.

Sim, já perdi pai, mãe, irmãos. Perdi a saúde também. É por isso que eu sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.

Uns tomam éter, outros cocaína. Eu tomo alegria!Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda.

Essa sensação de deslocamento é reforçada pela humildade da voz lírica, que sempre se esconde, procurando se anular na paisagem poética. No entanto, tra-ta-se de uma voz cheia de paixão, da passionalidade do alumbramento, do ser que observa e, deslumbrado, mal consegue agir. Vejamos um dos mais conheci-dos poemas de Manuel Bandeira:

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra PasárgadaLá sou amigo do reiLá tenho a mulher que eu queroNa cama que escolhereiVou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra PasárgadaAqui não sou felizLá a existência é uma aventuraDe tal modo inconsequente Que Joana a Louca de EspanhaRainha e falsa dementeVem a ser contraparenteDa nora que nunca tive

E como farei ginásticaAndarei de bicicletaMontarei em burro bravoSubirei no pau-de-seboTomarei banhos de mar!

E quando estiver cansadoDeito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d’águaPra me contar históriasQue no tempo de eu meninoRosa vinha me contarVou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudoÉ outra civilizaçãoTem um processo seguroDe impedir a concepçãoTem telefone automáticoTem alcaloide à vontadeTem prostitutas bonitasPara gente namorar

E quando eu estiver mais tristeMas triste de não ter jeitoQuando de noite me derVontade de me matar– Lá sou amigo do rei –Terei a mulher que eu queroNa cama que escolhereiVou-me embora pra Pasárgada.

1 Henri-Frédéric Amiel (1821-1881), filósofo e poeta suíço, autor de um diário íntimo. (NE) 2 Maria Bashkirtseff (1858-1884), artista plástica ucraniana, autora de um diário íntimo que foi publicado postumamente e causou algum escândalo. (NE)

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Manuel Bandeira

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Trata-se de um dos poemas mais escapistas da nossa literatura. Influencia-do pela “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, em que o eu lírico afirma que “em cismar sozinho à noite/ mais prazer encontro eu lá”, o poema de Bandeira apresenta uma cidade imaginária, apesar de remeter a uma cidade real, sobre a qual o menino Manuel Bandeira ouvira falar no colégio. Nessa cidade, o eu lírico vive uma situação absolutamente oposta à de Bandeira e à da tendência da sua poesia: em Pasárgada, o eu lírico é “amigo do rei”, ou seja, nada humilde. Lá ele tem a mulher que quer na cama que escolhe... Não se trata exatamente de um alumbramento.

Ao contrário do normal na poesia de Bandeira, aqui o eu lírico logo descarta a morte e vai fazer uma série de atividades que eram proibidas a um tuberculoso. Em outras palavras, um dos mais conhecidos poemas de Manuel Bandeira apre-senta exatamente a antítese do seu procedimento (poético e existencial).

Vejamos agora outro dos mais conhecidos poemas do poeta pernambucano:

Evocação do Recife

RecifeNão a Veneza americanaNão a Mauritsstad dos armadores das Índias OcidentaisNão o Recife dos MascatesNem mesmo o Recife que aprendi a amar depois – Recife das revoluções libertáriasMas o Recife sem história nem literaturaRecife sem mais nadaRecife da minha infância

A rua da União onde eu brincava de chicote-queimadoe partia as vidraças da casa de dona Aninha ViegasTotônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do narizDepois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeirasmexericos namoros risadasA gente brincava no meio da ruaOs meninos gritavam:Coelho sai!Não sai!

À distância as vozes macias das meninas politonavam:Roseira dá-me uma rosaCraveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosaTerá morrido em botão...)

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De repentenos longos da noite

um sinoUma pessoa grande dizia:Fogo em Santo Antônio!Outra contrariava: São José!Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.Os homens punham o chapéu saíam fumandoE eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

Rua da União...Como eram lindos os montes das ruas da minha infânciaRua do Sol(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)Atrás de casa ficava a Rua da Saudade......onde se ia fumar escondidoDo lado de lá era o cais da Rua da Aurora......onde se ia pescar escondidoCapiberibe– CapibaribeLá longe o sertãozinho de CaxangáBanheiros de palhaUm dia eu vi uma moça nuinha no banhoFiquei parado o coração batendoEla se riuFoi o meu primeiro alumbramentoCheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiuE nos pegões da ponte do trem de ferroos caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

NovenasCavalhadas

E eu me deitei no colo da menina e ela começoua passar a mão nos meus cabelosCapiberibe– CapibaribeRua da União onde todas as tardes passava a preta das bananasCom o xale vistoso de pano da CostaE o vendedor de roletes de canaO de amendoimque se chamava midubim e não era torrado era cozidoMe lembro de todos os pregões:Ovos frescos e baratosDez ovos por uma patacaFoi há muito tempo...A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livrosVinha da boca do povo na língua errada do povoLíngua certa do povoPorque ele é que fala gostoso o português do BrasilAo passo que nósO que fazemos

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É macaquearA sintaxe lusíadaA vida com uma porção de coisas que eu não entendia bemTerras que não sabia onde ficavamRecife...Rua da União...A casa de meu avô...Nunca pensei que ela acabasse!Tudo lá parecia impregnado de eternidadeRecife...Meu avô morto.Recife morto, Recife bom, Recife brasileirocomo a casa de meu avô.

Nesse poema, passado e presente estabelecem entre si uma relação de opo-sição. O polo do passado é positivo, pois nele a vida se condensa na infância feliz, protegida pela família, rodeada de amigos, identificada com seu espaço. A pas-sada infância, reinventada entre a experiência e a imaginação, é evocada – como ocorre também em uma passagem de “Vou-me embora pra Pasárgada” – como imagem da felicidade. O polo negativo (o presente) define-se pelas noções de ausência e de carência, associadas à imagem da morte. De modo muito signifi-cativo, porém, o passado está morto e é o presente que lhe dá vida.

Texto complementar

Autorretrato Manuel Bandeira

Provinciano que nunca soube

Escolher bem uma gravata;

Pernambucano a quem repugna

A faca do pernambucano;

Poeta ruim que na arte da prosa

Envelheceu na infância da arte,

E até mesmo escrevendo crônicas

Ficou cronista de província;

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Arquiteto falhado, músico

Falhado (engoliu um dia

Um piano, mas o teclado

Ficou de fora); sem família,

Religião ou filosofia;

Mal tendo a inquietação de espírito

Que vem do sobrenatural,

E em matéria de profissão

Um tísico profissional.

Estudos literários As questões 1 e 2 baseiam-se nos textos a seguir.

Texto 1A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros

Vinha da boca do povo na língua errada do povo

Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil.

Ao passo que nós

O que fazemos

É macaquear

A sintaxe lusíada.

(Evocação do Recife, Manuel Bandeira.)

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Texto 2Defesa da inventividade popular (“o povo é o inventa-línguas”, Maiakó-

vski) contra os burocratas da sensibilidade, que querem impingir ao povo, caritativamente, uma arte oficial, de “boa consciência”, ideologicamente re-tificada, dirigida.

Mas o povo cria, mas o povo engenha, mas o povo cavila. O povo é o inven-ta-línguas, na malícia da mestria, no matreiro da maravilha. O visgo do impro-viso, tateando a travessia, azeitava o eixo do sol... O povo é o melhor artífice.

(Circuladô de Fulô, Haroldo de Campos.)

Texto 3Vai chegando o mês de agosto

A tarde fica embaçada

Passarinho canta triste

A curianguinha e urutaga.

Gavião encorujado

Dorme nas arta copada,

Nambuzinho pia triste,

Dano vorta nas paiada,

Meu coração amagoa

Dá dolorosas paficada.

Quando eu entro no salão

Com minha viola afinada,

Eu canto uma moda arta

E muito bem expricada,

Dizeno que eu não insurto

Mas topo quarqué parada.

Tenho feito pé cascudo

Saí pisano na geada,

Saí derrubano orvaio

Com a carcinha arregaçada.

Nesse tempo tudo forga

Só minha vida é apertada.

O povo diz que não acha

Serviço de camarada.

Eu trabaio até de noite

Pra dá conta da empreitada.

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Pego moda por empreita

Pra inventá e pôr toada,

Invento moda na linha

Nos campeão dano lambada.

Nas festa que eu chego e canto,

Moça fica arvoroçada.

Na cozinha eu escuito

O zunzum das muié casada,

Tão gavano as minha moda

Por tê palavra apertada.

Os campeão fica num canto,

Tudo o povo dão risada

Eles sai devagarinho

Corre quando pega a estrada.

(Pé Cascudo, Oscar Martins e Vieira.)

1. Nos textos 1 e 2, Manuel Bandeira e Haroldo de Campos enfocam a esponta-neidade da “língua do povo” e aspectos da inventividade presentes na arte popular.

a) Cite pelo menos um trecho de cada autor em que eles criticam e denun-ciam nosso preconceito e desapreço às formas populares de expressão.

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b) Cite um trecho de Manuel Bandeira que focaliza o aspecto de oralidade na comunicação, tão característico da literatura popular.

2. A letra de “Pé cascudo” constitui-se de procedimentos versificatórios bastan-te uniformes e regulares que, em muitos casos, aproximam essa moda de viola da chamada “literatura oficial”: são estrofes em décimas (10 versos em cada estrofe), com rimas alternando versos brancos e versos pares rimados, e metrificação heptassílaba (sete sílabas métricas em cada verso), de acordo com os padrões da redondilha maior.

a) Cite dois versos ou dois trechos em que o poeta fala de sua “inventivida-de” ou da condição de “artífice” do bom violeiro.

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b) Cite um trecho de Haroldo de Campos que serviria como comentário concordante com as citações que você apresentou no item “a”.

3. No Manifesto da Poesia Pau-Brasil, Oswald de Andrade condena o purismo gramatical dos parnasianos e defende a “contribuição milionária de todos os erros”. Destaque um verso do poema de Bandeira que exemplifica esse princípio estético da fase heroica do Modernismo brasileiro.

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Por que a Geração de 1930 foi tão fértil? Depois da denominada fase heroica do Modernismo brasileiro, cujo

marco é a Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, em 1922, quando os pioneiros modernistas brasileiros lutaram para implantar no país as inovações das vanguardas europeias, surgiu uma ge-ração de poetas e romancistas das mais férteis e ricas em toda a história da literatura brasileira. Os modernistas de 1922 abriram o caminho para que os novos prosadores e poetas pudessem criar em liberdade, sem as amar-ras formais do academicismo, e preocupados com a realidade nacional.

Surgiram, assim, durante a década de 1930, romancistas regionalistas como Graciliano Ramos (1892-1953), José Lins do Rego (1901-1957), Jorge Amado (1912-2001) e Rachel de Queiroz (1910-2003), que chamaram a aten-ção para os problemas sociais das regiões mais carentes do Brasil, utilizando- -se da linguagem coloquial e crítica, herdada dos primeiros modernistas.

Os poetas, por sua vez, já não se pautaram por uma atitude programática e sim pela possibilidade de criação em todas as direções, utilizando tanto o verso livre, o poema-piada e as ousadias da Geração de 1922, tanto as formas fixas como o soneto, a metrificação e as rimas da poesia mais tradicional.

A poesia da Geração de 1930 Alguns dos poetas que apareceram na década de 1930 viveram de perto

a movimentação revolucionária de 1922. Carlos Drummond de Andrade (1902-1897) e Murilo Mendes (1901-1975) publicaram poemas no maior órgão de divulgação das ideias vanguardistas, a Revista de Antropofagia (1928-1929), de Oswald de Andrade (1890-1954) e Antônio de Alcântara Machado (1901-1935). Participam, portanto, ainda que como coadjuvantes,

A poesia da Geração de 1930 no Brasil

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Modernismo na Literatura Brasileira

da fase heroica do modernismo. Apesar da participação lateral de Drummond, seu poema “No meio do caminho” se converteu no maior símbolo desse momento de ruptura com a literatura passadista:

No meio do caminhoCarlos Drummond de Andrade

No meio do caminho tinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminhotinha uma pedrano meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimentona vida de minhas retinas tão fatigadas.Nunca me esquecerei que no meio do caminhotinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra.

Outros, carregam uma herança indisfarçável do Simbolismo, como Cecília Meireles (1901-1964); do Romantismo, como Vinicius de Moraes (1913-1980) e Augusto Frederico Schmidt (1906-1965); ou mesmo da poesia parnasiana, como Jorge de Lima (1893-1953).

Murilo Mendes Murilo Mendes nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais. Em seus primeiros livros

– Poemas (1930) e História do Brasil (1932) –, ele apresentou uma poesia irônica e provocativa, bem próxima das polêmicas criações do modernismo inicial. A partir de O visionário (1933), incorporou técnicas de composição surrealista.

Em 1934, converteu-se ao catolicismo. Durante as décadas de 1940 e 1950, sua poesia enveredou pelas formas poéticas tradicionais e pela religiosidade. No seu grande livro da década de 1960, Convergência (1966), retomou a poesia mais experimental, inventando “grafitos” poéticos e enviando “Murilogramas” – tele-gramas poéticos a numerosos artistas:

Murilograma a Graciliano RamosMurilo Mendes

1 Brabo. Olhofaca. Difícil.Cacto já se humanizando, Deriva de um solo sáfaroQue não junta, antes retira,

Desacontece, desquer.

2 Funda o estilo à sua imagem:Na tábua seca do livro

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A poesia da Geração de 1930 no Brasil

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Nenhuma voluta inútil.Rejeita qualquer lirismo.Tachando a flor de feroz.

3 Tem desejos amarelos.Quer amar, o sol ulula,Leva o homem do deserto(Graciliano-Fabiano)

Ao limite irrespirável.

4 Em dimensão de grandezaOnde o conforto é vacante,Seu passo trágico escreveA épica real do BRQue desintegrado explode.

Destacam-se, ainda, seus poemas em prosa, reunidos em livros como Poliedro (1966), e sua obra de crítico de artes plásticas.

Em 1947, Murilo Mendes casou-se com a poeta portuguesa Maria da Sau-dade Cortesão e em 1957 transferiu-se para a capital italiana. Lecionou Cultura Brasileira na Universidade de Roma e foi um dos mais importantes e respeitados críticos de arte da Itália.

Canção do exílioMurilo Mendes

Minha terra tem macieiras da Califórnia

onde cantam gaturamos de Veneza.

Os poetas da minha terra

são pretos que vivem em torres de ametista,

os sargentos do exército são monistas, cubistas,

os filósofos são polacos vendendo a prestações.

A gente não pode dormir

com os oradores e os pernilongos.

Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.

Eu morro sufocado

em terra estrangeira.

Nossas flores são mais bonitas

nossas frutas mais gostosas

mas custam cem mil réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade

e ouvir um sabiá com certidão de idade!

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Modernismo na Literatura Brasileira

Ao morrer, em Lisboa, deixou numerosos textos inéditos que foram reunidos por sua amiga Luciana Stegagno Picchio no primoroso volume Poesia Completa e Prosa (1994).

Pré-história1

Murilo Mendes

Mamãe vestida de rendas

Tocava piano no caos.

Uma noite abriu as asas

Cansada de tanto som,

Equilibrou-se no azul,

De tonta não mais olhou

Para mim, para ninguém:

Cai no álbum de retratos.

1 O poema se refere à mãe do poeta, que era pianista e faleceu em 1902.

Cecília Meireles Cecília Meireles nasceu na cidade do Rio de Janeiro e ficou órfã aos três anos de

idade. Criada pela avó, foi brilhante aluna e leitora insaciável. Formada professora em 1917, dedicou sua vida ao ensino e à divulgação da literatura brasileira pelo mundo. Aos 18 anos de idade, publicou Espectros (1919), seu primeiro livro.

Canção do caminhoCecília Meireles

Por aqui vou sem programa,

sem rumo,

sem nenhum itinerário.

O destino de quem ama

é vário,

como o trajeto do fumo.

Minha canção vai comigo.

Vai doce.

Tão sereno é seu compasso

que penso em ti, meu amigo.

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No início, foi muito influenciada pelo grupo de poetas espiritualistas, católi-cos e pós-simbolistas reunidos por Tasso da Silveira e Andrade Muricy em torno da revista carioca Festa. Essa herança jamais seria esquecida. Nos seus livros fundamentais – Viagem (1939), que reúne poemas escritos entre 1929 e 1937; Vaga Música (1942); Mar Absoluto (1945); Retrato Natural (1949); e mesmo em Ro-manceiro da Inconfidência (1953), sua obra mais conhecida – a poesia de Cecília Meireles nunca deixou de ser, acima de tudo, musical e espiritual, retomando as imagens vagas e intencionalmente imprecisas do Simbolismo.

– Se fosse,

em vez da canção, teu braço!

Ah, mas logo ali adiante

– tão perto! –

acaba-se a terra bela.

Para este pequeno instante,

decerto,

é melhor ir só com ela.

(Isto são coisas que digo,

que invento,

para achar a vida boa...

A canção que vai comigo

é a forma de esquecimento

do sonho sonhado à toa...)

ImprovisoCecília Meireles

Minha canção não foi bela:

minha canção foi só triste.

Mas eu sei que não existe

mais canção igual àquela.

Não há gemido nem grito

pungentes como a serena

expressão da doce pena.

E por um tempo infinito

repetiria o meu canto

– saudosa de sofrer tanto.

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Modernismo na Literatura Brasileira

Soneto de separaçãoVinicius de Moraes

De repente do riso fez-se o pranto

silencioso e branco como a bruma

E das bocas unidas fez-se espuma

E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento

Que dos olhos desfez a última chama

E da paixão fez-se o pressentimento

E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente

Fez-se de triste o que se fez amante

E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante

Fez-se da vida uma aventura errante

De repente, não mais que de repente.

Vinicius de Moraes Um dos mais conhecidos poetas brasileiros, Vinicius de Moraes nasceu e

morreu no Rio de Janeiro. Tornou-se célebre por seus poemas de amor (dentre os quais destacam-se os sonetos) e pelas parcerias musicais com Tom Jobim (1927-1994, junto com o qual foi um dos criadores da corrente musical da Bossa Nova) e, posteriormente, com Chico Buarque de Holanda e Toquinho.

Os seus primeiros livros – O Caminho para a Distância (1933), Forma e Exegese (1935) e Ariana, a Mulher (1936) – são marcados pela religiosidade e pelo caráter

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A poesia da Geração de 1930 no Brasil

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pós-simbolista. Já em seus livros seguintes, como Cinco Elegias (1943), Poemas, Sonetos e Baladas (1946) e Para Viver um Grande Amor: prosa e poesia (1965), o mundo material e a sensualidade triunfam sobre o misticismo. São dessa fase suas experiências com o soneto e outras formas poéticas tradicionais, bem como “O operário em construção”, seu mais importante poema social.

O anjo de pernas tortasVinicius de Moraes

A um passe de Didi, Garrincha avança

Colado o couro aos pés, o olhar atento

Dribla um, dribla dois, depois descansa

Como a medir o lance do momento.

Vem-lhe o pressentimento; ele se lança

Mais rápido que o próprio pensamento

Dribla mais um, mais dois; a bola trança

Feliz, entre seus pés – um pé de vento!

Num só transporte a multidão contrita

Em ato de morte se levanta e grita

Seu uníssono canto de esperança.

Garrincha, o anjo, escuta e atende: – GOOOOOL!

É a pura imagem: um G que chuta um O

Dentro da meta, um L. É pura dança!

Outros poetas de importância do período Jorge de Lima (1893-1953), autor de � Invenção de Orfeu (1952) e do célebre poema “Essa negra Fulô”, publicado no volume Novos Poemas (1929):

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Modernismo na Literatura Brasileira

Essa negra Fulô (fragmento)Jorge de Lima

Ora, se deu que chegou (isso já faz muito tempo) no banguê dum meu avô uma negra bonitinha, chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

[...]

Essa negrinha Fulôficou logo pra mucama pra vigiar a Sinhá, pra engomar pro Sinhô!

Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!

[...]

Ó Fulô! Ó Fulô! (Era a fala da Sinhá Chamando a negra Fulô!)Cadê meu frasco de cheiroQue teu Sinhô me mandou?– Ah! Foi você que roubou!Ah! Foi você que roubou!

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

O Sinhô foi ver a negra levar couro do feitor. A negra tirou a roupa, O Sinhô disse: Fulô! (A vista se escureceu que nem a negra Fulô).

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!Cadê meu lenço de rendas, Cadê meu cinto, meu broche, Cadê o meu terço de ouro que teu Sinhô me mandou? Ah! foi você que roubou! Ah! foi você que roubou!

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

[...]

Ó Fulô! Ó Fulô!Cadê, cadê teu Sinhôque Nosso Senhor me mandou? Ah! Foi você que roubou, foi você, negra Fulô?

Essa negra Fulô!

Augusto Frederico Schmidt, poeta religioso de estilo derramado e tendên- �cia romântica.

Mário Quintana (1906-1994), cuja poesia bem-humorada e de comunica- �ção fácil tem grande penetração popular.

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Texto complementar

O operário em construção Vinicius de Moraes

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:

– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.

E Jesus, respondendo, disse-lhe:

– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.

(Lc 4, 5-8)

Era ele que erguia casas

Onde antes só havia chão.

Como um pássaro sem asas

Ele subia com as casas

Que lhe brotavam da mão.

Mas tudo desconhecia

De sua grande missão:

Não sabia, por exemplo

Que a casa de um homem é um templo

Um templo sem religião

Como tampouco sabia

Que a casa que ele fazia

Sendo a sua liberdade

Era a sua escravidão.

De fato, como podia

Um operário em construção

Compreender por que um tijolo

Valia mais do que um pão?

Tijolos ele empilhava

Com pá, cimento e esquadria

Quanto ao pão, ele o comia...

Mas fosse comer tijolo!

E assim o operário ia

Com suor e com cimento

Erguendo uma casa aqui

Adiante um apartamento

Além uma igreja, à frente

Um quartel e uma prisão:

Prisão de que sofreria

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Modernismo na Literatura Brasileira

Não fosse, eventualmente

Um operário em construção.

Mas ele desconhecia

Esse fato extraordinário:

Que o operário faz a coisa

E a coisa faz o operário.

De forma que, certo dia

À mesa, ao cortar o pão

O operário foi tomado

De uma súbita emoção

Ao constatar assombrado

Que tudo naquela mesa

– Garrafa, prato, facão –

Era ele quem os fazia

Ele, um humilde operário,

Um operário em construção.

Olhou em torno: gamela

Banco, enxerga, caldeirão

Vidro, parede, janela

Casa, cidade, nação!

Tudo, tudo o que existia

Era ele quem o fazia

Ele, um humilde operário

Um operário que sabia

Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento

Não sabereis nunca o quanto

Aquele humilde operário

Soube naquele momento!

Naquela casa vazia

Que ele mesmo levantara

Um mundo novo nascia

De que sequer suspeitava.

O operário emocionado

Olhou sua própria mão

Sua rude mão de operário

De operário em construção

E olhando bem para ela

Teve um segundo a impressão

De que não havia no mundo

Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão

Desse instante solitário

Que, tal sua construção

Cresceu também o operário.

Cresceu em alto e profundo

Em largo e no coração

E como tudo que cresce

Ele não cresceu em vão

Pois além do que sabia

– Exercer a profissão –

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A poesia da Geração de 1930 no Brasil

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O operário adquiriu

Uma nova dimensão:

A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu

Que a todos admirava:

O que o operário dizia

Outro operário escutava.

E foi assim que o operário

Do edifício em construção

Que sempre dizia sim

Começou a dizer não.

E aprendeu a notar coisas

A que não dava atenção:

Notou que sua marmita

Era o prato do patrão

Que sua cerveja preta

Era o uísque do patrão

Que seu macacão de zuarte

Era o terno do patrão

Que o casebre onde morava

Era a mansão do patrão

Que seus dois pés andarilhos

Eram as rodas do patrão

Que a dureza do seu dia

Era a noite do patrão

Que sua imensa fadiga

Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!

E o operário fez-se forte

Na sua resolução.

Como era de se esperar

As bocas da delação

Começaram a dizer coisas

Aos ouvidos do patrão.

Mas o patrão não queria

Nenhuma preocupação

– “Convençam-no” do contrário –

Disse ele sobre o operário

E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário

Ao sair da construção

Viu-se súbito cercado

Dos homens da delação

E sofreu, por destinado

Sua primeira agressão.

Teve seu rosto cuspido

Teve seu braço quebrado

Mas quando foi perguntado

O operário disse: Não!

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Modernismo na Literatura Brasileira

Em vão sofrera o operário

Sua primeira agressão

Muitas outras se seguiram

Muitas outras seguirão.

Porém, por imprescindível

Ao edifício em construção

Seu trabalho prosseguia

E todo o seu sofrimento

Misturava-se ao cimento

Da construção que crescia.

Sentindo que a violência

Não dobraria o operário

Um dia tentou o patrão

Dobrá-lo de modo vário.

De sorte que o foi levando

Ao alto da construção

E num momento de tempo

Mostrou-lhe toda a região

E apontando-a ao operário

Fez-lhe esta declaração:

– Dar-te-ei todo esse poder

E a sua satisfação

Porque a mim me foi entregue

E dou-o a quem bem quiser.

Dou-te tempo de lazer

Dou-te tempo de mulher.

Portanto, tudo o que vês

Será teu se me adorares

E, ainda mais, se abandonares

O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário

Que olhava e que refletia

Mas o que via o operário

O patrão nunca veria.

O operário via as casas

E dentro das estruturas

Via coisas, objetos

Produtos, manufaturas.

Via tudo o que fazia

O lucro do seu patrão

E em cada coisa que via

Misteriosamente havia

A marca de sua mão.

E o operário disse: Não!

– Loucura! – gritou o patrão

Não vês o que te dou eu?

– Mentira! – disse o operário

Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se

Dentro do seu coração

Um silêncio de martírios

Um silêncio de prisão.

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Um silêncio povoado

De pedidos de perdão

Um silêncio apavorado

Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas

E gritos de maldição

Um silêncio de fraturas

A se arrastarem no chão.

E o operário ouviu a voz

De todos os seus irmãos

Os seus irmãos que morreram

Por outros que viverão.

Uma esperança sincera

Cresceu no seu coração

E dentro da tarde mansa

Agigantou-se a razão

De um homem pobre e esquecido

Razão porém que fizera

Em operário construído

O operário em construção.

Estudos literários1. Leia atentamente o texto e depois responda à questão.

Atrás de portas fechadas,

à luz de velas acesas,

brilham fardas e casacas,

junto com batinas pretas.

E há finas mãos pensativas,

entre galões, sedas, rendas,

e há grossas mãos vigorosas,

de unhas fortes, duras veias,

e há mãos de púlpito e altares,

de Evangelhos, cruzes, bênçãos.

(MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.)

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Aponte que grupos sociais representam as mãos do poema de Cecília Meireles.

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2. Leia atentamente os textos.

Texto 1O material do poeta é a vida, e só a vida, com tudo o que ela tem de sór-

dido e sublime. Seu instrumento é a palavra. Sua função é a de ser expressão verbal rítmica ao mundo informe de sensações, sentimentos e pressentimen-tos dos outros com relação a tudo o que existe ou é passível de existência no mundo mágico da imaginação. Seu único dever é fazê-lo da maneira mais bela, simples e comunicativa possível, do contrário ele não será nunca um bom poeta, mas um mero lucubrador de versos.

(MORAES, Vinicius de. Para Viver um Grande Amor. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984.)

Texto 2Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Nem me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

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Modernismo na Literatura Brasileira

Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

(Carlos Drummond de Andrade)

Agora, comparando o texto em prosa de Vinicius ao trecho do poema de Drummond, responda: esses dois textos apresentam o mesmo conceito de poesia? Por quê? Justifique sua resposta transcrevendo um trecho de cada texto.

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3. Um poema de amor muito conhecido é o “Soneto de fidelidade”, de Vinicius de Moraes. Leia-o para responder ao que pede.

Soneto de fidelidadeVinicius de Moraes

De tudo, ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento

E em seu louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento.

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Modernismo na Literatura Brasileira

E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.

a) Nas três primeiras estrofes, o poema apresenta uma série de antíteses. Aponte-as.

b) Interprete o aparente paradoxo contido na última estrofe do soneto.

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Quase um século de poesia Em 31 de outubro de 1902, na pequena Itabira do Mato Dentro, Minas

Gerais, nasceu Carlos Drummond de Andrade, filho do fazendeiro Carlos de Paula Andrade e de dona Julieta Augusta Drummond de Andrade.

Ele passou a infância em Itabira e com 14 anos de idade foi estudar como interno no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte – onde conheceu Gusta-vo Capanema (1900-1985) e Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990) e depois no Colégio Anchieta, da Companhia de Jesus, em Nova Friburgo (RJ), do qual foi expulso por “insubordinação mental”. Enquanto estudava em Nova Friburgo, seu irmão Altivo publicou seu poema em prosa “Onda”, no único número do jornalzinho Maio, em Itabira.

Como a família estava se transferindo para Belo Horizonte, Carlos Drum-mond voltou a Minas Gerais para acompanhar os familiares nessa mudan-ça para a capital do estado. Frequentou o Café Estrela e a Livraria Alves, onde conheceu Milton Campos (1900-1972), Abgar Renault (1901-1995), Emílio Moura (1902-1971), Mário Casassanta (1898-1963), João Alphonsus (1901-1944), Aníbal Machado (1884-1964), Pedro Nava (1903-1984) e Ga-briel Passos (1901-1962), entre outros. Nessa época, publicou seus primei-ros trabalhos no Diário de Minas e venceu o concurso Novela Mineira com o conto “Joaquim do Telhado”. As revistas Para Todos e Ilustração Brasileira, do Rio de Janeiro, publicaram alguns de seus poemas. Em 1923, matricu-lou-se na Escola de Odontologia e Farmácia de Belo Horizonte.

Carlos Drummond de Andrade

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Escreveu a Manuel Bandeira (1886-1968) e entrou em contato com o grupo modernista de São Paulo – que, em viagem, passou por Belo Horizonte em 1924. Assim conheceu o suíço Blaise Cendrars (1887-1961), que estava em visita ao Brasil, e os paulistas Oswald de Andrade (1890-1954), Tarsila do Amaral (1886-1973) e Mário de Andrade (1893-1945), de quem se tornou amigo e com quem manteve correspondência até poucos dias antes da morte de Mário.

Mais atraído pelas discussões sobre a arte e o país do que pelas aulas de quími-ca, formou-se farmacêutico em 1925, mas nunca exerceu a profissão. Ainda nesse ano, casou-se com Dolores Dutra de Morais e fundou, junto com Emílio Moura e Gregoriano Canedo, A Revista, órgão modernista do qual foram publicados três números. Depois de lecionar Geografia e Português no Ginásio Sul-Americano em Itabira, volta a Belo Horizonte para ser redator do Diário de Minas.

Em 1928, nasceu Maria Julieta, a filha única, que foi a grande companheira do poeta. Seu poema “No meio do caminho” foi publicado pela Revista de Antropo-fagia, de São Paulo. O poema causou forte impacto e tornou-se um dos maiores escândalos literários do Brasil. O poeta publicou, 39 anos depois, Uma Pedra no Meio do Caminho: biografia de um poema, coletânea de críticas e matérias resul-tantes do poema ao longo dos anos. Naquele mesmo ano de 1928, foi trabalhar na Secretaria de Educação, na redação da Revista do Ensino.

Em 1929, deixou o Diário de Minas para trabalhar no Minas Gerais, órgão ofi-cial do estado, sob a direção de Abílio Machado (1894-1964) e José Maria de Alkmim (1901-1974).

Em contraste com a pacata vida de funcionário público, a publicação do seu primeiro livro, em 1930 – Alguma Poesia – gerou, com a mesma intensidade, ata-ques e elogios da crítica e do público. A edição de 500 exemplares, sob o selo imaginário de Edições Pindorama, criado por Eduardo Frieiro (1889-1982), foi facilitada pela Imprensa Oficial do Estado, o que em nada alterou o caráter de ruptura e inovação da obra.

Em 1934, voltou a ser redator dos jornais Minas Gerais, Estado de Minas e Diário da Tarde, simultaneamente, e publicou Brejo das Almas em edição de 200 exemplares. Gustavo Capanema foi nomeado ministro da Educação e Saúde Pú-blica por Getúlio Vargas nesse mesmo ano, e Drummond foi convidado para ser o seu chefe de gabinete.

Assim, mudou-se com esposa e filha para o Rio de Janeiro, então capital da República, onde suas atividades intelectuais se ampliaram e ganharam impulso.

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Carlos Drummond de Andrade

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Colaborou inicialmente na Revista Acadêmica e, em seguida, no Correio da Manhã, Folha Carioca, A Manhã, Leitura, A Tribuna Popular, Política e Letras e na revista Euclydes. Em 1940, distribuiu, entre amigos e escritores, os 150 exempla-res da edição de Sentimento do mundo. Em 1942, José Olympio (1902-1990) foi o primeiro editor a se interessar por sua obra, publicando Poesias: José. Em 1944, por iniciativa de Álvaro Lins (1912-1970), Drummond publicou seu primeiro livro de prosa, Confissões de Minas.

Em 1945, publicou A Rosa do Povo, pela Livraria José Olympio Editora, e a novela O Gerente. Desligou-se do gabinete de Gustavo Capanema e aceita o convite de Luís Carlos Prestes (1898-1990) para integrar a diretoria do diário A Tribuna Popular, do Partido Comunista. Meses depois, insatisfeito com a orien-tação do jornal, afastou-se para trabalhar na Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Dphan), a convite do amigo Rodrigo Mello Franco de Andra-de (1898-1969). Mais tarde, tornou-se chefe da Seção de História, na Divisão de Estudos e Tombamento.

As atividades do poeta continuavam bastante diversificadas. Ainda em 1945, voltou a escrever no Minas Gerais e participou da frustrada tentativa de refor-mulação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Ainda nessa época, Drummond, cuja vida pessoal sempre foi marcada pela discrição, conheceu a jovem Ligia Fernandes, funcionária do Dphan, a quem dedicaria, ao longo da sua trajetória poética, alguns de seus mais belos poemas.

Em 1946, ganhou o Prêmio pelo Conjunto de Obra, da Sociedade Felipe d’Oliveira. Muitos outros prêmios foram acrescentados no decorrer de sua vida.

Às atividades de escritor e jornalista Drummond somou a de tradutor de textos literários. Traduziu, entre outros, As Relações Perigosas, de Choderlos de Laclos; Os Camponeses, de Honore de Balzac; A Fugitiva, de Marcel Proust.

Em 1948, Drummond publicou Poesia Até Agora. O Poema de Itabira, com-posição de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) sobre o texto “Viagem na família”, de Drummond, foi executado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro à mesma hora em que o poeta acompanhava o enterro de sua mãe, em Itabira.

Em 1949, Maria Julieta casou-se com o escritor e advogado argentino Manuel Graña Etcheverry e muda-se para Buenos Aires. Em 1950, quando nasceu Carlos Manuel, o seu primeiro neto, Drummond viaja pela primeira vez para fora do país. Durante a vida, suas poucas viagens internacionais sempre tiveram o mesmo destino (a Argentina) e a mesma razão (a saudade).

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Mas se Drummond não viajou muito, o mesmo não aconteceu com as suas obras. Em 1951, em Madri, foi publicado o volume Poesias. Em 1953, em Buenos Aires, apareceu Dos Poemas. A partir da década de 1960, suas obras foram para diversos países, como Alemanha, Estados Unidos, França, Portugal e Suécia.

Ainda em 1951, Drummond estreou como contista com a publicação de Contos de Aprendiz. No mesmo ano, publicou Claro Enigma e A Mesa. Em 1952, Viola de Bolso. Em 1954, Fazendeiro do Ar & Poesia até Agora. Em 1955, Viola de Bolso nova-mente encordoada. Em 1956, 50 Poemas Escolhidos pelo Autor. Em 1959, Poemas.

A intensa atividade do poeta e a revelação do contista não impediram o autor de escrever as crônicas que, durante quatro décadas, encantaram os lei-tores de alguns jornais. Em 1952, ele publicou o volume de crônicas Passeios na Ilha. O livro seguinte, Fala, Amendoeira, de 1957, reuniu as crônicas publicadas na coluna “Imagens”, do diário carioca Correio da Manhã, no qual permaneceu até 1969, quando transferiu-se para o Jornal do Brasil.

Com a aposentadoria, em 1962, Drummond ganhou mais tempo para suas atividades intelectuais. Nesse ano, publicou Antologia Poética, A Bolsa & a Vida e Lição de Coisas, premiado em 1963. Colaborou no programa Vozes da Cidade, criado por Murilo Miranda, na Rádio Roquete Pinto, e iniciou o programa Cadeira de Balanço, na Rádio Ministério da Educação, título de seu livro de crônicas que seria editado em 1966.

Com o reconhecimento do público e da crítica, em 1964 a Editora Aguilar publicou toda a sua produção em Obra Completa. Cinco anos depois, seria a vez de Reunião, abrangendo vários livros do poeta. Em 1965, em colaboração com Manuel Bandeira, Drummond publicou Rio de Janeiro em Prosa & Verso.

Nos anos de 1970 e 1980, Drummond recebeu muitos prêmios e continuou a publicar poesia, crônicas e contos, além de colaborar em jornais.

Em 1972, jornais do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre publicaram suplementos comemorativos do 70.º aniversário do poeta.

Em 1977, ele gravou 42 poemas em dois discos de vinil, lançados pela Polygram.

Quando completou 80 anos, foi homenageado por meio de exposições, en-trevistas e reportagens.

Em 1983, organizou a edição de Nova Reunião: 19 livros de poesia, sua última publicação pela Livraria José Olympio. No entanto, recusou-se a receber o Prêmio Juca Pato, alegando estar física e emocionalmente frágil.

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Em 1984, despede-se da José Olympio e assina contrato com a Editora Record, que publica suas obras até hoje. Também se despediu da carreira de cronista, com a crônica “Ciao”, no Jornal do Brasil, depois de 64 anos de trabalho jornalístico.

Em 1986, sofreu um infarto e ficou internado durante 12 dias.

Em 31 de janeiro de 1987, escreveu “Elegia a um tucano morto”, seu último poema que passou a integrar Farewell, último livro organizado pelo poeta.

Foi homenageado pela escola de samba Estação Primeira de Mangueira com o samba-enredo No reino das palavras, que venceu o Carnaval de 1987. Em julho, debilitado, concedeu uma última entrevista, em tom amargurado. Maria Julieta estava com câncer e falece no dia 5 de agosto, depois de dois meses de internação. “E assim vai-se indo a família Drummond de Andrade”, comentou o poeta.

Seu estado de saúde piorou e apenas 12 dias depois da morte da filha, em 17 de agosto, morreu vítima de insuficiência cardiorrespiratória. Foi enterrado no mesmo túmulo que a filha, no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro.

Deixou várias obras inéditas: Farewell; O Avesso das Coisas (aforismos), Moça Deitada na Grama, O Amor Natural (poemas eróticos), Viola de Bolso III (Poesia errante), hoje publicados pela Record; Arte em Exposição (versos sobre obras de arte); além de crônicas, dedicatórias em verso coletadas pelo autor, correspon-dências e um texto para um espetáculo musical, ainda sem título.

O último verso do seu último poema comenta “a inutilidade de nascer”, que a imensa obra que nos deixou, começando por Alguma Poesia, felizmente desmente.

A obra de Carlos Drummond de Andrade Vivendo durante praticamente todo o século XX, esse mineiro de Itabira deixou

uma das obras mais significativas da literatura brasileira. Influenciado de início pelos paulistas Oswald e Mário de Andrade, que conheceu em 1924, e por Manuel Bandeira, a quem, no mesmo ano, enviou poemas seus, publicou seu primei-ro livro, Alguma Poesia, em 1930. Essa primeira fase de sua obra é marcada por poemas irônicos, breves e coloquiais, como “Quadrilha”, “Cota zero”, “No meio do caminho” ou “Cidadezinha qualquer”, em que a vinculação ao primeiro momento do Modernismo brasileiro é patente:

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Cidadezinha qualquer

Casas entre bananeiras mulheres entre laranjeiras pomar amor cantar.

Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.

Já em um segundo momento, em que se sobressai o livro A Rosa do Povo (1945), sua obra volta-se para uma poesia mais reflexiva e participante, de acen-tuado teor social, com o poeta revelando-se profundamente marcado, tanto pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945) quanto pela experiência da ditadura do Estado Novo (1937-1945) no Brasil. Durante a década de 1950, assim como acon-tecia com a produção de boa parte dos seus companheiros de geração, a poesia de Drummond (em livros como Claro Enigma, 1951) apresentou uma busca das fórmulas tradicionais de composição, como o soneto, recorrendo à metrificação regular, em parte abandonando o caráter experimental de sua fase inicial:

Legado

Que lembrança darei ao país que me deu tudo que lembro e sei, tudo quanto senti? Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

E mereço esperar mais do que os outros, eu? Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti. Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu, a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso, uma voz matinal palpitando na bruma e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

De tudo quanto foi meu passo caprichoso na vida, restará, pois o resto se esfuma, uma pedra que havia em meio do caminho.

Esse caráter foi retomado – já sob influência da radicalidade experimental da poesia concreta, que surgiu em 1956 – no livro Lição de Coisas (1962), em que muito da ironia e das preocupações formais da sua primeira fase foram resgatadas:

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Amar-amaro

porque amou por que amouse sabiap r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o sternos ou desesperadosnesse museu do pardo indiferenteme diga: mas por queamar sofrer talvez como se morrede varíola voluntária vágula evidente?ah PORQUE AMOUe se queimoutodo por dentro por fora nos cantos ecoslúgubres de você mesm(o, a)irm(ã,o) retrato espetáculo por que amou?se era paraou era porcomo se entretanto todaviatoda via mas toda vidaé indignação do achado e aguda espotejaçãoda carne do conhecimento, ora vejapermita cavalheir(o, a)amig(o, a) me releveeste malestarcantarino escarninho piedosoeste querer consolar sem muita convicçãoo que é inconsolável de ofícioa morte é esconsolável consolatrix consoadíssimaa vida tambémtudo tambémmas o amor car(o, a) colega este não consola nunca de nuncarás.

A partir de então, já com 60 anos de idade, Drummond deixou de inovar tanto, e sua poesia, influenciada por seu trabalho como cronista, foi adquirindo um caráter mais prosaico e, por vezes, até jornalístico, sem, no entanto, deixar de apresentar momentos em que o nível de inventividade alcança suas melhores composições iniciais. Sobressai-se, neste período, o livro Corpo (1984), em que Drummond, já com mais de 80 anos, pratica uma poesia sentimental sem preo-cupação com as inovações formais que caracterizam o início de sua obra.

A estreia em livroPelo que se sabe, Alguma Poesia é composto por poemas escritos entre 1924 e

1930. Apresenta a produção inicial de Drummond, gerada em meio às acirradas dis-putas que seguiram a explosão nacional do Modernismo, após a Semana de Arte Moderna de 1922. Portanto, antes de ser uma obra inaugural do que se iria produzir

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a partir da década de 1930, trata-se de um produto da fase dita heroica, combativa e programática do Modernismo brasileiro.

Utilizando a linguagem coloquial do primeiro Modernismo, os poemas do livro são escritos em versos livres, sem métrica regular. A rima só comparece quando usada ironicamente: “Mariquita, dá cá o pito/ no teu pito está o infinito”. No “Poema de sete faces”, o poeta explicita a crítica irônica aos processos poéticos tradicionais:

Mundo mundo vasto mundose eu me chamasse Raimundoseria uma rima, não seria uma solução.Mundo mundo vasto mundo,mais vasto é meu coração.

Em seu célebre poema “Os sapos”, Manuel Bandeira faz uma crítica à poesia parnasiana: “O sapo-tanoeiro,/ Parnasiano aguado,/ Diz: – Meu cancioneiro/ É bem martelado.” Essa crítica é retomada por Drummond no poema “Festa no brejo”, em que o mineiro transfere para o seu estado a batalha contra os “sapos” parnasianos:

O brejo vibra que nem caixade guerra. Os sapos estão danados.(...)A saparia toda de Minascoaxa no brejo humilde.Hoje tem festa no brejo!

Alguns poemas revelam clara influência das vanguardas europeias, como o Dadaísmo (caso de “Sinal de apito” e “Cota zero”), ou do espírito irônico e comba-tivo de Oswald de Andrade (caso de “Anedota búlgara”, que tematiza o choque cultural por meio de uma irônica historieta que em muito lembra o poema “Erro de português”, de Oswald: “Quando o português chegou/ Debaixo duma bruta chuva/ Vestiu o índio/ Que pena!/ Fosse uma manhã de sol/ O índio tinha despi-do/ O português”):

Anedota búlgara

Era uma vez um czar naturalistaque caçava homens.Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,ficou muito espantadoe achou uma barbaridade.

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A ironia e o dom de surpreender A ironia perpassa todo o livro. O poeta gauche, deslocado, torto, evita o sen-

timentalismo barato (“Eu não devia te dizer/ mas essa lua/ mas esse conhaque/ botam a gente comovido como o diabo”), mas continua emocionando-se e co-movendo o leitor em versos surpreendentes como “E eu não sabia que minha história/ era mais bonita que a de Robinson Crusoé.” E segue demolindo estereó-tipos. Em “Papai Noel às avessas”, apresenta um Noel que vai roubar o quarto das criancinhas. Em “Casamento do céu e do inferno”, afirma sobre as mulheres que “Tirante Laura e talvez Beatriz, (as musas, respectivamente, de Petrarca e Dante, os maiores expoentes do renascimento italiano)/ o resto vai para o inferno”. Em “Fuga”, critica o poeta de pendor clássico que sonha com a Europa e rejeita tudo o que é brasileiro. Em “Sociedade”, a hipocrisia dos casais que se visitam.

Na primeira estrofe do poema “Sentimental”, o dom de Drummond para sur-preender torna-se ainda mais evidente:

Sentimental

Ponho-me a escrever teu nomecom letras de macarrão.No prato, a sopa esfria, cheia de escamase debruçados na mesa todos contemplamesse romântico trabalho.

A palavra macarrão destrói a expectativa inicial, criada pelo título e pelo pri-meiro verso do poema. Esperar-se-ia que o eu lírico escrevesse com letras mais “poéticas”, mas ele faz isso com as prosaicas letrinhas de macarrão, ao tomar uma sopa. Poderíamos dizer que, nesse poema, Drummond inscreve o sentimento amoroso no convívio cotidiano. Durante uma prosaica refeição, o eu lírico sonha com a mulher amada, enquanto tudo ao seu redor contribui para a proibição desse espírito “sentimental”.

As linhas temáticas Em 1962, Drummond publicou a sua Antologia Poética. Ao organizar o volume,

procurou, segundo ele, “localizar, na obra publicada, certas características, pre-ocupações e tendências que a condicionam ou definem, em conjunto” (ANDRA-DE, 1979, p. 8). Agrupou, portanto, os seus poemas em diversas linhas temáticas, ou segundo as diferentes “matérias de poesia”. Assim, dividiu a sua obra em nove grupos temáticos básicos, que têm guiado as considerações críticas sobre a sua

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poesia até hoje. Nove dos poemas de Alguma Poesia foram escolhidos para figu-rar na Antologia. Abaixo, temos o título de cada seção, seguido pela explicação dada a cada uma pelo próprio Drummond e pelos poemas de Alguma Poesia nelas presentes.

Um eu todo retorcido – o indivíduo (“Poema de sete faces”). �

Uma província: esta – a terra natal (“Cidadezinha qualquer” e “Romaria”). �

A família que me dei – a família (“Infância”). �

Cantar de amigos – amigos. �

Na praça de convites – o choque social (“Coração numeroso”). �

Amar-amaro – o conhecimento amoroso (“Quadrilha”). �

Poesia contemplada – a própria poesia. �

Uma, duas argolinhas – exercícios lúdicos (“Sinal de apito” e “Política li- �terária”).

Tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo – uma vi- �são ou tentativa de visão da existência (“No meio do caminho”).

Correndo os riscos inerentes a qualquer classificação que envolva aspectos subjetivos, poderíamos agrupar os demais 40 poemas do livro de acordo com essa tipologia. Alertando para o fato de que alguns dos poemas poderiam apa-recer em mais de uma seção, teríamos oito dos nove grupos criados por Drum-mond presentes em Alguma Poesia.

O indivíduo: “Poema de sete faces”, “Também já fui brasileiro”, “Moça e soldado”. �

A terra natal: “Cidadezinha qualquer”, “Romaria”, “Lanterna mágica”, “La- �goa”, “O que fizerem do Natal”, “Igreja”, “Jardim da praça da Liberdade”.

A família: “Infância”, “Família”, “Sesta”. �

O choque social: “Coração numeroso”, “Europa, França e Bahia”, “A rua di- �ferente”, “Poema do jornal”, “Nota social”, “Fuga”, “Papai Noel às avessas”, “O sobrevivente”, “Sociedade”, “Elegia do rei de Sião”, “Outubro 1930”.

O conhecimento amoroso: “Quadrilha”, “Casamento do céu e do inferno”, “Toa- �da do amor”, “Cantiga de viúvo”, “Sentimental”, “Esperteza”, “Iniciação amorosa”, “Balada do amor através das idades”, “Cabaré mineiro”, “Quero me casar”.

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A própria poesia: “Poema que aconteceu”, “Poesia”, “Festa no brejo”, “Expli- �cação”.

Exercícios lúdicos: “Sinal de apito”, “Política literária”, “Construção”, “Anedo- �ta búlgara”, “Cota zero”.

Uma visão da existência: “No meio do caminho”, “Política”, “Sweet home”, �“Música”, “Epigrama para Emílio Moura”, “Poema da purificação”.

A única seção da Antologia Poética que não se apresenta em Alguma Poesia é o cantar de amigos, composto por poemas dedicados a amigos reais do poeta como Mário de Andrade e Jorge de Lima (1893-1953) ou a “amizades” que se criam por meio da admiração artística, como as que o ligam a Federico Garcia Lorca (1898-1936) e a Charles Chaplin (1889-1977). No entanto, o livro como um todo é dedicado a “Mário de Andrade, meu amigo”, e vários poemas espe-cíficos são dedicados a amigos particulares, como Abgar Renault, Aníbal Ma-chado, Manuel Bandeira, Mário Casassanta, Ribeiro Couto (1898-1963), Gustavo Capanema, Afonso Arinos, Cyro dos Anjos (1906-1994), Pedro Nava, e Milton Campos. Um dos poemas traz essa dedicatória no próprio título: “Epigrama para Emílio Moura”.

A série “Lanterna mágica” foi incluída na seção “A terra natal” por apresentar basicamente poemas sobre cidades de Minas Gerais. Mas contém, também, um texto sobre o Rio de Janeiro, para onde o poeta haveria de transferir-se, e o irôni-co “Bahia”: “É preciso fazer um poema sobre a Bahia.../ Mas eu nunca fui lá”.

Poderíamos acrescentar, ainda, diversas vertentes temáticas que perpassam todo o livro. Uma delas seria a da perplexidade do homem frente às mudanças da sociedade moderna. Em poemas como “A rua diferente”, “O que fizeram do Natal” e “O sobrevivente”, essa temática aparece claramente, mas também está disseminada, de maneira mais sutil, em vários textos.

Outra preocupação que reaparece em diversos textos é com as relações entre o país e o exterior. Em vários momentos, o Brasil é comparado a outros países, como fica evidente nos poemas “Europa, França e Bahia” e “Fuga”.

Um poema no meio da polêmicaSem dúvida alguma, o mais polêmico e – por isso mesmo – o mais célebre

dos poemas de Alguma Poesia é “No meio do caminho”:

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No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminhotinha uma pedrano meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimentona vida de minhas retinas tão fatigadas.Nunca me esquecerei que no meio do caminhotinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra.

Já em 1924, esse poema foi elogiado em carta por Mário de Andrade, que o considerou “formidável. É o mais forte exemplo que conheço, mais bem frisado, mais psicológico, de cansaço intelectual”. Desde a sua primeira publicação – em julho de 1928, no número 3 da Revista de Antropofagia, dirigida por Oswald de Andrade –, o poema serviu como um divisor de águas. Virou o grande pomo da discórdia entre os tradicionalistas e os defensores da estética modernista.

O poema se estrutura por meio da repetição ad nauseaum do verso “no meio do caminho tinha um pedra”, que procura reproduzir o cansaço detectado por Mário de Andrade, a monotonia e o eterno enfrentamento de obstáculos (pedra) na vida (caminho) de qualquer um de nós. Além de colocar a palavra pedra no meio do caminho da leitura, as constantes inversões sintáticas (“no meio do ca-minho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho”) introduzem a ideia de enclausuramento, impossibilidade de fuga dos problemas: não importa a direção ou o sentido que se tome, a pedra sempre está no meio do caminho.

O título do poema de Drummond remete ao primeiro verso de uma obra-prima da literatura universal, a Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265-1321), em tradu-ção de Augusto de Campos:

Inferno, Canto I (trecho inicial)

No meio do caminho desta vida me vi perdido numa selva escura, solitário, sem sol e sem saída. […] Não me recordo ao certo como entrei, tomado de uma sonolência estranha, quando a vera vereda abandonei. Sei que cheguei ao pé de uma montanha, lá onde aquele vale se extinguia,

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que me deixara em solidão tamanha, e vi que o ombro do monte aparecia vestido já dos raios do planeta que a toda gente pela estrada guia. (ALIGHIERI, 2008)

Poderíamos dizer que a “pedra” de Drummond já está presente na obra-prima de Dante, pois o caminhante da Divina Comédia encontra “no meio do caminho” uma montanha, uma “pedra” que o impede de prosseguir.

Anterior a Drummond, Olavo Bilac, poeta brasileiro que é o símbolo da poesia tradicionalista, já havia feito um poema inspirado no mesmo verso de Dante:

Nel Mezzo del Camin... (fragmento)

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada E triste, e triste e fatigado eu vinha. Tinhas a alma de sonhos povoada, E a alma de sonhos povoada eu tinha... (BILAC, 2008)

Apesar de todas as diferenças, o poema de Olavo Bilac já apresenta procedi-mentos semelhantes àqueles que Drummond radicalizou. As inversões sintáti-cas (“Vinhas fatigada/ E triste, e triste e fatigado eu vinha”) as repetições (“Tinhas a alma de sonhos povoada,/ E a alma de sonhos povoada eu tinha”).

Mas essas semelhanças passaram despercebidas. Os defensores do Parnasia-nismo de Olavo Bilac preferiram ver, na simplicidade modernista do poema de Drummond, um bom exemplo de loucura e falta de imaginação ou habilidade poética. O crítico Gondin da Fonseca (1899-1977) publicou, entre outros, um artigo no jornal Correio da Manhã (Rio de Janeiro, 26 ago.1938) sugestivamente intitulado “Contra-a-mão. Os nossos atuais gênios poéticos”, em que destila todo o seu ódio contra a pedra drummoniana:

Hoje não se rima. Um cabra vai pela rua, tropeça, por exemplo, numa casca de banana, papagueia a coisa umas quatro ou cinco vezes e pronto! Está feito um poema:

Eu tropecei agora numa casca de banana. Numa casca de banana! Numa casca de banana eu tropecei agora, Caí para trás desamparadamente, E rasguei os fundilhos das calças! Numa casca de banana eu tropecei agora. Numa casca de banana! Eu tropecei agora numa casca de banana!

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Em meio a tantos ataques, defesas e comentários em geral, o poema foi se tornando a mais conhecida e citada obra poética do Modernismo brasileiro. O próprio Drummond viria a reunir as referências ao poema no singularíssimo volume Uma Pedra no Meio do Caminho: biografia de um poema (1967), infeliz-mente muito difícil de encontrar hoje em dia.

Estudos literários Leia com atenção os três textos a seguir para, em seguida, responder às

questões.

Texto I - Poema de sete facesCarlos Drummond de Andrade

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

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O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

Texto II - Let’s play that(NETO, 2008)

quando eu nasci

um anjo louco muito louco

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veio ler a minha mão

não era um anjo barroco

era um anjo muito louco, torto

com asas de avião

eis que esse anjo me disse

apertando a minha mão

com um sorriso entre dentes

vai bicho desafinar

o coro dos contentes

vai bicho desafinar

o coro dos contentes

let’s play that

Texto III - Até o fim(HOLANDA, 2008)

Quando nasci veio um anjo safado

O chato dum querubim

E decretou que eu tava predestinado

A ser errado assim

Já de saída a minha estrada entortou

Mas vou até o fim

Inda garoto deixei de ir à escola

Cassaram meu boletim

Não sou ladrão, eu não sou bom de bola

Nem posso ouvir clarim

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Um bom futuro é o que jamais me esperou

Mas vou até o fim

Eu bem que tenho ensaiado um progresso

Virei cantor de festim

Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso

Em Quixeramobim

Não sei como o maracatu começou

Mas vou até o fim

Por conta de umas questões paralelas

Quebraram meu bandolim

Não querem mais ouvir as minhas mazelas

E a minha voz chinfrim

Criei barriga, minha mula empacou

Mas vou até o fim

Não tem cigarro, acabou minha renda

Deu praga no meu capim

Minha mulher fugiu com o dono da venda

O que será de mim?

Eu já nem lembro pronde mesmo que vou

Mas vou até o fim

Como já disse era um anjo safado

O chato dum querubim

Que decretou que eu tava predestinado

A ser todo ruim

Já de saída a minha estrada entortou

Mas vou até o fim

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1. Podemos dizer que há relação intertextual entre os três textos? Justifique.

2. Como se igualam os três eus líricos dos poemas apresentados?

3. Aponte uma figura de linguagem na segunda estrofe do poema de Drum-mond e outra na terceira.

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4. Interprete o significado da metáfora “desafinar o coro dos contentes”, do poema de Torquato Neto.

5. Lembrando que o “clarim” é, segundo o Dicionário Eletrônico Aurélio, um “instrumento de sopro, de origem etrusca, feito de metal, com bocal e tubo cônico, hoje apenas usado para sinais militares, graças ao seu timbre claro e estridente”, explique o significado do verso “Nem posso ouvir clarim” do poema de Chico Buarque de Holanda.

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A ficção dos anos 1930 deu continuidade ao projeto modernista de apro-fundamento nos problemas brasileiros por meio de uma literatura regiona-lista, de caráter neorrealista, preocupada em apresentar os problemas e as desigualdades sociais do Brasil. Houve também uma boa produção voltada para os problemas urbanos. Prevaleceu uma linguagem direta, sem as ousa-dias formais dos romances de Oswald de Andrade (1890-1954), mas enfati-zando o uso da linguagem coloquial, popular, na obra de arte literária.

O precursor: José Américo de Almeida Acima de tudo um político, José Américo de Almeida (1887-1980) deve

sua importância para a literatura brasileira à publicação, em 1928, do pri-meiro romance neorrealista do movimento que viria, depois, a ser chama-do de Regionalismo de 1930: A Bagaceira. Segundo João Guimarães Rosa (1908-1967), José Américo de Almeida abriu o caminho do moderno ro-mance brasileiro. Sem dúvida, muito do que Graciliano Ramos (1892-1953) ou José Lins do Rego (1901-1957) mais tarde tematizaram de maneira mais contundente, já estava presente em A Bagaceira: a miséria do sertão; a brutalização do ser humano nordestino; as relações entre os fazendeiros, os senhores de engenho e os seus empregados; o conflito de gerações; o ser humano e os animais apresentados como “sócios da fome”.

A Bagaceira é narrado em terceira pessoa, por um narrador-observador onisciente, e apresenta um trabalho de linguagem muito rico. O narra-dor utiliza-se de uma linguagem erudita, de acordo com a norma culta da língua portuguesa. Já as falas das personagens procuram reproduzir o falar sertanejo, alcançando, por vezes, efeitos de poeticidade próximos daqueles alcançados, décadas depois, por João Guimarães Rosa. Um dos aspectos mais salientes e importantes do romance é a tensão linguística criada pela dicotomia entre a linguagem refinada do narrador e a brutali-dade da linguagem das personagens.

O romance da Geração de 1930

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O romance se abre com um prefácio/manifesto intitulado “Antes que me falem”, em que José Américo expõe alguns dos princípios básicos que haveriam de nortear não apenas a composição da sua obra como também de todo o Re-gionalismo de 1930. Observe dois trechos:

O Regionalismo é o pé-de-fogo da literatura... Mas a dor é universal, porque é uma expressão da humanidade. E nossa ficção incipiente não pode competir com os temas cultivados por uma inteligência mais requintada: só interessará por suas revelações, pela originalidade de seus aspectos despercebidos.[...]Um romance brasileiro sem paisagem seria como Eva expulsa do Paraíso. O ponto é suprimir os lugares-comuns da natureza. (ALMEIDA, 1995, prefácio)

Graciliano Ramos Graciliano Ramos nasceu em Quebrangulo, Alagoas. Foi prefeito de Palmeira dos

Índios (AL) e então se dedicou à literatura. Publicou alguns romances considerados obras-primas, como São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas Secas (1938). Sua produção literária se caracteriza pelo rigoroso cuidado com a linguagem (sobrieda-de, exatidão na escolha das palavras etc.), densa construção psicológica das perso-nagens e a capacidade de descrever o ambiente, as relações sociais, políticas e a natureza do Nordeste em um estilo enxuto, preciso e extremamente contundente. É, sem dúvida, um dos maiores e melhores escritores da língua portuguesa.

José Lins do RegoJosé Lins do Rego nasceu no Engenho Corredor, município de Pilar (Paraíba),

em 3 de junho de 1901 e morreu no Rio de Janeiro em 1957. Era órfão de mãe e, com o pai ausente, foi criado no engenho do avô materno. Estudou inicialmente no interior da Paraíba, em Itabaiana, e depois na capital. Fez o curso superior na Faculdade de Direito de Recife, Pernambuco.

Começou a escrever contos e artigos de temática política ainda estudante. Nessa época, iniciou sua amizade com José Américo de Almeida e Olívio Montene-gro (1896-1962). Em 1923, conheceu Gilberto Freyre (1900-1987), recém-chegado da Europa. Junto com eles, integrou o chamado grupo modernista do Recife.

José Lins dizia que, após conhecer Gilberto Freyre – sociólogo e escritor, autor de Casa-grande & Senzala (1933) – sua vida nunca mais foi a mesma: “de lá pra cá foram outras as minhas preocupações, [...] os meus planos, as minhas leituras,

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O romance da Geração de 1930

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os meus entusiasmos”. E foi sob a influência de Gilberto Freyre que começou a escrever seus romances regionalistas.

Em 1924, casou-se com Philomena Massa (D. Naná). Do casamento, teve três filhas: Maria Elisabeth, Maria da Glória e Maria Cristina. Em 1925, foi promotor público em Minas Gerais. Em 1926, transferiu-se para Maceió (Alagoas), onde tra-balhou como fiscal de bancos por nove anos e conviveu com Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz (1910-2003), Aurélio Buarque de Holanda (1910-1989), Jorge de Lima (1893-1953) e outros. O contato com esses e outros artistas formou uma consciência regionalista em torno da vida nordestina que marcou a obra de todos eles, especialmente a de José Lins do Rego. Em Maceió, escreveu os três primeiros romances: Menino de Engenho, Doidinho e Banguê.

Seu livro de estreia, Menino de Engenho, foi publicado em 1932 e recebeu o prêmio da Fundação Graça Aranha. Muito bem recebido pela crítica, a edição de dois mil exemplares foi quase totalmente vendida no Rio de Janeiro.

Em 1935, nomeado fiscal do imposto de consumo, José Lins do Rego foi para o Rio de Janeiro, onde passaria o resto de sua vida. Esteve em países sul-ameri-canos, na Europa e no Oriente. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 15 de setembro de 1955. Morreu dois anos depois, em 12 de setembro de 1957, sendo enterrado no mausoléu da Academia, no cemitério São João Batista.

O ciclo da cana-de-açúcar A partir de 1932, José Lins do Rego publicou doze romances, um volume de

memórias, Meus Verdes Anos, um de literatura infantil, Histórias da Velha Totônia, além de livros de viagem, conferências e crônicas.

Na obra desse grande contador de histórias, destacam-se os romances co-nhecidos como o ciclo da cana-de-açúcar, tendo como matéria básica o enge-nho Santa Rosa, do velho José Paulino. Em Menino de Engenho (1932), primeiro romance do ciclo, o autor mostra, de maneira lírica e saudosista, o ambiente de engenho em que o garoto Carlinhos foi criado, após seu pai, desequilibrado mental, ter assassinado a mãe. Criado entre os “moleques de bagaceira”, o garoto cresceu sob o avassalador poder patriarcal do avô José Paulino. Aos 12 anos de idade, conheceu a sexualidade com a “rapariga” Zefa Cajá, de quem contrai uma “doença do mundo”. Por fim, foi mandado ao colégio interno, para “endireitar”, perder os hábitos da “bagaceira” e se tornar um legítimo “senhor de engenho”.

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Em Doidinho (1933), José Lins do Rego descreve a vida de Carlos de Melo no colégio interno e depois, em Banguê (1934), mostra o seu retorno ao Santa Rosa, aos 24 anos, já formado em Direito. Então, Carlinhos tenta readaptar-se ao engenho, sempre permeado por uma sensação de impotência frente ao espírito autoritário do seu avô. Após a morte do velho José Paulino, Carlos acaba por levar o Santa Rosa à ruína, vende o engenho ao tio Juca e abandona para sempre as suas terras.

José Lins do Rego considerava Usina (1936) como o último livro do ciclo:

Nota à 1.ª edição

Com Usina termina a série de romances que chamei um tanto enfaticamente de Ciclo da Cana- -de-açúcar.

A história desses livros é bem simples – comecei querendo apenas escrever umas memórias que fossem as de todos os meninos criados nas casas-grandes dos engenhos nordestinos. Seria apenas um pedaço de vida o que eu queria contar.

Sucede, porém, que um romancista é muitas vezes o instrumento apenas de forças que se acham escondidas no seu interior.

Veio, após o Menino de engenho, Doidinho, em seguida Banguê. Carlos de Melo havia crescido, sofrido e fracassado. Mas o mundo do Santa Rosa não era só Carlos de Melo. Ao lado dos meninos de engenho havia os que nem o nome de menino podiam usar, os chamados “moleques de bagaceira”, os Ricardos. Ricardo foi viver por fora do Santa Rosa a sua história que é tão triste quanto a do seu companheiro Carlinhos. Foi ele do Recife a Fernando de Noronha. Muita gente achou-o parecido com Carlos de Melo. Pode ser que se pareçam. Viveram tão juntos um do outro, foram tão íntimos na infância, tão pegados (muitos Carlos beberam do mesmo leite materno dos Ricardos) que não seria de espantar que Ricardo e Carlinhos se assemelhassem. Pelo contrário.

Depois do Moleque Ricardo veio Usina, a história do Santa Rosa arrancado de suas bases, espatifado, com máquinas de fábrica, com ferramentas enormes, com moendas gigantes devorando a cana madura que as suas terras fizeram acamar pelas várzeas. Carlos de Melo, Ricardo e o Santa Rosa se acabam, têm o mesmo destino, estão tão intimamente ligados que a vida de um tem muito da vida do outro. Uma grande melancolia os envolve de sombras. Carlinhos foge, Ricardo morre pelos seus e o Santa Rosa perde até o nome, se escraviza.

Rio de Janeiro, 1936.J. L. R.

Usina apresenta o engenho transformado na usina Bom Jesus – que, dirigida pelo Dr. Juca, vai perdendo a sua força ao ser pressionada por interesses estran-geiros e pela usina Santa Fé, que domina toda a região. Além disso, ela acaba invadida por miseráveis em busca de alimentos e por fim é vendida pelo Dr. Juca, que a abandona melancolicamente.

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Fogo Morto Mas o engenho Santa Rosa e alguns de seus moradores voltariam a aparecer

na obra-prima de José Lins do Rego, o romance Fogo Morto (1943), que se cons-trói em torno de três personagens: o coronel Lula de Holanda, senhor de en-genho decadente e brutal; o mestre José Amaro, seleiro pobre e sábio, homem de destino trágico; e Vitorino Carneiro da Cunha, herói quixotesco, estabanado defensor dos oprimidos. Com este romance, José Lins finaliza o estudo da de-cadência da sociedade rural patriarcal dos senhores de engenho do Nordeste e, portanto, Fogo Morto pode ser considerado um integrante tardio do ciclo que José Lins julgou concluído anteriormente. Mais que integrar, Fogo Morto se tornou a maior obra do Ciclo da cana-de-açúcar pois, ao minimizar o cará-ter autobiográfico e nostálgico das obras precedentes, o romancista paraibano acrescentou à sua extraordinária facilidade de narrar – que mais lembra um con-tador de histórias marcado pela oralidade e pela naturalidade – a objetividade e a consciência compositiva que o caráter sentimental e espontâneo das obras anteriores encobria. Portanto, em Fogo Morto o romancista maduro e consciente se sobrepõe ao memorialista nostálgico para construir sua obra-prima: síntese, aprofundamento e condensação de todas as outras.

Espaço e tempo Fogo Morto se passa no município de Pilar, na Zona da Mata paraibana, às

margens do rio Paraíba, distante cerca de 50 quilômetros de João Pessoa e nas proximidades de Itabaiana. A maior parcela da ação se desenvolve nas terras do engenho Santa Fé, nos arredores do Pilar. Na cidade, passa-se boa parte da última seção da obra.

O desenrolar dos acontecimentos se dá durante os primeiros anos do século XX, com uma regressão a 1850, época da fundação do engenho Santa Fé. Embora seja traçada rapidamente a história do engenho até o momento narrado, as ações em si não duram mais do que alguns meses.

O título Os “engenhos” do Nordeste eram, originalmente, estabelecimentos agríco-

las destinados à cultura da cana e à fabricação do açúcar. Com a ascensão das

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usinas, que passaram a comprar dos engenhos sua produção bruta (a cana-de- -açúcar ainda não processada) para fabricar o açúcar, a maior parte desses enge-nhos foi, aos poucos, deixando de “botar”, de moer a cana para a fabricação do açúcar. Eles passaram apenas a vender a matéria-prima às usinas, tornando-se engenhos “de fogo morto” e assim perderam boa parte de seu poder, tornando- -se reféns dos preços pagos pelas usinas. É como se encontra, ao final de Fogo Morto, o decadente engenho Santa Fé.

Estrutura triangularFogo Morto é dividido em três partes. Cada uma delas traz, no título, o nome de

um dos três personagens principais do romance, mas as três partes se entrecruzam, os personagens aparecem ao longo de todo o livro. O coronel Lula de Holanda, o mestre José Amaro e Vitorino Carneiro da Cunha – misto de Dom Quixote e Sancho Pança que, em suas andanças e na sua ingênua busca de justiça, estabelece as rela-ções entre todas as personagens, servindo como ponto central da narrativa.

Primeira parte: o mestre José Amaro � – A primeira parte do romance centra- -se na casa do mestre José Amaro, à beira da estrada, no engenho Santa Fé. Mestre José Amaro é um seleiro orgulhoso e machista, que se recusa a ser dominado por qualquer um, só trabalha para quem escolhe e admira o can-gaceiro Antônio Silvino. Em grande medida, esta parte da obra se constrói por meio dos diálogos entre José Amaro e os passantes, incluindo o com-padre Vitorino Carneiro da Cunha, apelidado pelas crianças de Papa-rabo. Mestre José Amaro se irrita com o coronel Lula de Holanda, que é dono das terras em que o mestre mora e sempre cruza a estrada em seu cabriolé sem jamais parar para cumprimentá-lo. Vai adiando, portanto, atender ao chamado do coronel para que vá conversar com ele na casa-grande. Vemos o lento processo de enlouquecimento de Marta, sua filha, em quem José Amaro bate para tentar curar. O mestre recebe uma encomenda de com-pras de Antônio Silvino e sente-se muito orgulhoso em poder ajudá-lo. Seu caráter fechado e ranzinza lhe vale a fama de se transformar em lobisomem e as pessoas temem encontrar com ele à noite. Por fim, tem que mandar a filha para o hospício em Recife e acaba por atender ao chamado do coronel Lula, que lhe ordena que se retire de suas terras.

Segunda parte: o engenho de seu Lula – � No início da segunda parte do livro, temos uma regressão temporal, com o narrador retornando a 1850 para contar a fundação do engenho Santa Fé pelo capitão Tomás Cabral de Melo. Mudando-se para a região antes de 1848, ele compra as terras,

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funda o engenho e o faz prosperar. Casa sua filha Amélia com Lula Chacon de Holanda, seu primo, que pouco interesse ou aptidão tem para dirigir o engenho. Adoentado, deixa D. Mariquinha, sua mulher, dirigindo os negó-cios. Quando o capitão morre, Lula entra em disputa com a sogra e acaba por tomar-lhe as terras e o poder. Castigando os escravos com requintes de crueldade, andando com seu cabriolé para cima e para baixo, seu Lula vai se afastando cada vez mais do povo de Pilar e seu engenho entra em total decadência quando vem a Abolição e seus escravos debandam. Au-toritário, impede os homens de se aproximarem da filha. Epilético, tem um ataque na igreja e passa a se dedicar à religião com fervor. Empobrecido, gasta até as últimas moedas de ouro que lhe deixou o sogro. Sente uma inveja enorme de seu vizinho José Paulino e de seu engenho Santa Rosa, e despreza o espírito quixotesco de Vitorino Carneiro da Cunha. Esta parte se encerra com uma frase melancólica: “Acabara-se o Santa Fé”.

Terceira parte: o capitão Vitorino – Na terceira e última parte do romance, �predomina a ação. O capitão Antônio Silvino invade a cidade do Pilar, sa-queia as casas e lojas. Invade o engenho Santa Fé, ameaça os moradores em busca do ouro escondido. Tentando defender o engenho, Vitorino é agredido e só a intervenção de José Paulino faz com que os cangaceiros desistam. Vitorino também apanha da polícia, José Amaro e seus compa-nheiros são presos e agredidos. No final, após serem libertados, Vitorino e o mestre José Amaro seguem rumos diferentes: o primeiro pensa em influir politicamente na região, ao passo que o segundo, abandonado pela mulher, com a filha louca e expulso de sua casa, acaba por cometer suicí-dio enquanto o cabriolé de Lula passa pela estrada e o Santa Fé torna-se engenho de fogo morto.

As filhas e as mulheres Há uma sinistra simetria entre Marta, a sofredora filha de José Amaro, uma

solteirona que enlouquece aos poucos, e as filhas dos senhores do engenho Santa Fé, seus antagonistas. Olívia, a filha mais nova do capitão Tomás Cabral de Melo, enlouquece e perturba o silêncio áspero da casa-grande com seus gritos. Neném, filha do coronel Lula de Holanda, é impedida pelo pai de se casar, sendo melancólica e soturna. Sem filhos homens, os ensimesmados, machistas e tei-mosos opositores acabam destruindo suas filhas.

As mulheres dos protagonistas também se assemelham muito. Sinhá Velha e Sinhá Adriana são mais práticas e racionais do que os maridos – José Amaro e

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Vitorino –, mas pouco podem contra o machismo e a teimosia dos homens. No engenho Santa Fé, as mulheres sempre se mostram mais decididas e práticas do que o impotente Lula Chacon. D. Mariquinha, sua sogra, comanda o engenho até a morte do marido, quando é passada para trás pelo genro, que se mostra muito sem competência para gerir o engenho, que acaba por ser dirigido – sutil-mente – por D. Amélia, sua mulher.

Polícia ou bandido Polícia e bandido em muito se assemelham. Tanto o cangaceiro Antônio Sil-

vino quanto o tenente Maurício, comandante das tropas policiais, abusam da violência, ameaçam a todos, espancam o sonhador Vitorino e espalham o terror por onde passam. Mesmo que o povo (representado por José Amaro) respeite mais ao cangaceiro, as suas ações não deixam de comprovar (como constatado por Vitorino) que ele utiliza métodos abusivos e muito próximos do terror im-plantado por seu opositor.

Erico Verissimo Proveniente de uma rica família gaúcha que, repentinamente, entrou em de-

cadência, Erico Verissimo (1905-1975) trabalhou em empregos medíocres até se tornar jornalista e, logo depois, escritor de sucesso. O gaúcho Erico Verissimo foi um dos primeiros escritores brasileiros a viver da literatura.

A primeira fase de sua obra retrata a vida urbana, o cotidiano da cidade de Porto Alegre. Seu primeiro romance é Clarissa (1933) e nele o autor descreve, com muita sensibilidade, um ano na vida de uma adolescente que vai crescendo em Porto Alegre e, ingenuamente, observando o mundo. Depois vieram Música ao Longe (1935), em que Clarissa ressurge já adulta e angustiada, e Um Lugar ao Sol (1936), em que Erico Verissimo enfoca, em primeiro plano, Vasco Bruno, o marido de Clarissa, e atinge o ápice da investigação psicológica.

Na segunda fase de sua carreira, Erico Verissimo envereda pelo romance de linha histórica, em que conta a história do Rio Grande do Sul por meio das aven-turas da família Terra-Cambará. Três romances formam a série O Tempo e o Vento: O Continente (1949), em que aparecem os conhecidos episódios Ana Terra e Um certo capitão Rodrigo; O Retrato (1951) e O Arquipélago (1961).

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O romance da Geração de 1930

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O Continente Primeiro volume da trilogia O Tempo e o Vento, narra, em tom ao mesmo

tempo épico e lírico, a história da cidade de Santa Fé, desde os primórdios de sua fundação, em 1745, até o final da Revolução Federalista, em 1895. São, portanto, 150 anos da história gaúcha, narrados em terceira pessoa, de maneira neutra e onisciente, como convém a uma obra de caráter épico e histórico. No entanto, a narrativa não é linear, apresentando descontinui-dades temporais e uma constante oscilação entre 1895 e diversas datas na história de Santa Fé. Por sinal, muitos leitores entraram em contato apenas com fragmentos deste romance, posteriormente publicados como histórias separadas. Muitos já leram Ana Terra ou Um certo Capitão Rodrigo como no-velas isoladas, sem ao menos saber que ambas fazem parte de O Continente. Vejamos a estrutura geral da obra, com a indicação da época em que cada fragmento se passa.

Fragmento Período descritoO sobrado I 24 de junho de 1895: noiteA fonte 1745 a 1756O sobrado II 25 de junho de 1895: madrugadaAna Terra 1777 a 1811O sobrado III 25 de junho de 1895: tardeUm certo capitão Rodrigo 1828 a 1836O sobrado IV 25 de junho de 1895: noiteA Teiniaguá 1850 a 1855 O sobrado V 26 de junho de 1895: manhãA guerra 1869O sobrado VI 26 de junho de 1895: noiteIsmália Caré 1884 O sobrado VII 27 de junho de 1895: manhã

Há, portanto, duas linhas claras na estrutura do romance: aquela com-posta pelos fragmentos “O sobrado” (I a VII), que narram o cerco sofrido pelo sobrado de Licurgo Cambará entre 24 e 27 de junho de 1895, os úl-timos dias da Revolução Federalista, iniciada em 1893; e a linha histórica, que conta a história de Santa Fé por meio das aventuras da família Terra- -Cambará, apresentada nos outros framgmentos.

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“O sobrado”Teimoso como seu avô Rodrigo, Licurgo Cambará está cercado em seu so-

brado pelas forças federalistas, comandadas pelos Amaral, eternos inimigos dos Cambará. Acompanhado pela avó Bibiana, a cunhada Maria Valéria, os filhos Toríbio e Rodrigo e pela mulher Alice (prestes a dar à luz novamente), Licurgo luta contra os inimigos, contra a fome e a sede e contra o destino trágico dos Cambará. Alice dá à luz uma menina que “nasce morta” e está, ela mesma, às portas da morte. Quando Licurgo está prestes a levantar uma bandeira branca, rendendo-se, vê encaminharem-se para o sobrado os seus aliados com a notícia de que os federalistas – os maragatos – haviam se rendido. Salvo o sobrado, Li-curgo reassume seu posto de intendente (prefeito) de Santa Fé e a família Cam-bará vence, como sempre à custa de muito sacrifício, uma importante batalha na eterna guerra contra os Amaral.

A históriaO primeiro fragmento dedicado à história do Rio Grande do Sul é “A fonte”, �em que se narra, a partir de 1745, a história do padre Alonzo, que nos Sete Povos catequiza os jovens índios, dentre os quais está Pedro, que no seu fu-ror místico imagina ver Nossa Senhora e conversar com os mortos. Quando os Sete Povos são esmagados pelos portugueses, em 1756, “Pedro montou num cavalo baio e, levando consigo somente a roupa do corpo, a chirimia e o punhal de prata, fugiu a todo galope na direção do grande rio...”

“Ana Terra” é o fragmento seguinte. Maneco Terra e sua família moram em �uma estância próxima a Rio Pardo. Ana acaba se apaixonando pelo índio Pe-dro Missioneiro, de quem engravida. Antônio e Horácio, irmãos de Ana, as-sassinam Pedro para limpar a honra da irmã. Forte e corajosa, Ana cria o filho, mesmo enfrentando o desdém do pai. Quando a estância é atacada por es-panhóis, só Ana, seu filho Pedro e sua cunhada Eulália sobrevivem. Juntam-se à caravana de Marciano Bezerra e vão para a estância Santa Fé, comandada pelo coronel Ricardo Amaral. Com Pedro, Ana Terra constrói em Santa Fé uma vida que só não é inteiramente tranquila porque as guerras frequentemente a afastam do filho, que segue as ordens do estancieiro Amaral.

“Toda a gente tinha achado estranha a maneira como o capitão Rodrigo �Cambará entrara na vida de Santa Fé.” Assim se inicia o fragmento “Um cer-to capitão Rodrigo”, que narra como o guerreiro e andarilho Rodrigo Cam-bará, síntese do espírito gaúcho (corajoso, leal, tradicionalista e, acima de

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O romance da Geração de 1930

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tudo, másculo), chega ao povoado, em 1828. Travando amizade com Ju-venal Terra, filho de Pedro e neto de Ana Terra (que nesse momento já era falecida), Rodrigo logo se apaixona por Bibiana, irmã de Juvenal. Lutando contra o poderio da família Amaral, Rodrigo termina casando-se com Bi-biana, com quem tem os filhos Bolívar e Leonor, e acaba por enfrentar o coronel Ricardo Amaral em confronto mortal. Os dois inimigos morrem na luta e no mesmo dia são sepultados. Está decretada a eterna guerra entre os Amaral e os Terra-Cambará.

O fragmento seguinte, “A Teiniaguá”, passa-se durante a primeira metade �da década de 1850. Bolívar Cambará casa-se com Luzia, neta de Aguinal-do Silva, dono do sobrado mais imponente de Santa Fé. Morando no so-brado, Bolívar e Luzia têm o filho Licurgo e a amizade do doutor Winter, médico alemão muito culto que se torna, com suas observações da vida gaúcha, uma das personagens mais importantes do romance. Mais culta e requintada que o marido, Luzia se opõe ao machismo gaúcho e aos pou-cos se revela um tanto desequilibrada, tendo verdadeira fascinação pela morte. Bolívar é assassinado a mando dos Amaral e Bibiana se encarrega de cuidar de seu neto Licurgo.

O próximo fragmento da história dos Terra-Cambará já se passa em �1869, quando os homens de Santa Fé são enviados à Guerra do Paraguai (1864-1870). Intitulado “A guerra”, esse fragmento gira em torno dos cui-dados de Bibiana Cambará com Licurgo, seu neto adolescente que tanto lembra seu marido Rodrigo. Decidida a criar o neto como herdeiro da coragem e do orgulho dos Cambará, ela entra em conflito com Luzia, a cada dia mais depressiva e sofrendo de um tumor maligno.

“Ismália Caré”, último fragmento de � O Continente, passa-se em 1884, quando, instigado pela avó, Licurgo se casará com sua prima Alice. Vivendo entre o sobrado e a estância de Angico, Licurgo mantém um caso com Ismália Caré, filha de um trabalhador rural da sua propriedade. A ação se passa durante os festejos pela elevação de Santa Fé a cidade. Duas festas se opõem: uma que é organizada pelos Amaral e a outra, evidentemente, organizada pelos Cambará. Licurgo descobre que Ismália espera um filho seu, mas decide que não o terá, pois deve casar-se com Alice para continuar a luta dos Cambará. O livro chega, assim, aos acontecimentos da Revolução Federalista, em que, cercado no sobrado, Licurgo defende a honra e a família.

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Realismo fantástico A terceira e última fase do romancista é marcada por um realismo fantástico

próximo ao dos escritores latino-americanos das décadas de 1960 e 1970. Em obras como Incidente em Antares (1971), Verissimo, por meio de episódios fantásticos, aparentemente distantes da realidade, critica a vida política e social do momento.

Rachel de Queiroz Rachel de Queiroz (1910-2003) cresceu no sertão do Ceará, em Fortaleza, no

Rio de Janeiro, em Belém e em Quixadá (CE). Em 1925, formou-se professora e passou a colaborar em jornais locais. Em 1930, com a publicação de O Quinze, alcançou sucesso nacional. Militou nos quadros políticos da esquerda, chegou a ser presa em 1937 e, a partir de então, fixou residência no Rio de Janeiro.

Autora de vasta obra, como romancista, cronista e tradutora, Rachel de Queiroz foi a primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras, conquistou todos os prêmios literários importantes do Brasil e, pouco antes de morrer (morreu dormindo em sua rede, em 4 de novembro de 2003, na cidade do Rio de Janeiro), ainda afirmava que era jornalista, pois escrevia para os jornais desde os 19 anos de idade. Porém – dizia – não gostava de escrever, só o fazia para se sustentar e con-siderava que havia escrito poucos livros (O Quinze, As três Marias, Dôra, Doralina, Gallo de Ouro e Memorial de Maria Moura). Para ela, os outros eram apenas compi-lações de crônicas que fez por encomenda, para a imprensa.

Profundamente ligada à sua terra natal, Rachel de Queiroz escrevia em uma linguagem dominada pelo humanismo e, nos seus romances, predominam a me-mória e a observação dos problemas sociais da região. Além de O Quinze, publicou os romances João Miguel (1932), Caminho das Pedras (1937), As Três Marias (1939), Dôra, Doralina (1975), Gallo de Ouro (1986) e Memorial de Maria Moura (1992).

O Quinze O sucesso, que rapidamente alcançou em todo o país, desta obra de uma

jovem cearense de 20 anos de idade fez com que O Quinze, publicado pouco depois de A Bagaceira, fosse uma das obras fundamentais na divulgação do Re-

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gionalismo de 1930. Escrito em linguagem bem mais direta e simples do que o romance de José Américo de Almeida, a obra de estreia de Rachel de Queiroz usa a seca de 1915 no Ceará como pano de fundo para revelar o sofrimento e as angústias tanto dos miseráveis quanto dos proprietários rurais.

Narrado em terceira pessoa e utilizando a onisciência, o romance apresenta dois núcleos dramáticos que se cruzam:

a odisseia de Chico Bento, vaqueiro pobre e desempregado, e sua família, �fugindo da seca rumo a Fortaleza;

os desencontros amorosos entre a professora Conceição e o seu primo e �quase namorado, o pecuarista Vicente.

Conceição leva sua avó Inácia da fazenda onde mora, em Quixadá, para ficar em Fortaleza enquanto perdurar a seca. Na capital, a professora, que é solteirona (aos 22 anos!), ajuda os miseráveis reunidos no Campo de Concentração e pensa no seu primo Vicente, que permanece em Quixadá, cuidando bravamente da fazenda da família. Divididos tanto no espaço quanto por interesses diversos e intrigas várias, além de estarem incapazes de se comunicar, os primos vão – mesmo se amando – separando-se mais a cada dia. Enquanto isso, a distância entre Quixadá e Fortaleza vai sendo coberta, a pé, sob o sol escaldante, sem água e sem comida, por Chico Bento, Cordulina (sua mulher), Mocinha (a cunhada) e os cinco filhos. Mocinha fica pelo meio do caminho e acaba “caindo na vida” (torna-se prostituta); o filho mais velho morre envenenado; outro filho foge e se perde para sempre. A família, já bem reduzida, acaba por chegar ao Campo de Concentração, em Fortaleza, onde é aco-lhida por Conceição, que fica com o filho mais novo e consegue passagens para os restantes irem tentar uma sorte melhor em São Paulo. Com o fim da seca, Conceição vai visitar Quixadá, sentindo-se “estéril, inútil, só”. Encontra-se com Vicente, também solitário, mas a comunicação entre os dois já se tornara impossível, “E Conceição o viu sumir-se no nevoiro dourado da noite, passando a galope, como um fantasma, por entre o vulto sombrio dos serrotes” (QUEIROZ, 2004, p. 160).

Jorge Amado A estreia literária de Jorge Amado (1912-2001), baiano de Itabuna, ocorreu

em 1931, com o romance O País do Carnaval. Em 1933, ele publicou Cacau, ro-

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mance muito bem-recebido tanto pela crítica quanto pelo público leitor. Suor (1934), Jubiabá (1935) e Mar Morto (1936) seguiriam a trilha do romance regiona-lista preocupado em denunciar as desigualdades sociais nordestinas.

Quando Capitães da Areia (1937) foi publicado, o Brasil iniciava a ditadura do Estado Novo (1937-1945). O teor do romance, claramente apologético de uma revolução socialista, levou a ditadura a confiscar a primeira edição e a queimar 1694 exemplares de livros de Jorge Amado em praça pública, em Salvador. Ca-pitães da Areia haveria de se tornar, décadas depois, um dos livros de maior su-cesso entre o público adolescente por todo o país. Nesse romance, Jorge Amado denuncia a situação de marginalidade miserável das crianças abandonadas de Salvador, recorrendo muitas vezes a fictícias notícias de jornal para realçar o ca-ráter realista de reportagem investigativa. Mas, como lhe é peculiar, não se limita ao realismo: cria uma atmosfera nitidamente romântica ao descrever o heroísmo de Pedro Bala e seus companheiros. Em 1943, depois de seis anos de censura, o autor publicou Terras do Sem Fim, romance com que chegou ao ápice da literatu-ra engajada na proposta de uma revolução social.

Mas, logo sua obra tomaria outro rumo. O volume Os Velhos Marinheiros, de 1961, por exemplo, reúne duas novelas de caráter fantástico, com sabor de lenda alegórica, narradas em tom de rumor popular, sobre “velhos marinhei-ros” baianos.

A primeira novela do livro é “A morte e a morte de Quincas Berro D’água”, em que são narradas as duas mortes de Quincas Berro D’água – ou as três mortes do respeitável funcionário público Joaquim Soares da Cunha.

Joaquim Soares da Cunha e Quincas Berro D’água

A primeira morte se deu quando o respeitável funcionário público Jo- �aquim, viúvo exemplar, abandonou o lar e a família (a filha Vanda, o genro Leonardo, a tia Marocas e seu irmão mais moço, o comerciante Eduardo). Morto para a família, Joaquim foi viver como bêbado vaga-bundo entre a arraia-miúda de Salvador. Famoso beberrão, certo dia ele entrou na venda do espanhol Lopes e virou uma garrafa do que jul-gava ser cachaça. O seu berro de terror – “Águuuuuua!” – criou o ape-

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lido pelo qual se tornou conhecido por toda a malandragem: Quincas Berro Dágua.

Certa manhã, Quincas foi encontrado morto no seu quarto na Ladei- �ra do Tabuão. A família preparou o enterro e resolveu velá-lo às es-condidas no seu quarto. Durante o velório, Quincas misteriosamente xingou toda a família. E quando quatro amigos vagabundos ficaram a sós com o cadáver, serviram-lhe um gole de cachaça, fazendo com que ressuscitasse.

Alegre e bêbado, Quincas foi levado pelos amigos a um último passeio �pela vida noturna da cidade. Beberam, brigaram e acabaram navegan-do no veleiro de Mestre Manuel. Durante o passeio, Quincas caiu ao mar, onde morreu definitivamente.

A segunda novela é “A completa verdade sobre as discutidas aventuras

do comandante Vasco Moscoso de Aragão, capitão-de-longo-curso”. Vasco Moscoso de Aragão é uma personagem um tanto cômica que se apresenta na cidade de Periperi, onde vai morar, como um velho marinheiro, ostentando o título, totalmente falso, de capitão-de-longo-curso. Por um fantástico golpe de sorte, o impostor acaba se convertendo em herói da navegação.

Os Velhos Marinheiros se distancia muito de Capitães da Areia, em que, apesar de certo tom emotivo, ainda prevalecia a intenção de descrever cri-ticamente a sociedade. No livro de 1961, predomina o insólito, o pitoresco. Os pobres são descritos como seres alegres e romanticamente livres. O Jorge Amado anedótico, sonhador e lírico nitidamente se sobrepõe ao crítico das desigualdades sociais.

Na verdade, essa é uma tendência marcante na sua obra a partir de Gabrie-la, Cravo e Canela (1958). Não por acaso, é este Jorge Amado – o criador das folclóricas personagens de Dona Flor e seus Dois Maridos (1966), Teresa Batista Cansada de Guerra (1972) e Tieta do Agreste (1977) – e não o comunista das denúncias sociais das décadas de 1930 e 1940 que, adaptado para as telas, transformou-se em estrondoso sucesso de audiência da televisão e do cinema brasileiros.

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O romance urbanoCyro dos Anjos (1906-1994) era mineiro de Montes Claros e produziu uma obra

fortemente influenciada pela obra de Machado de Assis, pois apresenta, como a do mestre realista, uma constante oscilação entre a melancolia e o humor. O Ama-nuense Belmiro (1937) e Abdias (1945), seus principais romances, são em forma de diários escritos por narradores insignificantes, homens “menores”, como o Brás Cubas de Machado de Assis. Introspecção e memória fundem-se no observador discreto da vida urbana de personagens simples e humildes. Essa qualidade, aliada a uma linguagem clara e composta com muito rigor, faz de Cyro dos Anjos um dos narradores mais ágeis do nosso Modernismo.

Poucos romances, como O Amanuense Belmiro, correspondem tão perfeita-mente ao conceito – elaborado pelo crítico Lucien Goldmann (1913-1970) – de romance de tensão interiorizada: aquele em que o herói procura ultrapassar o conflito que o constitui existencialmente pela transmutação mítica ou metafí-sica da realidade. A narrativa de O Amanuense Belmiro é em primeira pessoa, na forma de um diário. Belmiro Borba, o narrador, conta sobre seus sonhos frustra-dos, seu cotidiano de burocrata, seu círculo de amigos “literatos” e seus amores platônicos. O diário é escrito durante pouco mais de um ano, do Natal de 1934 a alguns dias após o Carnaval de 1936. De início, Belmiro aspirava a escrever suas memórias de Vila Caraíbas, onde fora criado. No entanto, termina, isto sim, por descrever o seu dia-a-dia de homem solteiro e solitário, que olha com melancolia para o presente e lamenta, como Manuel Bandeira (1886-1968), “toda a vida que podia ter sido e que não foi”. Ele tem quase 40 anos, mora na Rua Erê, em Belo Horizonte, com as irmãs Emília e Francisquinha (que são mais velhas que ele) e é amanuense – um escrevente, funcionário burocrático subalterno – na Seção do Fomento Animal. Belmiro projeta imaginação e memória sobre seu cotidia-no insosso, vivendo mais nos projetos irrealizáveis e nos sonhos intangíveis que na própria realidade. O romance termina como o poema “Cota zero”, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), citado por Belmiro no início da narrativa: “Stop!/ A vida parou/ ou foi o automóvel?” Inesperada e abruptamente, Belmiro nos informa que a vida parou e nada há mais por escrever – mas foi escrevendo que Belmiro salvou-se da insignificância. Nas suas próprias palavras:

Quem quiser fale mal da Literatura. Quanto a mim, direi que devo a ela a minha salvação. Venho da rua deprimido, escrevo dez linhas, torno-me olímpico... Em verdade vos digo: quem escreve neste caderno não é o homem fraco que há pouco entrou no escritório. É um homem poderoso, que espia para dentro, sorri e diz: “Ora bolas”.

Como sintetiza Antonio Candido, em um prefácio para esse livro,

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O Amanuense Belmiro é o livro de um burocrata lírico. Um homem sentimental e tolhido, fortemente tolhido pelo excesso de vida interior, escreve seu diário e conta suas histórias. Para ele, escrever é, de fato, evadir-se da vida; é a única maneira de suportar a volta às suas decepções, pois escrevendo-as, pensando-as, analisando-as, o amanuense estabelece um movimento de báscule entre a realidade e o sonho.

Textos complementaresLeia, a seguir, as descrições de dois dos mais conhecidos personagens de

Erico Verissimo: Ana Terra e o capitão Rodrigo Cambará.

Ana Terra (VERISSIMO, 1967, p. 113-114)

Os anos chegavam e se iam. Mas o trabalho fazia Ana esquecer o tempo. No inverno tudo ficava pior: a água gelava nas gamelas que passavam a noite ao relento; pela manhã o chão frequentemente estava branco de geada e houve um agosto em que quando foi lavar roupa na sanga Ana teve primeiro de quebrar com uma pedra a superfície gelada da água.

Em certas ocasiões surpreendia-se a esperar que alguma coisa aconteces-se e ficava meio aérea, quase feliz, para depois, num desalento, compreender subitamente que para ela a vida estava terminada, pois um dia era repetição do dia anterior – o dia de amanhã seria igual ao de hoje, assim por muitas semanas, meses e anos até a hora da morte. Seu único consolo era Pedrinho, que ela via crescer, dar os primeiro passos, balbuciar as primeiras palavras. Mas o próprio filho também lhe dava cuidados, incômodos. Quando ele ado-ecia e não sabia dizer ainda que parte do corpo lhe doía, ela ficava agoniada e, ajudada pela mãe, dava-lhe chás e ervas, e quando a criança gemia à noite ela a ninava, cantando baixinho para não acordar os que dormiam.

De quando em quando chegavam notícias do Rio Pardo pela boca dum passante. Contaram um dia a Maneco Terra que Rafael Pinto Bandeira tinha sido preso, acusado de ter desviado os quintos e direitos da Coroa de Portu-gal e de ter ficado com as presas apanhadas nos combates de São Martinho e Santa Tecla. Ia ser enviado para o Rio de Janeiro e submetido a conselho de guerra. E o informante acrescentou:

– Tudo são invejas do governador José Marcelino, que é um tirano.

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Maneco não disse palavra. Não era homem de conversas. Não se metia com os graúdos. O que ele queria era cuidar de sua casa, de sua terra, de sua vida.

De toda a história Ana só compreendeu uma coisa: Rafael Pinto Bandeira fora preso como ladrão. E imediatamente lembrou daquele remoto dia de vento em que o comandante, todo faceiro no seu fardamento e seu chapéu de penacho, lhe dissera de cima do cavalo: “Precisaremos de muitas moças bonitas e trabalhadeiras como vosmecê.”

Muitos anos mais tarde, Ana Terra costumava sentar-se na frente de sua casa para pensar no passado. E no seu pensamento como que ouvia o vento de outros tempos e sentia o tempo passar, escutava vozes, via caras e lembrava-se de coisas... o ano de 81 trouxera um acontecimento triste para o velho Maneco: Horácio deixara a fazenda, a contragosto do pai, e fora para o Rio Pardo, onde se casara com a filha de um tanoeiro e se estabelecera com uma pequena venda. Em compensação, nesse mesmo ano, Antônio casou-se com Eulália Moura, filha dum colono açoriano dos arredores do Rio Pardo, e trouxe a mulher para a estância, indo ambos viver no puxado que tinham feito no rancho.

Em 85 uma nuvem de gafanhotos desceu sobre a lavoura deitando a perder toda a colheita. Em 86, quando Pedrinho se aproximava dos oito anos, uma peste atacou o gado e um raio matou um dos escravos.

Foi em 86 mesmo ou no ano seguinte que nasceu Rosa, a primeira filha de Antônio e Eulália? Bom. A verdade era que a criança tinha nascido pouco mais de um ano após o casamento. Dona Henriqueta cortara-lhe o cordão umbilical com a mesma tesoura de podar que separara Pedrinho da mãe.

E era assim que o tempo se arrastava, o sol nascia e se sumia, a lua passava por todas as fases, as estações iam e vinham, deixando sua marca nas árvo-res, na terra, nas coisas e nas pessoas.

Capitão Rodrigo (VERISSIMO, 1967, p. 171-173)

Toda gente tinha achado estranha a maneira como o capitão Rodrigo Cambará entrara na Vila de Santa Fé. Um dia chegou a cavalo, vindo ninguém sabia de onde, com o chapéu barbicacho puxado para a nuca, a bela cabeça

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de macho ativamente erguida, e aquele seu olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas. Devia andar lá pelo meio da casa dos 30, montava um alazão, vestia calças de riscado, botas com chilenas de prata e o busto musculoso apertado num dólmã militar azul, com gola vermelha e botões de metal. Tinha um violão a tiracolo; sua espada, apresilhada aos arreios, rebrilhava ao sol daquela tarde de outubro de 1828 e o lenço encar-nado que trazia ao pescoço esvoaçava no ar como uma bandeira. Apeou na frente da venda do Nicolau, amarrou o alazão no tronco de um cinamomo, entrou arrastando as esporas, batendo na coxa direita com o rebenque, e foi logo gritando, assim com ar de velho conhecido:

— Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho!

Havia por ali uns dois ou três homens, que o miraram de soslaio sem dizer palavra. Mas dum canto da sala ergueu-se um moço moreno, que puxou a faca, olhou para Rodrigo e exclamou:

— Pois dê!

Os outros homens afastaram-se como para deixar a arena livre, e Nicolau, atrás do balcão, começou a gritar:

— Aqui dentro não! Lá fora! Lá fora!

Rodrigo, porém, sorria, imóvel, de pernas abertas, rebenque pendente do pulso, mãos na cintura, olhando para o outro com um ar que era ao mesmo tempo de desafio e simpatia.

— Incomodou-se, amigo? – perguntou jovial, examinando o rapaz de alto a baixo.

— Não sou de briga, mas não costumo aguentar desaforo.

— Oôi bicho bom!

Os olhos de Rodrigo tinham uma expressão cômica.

— Essa sai ou não sai? Perguntou alguém do lado de fora, vendo que Rodrigo não desembainhava a adaga. O recém-chegado voltou a cabeça e respondeu calmo:

— Não sai. Estou cansado de pelear. Não quero puxar arma pelo menos

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por um mês. – Voltou-se para o homem moreno e, num tom sério e concilia-dor, disse:

— Guarde a arma, amigo.

O outro, entretanto, continuou de cenho fechado e faca em punho. Era um tipo indiático, de grossas sobrancelhas negras e zigomas salientes.

— Vamos, companheiro – insistiu Rodrigo. – Um homem não briga debal-de. Eu não quis ofender ninguém. Foi uma maneira de falar.

Depois de alguma relutância o outro guardou a arma, meio desajeitado, e Rodrigo, estendeu-lhe a mão dizendo:

— Aperte os ossos.

O caboclo teve uma breve hesitação, mas por fim, sempre sério, apertou a mão que Rodrigo lhe oferecia.

— Agora vamos tomar um trago. – convidou este último.

— Mas eu pago – disse o outro.

Tinha lábios grossos, dum pardo avermelhado e ressequido.

— O convite é meu.

— Mas eu pago – repetiu o caboclo.

— Está bem. Não vamos brigar por isso.

Aproximaram-se do balcão.

— Duas caninhas! – pediu Rodrigo.

Nicolau olhava para os dois homens com um sorriso desdentado na cara de lua cheia, onde apontava uma barba grossa e falha.

— É da boa. – disse ele, abrindo uma garrafa de cachaça e enchendo dois copinhos.

Houve um silêncio durante o qual ambos beberam: o moço em pequenos goles, e Rodrigo dum sorvo só, fazendo muito barulho e por fim estralando os lábios.

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Tornou a pôr o copo sobre o balcão, voltou-se para o homem moreno e disse:

— Meu nome é Rodrigo Cambará. Como é sua graça?

— Juvenal Terra.

— Mora aqui no povo?

— Moro.

— Criador?

O outro sacudiu a cabeça negativamente.

— Faço carreatas daqui pro Rio Pardo e de lá pra cá.

— Mais um trago?

— Não. Sou de pouca bebida.

Rodrigo tornou a encher o copo, dizendo:

— Pois comigo companheiro, a coisa é diferente. Não tenho meias medi-das. Ou é oito ou oitenta.

— Hai gente de todo o jeito. – limitou-se a dizer Juvenal.

Rodrigo olhou para o vendeiro.

— Como é a sua graça mesmo, amigo?

— Nicolau.

— Será que se arranja por aí alguma coisa de comer?

Nicolau coçou a cabeça.

— Posso mandar fritar uma linguiça!

O capitão tomou seu terceiro copo de cachaça. Juvenal, que o observava com olhos parados e inexpressivos, puxou dum pedaço de fumo em rama e duma pequena faca e ficou a fazer um cigarro.

— Pois te garanto que estou gostando deste lugar. – disse Rodrigo – Quando entrei em Santa Fé, pensei cá comigo: Capitão, pode ser que vosmecê só passe aqui uma noite, mas também pode ser que passe o resto da vida...

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— E o resto da vida pode ser trinta anos, três meses ou três dias... — filo-sofou Juvenal, olhando os pedacinhos de fumo que se acumulavam no côn-cavo da mão.

E quando ergueu a cabeça para encarar o capitão, deu com aqueles olhos de ave de rapina.

— Ou três horas... – completou Rodrigo – Mas por que é que o amigo diz isso?

— Porque vosmecê tem um jeito atrevido.

Sem se zangar, mas com firmeza, Rodrigo retrucou:

— Tenho e sustento o jeito.

— Por aqui hai também muito homem macho.

Estudos literários1. Leia o capítulo abaixo, de O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, para res-

ponder às perguntas.

Os acontecimentos conduzem os homensE assim vai a vida... Os acontecimentos que até aqui se desenrolaram e em

que desempenhei ora o papel de ator principal, ora o de espectador, muda-ram, por completo, as intenções deste livro. Naquela noite de Natal, ao início destas notas, expus o plano de ir alinhando apontamentos que me permitis-sem publicar, mais tarde, um livro de memórias. Estava, então, concebendo qualquer coisa, e essa coisa se me agitava, no ventre, reclamando lugar ao sol. Jamais pensei, naquela ocasião, ou antes dela, que o presente pudesse vir dominar-me o espírito por forma tal, dele expelindo as imagens do passado que então o povoavam, abundantes e vivas.

Estive refletindo, esta tarde, em que, no romance, como na vida, os perso-nagens é que se nos impõem. A razão está com monsieur Gide: eles nascem e crescem por si, procuram o autor, insinuam-se-lhe no espírito.

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Não se trata, aqui, de romance. É um registro nostálgico, um memorial desconchavado. Tal circunstância nada altera, porém, a situação. Na verda-de, dentro do nosso espírito as recordações se transformam em romance, e os fatos, logo consumados, ganham outro contorno, são acrescidos de mil acessórios que lhes atribuímos, passam a desenrolar-se num plano especial, sempre que os evocamos, tornando-se, enfim, romance, cada vez mais ro-mance. Romance trágico, bufo ou sem nenhum sentido, conforme cada um de nós, monstros imaginativos, é trágico, é cômico ou absurdo.

Vejo que a história do presente já expulsou, definitivamente, destes ca-dernos, a do passado. Carmélia (travestida de Arabela) e Jandira afastaram a sombra de Camila, que, bem o percebo agora, era outra encarnação do mito infantil. Silviano, Redelvim, Glicério, Florêncio e Giovanni e seus pequenos mundos baniram os fantasmas caraibanos, as evocações dos velhos Borbas, a vida sentimental da Vila e da fazenda.

Em vão, tento uma sondagem em Vila Caraíbas, naquele ano extraordiná-rio de 1910. Baldo esforço: como resistir a personagens e fatos que, a cada instante, incidem no plano de nossa consciência? Às vezes ainda me vem a necessidade angustiosa de rever antigas paisagens, evadir-me para uma região que realmente já não se acha no espaço, e sim no tempo. Mas, no comum dos dias, agora é o presente que me atrai.

a) Aponte o recurso utilizado por Cyro dos Anjos nesse fragmento, ao escre-ver sobre o próprio ato de escrever. Cite um autor realista brasileiro que muito se utilizou deste recurso.

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b) Por que, conforme ele mesmo, Belmiro não conseguiu seguir o plano a que se propunha ao começar o romance?

c) Esse capítulo comprova a tese de que O Amanuense Belmiro é um roman-ce de tensão interiorizada? Por quê?

d) Explique a frase “Carmélia (travestida de Arabela) e Jandira afastaram a sombra de Camila, que, bem o percebo agora, era outra encarnação do mito infantil”.

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e) A frase “Vejo que a história do presente já expulsou, definitivamente, destes cadernos, a do passado” é verdadeira? Por quê?

2. Leia abaixo um fragmento do romance Fogo Morto, de José Lins do Rego (Texto 1) e, em seguida, um trecho de São Bernardo, de Graciliano Ramos (Texto 2). Ao final, compare os dois trechos.

Texto 1E não falou mais. Foi para a sua rede, enjeitou a janta, e na escuridão do quarto

as coisas começaram a rodar na cabeça. Não haveria um direito para ele? A terra era do senhor de engenho, e ele que se danasse, que fosse com seus cacos para o inferno. Um ódio de morte tomou-o de repente. Não sentira aquilo no mo-mento em que o coronel lhe falara. Era um maluco, não tinha raiva dele.

Mas na escuridão, na rede que rangia nos armadores de corda, tinha raiva, tinha uma vontade de destruição, de matar, de acabar com o outro. As gar-galhadas de Marta enchiam a casa. Teria uma filha na Tamarineira. O infeliz daquele negro Floripes pagaria. E, sem querer, levantou-se da rede. Abriu a janela do quarto e o céu estrelado pinicava na escuridão da noite.

Andou para a porta e pensou em sair um pouco. Lobisomem. Os meni-nos correram de sua figura, ouviu gente batendo porta por sua causa. Foi até a pitombeira e sentou-se em cima da raiz. O que havia nele para espan-tar os meninos, para meter medo aos velhos? Todo o ódio ao negro Floripes sumiu-se. Uma onda de frio passou-lhe pelo corpo. O que tinha nele para fazer medo, para fazer correr gente? Lembrou-se da noite da morte da velha Lucinda. Ligou tudo. Correram dele. Lobisomem.

Em menino falavam dos que saíam de noite para beber sangue, matar inocentes, correr como bicho danado. E sem saber explicar, o mestre José Amaro examinou-se com pavor. O que havia no seu corpo, nos seus gestos, na sua vida? A filha endoidecera. Mas isto nada tinha que ver com a invenção

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do povo. Ele não saía de casa, nunca fizera mal a ninguém. E por que seria o monstro que alarmava o povo? A noite escura chiava nos insetos; ladrava um cachorro do seu Lucindo. Sinhá e a comadre conversavam. E a filha no falatório, na gargalhada, no sofrimento pior deste mundo. O mestre não en-contrava apoio para fugir da preocupação. Entrou outra vez para o quarto, e não tinha paz, não estava seguro de nada, não estava seguro de nada. As ameaças do coronel Lula, a raiva a Floripes, tudo se diluíra com aquele pavor quer lhe enchia o coração. Tinha medo e não sabia de que era. Ele fazia correr menino na estrada. Era o lobisomem do povo, o filho do diabo, encantando-se nas moitas escuras. Nunca um pensamento lhe doera tanto. Latia aquele cachorro como se estivesse acuando um bicho. Aquela hora as mulheres rezariam, estariam com a ideia no lobisomem que imaginavam com as unhas grandes, a cabeça comprida de lobo, a forma de monstro em desadoro. Corria um vento que lhe esfriava os pés. Por que seria ele para a crença do povo aquele pavor, aquele bicho? O que fizera para merecer isso? O coração batia-lhe muito forte. Não. No outro dia teria que fazer qualquer coisa para acabar com aquela história. Laurentino e Floripes pagariam. Eram eles os criadores daquela miséria. A filha no outro dia sairia para o Recife. A sua casa ficaria mais só, mais cheia de tristeza.

Mesmo assim amava a sua casa. E se fosse embora e procurasse outra terra para acabar com seus dias? O coronel lhe pedira a casa. Era um bom pretexto para fugir do povo que lhe queria mal, que o via como uma des-graça, uma criatura do diabo. Estaria tudo resolvido. O mestre José Amaro encontraria um engenho no Itambé, uma terra que o acolhesse, um povo que o amasse.

(REGO, 1997, p. 112-114)

Texto 2Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um

coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.

(RAMOS, 1953, p. 194)

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O romance da Geração de 1930

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Prefeito, educador e escritor Nascido em Quebrangulo, Alagoas, em 27 de outubro de 1892, Gra-

ciliano Ramos viveu, na sua infância, sucessivas mudanças com a família pelo interior de Pernambuco e Alagoas. Suas experiências e impressões dessa fase serviram de material para suas obras de ficção e de memórias, como o livro Infância (1945).

Em 1927, ele foi eleito prefeito da pequena cidade de Palmeira dos Índios (AL), onde sua gestão foi reconhecida como dinâmica e séria. Preocupava-se com a educação e abriu escolas em três aldeias (Serra da Mandioca, Anum e Canafístula). Escritos em uma linguagem objetiva e clara, sem o convencionalismo característico dos documentos oficiais, os dois relatórios anuais enviados pelo prefeito Graciliano ao governador do estado chamaram a atenção, entre os que os leram, do editor Augusto Fre-derico Schmidt (1906-1965). Vejamos um trecho de um desses relatórios.

Exmo. Sr. Governador:

Trago a V. Exa. um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Índios em 1928.Não foram muitos, que os nossos recursos são exíguos. Assim minguados, entretanto, quase insensíveis ao observador afastado, que desconhece as condições em que o município se achava, muito me custaram.

Começos

O principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na administração. Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o comandante do destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do município tinha a administração particular, com prefeitos coronéis e prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam. Para que semelhante anomalia desaparecesse, lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência, mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro.

Graciliano Ramos

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Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Devo muito a eles. Não sei se a administração do município é boa ou ruim. Talvez pudesse ser pior. (apud CARDOSO, 2008)

Schmidt viria a publicar o primeiro romance do autor – Caetés, em 1933 –, quando Graciliano já estava com 40 anos de idade. Nessa época, enquanto se recuperava de uma cirurgia, ele terminou de escrever São Bernardo (publicado em 1934), o primeiro de uma série de três romances que o tornariam um dos maiores escritores da língua portuguesa. A trilogia se completa com Angústia (1936) e Vidas Secas (1938).

Em 1933, foi nomeado diretor da Instrução Pública de Alagoas e mudou-se para Maceió. Era casado com Heloísa de Medeiros, com quem teve quatro filhos. Ocupou o cargo durante três anos, trabalhando muito e revolucionando os mé-todos de ensino no estado.

Em 1936, foi preso, sob a acusação de comunismo. Essa acusação era falsa, já que só se filiaria ao Partido Comunista do Brasil (PCB) em 18 de agosto de 1945, nove anos depois. Ficou nove meses preso. As condições precárias e o tratamento desumano e opressor das prisões onde esteve afetaram sua saúde e lhe deram material para escrever Memórias do Cárcere (1953) – mais do que um mero depoimento, “um dos estudos mais sérios da realidade brasileira, um libelo contra o nosso atraso cultural e uma denúncia das iniquidades do Estado Novo” (PAES; MOISÉS, 1968, p. 206). Graciliano começou a escrevê-lo em 1946, dez anos depois da prisão, e o livro seria publicado em 1953, que é também o ano de sua morte.

Depois de libertado, Graciliano permaneceu no Rio de Janeiro, não voltou mais ao Nordeste. No entanto, o Nordeste sempre esteve com ele, nos seus livros e na sua vida.

Morou com a mulher e as filhas menores em um quarto de pensão em que escreveu, entre outros textos, A Terra dos Meninos Pelados, obra que ganhou um prêmio de literatura infantil do Ministério da Educação e Cultura, em 1937, e Vidas Secas, seu último romance, publicado em 1938.

Em 1939, foi nomeado inspetor federal do ensino. Nesse período, escreveu Histórias de Alexandre, narrativas baseadas no folclore nordestino e dirigidas aos leitores mais jovens. A coletânea foi publicada em 1962, com o título de Alexan-dre e Outros Heróis, pela Livraria Martins Editora.

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Em 1952, foi para Paris como presidente da Associação Brasileira de Escritores, convidado para participar das comemorações dos 150 anos de nascimento do escritor Victor Hugo (1802-1885). Viajou durante dois meses e visitou também a Tchecoslováquia e a União Soviética. De volta ao Brasil, adoeceu logo depois. Estava com câncer. Na comemoração de seus 60 anos, na Câmara Municipal do Rio, foi homenageado com discursos de vários amigos: Jorge Amado (1912-2001), José Lins do Rego (1901-1957), Jorge de Lima (1893-1953) e outros. Sua filha Clara o representou, pois não pôde comparecer – estava internado na Casa de Saúde e Maternidade São Vítor, onde viria a falecer, dois meses depois, em 23 de janeiro de 1953.

Com as mesmas vinte palavras O estilo seco e obsessivo de Graciliano fez com que o grande poeta João

Cabral de Melo Neto (1920-1999) lhe dedicasse este belíssimo poema:

Graciliano Ramos:Falo somente com o que falo:com as mesmas vinte palavrasgirando ao redor do solque as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,resto de janta abaianada,que fica na lâmina e cegaseu gosto da cicatriz clara.

* * *

Falo somente do que falo:do seco e de suas paisagens,Nordestes, debaixo de um solali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,cresta o simplesmente folhagem,folha prolixa, folharada,onde possa esconder-se a fraude.

* * *

Falo somente por quem falo:por quem existe nesses climascondicionados pelo sol,pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertesde tantas condições caatingaem que só cabe cultivaro que é sinônimo da míngua.

(MELO NETO, 1994, p. 311)

Como podemos observar no trecho de Antonio Candido e J. Aderaldo Cas-tello reproduzido abaixo, na obra de Graciliano, forma e conteúdo se comple-mentam, assim como o social e o psicológico, para formar uma das obras mais objetivas e contundentes obras de toda a história da língua portuguesa:

A composição de sua obra resulta de um processo rigorosamente seletivo e subordinado essencialmente aos limites da experiência pessoal, notadamente sertaneja. [...] Compõe- -se de aspectos da paisagem do Nordeste agreste, das zonas agropecuárias, em ligação com

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pequenos centros urbanos. O romancista intuiu admiravelmente a condição subumana do caboclo sertanejo, com a sua consciência embotada, a sua inteligência retardada, as suas reações devidas a reflexos condicionados por um sofrimento secular, por sua vez determinado pelas relações do homem com a própria paisagem e pela passividade ante os mais poderosos. Desta maneira, ao investigar o sentido de um destino coletivo, ele nos dá realmente a medida do homem telúrico no seu estado primário, autômato e passivamente indiferente, nivelando- -se com animais, árvores e objetos. Esse protótipo e essa condição infra-humana aparecem no primeiro ou no segundo plano de quase todos os seus livros. A eles se sobrepõe um outro tipo de sertanejo, de sentimento trágico e fatalista, que pensa friamente e age com determinação inabalável, enquanto aceita como inevitáveis os fatos consumados. Nos limites da paisagem rural, de estrutura bem característica, o fazendeiro é poderoso e único, até que se enfraquece em consequência da desarticulação de todo um sistema de mandonismo tradicional, ou em consequência de um drama pessoal, que nos parece ainda condicionado de qualquer forma pelo sentimento fatalista do homem da região. Abrindo-se ainda para outros horizontes, a sua visão se completa pelo registro dos conflitos interiores do homem urbano, afogado no quotidiano, arrastado à tragédia dos atos passionais.É importante considerar, na obra de Graciliano Ramos, que o social não prevalece sobre o psicológico, embora não saia diminuído. O que ela investiga é o homem nas suas ligações com uma determinada matriz regional, mas focalizado principalmente no drama irreproduzível de cada destino. Com isso, o romancista confere uma dimensão de universalidade à pesquisa regionalista em sub-regiões nordestinas, superando a atitude do simples depoimento ou relato, tão frequente quanto característico de muitos que escreveram sobre elas. O expositivo cede lugar à síntese. E nesse caso a linguagem é importante, desde a frase concisa, clara, correta e reduzida aos elementos essenciais, até ao vocabulário meticulosamente escolhido. O romancista coloca-se numa posição de relevo no romance modernista brasileiro, mas se entronca, sob este aspecto, na linhagem machadiana. (CANDIDO; CASTELLO, 1983, p. 290)

CaetésDe nítida influência naturalista, inspirado na obra de Eça de Queirós (1845-1900),

Caetés apresenta as desventuras do narrador João Valério, que pretende escrever um romance histórico sobre os ferozes índios caetés e se envolve com Luísa, esposa de Adrião Teixeira, seu patrão. O desfecho trágico leva João Valério a se considerar um monstro, “um caeté”, que, incapaz de agir, provoca a ruína dos seres amados:

Não ser selvagem! Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes. E eu disse que não sabia o que se passava na alma de um caeté! Provavelmente o que se passa na minha com algumas diferenças. (RAMOS, 1953b, p. 232)

São BernardoA desumanização do homem nordestino abordada em Caetés é reforçada em

São Bernardo, o romance seguinte, em que o narrador Paulo Honório, trabalha-dor braçal semialfabetizado, enriquece e compra, além da fazenda São Bernar-do, sua esposa, a professora Madalena.

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Acometido de crises de ciúmes que remetem ao Dom Casmurro, de Machado de Assis (1839-1908), Paulo Honório é abandonado por todos após o suicídio da esposa. Descreve-se, então, como “um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cé-rebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes”. É um homem que se destrói na incapacidade de refletir ou de sentir além da ganância e dos instintos básicos, animalizado e mons-truoso – personagem semelhante ao que vai reaparecer em Angústia, o romance seguinte. Vejamos como Paulo Honório se define no final de São Bernardo:

Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar- -me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige. A molecoreba de mestre Caetano arrasta-se por aí, lambuzada, faminta. A Rosa, com a barriga quebrada de tanto parir, trabalha em casa, trabalha no campo e trabalha na cama. O marido é cada vez mais molambo. E os moradores que me restam são uns cambembes como ele.Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso, mas não vou além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta desgraçada profissão nos distanciou.Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte!A desconfiança é também consequência da profissão.Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes. (RAMOS, 1953c, p. 193-194)

AngústiaPublicado em 1936, esse romance foi finalizado enquanto Graciliano se en-

contrava preso pelo governo de Getúlio Vargas (1882-1954), que já se preparava para, no ano seguinte, instalar a ditadura do Estado Novo, que se estendeu até 1945. Enlouquecido, o narrador Luís da Silva acaba por assassinar o rico e ines-crupuloso Julião Tavares, que seduzira e lhe roubara sua amada Marina. Ele assim se analisa: “Eu sou um monstro, estúpido, deformado. Um assassino”.

Vejamos o trecho em que o narrador apresenta suas sensações confusas ao ouvir sua amada Marina tomar banho:

Abro a torneira, molho os pés. Às vezes passo uma semana compondo esse livro que vai ter grande êxito e acaba traduzido em línguas distantes. Mas isto me enerva. Ando no mundo da lua. Quando saio de casa, não vejo os conhecidos. Chego atrasado à repartição. Escrevo omitindo palavras, e se alguém me fala, acontece-me responder verdadeiros contrassensos. Para limitar-me às práticas ordinárias, necessito esforço enorme, e isto é doloroso. Não consigo voltar a ser o Luís da Silva de todos os dias. Olham-me surpreendidos: naturalmente digo

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tolices, sinto que tenho um ar apalermado. Tento reprimir essas crises de megalomania, luto desesperadamente para afastá-las. Não me dão prazer: excitam-me e abatem-me. Felizmente passam-se meses sem que isto me apareça.De ordinário fico no banheiro, sentado, sem pensar, ou pensando em muitas coisas diversas umas das outras, com os pés na água, fumando, perfeitamente Luís da Silva. Uma formiga que surge traz-me quantidade enorme de recordações, tudo quanto li em almanaques sobre os insetos. Agora não há nenhum livro traduzido, nenhuma vaidade. Olho a formiga. Quando ela vai entrar no formigueiro, trago-a para perto de mim, faço no chão um círculo com o dedo molhado, deixo-a numa ilha, sem poder escapulir-se. Observo-a e penso nos costumes delas que vi nos almanaques.O banheiro da casa de seu Ramalho é junto, separado do meu por uma parede estreita. Sentado no cimento, brincando com a formiga ou pensando no livro, distingo as pessoas que se banham lá. Seu Ramalho chega tossindo, escarra e bate a porta com força. Molha-se com três baldes de água e nunca se esfrega. Bate a porta de novo, pronto. Aquilo dura um minuto. D. Adélia vem docemente, lava-se docemente e canta baixinho: – “Bendito, louvado seja...” Marina entra com um estouvamento ruidoso. Entrava. Agora está reservada e silenciosa, mas o ano passado surgia como um pé de vento e despia-se às arrancadas, falando alto. Se os botões não saíam logo das casas, dava um repelão na roupa e largava uma praga: – “Com os diabos!” Lá se iam os botões, lá se rasgava o pano. Notavam-se todas as minudências do banho comprido. Gastava dez minutos escovando os dentes. Pancadas de água no cimento e o chiar da escova, interrompido por palavras soltas, que não tinham sentido. Em seguida mijava. Eu continha a respiração e aguçava o ouvido para aquela mijada longa que me tornava Marina preciosa. Mesmo depois que ela brigou comigo, nunca deixei de esperar aquele momento e dedicar a ele uma atenção concentrada. Quando Marina se desnudou junto de mim, não experimentei prazer muito grande. Aquilo veio de supetão, atordoou-me. E a minha amiga opôs uma resistência desarrazoada: cerrava as coxas, curvava-se, cobria os peitos com as mãos, e não havia meio de estar quieta. Agora arrancava os botões, praguejava, escovava os dentes, mijava. Abria-se a torneira: rumor de água, uns gritinhos, resfolegar de animal novo. A torneira se fechava – e era uma esfregação interminável. [...]A espuma entrando nos sovacos e nas virilhas fazia um gluglu que me excitava extraordinaria-mente. Parecia que Marina queria esfolar-se. Imaginava-a em carne viva, toda vermelha. Imagi-nava-a branquinha, coberta de uma pasta de sabão que se rachava, os cabelos alvos, como uma velha. Essas duas imagens me davam muito prazer. Queria que aparecesse a Julião Tavares assim encarnada e pingando sangue, ou encarquilhada e decrépita, os pêlos do ventre como um capu-cho de algodão. A torneira se abria. Lá estava Marina outra vez nova e fresca, enchendo a boca e atirando bochechos nas paredes, resfolegando, sapecando frases desconexas.Nunca tive o desejo de vê-la nesse estado. No alto da parede há um tijolo deslocado que se pode retirar facilmente. Pondo um caixão na beira do tanque, ser-me-ia possível afastar o tijolo e distinguir o corpo de Marina. A experiência não me tentou. O esforço necessário pra manter-me em equilíbrio reduzir-me-ia a atenção. E eu não queria vê-la despida sem o consentimento dela. Contentava-me com aqueles rumores, e percebia-a como se a visse. Poderia daqui palestrar com ela no tempo em que éramos amigos. Teríamos a impressão de que nos banhávamos juntos. Mas a minha amiga ficaria limitada pelas conveniências, armando frases, procurando ser amável. O que me encantava eram aqueles modos de garota estabanada, as palavras soltas à toa, pedaços de cantigas, o gluglu da espuma e a mijada sonora. (RAMOS, p. 144-147)

Vidas SecasEm Vidas Secas, Graciliano Ramos adota um narrador em terceira pessoa, mul-

tisseletivo, que a cada momento se centra nos pensamentos rudimentares de uma das personagens: o sertanejo Fabiano, sua mulher Sinhá Vitória, seus filhos sem nome – que mal falam e se comportam como animais, mais brutalizados até

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do que a cadela Baleia. Ao retratar a dura vida do sertão, Graciliano Ramos atinge o ápice de sua denúncia da desumanização a que as duras circunstâncias sociais levam o homem nordestino. O romance é construído por meio da somatória de capítulos independentes, muitos dos quais foram publicados como contos em revistas da época.

Vejamos exemplos de três capítulos do livro.

Mudança

A caatinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.– Anda, excomungado.O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsa-bilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário – e a obstina-ção da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam à margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés.Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a ideia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinhá Vitória esticou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou- -se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados ao estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a Sinhá Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinhá Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis.E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande.Ausente do companheiro, a cachorra Baleia tomou a frente do grupo. Arqueada, as costelas à mostra, corria ofegando, a língua fora da boca. E de quando em quando se detinha, esperando as pessoas, que se retardavam. (RAMOS, 1969, p. 46-47)

Fabiano

E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos: mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se na presença dos brancos e julgava-se cabra. (RAMOS, 1969, p. 58)

Contas

Ora, daquela vez, como das outras, Fabiano ajustou o gado, arrependeu-se, enfim deixou a transação meio apalavrada e foi consultar a mulher. Sinha Vitória mandou os meninos para o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-se, distribuiu no chão sementes de várias espécies, realizou somas e diminuições. No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar o negócio notou que as operações de Sinha Vitória, como de costume, diferiam das do patrão. Reclamou e obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de juros.Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria!

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O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda.Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem. Não era preciso barulho não. Se havia dito palavra à toa, pedia desculpa. Era bruto, não fora ensinado. Atrevimento não tinha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar questão com gente rica? Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os homens. Devia ser ignorância da mulher, provavelmente devia ser ignorância da mulher. Até estranhara as contas dela. Enfim, como não sabia ler (um bruto, sim senhor), acreditara na sua velha. Mas pedia desculpa e jurava não cair noutra.O amo abrandou, e Fabiano saiu de costas, o chapéu varrendo o tijolo. Na porta, virando-se, enganchou as rosetas das esporas, afastou-se tropeçando, os sapatões de couro cru batendo no chão como cascos. (RAMOS, 1969, p. 158-159)

Memórias do CárcereO duro processo de desumanização do homem apresentado por Graciliano na

sua obra ficcional também se observa nos seu relato autobiográfico Memórias do Cárcere, em que conta seu período de aprisionamento pela ditadura. Preso, o homem endurece e, mesmo encontrando mostras de solidariedade, acaba por se brutalizar:

O indivíduo livre não entende a nossa vida além das grades, as oscilações do caráter e da inteligência, desespero sem causa aparente, a covardia substituída por atos de coragem doida. Somos animais desequilibrados, fizeram-nos assim, deram-nos almas incompatíveis. Sentimos em demasia, o pensamento já não existe: funciona e para. Querem reduzir-nos a máquinas. Máquinas perras e sem azeite. […] A cadeia não é brinquedo literário. (RAMOS, 1985, p. 215, v. 2)

Algumas reflexões de Graciliano sobre o estado geral do mundo em que vivia soam assombrosamente premonitórios dos horrores pelos quais o mundo pas-saria durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945):

O mundo se tornava fascista. Num mundo assim, que futuro nos reservariam? Provavelmente não havia lugar para nós, éramos fantasmas, rolaríamos de cárcere em cárcere, findaríamos num campo de concentração. Nenhuma utilidade representávamos na ordem nova. Se nos largassem, vagaríamos tristes, inofensivos e desocupados, farrapos vivos, fantasmas prematuros; desejaríamos enlouquecer, recolhermo-nos ao hospício ou ter coragem de amarrar uma corda ao pescoço e dar o mergulho decisivo. Essas ideias, repetidas, vexavam-me; tanto me embrenhara nelas que me sentia inteiramente perdido. (RAMOS, 1985, p. 179, v. 1)

Texto complementar

Baleia A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pelo caíra-lhe

em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas

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escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.

Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidro-fobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queima-dos. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.

Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.

Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que adivinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:

— Vão bulir com a Baleia?

Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam- -nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo.

Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras.

Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas Sinhá Vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas ore-lhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.

Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.

Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.

Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como Sinhá Vitória tinha relaxado os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:

— Capeta excomungado.

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Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta ver-melha e na saia de ramagens.

Pouco a pouco a cólera diminuiu, e Sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho no-jento, babão. Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas com-preendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.

[...]

Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono des-confiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a latir desesperadamente.

Ouvindo o tiro e os latidos, Sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na cama, chorando alto. Fabiano recolheu-se.

E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da es-querda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou- -se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.

Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.

Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas

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e os mosquitos, e quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros.

Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravan-do as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.

Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam dimi-nuindo, tornavam-se quase imperceptíveis.

Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e es-condeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra.

Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro en-grossava e aproximava-se.

Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.

Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinham fugido.

Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apa-receu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.

O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.

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Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera.

Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chi-queiro espalhou-se pela vizinhança.

Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obriga-ção dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procu-rando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.

Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atri-buía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Pre-cisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar, as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde Sinhá Vitória guardava o cachimbo.

Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio com-pleto, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revela-vam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.

Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.

Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, Sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochiles, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.

A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.

Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certa-mente Sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.

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Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lambe-ria as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.

(RAMOS, 1969, p. 147-154)

Estudos literários1. Você vai encontrar, a seguir, três fragmentos de diferentes capítulos do ro-

mance São Bernardo, de Graciliano Ramos. Leia-os, para responder às ques-tões que os seguem.

I

Aqui sentado à mesa da sala de jantar, fumando cachimbo e bebendo café, suspendo às vezes o trabalho moroso, olho a folhagem das laranjeiras que a noite enegrece, digo a mim mesmo que esta pena é um objeto pesado. Não estou acostumado a pensar. Levanto-me, chego à janela que deita para a horta. Casimiro Lopes pergunta se me falta alguma coisa.

– Não.

Casimiro Lopes acocora-se num canto. Volto a sentar-me, releio estes pe-ríodos chinfrins.

(RAMOS, 1953c, p. 10-11)

II

Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as ideias não vêm, ou vêm muito nume-rosas – e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera. Releio al-gumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel.

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[...]

Lá fora os sapos arengavam, o vento gemia, as árvores do pomar torna-vam-se massas negras.

– Casimiro?

Casimiro Lopes estava no jardim, acocorado ao pé da janela, vigiando.

– Casimiro?

A figura de Casimiro Lopes aparece à janela, os sapos gritam, o vento sacode as árvores, apenas visíveis na treva. Maria das Dores entra e vai abrir o comutador. Detenho-a: não quero luz.

(RAMOS, 1953c, p. 101-102)

III

Desde então procuro descascar fatos, aqui sentado à mesa da sala de jantar, fumando cachimbo e bebendo café, à hora em que os grilos cantam e a folhagem das laranjeiras se tinge de preto.

Às vezes entro pela noite, passo tempo sem fim acordando lembranças. Outras vezes não me ajeito com esta ocupação nova.

Anteontem e ontem, por exemplo, foram dias perdidos. Tentei debalde canalizar para termo razoável esta prosa que se derrama como a chuva da serra, e o que me apareceu foi um grande desgosto. Desgosto e a vaga com-preensão de muitas coisas que sinto.

[...]

Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.

É horrível! Se aparecesse alguém... Estão todos dormindo.

Se ao menos a criança chorasse... Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria!

Casimiro Lopes está dormindo. Marciano está dormindo. Patifes!

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E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.

(RAMOS, 1953c, p. 188-195)

a) Aponte as semelhanças entre os três fragmentos.

b) Explique como a presença de Casimiro Lopes se transforma no transcor-rer dos fragmentos.

c) Uma das características mais marcantes da personalidade de Paulo Ho-nório é o seu exagero, representado literariamente pela figura da hipér-bole. Aponte dois exemplos de hipérbole no terceiro fragmento.

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O menino mais velho(RAMOS, 1969, p. 111-112)

Como não sabia falar direito, o menino balbuciava expressões complica-das, repetia as sílabas, imitava os berros dos animais, o barulho do vento, o som dos galhos que rangiam na caatinga, roçando-se. Agora tinha tido a ideia de aprender uma palavra, com certeza importante porque figurava na conversa de Sinhá Terta. Ia decorá-la e transmiti-la ao irmão e à cachorra. Baleia permaneceria indiferente, mas o irmão se admiraria, invejoso.

– Inferno, inferno.

Não acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim. E resolvera discutir com Sinhá Vitória. Se ela houvesse dito que tinha ido ao inferno, bem. Sinhá Vitória impunha-se, autoridade visível e poderosa. Se hou-vesse feito menção de qualquer autoridade invisível e mais poderosa, muito bem. Mas tentara convencê-lo dando-lhe um cocorote, e isto lhe parecia ab-surdo. Achava as pancadas naturais quando as pessoas grandes se zangavam, pensava até que a zanga delas era a causa única dos cascudos e puxavantes de orelhas. Esta convicção tornava-o desconfiado, fazia-o observar os pais antes de se dirigir a eles. Animara-se a interrogar Sinhá Vitória porque ela estava bem disposta. Explicou isto à cachorrinha com abundância do gritos e gestos.

Festa(RAMOS, 1969, p. 141-142)

Agora olhavam as lojas, as toldas, a mesa do leilão. E conferenciavam pas-mados. Tinham percebido que havia muitas pessoas no mundo. Ocupavam-se em descobrir uma enorme quantidade de objetos. Comunicaram baixinho um ao outro as surpresas que os enchiam. Impossível imaginar tantas mara-vilhas juntas. O menino mais novo teve uma dúvida e apresentou-a timida-mente ao irmão. Seria que aquilo tinha sido feito por gente? O menino mais

2. Leia os dois fragmentos abaixo, do romance Vidas Secas, de Graciliano Ra-mos, para responder às questões que os seguem:

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velho hesitou, espiou as lojas, as toldas iluminadas, as moças bem vestidas. Encolheu os ombros. Talvez aquilo tivesse sido feito por gente. Nova dificul-dade chegou-lhe ao espírito, soprou-a no ouvido do irmão. Provavelmen-te aquelas coisas tinham nomes. O menino mais novo interrogou-o com os olhos. Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes. Puseram-se a discutir a questão intricada. Como podiam os homens guardar tantas palavras? Era impossível, ninguém conservaria tão grande soma de conhecimentos. Livre dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas. Não tinham sido feitas por gente. E os indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência. Vistas de longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para não desencadear as forças estranhas que elas porventura encerrassem.

a) O primeiro período do fragmento “O menino mais velho” apresenta a descrição de uma figura de linguagem. Qual seria? O que é indicado pelo fato de o menino mais velho falar dessa maneira?

b) O menino se sente injustiçado. Transcreva o período em que isso fica ex-plícito.

c) Qual é a ironia no fato de o menino mais velho se interessar justamente por essa palavra?

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d) Explique o significado do período “Livre dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas”, no segundo fragmento (“Festa”).

e) Segundo o filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951), “Os limites de mi-nha linguagem denotam os limites do meu mundo”. Como essa afirma-ção se relaciona com os textos citados?

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A Geração de 1945O término da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) na Europa coincidiu

com a derrocada da ditadura Vargas, o Estado Novo (1937-1945), no Brasil. Então, os escritores brasileiros, que tanto lutaram contra a ditadura e sofre-ram com a falta de liberdade, puderam se dedicar à busca de novos rumos para a literatura. A reconstrução democrática foi paralela à procura de um maior rigor e aprofundamento nos processos de elaboração poéticos e fic-cionais. Buscaram-se critérios. Seja retomando o que havia sido combatido pelos primeiros modernistas, como o fizeram os poetas neomodernistas ou Geração de 1945, seja no adensamento das conquistas das gerações ante-riores, efetuado por João Guimarães Rosa (1908-1967) e Clarice Lispector (1920-1977), na prosa, e João Cabral de Melo Neto (1920-1999), na poesia.

Mineiro e universal Nascido em Cordisburgo, Minas Gerais, em 1908, João Guimarães Rosa

lá viveu até os dez anos de idade, quando se transferiu para Belo Horizon-te. Em 1926, ingressou na Faculdade de Medicina. Formado, foi clinicar no interior do estado, onde estudou línguas estrangeiras e investigou minu-ciosamente a língua falada pelo povo.

Em 1936, participou de um concurso literário com o livro de poemas Magma, que nunca quis publicar.

Em 1937, novamente inscreveu uma obra em concurso, o livro Contos, que, muito modificado, serviria de base para Sagarana (1946), sua obra de estreia.

João Guimarães Rosa

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Já dominando vários idiomas, ingressou no corpo diplomático e, em 1938, foi servir na Alemanha. Preso após a declaração de guerra do Brasil aos alemães, em 1942, foi liberado no ano seguinte. Serviu ainda em Bogotá e em Paris, en-cerrando sua carreira como diplomata servindo na sede do Itamaraty, no Rio de Janeiro. Em 1967, emocionou-se ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras e veio a falecer, vitimado por um ataque cardíaco.

O estilo insólitoEmbora centrada em uma região particular (o sertão mineiro), a obra de João

Guimarães Rosa em muito extrapola os limites do regionalismo convencional. A partir do aprofundamento no regional, Rosa investiga questões psicológicas, sociais ou filosóficas universais. “O sertão está em toda parte”, disse ele, ou ainda “O sertão é dentro da gente”. No sertão, vemos reencenadas as aflições do Fausto alemão, as relações de amizade entre Aquiles e Pátroclo, da Ilíada de Homero (séc. VIII a. C.), a linguagem experimental de James Joyce (1882-1941).

Utilizando anos de intensa pesquisa na linguagem popular do sertão e o vasto conhecimento linguístico de dezenas de idiomas, Guimarães Rosa mistura como nenhum outro o popular e o erudito para criar uma linguagem insólita e inconfundível. Neologismos, adjetivos formados por sufixação inusitada e uma sintaxe barroca se acumulam, enquanto Rosa vai rompendo os limites entre a poesia e a prosa, entre o lírico e o épico, entre a lenda e a realidade.

A obraApós Sagarana, João Guimarães Rosa só viria a publicar de novo em 1956,

mas esse retorno foi com toda a força, lançando seu único romance, a obra-pri-ma Grande Sertão: veredas e, ainda no mesmo ano, a monumental coletânea de novelas Corpo de Baile. Esse volume seria desmembrado, a partir de 1964, em três livros: Manuelzão e Miguilim, em que se encontra a novela “Campo Geral”; Urubuquaquá, no Pinhém, no qual está “O Recado do Morro”; e Noites do Sertão.

O livro Primeiras Estórias (1962) viria a seguir, reunindo contos memoráveis como “A terceira margem do rio”.

O volume de contos Tutameia: terceiras estórias (1967) seria seu último livro publicado em vida, seguido pelo lançamento póstumo de Estas Estórias (1969) e Ave, Palavra (1970), reunindo contos e relatos autobiográficos.

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SagaranaO livro de estreia de Guimarães Rosa apresenta nove contos grandes situados

no sertão mineiro, cuja temática está centrada em questões universais, como a honra, a memória, a religiosidade e a busca de purificação.

Entre os contos desse livro destaca-se “A hora e a vez de Augusto Matraga”. O protagonista, Augusto Matraga, é um fazendeiro agressivo, boêmio, que bebe demais, cria muitos problemas e não respeita ninguém, nem a própria família. Dinorá, sua mulher, tem medo de se separar, por conta da natureza violenta de Matraga. Sua filha não compreende a razão de o pai agir assim.

Até que Matraga sofre uma emboscada e é dado como morto. Dinorá e a filha partem com Ovídio Moura, que deseja que Dinorá seja sua companheira.

No entanto, socorrido por um casal de negros, Augusto Matraga sobrevive aos ferimentos. Quando se recupera, também vai embora, acompanhando o casal que o salvara. Consciente de sua vida anterior, desregrada, violenta, des-perdiçada na bebida e na boemia, tenta modificá-la. Procura o sofrimento e se dedica arduamente ao trabalho, fugindo do conforto e da diversão para se punir por seus pecados.

Depois de muito tempo nessa vida áspera, ele descobre que, embora estives-se feliz com Ovídio, sua filha Dinorá estava se prostituindo. Decide procurá-la e, no trajeto, reencontra Joãozinho Bem-Bem, chefe jagunço com quem travara amizade e a quem hospedara em sua casa antes de sua quase-morte.

Joãozinho Bem-Bem quer vingar o assassinato de um capanga e, como não encontrou o assassino, pretende matar um membro de sua família. Augusto Ma-traga acha injusto o que o jagunço quer fazer, discute com ele e o confronta. Eles lutam e, no final, ambos morrem. Entretanto, Matraga morre em paz, ciente de que assim expiara seus crimes e cumprira seu dever.

Vejamos um momento crucial da narrativa, quando Matraga se recupera física e espiritualmente de suas feridas:

Então eles trouxeram, uma noite, muito à escondida, o padre, que o confessou e conversou com ele, muito tempo, dando-lhe conselhos que o faziam chorar.– Mas, será que Deus vai ter pena de mim, com tanta ruindade que fiz, e tendo nas costas tanto pecado mortal?– Tem, meu filho. Deus mede a espora pela rédea, e não tira o estribo do pé de arrependido nenhum... E por aí a fora foi, com um sermão comprido, que acabou depondo o doente num desvencido torpor.

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– Eu acho boa essa ideia de se mudar para longe, meu filho. Você não deve pensar mais na mulher, nem em vinganças. Entregue para Deus, e faça penitência. Sua vida foi entortada no verde, mas não fique triste, de modo nenhum, porque a tristeza é aboio de chamar o demônio, e o Reino do Céu, que é o que vale, ninguém tira de sua algibeira, desde que você esteja com a graça de Deus, que ele não regateia a nenhum coração contrito! – Fé eu tenho, fé eu peço, Padre... – Você nunca trabalhou, não é? [...] Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua. (ROSA, 1994, p. 441. v. 1)

Grande Sertão: veredas Considerado por muitos o maior romance brasileiro de todos os tempos,

apresenta o monólogo ininterrupto e emocionado do velho fazendeiro Riobal-do, que narra, a um interlocutor silencioso (o leitor), as suas aventuras pelo sertão do norte de Minas Gerais, Goiás e sul da Bahia. Ocioso, vivendo às margens do rio São Francisco, Riobaldo relata sua vida ao mesmo tempo em que reflete sobre a existência humana:

— Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão; determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas… Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em toda a parte. (ROSA, 1994, p. 11, v. 2)

Mantendo as características do discurso oral, a narrativa é repleta de digres-sões, mudanças de rumo e associações inusitadas que refletem o fluxo descon-tínuo da memória. Inicialmente um mero jagunço; Riobaldo conta como ascen-deu à chefia de um bando e fez, como na lenda alemã do Fausto, um pacto com o diabo para ajudá-lo a matar Hermógenes, que era seu inimigo e também o assassino do líder Joca Ramiro.

Sem saber se fez realmente esse pacto, ele passa o resto da vida com medo de perder sua alma, tentando descobrir se o demônio realmente existe:

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De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de dificel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular ideia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso... (ROSA, 1994, p. 11-12, v. 2)

O melhor e mais valoroso amigo de Riobaldo é Diadorim (“presente do diabo?”), por quem nutre uma paixão homossexual reprimida e angustiante:

Meu corpo gostava de Diadorim. Estendi a mão, para suas formas; mas, quando ia, bobamente, ele me olhou – os olhos dele não me deixaram. Diadorim, sério, testalto. Tive um gelo. Só os olhos negavam. Vi – ele mesmo não percebeu nada. Mas, nem eu; eu tinha percebido? Eu estava sabendo: meu corpo gostava do corpo dele, na sala do teatro. (ROSA, 1994, p. 173, v. 2)

Quando Diadorim morre, ao mesmo tempo em que mata o inimigo Hermó-genes, Riobaldo descobre que se tratava de uma mulher: Deodorina (“presente de Deus?”), filha de Joca Ramiro:

[…] Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus buritizais levados de verdes… Buriti, do ouro da flor… E subiram as escadas com ele, em cima de mesa foi posto. Diadorim, Diadorim – será que amereci só por metade? Com meus molhados olhos não olhei bem – como que garças voavam… E que fossem campear velas ou tocha de cera, e acender altas fogueiras de boa lenha, em volta do escuro do arraial...Sufoquei, numa estrangulação de dó. Constante o que a mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim, casca de tão grosso sangue, repisado. E a beleza dele permanecia, só permanecia, mais impossivelmente. Mesmo como jazendo assim, nesse pó de palidez, feito a coisa e máscara, sem gota nenhuma. Os olhos dele ficados para a gente ver. A cara economizada, a boca secada. Os cabelos com marca de duráveis… Não escrevo, não falo! – para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! Diadorim…Eu dizendo que a mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da Bahia. Mandou todo o mundo sair. Eu fiquei. E a mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo. E disse…Diadorim – nu de tudo. E ela disse:– A Deus dada. Pobrezinha…E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor – e mercê peço: – mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube… Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita… Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d’arma, de coronha…Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer – mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero. O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real.Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:– Meu amor!... (ROSA, 1994, p. 379-380, v. 2)

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Campo GeralEsta novela, uma das mais lidas de Guimarães Rosa, é também um de seus

textos mais comoventes. O garoto Miguilim mora no Mutum, um local remoto dos Campos Gerais, com sua família. Nhô Bero, pai de Miguilim, é um homem rude e grosseiro que frequentemente é traído por Nhanina, sua insatisfeita e infeliz esposa – até mesmo com Terez, que é irmão de Nhô Bero. Miguilim se relaciona melhor com o tio Tereza que com o pai. Dito (o irmão mais próximo de Miguilim) é curioso, perspicaz e objetivo, enquanto Miguilin é sonhador e mís-tico, sendo capaz de inventar histórias mirabolantes. Acima de tudo, Miguilim parece ser distraído, incapaz de ver a realidade objetivamente. Após uma série de acontecimentos dramáticos, como a morte do irmão e o suicídio do pai, Mi-guilim (que jamais havia visto um médico) é visitado pelo doutor José Lourenço. O médico percebe que o garoto é completamente míope e, dando-lhe os óculos que lhe permitem ver claramente o Mutum e as pessoas amadas pela primeira vez, leva-o para ser educado na cidade.

A palavra Mutum, nome do local onde se passa a novela Campo Geral, é um bom exemplo do cuidado de Guimarães Rosa com as palavras, pois o palíndro-mo reforça a imagem de um local de sofrimento entre montanhas e vales.

Vejamos o momento em que Miguilim começa a enxergar graças aos óculos do médico:

De repente lá vinha um homem a cavalo. Eram dois. Um senhor de fora, o claro da roupa. Miguilim saudou, pedindo a benção. O homem trouxe o cavalo cá bem junto. Ele era de óculos, corado, alto, com um chapéu diferente, mesmo.– Deus te abençoe, pequeninho. Como é teu nome?– Miguilim. Eu sou irmão do Dito.– E seu irmão Dito é o dono daqui?– Não, meu senhor. O Ditinho está em glória.O homem esbarrava o avanço do cavalo, que era zelado, manteúdo, formoso como nenhum outro. Redizia:– Ah, não sabia, não. Deus o tenha em sua guarda... Mas que é que há, Miguilim?Miguilim queria ver se o homem estava mesmo sorrindo para ele, por isso é que o encarava.– Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo de vista? Vamos até lá. Quem é que está em tua casa?

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– É Mãe, e os meninos...Estava Mãe, estava Tio Terez, estavam todos. O senhor alto e claro se apeou. O outro, que vinha com ele, era um camarada. O senhor perguntava à Mãe muitas coisas do Miguilim. Depois perguntava a ele mesmo: – “Miguilim, espia daí: quantos dedos da minha mão você está enxergando? E agora?”Miguilim espremia os olhos. Drelina e a Chica riam. Tomezinho tinha ido se esconder.– Este nosso rapazinho tem a vista curta. Espera aí, Miguilim...E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito.– Olha, agora!Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo... O senhor tinha retirado dele os óculos, e Miguilim ainda apontava, falava, contava tudo como era, como tinha visto. Mãe esteve assim assustada; mas o senhor dizia que aquilo era do modo mesmo, só que Miguilim também carecia de usar óculos, dali por diante. O senhor bebia café com eles. Era o doutor José Lourenço, do Curvelo. Tudo podia. Coração de Miguilim batia descompasso, ele careceu de ir lá dentro, contar à Rosa, à Maria Pretinha, a Mãitina. A Chica veio correndo atrás, mexeu: – “Miguilim, você é piticego...” E ele respondeu: – “Donazinha...”Quando voltou, o doutor José Lourenço já tinha ido embora.– Você está triste, Miguilim? – Mãe perguntou.Miguilim não sabia. Todos eram maiores do que ele, as coisas reviravam sempre de um modo tão diferente, eram grandes demais. (ROSA, 1994, p. 540-541. v. 1)

Primeiras EstóriasO livro Primeiras Estórias reúne 21 dos mais importantes contos já escritos na

língua portuguesa. São narrativas curtas, densas e de uma elaboração linguística extraordinária. Podemos dizer que, neste livro, Rosa atingiu o ápice do seu poder de concisão e de experimentação ficcional. Vejamos algumas importantes consi-derações da professora tcheca Zuzana Burianová:

Com ainda maior intensidade e seleção do que o conto, a estória instala um recorte agudo no contínuo temporal e, depurando tudo o que é secundário, reduz o fragmento captado às linhas enxutas e essenciais. Como afirma Paulo Rónai no prefácio à 9.ª edição de Primeiras estórias, as estórias roseanas giram em torno de um acontecimento, porém não no sentido geral de uma ocorrência. A maioria das narrativas é marcada pelo já mencionado “tom menor” à maneira de Tchekov, ou seja, pela falta de um conflito exterior tradicionalmente colocado no final; em vez disso deparamos frequentemente com uma tensão que se resolve no plano psíquico das personagens. As narrativas de Rosa captam em geral momentos únicos, instantes de percepção da existência na sua totalidade, de apreensão da essência do objeto. Ultrapassam os seus limites de puras anedotas inseridas na “história” e, devido ao tratamento universal dos assuntos particulares, à sua própria estrutura em aberto assim como à atmosfera do mistério criada pela irrupção do irreal e insólito, entram na ordem intemporal. Este “prolongamento” além dos limites da ação é também sugerido no próprio índice geral da 9.ª edição onde aparece, nos desenhos feitos a pedido do autor por Luís Jardim, o signo do infinito, símbolo da eternidade. A recorrência deste signo no início e no final de cada desenho poderia igualmente indicar que todas as

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narrativas, apesar da sua variedade temática e estrutural, formam pela atmosfera e impressão que deixam no leitor um conjunto homogêneo no qual cada narrativa como se se referisse a outras, como se só por elas fosse completada. Com esta interdependência das estórias cria-se uma impressão do ciclo, apoiada também pela estreita relação que entre si guardam a primeira e a última estória, interligadas, em termos de enredo, pelo aparecimento das mesmas personagens e motivos. Não se trata, porém, no caso destas duas narrativas centradas em momentos-limite na formação de uma criança, de uma simples recorrência. Trata-se mais de uma renovação, de uma recriação qualitativa, pois existe entre elas um deslocamento da percepção do protagonista que leva em si a ideia de amadurecimento, sabedoria e perfeição sempre presentes no fluir do tempo por mais pequenos que sejam, como o autor confirma em outro lugar: “O mundo se repete mal é porque há um imperceptível avanço” (“Lá nas campinas”). (BURIANOVÁ, 2008)

Para exemplificar como Guimarães Rosa elabora criativa e singularmente a linguagem nesse livro, vamos examinar o trecho inicial de uma das estórias:

Pirlimpsiquice

Aquilo na noite do nosso teatrinho foi de Oh. O estilo espavorido. Ao que sei, que se saiba, ninguém soube sozinho direito o que houve. Ainda, hoje adiante, anos, a gente se lembra: mas, mais do repente que da desordem, e menos da desordem do que do rumor. Depois, os padres falaram em pôr fim a festas dessas, no colégio. Quem nada podia mesmo explicar, o ensaiador, Dr. Perdigão, lente de corografia e história-pátria, voltou para seu lugar, sua terra; se vive, estará lá já após de velho. E o em-diabo pretinho Alfeu, corcunda? Astramiro, agora aeroviário, e o Joaquincas – bookmaker e adjazidas atividades – com ambos raro em raro me encontro, os fatos recordam-se. A peça ia ser o drama Os Filhos do Doutor Famoso, só em cinco atos. Tivemos culpa de seu indesfecho, os escolhidos para o representar? Às vezes penso. Às vezes, não. Desde a hora em que, logo num recreio de depois do almoço, o regente Seu Siqueira, o Surubim sisudo de mistérios, veio chamar-nos para a grande novidade, o pacto de puro entusiasmo nosso avançara, sem sustar-se. Éramos onze, digo, doze. (ROSA, 1994, p. 415, v. 2)

O título do conto é um neologismo formado a partir das palavras psique (“mente”) e pirlimpimpim (“o pó que faz voar”). Seria, portanto a imaginação, a mente voadora, o grande tema da estória.

O primeiro período do conto apresenta um recurso muito expressivo utiliza-do com frequência por Guimarães Rosa nas Primeiras Estórias: o uso da interjei-ção (Oh) substituindo substantivos ou verbos. Poderíamos reescrever o período como “Aquilo na noite do nosso teatrinho foi de espantar”.

Em várias passagens do fragmento, a linguagem é utilizada de maneira in-ventiva, singular e inovadora. Notem-se as frases abaixo.

“Ao que sei, que se saiba, ninguém soube sozinho direito o que houve.” A rei- �teração do verbo saber reforça a ideia de que ninguém conseguiu entender direito o fato. “Saber sozinho direito” refere-se a compreender, digerir.

“Ainda, hoje adiante, anos, a gente se lembra: mas, mais do repente que �da desordem, e menos da desordem do que do rumor.” A memória do

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evento é vaga. Os participantes lembram-se mais do susto, do “repente”, do que da desordem que provocou, e mais ainda do “rumor” que gerou, dos comentários posteriores.

“[…] os fatos recordam-se.” � A utilização do verbo reflexivo justifica-se como uma intensificação dos fatos em si. São eles (os fatos) que, a si mes-mos, recordam-se, e não os participantes que deles se recordam.

“Às vezes penso. Às vezes, não.” � A passagem se refere à questão: “Tivemos culpa de seu indesfecho, os escolhidos para o representar?” O narrador revela-se em dúvida, indeciso.

Texto complementar

Sorôco, sua mãe, sua filha (ROSA, 1994, p. 397-399, v. 2)

Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da esta-ção. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vis-toso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12h45min.

As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para esperar. As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas. Sempre chegava mais povo – o mo-vimento. Aquilo quase no fim da esplanada, do lado do curral de embarque de bois, antes da guarita do guarda-chaves, perto dos empilhados de lenha. Sorôco ia trazer as duas, conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.

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A hora era de muito sol – o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de cedro. O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se empinava. O borco bojudo do telhadilho dele alumiava em preto. Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e que a gente não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são mais longe.

O agente da estação apareceu, fardado de amarelo, com o livro de capa preta e as bandeirinhas verde e vermelha debaixo do braço.– “Vai ver se botaram água fresca no carro...” – ele mandou. Depois, o guarda-freios andou mexendo nas mangueiras de engate. Alguém deu aviso: – “Eles vêm!...” Apontavam, da Rua de Baixo, onde morava Sorôco. Ele era um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba, fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com alperca-tas: as crianças tomavam medo dele; mais, da voz, que era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava. Vinham vindo, com o trazer de comitiva.

Aí, paravam. A filha – a moça – tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das pa-lavras – o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos es-palhados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas-virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam.

Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, pare-cia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles trasmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco – para não parecer pouco caso. Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de dó. Ele respondia: – “Deus vos pague essa despesa...”

O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio.

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Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco aguen-tara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as provi-dências, de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se seguir.

De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se sentar no degrau da escadinha do carro. – “Ela não faz nada, seo Agente...” – a voz de Sorôco estava muito branda: – “Ela não acode, quando a gente chama...” A moça, aí, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era um re-pouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de ou-troras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo – um amor extremoso. E, princi-piando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.

Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos apres-tes, fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço, sem despedida nenhuma, que elas nem haviam de poder entender. Nessa diligência, os que iam com elas, por bem-fazer, na viagem comprida, eram o Nenego, despachado e animoso, e o José Aben-çoado, pessoa de muita cautela, estes serviam para ter mão nelas, em toda juntura. E subiam também no carro uns rapazinhos, carregando as trouxas e malas, e as coisas de comer, muitas, que não iam fazer míngua, os embrulhos de pão. Por derradeiro, o Nenego ainda se apareceu na plataforma, para os gestos de que tudo ia em ordem. Elas não haviam de dar trabalhos.

Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçoo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois.

Sorôco.

Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina manobrando sozinha para vir pegar o carro. O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre.

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Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo – o que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado, embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso. E lhe falaram: – “O mundo está dessa forma...” Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gosta-vam demais de Sorôco.

Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou, pra ir-s’embora. Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta. Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num rompido – ele come-çou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.

A gente se esfriou, se afundou – um instantâneo. A gente... E foi sem com-binação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, e canta que can-tando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.

A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.

Estudos literáriosLeia o fragmento a seguir, do conto “Famigerado”, do livro Primeiras Estórias,

de João Guimarães Rosa, para responder às questões.

O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, insequentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava. E, pá:

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– Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?

Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presen-ça dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?

– Saiba vosmecê que saí ind’hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro...

Se sério, se era. Transiu-se-me.

– Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem tem o legítimo – o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe preguntei?

Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:

– Famigerado?

– Sim senhor... – e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo – apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. – Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:

– Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho...

Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.

– Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”...

– Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?

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– Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...

– Pois.., e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?

– Famigerado? Bem. É: “importante”, que merece louvor, respeito...

– Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?

Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:

– Olhe: eu, como o Sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!...

– Ah, bem!... – soltou, exultante.

Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: – Vocês podem ir, com-padres. Vocês escutaram bem a boa descrição... – e eles prestes se partiram.

(ROSA, 1994, p. 394-395, v. 2)

1. Para esta primeira questão, leia também o verbete abaixo, do Dicionário Ele-trônico Aurélio.

Famigerado. [Do lat. famigeratu.] Adj. 1. Que tem fama; muito notável; célebre, famoso, famígero: “Não têm os biógrafos do famigerado romancis-ta achado documentos nem tradições com que esclarecer sobejamente os primeiros anos de Cervantes.” (Latino Coelho, Cervantes, p. 51-52); “Naquela casa de Vila Cova ... floresceram ... padres de muito saber, uns famigerados na oratória, outros grandes casuístas” (Camilo Castelo Branco, O Bem e o Mal, p. 39); “Tinha visto aquele encaminhar-se à engenhoca, o que o fizera acreditar que entre os malfeitores ... se achava o famigerado bandido” (Franklin Távora, O Cabeleira, p. 202). [Como se vê nos dois primeiros exemplos, a palavra não se aplica só a malfeitores, embora no uso comum se observe tendência para isso.] 2. Pop. Faminto, esfomeado.

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Agora, a partir desse verbete, explique a situação delicada em que se encon-tra o narrador do conto de Guimarães Rosa.

2. A linguagem popular de Damázio é muito rica. Explique o significado de al-guns trechos de suas falas.

a) “Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo – o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias...”

b) “Pois.., e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?”

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3. Certas palavras desse fragmento de Guimarães Rosa não são dicionarizadas – algumas, por fazerem parte de um repertório popular sertanejo; outras, por serem neologismos criados pelo autor. Aponte o significado dos neolo-gismos abaixo, explicando como Guimarães Rosa os formou.

a) verivérbio:

b) mumumudos:

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João Guimarães Rosa

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Nascida em Tchetchelnik, na Ucrânia, aos dois meses de idade Clarice Lispector (1925-1977) se mudou com a família, para o nordeste brasileiro, fixando-se na capital pernambucana.

Iniciada em Recife, sua paixão pela literatura se tornou refúgio para a vida isolada da menina que se transferiu para o Rio de Janeiro aos 12 anos. Pas-sando horas na biblioteca do colégio e perambulando por livrarias, encon-trou as obras do russo Fiodor Dostoievski (1821-1881) e de alguns escritores de língua inglesa – James Joyce (1882-1941), Virginia Woolf (1882-1941) e Katherine Mansfield (1888-1923).

Além de ter vivido uma infância envolta em sérias dificuldades financei-ras, Clarice contava apenas nove anos de idade quando sua mãe morreu.

Depois, Clarice começou a trabalhar como professora particular de português e a relação entre professor e aluno seria um dos temas preferi-dos e recorrentes em toda a sua obra – desde Perto do Coração Selvagem, seu primeiro romance.

Em 1941, ela ingressou na Faculdade Nacional de Direito e começou a trabalhar como redatora na Agência Nacional. Os passos seguintes foram o jornal A Noite e o início do trabalho em Perto do Coração Selvagem. Se-gundo a autora, escrever esse livro foi um processo cercado pela angústia: o romance a perseguia, as ideias surgiam a qualquer hora, em qualquer lugar. Nasceu aí uma das características do seu método de escrita – anotar as ideias a qualquer hora, em qualquer pedaço de papel.

Em 1943, publicou Perto do Coração Selvagem, recebido com entusias-mo pelo crítico Antonio Candido, em 1944. O livro recebeu o prêmio da Fundação Graça Aranha. Nas palavras de Lauro Escorel, as características do romance revelam uma “personalidade de romancista verdadeiramente excepcional, pelos seus recursos técnicos e pela força da sua natureza in-teligente e sensível”.

Clarice Lispector

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Já nesse primeiro livro, identifica-se o estilo muito pessoal da escritora. Nas suas páginas, Clarice explora pela primeira vez a solidão e a incomunicabilidade humana, por meio de uma prosa inquieta, em determinados momentos próxima da poesia.

No mesmo ano de 1943, ela concluiu o curso de direito e se casou. Acom-panhando o marido diplomata, passou anos fora do Brasil, só retornando em definitivo em 1960, quando se separou do marido.

Em 1967, já consagrada, escreveu livros infantis, a pedido do filho.

Ao adormecer com um cigarro aceso, teve sua cama incendiada e sofreu queimaduras extensas.

Parcialmente recuperada, escreveu crônicas para o Jornal do Brasil, fez tradu-ções e acelerou o ritmo de suas publicações.

Morreu de câncer generalizado em 1977, no Rio de Janeiro.

A ação interior Desde os primeiros contos de adolescente (depois reunidos no volume

póstumo A Bela e a Fera, 1979), a obra de Clarice Lispector é marcada por uma busca incessante de interiorização. Mais que as ações, importam as reações das personagens:

Começou a ficar escuro e ela teve medo. A chuva caía sem tréguas e as calçadas brilhavam úmidas à luz das lâmpadas. Passavam pessoas de guarda-chuva, impermeável, muito apressadas, os rostos cansados. Os automóveis deslizavam pelo asfalto molhado e uma ou outra buzina tocava maciamente.Quis sentar-se num banco do jardim, porque na verdade não sentia a chuva e não se importava com o frio. Só mesmo um pouco de medo, porque ainda não resolvera o caminho a tomar. O banco seria um ponto de repouso. Mas os transeuntes olhavam-na com estranheza e ela prosseguia na marcha. Estava cansada. Pensava sempre: “Mas que é que vai acontecer agora?” Se ficasse andando. Não era solução. Voltar para casa? Não. Receava que alguma força a empurrasse para o ponto de partida. Tonta como estava, fechou os olhos e imaginou um grande turbilhão saindo do Lar Elvira, aspirando-a violentamente e recolocando-a junto da janela, o livro na mão, recompondo a cena diária. Assustou-se. Esperou um momento em que ninguém passava para dizer com toda a força: “Você não voltará”. Apaziguou-se.Agora que decidira ir embora tudo renascia. Se não estivesse tão confusa, gostaria infinitamente do que pensara ao cabo de duas horas: “Bem, as coisas ainda existem”. Sim, simplesmente extraordinária a descoberta. Há doze anos era casada e três horas de liberdade restituíram-na quase inteira a si mesma: – primeira coisa a fazer era ver se as coisas ainda existiam. Se representasse num palco essa mesma tragédia, se apalparia, beliscaria para saber se desperta. O que tinha menos vontade de fazer, porém, era de representar.Não havia, porém, somente alegria e alívio dentro dela. Também um pouco de medo e doze anos [...].

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Clarice Lispector

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Agora a chuva parou. Só está frio e muito bom. Não voltarei para casa. Ah, sim, isso é infinitamente consolador. Ele ficará surpreso? Sim, doze anos pesam como quilos de chumbo. Os dias se derretem, fundem-se e formam um só bloco, uma grande âncora. E a pessoa está perdida. Seu olhar adquire um jeito de poço fundo. Água escura e silenciosa. Seus gestos tornam-se brancos e ela só tem um medo na vida; que alguma coisa venha transformá-la. Vive atrás de uma janela, olhando pelos vidros a estação das chuvas cobrir a do sol, depois tornar o verão e ainda as chuvas de novo. Os desejos são fantasmas que se diluem mal se acende a lâmpada do bom senso. Por que é que os maridos são o bom senso? O seu é particularmente sólido, bom e nunca erra. Das pessoas que só usam uma marca de lápis e dizem de cor o que está escrito na sola dos sapatos. Você pode perguntar-lhe sem receio qual o horário dos trens, o jornal de maior circulação e mesmo em que região do globo os macacos se reproduzem com maior rapidez.Ela ri. Agora pode rir... Eu comia caindo, dormia caindo, vivia caindo. Vou procurar um lugar onde pôr os pés...Achou tão engraçado esse pensamento que se inclinou sobre o muro e pôs-se a rir. Um homem gordo parou a certa distância, olhando-a. Que é que eu faço? Talvez chegar perto e dizer: “Meu filho, está chovendo”’. Não. “Meu filho, eu era uma mulher casada e sou agora uma mulher”. Pôs-se a caminhar e esqueceu o homem gordo. Abre a boca e sente o ar fresco inundá-la. Por que esperou tanto tempo por essa renovação? Só hoje, depois de doze séculos. Saíra do chuveiro frio, vestira uma roupa leve, apanhara um livro. Mas hoje era diferente de todas as tardes dos dias de todos os anos. Fazia calor e ela sufocava. Abriu todas as janelas e as portas. Mas não: o ar ali estava, imóvel, sério, pesado. Nenhuma viração e o céu baixo, as nuvens escuras, densas. (LISPECTOR, 1979, p. 99-102)

Fatos banais do cotidiano, como tomar um bonde e ver um cego mascando chiclete, como no conto “Amor”, do livro Laços de Família (1960), podem defla-grar nas personagens mudanças profundas, jogando nova luz sobre suas rela-ções com os outros ou com a vida:

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar – o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir – como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada – o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão – Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava – o bonde estacou, os passageiros olharam assustados. (LISPECTOR, 1998, p. 19)

Esses momentos de revelação são epifanias, para usar o termo bíblico em-pregado por James Joyce. Muitas vezes essas epifanias vêm acompanhadas por uma intensa náusea existencial, como ocorre no conto “Perdoando Deus”, de Fe-licidade Clandestina:

Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco

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a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. [...] E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contiguidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? [...] Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. [...] Então era assim? Eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. (LISPECTOR, 1975, p. 37-39)

O mesmo se dá com a personagem-título de A Paixão Segundo G. H. (1964), que encontra uma barata no quarto da empregada que a deixara e estabelece com o inseto uma relação bastante conflituosa:

Estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi – na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro. (LISPECTOR, 1979, p. 7)

Mesmo nas suas crônicas, reunidas em A Descoberta do Mundo (1984), Clari-ce não abandona a investigação das complexidades psicológicas. Observem-se estas reflexões sobre a língua portuguesa, note-se como a subjetividade invade o pensamento sobre suas relações com o idioma:

Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo. Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope. Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E este desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastaram para nos dar para sempre uma herança da língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida.

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Clarice Lispector

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Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega. Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida. (LISPECTOR, 2008)

Vejamos também estas reflexões agudas sobre o ato de escrever: “Não posso escrever enquanto estou ansiosa ou espero soluções porque em tais períodos faço tudo para que as horas passem; escrever é prolongar o tempo, é dividi-lo em partículas de segundos, dando a cada uma delas uma vida insubstituível” (LISPECTOR, 1980, p. 177).

No romance Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969), a autora mescla as mitologias grega e alemã para descrever as aflições amorosas da mulher mo-derna. Além disso, começa o texto com uma vírgula e termina com dois pontos:

, estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera às pressas porque cada vez mais matava serviço, embora só viesse para deixar almoço e jantar prontos, dera vários telefonemas tomando providências, inclusive um dificílimo para chamar o bombeiro de encanamentos de água, fora à cozinha para arrumar as compras e dispor na fruteira as maçãs que eram a sua melhor comida, embora não soubesse enfeitar uma fruteira, mas Ulisses acenara-lhe com a possibilidade futura de por exemplo embelezar uma fruteira [...][...]A madrugada se abria em luz vacilante. Para Lóri a atmosfera era de milagre. Ela havia atingido o impossível de si mesma. Então ela disse, porque sentia que Ulisses estava de novo preso à dor de existir:— Meu amor, você não acredita no Deus porque nós erramos ao humanizá-lo. Nós O humanizamos porque não O entendemos, então não deu certo. Tenho certeza de que Ele não é humano. Mas embora não sendo humano, no entanto, Ele às vezes nos diviniza. Você pensa que —— Eu penso, interrompeu o homem e sua voz estava lenta e abafada porque ele estava sofrendo de vida e de amor, eu penso o seguinte: (LISPECTOR, 1982, p. 11, 173-174)

Suas obras Água Viva (1973) e Um Sopro de Vida (1978) abandonam comple-tamente a narrativa tradicional e sequer são designadas como romances. Clarice elimina a intriga, desenvolvendo monólogos fragmentários e introspectivos. Ve-jamos um trecho de Água Viva:

Meu tema é o instante? Meu tema de vida. Procuro estar a par dele, divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos – só me comprometo como a vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim. [...]Para te dizer o meu substrato faço uma frase de palavras feitas apenas dos instantes-já. Lê então o meu invento de pura vibração sem significado senão o de cada esfuziante sílaba, lê o que agora se segue: “com o correr dos séculos perdi o segredo do Egito, quando eu me movia em longitude, latitude e altitude com ação energética dos elétrons, prótons, nêutrons, no fascínio que é a palavra e sua sombra.” Isso que te escrevi é um desenho eletrônico e não tem passado ou futuro: é simplesmente já.[…]

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Agora vou escrever ao correr da mão: não mexo no que ela escrever. Esse é um modo de não haver defasagem entre o instante e eu: ajo no âmago do próprio instante. (LISPECTOR, 1980, p. 10-11, 54)

A Hora da EstrelaEm A Hora da Estrela (1977), seu último romance publicado em vida, Clarice

Lispector acrescenta a preocupação social ao descrever a vida da miserável nor-destina Macabéa no Rio de Janeiro. Dedicar-se a questões sociais era um desejo antigo da autora:

Em Recife, onde morei até 12 anos de idade, havia muitas vezes nas ruas um aglomerado de pessoas diante das quais alguém discursava ardorosamente sobre a tragédia social. E lembro-me de como eu vibrava e de como eu me prometia que um dia esta seria a minha tarefa: a de defender os direitos dos outros.No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima.É pouco, muito pouco. (apud GOTLIB, 1995, p. 123)

Mas o enredo surge também do olhar atento da autora para os nordestinos à sua volta no Rio de Janeiro:

É a história de uma moça tão pobre que só comia cachorro-quente. Mas a história não é isso. A história é de uma inocência pisada, de uma miséria anônima. Eu morei no Nordeste... eu me criei no Nordeste e depois no Rio de Janeiro... tem uma feira dos nordestinos no campo de São Cristóvão, e uma vez eu fui lá. E peguei o ar meio perdido do nordestino no Rio de Janeiro. Daí começou a nascer a ideia. Depois eu fui a uma cartomante e imaginei as coisas boas que iam me acontecer. E imaginei, quando tomei o táxi de volta, que seria muito engraçado se um táxi me atropelasse e eu morresse, depois de ter ouvido todas essas coisas boas. Então daí foi nascendo também a trama da história. (apud ALÔ ESCOLA, 2008)

No entanto, se tivéssemos apenas a história da moça pobre nordestina não teríamos um romance de Clarice Lispector. Ela cria, como mediação entre nós e a miserável, um escritor chamado Rodrigo S. M., que, como Clarice, deseja escre-ver de forma mais simples e direta para revelar os fatos da vida da sua heroína. Mas não consegue. A primeira metade do livro é praticamente toda gasta com as digressões, reflexões metalinguísticas e extrapolações de Rodrigo:

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o que, mas sei que o universo jamais começou.Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor de dentes que perpassa

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esta história deu uma fisgada funda em plena boca nossa. Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente – é a minha própria dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade. Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes.[...]Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. Assim é que os senhores sabem mais do que imaginam e estão fingindo de sonsos.Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar as palavras que vos sustentam. A história – determino com falso livre-arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e gran finale seguido de silêncio e de chuva caindo. (LISPECTOR, 1978, p. 15-16)

Esse narrador complexo tem uma curiosa relação com a dor: é o sofrimento (físico e psicológico) que parece movê-lo. Sua relação com a nordestina (cujas pe-ripécias narra) é ao mesmo tempo de repulsa e de atração, asco e carinho, dor e prazer... O que pode ser uma boa pista para interpretarmos o seu nome – Rodrigo S. M. A sigla S. M. é internacionalmente conhecida por remeter ao sadomasoquis-mo. Como toda a sociedade que está acima da linha da miséria, Rodrigo tem uma relação complexa, uma relação de amor e ódio com os miseráveis – como Maca-béa. Vejamos como a heroína é descrita:

Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. (...)Nascera inteiramente raquítica: herança do sertão – os maus antecedentes de que falei. Com dois anos de idade lhe haviam morrido os pais de febres ruins no sertão de Alagoas, lá onde o Judas perdera as botas. Muito depois fora para Maceió com a tia beata, única parenta sua no mundo. Uma ou outra vez se lembrava de coisa esquecida. Por exemplo a tia lhe dando cascudos no alto da cabeça porque o cocoruto de uma cabeça devia ser, imaginava a tia, um ponto vital. Dava-lhe sempre com os nós dos dedos na cabeça de ossos fracos por falta de cálcio. Batia mas não era somente porque ao bater gozava de grande prazer sensual – a tia que não se casara por nojo – é que também considerava de dever seu evitar que a menina viesse um dia a ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso esperando homem. Embora a menina não tivesse dado mostras de no futuro não vir a ser vagabunda de rua. Pois até mesmo o fato de vir a ser uma mulher não parecia pertencer à sua vocação. A mulherice só lhe nasceria tarde porque até no capim vagabundo há desejo de sol. As pancadas ela esquecia pois esperando-se um pouco a dor termina por passar. Mas o que doía mais era ser privada da sobremesa de todos os dias: goiabada com queijo, a única paixão de sua vida. Pois não era que esse castigo se tornara o predileto da tia sabida? A menina não perguntava por que era sempre castigada mas nem tudo precisava saber e não saber fazia parte importante de sua vida.Esse não-saber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome; nasce-se e fica-se logo sabendo. Assim como ninguém lhe ensinaria a morrer: na certa morreria um dia como se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela. Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes.

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Quando era pequena tivera vontade intensa de criar um bicho. Mas a tia achava que ter um bicho era mais uma boca para comer. Então a menina inventou que só lhe cabia criar pulgas pois não merecia o amor de um cão. Do contacto com a tia ficara-lhe a cabeça baixa. Mas a sua beatice não lhe pegara: morta a tia, ela nunca mais fora a uma igreja porque não sentia nada e as divindades lhe eram estranhas. (LISPECTOR, 1978, p. 18, 35-36)

Note-se que, embora sensível e preocupada, a descrição é ao mesmo tempo incle-mente, sem pieguismos ou sentimentos de exagerada compaixão pela miserável.

Embora Macabéa chegue a irritar Rodrigo (e a nós também) com sua passivi-dade, ignorância e imobilismo, o narrador insiste em reforçar a ideia de que ela tem sim vida interior:

Tinha o que se chama de vida interior e não sabia que tinha. Vivia de si mesma como se comesse as próprias entranhas. Quando ia ao trabalho parecia uma doida mansa porque ao correr do ônibus devaneava em altos e deslumbrantes sonhos. Estes sonhos, de tanta interioridade, eram vazios porque lhes faltava o núcleo essencial de uma prévia experiência de – de êxtase, digamos. A maior parte do tempo tinha sem o saber o vazio que enche a alma dos santos. Ela era santa? Ao que parece. Não sabia que meditava pois não sabia o que queria dizer a palavra. Mas parece-me que sua vida era uma longa meditação sobre o nada. Só que precisava dos outros para crer em si mesma, senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia nela. Meditava enquanto batia à máquina e por isso errava ainda mais. (LISPECTOR, 1978, p. 47)

Tanto tinha vida interior que vivenciava vários momentos de epifania, inten-sos momentos de revelação interior:

Devo registrar aqui uma alegria. É que a moça num aflitivo domingo sem farofa teve uma inesperada felicidade que era inexplicável: no cais do porto viu um arco-íris. Experimentando o leve êxtase, ambicionou logo outro: queria ver, como uma vez em Maceió, espocarem mudos fogos de artifício. Ela quis mais porque é mesmo uma verdade que quando se dá a mão, essa gentinha quer todo o resto, o zé-povinho sonha com fome de tudo. E quer mas sem direito algum, pois não é? Não havia meio – pelo menos eu não posso – de obter os multiplicantes brilhos em chuva chuvisco dos fogos de artifício. (LISPECTOR, 1978, p. 44)

Desprovida de qualquer meio de adquirir educação formal ou cultura, a ala-goana, ávida por algum conhecimento, procura se ilustrar por meio da cultura inútil da Rádio Relógio carioca:

Todas as madrugadas ligava o rádio emprestado por uma colega de moradia, Maria da Penha, ligava bem baixinho para não acordar as outras, ligava invariavelmente para a Rádio Relógio, que dava “hora certa e cultura”, e nenhuma música, só pingava em som de gotas que caem – cada gota de minuto que passava. E sobretudo esse canal de rádio aproveitava intervalos entre as tais gotas de minuto para dar anúncios comerciais – ela adorava anúncios. Era rádio perfeita pois também entre os pingos do tempo dava curtos ensinamentos dos quais talvez algum dia viesse precisar saber. Foi assim que aprendeu que o Imperador Carlos Magno era na terra dele chamado Carolus. Verdade que nunca achara modo de aplicar essa informação. Mas nunca se sabe, quem espera sempre alcança. Ouvira também a informação de que o único animal que não cruza com filho era o cavalo.– Isso, moço, é indecência, disse ela para o rádio.Outra vez ouvira: “Arrepende-te em Cristo e Ele te dará felicidade”. Então ela se arrependera. Como não sabia bem de que, arrependia-se toda e de tudo. O pastor também falava que a vingança é coisa infernal. Então ela não se vingava.Sim, quem espera sempre alcança. É? (LISPECTOR, 1978, p. 46)

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Esta “miséria anônima”, que é Macabéa, é a própria inocência que vai sendo pisada cada vez mais e mais intensamente durante o transcorrer da narrativa. Pisada pelos homens e pelo destino, por sua condição social e cultural, pela vida, enfim. E com isso o leitor vai ficando mais arrasado, sentindo-se culpado, como Rodrigo S. M., pela situação de miséria social e mental de Macabéa.

Texto complementar Leia o trecho final do romance A Hora da Estrela. No início do fragmento, te-

mos as previsões de madame Carlota para Macabéa e, depois, o desfecho do romance.

Quanto ao futuro (LISPECTOR, 1978, p. 96-104)

Mas Macabeazinha, que vida horrível a sua! [...] Tenho grandes notícias para lhe dar: Sua vida vai mudar completamente! [...] Até seu namorado vai voltar e propor casamento [...] e seu chefe não vai mais lhe despedir! E tem mais! Um dinheiro grande vai lhe entrar pela porta adentro em horas da noite trazido por um homem estrangeiro [...] Ele é alourado e tem olhos azuis ou verdes ou casta-nhos ou pretos. [...] Parece se chamar Hans, e é ele quem vai se casar com você!

Num súbito ímpeto (explosão) de vivo impulso, Macabéa, entre feroz e desajeitada, deu um estalado beijo no rosto da madama. [...] Quando ela era pequena, como não tinha a quem beijar, beijava a parede. [...] Madame Car-lota tinha acertado tudo, Macabéa estava espantada. Só então vira que sua vida era uma miséria. Teve vontade de chorar ao ver o seu lado oposto, ela que, como eu disse, até então se julgava feliz. [...] Então ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua, o Destino (explosão) sussurou veloz e guloso: é agora, é já, chegou a minha vez.

[...]

Macabéa ao cair ainda teve tempo de ver, antes que o carro fugisse, que já começavam a ser cumpridas as predições de madama Carlota, pois o carro era de alto luxo. Sua queda não era nada, pensou ela, apenas um empurrão. Batera com a cabeça na quina da calçada e ficara caída, a cara mansamente

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voltada para a sarjeta. E da cabeça um fio de sangue inesperadamente ver-melho e rico. O que queria dizer que apesar de tudo ela pertencia a uma re-sistente raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito.

[...]

Ficou inerme no canto da rua, talvez descansando das emoções, e viu entre as pedras do esgoto o ralo capim de um verde da mais tenra esperança humana. Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia de minha vida: nasci.

(A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A verdade é irreco-nhecível. Portanto não existe? Não, para os homens não existe.)

Voltando ao capim. Para tal exígua criatura chamada Macabéa a grande natureza se dava apenas em forma de capim de sarjeta.

[...]

Acho com alegria que ainda não chegou a hora de estrela de cinema de Macabéa morrer. Pelo menos ainda não consigo adivinhar se lhe acontece o homem louro e estrangeiro. Rezem por ela e que todos interrompam o que estão fazendo para soprar-lhe vida, pois Macabéa está por enquanto solta no acaso como a porta balançando ao vento no infinito. Eu poderia resolver pelo caminho mais fácil, matar a menina-infante, mas quero o pior: a vida. Os que me lerem, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom. A vida é um soco no estômago.

(...)

Aí Macabéa disse uma frase que nenhum dos transeuntes entendeu. Disse bem pronunciado e claro:

– Quanto ao futuro.

Terá tido ela saudade do futuro? Ouço a música antiga de palavras e pa-lavras, sim, é assim. Nesta hora exata Macabéa sente um fundo enjoo de es-tômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas.

O que é que estou vendo agora e que me assusta? Vejo que ela vomitou um pouco de sangue, vasto espasmo, enfim o âmago tocando no âmago: vitória!

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E então – então o súbito grito estertorado de uma gaivota, de repente a águia voraz erguendo para os altos ares a ovelha tenra, o macio gato estraça-lhando um rato sujo e qualquer, a vida come a vida.

Até tu, Brutus?!

Sim, foi este o modo como eu quis anunciar que – que Macabéa morreu. Vencera o Príncipe das Trevas. Enfim a coroação.

Qual foi a verdade de minha Maca? Basta descobrir a verdade que ela logo já não é mais: passou o momento. Pergunto: o que é? Resposta: não é.

Mas que não se lamentem os mortos: eles sabem o que fazem. Eu estive na terra dos mortos e depois do terror tão negro ressurgi em perdão. Sou inocente! Não me consumam! Não sou vendável! Ai de mim, todo na perdi-ção e é como se a grande culpa fosse minha. Quero que me lavem as mãos e os pés e depois – depois que os untem com óleos santos de tanto perfume. Ah que vontade de alegria. Estou agora me esforçando para rir em grande gargalhada. Mas não sei por que não rio. A morte é um encontro consigo. Deitada, morta, era tão grande como um cavalo morto. O melhor negócio é ainda o seguinte: não morrer, pois morrer é insuficiente, não me completa, eu que tanto preciso.

Macabéa me matou.

Ela estava enfim livre de si e de nós. Não vos assusteis, morrer é um ins-tante, passa logo, eu sei porque acabo de morrer com a moça. Desculpai-me esta morte. É que não pude evitá-la, a gente aceita tudo porque já beijou a parede. Mas eis que de repente sinto o meu último esgar de revolta e uivo: o morticínio dos pombos!!! Viver é luxo.

Pronto, passou.

Morta, os sinos badalavam mas sem que seus bronzes lhes dessem som. Agora entendo esta história. Ela é a iminência que há nos sinos que quase-quase badalam.

A grandeza de cada um.

Silêncio.

Se um dia Deus vier à terra haverá silêncio grande.

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O silêncio é tal que nem o pensamento pensa.

O final foi bastante grandiloquente para a vossa necessidade? Morrendo ela virou ar. Ar enérgico? Não sei. Morreu em um instante. O instante é aquele átimo de tempo em que o pneu do carro correndo em alta velocidade toca no chão e depois não toca mais e depois toca de novo. Etc. etc. etc. No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada.

Eu vos pergunto:

– Qual é o peso da luz?

E agora – agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?!

Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.

Sim.

Estudos literários1. Leia o trecho abaixo, de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector (1978, p. 54),

para responder ao que se pede.

Eles não sabiam como se passeia. Andaram sob a chuva grossa e pararam diante da vitrine de uma loja de ferragem onde estavam expostos atrás do vidro canos, latas, parafusos grandes e pregos. E Macabéa, com medo de que o silêncio já significasse uma ruptura, disse ao recém-namorado:

– Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?

Da segunda vez em que se encontraram caía uma chuva fininha que ensopava os ossos. Sem nem ao menos se darem as mãos caminhavam na chuva que na cara de Macabéa parecia lágrimas escorrendo.

Da terceira vez em que se encontraram pois não é que estava chovendo? – o rapaz, irritado e perdendo o leve verniz de finura que o padrasto a custo lhe ensinara, disse-lhe:

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Clarice Lispector

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– Você também só sabe é mesmo chover!

– Desculpe.

(LISPECTOR, 1978, p. 54)

I

Ele: – Pois é.

Ela: – Pois é o quê?

Ele: – Eu só disse pois é!

Ela: – Mas “pois é” o quê?

Ele: – Melhor mudar de conversa porque você não me entende.

a) Na frase “Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?” manifesta-se, de forma contundente, a função fática da linguagem, por meio da qual o emissor procura assegurar que o contato com o receptor está sendo estabelecido. Transcreva o trecho do fragmento que melhor justifica o uso dessa função da linguagem por Macabéa.

b) Na frase “perdendo o leve verniz de finura que o padrasto a custo lhe ensinara” há uma metáfora. Explique-a.

2. Leia os dois fragmentos abaixo e depois responda ao que se pede.

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Ela: – Entender o quê?

Ele: – Santa Virgem, Macabéa, vamos mudar de assunto e já!

Ela: – Falar então de quê?

Ele: – Por exemplo, de você.

Ela: – Eu?!

Ele: – Por que esse espanto? Você não é gente? Gente fala de gente.

Ela: – Desculpe mas não acho que sou muito gente.

(LISPECTOR, 1978, p. 58-59)

II

No dia seguinte, segunda-feira, não sei se por causa do fígado atingido pelo chocolate ou por causa de nervosismo de beber coisa de rico, passou mal. Mas teimosa não vomitou para não desperdiçar o luxo do chocolate. Dias depois, recebendo o salário, teve a audácia de pela primeira vez na vida (explosão) procurar o médico barato indicado por Glória. Ele a examinou, a examinou e de novo a examinou.

– Você faz regime para emagrecer, menina?

Macabéa não soube o que responder.

– O que é que você come?

– Cachorro-quente.

– Só?

– Às vezes como sanduíche de mortadela.

– Que é que você bebe? Leite?

– Só café e refrigerante.

– Que refrigerante? – perguntou ele sem saber o que falar. À toa indagou:

– Você às vezes tem crise de vômito?

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– Ah, nunca! – exclamou muito espantada, pois não era doida de des-perdiçar comida, como eu disse. O médico olhou-a e bem sabia que ela não fazia regime para emagrecer. Mas era-lhe mais cômodo insistir em dizer que não fizesse dieta de emagrecimento. Sabia que era assim mesmo e que ele era médico de pobres. Foi o que disse enquanto lhe receitava um tônico que ela depois nem comprou, achava que ir ao médico por si só já curava. Ele acrescentou irritado sem atinar com o porquê de sua súbita irritação e revolta.

– Essa história de regime de cachorro-quente é pura neurose e o que está precisando é de procurar um psicanalista!

Ela nada entendeu mas pensou que o médico esperava que ela sorrisse. Então sorriu.

O médico muito gordo e suado tinha um tique nervoso que o fazia de quando em quando ritmadamente repuxar os lábios. O resultado era parecer que estava fazendo beicinho de bebê quando está prestes a chorar.

Esse médico não tinha objetivo nenhum. A medicina era apenas para ganhar dinheiro e nunca por amor à profissão nem a doentes. Era desatento e achava a pobreza uma coisa feia. Trabalhava para os pobres detestando lidar com eles. Eles eram para ele o rebotalho de uma sociedade muito alta à qual também ele não pertencia. Sabia que estava desatualizado na medicina e nas novidades clínicas mas para pobre servia. O seu sonho era ter dinheiro para fazer exatamente o que queria: nada.

Quando ele avisara que ia examiná-la ela disse:

– Ouvi dizer que no médico se tira a roupa mas eu não tiro coisa nenhuma.

Passara-a pelo raio X e dissera:

– Você está com começo de tuberculose pulmonar.

Ela não sabia se isso era coisa boa ou coisa ruim. Bem, como era uma pessoa muito educada, disse:

– Muito obrigada, sim?

O médico simplesmente se negou a ter piedade. E acrescentou: quando você não souber o que comer faça um espaguete bem italiano.

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E acrescentou com um mínimo de bondade a que ele se permitia já que se considerava também injustiçado pela sorte:

– Não é tão caro assim...

– Esse nome de comida que o senhor falou eu nunca comi na vida. É bom?

– Claro que é! Olhe só a minha barriga! Isso é resultado de boas macar-ronadas e muita cerveja. Dispense a cerveja, é melhor não beber álcool. Ela repetiu cansada:

– Álcool ?

– Sabe de uma coisa? Vá para os raios que te partam!

(LISPECTOR, 1978, p. 80-82)

a) Aponte o que há de semelhante entre o diálogo do primeiro texto (Ma-cabéa e Olímpico) e o segundo (Macabéa e o médico). O que esses frag-mentos indicam sobre a relação de Macabéa com os homens?

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b) A estrutura de humor dos dois textos é semelhante. Como Clarice Lispec-tor manipula a relação do leitor com Macabéa nesses fragmentos?

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O poeta do rigor “Os poetas não têm biografia. Sua biografia é sua obra.” Essas palavras

do diplomata, poeta e crítico mexicano Octavio Paz (1996, p. 82) ecoam no depoimento pessoal do poeta e diplomata brasileiro João Cabral de Melo Neto: “Eu não tenho biografia. Minha biografia é: em tanto de tanto foi para tal lugar. Em tanto de tanto foi para tal lugar, essa é a biografia que tenho” (MELO NETO, 1989, p. 34).

Nascido em 9 de janeiro de 1920, no Recife, Pernambuco, de tradicio-nal família de senhores de engenho, João Cabral de Melo Neto passou a primeira infância em engenhos de cana-de-açúcar, entre curumbas (indi-víduos que descem do sertão à procura de trabalho nos engenhos, usinas e estradas) e romances de barbante (os folhetos de cordel, que tanto o in-fluenciariam, décadas depois, na composição de sua obra mais conheci-da, Morte e Vida Severina). No poema “Descoberta da literatura”, integrante do livro A Escola das Facas (1980), João Cabral retoma o ambiente da sua infância:

João Cabral de Melo Neto

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No dia-a-dia do engenho,toda a semana, durante,cochichavam-me em segredo:saiu um novo romance.E da feira do domingome traziam conspirantespara que os lesse e explicasseum romance de barbante.Sentados na roda mortade um carro de boi, sem jante,ouviam o folheto guenzo,a seu leitor semelhante,com as peripécias de espantopreditas pelos feirantes.Embora as coisas contadase todo o mirabolante,em nada ou pouco variassemnos crimes, no amor, nos lances,e soassem como sabidasde outros folhetos migrantes,a tensão era tão densa,subia tão alarmante,que o leitor que lia aquilo

como puro alto-falante,e, sem querer, imantaratodos ali, circunstantes,receava que confundissemo de perto com o distante,o ali com o espaço mágico,seu franzino com o gigante,e que o acabassem tomandopelo autor imaginanteou tivesse que afrontaras brabezas do brigante.(E acabaria, não fossemcontar tudo à Casa-grande:na moita morta do engenho,um filho-engenho, perantecassacos do eito e de tudo,se estava dando ao desplantede ler letra analfabetade curumba, no caçanjepróprio dos cegos de feira,muitas vezes meliantes.)

(MELO NETO, 1994, p. 447-448)

Embora superior (por ser alfabetizado), o menino era “semelhante” aos traba-lhadores analfabetos do eito (roça em que trabalhavam os escravos), e era repre-endido pela família aristocrática por ler com (e para) os cassacos (trabalhadores dos engenhos) os folhetos de cordel. Aos 10 anos de idade, esse menino voltou para o Recife, onde jogou futebol no Santa Cruz Futebol Clube, tornou-se um dos poucos fanáticos torcedores do América de Recife e cursou o primário no Colégio Marista.

No livro Agrestes (1985), o poeta ateu (que em “Antiode” afirmara “Poesia, te escrevo/ agora: fezes, as/ fezes vivas que és.” – MELO NETO, 1994, p. 101) recor-dou com acidez o atraso moralista da educação religiosa marista, associando-o à falta de higiene nos banheiros do colégio, no poema “As Latrinas do Colégio Marista do Recife”:

Nos Colégios Marista (Recife),se a ciência parou na Escolástica,a malvada estrutura da carne era ensinada em todas as aulas,

com os vários creosotos moraiscom que lavar gestos, olhos, língua;à alma davam a água sanitária

que nunca usavam nas latrinas.

Lavar, na teologia marista,é coisa da alma, o corpo é do diabo;a castidade dispensa a higienedo corpo, e de onde ir defecá-lo.

(MELO NETO, 1994, p. 524)

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A partir dos 17 anos, João Cabral de Melo Neto empregou-se no serviço pú-blico: entre 1937 e 1945, ocupou diversos cargos burocráticos em órgãos gover-namentais, inicialmente no Recife e, a partir de 1943, no Rio de Janeiro, então Capital Federal. Data desse período a sua iniciação literária.

No Recife, conheceu Willy Lewin (1908-1971), intelectual que, segundo Cabral, teria tanta importância na sua formação intelectual quanto um curso universitário.

A partir de 1940, conheceu, no Rio de Janeiro, alguns dos mais importantes poetas brasileiros da geração de 1930, como Murilo Mendes (1901-1975), Jorge de Lima (1893-1953), Vinicius de Moraes (1913-1980) e Carlos Drummond de An-drade (1902-1987).

Em 1942, publicou Pedra do Sono, seu primeiro livro de poemas, de nítida influência surrealista, mas já apresentando – como percebeu o crítico Antonio Candido, em resenha da época – um rigor construtivo herdado do Cubismo.

Assim como esse primeiro, o seu segundo livro – O Engenheiro (1945) – também foi dedicado a Drummond. Em carta datada de 29 de setembro de 1943, João Cabral expõe a Carlos Drummond seus sentimentos em relação ao serviço burocrático. Este poema, que não trazia título, ficou inédito por 53 anos, até ser publicado recentemente:

Difícil ser funcionárioNesta segunda-feira.Eu te telefono, Carlos,Pedindo conselho.

Não é lá fora o diaQue me deixa assim,Cinemas, avenidasE outros não-fazeres.

É a dor das coisas,O luto desta mesa;É o regimento proibindoAssovios, versos, flores.

Eu nunca suspeitaraTanta roupa preta;Tão pouco essas palavras Funcionárias, sem amor.

Carlos, há uma máquinaQue nunca escreve cartas;Há uma garrafa de tinta

Que nunca bebeu álcool.

E os arquivos, Carlos,As caixas de papéis:Túmulos para todosOs tamanhos de meu corpo.

Não me sinto corretoDe gravata de cor,E na cabeça uma moçaEm forma de lembrança.

Não encontro a palavraQue diga a esses móveis,Se os pudesse encarar...Fazer seu nojo meu...

Carlos, dessa náuseaComo colher a flor?Eu te telefono, Carlos,Pedindo conselho.

(MELO NETO, 1996, p. 60-61)

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Manuscrito em papel timbrado do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), órgão da Presidência da República em que trabalhava o poeta pernambucano, o poema deixa clara a influência de Drummond, autor de “A flor e a náusea” e também funcionário público, sobre o jovem João Cabral. Além de lhe ter dedicado seus dois primeiros livros, João Cabral de Melo Neto também publicou, na Revista do Brasil, em 1943, a peça em prosa poética Os Três Mal- -Amados, até hoje não encenada, que toma como mote o conhecido poema “Quadrilha”, de Drummond:

“João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria/ que amava Joaquim que amava Lili/ que não amava ninguém./ João foi para o Estados Unidos, Teresa para o convento,/ Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,/ Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes/ que não tinha entrado na história.”

Os anos de 1945 e 1946 serão decisivos para o poeta e para o homem. Em 1945, sob grande influência do poeta e engenheiro pernambucano Joaquim Cardozo (1897-1978), João Cabral publicou O Engenheiro, livro em que apresen-ta os princípios da poesia do rigor, da clareza e da objetividade que marcariam toda a sua obra. Passaria, então, a ser conhecido como o “poeta-engenheiro”, embora estivesse longe de abraçar tal profissão, e foi influenciado pelas ideias do arquiteto Le Corbusier (1887-1965), cujas palavras relacionadas à arquitetura (machine à émouvoir – “máquina de comover”) estampou como epígrafe de O Engenheiro. Como bem lembrou João Alexandre Barbosa (1975, p. 42), a expres-são machine à émouvoir é correlata da definição de poesia dada por Paul Valéry (1871-1945): machine du language (máquina da linguagem).

A partir dessa época, João Cabral de Melo Neto buscou uma poesia que não deixa de emocionar ou revelar o sonho, mas o faz com o equilíbrio e o rigor ma-temático e construtivo da engenharia:

A luz, o sol, o ar livreenvolvem o sonho do engenheiro.O engenheiro sonha coisas claras:superfícies, tênis, um copo de água.

O lápis, o esquadro, o papel;o desenho, o projeto, o número:o engenheiro pensa o mundo justo,mundo que nenhum véu encobre.

A produção de João Cabral é uma poesia que nenhum véu encobre, uma poesia das coisas concretas, do substantivo, que o poeta vai perseguir a partir de então, tornando-se o mais rigoroso e exigente dos poetas da nossa literatura.

No final de 1945, João Cabral foi aprovado em concurso para a carreira diplo-mática. No ano de 1946, trabalhou no Ministério das Relações Exteriores, casou-se

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com Stella Maria Barbosa de Oliveira e teve Rodrigo, o primeiro dos seus cinco filhos. E em 1947 começou a perambular pelo mundo, ocupando diversos postos na carreira diplomática.

De início, serviu em Barcelona, onde conheceu o pintor Joan Miró (1893-1983, sobre o qual escreveu um dos seus raros ensaios críticos) e montou uma tipogra-fia artesanal, chamada O Livro Inconsútil, por meio da qual publicou vários livros de poetas brasileiros (como Manuel Bandeira), espanhóis, e também seus livros Psicologia da Composição (1947) e O Cão sem Plumas (1950).

Psicologia da Composição – que, segundo João Cabral, é um “livro teórico” – dirige-se inteiramente para a metalinguagem, enquanto O Cão sem Plumas já prenuncia o olhar sobre sua Recife natal, em especial o rio Capibaribe, que corta a cidade.

Em 1950, foi removido para Londres, onde ficou até 1952, quando foi afasta-do da diplomacia, acusado de subversão e comunismo. Retornou ao Brasil para responder ao processo. Absolvido, permaneceu no país até 1956.

Durante esses anos de “exílio interno”, Cabral acrescentou à sua poética um componente novo: a preocupação social. Em poemas mais “comunicativos”, mais “fáceis”, como “O rio”, escrito em 1953 e vencedor do Prêmio do IV Centenário de São Paulo (1954) e “Morte e vida severina”, escrito em 1954-1955 e publicado na coletânea Duas Águas (1956), João Cabral de Melo Neto apresenta uma poesia mais narrativa, popular e voltada para os problemas sociais do Nordeste, mais especificamente de seu estado natal, Pernambuco.

Retornando à ativa no exterior em 1956, teve uma brilhante carreira diplo-mática, servindo como cônsul-geral ou embaixador do Brasil em diversos locais, como Marselha, Genebra, Berna, Dacar, Quito, Honduras, Porto etc. Aposentou- -se como embaixador em 1990, mesmo ano em que recebeu o Prêmio Luís de Camões – a maior premiação literária da língua portuguesa.

De todos os países em que João Cabral trabalhou, certamente aquele que deixou influências mais profundas na sua poesia foi a Espanha. Servindo diver-sas vezes em Barcelona, apaixonou-se pela poesia espanhola e catalã. Mas foi a cidade de Sevilha, na Andaluzia, onde também morou mais de uma vez, que deixou marcas profundas no poeta recifense. No poema “Autocrítica”, de A Escola das Facas (1980), o poeta revela seu débito à cidade espanhola, apontando-a como corresponsável, junto com Pernambuco, por sua “inspiração” poética:

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Só duas coisas conseguiram(des)feri-lo até a poesia:o Pernambuco de onde veioe o aonde foi, a Andaluzia.Um, o vacinou do falar rico

e deu-lhe a outra, fêmea e viva,desafio demente: em versodar a ver Sertão e Sevilha.

(MELO NETO, 1994, p. 456)

Em livros como Dois Parlamentos (1960), Quaderna (1960), Serial (1961), A Edu-cação pela Pedra (1966), Museu de Tudo (1975), A Escola das Facas (1980), Auto do Frade (1984), Agrestes (1985), Crime na Calle Relator (1987), Sevilha Andando (1990) e Andando Sevilha (1994), o poeta foi abordando os temas mais diversos, como a própria poesia, a pintura, o futebol, suas memórias, a morte, a memória do Recife na morte de Frei Caneca, suas viagens, a sensualidade das sevilhanas, o sertão etc. Sempre tendo a feminina e gentil Espanha – Sevilha à frente – e o masculino e árido Pernambuco para dar o tom na poesia rigorosa, consistente e ímpar que o “poeta-engenheiro” veio construindo da década de 1940 até sua morte, em 1999.

O rigor das coisas A metalinguagem é um dos elementos mais importantes na poética de João

Cabral de Melo Neto. Poucos poetas na literatura brasileira preocuparam-se tanto em expor uma teoria da poesia por meio de sua obra. João Cabral insistia em dizer, em numerosas entrevistas, que originalmente queria ser crítico literá-rio, mas, julgando-se despreparado para tanto, começou a escrever poesia.

Para evitar uma poesia vaga, cuja ambiguidade se possa confundir com falta de clareza, o poeta optou por uma poesia feita primordialmente pela articulação de termos concretos, substantivos ou mesmo adjetivos e verbos “concretos”. Em entrevista a Antonio Carlos Secchin, o poeta afirmou que

Sim, porque adjetivos e verbos admitem essa categoria. Por exemplo: o adjetivo sublime é abstrato, como tristeza. Maçã é tão concreto quanto o adjetivo torto. A literatura espanhola usa preponderantemente o concreto, e por isso me interessou. As literaturas primitivas me interessam. Parece que a linguagem começou pelas palavras concretas. (SECCHIN, 1985, p. 306)

O poeta apresenta essa sua teoria da poesia no poema “Falar com coisas”, de Agrestes (1985):

As coisas, por detrás de nós,exigem: falemos com elas,mesmo quando nosso discursonão consiga ser falar delas.Dizem: falar sem coisas é

comprar o que seja sem moeda:é sem fundos, falar com cheques,em líquida, informe diarreia.

(MELO NETO, 1994, p. 555)

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Essa preocupação em evitar a “diarreia” poética aparece também no poema “O ferrageiro de Carmona”, do livro Crime na Calle Relator (1987). Por meio do relato de uma conversa com um ferrageiro (um comerciante de ferragens) da cidade espanhola de Carmona, João Cabral expõe algumas das principais preo-cupações de seu fazer poético – a contenção e, acima de tudo, o esforço que a poesia requer:

Um ferrageiro de Carmonaque me informava de um balcão:“Aquilo? É de ferro fundido,foi a forma que fez, não a mão.

Só trabalho em ferro forjadoque é quando se trabalha ferro;então, corpo a corpo com ele,domo-o, dobro-o, até o onde quero.

O ferro fundido é sem luta,é só derramá-lo na forma.Não há nele a queda-de-braçoe o cara a cara de uma forja.

Existe grande diferençado ferro forjado ao fundido;é uma distância tão enormeque não pode medir-se a gritos.

Conhece a Giralda em Sevilha?De certo subiu lá em cima.Reparou nas flores de ferrodos quatro jarros das esquinas?

Pois aquilo é ferro forjado.Flores criadas em outra língua.Nada têm das flores de formamoldadas pelas das campinas.

Dou-lhe aqui humilde receita,ao senhor que dizem ser poeta:o ferro não deve fundir-senem deve a voz ter diarreia.

Forjar: domar o ferro à força,não até uma flor já sabida,mas ao que pode até ser florse flor parece a quem o diga.”

(MELO NETO, 1994, p. 595-596)

Podemos ler o conselho dado pelo ferrageiro ao poeta como uma profissão de fé do próprio João Cabral de Melo Neto. Trabalhar com o ferro forjado é criar e enfrentar dificuldades no fazer artístico. Para João Cabral, o poema deve ser sempre trabalhado com esforço e suor, deve surgir como fruto do trabalho in-tenso e não de uma inspiração fugaz e enganadora, uma facilidade.

Nesse sentido, o autor de Morte e Vida Severina procura sempre se utilizar tanto da métrica (com maior frequência o verso octossílabo) quanto da rima (principalmente a rima toante, apenas entre vogais) para impor a si próprio uma disciplina rigorosa por meio da dificuldade. Deixemos que o poeta explique esse processo:

Eu acho que o verso livre já foi longe demais, há uma necessidade de se voltar a uma certa disciplina. [...] Em primeiro lugar, eu procuro escrever com o máximo de consciência, de cerebralismo, o nome que vocês quiserem dar. Muito bem, então eu procuro me criar dificuldades. Você metrificar, sobretudo para um sujeito que não tem ouvido como eu, é uma tarefa bastante difícil. Você, no Brasil, preponderantemente, ou escreve no verso de sete sílabas, que é o verso popular tradicional ibérico, ou então escreve em decassílabos, que é o negócio

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de Camões. Repare Manuel Bandeira ou Carlos Drummond, todos eles caíam no decassílabo. Vinícius foi um dos poucos que fez a ficção dele de intimidade que não é em decassílabo. De forma que você vê que a partir de Cão sem Plumas, que é um livro que eu escrevi aos 30 anos, praticamente eu não escrevi mais verso livre. O Rio, que aparentemente é verso livre, eu mostro a vocês aqui qual é a metrificação dele. Toda a minha poesia é metrificada. É o negócio que Frost diz: escrever em verso livre é como jogar tênis sem rede. De forma que eu procuro me criar dificuldades. Eu tenho alguns poemas em sete sílabas. Esse é o verso que é fácil para nós. De forma que eu vou usar o verso de oito sílabas, tenho a impressão de que a maioria dos meus versos é escrito em oito sílabas. No Brasil, em geral, quando se usa o verso de oito sílabas, se usa sempre com a cesura na mesma sílaba, de forma que a coisa fica cantante. Se você usar o verso de oito sílabas sem uma obrigação de uma cesura interna, você então dá uma aparência de que está escrevendo em verso livre e ao mesmo tempo você se cria uma dificuldade a vencer, que é uma coisa de que eu preciso. Agora a rima. Eu sou um sujeito estragado pelo que me davam no colégio para ler. Eu acho a rima o troço mais chato do mundo, e o decassílabo um negócio sinistro. De forma que eu procuro escrever um tipo de verso que pareça verso livre, mas que me dá uma grande dificuldade para escrever. Claro, um verso metrificado pelo meu ouvido. Talvez pelo fato de eu não ter ouvido, eu pense que estou escrevendo rigorosamente metrificado e na verdade estou escrevendo em verso livre sem saber. Muitas vezes eu uso a rima toante, e o espanhol, por exemplo, sente imediatamente a rima toante. Eu uso essas duas coisas porque o verso de oito sílabas que eu uso com uma acentuação irregular interna dá a impressão de prosa. E a rima toante, como eu sei que ela não soa no ouvido do brasileiro, dá a impressão de que o poema não é rimado. (MELO NETO, 1989, p. 17-18)

No trecho acima, João Cabral se refere ao fato de “não ter ouvido”, ou seja, de apresentar uma inaptidão para a música. Chegou mesmo a afirmar diversas vezes que não gostava de música ou mesmo de ouvir palestras ou leituras de poemas. O fragmento mostra, no entanto, como, por meio do esforço consciente, procura conferir uma musicalidade sutil e refinada à sua poesia. Essa musicalidade ímpar, tão presente em Morte e Vida Severina, rendeu-lhe de um dos maiores compo-sitores de nossa música popular (Caetano Veloso, na canção “Outro Retrato”, do disco Estrangeiro, 1989), a seguinte homenagem: “Minha música vem da música da poesia de um poeta João/ que não gosta de música.”

As duas águas Outra faceta importante da poética de João Cabral de Melo Neto é a divisão

que fez para sua obra quando da publicação da coletânea Duas Águas: poemas reunidos (1956), com todos os seus poemas até aquele momento.

Aos livros � Pedra do Sono, O Engenheiro, Psicologia da Composição e O Cão sem Plumas, foram adicionados os inéditos Paisagens com Figuras e Uma Faca Só Lâmina para formar a “primeira água” do livro.

À peça � Os Três Mal-Amados e ao monólogo O Rio, foi acrescentado o inédi-to Morte e Vida Severina, formando, assim, a “segunda água” do livro.

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O termo água se refere às “superfícies planas que constituem um telhado; água de telhado: telhado de uma água” e aponta para uma divisão na obra de João Cabral entre uma forma de poesia mais rigorosa, mais cerebral e de público mais intelectualizado e restrito (“primeira água”) e uma forma poética voltada para um auditório mais amplo, uma poesia mais relaxada, mais popular, mais oral e dramática (“segunda água”).

Dois anos antes, em 1954, João Cabral de Melo Neto havia exposto uma tese no Congresso Internacional de Escritores, em São Paulo, intitulada “Da função moderna da poesia”, em que aborda exatamente a questão da incomunicabilida-de reinante na poesia contemporânea, a dificuldade dos poetas modernos em atingir um público mais amplo para seus textos. Vejamos:

A poesia moderna – captação da realidade objetiva moderna e dos estados de espírito do homem moderno – continuou a ser servida em invólucros perfeitamente anacrônicos e, em geral imprestáveis, nas novas condições que se impuseram.Mas todo esse progresso realizado limitou-se aos materiais do poema: essas pesquisas limitaram-se a multiplicar os recursos de que se pode valer um poeta para registrar sua expressão pessoal; limitaram-se àquela primeira metade do ato de escrever, no decorrer da qual o poeta luta por dizer com precisão o que deseja; isto é, tiveram apenas em conta consumar a expressão, sem cuidar da sua contraparte orgânica – a comunicação. [...]O caso do rádio é típico. O poeta moderno ficou inteiramente indiferente a esse poderoso meio de difusão. À exceção de um ou outro exemplo de poema escrito para ser irradiado, levando em conta as limitações e explorando as potencialidades do novo meio de comunicação, as relações da poesia moderna com o rádio se limitam à leitura episódica de obras escritas originariamente para serem lidas em livro, com absoluto insucesso, sempre, pelo muito que diverge a palavra transmitida pela audição da palavra transmitida pela visão. (O que acontece com o rádio, ocorre também com o cinema e a televisão e as audiências em geral).Mas os poetas não desprezaram apenas os novos meios de comunicação postos a seu dispor pela técnica moderna. Também não souberam adaptar às condições da vida moderna os gêneros capazes de serem aproveitados. Deixaram-nos cair em desuso (a poesia narrativa, por exemplo, ou as aucas catalãs, antepassadas das histórias de quadrinhos), ou deixaram que se degradassem em gêneros não poéticos, a exemplo da anedota moderna, herdeira da fábula. Ou expulsaram-nos da categoria de boa literatura, como aconteceu com as letras das canções populares ou com a poesia satírica.No plano dos tipos problemáticos, tudo o que os poetas contemporâneos obtiveram foi o chamado “poema” moderno, esse híbrido de monólogo interior e de discurso de praça, de diário íntimo e de declaração de princípios, de balbucio e de hermenêutica filosófica, monotonamente linear e sem estrutura discursiva ou desenvolvimento melódico, escrito quase sempre na primeira pessoa e usado indiferentemente para qualquer espécie de mensagem que o seu autor pretenda enviar. Mas esse tipo de poema não foi obtido através de nenhuma consideração acerca de sua possível função social de comunicação. O poeta contemporâneo chegou a ele passivamente, por inércia, simplesmente por não ter cogitado do assunto. Esse tipo de poema é a própria ausência de construção e organização, é o simples acúmulo de material poético, rico, é verdade, em seu tratamento do verso, da imagem e da palavra, mas atirado desordenadamente numa caixa de depósito. (MELO NETO, 1994, p. 765-766)

Duas são, portanto, as saídas para o poeta: fazer um poema moderno que não seja apenas a própria ausência de construção e organização, o simples acúmulo de material poético, e buscar novas formas de comunicação com o público leitor.

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Buscar, portanto, a comunicação da segunda água sem, no entanto, abandonar o rigor construtivo da primeira. Foi o crítico Benedito Nunes quem melhor sintetizou as relações das duas águas cabralinas com sua preocupação com a comunicação:

É precisamente sob o aspecto de comunicação, problema que tanto preocupa João Cabral, [...] que a diferença entre as “duas águas” pode ser estabelecida. Não é a quantidade de informação nem as qualidades formativas da poesia que estão em jogo na “segunda água”, mas o aumento do volume e da área de sua comunicabilidade. Temos assim, em vez de duas espécies de poesias, dois tipos de dicção que se distinguem em função do destinatário e da modalidade de consumo do texto. Quanto mais construída for a poesia, mais dependente se torna, como na “primeira água”, do mecanismo da linguagem escrita, e a sua comunicação, tendo por base a realidade factual do texto, solicita a leitura silenciosa e múltipla de um receptor individual.Quanto menor for o grau de construção, maior será a altura da dicção poética, que se sobrepõe à linguagem escrita, recebendo o texto, nesse caso, que é o da “segunda água”, um suprimento de oralidade, que avoluma o seu poder de comunicação e facilita a sua difusão, de modo a alcançar um receptor coletivo e a ser consumido coletivamente. (NUNES, 1971, p. 74)

Em 1966, João Cabral de Melo Neto reuniu os poemas da sua “segunda água”, acrescidos de outros, na coletânea Morte e Vida Severina e Outros Poemas em Voz Alta. Posteriormente, a esta coletânea seria acrescentado o “Auto do frade”, poema dramático publicado em 1984. A “água” da comunicabilidade com o público desá-gua no “poema em voz alta” que tende irreversivelmente para a poesia dramática.

João Cabral de Melo Neto encontrou no teatro uma ponte para sua poesia estabelecer contato com um público que, sem o suporte da ação dramática, per-maneceria distante, intocado. Foi exatamente por meio de Morte e Vida Severina que o poeta pernambucano encontrou um veículo capaz de superar o “abismo que”, segundo ele, “separa hoje em dia o poeta de seu leitor”.

Morte e Vida Severina Deixemos que João Cabral de Melo Neto nos explique por que escreveu sua

obra mais conhecida:

Em 1952 alguns idiotas denunciaram a mim e a outros diplomatas como militantes comunistas. Fomos afastados do serviço diplomático e eu voltei ao Recife por quase dois anos. Fui trabalhar no escritório do meu pai e tentar sustentar a família enquanto processava o governo. Aí cruzei com Maria Clara Machado, filha do meu bom amigo mineiro Aníbal Machado. Ela me encomendou um auto de Natal para encenar. Escrevi Morte e Vida Severina. Ela leu e devolveu. Disse que não servia. Como o poema era grande e José Olympio queria lançar minha primeira antologia, cortei as marcações para o teatro e incluí Morte e Vida Severina no livro, para dar volume. Foi uma surpresa quando encontrei com Vinicius de Moraes no Rio e ele me disse: “Joãozinho, estou maravilhado com Morte e Vida Severina”. Aí eu não entendi nada. “Vinicius, eu não escrevi Morte e Vida Severina para intelectuais como você”, respondi. “Escrevi para os

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sujeitos analfabetos que ouvem cordel na feira de Santo Amaro, no Recife.” O poema é simples, retrata a típica realidade do pernambucano que foge da seca em busca do Recife e termina morando numa favela ribeirinha. Foi um sucesso mundial. Isso me orgulha, mas também me surpreende porque Morte e Vida Severina passou a ser coisa de eruditos. (MELO NETO, 1991, p. 17-18)

Morte e Vida Severina: auto de natal pernambucano foi escrito em 1954-1955, por encomenda de Maria Clara Machado, então diretora do grupo O Tablado, que não pôde levar a peça ao palco. Publicado inicialmente no livro Duas Águas (1956), o texto foi finalmente montado pelo grupo do Teatro da Universidade Católica de São Paulo (Tuca), com música de Chico Buarque de Holanda, dirigido por Roberto Freire e Silnei Siqueira, e obteve sucesso mundial durante turnê em 1966. A partir dessa data, passou a integrar o volume Poemas em Voz Alta, que reúne a parcela mais comunicativa da obra do “poeta-engenheiro”.

Um auto de Natal pernambucano: influências O subtítulo do livro revela seu débito para com os autos sacramentais da tra-

dição ibérica medieval, dos quais herda o teor poético e alegórico, com uma tendência à justaposição das cenas e à sátira dos costumes. Além de se inspirar na antiga poesia narrativa ibérica (os romances), João Cabral reelabora parodica-mente, nas cenas do presépio final, a poesia do folclore pernambucano. Outra clara influência na concepção do livro é o Regionalismo de 1930, com sua preo-cupação realista de observação, crítica e denúncia social que podemos encon-trar em autores como José Américo de Almeida (1887-1980), Rachel de Queiroz e, principalmente, Graciliano Ramos (1892-1953).

O enredo: da morte à vida severina A inversão do sintagma “vida e morte” no título da peça demonstra o percurso

do retirante Severino: ele parte da morte no sertão para encontrar a vida no Recife. Severino acompanha o rio Capibaribe e só vai encontrando pobreza e morte pelo caminho. Chegando ao Recife, foz do rio, isso se repete. Desesperançado, ele pensa em cometer suicídio atirando-se ao rio, quando testemunha o nascimento de uma criança que devolve a esperança à vida severina. Tanto morte quanto vida são severinas, adjetivo neológico formado a partir do nome próprio, pois ambas se aplicam a todos os severinos quase anônimos do sertão nordestino.

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O presépio ou o encontro com a vida (BARBOSA, 1989, p. 56-61)

As cenas finais de Morte e Vida Severina apresentam um presépio dentro da peça. Todas elas foram extraídas, quase literalmente, do folclore pernam-bucano, mais especificamente do livro de Pereira da Costa, Folk-lore Pernam-bucano: subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco, publica-do originalmente em 1908.

Uma mulher anuncia ao mestre carpina que seu filho nascera:

Estrutura geralMorte e Vida Severina se divide em 18 cenas ou fragmentos poéticos, todos

precedidos por um título explicativo de seu conteúdo, praticamente resumos do que encontramos no poema em si. Podemos separá-los em dois grandes grupos.

As primeiras 12 cenas descrevem a peregrinação de Severino. Trata-se do �“Caminho” ou “Fuga da morte”. Nessa parte, o poeta habilmente alterna monólogos de Severino e diálogos que ele trava ou escuta pelo caminho.

As últimas seis cenas apresentam “O presépio” ou o “Encontro com a vida”, �em que é descrito o nascimento do filho de José, mestre carpina (carpin-teiro), em clara alusão ao nascimento de Jesus.

Texto complementar

Compadre José, compadre, que na relva estais deitado. conversais e não sabeis que vosso filho é chegado? Estais aí conversandoem vossa prosa entretida:

não sabeis que vosso filhosaltou para dentro da vida?Saltou para dentro da vida ao dar seu primeiro grito;e estais aí conversando;pois sabeis que ele é nascido.

Trata-se de uma resposta a Severino, que indagara sobre saltar da vida para a morte. Aqui se dá o contrário, a criança salta para a vida.

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Em Pereira da Costa, encontramos a seguinte estrofe na “Loa do anjo anunciando às pastoras o nascimento do messias”:

Pastoras, belas pastoras,Que na relva estais deitadasDescansais, e não sabeis,Que a luz do céu é chegada?

O fragmento seguinte, como todo o presépio, é inspirado no material re-colhido por Pereira da Costa, que registrou nas “Jornadas”:

Todo o céu e terraVos cantem louvor,É Menino Deus,Nosso redentor.

João Cabral, ironicamente, adapta a fala dos vizinhos que se aproximam da casa do mestre carpina para:

– Todo o céu e a terralhe cantam louvore cada casa se tornanum mocambo sedutor.

– Cada casebre se tornano mocambo modelarque tanto celebram ossociólogos do lugar.

Certamente o poeta se refere aqui ao famoso ensaio do sociólogo recifen-se Gilberto Freyre, intitulado Sobrados e Mocambos (1936). A ironia está em tornar sedutores os mocambos (habitações miseráveis) ao celebrá-los como de certa forma o fez Gilberto Freyre.

As pessoas trazem presentes para o recém-nascido. Em Pereira da Costa, temos as “Ofertas das pastoras”, em que se lê:

Minha pobreza tal éQue uma oferta não achei!Na aldeia não encontreiCousa que fizesse fé;

Em Morte e Vida Severina, temos a reelaboração:

– Minha pobreza tal éque não trago presente grande:trago para a mãe caranguejos

pescados por esses mangues;mamando leite de lamaconservará nosso sangue.

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João Cabral adapta o original à situação de vida das populações ribei-rinhas ao Capibaribe, tornando concretos e locais os presentes oferecidos. Nesta cena enumera uma série de localidades – cidades pernambucanas e bairros de Recife – de onde se originariam os presentes:

– Eis ostras chegadas agoraapanhadas no cais da Aurora.– Eis tamarindos da Jaqueirae jaca da Tamarineira.– Mangabas do Cajueiroe cajus da Mangabeira.– Peixe pescado no Passarinho,carne de boi dos Peixinhos.– Siris apanhados no lamaçalque há no avesso da rua Imperial.– Mangas compradas nos quintais ricosdo Espinheiro e dos Aflitos.– Goiamuns dados pela gente pobreda Avenida Sul e da Avenida Norte.

João Cabral de Melo Neto, jogando com os nomes tão sugestivos – como já o notara Manuel Bandeira em “Evocação do Recife” – das ruas e bairros de Recife, cria um jogo quase surrealista. Na verdade, para quem não sabe que estes são nomes de bairros, a passagem é completamente surrealista.

Duas ciganas preveem o futuro da criança. Enquanto, em Pereira da Costa, uma delas era pessimista e a outra otimista, em Morte e Vida Severina a varia-ção das previsões se dá pelo fato de a primeira cigana prognosticar um futuro enlameado, terminando como pescador de siri e camarão, e a segunda preco-niza-o como operário, mudando-se das margens do Capibaribe para um mo-cambo melhor nos mangues do Beberibe, o outro rio que corta Recife:

Não o vejo dentro dos mangues,vejo-o dentro de uma fábrica:se está negro não é lama,é graxa de sua máquina,coisa mais limpa que a lamado pescador de maréque vemos aqui, vestidode lama da cara ao pé.

E mais: para que não pensemque em sua vida tudo é triste,vejo coisa que o trabalhotalvez até lhe conquiste:que é mudar-se destes manguesdaqui do Capibaribepara um mocambo melhornos mangues do Beberibe.

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A última cena do presépio apresenta todos os visitantes do recém-nasci-do elogiando, ainda seguindo Pereira da Costa, a beleza da criança. Trata-se de uma beleza diferente: pálida, franzina, fraca e magra, mas é beleza que é a afirmação da vida, o brotar da novidade:

– De sua formosuradeixai-me que diga:é tão belo como um simnuma sala negativa.[...]– Belo porque é uma portaabrindo-se em mais saídas.[...]– Belo porque tem do novoa surpresa e a alegria.

– Belo como a coisa novana prateleira até então vazia.– Como qualquer coisa novainaugurando o seu dia.– Ou como o caderno novoquando a gente o principia.

– E belo porque com o novotodo o velho contagia.

Terminado o presépio, o mestre carpina está pronto para responder à per-gunta de Severino:

– Severino retirante,deixe agora que lhe diga:eu não sei bem a respostada pergunta que fazia,se não vale mais saltarfora da ponte e da vida;nem conheço essa resposta,se quer mesmo que lhe diga;é difícil defender,só com palavras, a vida,ainda mais quando ela éesta que vê, severina;mas se responder não pudeà pergunta que fazia,ela, a vida, respondeu

com sua presença viva.E não há melhor respostaque o espetáculo da vida:vê-la desfiar seu fio,que também se chama vida,ver a fábrica que ela mesma,teimosamente, se fabrica,vê-la brotar como há poucoem nova vida explodida;mesmo quando é assim pequenaa explosão, como a ocorrida;mesmo quando é uma explosãocomo a de há pouco, franzina;mesmo quando é a explosãode uma vida severina.

Curiosamente, a peça se encerra sem qualquer resposta de Severino. Em al-gumas montagens, os encenadores colocaram a última estrofe na boca de Seve-rino e não, como está claro no texto, na do mestre carpina. Esse procedimento vem apenas reforçar a mensagem final da peça: a de que mesmo a vida quase morte severina, aparentemente sem saída ou esperança, pode e deve ser vivida.

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Estudos literários1. Leia atentamente o fragmento abaixo e depois responda o que se pede.

O retirante explica ao leitor quem é a que vai (fragmento)

(MELO NETO, 1994, p. 171)

O meu nome é Severino,não tenho outro de pia.Como há muitos Severinos,que é santo de romaria,deram então de me chamarSeverino de Maria;como há muitos Severinoscom mães chamadas Maria,fiquei sendo o da Mariado finado Zacarias.Mas isso ainda diz pouco:há muitos na freguesia,por causa de um coronelque se chamou Zacariase que foi o mais antigo

senhor desta sesmaria.Como então dizer quem falaora a Vossas Senhorias?Vejamos: é o Severinoda Maria do Zacarias,lá da serra da Costela,limites da Paraíba.Mas isso ainda diz pouco:se ao menos mais cinco haviacom nome de Severinofilhos de tantas Mariasmulheres de outros tantos,já finados, Zacarias,vivendo na mesma serramagra e ossuda em que eu vivia.

Aponte o tema central dos 30 primeiros versos da peça. Como estes versos justificam o neologismo severina do título da obra?

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2. Leia atentamente o fragmento abaixo e depois responda o que se pede.

Assiste ao enterro de um trabalhador de eito e ouve o que dizem do morto os amigos

que o levaram ao cemitério (fragmentos)(MELO NETO, 1994, p. 183-185)

– Essa cova em que estás,com palmos medida,é a conta menorque tiraste em vida.– É de bom tamanho,nem largo nem fundo,é a parte que te cabedeste latifúndio.– Não é cova grande,é cova medida,é a terra que queriasver dividida.– É uma cova grandepara teu pouco defunto,mas estarás mais anchoque estavas no mundo.– É uma cova grandepara teu defunto parco,porém mais que no mundote sentirás largo.– É uma cova grandepara tua carne pouca,

mas a terra dadanão se abre a boca.(...)– Será de terratua derradeira camisa:te veste, como nunca em vida.– Será de terrae tua melhor camisa:te veste e ninguém cobiça.– Terás de terracompleto agora o teu fato:e pela primeira vez, sapato.– Como és homem,a terra te dará chapéu:fosses mulher, xale ou véu.– Tua roupa melhorserá de terra e não de fazenda:não se rasga nem se remenda.– Tua roupa melhore te ficará bem cingida:como roupa feita à medida.

a) A ironia (acentuada por uma grande dose de humor negro) domina essa cena da peça. Por que poderíamos dizer que a ironia predomina na pri-meira estrofe?

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b) Comente a metáfora central da segunda estrofe.

3. Leia atentamente o fragmento abaixo e depois responda o que se pede.

Falam os vizinhos, amigos, pessoas que vieram com presentes etc. (fragmento)

(MELO NETO, 1994, p. 199-201)

– De sua formosuradeixai-me que diga:é belo como o coqueiroque vence a areia marinha.– De sua formosuradeixai-me que diga:belo como o avelóscontra o Agreste de cinza.– De sua formosuradeixai-me que diga:belo como a palmatóriana caatinga sem saliva.– De sua formosuradeixai-me que diga:é tão belo como um sim

numa sala negativa.– É tão belo como a socaque o canavial multiplica.– Belo porque é uma portaabrindo-se em mais saídas.– Belo como a última ondaque o fim do mar sempre adia.– É tão belo como as ondasem sua adição infinita.

– Belo porque tem do novoa surpresa e a alegria.– Belo como a coisa novana prateleira até então vazia.– Como qualquer coisa nova

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inaugurando o seu dia.– Ou como o caderno novoquando a gente o principia.

– E belo porque com o novotodo o velho contagia.

– Belo porque corrompecom sangue novo a anemia.– Infecciona a misériacom vida nova e sadia.– Com oásis, o deserto,com ventos, a calmaria.

A beleza do recém-nascido é traduzida, neste fragmento, por meio da reitera-ção de uma figura de linguagem.

a) Que figura é esta?

b) O que revela sobre a beleza da criança?

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4. Leia atentamente o fragmento abaixo e depois responda o que se pede.

O carpina fala com o retirante que esteve de fora, sem tomar parte em nada

(MELO NETO, 1994, p. 201-202)

– Severino retirante,deixe agora que lhe diga:eu não sei bem a respostada pergunta que fazia,se não vale mais saltarfora da ponte e da vida;nem conheço essa resposta,se quer mesmo que lhe diga;é difícil defender,só com palavras, a vida,ainda mais quando ela éesta que vê, severina;mas se responder não pudeà pergunta que fazia,ela, a vida, respondeucom sua presença viva.

E não há melhor respostaque o espetáculo da vida:vê-la desfiar seu fio,que também se chama vida,ver a fábrica que ela mesma,teimosamente, se fabrica,vê-la brotar como há poucoem nova vida explodida;mesmo quando é assim pequenaa explosão, como a ocorrida;mesmo quando é uma explosãocomo a de há pouco, franzina;mesmo quando é a explosãode uma vida severina.

Os textos “Falam os vizinhos...” e “O carpina fala com o retirante...” são as últi-mas falas da peça e claramente se opõem aos textos “O retirante explica ao leitor” e “Assiste ao enterro de um trabalhador de eito...”, do seu início. Pensan-do nessa diferença, explique como o texto “O carpina fala com o retirante...” justifica o título da peça.

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5. Leia atentamente os fragmentos abaixo e depois responda o que se pede.

Buenadicha das ciganas(CANTIGA POPULAR PERNAMBUCANA apud COSTA, 1974, p. 484-486)

Atenção, peço, SenhoresPara esta breve leitura,E uma atenção piedosa A toda e qualquer criatura.

Deste menino formosoVindo de origem divina,Em suas mãos pequeninasEu vou ler a sua sina.

Dai-me licença, Senhora,Guiai o meu pensamento,Para dizer o que sinto,Para falar com acento.

Eterno rei desses céus,Que dando ao mundo alegria,Por prodígios só nasceuDa Santa Virgem Maria.

Redentor da humanidadeNascido p’ra nosso guia,Mudou o céu em presepeTransformou a noite em dia.

Se a boa dita é a nossa,Quereis meu bem, que vos diga,É a mesma que bem sabeis,Mas permiti que prossiga.

Dai-me soberano infanteDai-me esta linda mãozinha,E vereis que uma ciganaA vossa sina adivinha.

Primeiramente a meus olhosVejo com suma alegria,Que sois com um grande extremoQuerido de uma Maria.

E prevenida ela um diaPelo supremo Juiz,Fugirá cedo convoscoP’ra o mais remoto país.

E decorridos doze anosDe tão doce companhia,Terá milhares de penasSem lhe escapar um só dia.

Enquanto andardes no mundoSereis sempre perseguido,Mas, pelos prodígios divinos,Jamais vós sereis vencido.

Um amigo que no rostoCerto dia vos beijar,Às mãos cruéis da justiça,Ele vos há de entregar.

Outro vos há de negar,Em perguntas à porfia,Respondendo que não sabeQuem sois vós, minha alegria.

Não tereis vida mui larga,Pois com as mãos estendidas

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Atirarão numa cruzUns ingratos homicidas.

E depois de redimirdesA humanidade querida,Vencereis a própria morte,

Lograreis a eterna vida.Se porque digo a verdadeMereço eu uma esmolinha,Dai-me só a vossa graçaE a todos desta lapinha.

Falam as duas ciganas que haviam aparecido com os vizinhos

(MELO NETO, 1994, p. 198)

– Atenção peço, senhores,para esta breve leitura:somos ciganas do Egito,lemos da sorte futura.Vou dizer todas as coisasque desde já posso verna vida desse meninoacabado de nascer:aprenderá a engatinhar por aí, com aratus,aprenderá a caminharna lama, com goiamuns,e a correr o ensinarãoos anfíbios caranguejos,pelo que será anfíbiocomo a gente daqui mesmo.Cedo aprenderá a caçar:primeiro, com as galinhas,que é catando pelo chãotudo o que cheira a comida;depois, aprenderá comoutras espécies de bichos:com os porcos nos monturos,

com os cachorros no lixo.Vejo-o, uns anos mais tarde,na ilha do Maruim,vestido negro de lama,voltar de pescar siris;e vejo-o, ainda maior,pelo imenso lamarãofazendo dos dedos iscaspara pescar camarão.

– Atenção peço, senhores,também para minha leitura:também venho dos Egitos,vou completar a figura.Outras coisas que estou vendoé necessário que eu diga:não ficará a pescarde jereré toda a vida.Minha amiga se esqueceude dizer todas as linhas;não pensem que a vida delehá de ser sempre daninha.Enxergo daqui a planura

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que é a vida do homem de ofício,bem mais sadia que os mangues,tenha embora precipícios.Não o vejo dentro dos mangues,vejo-o dentro de uma fábrica:se está negro não é lama,é graxa de sua máquina,coisa mais limpa que a lamado pescador de maréque vemos aqui, vestido

de lama da cara ao pé.E mais: para que não pensemque em sua vida tudo é triste,vejo coisas que o trabalhotalvez até lhe conquiste:que é mudar-se destes manguesdaqui do Capibaribepara um mocambo melhornos mangues do Beberibe.

É inegável e transparente a influência da “Buenadicha das ciganas”, da tra-dição popular pernambucana, certamente anterior ao século XX, sobre “Falam as duas ciganas”, a fala das ciganas no presépio de Morte e Vida Severina. João Cabral mesmo já confessou que se inspirou no livro de Pereira da Costa, que reúne esse material folclórico, para compor seu poema dramático.

a) Aponte as semelhanças entre os dois textos.

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b) Indique as diferenças entre os dois textos em termos formais.

c) Indique as diferenças entre os conteúdos de um texto e outro.

d) Aponte as diferenças entre as profecias das duas ciganas de Morte e Vida Severina.

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O grupo NoigandresTirando o nome de uma palavra misteriosa, utilizada pelo trovador pro-

vençal Arnaut Daniel (séc. XIII) e comentada por Ezra Pound (1885-1972) no Canto XX dos seus Cantares, que posteriormente descobriram signifi-car “antídoto do tédio”, três jovens paulistas, com pouco mais de 20 anos de idade, formaram, em 1952, o grupo Noigandres, que acabaria por re-volucionar a poesia mundial. Reagindo contra o formalismo academicista da retrógrada Geração de 1945 e procurando recuperar o espírito perma-nentemente revolucionário de 1922, Décio Pignatari e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos investigavam as possibilidades de uma poesia que fosse além do verso e procurasse novas formas de expressão. E fizeram isso ao mesmo tempo em que outros poucos jovens como o suíço Eugen Gomringer também o faziam na Europa.

Demonstrando uma riqueza cultural descomunal que em nada ficava devendo aos seus contemporâneos europeus ou americanos e, por isso mesmo, livres da xenofobia covarde ou do complexo de inferioridade sub-serviente – os dois opostos complementares que sempre marcaram (e marcam) a maioria dos intelectuais e escritores brasileiros –, desde o início Pignatari e os irmãos Campos se propuseram a realizar a proeza sonhada pelo “antropófago” Oswald de Andrade de produzir, no Brasil, uma litera-tura de teor, qualidade e importância universais.

Poesia concreta

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No célebre ensaio Tradition and The Individual Talent (1917), T. S. Eliot (1888-1965) já apontava que todo artista que se tornou definitivamente significativo teve de encontrar meios de se inserir na tradição. Para tanto – logo descobriram os jovens componentes do Noigandres –, é necessário conhecê-la a fundo, principalmente para vislumbrar, dentro da própria tradição, formas de reestruturá-la, acrescentan-do algo de novo, muitas vezes sintetizando e tornando conscientes (e mesmo pro-gramáticos) processos frequentemente apenas esboçados e apontados por artistas do passado. Assim, Pignatari e os irmãos Campos passaram a estudar com afinco os momentos mais inventivos e radicais da produção poética nas diversas línguas que dominavam ou que, na sua curiosidade inquieta, passaram a estudar. Acabaram por sintetizar a essência de experiências que combinavam a palavra e a visualidade, como as do poeta grego Símias de Rodes (séc. III a.C.), as dos chamados metaphysical poets ingleses Robert Herrick (1596-1674) e George Herbert (1593-1633), assim como seu contemporâneo Gregório de Matos (1623-1696), os calligrammes de Guillaume Apollinaire (1880-1918), as experimentações tipográficas do Un Coup de Dés de Stéphane Mallarmé (1842-1898) e dos poemas mais radicais de e. e. cummings (1894-1962), ou mesmo, no Brasil, os poemas de Oswald de Andrade (1890-1954) que já uniam palavra e grafismo.

Mesclaram ainda o estudo desses e de inúmeros outros poetas do passado à observação atenta da arte mais inovadora produzida então no mundo: tanto por artistas plásticos – como Theo van Doesburg (1883-1931) e Max Bill (1908-1994) ou, no Brasil, pelo grupo Ruptura (que lançara o seu Manifesto exatamente em 1952) – quanto por músicos revolucionários como Anton Webern (1883-1945), Arnold Schönberg (1874-1951) e Pierre Boulez (nascido em 1925). Os estudos de Ernest Fenollosa (1853-1908) sobre os ideogramas1 chineses forneceram uma formidável sustentação teórica para a defesa intransigente da concisão e a capa-cidade de síntese na poesia, já então representada, no Brasil, por João Cabral de Melo Neto (1920-1999).

A poesia concreta: rock’n’roll da poesia? Assim, em 1953, Augusto de Campos, aos 22 anos de idade, compôs uma

série de poemas coloridos e dispostos de maneira original na página. Inspirados na música de vanguarda de Anton Webern, os textos de Poetamenos podem ser considerados os primeiros exemplos da poesia concreta.

1 Ideograma: símbolo não fonético que representa um objeto ou uma ideia; caráter composto da escrita chinesa obtido pela combinação de dois ou mais outros caracteres representativos de palavras com sentido relacionado.

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(CAMPOS, 2001, p. 77)

No final de 1956, o grupo Noigandres organizou, com artistas plásticos e outros poetas que aderem ao movimento, uma exposição em São Paulo, trans-posta no início de 1957 para o Rio de Janeiro, em que a poesia concreta foi lan-çada para o Brasil e para o mundo.

Começava então a polêmica recepção do movimento revolucionário, que já dura cinco décadas. A revista O Cruzeiro, de março de 1957, trazia a manchete “O rock’n’roll da poesia” sobre o surgimento do movimento. A ideia é que fosse uma moda passageira e insignificante, “maluca” como a música que surgira poucos anos antes nos Estados Unidos. Duplo engano. Nem o rock nem a poesia concre-ta morreram. Nascendo na mesma época da bossa nova e do rock’n’roll, a poesia concreta é o primeiro estilo literário a surgir, senão antes, ao menos ao mesmo tempo no Brasil e no resto do mundo. Em uma literatura que sempre se viu atre-lada às modas que vieram de fora, esse é um fenômeno único.

Mas nem por isso a admiração pela poesia concreta é unanimidade. Ainda hoje o radicalismo da experimentação, como a destruição do verso, as experiências de disposição original das palavras na página, a desintegração da própria palavra ou a recusa à poesia discursiva assustam e afastam a mentalidade conservadora

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brasileira, gerando polêmicas acaloradas ou, pior ainda, uma estratégia de rasura bastante evidente: no Brasil, muitos fingem que nada aconteceu, enquanto os seus criadores são homenageados e celebrados nas mais prestigiosas universi-dades dos Estados Unidos e da Europa. Até mesmo a infatigável busca das fontes inspiradoras das suas propostas, realizada pelos três fundadores do movimento, tem sido criticada. Alguns chegam a afirmar que isso comprova que nada fizeram de original. Seria o mesmo que acusar um grande cientista, como Einstein – capaz de sintetizar as ideias que estavam no ar, porém dispersas, no seu tempo –, de mero repetidor.

O contextoQuando aqueles três rapazes – Décio, Haroldo e Augusto – começaram a pu-

blicar a revista Noigandres e iniciaram um movimento de rearticulação de uma série de ideias captadas em São Paulo e que estavam surgindo no mundo do pós-guerra, São Paulo e o Brasil se colocaram, pela primeira e única vez, na van-guarda da literatura em todo o mundo.

E quais eram as circunstâncias que tornaram possível, neste país do Terceiro Mundo, que jovens de 21 a 25 anos conseguissem ler o que havia de mais novo, interessante e avançado em toda a literatura do mundo na época?

Eles eram jovens extremamente cultos, capazes, que dominavam muitas lín-guas e tinham uma grande vantagem – é importante ressaltar – em relação aos europeus do pós-guerra, que naquele momento estavam em países que se re-cuperavam dos efeitos do conflito. Vantagem, porque recebiam a informação da Europa, mas não as suas atribulações: podiam ler coisas dos mais diversos locais; tinham o acesso e a possibilidade de se desenvolver com a tranquilidade de que os europeus não desfrutavam.

Nesse mesmo período, surgiram várias manifestações culturais muito impor-tantes, por exemplo, nos Estados Unidos.

Em julho de 1951, um senhor chamado Albert James Freed ou Alan Freed (1921-1965) iniciou um programa noturno de música negra intitulado The Moon-dog Show em uma rádio “branca” de Cleveland, Ohio, e resolveu nomear as mú-sicas tocadas de rock’n’roll. Havia então, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, uma riqueza econômica muito grande (pós-guerra), o acesso à informa-ção de diversos pontos do mundo e, no Brasil, uma esperança de que o país se transformaria e melhoraria em breve.

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Sobre o movimento da poesia concreta, Mário Faustino afirmou que

[…] a poesia brasileira estava precisando, desesperadamente, de um acontecimento, de um shake up. Aí um grupo de três rapazes, dois dos quais irmãos, e aos quais outros ir-se-iam, com o tempo, acrescentando, reúne-se em São Paulo para tratar de poesia. Têm os instrumentos: cultura geral em dia, conhecimento sério das outras artes, sentimento de época, sentimento do mundo, titanismo, espírito revolucionário, uma ou duas línguas mortas, meia dúzia de línguas vivas, vontade de ler, de trabalhar, de escrever, de “fazer o novo” [make it new]. Leem (direito) os alemães e outros centro-europeus, os americanos, os ingleses, os franceses, os italianos. João Cabral já estava se encarregando do que há em espanhol. Incorporam devidamente (e não como fizeram os nossos “parnasianos” e os nossos “simbolistas”) essas tradições culturais à nossa cultura. Sabem que Mallarmé e Pound são mais importantes para o progresso da poesia do que Baudelaire e Eliot. Formulam e discutem problemas culturais, sociais, filosóficos e, em especial, estéticos. Nos domínios do verso chegam, todos os três, rapidamente, ao nível do que melhor já se fizera antes deles no Brasil, frequentemente, no detalhe, ultrapassando esse nível. Saem dos domínios do verso e tentam novos caminhos poéticos. Mas estão em São Paulo e as distâncias, neste país, representam mais do que em geral se pensa. Muitas das poucas pessoas que aqui no Rio tomam a sério a poesia levam muito tempo ainda sem ouvir falar nos três […]. (FAUSTINO, 1977, p. 136)

Fica muito claro que esse acesso à cultura e à informação fez com que esses jovens poetas procurassem sintetizar algo de novo a partir de todas essas lei-turas. Em um livro que apresenta várias traduções – Invenção, de Augusto de Campos – lembra-se de que

A literatura italiana antiga e moderna foi sendo visitada por Pignatari, por Haroldo de Campos e por mim, especialmente através da velha Loja do Livro Italiano na Rua Barão de Itapetininga, onde, no pós-guerra, adquiríamos preciosidades encalhadas, como os livros de poesia moderna da coleção Lo Specchio, da Mondadori. (CAMPOS, 2003a, p. 260)

É impressionante (e este é apenas um exemplo) a possibilidade do grupo para encontrar informação. Hoje, desde bem jovens muitos já se acostumaram a procurar na internet o que desejam, em qualquer lugar do mundo. Naquele momento, era a intensa movimentação cultural da cidade de São Paulo que per-mitia o acesso a essa literatura.

As propostas Vamos ler algumas das proposições dos jovens concretistas. No “Plano-piloto

para a poesia concreta”, os três apresentaram a seguinte proposta: “poesia con-creta: produto de uma evolução crítica de formas, dando por encerrado o ciclo histórico do verso” (CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, 1965, p. 154). Muitos disse-ram que eles estavam afirmando que não se poderia mais escrever poesia em versos, mas não é isso o que está escrito. Em um texto mais ou menos da mesma época (“Arte concreta: objeto e objetivo”), Décio Pignatari afirma que,

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Finalmente, cumpre assinalar que o concretismo não pretende alijar da circulação aquelas tendências que, por sua simples existência, provam sua necessidade na dialética da formação da cultura. Ao contrário, a atitude crítica do concretismo o leva a absorver as preocupações das demais correntes artísticas, buscando superá-las pela empostação coerente, objetiva, dos problemas. (PIGNATARI, 1965, p. 38)

Então, eles procuram romper com o verso propondo algo no lugar. Vamos ver o quê:

[…] dando por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal), a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural, espaço qualificado: estrutura espácio-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear. (CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, 1965)

Ou seja, em vez de se ler de maneira linear, contínua, faz-se uma leitura do espaço todo, como um quadro. E, nesse todo, muitas vezes entra-se para ler o particular. Até hoje, na poesia de Augusto de Campos, por exemplo, há várias leituras possíveis dentro do mesmo poema, e

[...] daí a importância da ideia de ideograma, desde o seu sentido geral de sintaxe espacial ou visual, até o seu sentido específico (fenellosa/pound) de método de compor baseado na justaposição direta – analógica, não lógico-discursiva – de elementos. “il faut que notre intelligence s’habitue à comprendre synthético-ideógraphiquement au lieu de analytico-discursivement” [“é preciso que a nossa inteligência se habitue a compreender sintético- -ideograficamente, no lugar de analítico-discursivamente”] (apollinaire). Eisenstein: ideograma e montagem. (CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, 1965)

Em outras palavras, abandonando esse discurso linear, lógico-discursivo, o leitor buscará um discurso que seja a própria tradução do nosso tempo: de im-pacto, de leitura imediata e, simultaneamente, de decifração e de relação por meio da justaposição das imagens e das ideias, como no ideograma.

Continuando, “precursores: mallarmé (un coup de dés, 1897): o primeiro salto qualitativo”. Essa é uma referência a “Um lance de dados”, o poema em que, procu-rando e assumindo a importância da música na sua obra, Mallarmé utiliza várias ti-pografias (fontes) diferentes, diversos tamanhos de letra, para compor distintas me-lodias que vão se contrapondo (ele falava, inclusive, em fuga) durante o poema:

subdivisions prismatiques de l’idée [“subdivisões prismáticas da ideia”]; espaço (blancs) e recursos tipográficos como elementos substantivos da composição. pound (the cantos): método ideogrâmico. joyce (ulysses e finnegans wake): palavra-ideograma; interpenetração orgânica de tempo e espaço. cummings: atomização de palavras, tipografia fisionômica; valorização expressionista do espaço. apollinaire (calligrammes): como visão, mais do que como realização. (CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, 1965)

Aqui há uma consideração muito importante, pois durante muito tempo as pessoas associaram os calligrammes de Apollinaire, esse tipo de realização, com a poesia concreta. Augusto de Campos faz uma observação sobre isso:

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Condena, assim, Apollinaire, o ideograma poético à mera representação figurativa do tema. Se o poema é sobre chuva (Il Plut), as palavras se dispõem em cinco linhas oblíquas. Composições em forma de coração, relógio, gravata, coroa se sucedem em Calligrammes. É certo que se pode indagar aqui o valor sugestivo de uma relação fisionômica entre as palavras e o objeto por elas representado, à qual o próprio Mallarmé não teria sido indiferente. Mas ainda assim cumpre fazer uma distinção qualitativa. No poema de Mallarmé, as miragens gráficas do naufrágio da constelação se insinuam tênue, naturalmente, com a mesma naturalidade e discrição com que apenas dois traços podem configurar o ideograma chinês para a palavra homem. Da mesma forma, os melhores efeitos gráficos de cummings, almejando a uma espécie de sinestesia do movimento, emergem das palavras mesmas, partem de dentro para fora do poema. Já em Apollinaire, a estrutura é evidentemente imposta ao poema, exterior às palavras, que tomam a forma do recipiente, mas não são alteradas por ele. Isso retira grande parte do rigor e da riqueza fisionômica que possam ter os caligramas, em que pese a graça e o “humor” visual com que quase sempre são “desenhados” por Apollinaire. (CAMPOS, 1965, p. 19)

Nesse texto de 1956, Augusto de Campos já antecipa claramente algo que, depois, será de certa forma uma praga para a poesia concreta: os diluidores, que se poderiam chamar de “diluidores de Apollinaire”, e que nada têm a ver com a poesia concreta propriamente dita.

Para exemplificar a diferença, podemos tomar um poema de Augusto de Campos bem típico da fase mais radical, ou, digamos, mais combativa da poesia concreta: “Pluvial”. É a representação da chuva, mas não simplesmente seu desenho.

(CAMPOS, 2001, p. 106)

A palavra pluvial figura seis vezes, no sentido descendente, enquanto vai se for-mando a palavra fluvial na horizontal. Assim, a chuva caindo se transforma no rio: pluvial/fluvial. Como Augusto afirmou no texto acima, a poesia deve se realizar de dentro para fora – por exemplo, a partir da descoberta da relação entre pluvial e fluvial, ele constrói o poema. Algumas pessoas podem dizer que isso é fácil. É como falar que “No meio do caminho tinha uma pedra”, poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), seja fácil. O mesmo se aplica para o poema “Viva Vaia”:

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(CAMPOS, 2001, p. 204-205)

O viva escrito com as letras que Augusto escolheu, quando virado, torna-se vaia, mas note-se que o viva vira vaia. A antítese é muito forte: viva é elogio, vaia é reprovação. Tudo isso em uma mesma palavra. E também em um momen-to importante: Augusto de Campos fez este poema em homenagem a Caetano Veloso, quando o cantor-compositor foi vaiado durante sua apresentação no Festival da Record, cantando “É proibido proibir”. Assim, o texto não é somente a descoberta, a “brincadeirinha” de viva e de vaia: é também a afirmação de que, na verdade, deve-se ser vaiado e gostar de ser vaiado. O grande artista deve cul-tivar aquilo que o público vaia, e não o que o público aplaude.

Do plano-piloto para poesia concreta(CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, 1965, p. 157)

poesia concreta: tensão de palavras-coisas no espaço-tempo, estrutu- �ra dinâmica: multiplicidade de movimentos concomitantes. também na música – por definição, uma arte do tempo – intervém o espaço (webern e seus seguidores: boulez e stockhausen; música concreta e eletrônica); nas artes visuais – espaciais, por definição – intervém o tempo (mondrian e a série boogiewogie, max bill; albers e a ambiva-lência perceptiva; arte concreta, em geral). ideograma: apelo à co-municação não-verbal. o poema concreto comunica a sua própria estrutura: estrutura-conteúdo. o poema concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensa-ções mais ou menos subjetivas. Seu material: a palavra (som, forma visual, carga semântica). seu problema: um problema de funções-

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relações desse material. fatores de proximidade e semelhança, psicologia de gestalt. ritmo: força relacional. o poema concreto, usando o sistema fonético (dígitos) e uma sintaxe analógica, cria uma área linguística específica – “verbivocovisual” – que participa das van-tagens da comunicação não-verbal, sem abdicar das virtualidades da palavra, com o poema concreto ocorre o fenômeno da metacomu-nicação: coincidência e simultaneidade da comunicação verbal e não-verbal, com a nota de que se trata de uma comunicação de formas, de uma estrutura-conteúdo, não da usual comunicação de mensagens.

Os autoresNesses mais de 50 anos que se passaram desde a criação do Noigandres, os

trabalhos individuais de seus membros – como poetas, tradutores, pesquisado-res e críticos – em muito ampliaram as fronteiras das suas propostas iniciais.

Décio Pignatari Nascido em Jundiaí (SP) em 1927, publicou seu primeiro livro, O Carrossel, em 1950,

ainda sob influência dos neomodernistas de 1945. Sua poesia, reunida em Poesia, Pois é, Poesia (1977), apresenta, além dos textos concretos, experiências com a “poesia se-miótica”, em que usa símbolos e não palavras. Introduziu a linguagem concreta na propaganda e se tornou um dos maiores especialistas brasileiros em semiótica, tendo sido professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e na Faculdade de Ar-quitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Levando seu espírito inquieto para além da poesia, publicou o livro Panteros (1992), de prosa poética.

beba coca cola babe cola beba coca babe cola caco caco cola c l o a c a

(PIGNATARI, 1986, p. 113)

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Haroldo de Campos O paulistano Haroldo de Campos (1929-2003) foi o mais barroco dos con-

cretos e lançou seu primeiro livro, Auto do Possesso, em 1950. Sua poesia está reunida nos volumes Xadrez de Estrelas (1976), Signantia: Quasi Coelum (1979), A Educação dos Cinco Sentidos (1985), Os Melhores Poemas de Haroldo de Campos (1992) e Crisantempo (1998). Além de numerosos ensaios críticos, publicou, em 1984, seu “livro de ensaios”, na realidade um longo poema em prosa, Galáxias, escrito entre 1963 e 1973 e, em 2000, três anos antes de falecer, o longo poema escrito em terza rima, A Máquina do Mundo Repensada.

Eis um fragmento do poema em prosa Galáxias (1963-1973), de Haroldo de Campos, que foi musicado por Caetano Veloso no disco Circuladô:

circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá e viva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá soando como um shamisen e feito apenas com um arame tenso um cabo e uma lata velha num fim de festafeira no pino do sol a pino mas para outros não existia aquela música não podia porque não podia popular aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina não tarantina e no entanto puxada na tripa da miséria na tripa tensa da mais megera miséria física e doendo doendo como um prego na palma da mão um ferrugem prego cego na palma espalma da mão coração exposto como um nervo tenso retenso um renegro prego cego durando na palma polpa da mão ao sol enquanto vendem por magros cruzeiros aquelas cuias onde a boa forma é magreza fina da matéria mofina forma de fome o barro malcozido no choco do desgosto até que os outros vomitem os seus pratos plásticos de bordados rebordos estilo império para a megera miséria pois isto é popular para os patronos do povo mas o povo cria mas o povo engenha mas o povo cavila o povo é o inventalínguas na malícia da mestria no matreiro da maravilha (CAMPOS, 1984, p. 29)

Augusto de Campos Nascido em 1931, Augusto de Campos é o mais radical dos inventores da

poesia concreta e até hoje se mantém absolutamente fiel às propostas iniciais de uma poesia antidiscursiva, sintética, visual e contundente. Publicou seu primeiro livro, O Rei Menos o Reino, em 1951. Durante a década de 1970, em colaboração com o artista plástico Julio Plaza, lançou Poemóbiles (1974) e Caixa Preta (1975), dois volumes de “poemas-objeto” contendo textos tridimensionais.

Dois livros apresentam o básico de sua obra: Viva Vaia - Poesia 1949-1979 (1979) e Despoesia (1994). Tem publicado vários livros de ensaios críticos.

Atuante crítico de música na década de 1960, foi um dos primeiros a reconhe-cer o talento poético de Caetano Veloso e Gilberto Gil, em ensaios reunidos no livro No Balanço da Bossa (1968).

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Poesia concreta

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Atualmente, dedica-se a investigar novos meios para a poesia, como a holografia e a computação gráfica, e lançou, em parceria com seu filho, o músico Cid Campos, um CD com leituras criativas de seus poemas e traduções, Poesia é Risco (1994).

Augusto de Campos e a cidade Vejamos o poema “Cidade”, que Augusto de Campos escreveu em 1963. É um

poema muito simples, embora as pessoas tenham uma certa dificuldade imediata na sua leitura. Foi feito para ser apresentado assim, passando rápido, como um letreiro:

atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubrimendimulti-pliorganiperiodiplastipublirapareciprorustisagasimplitenaveloveravivaunivo-racidade

(CAMPOS, 2001, p. 114-115)

O impacto inicial do poema é o de provocar no leitor a impressão de que se trata de uma confusão sem sentido, uma balbúrdia, um balbuciar ininteligível.

Analisemos, no entanto, o modo como é composto: é uma palavra só, e esta palavra é subdividida em vários pedaços (não prefixos porque, na verdade, não são prefixos gramaticalmente): “atro, cadu, capa, causti, dupli, elasti, feli, fero, fuga, histori, loqua, lubri, mendi, multipli, organi, periodi, plasti, publi, rapa, recipro, rusti, saga, simpli, tena, velo, vera, viva, uni, vora, cidade, city, cité”. Augusto de Campos escolheu segmentos que formam palavras em português com o segmento ou termo cidade, e também formam palavras com city, em inglês, e com cité, em fran-cês (por exemplo, velocidade, velocity, velocité). Então, simultaneamente o poema se constrói em português, inglês e francês. Existe uma organização muito clara.

Percebe-se também que os fragmentos estão organizados em ordem alfa-bética: “atro, cadu, capa, causti, dupli, elasti, feli, fero, fuga…” Mas essa ordem rigorosamente alfabética é quebrada no final: “viva uni vora cidade”.

Por quê?

Pode-se até interpretar isso como sendo um momento de ruptura.

Quando se tem essa organização, essa ordem toda rompida no final, o que se depreende?

A cidade talvez não seja tão organizada quanto se imagina. Ou então aqui se dá a criação de uma outra palavra, que, na verdade, não é “uni”, é “oni”, o que

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seria “onívora cidade”: uma cidade que tudo devora. Uma cidade onívora é uma cidade devoradora de tudo.

Portanto, isso que parece, a princípio, algo gratuito, não é assim. É absoluta e rigorosamente organizado.

O que se pode interpretar além disso? Será que, por trás da cidade, que parece tão caótica, por trás desse caos, não existe uma profunda organização?

Uma profunda organização que explica, inclusive, por que o caos predomina na cidade moderna.

A cidade de São Paulo aparece claramente aqui?

Sim: ainda que não seja um poema apenas sobre São Paulo, alguns traços dessa cidade são muito perceptíveis – o fato de o texto estar em francês, inglês e português revela o pendor cosmopolita de São Paulo, que já havia no Álvares de Azevedo, quando ele, por exemplo, em Noite na Taverna, em vez de localizar os seus contos em São Paulo, situa-os na Europa. Esse pendor está no “Cidade”. Está também, é claro, a mescla cultural dessa cidade, o fato de a cidade representar o mundo inteiro, ao mesmo tempo, agora.

Vinte anos depois de “Cidade”, em 1983, Augusto de Campos escreve um poema intitulado “SOS”.

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Trata-se de um texto muito diferente de “Cidade”. Primeiro porque se afirma uma egotrip, uma viagem do ego, do eu. É um poema que não tem mais a li-nearidade de “Cidade”. Ao contrário, produzido no começo da década de 1980, ele se dirige para dentro de si: o eu lírico se volta para dentro e externa um grande pedido de socorro dentro da cidade grande. Aqui não é a poesia retra-tando necessariamente a cidade, mas é o sentimento de estar em São Paulo se retratando cruamente: “vagaremos sem voz silencioso sos”. Esse desespero e essa ausência de solidariedade entre as pessoas perspassam o poema. O texto, ao contrário do poema da década de 1960, não reflete mais uma cidade com saídas e sim um eu lírico se fechando em desespero, em meio à indiferença agressiva da cidade caótica.

Pouco depois, Augusto faria um poema muito interessante sobre a vida na cidade, remetendo a Mallarmé – “tvgrama I”:

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Nesse poema os tês são evidentemente a reprodução das antenas de TV, mas também são túmulos. O subtítulo do poema é “tombeau de mallarmé” (tumba de Mallarmé) – o túmulo não só de Mallarmé mas também da cultura livresca, que morre quando as coisas não existem mais para terminar em livro, como pensava Mallarmé, e sim para acabar em TV. Na São Paulo contemporânea encontram-se televisores em todos os lares, em muitos dos quais não se encontra um livro. Evi-dentemente a visão da cidade vai se tornando sempre mais crítica e sombria.

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Um outro poema da mesma época e do mesmo teor é o “tvgrama II”.

(CAMPOS, 1994, p. 111)

Nesse poema o universo da cidade – em processo de radicalização do “tvgra-ma I” – já se encontra entrelaçado às TVs. A palavra TV faz a ligação com a frase “sobre as telhas velhas/ bernart de ventadorn/ em vez de cotovias/ entreouvidas apenas/ entrevês entre vídeos/ bentevis nas antenas”.

De certa maneira, é um grande lamento nostálgico que ecoa a saudade de Mallarmé apresentada no poema anterior. Agora, em vez das cotovias de Bernart de Ventadorn, vê-se essa imagem absolutamente complexa da cidade, repleta de antenas de TV servindo de pouso aos bem-te-vis. Metonimicamente, as ante-nas refletem a cultura televisiva e consumista se impondo ao universo da leitura e do pensamento complexo. A cidade emburrece.

A relação de Augusto de Campos com a cidade de São Paulo vai, de certa manei-ra, infiltrando-se na composição dos seus poemas. Neles, visualizamos toda a história da relação da população paulistana com a sua cidade. Percebe-se uma clara transfor-mação: tinha-se um grande orgulho e viam-se perspectivas de saída, de progresso para a cidade, e aos poucos essa perspectiva esperançosa vai, cada vez mais, sendo emparedada, destruída, e os paulistanos vão se sentindo em uma cidade sem saída. Acompanhando com atenção a evolução dos poemas de Augusto de Campos, nota- -se nitidamente esse processo de gradual desencantamento com a capital paulista.

Outros poetas Ao grupo Noigandres original, logo se somaram José Lino Grünewald (1931-

-2000) e Ronaldo Azeredo (1937-2006). Wlademir Dias Pino (1927) participou da

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exposição de 1956. A nova poesia fascinaria também poetas de gerações anterio-res, como Edgard Braga (1897-1985) e Pedro Xisto (1901-1987) e mesmo Manuel Bandeira (1886-1968), que arriscou algumas composições concretas. José Paulo Paes (1926-1998), que era oriundo do neomodernismo de 1945, durante anos aplicaria os métodos de composição concreta em poemas muito bem humora-dos. Posteriormente, viria a abandoná-los.

Além disso, a influência da poesia concreta pode ser detectada em inúmeros jovens poetas brasileiros.

Re-visões e traduções Além do trabalho poético próprio, destacam-se as traduções, de diversas

línguas, feitas por Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari. A lista é muito extensa: Mallarmé, Ezra Pound, Dante Alighieri (1265-1321), Johann Wol-fgang von Goethe (1749-1832), John Donne (1572-1631), William Shakespeare (1564-1616), Homero (séc. VIII a.C.), textos do Velho Testamento, e. e. cummings, Gertrude Stein (1874-1946), Arthur Rimbaud (1854-1891), Vladimir Maiakovski (1893-1930), a lírica provençal, Gerard Manley Hopkins (1844-1889), Rainer Maria Rilke (1875-1926), James Joyce (1882-1941)...

Traduzindo, os concretos tornaram acessível ao leitor de língua portuguesa muito do que há de mais rico e instigante na literatura universal.

Como se não bastasse isso, eles ainda pesquisaram a literatura brasileira e revi-talizaram o interesse por autores como Sousândrade (1833-1902), Pedro Kilkerry (1885-1917), Gregório de Matos e mesmo Oswald de Andrade.

Texto complementar

Plano-piloto para poesia concreta(CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, 1965, p. 157)

poesia concreta: produto de uma evolução crítica de formas. dando por en-cerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal), a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural.

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espaço qualificado: estrutura espácio-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear. daí a importância da ideia de ideograma, desde o seu sen-tido geral de sintaxe espacial ou visual, até o seu sentido específico (fenollo-sa/pound) de método de compor baseado na justaposição direta-analógica, não lógico-discursiva – de elementos: il faut que notre intelligence s’habitue à comprende synthético idéographiquement au lieu de analytico-discursivemente appollinaire. einsenstein: ideograma e montagem. precursores: Mallarmé (un coup de dés, 1897): o primeiro salto qualitativo: subddivisions prismatiques de l’idée; espaço (blancs) e recursos tipográficos como elementos substantivos da composição. pound (the cantos): método ideogrâmico. joyce (ulisses e finne-gans wake): palavra-ideograma; interpenetração orgânica de tempo e espaço. cummings: atomização de palavras, tipografia fisiognômica: valorização ex-pressionista do espaço, apollinaire (calligrammes): como visão, mais do que como realização. futurismo, dadaísmo: contribuições para a vida do proble-ma. no brasil: oswald de andrade (1890-1954): “em comprimidos, minutos de poesia”. joão cabral de melo neto (n.1920) – engenheiro e a psicologia da com-posição mais antiode): linguagem direta, economia e arquitetura funcional do verso. poesia concreta: tensão de palavras-coisas no espaço-tempo, estrutura dinâmica: multiplicidade de movimentos concomitantes. também na música – por definição, uma arte do tempo – intervém o espaço (webern e seus segui-dores: boulez e stockhausen; música concreta e eletrônica); nas artes visuais – espaciais, por definição – intervém o tempo (mondrian e a série boogiewo-gie, max bill; albers e a ambivalência perceptiva; arte concreta, em geral). ide-ograma: apelo à comunicação não-verbal. o poema concreto comunica a sua própria estrutura: estrutura-conteúdo. o poema concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas. seu material: a palavra (som, forma visual, carga semân-tica). seu problema: um problema de funções-relações desse material. fatores de proximidade e semelhança, psicologia de gestalt. ritmo: força relacional. o poema concreto, usando o sistema fonético (dígitos) e uma sintaxe analógica, cria uma área linguística específica – “verbivocovisual” – que participa das van-tagens da comunicação não-verbal, sem abdicar das virtualidades da palavra, com o poema concreto ocorre o fenômeno da metacomunicação: coincidên-cia e simultaneidade da comunicação verbal e não-verbal, com a nota de que se trata de uma comunicação de formas, de uma estrutura-conteúdo, não da usual comunicação de mensagens. a poesia concreta visa ao mínimo múltiplo comum da linguagem, daí a sua tendência à substantivação e à verbificação: “a

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Poesia concreta

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moeda concreta da fala” (sapir). daí suas afinidades com as chamadas “línguas isolantes” (chinês): “quanto menos gramática exterior possui a língua chinesa, tanto mais gramática interior lhe é inerente (humboldt via cassirer). o chinês oferece um exemplo de sintaxe puramente relacional baseada exclusivamente na ordem das palavras (ver fenollosa, sapir e cassirer).

ao conflito de fundo-e-forma em busca de identificação chamamos de isomorfismo, paralelamente ao isomorfismo fundo-formas, se desenvolve o isomorfismo espaço-tempo, que gera o movimento. o isomorfismo num primeiro momento da pragmática poética concreta, tende à fisognomia, a um movimento imitativo do real (motion); predomina a forma orgânica e a fenomenologia da composição, num estágio mais avançado, o isomorfismo tende a resolver-se em puro movimento estrutural (movement); nesta fase, predomina a forma geométrica e a matemática da composição (racionalis-mo sensível). renunciando à disputa do “absoluto”, a poesia concreta per-manece no campo magnético do relativo perene, cronomicrometragem do acaso, controle. cibernética. o poema como um mecanismo, regulando-se a si próprio: feedback. a comunicação mais rápida (implícito um problema de funcionalidade e de estrutura) confere ao poema um valor positivo e guia a sua própria confecção. poesia concreta: uma responsabilidade integral pe-rante a linguagem. realismo total. contra uma poesia de expressão, subjetiva e hedonística. criar problemas exatos e resolvê-los em termos de linguagem sensível. uma arte geral da palavra. o poema-produto:

post-scriptum 1961: “sem forma revolucionária não há arte revolucioná-ria” (maiacovski).

(Publicado originalmente em Noigandres, n. 4, São Paulo, 1958.)

Estudos literáriosOs poetas concretos apresentam vários poetas como seus precursores. Ob-

serve, abaixo, exemplos da poesia de cinco artistas muito mencionados pelos fundadores da poesia concreta e aponte como esses textos se relacionam ao movimento (mesmo que o poema se apresente em outra língua, não será difícil perceber como ele se articula com a poesia concreta).

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Modernismo na Literatura Brasileira

1. Poema de Apollinaire (1880-1918)

(APOLLINAIRE, 2008)

2. Poema de e. e. cummings (1894-1962)

so(lfol)l

(hac

ai)Itude

(CUMMINGS, 1999, p. 54)

3. James Joyce (1892-1941)

Escurece, tingetinto, nosso funamburlesco mundanimal. Lama-laguna, aquela, à beira-rota, é montada pela onda. Avemaréa! Somos circunvelopardos pela urubscuridade. Homens e bestas friam. Desejo de não fazer nada, nemnada. Só lã. Zoono bom! Sec, surd, sôbr´ulha jazer, pss, sus pira rr. Ah! Onde se escon-de nossa altanobre salve espôsestirpe? A doida da família está lá dentro. Haha! ZoÓsim, onde está ele? Em casa, que pena. Com Nancy Nana. Travetsetseiro. Cão

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Poesia concreta

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correu no milharal. Cão? Não. Isegrim orelhas-murchas. Até lobo! E ovelhas sinei-ras param sem fôlego. Todas. A trilha do Demo ainda não se vê, rolenrola, cerro acima, vale abaixo, vereda ruim para vagamundos. Nem atraviés da estrelândia aquela banda de prata. Que era sobressoa? Longonga é-tarde. Só longe, scielo! Silúmida, sus vê-se. Silene surge. Oh! Lun! Arca? No é? Nada mexe a moita. Ve-redas volúvias da libéluaranha pousam paz nos juncos. Refolham quedos seus folhos. Garças tácitas. Vale! Orvalha!

(JOYCE, 2001, p. 93)

4. Oswald de Andrade

amorHumor

(ANDRADE, 2000, p. 45)

5. Gregório de Matos (1636-1696)

(MATOS, 1976, p. 191)

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Gabarito

Vanguardas modernistas e a Semana de 221. Os itens 4 e 11 demonstram apreço à modernidade, com a exaltação

da tecnologia (automóvel, velocidade, eletricidade, locomotiva) e das cidades modernas. O item 9 mostra a proximidade com os ideais fas-cistas de ufanismo, militarismos, superioridade e paixão bélica e euge-nia. Os itens 3, 8 e 10 condenam o passadismo, a literatura “com sono”, perguntam-se “Para que olhar para trás” e pedem a destruição de mu-seus e bibliotecas.

2. O sapo-tanoeiro, chamado de “Parnasiano aguado”, defende a poe-sia métrica e rimada, sendo exaltado por todos os sapos, enquanto o sapo-cururu soluça solitário e sem glória, isolado. O sapo-tanoeiro representa a poesia parnasiana dominante na época e o sapo-cururu representa o poeta modernista incompreendido e rejeitado.

Vale ainda indicar o teor irônico com que o sapo-tanoeiro é represen-tado e o fato de que as características exaltadas por ele são aquelas que os modernistas criticavam.

O poema usa de recursos de rima e métrica para construir tal ironia.

3. O verso livre (sem métrica) e sem rimas, a linguagem popular, a cultura e as referências típicas do Brasil, além do título que evoca ao Dadá e os poemas recortados de jornais.

Oswald de Andrade1. Configura-se nesse exemplo o poema-piada, interessado em parodiar

amplos domínios da própria literatura, de forma simpática ou demoli-dora. A paródia simpática, como é, no caso, a de Oswald, focaliza costu-mes e tradições do povo. Já a paródia demolidora, que Oswald também praticou, volta-se contra as elites pretensiosas. Ambas propõem uma re-visão da cultura brasileira: impõe-se uma tradição de ruptura, baseada na crítica exacerbada, na negação contínua, na revolta permanente. Na

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Modernismo na Literatura Brasileira

visão dialética de Oswald de Andrade, “Precisamos descabralizar o Brasil”, pro-movendo o canibalismo cultural, um ato “marxilar”, segundo ele.

2.

Texto 1: O empenho em instaurar uma sensibilidade mais próxima da reali-dade nacional, com o propósito de renovar a cultura, muitas vezes tropicali-zando o cenário urbano dos anos de 1920.

Texto 2: A absorção poética de temas da modernidade – progresso, máqui-nas, novo urbanismo e nova cotidianidade.

3. A prosa de ficção modernista, inaugurada com este revolucionário romance, buscou renovar, notadamente, a estrutura de composição e os modos de expressão. Com base na leitura dos fragmentos de Memórias Sentimentais de João Miramar, podem ser apontados os seguintes índices dessa renovação:

divisão do romance em flashes e não mais em capítulos – técnica cinema- �tográfica aplicada à literatura;

estilo telegráfico – síntese e economia verbal; �

técnica cubista – a paisagem é captada de modo geométrico, como na �pintura de Picasso;

uso de neologismos – “morenava”. �

Mário de Andrade1. Coloquialismo, enumeração, pontuação alterada ou ausente nas enumera-

ções, cortes bruscos no discurso do narrador, neologismos.

2. Nos excertos, encontram-se dois evidentes pontos de contato entre as obras Iracema, de José de Alencar, e Macunaíma, de Mário de Andrade:

a criação de personagens indígenas – Iracema, da tribo tabajara, e � Macunaí-ma, da tribo tapanhuma – como heróis que representam a brasilidade;

a valorização da paisagem brasileira, com ênfase em seus aspectos pitores- �cos. Também poderia ser apontado outro elemento comum: a estilização literária de uma língua brasileira, diferenciada do registro lusitano, como se comprova, por exemplo, no plano léxico, pela utilização de vocabulário de origem tupi.

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Gabarito

3. Os dois autores exploraram a prosa poética, mas com diferenças estilísticas notáveis, dentre as quais se destaca o registro linguístico, que é elevado em Alencar e coloquial em Mário de Andrade. Há, também, diferenças decor-rentes da distância temporal e estética que os separa: enquanto Alencar é típico representante do Romantismo (séc. XIX), propenso à idealização na-cionalista, evidente na heroína Iracema, Mário de Andrade se identifica com o nacionalismo crítico do Modernismo (séc. XX), que se constata na criação da personagem Macunaíma como anti-herói.

Manuel Bandeira1.

a) Os trechos que poderiam ser citados são:

“Vinha da boca do povo na língua errada do povo.” �

“Ao passo que nós �

O que fazemos

É macaquear

A sintaxe lusíada.”

“Defesa da inventividade popular (“o povo é o inventa-línguas”, Maiakó- �vski) contra os burocratas da sensibilidade, que querem impingir ao povo, caritativamente, uma arte oficial, de ‘boa consciência’, ideologi-camente retificada, dirigida.”

b) O trecho é o seguinte:

“A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros

Vinha da boca do povo na língua errada do povo

Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil. “

2.

a) “Eu trabaio até de noite

Pra dá conta da empreitada.

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Modernismo na Literatura Brasileira

Pego moda por empreita

Pra inventá e pôr toada,

Invento moda na linha

Quando eu entro no salão

Com minha viola afinada,

Eu canto uma moda arta

E muito bem expricada,

Dizeno que eu não insurto

Mas topo quarqué parada.”

b) “O povo é o inventa-línguas, na malícia da mestria, no matreiro da maravilha. [...] O povo é o melhor artífice.”

3. O verso “Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.” justifica a afirmação de Oswald de Andrade: a conjugação do imperativo (“Entra”) é feita na segunda pessoa do singular e na sequência há uma mudança para o pronome de tra-tamento “Você”, característico da linguagem oral brasileira, que leva o verbo seguinte (“precisa”) a ser conjugado na terceira pessoa do singular.

A poesia da Geração de 1930 no Brasil1.

“Finas mãos pensativas” são as mãos dos intelectuais e juristas que partici- �param da Inconfidência Mineira, como Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga.

“Mãos de púlpito e altares” são as mãos dos sacerdotes que participaram �do movimento, como o Cônego Luís Vieira da Silva.

“Grossas mãos vigorosas” são as mãos dos militares que também se envol- �veram na Inconfidência, como Alvarenga Peixoto e o próprio Tiradentes.

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Gabarito

2. Esses dois textos não apresentam o mesmo conceito de poesia.

Para Vinícius de Moraes, a base do fazer poético é a vida, a palavra é apenas o instrumento e, portanto, a essência da poesia seria de natureza existencial: “O material do poeta é a vida, só a vida, com tudo o que ela tem de sórdido e sublime”.

Já para Carlos Drummond de Andrade, a essência da poesia estaria na explo-ração da linguagem, no trabalho com as palavras: “Penetra surdamente no reino das palavras”, sendo que os versos seguintes fundamentam a definição de poesia como trabalho com a palavra.

3.

a)

E rir meu � riso e derramar meu pranto

Ao seu � pesar ou seu contentamento.

Quem sabe a � morte, angústia de quem vive

Quem sabe a � solidão, fim de quem ama

b) O paradoxo se dá pelo fato de o amor ser considerado, ao mesmo tem-po, “não-imortal” e “infinito”. O paradoxo se resolve por meio do oximoro final: “infinito enquanto dure”. O amor deve ser, portanto infinito a cada momento, mesmo estando fadado a acabar, ou seja, deve ser desfrutado como algo eterno mesmo não o sendo.

Carlos Drummond de Andrade1. Sim, pois os textos de Torquato Neto e Chico Buarque referem-se claramente

ao “anjo torto” do poema de Drummond.

2. Todos os três são “gauche”, tortos, marginais à sociedade.

3. Na segunda, há uma prosopopeia: “As casas espiam os homens”. Na terceira, há uma sinédoque ou metonímia: “O bonde passa cheio de pernas”.

4. Significa perturbar a ordem estabelecida, incomodar a sociedade burguesa.

5. Trata-se de clara referência aos militares. O eu lírico não pode seguir carreira mili-tar: “ouvir clarim” seria um metonímia, significando relacionar-se com os militares.

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Há, evidentemente, o sentido mais profundo, que se deduz sabendo-se das rela-ções do autor da música, Chico Buarque, com a ditadura militar brasileira.

O romance da Geração de 19301.

a) O recurso é a metalinguagem, muito utilizada por Machado de Assis, grande modelo de Cyro dos Anjos.

b) Porque “os acontecimentos conduzem os homens”. Quando começou a escrever, ele se propunha a passar uma imagem de si mesmo, mas com o transcorrer dos acontecimentos a imagem que o leitor fará de Belmiro se constrói independentemente das suas intenções. Portanto, Belmiro não consegue seguir o seu plano inicial porque os acontecimentos de sua vida dizem mais do que ele.

c) Sim, pois, segundo Lucien Goldmann, os romances de tensão interioriza-da são aqueles em que “o herói não se dispõe a enfrentar a antinomia eu/mundo pela ação: evade-se, subjetivando o conflito”. É exatamente o que se dá no capítulo. Belmiro evade-se por meio da digressão e subjetiva to-das as suas relações, seja com as mulheres amadas, seja com os amigos.

d) Belmiro vê a jovem Carmélia Miranda como uma concretização da figura mítica infantil de Arabela, cuja lenda ouvira quando criança, em Vila Ca-raíbas. Essa mulher sonhada e sua amiga Jandira anularam a recordação de Camila, moça que Belmiro conhecera em Vila Caríbas.

e) Não, pois durante todo o transcorrer do livro temos a presença da me-mória de Vila Caraíbas apresentando-se de maneira muito forte para o narrador Belmiro.

2. O caráter fechado e ranzinza do mestre José Amaro lhe vale a fama de se transformar em lobisomem e as pessoas temem encontrá-lo à noite.

Tal processo de animalização, também conhecido como zoomorfismo, é muito comum na obra de Graciliano Ramos, como se vê no trecho referente a Paulo Honório, narrador e principal personagem de São Bernardo. É curio-so notar que ambos os personagens são retratados como lobisomens.

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Gabarito

Graciliano Ramos1.

a) Embora retirados de capítulos bem distantes um do outro no interior da obra, os três fragmentos apresentam a mesma situação: Paulo Honório, à noite, na mesa de jantar, tomando café e fumando cachimbo, tenta, com dificuldades, escrever a história de sua vida. Trata-se de fragmentos metalinguísticos, pois apresentam a situação do “escritor/narrador” de São Bernardo.

b) No primeiro fragmento, Casimiro vem oferecer seus serviços ao patrão. No segundo, Paulo Honório precisa chamar por ele, duas vezes, para ser atendido. No terceiro, Casimiro nem aparece em cena, pois está dormin-do. Isso mostra o quanto Paulo Honório vai se isolando, distanciando-se das pessoas que o rodeiam, mesmo do servil e “canino” Casimiro Lopes.

c) “Tempo sem fim” e “morto de fadiga”.

2.

a) A figura é onomatopeia, indicando que o menino tem uma linguagem basicamente imitativa: como seus pais falam pouco, ele acaba por imitar os sons da natureza.

b) “Mas tentara convencê-lo dando-lhe um cocorote, e isto lhe parecia absurdo.”

c) Trata-se de uma ironia porque o menino quer saber o significado de uma palavra que, na realidade, conhece bem, já que vive em um “inferno”.

d) Sem conseguir nomear as coisas que veem na cidade, os meninos não conseguem compreendê-las ou se aproximarem delas. Eles temem “de-sencadear as forças estranhas que elas porventura encerrassem”. Portan-to, sem a linguagem os meninos não conseguem se apropriar da realida-de que os envolve na cidade.

e) Limitados por uma linguagem rudimentar, onomatopáica, os meninos não conseguem alargar os limites do seu pequeno mundo, mesmo quan-do entram em contato com um mundo mais amplo.

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João Guimarães Rosa1. O jagunço Damázio quer saber o significado da palavra famigerado, adjetivo que

lhe foi dirigido. O narrador, apavorado, não quer provocar a ira do malfeitor. Como podemos observar pelo verbete, a palavra tem exatamente o significado que o narrador fornece a Damázio. O problema está no fato de, no uso comum, referir-se a malfeitores. Guimarães Rosa joga com esta ambivalência no decorrer do conto.

2.

a) No lugar onde vive, Damázio não encontra ninguém sábio, que tenha um dicionário, só pessoas que distorcem o saber ao se fingirem menos ignorantes.

b) Damázio quer saber o significado da palavra em linguagem popular, co-loquial.

3.

a) ver(i) – do latim verus (“real, verdadeiro”) + vérbio – do latim verbu (“pala-vra, vocábulo”). Significa “palavra verdadeira, real”.

b) A repetição da sílaba inicial, mu, da palavras mudos, pode ser interpre-tada como um gaguejar de medo, uma forma de enfatizar a mudez dos acompanhantes de Damázio ou ainda de reforçar o fato de serem três.

Clarice Lispector1.

a) “E Macabéa, com medo de que o silêncio já significasse uma ruptura [...]”

b) O “leve verniz de finura” refere-se à falsa educação que Olímpico demons-trava para enganar Macabéa. Remete a uma fina camada de gentileza que, no momento narrado, desfaz-se.

2.

a) Nos dois textos, os interlocutores de Macabéa a consideram ignorante, que não consegue acompanhar o raciocínio deles. A relação de Macabéa com os homens é sempre de submissão.

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Gabarito

b) Como muitas vezes, no transcorrer do romance, Clarice nos faz primeiro rir de Macabéa e depois chorar, pois somos surpreendidos com alguma revelação que reforça a imagem de “pobre coitada” da alagoana. Assim, Clarice faz o leitor se sentir culpado por inicialmente ter rido da nordes-tina. Trata-se de clara estratégia para nos sentirmos culpados diante da situação das muitas Macabéas que convivem conosco no dia-a-dia.

João Cabral de Melo Neto1. Nos 30 primeiros versos, Severino procura se apresentar, mas tem dificulda-

de em se individualizar, pois é, a partir dos nomes, apenas um entre muitos Severinos que pouco se diferenciam. Nestes versos, o nome próprio Severino se torna um substantivo comum, nome de todos os que levam esta vida se-verina.

2.

a) Principalmente porque os amigos do lavrador dizem que agora ele “tem” a terra que “tanto queria ver dividida”, ou seja, nesta irônica “reforma agrária”, o lavrador só tem direito à terra de sua cova.

b) A metáfora central, também repleta de ironia, constrói-se pela associa-ção da “terra” da cova com a “roupa”. Enfim o lavrador tem com o que se vestir: com a terra que agora lhe cobre os ossos.

3.

a) Predominam no fragmento as comparações (“belo como o coqueiro que vence a areia marinha” ou “belo como um sim numa sala negativa”). Apa-recem também algumas poucas metáforas (“Belo porque é uma porta abrindo-se em mais saídas”).

b) Todas as comparações convergem para revelar que a beleza do menino é fruto da novidade, do inesperado, da vida que se multiplica e renova, que brota mesmo em meio à pior das adversidades.

4. A inversão do sintagma usual “vida e morte” é explicada pela diferença entre o tom dos textos iniciais e finais do livro. Nos textos iniciais predomina a morte, mas nos finais vence a vida. A fala final, de José, mestre carpina, apre-senta exatamente esta reafirmação da vida presente no título (morte e vida) e representada pela peça como um todo.

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a) Ambos os textos começam com os versos: “Atenção, peço, Senhores/ Para esta breve leitura”, o que comprova a utilização do poema popular por João Cabral de Melo Neto. Em ambos são apresentadas as profecias de duas ci-ganas para o destino do menino (note-se que, a partir da sexta estrofe da “Buenadicha das ciganas”, uma segunda cigana começa a prever o destino de sofrimentos de Jesus Cristo). Além disso, os dois poemas apresentam o mesmo número de versos (64) redondilhos maiores ou heptassílabos.

b) O texto 5, bastante convencional, é composto por 16 quartetos, apresen-tando rimas consoantes intercaladas no segundo e quarto versos. Já o poema de João Cabral é composto por duas estrofes de 32 versos cada, com algumas rimas consoantes intercaladas, mas com predomínio das rimas toantes. É curioso notar que, embora de formas diferentes, os dois textos apresentam o mesmo número de versos.

c) O poema popular apresenta as profecias ligadas à vida de Jesus Cristo. João Cabral de Melo Neto adapta a cena do presépio para as margens do Capibaribe e o seu menino é pobre e humano – nasce na lama e as ciganas lhe preveem um vida severina.

d) A primeira cigana profetiza para o menino uma vida de pescador pobre às margens do Capibaribe: sujo de lama, ele vai ter como professores os animais do mangue e da lama e vai viver como “anfíbio”.

Já a segunda apresenta como opção de uma vida melhor apenas a trans-formação do menino em operário, sujo de graxa e não de lama, vivendo em um mocambo um pouco melhor, às margens do outro rio que corta Recife, o Beberibe.

Poesia concreta1. O poema de Apollinaire explora aspectos visuais da linguagem. As letras for-

mam o desenho da gravata de que o poema trata. Assim como a poesia con-creta, os caligramas de Apollinaire davam enorme importância à distribuição das palavras no espaço da página.

2. O poema de cummings explora a linguagem entrecortada, sem formar versos e sim blocos de letras que se articulam em diversas palavras diferenciadas. As letras, fragmentos das palavras, acabam por formar a frase nuclear do poema. Assim como os caligramas de Apollinaire e a poesia concreta, os poemas de cummings davam enorme importância à distribuição das palavras no espaço da página.

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Gabarito

3. A linguagem inovadora – tanto na sintaxe que corrói a fala cotidiana quan-to na invenção de novos vocábulos, misturando palavras já conhecidas (de um ou mais idiomas) – é uma característica fundamental da obra de James Joyce, que foi muito influente na poesia concreta.

4. O poder de síntese da poesia de Oswald de Andrade foi fundamental na ela-boração do projeto concretista. Assim como Apollinaire nos seus caligramas, cummings e a poesia concreta, Oswald de Andrade também elaborava, em seus poemas, a distribuição das palavras no espaço da página.

5. Nesse poema, perfeito exemplar do estilo cultista do barroco, no qual se sobressaem os jogos de palavras (significantes) em detrimento dos efeitos de sentido (significado), Gregório de Matos antecipa a exploração, levada a cabo pela poesia concreta, das várias possibilidades de leitura do texto poé-tico. Principalmente, provoca o leitor, desafiando-o a encontrar a forma mais adequada de efetuar a leitura do texto.

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