teoria pós modernismo e contos da literatura contemporÂnea 2011

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TEORIA DO PÓS-MODERNISMO E TEXTOS DA LITERATURA CONTEMPORÂNEA O QUE É PÓS-MODERNO? Pós-modernismo é a denominação aplicada às mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950 até os dias de hoje, quando, por convenção, se encerrou o modernismo. O pós-modernismo tem como algumas características: a invasão da tecnologia, a revolução da comunicação e a informática. Na economia, tem o poder de seduzir os indivíduos para fins de consumo. O Pós-modernismo, sendo eclético (aberto) faz do cidadão senhor de suas escolhas, com um infinito leque de possibilidades que lhe permite optar, desde que essa opção não seja o não-consumo. Uma característica do indivíduo pós-moderno é que ele atua na micrologia individual. Se o sujeito parece fragmentado é porque o pós-modernismo vai levar às últimas conseqüências as pequenas liberdades individuais. A ficção brasileira contemporânea demonstra, então, as seguintes características: 1. A tendência urbana prevalece sobre a narrativa regionalista, acompanhando as mudanças ocorridas em nossa população, que migra em grande escala para os centros urbanos, onde encontra problemas estruturais crônicos. As conseqüências? O desemprego, miséria, violência, inchaço populacional. Enfim, o caos urbano ao qual, infelizmente vamos nos acostumando. 2. Como afinidade temática, tem-se a percepção do isolamento e da vulnerabilidade do ser humano, que não se encontra encaixado na sociedade em que vive, num meio urbano tão tumultuado e tão frio às inquietações humanas. 3. A heterogeneidade de estilos também é uma característica pós-moderna. Por isso há uma impossibilidade de análises estéticas prontas em que se enquadrem vários autores. De certa forma, cada autor é uma escola independente. Nesse contexto, a Literatura pós-moderna apresenta-se eclética, com uma narrativa fragmentada e uma intertextualidade muitas vezes estruturada no pastiche junção de fragmentos de outras obras. Destacam-se os gêneros populares, como 1. Literatura Policial/Violência Urbana. 2. Literatura Intimista/Introspecção. 3. Literatura Fantástica. 4. Literatura Sócio-histórica e Política. Além dessas tendências encontramos também livros de autoajuda e esoterismo, livros religiosos, livros autobiográficos e biográficos, livros de descrição de relatos pessoais de vida, de experiências de viagem. Assim, textos baseados em fatos reais ganham contornos ficcionais, narrativas de cunho documental ou jornalístico se emparelham a crônicas de humor e a contos fantásticos.

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Page 1: Teoria Pós Modernismo e CONTOS DA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 2011

TEORIA DO PÓS-MODERNISMO E TEXTOS DA LITERATURA CONTEMPORÂNEA O QUE É PÓS-MODERNO?

Pós-modernismo é a denominação aplicada às mudanças ocorridas nas

ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950 até os dias de hoje, quando, por convenção, se encerrou o modernismo. O pós-modernismo tem como

algumas características: a invasão da tecnologia, a revolução da comunicação e a informática. Na economia, tem o poder de seduzir os indivíduos para fins de

consumo. O Pós-modernismo, sendo eclético (aberto) faz do cidadão senhor de suas

escolhas, com um infinito leque de possibilidades que lhe permite optar, desde que essa opção não seja o não-consumo. Uma característica do indivíduo pós-moderno

é que ele atua na micrologia individual. Se o sujeito parece fragmentado é porque o

pós-modernismo vai levar às últimas conseqüências as pequenas liberdades individuais.

A ficção brasileira contemporânea demonstra, então, as seguintes características:

1. A tendência urbana prevalece sobre a narrativa regionalista, acompanhando

as mudanças ocorridas em nossa população, que migra em grande escala para os centros urbanos, onde encontra problemas estruturais crônicos. As

conseqüências? O desemprego, miséria, violência, inchaço populacional. Enfim, o caos urbano ao qual, infelizmente vamos nos acostumando.

2. Como afinidade temática, tem-se a percepção do isolamento e da

vulnerabilidade do ser humano, que não se encontra encaixado na sociedade em que vive, num meio urbano tão tumultuado e tão frio às inquietações

humanas.

3. A heterogeneidade de estilos também é uma característica pós-moderna. Por

isso há uma impossibilidade de análises estéticas prontas em que se enquadrem vários autores. De certa forma, cada autor é uma escola

independente.

Nesse contexto, a Literatura pós-moderna apresenta-se eclética, com uma narrativa fragmentada e uma intertextualidade muitas vezes estruturada no

pastiche – junção de fragmentos de outras obras. Destacam-se os gêneros populares, como

1. Literatura Policial/Violência Urbana.

2. Literatura Intimista/Introspecção. 3. Literatura Fantástica.

4. Literatura Sócio-histórica e Política.

Além dessas tendências encontramos também livros de autoajuda e

esoterismo, livros religiosos, livros autobiográficos e biográficos, livros de descrição de relatos pessoais de vida, de experiências de viagem. Assim, textos baseados em

fatos reais ganham contornos ficcionais, narrativas de cunho documental ou jornalístico se emparelham a crônicas de humor e a contos fantásticos.

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Em relação ao conto, pode-se identificar as seguintes tendências principais: conto sócio-documental; conto de introspecção; conto simbólico-visionário; conto

fantástico. Na linha do conto sócio-documental, os espaços urbanos tornam-se palco

para tratar de assuntos que afetam o homem contemporâneo (Aconteceu na Praça XV). Também as grandes aglomerações urbanas têm sido o foco dos contistas,

vistas como espaço da violência sempre crescente no Brasil, a qual atinge a classe dominada, cujas condições de vida são precárias e subumanas, e a classes

dominantes, por vezes vítima do confronto próprio da luta de classes. Um dos contistas dessa vertente é Rubem Fonseca. O autor, em mais de um conto, aponta

para possibilidade de revolta das classes oprimidas, social e economicamente, contra o ―status quo‖. Rubem Fonseca mostra também que a violência perpassa

todos os estratos sociais (Livro de Ocorrências), inclusive os privilegiados, tal como

se pode ver em (Passeio noturno I) e (Passeio noturno II). Na linha do conto fantástico destacam-se, entre outros, Lygia Fagundes Teles

(As formigas) e Murilo Rubião (A Armadilha). As narrativas, nesse contexto, são marcadas por um clima opressivo e insólito, em que os acontecimentos instauram o

clima paradoxal do absurdo. Há um jogo com a ambigüidade, entrelaçando o real ao supra-real. Estados sutis de consciência, que parecem encaminhar-se para o

onírico ou inconsciente, sugerem a ruptura com a barreira que separa a realidade cósmica de instâncias sobrenaturais. A narrativa fragmentada e a extrema

capacidade de síntese pode ser vista nos contos de Dalton Trevisan (O Ciclista), que explora os acontecimentos cotidianos e revela aspectos da realidade da vida

nas cidades grandes que passam ao largo da percepção comum. A fragmentação do homem, dilacerado pelo ambiente familiar/urbano também é encontrado em

Moacyr Scliar (Pausa). Vamos ler alguns textos contemporâneos:

TEXTO I – LIVRO DE OCORRÊNCIAS TEXTO II – PASSEIO NOTURNO I

TEXTO III – O CICLISTA TEXTO IV – NADA COMO A INSTRUÇÃO (CRÔNICA)

TEXTO V – PAUSA TEXTO VI– ACONTECEU NA PRAÇA XV

TEXTO VII – AS FORMIGAS TEXTO VIII – A ARMADILHA

TEXTO IX – PASSEIO NOTURNO II

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TEXTO I

Livro de Ocorrências Rubem Fonseca

1. Investigador Miro trouxe a mulher à minha presença.

Foi o marido, disse Miro, desinteressado. Naquela delegacia de subúrbio era comum briga de marido e mulher.

Ela estava com dois dentes partidos na frente, os lábios feridos, o rosto inchado. Marcas nos braços e no pescoço.

Foi o seu marido que fez isso? Perguntei. Não foi por mal, doutor, eu não quero dar queixa.

Então por que a senhora veio aqui?

Na hora eu fiquei com raiva, mas já passou. Posso ir embora? Não. Miro suspirou. Deixa a mulher ir embora, disse ele entre dentes.

A senhora sofreu lesões corporais, é um crime de ação pública, independe da sua queixa. Vou enviá-la a exame de corpo delito, eu disse.

Ubiratan é nervoso mas não é má pessoa, ela disse. Por favor, não faz nada com ele.

Eles moravam perto. Decidi ir falar com Ubiratan. Uma vez, em Madureira, eu havia convencido um sujeito a não bater mais na mulher; outros dois, quando trabalhei

na Delegacia de Jacarepaguá, também haviam sido persuadidos a tratar a mulher com decência.

Um homem alto e musculoso abriu a porta. Estava de calção, sem camisa. Num canto da sala havia uma barra de aço com pesadas anilhas de ferro e dois halteres

pintados de vermelho. Ele devia estar fazendo exercícios quando cheguei. Seus músculos estavam inchados e cobertos por grossa camada de suor. Ele exalava a

força espiritual e o orgulho que uma boa saúde e um corpo cheio de músculos dão

a certos homens. Sou da Delegacia, eu disse.

Ah, então ela foi mesmo dar queixa, a idiota, Ubiratan resmungou. Abriu a geladeira, tirou uma lata de cerveja, destampou e começou a beber.

Vai e diz para ela voltar logo para casa senão vai ter. Acho que você ainda não percebeu o que vim fazer aqui. Vim convidá-lo para depor

na Delegacia. Ubiratan atirou a lata vazia pela janela, pegou a barra de aço e levantou-a sobre a

cabeça dez vezes, respirando ruidosamente pela boca, como se fosse uma locomotiva.

Você acha que eu tenho medo da polícia? Ele perguntou, olhando com admiração e carinho os músculos do peito e dos braços.

Não é preciso ter medo. Você vai lá apenas para depor. Ubiratan pegou meu braço e me sacudiu.

Cai fora, tira nojento, você está me irritando.

Tirei o revólver do coldre. Posso processá-lo por desacato, mas não vou fazer isso. Não complique as coisas, venha comigo à Delegacia, em meia hora estará livre, eu

disse, calmamente e com delicadeza. Ubiratan riu. Qual é tua altura, anãozinho?

Um metro e setenta. Vamos embora. Vou tirar essa merda da sua mão e mijar no cano, anãozinho. Ubiratan contraiu

todos os músculos do corpo, como um animal se arrepiando para assustar o outro,

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e estendeu o braço, a mão aberta para agarrar o meu revólver. Atirei na sua coxa. Ele me olhou atônito.

Olha o que você fez com o meu sartório! Ubiratan gritou mostrando a própria coxa, você é maluco, o meu sartório!

Sinto muito, eu disse, agora vamos embora senão atiro na outra perna. Pra onde você vai me levar, anãozinho?

Primeiro para o hospital, depois para a Delegacia. Isso não vai ficar assim, anãozinho, tenho amigos influentes.

O sangue escorria pela sua perna, pingava no assoalho do carro. Desgraçado, o meu sartório! Sua voz era mais estridente do que a sirene que abria nosso caminho

pelas ruas. 2.

Manhã quente de dezembro, rua São Clemente. Um ônibus atropelou um menino

de dez anos. As rodas do veículo passaram sobre a sua cabeça deixando um rastro de massa encefálica de alguns metros. Ao lado do corpo uma bicicleta nova, sem

um arranhão. Um guarda de trânsito prendeu em flagrante o motorista. Duas testemunhas

afirmaram que o ônibus vinha em grande velocidade. O local do acidente foi isolado cuidadosamente.

Uma velha, mal vestida, com uma vela acesa na mão, queria atravessar o cordão de isolamento, "para salvar a alma do anjinho". Foi impedida. Com os outros

espectadores, ela ficou contemplando o corpo de longe. Separado, no meio da rua, o cadáver parecia ainda menor.

Ainda bem que hoje é feriado, disse um guarda, desviando o trânsito, já imaginou isso num dia comum?

Aos gritos uma mulher rompeu o cordão de isolamento e levantou o corpo do chão. Ordenei que ela o largasse. Torci seu braço, mas ela não parecia sentir dor, gemia

alto, sem ceder. Eu e os guardas lutamos com ela até conseguir tirar o morto dos

seus braços e colocá-lo no chão onde ele devia ficar, aguardando a perícia. Dois guardas arrastaram a mulher para longe.

Esses motoristas de ônibus são todos uns assassinos, disse o perito, ainda bem que o local está perfeito, da para fazer um laudo que nenhum rábula vai derrubar.

Fui até o carro da polícia e sentei no banco da frente, por alguns momentos. Meu paletó estava sujo de pequenos despojos do morto. Tentei limpar-me com as mãos.

Chamei um dos guardas e mandei trazer o preso. No caminho da delegacia olhei para ele. Era um homem magro, aparentando uns

sessenta anos, e parecia cansado, doente e com medo. Um medo, uma doença e um cansaço antigos, que não eram apenas daquele dia.

3.

Cheguei ao sobrado na rua da Cancela e o guarda que estava na porta disse: primeiro andar. Ele está no banheiro.

Subi. Na sala uma mulher com os olhos vermelhos me olhou em silêncio. Ao seu

lado um menino magro, meio encolhido, de boca aberta, respirando com dificuldade.

O banheiro? Ela me apontou um corredor escuro. A casa cheirava a mofo, como se os encanamentos estivessem vazando no interior das paredes. De algum lugar

vinha um odor de cebola e alho fritos. A porta do banheiro estava entreaberta. O homem estava lá.

Voltei para a sala. Já havia feito todas as perguntas à mulher quando o perito Azevedo chegou.

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No banheiro, eu disse. Anoitecia. Acendi a luz da sala. Azevedo me pediu ajuda. Fomos para o banheiro.

Levanta o corpo, disse o perito, para eu soltar o laço. Segurei o morto pela barriga. Da sua boca saiu um gemido.

Ar preso, disse Azevedo, esquisito não é? Rimos sem prazer. Pusemos o corpo no chão úmido. Um homem franzino, e barba por fazer, o rosto cinzento, parecia um

boneco de cera. Ele não deixou bilhete, nada, eu disse.

Eu conheço esse tipo, disse Azevedo, quando não agüentam mais eles se matam depressa, tem que ser depressa senão se arrependem.

Azevedo urinou no vaso sanitário. Depois lavou as mãos na pia e enxugou-as nas fraldas de sua camisa.

TEXTO II

Passe io Not urno - Par t e I Rubem Fonseca

Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na cama, um

copo de uísque na mesa de cabeceira, disse, sem tirar os olhos das cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto dela treinando

impostação de voz, a música quadrifônica do quarto do meu filho. Você não vai largar essa mala?, perguntou minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho,

você precisa aprender a relaxar. Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a

mesa, não via as letras e números, eu esperava apenas. Você não pára de trabalhar, aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a

mesma coisa, entrou a minha mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar

servir o jantar? A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescido, eu e a minha mulher

estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu

dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos uma conta bancária conjunta.

Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro todas as noites, também

aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher respondeu.

Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu tirasse o meu. Tirei os carros dos dois, botei na rua, tirei o meu, botei na rua, coloquei os

dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os pára-choques salientes do meu carro, o

reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia.

Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmico. Saí, como sempre sem saber para onde

ir, tinha que ser uma rua deserta nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal

iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a

ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais

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fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia

árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu

que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um

pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um

foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda

deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio.

Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos

pára-lamas, os pára-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.

A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir,

boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia terrível na companhia.

TEXTO III

O ciclista

Dalton Trevisan

Curvado no guidão lá vai ele numa chispa. Na esquina dá com o sinal vermelho

e não se perturba – levanta voo bem na cara do guarda crucificado. No labirinto

urbano persegue a morte com o trim-trim da campainha: entrega sem derreter sorvete a domicílio.

É sua lâmpada de Aladino a bicicleta e, ao sentar-se no selim, liberta o gênio acorrentado ao pedal. Indefeso homem, frágil máquina, arremete impávido colosso,

desvia de fininho o poste e o caminhão; o ciclista por muito favor derrubou o boné. Atropela gentilmente e, vespa furiosa que morde, ei-lo defunto ao perder o

ferrão. Guerreiros inimigos trituram com chio de pneus o seu diáfano esqueleto. Se não se estrebucha ali mesmo, bate o pó da roupa e – uma perna mais curta – foge

por entre nuvens, a bicicleta no ombro. Opõe o peito magro ao para-choque do ônibus. Salta a poça d’água no asfalto.

Num só corpo, touro e toureiro, golpeia ferido o ar nos cornos do guidão. Ao fim do dia, José guarda no canto da casa o pássaro de viagem. Enfrenta o

sono trim-trim a pé e, na primeira esquina, avança pelo céu na contramão, trim-trim

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TEXTO IV

Nada como a instrução ―Rico estuda cinco anos mais.‖

Moacyr Scliar

"O senhor não me arranja um trocado?", perguntou o esfarrapado garoto com um olhar súplice. Outro daria dinheiro ou seguiria adiante. Não ele. Não perderia

aquela oportunidade de ensinar a um indigente uma lição preciosa. - Não, jovem - respondeu -, não vou lhe dar dinheiro. Vou lhe transmitir um

ensinamento. Olhe para você, olhe para mim. Você é pobre, você anda descalço, você decerto não tem o que comer. Eu estou bem vestido, moro bem, como bem.

Você deve estar achando que isso é obra do destino. Pois não é. Sabe qual é a

diferença entre nós, filho? O estudo. As estatísticas estão por aí: pobre estuda cinco anos menos do que o rico.

O menino o olhava assombrado. Ele continuou: - Pessoas como eu estudaram mais do que as pessoas da sua gente. Em

média, cinco anos mais. Ou seja: passamos cinco anos a mais em cima de livros. Cinco anos sem nos divertir, cinco anos queimando pestanas, cinco anos sofrendo

na véspera dos exames. E sabe por quê, filho? Porque queríamos aprender. Aprender coisas como o teorema de Pitágoras. Se você soubesse, eu não só lhe

daria um trocado, eu lhe daria muito dinheiro, como homenagem a seu conhecimento. Mas você não sabe o que é o teorema de Pitágoras, sabe?

- Não - disse o menino. E, virando as costas, foi embora, com o que ele ficou muito ofendido. O rapaz

simplesmente não queria saber nada acerca do teorema de Pitágoras. Aliás, como era mesmo o tal teorema? Era algo como o quadrado da hipotenusa é igual à soma

dos quadrados dos catetos, ou o quadrado do cateto é a soma dos quadrados da

hipotenusa. Ou ainda, a hipotenusa dos quadrados é a soma dos catetos quadrados. Enfim, algo que só aqueles que têm cinco anos a mais de estudo

conhecem.

TEXTO V

Pausa

Moacyr Scliar Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para o

banheiro, fez a barba e lavou-se. Vestiu-se rapidamente e sem ruído. Estava na cozinha, preparando

sanduíches, quando a mulher apareceu, bocejando: — Vais sair de novo, Samuel?

Fez que sim com a cabeça. Embora jovem, tinha a fronte calva; mas as

sobrancelhas eram espessas, a barba, embora recém-feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma máscara escura.

— Todos os domingos tu sais cedo — observou a mulher com azedume. — Temos muito trabalho no escritório.

Ela olhou os sanduíches: — Por que não vens almoçar?

— Já te disse: muito trabalho. Não há tempo. Levo um lanche.

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A mulher coçava a axila esquerda. Antes que voltasse à carga, Samuel pegou o chapéu:

— Volto de noite. As ruas ainda estavam úmidas de cerração. Samuel tirou o carro da garagem.

Guiava vagarosamente; ao longo do cais, olhando os guindastes, as barcaças atracadas.

Estacionou o carro numa travessa quieta. Com o pacote de sanduíches debaixo do braço, caminhou apressadamente duas quadras. Deteve-se ao chegar a

um hotelzinho velho e sujo. Olhou para os lados e entrou furtivamente. Bateu com as chaves do carro no balcão, acordando um homenzinho que

dormia sentado numa poltrona rasgada. Era o gerente. Esfregando os olhos, pôs-se de pé:

— Ah! Seu Isidoro! Chegou mais cedo hoje. Friozinho bom este, não é? A

gente… — Estou com pressa, seu Raul — atalhou Samuel.

— Está bem, não vou atrapalhar. É o de sempre. — Estendeu a chave. Samuel subiu quatro lanços de uma escada vacilante. Ao chegar ao último

andar, duas mulheres gordas, de chambre floreado, olhavam-no com curiosidade: — Aqui, meu bem! — uma gritou, e riu.

Ofegante, Samuel entrou no quarto e fechou a porta à chave. Era um aposento pequeno: uma cama de casal, um guarda-roupa de pinho; a um canto,

uma bacia cheia d’água, sobre um tripé. Samuel correu as cortinas esfarrapadas, tirou do bolso um despertador de viagem, deu corda e colocou-o na mesinha de

cabeceira. Puxou a colcha e examinou os lençóis com o cenho franzido; com um suspiro, tirou o casaco e os sapatos, afrouxou a gravata. Sentado na cama, comeu

vorazmente quatro sanduíches. Limpou os dedos no papel de embrulho, deitou-se e fechou os olhos.

Dormir.

Em pouco, dormia. Lá embaixo, a cidade começava a mover-se: os automóveis buzinando, os jornaleiros gritando, os sons longínquos.

Um raio de sol filtrou-se pela cortina, estampou um círculo luminoso no chão carcomido. Samuel dormia. Nu, corria por uma planície imensa, perseguido por um

índio montado a cavalo. No quarto abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale entre as pernas, corriam. Samuel mexia-se e

resmungava. Às duas e meia da tarde sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou-se na cama, os olhos esbugalhados: o índio acabava de trespassá-lo com a

lança. Esvaindo-se em sangue, molhado de suor, Samuel tombou lentamente; ouviu o apito soturno de um vapor. Depois, fez-se o silêncio.

Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para a bacia, lavou-se. Vestiu-se rapidamente e saiu.

Sentado numa poltrona, o gerente lia uma revista. — Já vai, seu Isidoro?

— Já — disse Samuel, entregando a chave. Pagou, conferiu o troco em

silêncio. — Até domingo que vem, seu Isidoro — disse o gerente.

— Não sei se virei — respondeu Samuel, olhando pela porta; a noite caía. — O senhor diz isto, mas volta sempre — observou o homem, rindo.

Samuel saiu. Guiou lentamente ao longo do cais. Parou um instante para olhar os

guindastes recortados contra o céu avermelhado. Depois guiou para casa.

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TEXTO VI

ACONTECEU NA PRAÇA XV

Caio Fernando Abreu

Como uma personagem de Tânia Faillace: os restos da escassa dignidade do dia apodreciam entre o cheiro de pastéis, os encontrões e os ônibus da praça XV.

Não era uma personagem de ninguém, embora às vezes, mais por comodismo ou para não sentir-se desamparado como obra de autor anônimo, quisesse achar que

sim. Mas à tardinha as dores doíam e o suor cheirava mal embaixo dos braços. À tardinha não tinha a quem recorrer e precisava controlar a vontade de dizer para

qualquer alguém, olha, venci mais um. Quando a irritação não era muita, conseguia

olhar para os lados pensando que dentro das corridas, dos gritos e dos cheiros havia como olhos que não precisavam se olhar para que uma silenciosa voz coletiva

repetisse, olha, venci mais um; e, quando além da não-irritação havia também um pouco de bom humor, conseguia até mesmo sorrir e falar qualquer coisa sobre o

tempo com alguém da fila. Mas havia os dias molhados, quando as pessoas com capas e guarda-chuvas andavam por baixo das marquises espetando os olhos ou

deixando ao desabrigo os sem capa nem guarda-chuva, como ele; mas havia aquelas pessoas que nos ônibus superlotados não sentavam imediatamente no

lugar deixado vago, até que duas ou três paradas depois, tão discretamente quanto podia, ignorando grávidas, velhinhos e aleijados, ele se atrevesse a conquistar o

banco (lavava muitas vezes as mãos depois de chegar em casa, canos viscosos — estafilococos, miasmas, meningites), embora soubesse que tudo ou nada disso

tinha importância; mas havia as latas transbordantes de lixo e os cães sarnentos e os pivetes pedindo um-cruzeirinho-pra-minha-mãe-entrevada, mãos crispadas nas

bolsas. O dia se reduzindo à sua exiguidade de ônibus tomados e máquinas

batendo telefones cafezinhos pequenas paranóias visitas demoradas ao banheiro para que o tempo passasse mais depressa e o deixasse livre para. Para subir rápido

a rua da Praia, atravessar a Borges, descer a galeria Chaves e plantar-se ali, entre o cheiro dos pastéis, gasolina, e o ardido-suor-dos-trabalhadores-do-Brasil, tentava

inutilmente dar uma outra orientação ao cansaço despolitizado e à dor seca nas costas, alguém compreenderia? E para que tudo não doesse demais quando não

era capaz de, apenas esperando, evitar o insuportável, fazia a si próprio perguntas como: se a vida é um circo, serei eu o palhaço? Às vezes também o domador que

coloca a cabeça dentro da boca escancarada do leão, às vezes o equilibrista do arame suspenso no abismo, a bailarina sobre o pônei, e também o engolidor de

espadas, e mais a mulher serrada ao meio — e ainda, o quê? Inesperadamente, ela chegou por trás e afundou os dedos no seu cabelo, coçando-lhe a cabeça como

fazia antigamente. Ele voltou-se e afundou os dedos no seu cabelo, coçando-lhe a cabeça como fazia antigamente. Depois os dois se abraçaram e se deram beijos nas

duas faces e como duas pessoas que não se vêem há muito tempo atropelaram

perguntas como: por onde é que tu anda, criatura, ou exclamações como: mas tu não mudou nada, ou reticências tão demoradas que as filas chegavam a deter-se

um pouco, as pessoas reclamando e uma hesitação entre mergulhar nas gentes entre um beijo e um me telefona qualquer dia e ficar ali e convidar para qualquer

coisa, mas um medo que doesse remexer naquilo, e tão mais fácil simplesmente escapar que chegou a dar dois passos. Ou três. Mas de repente estavam sentados

no Chalé com dois chopes um em frente ao outro, e ela dizia que as nuvens pareciam o saiote de uma bailarina de Degas e tinha um céu laranja atrás dos

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edifícios e uma estrela muito brilhante que ela apontou dizendo que era Vênus e riu quando ele mexeu com ela e disse que podia nascer uma verruga na ponta de seu

dedo, e teriam ficado nesse clima por mais tempo se de repente ela não perguntasse se ele não se lembrava de um determinado bar e ele disse que sim e

ela risse continuando, sabe que a garçonete nos conhecia tanto que outro dia me perguntou ué, tu não ia casar com aquele moço, e ela dissera que não, que eram

apenas amigos. Então ele pediu outro chope e com um ar dramático disse que só se casaria com ela se ela tivesse um bom dote, duas vacas leiteiras, por exemplo,

mas ela respondeu rindo que vacas leiteiras não tinha não, mas se servia uma coleção completa de Gênios da Pintura, e ele perguntou se tinha Bosch e Klimt, e

ela disse claro, dois fascículos inteiros, e ele disse ah, vou considerar a sua proposta, e ela disse mas não pense que vou me jogar nessa empreitada (ele

achou engraçado, mas foi assim mesmo que ela disse, acentuando tanto a palavra

que ele percebeu que o jeito dela falar não tinha mudado nada, sempre ironizando um pouco o próprio vocabulário e carregando de intenções o que a ela mesma

parecia meio ridículo), assim no mais, ela continuou, só caso contigo se tu também tiver um dote ponderável. Ele acendeu um cigarro e ela outro e ele viu que ela

havia mudado para Continental com filtro e que antigamente era Minister, Minister, gola role preta, olheiras e festivais de filmes nouvelle vague no Rex ou no Ópera, e

ela odiava Godard, só gostava do trecho onde Pierrot le fou sentava numa pedra e Ana Karina vinha caminhando pela praia gritando que se há de fazer, não há nada a

fazer, rien à faire e assim por diante, até chegar em primeiro plano, e então ele lembrou e disse que tinha as obras completas de Sartre, Simone e Camus, e ela fez

hmmmmmm, é uma boa oferta, e se ela lembrava que tinha sido posta para fora da aula de introdução à metafísica depois de dizer que estava mergulhada na

fissura ôntica, o nome científico da fossa, e ela lembrava sim. E logo em seguida ele quis falar duma passeata em que tinha apanhado dentro da catedral, e já fazia

tanto tempo, todos gritando o-povo-organizado-derruba-a-ditadura-mais-pão-

menos-canhão, braços dados, mas não chegou a dizer nada porque ela estava contando que fizera vinte e oito anos semana passada e que tinha ficado

completamente louca o dia inteiro, ainda por cima um domingo, e que sentira vontade de escrever um conto que começasse assim, aos vinte e oito anos ela

enlouqueceu completamente e de súbito abriu a janela do quarto e pôs-se a dançar nua sobre o telhado gritando muito alto que precisava de espaço, e pediu também

um segundo chope enquanto ele achava que era-um-bom-começo-se-ela-soubesse-desenvolver-bem-a-trama, mas ela apagou o cigarro e resmungou que trama, cara,

eu não sei desenvolver bosta nenhuma, tenho preguiça de imaginar o que vem depois, uma clínica, por exemplo, e se ele achava possível que um conto fosse só

aquilo, uma frase, e ele quis dizer ué, por que não, Mário de Andrade, por exemplo, mas começou a soprar um vento frio e ela falou que tinha também um casaco de

peles imensurável comprado na Suécia e um vidrinho de patchuli pela metade, ele disse ah, então era esse o cheiro, e ela explicou que era um pouco audacioso usar

porque quando boto um pouquinho os magrinhos todos na rua vêm perguntar como

é que é, tá na mão, magra, tá nas ideia, bicho, eu digo, e riram um pouco até ele dizer que tinha também um pôster de Marilyn Monroe tão amarelado mas tão

bonito que um amigo o fizera jurar que deixaria para ele no testamento, então não podia dispor completamente, e sem saber por que lembrou duma charge e falou,

mas não se usa mais dizer assim, é antediluviano, diz cartum, nego, senão tu passa por desatualizado, e ele riu e continuou, um cartum, então, onde tinha um palhaço

ajoelhado no confessionário aos prantos enquanto o padre atrás da parede de madeira furadinha morria de rir. Foi então que ela perguntou se ele ainda

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continuava com a análise e ele fez que sim com a cabeça, quase dois anos, mas falando em palhaço lembrou a história do circo e quis saber o que ela achava, ela

disse que se sentia mais como um peludo, e ele achou engraçadíssimo porque fazia uns dez anos que não escutava aquela palavra, chegou a ouvir bem nítido na

memória um coro de vozes gritando tá-na-hora-peludo, lonas furadas, daqueles que montam e desmontam o barracão e carregam as garrafas de madeira dos

malabaristas e as jaulas das feras e apanham no ar a sombrinha que a bailarina do pônei joga longe antes de equilibrar-se num pé só, e ele pediu outro chope e foi ao

banheiro mijar e quando voltou ela estava com um gato no colo sentada numa mesa de dentro, porque lá fora tinha esfriado muito e começava a chover, e ele

pensou que se fosse cinema agora poderia haver um flash-back que mostrasse os dois na chuva recitando Clarice Lispector, para te morder e para soprar a fim de

que eu não te doa demais, meu amor, já que tenho que te doer, meu Deus, tu

decorou até hoje, e o teu cabelo tá caindo, ela falou quando ele se abaixou para apanhar o maço de cigarros e acendeu um, já tem como uma tonsura, e ele

suspirou sem dizer nada até ela emendar que ficava até legal, dava um ar meio místico, mas ele cortou talvez um pouco bruscamente dizendo pode ser, mas

atualmente ando mais pra Freud do que pra Buda ou pra são Francisco de Assis, pois é, nada de sair por aí dando a roupa aos pobres, mas eu tenho também um

Atlas celeste e ela acrescentou que no verão sabia reconhecer Orion e Escorpião, e que Escorpião levantava quando Orion já estava deitando na linha do horizonte, e

que, segundo o mito, Escorpião estava sempre querendo picar o calcanhar do guerreiro, e ele contou que uma vez havia feito um círculo de fogo em torno dum

escorpião, mas ele não tinha se suicidado, o sacana, ficou esperando até o fogo apagar e ele achatá-lo com o pé, e que tinha se passado muito tempo, mas por que

falar de escorpiões agora, os dois acenderam cigarros, e ela falou que era inverossímil pensar que a distância, quer dizer, o tempo que a separava dos dezoito

anos era exatamente o mesmo que a separava dos trinta e oito, e tenho também

uma luneta, só que quebrada, ele cortou novamente, ah eu estava me esquecendo do disco da Silvinha Telles que também tenho, ela sorriu, como é mesmo o nome?

aquele assim todos acham que eu falo demais, e que ando bebendo demais, cantarolou, a voz grave, e outro flash-back, uma madrugada qualquer, cuba-libre e

Maysa, que eu não largo o cigarro, tá todo riscado, então não interessa, ele afetou um ar de desprezo, logo a melhor faixa, e ela falou tu viu que horror fizeram na

pracinha da ponta do Gasômetro, e mais um flash-back, os dois sem dinheiro para assistir ao Arqui-Samba no Cine Cacique e Nara Leão dizendo é a parte que te cabe

neste latifúndio, deitados na grama e o barulho do rio limpo, naquele tempo, corta, outro dia fui lá e tinha uma coisa chocante, uma porção de gente morando dentro

duns canos, e eu me senti tão mal olhando aquilo e de repente me pareceu que, ela olhou bem para ele, mas os dois baixaram a cabeça quase ao mesmo tempo e,

começando a despedaçar a caixa de fósforos, ele disse que era incrível assistir como as ruas iam se modificando e de repente uma casa que existia aqui de

repente não ocupava mais lugar no espaço, mas apenas na memória, e assim uma

porção de coisas, ela completou, e que era como ir perdendo uma memória objetiva e não encontrar fora de si nenhum referencial mais e que. Aí ela olhou o

relógio e falou que precisava mesmo ir andando antes que a chuva apertasse e as ruas ficassem alagadas, não sei se tomo um táxi ou uma gôndola, e ele chegou a

abrir a boca para dizer qualquer coisa e ela perguntou o que foi, perfeitamente calma, a bolsa de couro a tiracolo e nenhuma pintura, como sempre, a fissura

ôntica? e ele disse que não era nada, só ia tomar outro chope enquanto os ônibus esvaziavam um pouco mais. Então, por trás, inesperadamente, ela afundou os

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dedos no seu cabelo, coçando-lhe a cabeça como fazia antigamente, depois saiu depressa enquanto ele acendia outro cigarro e continuava a despedaçar a caixa de

fósforos pensando coisas como: ou então o mágico que tira coelhos da cartola, ou ainda o motociclista do Globo da Morte, ou quem sabe estava nos bastidores ou na

platéia ao invés de no picadeiro, como se fosse apenas um leitor e não uma personagem nem de Tânia Faillace nem de ninguém.

Tânia Faillace (1939-): escritora e jornalista gaúcha, autora do livro O beco da velha, história contada em 14 volumes e com cerca de duzentas personagens

TEXTO VII

As formigas

Lygia Fagundes Teles

Quando minha prima e eu descemos do táxi já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um

deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.

- É sinistro. Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma

pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes, com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que

podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.

- Pelo menos não vi sinal de barata - disse minha prima. A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna.

Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas

por uma crosta de esmalte vermelho-escuro descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho.

- É você que estuda medicina? - perguntou soprando a fumaça na minha direção.

- Estudo direito. Medicina é ela. A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra

coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada

no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho.

- Vou mostrar o quarto, fica no sótão - disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. - O inquilino antes de vocês também

estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.

Minha prima voltou-se: - Um caixote de ossos?

A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com

o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No

ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e pondo-se de

joelhos puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada.

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- Mas que ossos tão miudinhos! São de criança? - Ele disse que eram de adulto. De um anão.

- De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados... Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí admirou-se ela.

Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. - Tão perfeito, todos os dentinhos!

- Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho

quente, extra. Telefone, também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa - recomendou coçando a

cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final: - Não deixem a porta aberta senão meu gato foge.

Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos

de salto na escada. E a tosse encatarrada. Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana. prendi na parede, com

durex, uma gravura de Grassmann e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada

fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. C quarto ficou mais alegre. Em

compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho. Examinou-a.

Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa.

- Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele.

Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar até a madrugada e depois fazia

sua ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria.

- De onde vem esse cheiro? - perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. - Você não está sentindo um cheiro meio ardido?

- É de bolor. A casa inteira cheira assim - ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama.

No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as

perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto!, mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida,

minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho. - Que é que você está fazendo aí? - perguntei.

- Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?

Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede

do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército

em marcha exemplar. - São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de

ida - estranhei. - Só de ida.

Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama. - Está debaixo dela - disse minha prima e puxou para fora o caixotinho.

Levantou o plástico. - Preto de formiga! Me dá o vidro de álcool.

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- Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora.

- Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vêm fuçar

aqui. Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os

sapatos e, como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro.

Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho. - Esquisito. Muito esquisito. - O quê?

- Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com

uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?

- Deus me livre, tenho nojo de osso! Ainda mais de anão. Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa,

era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do

meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos à cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.

Voltei a sonhar aflitivamente, mas dessa vez foi o antigo pesadelo com os exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do

único ponto que não tinha, estudado. As seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia com a cabeça coberta.

No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, à procura delas. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas

da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e

não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto.

Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa.

Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei. - E as formigas?

- Até agora, nenhuma. - Você varreu as mortas? Ela ficou me olhando.

- Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu? - Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de

deitar você juntou tudo... Mas, então, quem?! Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava.

- Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo. Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas

seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção da minha prima para esse aspecto, mas ela estava tão deprimida que achei melhor

ficar quieta. Espargi água-de-colônia Flor de Maçã por todo o quarto (e se ele

cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho, que competia nas repetições com o tal sonho da prova oral, nele eu marcava encontro

com dois namorados ao mesmo tempo. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O segundo,

desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço.

Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica. - Elas voltaram.

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- Quem? - As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de

novo. A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o

caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.

- E os ossos? Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.

- Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta, senti que no quarto

tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formigas, você se lembra? Não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas

se trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás,

tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão... Estão se

organizando. - Como, se organizando?

Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol.

- Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada

ossinho tomando o seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e... Venha ver!

- Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso? Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um

grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos.

Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto

rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas desapareciam com a luz do

dia. Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com

vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule fumegando no

fogareiro. - Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia - ela avisou. O assoalho ainda

estava limpo. Me abracei ao urso. - Estou com medo.

Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir.

- Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a

lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam?

Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, Acorda, acorda! Demorei para

reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga. - Voltaram - ela disse.

Apertei entre as mãos a cabeça dolorida. - Estão aí? Ela falava num tom miúdo, como se uma formiguinha falasse com sua voz.

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- Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a trilha já estava em plena movimentação. Então fui ver o caixotinho, aconteceu o

que eu esperava... - O que foi? Fala depressa, o que foi?

Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama. - Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto já está

inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui.

- Você está falando sério? - Vamos embora, já arrumei as malas.

A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados. - Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?

- Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta!

- E para onde a gente vai? - Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes

que o anão fique pronto. Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os

sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto,

deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito? No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a

janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.

TEXTO VIII

A Armadilha

Murilo Rubião

Alexandre Saldanha Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada,

apesar da volumosa mala que carregava e do número de andares a serem vencidos. Dez.Não demonstrava pressa, porém o seu rosto denunciava a segurança

de uma resolução irrevogável. Já no décimo pavimento, meteu-se por um longo corredor, onde a poeira e detritos emprestavam desagradável aspecto aos ladrilhos.

Todas as salas encontravam-se fechadas e delas não escapava qualquer ruído que indicasse presença humana.Parou diante do último escritório e perdeu algum tempo

lendo uma frase, escrita a lápis, na parede. Em seguida passou a mala para a mão esquerda e com a direita experimentou a maçaneta, que custou a girar, como se há

muito não fosse utilizada. Mesmo assim não conseguiu franquear a porta, cujo madeiramento empenara. Teve que usar o ombro para forçá-la. E o fez com

tamanha violência que ela veio abaixo ruidosamente. Não se impressionou. Estava muito seguro de si para dar importância ao barulho que antecedera a sua entrada

numa saleta escura, recendendo a mofo. Percorreu com os olhos os móveis, as

paredes. Contrariado, deixou escapar uma praga. Quis voltar ao corredor, a fim de recomeçar a busca, quando deu com um biombo. Afastou-o para o lado e encontrou

uma porta semicerrada. Empurrou-a. Ia colocar a mala no chão, mas um terror súbito imobilizou-o: sentado diante de uma mesa empoeirada, um homem de

cabelos grisalhos, semblante sereno, apontava-lhe um revólver. Conservando a arma na direção do intruso, ordenou-lhe que não se afastasse.Também a Alexandre

não interessava fugir, porque jamais perderia a oportunidade daquele encontro. A sensação de medo fora passageira e logo substituída por outra mais intensa, ao

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fitar os olhos do velho. Deles emergia uma penosa tonalidade azul.Naquela sala tudo respirava bolor, denotava extremo desmazelo, inclusive as esgarçadas roupas

do seu solitário ocupante:— Estava à sua espera — disse, com uma voz macia. Alexandre não deu mostras de ter ouvido, fascinado com o olhar do seu

interlocutor. Lembrava-lhe a viagem que fizera pelo mar, algumas palavras duras, num vão de escada.O outro teve que insistir:

— Afinal, você veio.Subtraído bruscamente às recordações, ele fez um esforço violento para não demonstrar espanto:— Ah, esperava-me? — Não aguardou

resposta e prosseguiu exaltado, como se de repente viesse à tona uma irritação antiga: — Impossível! Nunca você poderia calcular que eu chegaria hoje, se acabo

de desembarcar e ninguém está informado da minha presença na cidade! Você é um farsante, mau farsante. Certamente aplicou sua velha técnica e pôs espias no

meu encalço. De outro modo seria difícil descobrir, pois vivo viajando, mudando de

lugar e nome. — Não sabia das suas viagens nem dos seus disfarces.— Então, como fez

para adivinhar a data da minha chegada?— Nada adivinhei. Apenas esperava a sua vinda. Há dois anos, nesta cadeira, na mesma posição em que me encontro,

aguardava-o certo de que você viria.Por instantes, calaram-se. Preparavam-se para golpes mais fundos ou para desvendar o jogo em que se empenhavam.Alexandre

pensou em tomar a iniciativa do ataque, convencido de que somente assim poderia desfazer a placidez do adversário. Este, entretanto, percebeu-lhe a intenção e

antecipou-se:— Antes que me dirija outras perguntas — e sei que tem muitas a fazer-me — quero saber o que aconteceu com Ema.— Nada — respondeu,

procurando dar à voz um tom despreocupado.— Nada?Alexandre percebeu a ironia e seus olhos encheram-se de ódio e humilhação. Tentou revidar com um palavrão.

Todavia, a firmeza e a tranqüilidade que iam no rosto do outro venceram-no.— Abandonou-me — deixou escapar, constrangido pela vergonha. E numa tentativa

inútil de demonstrar um resto de altivez, acrescentou: — Disso você não sabia!Um

leve clarão passou pelo olhar do homem idoso:— Calculava, porém desejava ter certeza.

Começava a escurecer. Um silêncio pesado separava-os e ambos volveram para certas reminiscências que, mesmo contra a vontade deles, sempre os

ligariam.O velho guardou a arma. Dos seus lábios desaparecera o sorriso irônico que conservara durante todo o diálogo. Acendeu um cigarro e pensou em formular

uma pergunta que, depois, ele julgaria, desnecessária. Alexandre impediu que a fizesse.

Gesticulando, nervoso, aproximara-se da mesa:— Seu caduco, não tem medo que eu aproveite a ocasião para matá-lo. Quero ver sua coragem, agora, sem o

revólver.— Não, além de desarmado, você não veio aqui para matar-me.— O que está esperando, então?! — gritou Alexandre. — Mate-me logo!— Não posso.— Não

pode ou não quer?— Estou impedido de fazê-lo. Para evitar essa tentação, após tão longa espera, descarreguei toda a carga da arma no teto da sala. Alexandre olhou

para cima e viu o forro crivado de balas. Ficou confuso. Aos poucos, refazendo-se

da surpresa, abandonou-se ao desespero. Correu para uma das janelas e tentou atirar-se através dela. Não a atravessou. Bateu com a cabeça numa fina malha

metálica e caiu desmaiado no chão. Ao levantar-se, viu que o velho acabara de fechar a porta e, por baixo dela, iria jogar a chave.Lançou-se na direção dele,

disposto a impedi-lo. Era tarde. O outro já concluíra seu intento e divertia-se com o pânico que se apossara do adversário:— Eu esperava que você tentaria o suicídio e

tomei precaução de colocar telas de aço nas janelas.A fúria de Alexandre chegara ao auge:— Arrombarei a porta. Jamais me prenderão aqui!— Inútil. Se tivesse

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reparado nela, saberia que também é de aço. Troquei a antiga por esta.— Gritarei, berrarei!— Não lhe acudirão. Ninguém mais vem a este prédio. Despedi os

empregados, despejei os inquilinos. E concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo:— Aqui ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos.

TEXTO IX

Passe io Not urno - Par t e I I

Rubem Fonseca

Eu ia para casa quando um carro encostou no meu, buzinando

insistentemente. Uma mulher dirigia, abaixei os vidros do carro para entender o que ela dizia. Uma lufada de ar quente entrou com o som da voz dela: Não está

mais conhecendo os outros? Eu nunca tinha visto aquela mulher. Sorri polidamente. Outros carros

buzinaram atrás dos nossos. A avenida Atlântica, às sete horas da noite, é muito movimentada.

A mulher, movendo-se no banco do seu carro, colocou o braço direito para fora e disse, olha um presentinho para você.

Estiquei meu braço e ela colocou um papel na minha mão. Depois arrancou com o carro, dando uma gargalhada.

Guardei o papel no bolso. Chegando em casa, fui ver o que estava escrito. Ângela, 287-3594.

À noite, saí, como sempre faço. No dia seguinte telefonei. Uma mulher atendeu. Perguntei se Ângela estava.

Não estava. Havia ido à aula. Pela voz, via-se que devia ser a empregada.

Perguntei se Ângela era estudante. Ela é artista, respondeu a mulher. Liguei mais tarde. Ângela atendeu.

Sou aquele cara do Jaguar preto, eu disse. Você sabe que eu não consegui identificar o seu carro?

Apanho você às nove horas para jantarmos, eu disse. Espera aí, calma. O que foi que você pensou de mim?

Nada. Eu laço você na rua e você não pensou nada?

Não. Qual é o seu endereço? Ela morava na Lagoa, na curva do Cantagalo. Um bom lugar.

Estava na porta me esperando. Perguntei onde queria jantar. Ângela respondeu que em qualquer

restaurante, desde que fosse fino. Ela estava muito diferente. Usava uma maquiagem pesada, que tornava o seu rosto mais experiente, menos humano.

Quando telefonei da primeira vez disseram que você tinha ido à aula.

Aula de quê?, eu disse. Impostação de voz.

Tenho uma filha que também estuda impostação de voz. Você é atriz, não é? Sou. De cinema.

Eu gosto muito de cinema. Quais foram os filmes que você fez? Só fiz um, que está agora em fase de montagem. O nome é meio bobo, As

virgens desvairadas, não é um filme muito bom, mas estou começando, posso

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esperar, tenho só vinte anos. Na semi-escuridão do carro ela parecia ter vinte e cinco.

Parei o carro na Bartolomeu Mitre e fomos andando a pé na direção do restaurante Mário, na rua Ataulfo de Paiva.

Fica muito cheio em frente ao restaurante, eu disse. O porteiro guarda o carro, você não sabia?, ela disse.

Sei até demais. Uma vez ele amassou o meu. Quando entramos, Ângela lançou um olhar desdenhoso sobre as pessoas que

estavam no restaurante. Eu nunca havia ido àquele lugar. Procurei ver algum conhecido. Era cedo e havia poucas pessoas. Numa mesa

um homem de meia-idade com um rapaz e uma moça. Apenas três outras mesas estavam ocupadas, com casais entretidos em suas conversas. Ninguém me

conhecia.

Ângela pediu um martíni. Você não bebe?, Ângela perguntou.

Às vezes. Agora diga, falando sério, você não pensou nada mesmo, quando eu te passei

o bilhete? Não. Mas se você quer, eu penso agora, eu disse.

Pensa, Ângela disse. Existem duas hipóteses. A primeira é que você me viu no carro e se

interessou pelo meu perfil. Você é uma mulher agressiva, impulsiva e decidiu me conhecer. Uma coisa instintiva. Apanhou um pedaço de papel arrancado de um

caderno e escreveu rapidamente o nome e o telefone. Aliás quase não deu para eu decifrar o nome que você escreveu.

E a segunda hipótese? Que você é uma puta e sai com uma bolsa cheia de pedaços de papel escritos

com o seu nome e o telefone. Cada vez que você encontra um sujeito num carro

grande, com cara de rico e idiota, você dá o número para ele. Para cada vinte papelinhos distribuídos, uns dez telefonam para você.

E qual a hipótese que você escolhe?, Ângela disse. A segunda. Que você é uma puta, eu disse.

Ângela ficou bebendo o martíni como se não tivesse ouvido o que eu havia dito. Bebi minha água mineral. Ela olhou para mim, querendo demonstrar sua

superioridade, levantando a sobrancelha - era má atriz, via-se que estava perturbada - e disse: você mesmo reconheceu que era um bilhete escrito às

pressas dentro do carro, quase ilegível. Uma puta inteligente prepararia todos os bilhetinhos em casa, dessa maneira,

antes de sair, para enganar os seus fregueses, eu disse. E se eu jurasse a você que a primeira hipótese é a verdadeira. Você

acreditaria? Não. Ou melhor, não me interessa, eu disse.

Como que não interessa?

Ela estava intrigada e não sabia o que fazer. Queria que eu dissesse algo que a ajudasse a tomar uma decisão.

Simplesmente não interessa. Vamos jantar, eu disse. Com um gesto chamei o maître. Escolhemos a comida.

Ângela tomou mais dois martínis. Nunca fui tão humilhada em minha vida. A voz de Ângela soava ligeiramente

pastosa.

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Eu se fosse você não bebia mais, para poder ficar em condições de fugir de mim, na hora em que for preciso, eu disse.

Eu não quero fugir de você, disse Ângela esvaziando de um gole o que restava na taça. Quero outro.

Aquela situação, eu e ela dentro do restaurante, me aborrecia. Depois ia ser bom. Mas conversar com Ângela não significava mais nada para mim, naquele

momento interlocutório. O que é que você faz?

Controlo a distribuição de tóxicos na zona sul, eu disse. Isso é verdade?

Você não viu o meu carro? Você pode ser um industrial.

Escolhe a sua hipótese. Eu escolhi a minha, eu disse.

Industrial. Errou. Traficante. E não estou gostando desse facho de luz sobre a minha

cabeça. Me lembra as vezes em que fui preso. Não acredito numa só palavra do que você diz.

Foi a minha vez de fazer uma pausa. Você tem razão. É tudo mentira. Olha bem para o meu rosto. Vê se você

consegue descobrir alguma coisa, eu disse. Ângela tocou de leve no meu queixo, puxando meu rosto para o raio de luz

que descia do teto e me olhou imensamente. Não vejo nada. Teu rosto parece o retrato de alguém fazendo uma pose, um

retrato amigo, de um desconhecido, disse Ângela: Ela também parecia o retrato antigo de um desconhecido.

Olhei o relógio. Vamos embora?, eu disse.

Entramos no carro.

Às vezes a gente pensa que uma coisa vai dar cerro e dá errado, disse Ângela.

O azar de um é a sorte do outro, eu disse. A lua punha na lagoa uma esteira prateada que acompanhava o carro.

Quando eu era menino e viajava de noite a lua sempre me acompanhava, varando as nuvens, por mais que o carro corresse.

Vou deixar você um pouco antes da sua casa, eu disse. Por quê?

Sou casado. O irmão da minha mulher mora no teu edifício. Não é aquele que fica na curva? Não gostaria que ele me visse. Ele conhece o

meu carro. Não há outro igual no Rio. A gente não vai se ver mais?, Ângela perguntou.

Acho difícil. Todos os homens se apaixonam por mim.

Acredito.

E você não é lá essas grandes coisas. O teu carro é melhor do que você, disse Ângela.

Um completa o outro, eu disse. Ela saltou. Foi andando pela calçada, lentamente, fácil demais, e ainda por

cima mulher, mas eu tinha que ir logo para casa, já estava ficando tarde. Apaguei as luzes e acelerei o carro. Tinha que bater e passar por cima. Não

podia correr o risco de deixá-Ia viva. Ela sabia muita coisa a meu respeito, era a

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única pessoa que havia visto o meu rosto, entre todas as outras. E conhecia também o meu carro. Mas qual era o problema? Ninguém havia escapado.

Bati em Ângela com o lado esquerdo do pára-lama, jogando o seu corpo um pouco adiante, e passei, primeiro com a roda da frente - e senti o som surdo da

frágil estrutura do corpo se esmigalhando - e logo atropelei com a roda traseira, um golpe de misericórdia, pois ela já estava liquidada, apenas talvez ainda sentisse um

distante resto de dor e perplexidade. Quando cheguei em casa minha mulher estava vendo televisão, um filme

colorido, dublado. Hoje você demorou mais. Estava muito nervoso?, ela disse.

Estava. Mas já passou. Agora vou dormir. Amanhã vou ter um dia terrível na companhia.