modernidade, exclusÃo e contingÊncias....

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ISSN: 2236-3173 FACULDADE DE ADMINISTRAÇÃO E NEGÓCIOS DE SERGIPE - FANESE – ARACAJU – SERGIPE REVISTA DO CURSO DE DIREITO – VOL 4 – Nº 1 – SETEMBRO 2014 MODERNIDADE, EXCLUSÃO E CONTINGÊNCIAS. NOTAS SOBRE O PROBLEMA DA CRISE DOS PARADIGMAS MODERNOS NUMA SOCIEDADE ONTOLOGICAMENTE INTOLERANTE. Gilberto de Moura Santos RESUMO O reconhecimento público das questões sociais, como aquelas relacionadas à pobreza, à exclusão social, são ideações históricas que emergiram na modernidade. As concepções modernas afetas aos direitos universais do homem, conquanto sejam tomadas como paradigmáticas e fundamentem tais ideações, não são menos históricas. A crítica aos paradigmas modernos poderia representar um risco à realização das promessas da modernidade relacionadas a estas questões sociais? Não necessariamente. Antes é o silenciamento das vozes dissonantes numa sociedade intolerante que poderia erguer-se como obstáculo àquela empresa. Este texto discutirá estes problemas a partir de uma abordagem crítica dos critérios de verdade do projeto moderno. Palavras-chave: modernidade, pós-modernidade, exclusão social. ABSTRACT The public recognition of social issues such as those related to poverty, social exclusion, are ideations history that emerged in modernity. The modern conceptions connected to universal human rights, although they are taken as paradigmatic and substantiate such ideations, are no less historic. The criticism of modern paradigms could pose a risk to the fulfillment of the promises of modernity related to these social issues? Not necessarily. The silencing of the dissenting voices in an intolerant society could stand up as an obstacle to these social issues. This paper discusses these issues from a critical approach to the criteria of true modern design. Keywords: modernity; postmodernity; social exclusion. 1 Introdução 1 O debate em torno das questões (políticas) atinentes à organização do Estado e outras reflexões filosóficas correlatas remontam, obviamente, à Antiguidade Clássica, mas apenas na Modernidade as questões sociais emergiram como “problema”. O processo de desencantamento do mundo que estava em curso com o desmoronamento do Ancien Régime revelou as contradições de uma sociedade cujo ordenamento era, até então, inquestionável. Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais, DCS, UFS; Mestre em Sociologia, NPPCS, UFS. 1 Este artigo, parte dele, é uma versão de um dos capítulos de minha Tese de doutoramento em andamento.

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MODERNIDADE, EXCLUSÃO E CONTINGÊNCIAS.

NOTAS SOBRE O PROBLEMA DA CRISE DOS PARADIGMAS MODERNOS NUMA

SOCIEDADE ONTOLOGICAMENTE INTOLERANTE.

Gilberto de Moura Santos

RESUMO

O reconhecimento público das questões sociais, como aquelas relacionadas à pobreza, à

exclusão social, são ideações históricas que emergiram na modernidade. As concepções

modernas afetas aos direitos universais do homem, conquanto sejam tomadas como

paradigmáticas e fundamentem tais ideações, não são menos históricas. A crítica aos

paradigmas modernos poderia representar um risco à realização das promessas da modernidade

relacionadas a estas questões sociais? Não necessariamente. Antes é o silenciamento das vozes

dissonantes numa sociedade intolerante que poderia erguer-se como obstáculo àquela empresa.

Este texto discutirá estes problemas a partir de uma abordagem crítica dos critérios de verdade

do projeto moderno.

Palavras-chave: modernidade, pós-modernidade, exclusão social.

ABSTRACT

The public recognition of social issues such as those related to poverty, social exclusion, are

ideations history that emerged in modernity. The modern conceptions connected to universal

human rights, although they are taken as paradigmatic and substantiate such ideations, are no

less historic. The criticism of modern paradigms could pose a risk to the fulfillment of the

promises of modernity related to these social issues? Not necessarily. The silencing of the

dissenting voices in an intolerant society could stand up as an obstacle to these social issues.

This paper discusses these issues from a critical approach to the criteria of true modern design.

Keywords: modernity; postmodernity; social exclusion.

1 Introdução1

O debate em torno das questões (políticas) atinentes à organização do Estado e

outras reflexões filosóficas correlatas remontam, obviamente, à Antiguidade Clássica, mas

apenas na Modernidade as questões sociais emergiram como “problema”. O processo de

desencantamento do mundo que estava em curso com o desmoronamento do Ancien Régime

revelou as contradições de uma sociedade cujo ordenamento era, até então, inquestionável.

Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais, DCS, UFS; Mestre em Sociologia, NPPCS, UFS. 1 Este artigo, parte dele, é uma versão de um dos capítulos de minha Tese de doutoramento em andamento.

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Nesta esteira, as causas das contradições, das desigualdades sociais deixaram de ser procuradas

(e respondidas) fora do mundo social e passaram a ser objeto de reflexão.

Em outras palavras, é neste contexto de transformações radicais pelas quais o

Ocidente atravessava que emergiu um tipo de indagação peculiarmente racional, as ciências

sociais, que se debruçava sobre a sociedade, tomada como objeto de investigação. Este cenário

de mudanças não se limitava à esfera acadêmica, à reflexão intelectual. O projeto moderno

permitiu, de fato, a inserção das questões sociais, antes adstritas à esfera privada, no debate

público. Ou seja, progressivamente, a relevância de tais questões passou a ser reconhecida na

esfera pública; a pauta do debate público foi alterada.

O projeto moderno não pode prescindir de certas categorias que lhes são

fundamentais, tais como, a racionalidade e o individualismo. O desenvolvimento de algumas

destas categorias ensejou o alargamento da compreensão de ideias e práticas (como a cidadania,

o combate à pobreza, os direitos humanos) de modo singularmente moderno, o que desencadeou

um projeto de sociedade que estabeleceu princípios básicos: os direitos humanos (cf. ARENDT,

2011; BODSTEIN, 1997).

Embora fundamentais, os “princípios básicos” que orientam este modelo são

históricos: são o produto da criação humana. Sendo assim, alguns destes “princípios” poderiam

ser mais bem traduzidos como conquistas. Mas, ainda que se admita o malogro do projeto

moderno em muitas de suas promessas, alguns pressupostos que lhes são intrínsecos sustentam,

em certa medida, um consenso em relação a critérios de validação (de verdade) que suportam

espaços de debate públicos nas sociedades modernas. O caráter democrático destes espaços

salta aos olhos quando contrastado com o tipo organização social que precedeu à sociedade

moderna. Entretanto, há de se reconhecer também que o desnivelamento de poder, o

aviltamento dos direitos dos cidadãos, não é um fenômeno superado: estes desequilíbrios são

indelevelmente atuais. A modernidade viabilizou a inserção de novos atores sociais, é verdade.

Mas, contraditoriamente, a intolerância, em suas mais tenebrosas feições, não ficou para trás,

relegada a um passado medieval: ela é marca indisfarçável da contemporaneidade.

Além da racionalidade, que garante alguma possibilidade de comunicação e

produção de consenso a partir de critérios diferentes da revelação mística, do arbítrio, da pura

coerção física, a ideia de direitos universais do homem compõe o corolário do projeto moderno,

e, neste sentido, não pode deixar de ser considerada paradigmática. Atualmente, o debate sobre

as possibilidades de conciliação entre as teses da unidade biológica humana e de sua grande

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diversidade cultural avançou o suficiente tanto para ratificar, em certo sentido, aquela

concepção paradigmática, quanto para produzir uma “outra certeza”: há uma única espécie, uma

só raça, a humana; em sua enorme diversificação cultural.

Esta tese, mais do que isso, esta conquista, é cara sobretudo às concepções

modernas de direitos humanos. Quais seriam as consequências de uma crítica radical às bases

de legitimação da modernidade, do projeto moderno, que colocasse ao debate todas as

“certezas”, inclusive esta última? A defesa dos direitos humanos e a luta contra as diversas

formas de exclusão social poderiam recorrer a algum fundamento ontológico, moderno ou não?

A inexistência de um fundamento deste tipo inviabilizaria a realização das promessas da

modernidade relacionadas às questões sociais, aos direitos universais do homem?

Antes de qualquer coisa, é necessário reconhecer-se que o projeto moderno procura

no discurso científico suas bases de legitimação: “existe uma separação entre Estado e religião,

mas não há uma separação entre Estado e ciência” (CHALMERS, 2000, p. 185 – grifo nosso).

Nesta perspectiva, a comunidade científica, a despeito de constituir uma comunidade de saber

local, é a única que universaliza esse saber. Este saber (que não aparece como “poder”, uma

vez que é “naturalizado”) será aplicado no Estado, na sociedade. Tal “aplicação técnica”, afirma

Boaventura de Souza Santos (1989, p. 157), “aplicação de know-how técnico, torna dispensável

e até absurda qualquer discussão sobre um know-how ético”.

A despeito das afirmações categóricas do autor português, a sociedade moderna

criou, incontestavelmente, fóruns de discussões acerca do referido know-how ético. Entretanto

é igualmente incontestável o fato de que tais espaços são quase que monopolizados por experts

ou por indivíduos e grupos “poderosos”. Mas quando estas questões se tornaram relevantes?

Em que sentidos a crítica à modernidade expõe à discussão os ideias (modernos) que se referem

ao problema da exclusão social, da dignidade do homem e dos seus direitos universais? Que

relação há entre tais questões e os fundamentos de verdade da ciência?

Este artigo objetiva enfrentar tais questões a partir de um aporte teórico menos afeto

às áreas jurídicas do que sociológicas e filosóficas. Isto é, não se trata de uma reflexão

fundamentada numa percepção técnica do Direito, tomado como campo do saber acadêmico,

ou ciência dogmático-normativa do direito. Não obstante, reconhece-se que, à esteira de

Fernanda Doz Costa (2008), o debate sobre as relações entre pobreza e direitos humanos deva

prosseguir de modo que possam ser utilizados os instrumentos vinculantes destes no combate à

exclusão social, à pobreza.

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Fernanda Costa filia-se, neste debate, às teorias que consideram a pobreza como

causa ou consequência de violações de direitos humanos e propõe uma discussão acerca dos

instrumentos legais aos quais se poderia recorrer no combate à exclusão social. Também neste

ponto, este texto corrobora as ideias da autora, contudo, não se fará alusão aqui a tais

instrumentos vinculantes, nem a quaisquer outros (do campo do direito), senão incidentalmente.

Ao invés disto, o texto pretende iniciar uma reflexão acerca das possibilidades de realização de

algumas das promessas da modernidade.

Parte-se do pressuposto de que as promessas visadas apenas serão cumpridas num

ambiente dotado de plena liberdade democrática, em que as vozes dissonantes possam ser

ouvidas, onde não haja divisão entre “decisores e executores” e os interessados tomem a

palavra, não apenas os experts, os poderosos. Este cenário não é muito diferente daquele

desenhado pela crítica (pós-moderna) à modernidade delineada neste texto. De qualquer modo,

é necessário abordar-se também as bases de verdade da ciência a fim de expor a sua

mistificação, e, ato contínuo, a dogmatização do projeto moderno. Conhecimento e poder são,

com efeito, indissociáveis neste contexto.

2 Modernidade e pós-modernidade. Dois paradigmas, um projeto comum.

De acordo com Boaventura de Souza Santos (1989, p. 11), “a época em que

vivemos deve ser considerada uma época de transição entre o paradigma da ciência moderna e

um novo paradigma, de cuja emergência se vão acumulando os sinais”. Paradoxalmente, o

contexto tão propalado de emergência e consolidação da sociedade industrial, em que se

dogmatizaram o paradigma moderno e suas ontologias, é aquele mesmo que viabilizará um

processo de “desdogmatização”, afirma o autor. O sociólogo português chama este novo

paradigma de pós-modernidade, por falta, segundo ele, de um nome melhor. Para os fins desta

discussão, e pelos mesmos motivos que orientaram Santos, este texto empregará esta

nomenclatura.

O que se põe em dúvida, neste contexto de crise epistemológica, entende

Boaventura de Souza Santos, é a forma de “inteligibilidade do real”. Fatores estritamente afetos

às novas descobertas nos campos da ciência e da reflexão filosófica contribuíram para este

processo tanto quanto aqueles ligados aos aspectos sociológicos e psicológicos da prática

científica, no sentido de Kuhn (2011). De qualquer modo, este fenômeno, que produz seus

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efeitos no campo acadêmico, reverbera, afirma-se aqui, inexoravelmente, em outras esferas.

Assim, irá tocar diretamente nos critérios de verdade que orientam o Estado, a sociedade.

O sociólogo português não está sozinho em suas asserções: uma miríade de autores

reitera, com maior ou menor ênfase, a crítica às ontologias modernas. Nesta linha, no que se

refere ao campo da epistemologia, Michel Peters (2000) afirma que a ideia de pós-modernidade

pode ser vinculada à negação das ontologias: a concepção de sujeito centrado no Estado-nação,

uma filosofia da história, a racionalidade. Isto implica que os sistemas humanos são auto-

reflexivos e não referenciais. O discurso da pós-modernidade declara que a razão é apenas uma

de muitas narrativas; que ela, a razão, pode agora ser substituída por outras.

Disso não se depreende que a era moderna tenha chegado ao fim. O que se constata,

à esteira de Peters, é a emergência de uma “nova relação” com ela. Uma “nova relação” que

propiciou uma transformação no modo de se encarar as sociedades: agora é possível tomá-las

como contingências históricas. Segundo Richard Rorty (2007), pensadores como Nietzsche e

Freud contribuíram para isso. O autor considera que, não obstante necessária, esta empresa, per

se, não é suficiente: ela não toca a questão da solidariedade humana, cuidando apenas da “esfera

privada”. Rorty acredita que as artes, a literatura, sobretudo com o romance e a poesia, irão

completar esta tarefa. Mas não porque haja algo imanente aos homens, uma razão a qual se

possa lançar mão.

Parece incauto esperar-se algo de bom (ou de ruim) dos homens simplesmente

porque eles não são dotados de uma natureza intrínseca, a menos que se queira recorrer ao

discurso religioso. Nesta perspectiva, uma conclusão acerca de tal empreendimento é

antecipada: “não há como juntar autocriação com a justiça no nível teórico” (RORTY, 2007, p.

17). O “vocabulário” da autocriação é privado, o da justiça é público.

Conquanto sejam várias as possibilidades de enfrentamentos (teóricos e políticos)

para estas questões, talvez seja prudente admitir-se que os fatores que as fizeram emergir não

se limitam às contribuições trazidas pelas ideias de Nietzsche e de Freud. Outros fatores (e

ideias) devem ser considerados: que se referem a um complexo processo de transformações,

tanto no campo epistemológico e científico quanto material, socioeconômico, cujos pontos de

partida, embora conhecidos em sua maioria (alguns deles discutidos aqui), não podem ser

traduzidos senão em longas páginas. Precisar o seu ponto final é tarefa inexequível.

O desenvolvimento recente da reflexão epistemológica aponta para o

reconhecimento de certos aspectos extracientíficos (para usar a terminologia popperiana),

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sócio-políticos, no processo de construção da legitimidade do conhecimento: a adesão aos

paradigmas (KUHN, 2011), a performatividade (LYOTARD, 2011) e o consequente

desnivelamento do poder (SANTOS, 1989; FOUCAULT, 2000), o silenciamento dos outros.

Esta mesma reflexão sugere que se faça um esforço para que sejam atenuados tais

desequilíbrios. Nesta perspectiva, será possível falar-se na manutenção de ideias caras à

modernidade, como os direitos humanos, sem incorrer-se em contradições.

Isto é, na medida em que o silenciamento das vozes dissonantes (e aqui não se faz

referência apenas aos cientistas que se desviaram do paradigma dominante, mas à população

em geral, às minorias, em particular) deixar de ser o instrumento de produção do consenso (e

não for substituído por nenhum outro tão ou mais excludente), talvez emerjam novas

concepções ainda mais democráticas e solidárias de conhecimento, de práticas sociais, de

direitos humanos. Isto é possível porque “os cientistas não são melhores que ninguém nesses

assuntos”, afirma Feyerabend,

eles apenas conhecem mais detalhes. Isso significa que o público pode

participar da discussão sem perturbar caminhos existentes para o sucesso

(não há tais caminhos). Nos casos em que o trabalho dos cientistas afeta o

público, este até teria obrigação de participar: primeiro porque é parte

interessada (...); segundo, porque tal participação é a melhor educação

científica que o público pode obter – uma democratização completa da ciência

(o que inclui a proteção de minorias, como os cientistas) não está em conflito

com a ciência (FEYERABEND, 2001, p. 21 – grifos do autor).

A despeito deste processo, há um fato do qual não se pode tergiversar: o paradigma

moderno ainda fundamenta os discursos de autoridade nas sociedades contemporâneas. Para

além das fronteiras do campo propriamente científico e epistemológico, ou seja, na sociedade,

no Estado, esta crise de legitimação apenas dá seus passos iniciais. Mas a tradicional vinculação

entre Estado e ciência não parece estar ameaçada com a possível emergência de um novo

paradigma, ainda que este seja mais democrático e inclusivo. Se isso é verdade, justifica-se esta

discussão que discute a manutenção de um “problema moderno” (as questões sociais, os direitos

humanos) no contexto de crise dos paradigmas modernos.

Não é possível encerrar-se em poucas linhas uma discussão que, em sua essência,

não é mais nova do que a filosofia: a relação entre o conhecimento e a política. A despeito disso,

este texto enfrenta o tema a partir de autores que empreendem, com níveis variados de

radicalização, uma crítica: às descrições que os filósofos da ciência fazem dela; ao projeto

moderno, sobretudo do ponto de vista epistemológico e de suas implicações nas práticas sociais.

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Aquelas descrições são tomadas como corresponsáveis pela dogmatização da ciência moderna,

cujas consequências apontam para a aceitação tácita, acrítica de suas ontologias (e para os

desnivelamentos dos saberes e do poder). Com efeito, uma discussão sobre a história da ciência,

sobre as práticas dos cientistas, concorrerá para uma inevitável desdogmatização.

A crítica à modernidade considerada neste trabalho não se coloca como empecilho

ao conhecimento ou à ação, mas questiona as suas bases de legitimidade. Assim, ao apresentar

os aspectos dogmáticos em que se assenta a legitimidade do discurso científico vis-à-vis o modo

tácito como ele é aceito na sociedade, o texto levanta as possibilidades de emergência de

discursos intolerantes pretensamente amparados nas “imponderabilidades científicas”. O que

não seria, aliás, um fenômeno inédito tampouco raro, mas, por isso mesmo, digno de nota.

O trabalho de construção das bases de legitimação do conhecimento científico na

modernidade (mas não apenas nela) é também, ratifique-se, uma empresa política. Nesta arena,

a quem está franqueada a palavra? Os discursos divergentes são considerados? Para Lyotard

(2011), a ciência é um jogo que possui suas regras, mas à medida que o trabalho científico se

torna mais complexo, os meios de provas (que legitimam a verdade neste jogo) também se

tornam. A tecnologia empregada neste processo exige cada vez mais dinheiro: eis o domínio da

performatividade, que só se constitui em posição hegemônica uma vez que a questão da

legitimidade permanece intocada (cf. LECHTE, 2003).

O resultado disto é a união entre o conhecimento e o poder. Não obstante os esforços

para que se atenuem os desnivelamentos de poder, o domínio da performatividade não dá

maiores sinais de cansaço. Neste sentido, as concepções de Rorty (2007), Lyotard (2011),

Boaventura de Souza Santos (1989) e, em certa medida, Habermas (2004), embora neguem a

existência de um denominador comum, algo intrínseco aos homens (como a racionalidade do

projeto moderno) para a consecução de quaisquer ideações coletivas, são exemplos valiosos

daqueles esforços de atenuação dos desequilíbrios.

Tais concepções fazem eco com a ideia de que o debate público só pode ser

considerado realmente democrático quando envolver os interessados, e não apenas os experts.

Estas concepções, diga-se de passagem, estão plenamente alinhadas à ideia de expansão dos

direitos. Neste sentido, os ideais modernos aos quais se faz referência neste texto poderiam

realizar-se na medida em que certos aspectos da crítica pós-moderna fossem levados em

consideração. Mas, antes de se avançar nesta direção, serão abordadas algumas questões

preliminares relacionadas à história da ciência e à crítica às ontologias promovida pelo discurso

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pós-moderno. Talvez seja forçoso reconhecer-se de pronto que a modernidade não é mais velha

do que o germe2 de sua crítica. Isto é, neste texto, considera-se que a crítica imanente da

atividade científica sempre provocou desconfianças quanto aos critérios de verdade perpetrados

pelas ciências e seus paradigmas. O mesmo se pode dizer da reflexão filosófica ou política.

Quanto às considerações mais especulativas, a respeito da manutenção de certos

ideais modernos (relacionados aos direitos humanos e, de certo modo, às possibilidades de

atenuação dos desnivelamentos de poder, das desigualdades sociais) no contexto de crise dos

paradigmas da modernidade, a exposição mesma da crise trará à tona o problema. Todavia,

uma conclusão plausível pode ser assim antecipada: na medida em que se considera

fundamental “o direito a ter novos direitos”, e que tal projeto exige um profundo trabalho de

atenuação dos desequilíbrios de poder, a crítica pós-moderna à modernidade considerada neste

texto e as concepções mais inclusivas (mas não menos modernas) ligadas às questões sociais

acima mencionadas irão se encontrar.

3 Uma brevíssima história (crítica) da ciência. Em busca da desdogmatização.

O que é ciência, afinal? É o título do instigante livro de Chalmers (2000). Nele o

autor discute as bases em que se assenta a autoridade da ciência. Que métodos garantem o

sucesso deste empreendimento? Os resultados indelevelmente meritórios alcançados pela

ciência derivam de quê? Para o autor, enganam-se aqueles que, pensando seguir as ciências

duras, confundem a adoção de um “método” indutivo baseado em coleta de dados com uma

prática “mais científica”. Aliás, o sucesso da ciência não se deve a tal procedimento empirista.

Em suma, não há método capaz de provar a veracidade das teorias, tampouco método capaz de

desaprová-las cabalmente.

Uma vez que Chalmers está preocupado em discutir o desenvolvimento da ciência

em face das descrições que os filósofos da ciência fizeram dela, e que tal análise contribui para

a desmistificação da prática científica e das bases de legitimação da ciência (o que incide

diretamente nas ontologias modernas), esta seção do presente texto acompanha de perto a obra

de Chalmers. Mas, ao se percorrer o itinerário traçado pelo autor, o presente trabalho recorre

2 Alusão à ideia de superação dialética do capitalismo presente no materialismo histórico (MARX; ENGELS,

1999): o sistema capitalista teria gerado, paradoxalmente, o germe que provocaria a sua transcendência dialética,

o proletariado. Este artigo, entretanto, apropria-se apenas da analogia ligada à imagem criada pelo autor.

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diretamente a alguns dos pensadores fundamentais para esta discussão, a exemplo de Popper

(1978), Kuhn (2011), Feyerabend (2011), além de outros como Giddens (1978) e Santos (1989).

Para Chalmers, os episódios considerados como momentos de “avanços da ciência”

(a substituição da física ptolomaica pelo modelo desenvolvido por Galileu; da física newtoniana

para a einsteiniana) “não se realizaram através de nada semelhante aos métodos tipicamente

descritos pelos filósofos” (CHALMERS, 2000, p. 19). Neste ponto, suas ideias são

compartilhadas por outros autores. Nesta esteira, as metodologias descritas pelos filósofos da

ciência, entende Feyerabend (2011), e, afirma-se aqui, aquelas informadas pelos veículos de

popularização científica, são incompatíveis com a “verdadeira” história da física.

Segundo Feyerabend, nenhuma metodologia forneceu regras adequadas para

orientar os cientistas, a única regra que sobrevive é a do “vale-tudo”.3 A partir do conceito de

incomensurabilidade, Feyerabend admite que as escolhas entre duas teorias rivais seguem

critérios não lógicos. Ainda que considere perniciosa a reivindicação de um método científico

universal, Chalmers repudia a ideia de incomensurabilidade defendida por Feyerabend na

medida em que esta afirma que a ciência não pode reivindicar um caráter racional em detrimento

do vodu ou da mágica.

Para Francis Bacon, pioneiro na articulação da ciência moderna, a meta da ciência

era o melhoramento da vida do homem na terra. Esta seria alcançada da seguinte maneira: coleta

de fatos através da observação organizada, a partir dos quais seriam derivadas teorias. Esta tese,

no entanto, é constantemente desafiada pela história da ciência, mas tal fato não impede a

emergência de correntes como o positivismo lógico, para quem as teorias podem apenas ser

justificadas em confronto com os fatos adquiridos na observação. Embora as teses deste

positivismo tenham sido duramente criticadas e, além disso, sejam incompatíveis com o avanço

da física quântica e da relatividade que estavam em curso, seu progresso, paradoxalmente, não

cessou. Hoje, porém, qualquer discurso do gênero é tomado com muita desconfiança, afirma

Chalmers. De qualquer modo, deve-se abordar esta discussão em perspectiva histórica. Para

tanto, tome-se como ponto de partida o indutivismo.

Para uma interpretação indutivista da ciência, “o conhecimento científico é

conhecimento confiável porque é conhecimento provado” (CHALMERS, 2000, p. 23), porque

3 Uma percepção um tanto radical, talvez não compartilhada por Chalmers, pode ser observada em Alves (2001).

O autor compara a atividade do cientista (os problemas relacionados à elaboração de um objeto de estudo,

hipóteses, etc.) ao ofício de uma dona de casa: os problemas relacionados à preparação de uma refeição, por

exemplo.

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é derivado dos dados da experiência. Tal concepção, que é amplamente aceita pelo senso

comum, é fruto do sucesso alcançado pelos grandes experimentadores, mas hoje deve ser

encarada como ingênua. De acordo com este tipo de indutivista ingênuo, a ciência começa com

a observação. É necessário, portanto, um observador não preconceituoso, que goze de saúde, a

fim de que os dados sejam coletados. Este apresentará suas afirmações singulares. Destas são

produzidas as afirmações universais.

Mas, se a ciência é baseada na experiência, como é possível que ocorra qualquer

universalização? O indutivista dirá que é imprescindível um número grande de proposições

singulares, repetidas sob uma ampla variedade de condições de modo que nenhuma observação

se contraponha à teoria. Este princípio da indução pode ser justificado ou validado? A resposta

é categórica: não.

Fazendo coro com David Hume, Chalmers afirma não ser possível usar a indução

para justificar a indução. Aqui reside “o problema da indução”. Some-se a este a vagueza em

se estabelecer um quantum apropriado de observações e de variedade de condições. É

imperativo distinguirem-se as variações significativas das outras, todavia não é possível fazê-

lo sem um conhecimento teórico do objeto.4 Embora a teoria anteceda, frise-se, as proposições

de observação, estas últimas não devem ser descartadas, pelo contrário, é o papel delas que se

questiona, seu lugar (superestimado).

Para a percepção falsificacionista, as teorias são conjecturas especulativas que

buscam superar as teorias anteriores. As teorias que não resistem aos testes devem ser

superadas: um processo de tentativa e erro, por conjecturas e refutações. A falsidade de

afirmações universais, afirma Chalmers, pode ser deduzida de afirmações singulares

disponíveis. Deste modo, as teorias e hipóteses são científicas na medida em que possam ser

falsificáveis. Uma teoria científica nova é considerada pelos cientistas falsificacionistas se ela

for mais falsificável que a anterior e conseguir prever fenômenos não tocados pela rival que a

antecedeu. Em uma palavra, a ciência avança, entendem os falsificacionistas, ao rejeitar as

modificações ad hoc, refutar as teorias “cautelosas” e “confirmar as audaciosas”.

Os falsificacionistas concordam num ponto: “a aceitação da teoria é sempre

tentativa. A rejeição da teoria pode ser decisiva” (CHALMERS, 2000, p. 90). Mas suas

4 Para superar estes problemas recorre-se à probabilidade, uma tentativa de refinamento que, no entanto, não escapa

à mesma lógica. Com efeito, qualquer evidencia observável constitui-se num número finito dividido pelo número

infinito de variedades de condições: o resultado da fração é “zero”. Tentativas de construção de probabilidades de

previsões individuais são passíveis das mesmas críticas.

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afirmações são seriamente solapadas: as proposições de observação (que permitem as

refutações) são baseadas nas teorias; e elas são falíveis. O fato de as proposições de

observações, que são as bases para a falsificação, poderem se revelar falsas em face de

desenvolvimentos posteriores, impedem que as teorias sejam conclusivamente falsificadas!

Deste modo, indutivistas e falsificacionistas não fornecem um relato compatível com a história

da ciência.5

Popper (1978) estabelece uma série de teses a fim de desenvolver sua concepção de

ciência e método científico, e de objetividade das ciências sociais. Parte do pressuposto de que

o conhecimento é fruto de uma tensão entre aquilo que se conhece e aquilo que se ignora, mas

a tensão mesma “nunca é superada”. O conhecimento floresce, então, em situações problema,

não de uma observação que resulta em esquemas do tipo indutivista, mas naquele tipo de

“observação que cria um problema”. Assim, continua o autor, “é o caráter e a qualidade do

problema e também, é claro, a audácia e a originalidade da solução sugerida, que determina o

valor ou a ausência do valor de uma empresa científica” (POPPER, 1978, p. 15).

A objetividade da ciência não reside na postura “objetiva” do cientista individual,

mas na objetividade do método crítico. Tal “abordagem crítica” é que confere, em última

análise, a objetividade à empresa científica; aliás, as ciências sociais devem parar de procurá-

la nas ciências naturais, admoesta Popper. O autor distingue as questões científicas,

“fecundidade, força explicativa, simplicidade e precisão”, daquelas extracientíficas. Para ele,

embora seja impossível separar estas questões (sob o risco de desfigurar o cientista), é papel do

criticismo científico lutar contra as confusões. O autor reabilita (dos céticos e relativistas) a

ideia de verdade, embora seu criticismo científico defenda que uma teoria não possa ser

considerada verdadeira (cf. POPPER, 1978). Paradoxalmente, poderá ser considerada falsa!

Em relação a este debate sobre a filosofia da ciência, Giddens (1978) também

destaca as figuras de Popper e Kuhn. Segundo Giddens, Popper abre caminho para Thomas

Kuhn na medida em que reconhece a ciência como uma obra coletiva.6 Há consideráveis

5 O êxito da teoria copernicana, em detrimento da aristotélica, não se deve à falsificação de teorias anteriores ou

ao indutivismo; concepções novas e mal projetadas resistem a despeito destes tipos de ataques. Um trabalho de

muitos cientistas ao longo de décadas projetou um novo sistema de física, só depois disso este pode ser

experimentado de forma detalhada (cf. CHALMERS, 2000, p. 107). 6 Curiosa, afirma Giddens, é a apropriação feita pelas ciências sociais da ideia de paradigma de Kuhn. São

justamente estas ciências que inspiram o autor a descrever um ambiente pré-paradigmático, pré-científico. A

propósito, a percepção de Kuhn pode ser assim resumida: pré-ciência (total desacordo e debate em ralação aos

fundamentos) – ciência normal (acordo dentro de um paradigma) – crise-revolução – nova ciência normal – nova

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contradições, do ponto de vista de Giddens, entre as duas perspectivas: Kuhn admite que o

sucesso da ciência normal dependa da suspensão do seu caráter crítico;7 segundo Popper, o

aprimoramento da ciência, da teoria, é função da crítica (com vistas à falsificação).

Para Giddens, “qualquer esforço para fundamentar o racionalismo da ciência dentro

da estrutura da ciência em si encontra-se em círculo lógico”, no entanto, continua, “ele só se

torna um círculo vicioso se seu fechamento é tratado como ponto final da investigação, ao invés

de seu começo” (GIDDENS, 1978, p. 147). Assim, Giddens destaca que, na perspectiva de

Popper, o sistema teórico precede à descrição falsificadora, mas não se avança na tarefa de

indicar os critérios epistemológicos para as transformações de problemas progressivos.

Anthony Giddens reconhece as contribuições de Kuhn, mas considera que o

epistemólogo não consegue articular a ideia de progresso da ciência em seu modelo. Em lugar

do modelo “fechado” de paradigma de Kuhn, em que subsiste internamente uma linguagem

incompatível com uma outra externa, Giddens propõe que todos os paradigmas sejam mediados

por outros. Assim, Giddens (e também RORTY, 2007) toma os paradigmas por “linguagens”.

O sociólogo enxerga uma continuidade entre as linguagens que se sucedem – de Newton para

Einstein, por exemplo. De certo modo, o próprio Kuhn parece concordar. Para ele, “uma nova

teoria, por mais particular que seja seu âmbito de aplicação,”

nunca ou quase nunca é um mero incremento ao que já é conhecido. (...) Sua

assimilação requer a reconstrução da teoria precedente e a reavaliação dos

fatos anteriores. Esse processo intrinsecamente revolucionário raramente é

completado por um único homem e nunca de um dia para o outro. Não é de

admirar que os historiadores tenham encontrado dificuldades para datar com

precisão esse processo prolongado, ao qual, impelidos por seu vocabulário,

veem como um evento isolado (KUHN, 2011, p. 26).

Para Chalmers, os conceitos - que devem ser o mais precisos quanto possível -

obtêm seus sentidos em função do papel que desempenham numa teoria. Mas isso se dará por

meio do desenvolvimento de uma teoria coerentemente estruturada; segundo o autor, a história

confirma essa assertiva. De qualquer modo, as teorias “devem ser estruturas abertas para que

ofereçam um programa de pesquisa” (CHALMERS, 2000, p. 112). A ideia de paradigma que

crise... Um paradigma “é um composto de suposições teóricas gerais e de leis e técnicas para a sua aplicação

adotadas por uma comunidade científica específica” (CHALMERS, 2000, p. 124). 7 Colocar-se em suspensão a crítica a fim de garantir a estabilidade do paradigma, argumenta Giddens (1978), não

parece ser uma atitude diferente daquela empreendida pelo feiticeiro que, diante do insucesso de sua magia, utiliza

a mesma desculpa: “deu errado, alguma coisa desconhecida aconteceu”.

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se depreende de Kuhn refere-se, em certa medida, a estruturas do gênero (modelos que, para

Giddens, são “fechados”).

Kuhn destaca os aspectos sociológicos e psicológicos que atuam na constituição do

campo científico:8 no “caráter revolucionário do progresso científico, em que uma revolução

implica o abandono de uma estrutura teórica e sua substituição por outra, incompatível”

(CHALMERS, 2000, p. 123). À ciência normal compete articular detalhadamente um

paradigma a fim de melhorar a “correspondência entre ele e a natureza”, nesta perspectiva,

depreende Chalmers da concepção de Kuhn, um paradigma será sempre suficientemente

impreciso e aberto.

Os problemas não resolvidos no programa são tomados como anomalias, não como

falsificações; não comprometem o modelo a menos que se perca o “controle”. Nesta senda, a

mudança de paradigma por parte de um cientista está para a ciência assim como a conversão

está para a religião; não haverá argumentos puramente lógicos naquela mudança (que, para

Kuhn, é comparável a uma revolução política). É também por isso que os motivos relacionados

a tais mudanças devem ser enfrentados pela sociologia e psicologia.

O objetivo desta incursão panorâmica na história da ciência não é outro senão

discutir os critérios de validação construídos no curso do desenvolvimento da ciência moderna

em cotejo com as descrições que os próprios filósofos da ciência fazem dela, da ciência. A

inexistência de um critério para a validação de verdades ao qual se possa recorrer põem em

xeque quaisquer metanarrativas. É nesta perspectiva que se pretende continuar a discussão a

respeito da relação entre as teorias científicas e o mundo em que se pretende testá-las e aplicá-

las.

Chalmers chama de “realismo” a corrente que imagina descrever o mundo como

ele realmente é. Uma vertente alternativa, “instrumentalista”, admite como ficções as teorias.

Nesta vertente, as teorias são “compreendidas como instrumentos projetados para relacionar

um conjunto de estado de coisas observáveis com outros” (CHALMERS, 2000, p. 189). O fato

de os realistas serem mais especulativos e audazes para conjecturar, coloca-os à frente dos

instrumentalistas: a concepção realista de Galileu (em contraste com as concepções

instrumentalistas de seus opositores) mostrou-se muito mais frutífera. Mas o problema da

8 Campo no sentido empregado por Bourdieu (2000; 2004), afirma-se aqui: um microcosmo inserido no universo

social que possui leis próprias e que é relativamente refratário às demandas externas.

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verdade permanece, pois “os fatos não nos são acessíveis, nem deles se pode falar,

independentes de nossas teorias” (CHALMERS, 2000, p. 198).9

A teoria é produto humano, portanto inescapavelmente mutável, ao contrário do

mundo físico. Imaginar que um dia serão descobertas “as verdades incontestes” é negar o

caráter humano da ciência. Também neste ponto se encontram os críticos do projeto moderno

e o epistemólogo. Tomando como pontos de partida as contribuições à física trazidas por

Newton e Einstein, Chalmers afirma que a teoria daquele “não pode ser interpretada como

correspondendo aos fatos, mas sua aplicabilidade ao mundo deve ser compreendida num

sentido mais “forte” que o captado pelo instrumentalismo” (CHALMERS, 2000, p. 207). Tal

concepção pode ser tratada por “realismo não-representativo” – tese defendida por Chalmers.

Esta tese rejeita uma teoria da verdade da correspondência. Isto é, só “podemos

avaliar nossas teorias do ponto de vista da extensão em que lidam com sucesso com algum

aspecto do mundo”, afirma Chalmers (2000, p. 208), “mas não podemos ir mais além e avaliá-

las do ponto de vista da extensão em que descrevem o mundo como ele realmente é,

simplesmente porque não temos acesso ao mundo independente de nossas teorias”. Nesta

perspectiva, as teorias revelam-se inevitavelmente como produtos sociais. Cada área do

conhecimento pode ser avaliada por aquilo que é; ninguém possui os instrumentos para

determinar quais são as exigências e critérios a serem satisfeitos. Conquanto todas as áreas

possam ser criticadas, não é necessária uma categoria geral, “a ciência”, a fim de catalogar que

área deva ou não ser assim reconhecida - o que soa um tanto relativista, admite o autor.

4 Crítica à modernidade: aspectos novos de uma crise antiga.

Tomada em seu conjunto, as análises empreendidas por Chalmers sobre a história

da ciência, a descrição do desenvolvimento dos chamados avanços científicos, as considerações

acerca das diferentes perspectivas epistemológicas formuladas neste processo, assim como as

proposições pessoais do autor, prestam-se ao combate daquilo “que pode ser chamado de

ideologia da ciência. [Que] envolve o uso do conceito dúbio de ciência e o conceito igualmente

dúbio de verdade, frequentemente associado a ele, geralmente na defesa de posições

conservadoras” (CHALMERS, 2000, p. 214 – grifos do autor).

9 Nesta perspectiva, à luz da história da física, há inúmeros problemas para a aplicação de teses como a teoria da

verdade de correspondência: os revezes da teoria da luz permitem abalizar a noção segundo a qual a ciência

progride rumo à verdade?

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A seção anterior demonstrou que o germe da crítica às ontologias estava subsumido

na prática científica, expressos nos revezes das teorias e nas dúvidas mesmas dos cientistas.

Neste sentido, tal discussão refere-se, em diversos pontos, ao contexto de emergência da crítica

a que se chamou de pós-moderna. Na medida em que esta crítica representa uma atitude de

desconfiança em relação às metanarrativas modernas, os discursos divergentes podem ganhar

legitimidade. Ou seja, as objeções às ontologias poderiam contribuir para a reivindicação de

uma atenuação do desnivelamento de poder entre as diversas “vozes”. É neste sentido que as

falas afinadas com certos ideais, como os direitos humanos, auferem plausibilidade e

reconhecimento. Cumpre, agora, apresentar-se outras nuances do discurso pós-moderno.

Segundo Kumar (2006), embora possam ser notados alguns elementos pós-

modernos na sociedade pós-industrial contemporânea, a modernidade ainda é seu emblema.

Nem a perspectiva de sociedade de informação (normalmente adotada pelo viés liberal) nem

aquela que nomeia a sociedade atual de pós-fordista (postura encampada por correntes

marxista), ambas influenciadas pela globalização, escapam totalmente à modernidade. Para o

autor, a pós-modernidade deve ser tomada como uma ruptura epistemológica segundo a qual,

afirma citando Lyotard, as metanarrativas são abandonadas.

Boaventura de Souza Santos nomeia as “descobertas” que colocam em dúvida as

certezas, as metanarrativas: “os avanços recentes da física e da biologia põem em causa a

distinção entre o orgânico e o inorgânico, entre os seres vivos e matéria inerte e mesmo entre o

humano e o não humano” (SANTOS, 2003, p. 61). Lyotard enfatizará os avanços da técnica e

tecnologia na sociedade de informatização. Para o autor, em face da complexidade da realidade,

não há um critério lógico único que legitime o conhecimento e a ciência. Assim, arremata John

Lechte referindo-se a Lyotard, “a legitimação do conhecimento não pode mais confiar em uma

grande narrativa, de modo que a ciência é hoje mais bem compreendida em termos da teoria

de jogo da linguagem de Wittgenstein” (LECHTE, 2003, p. 274).

Nenhuma teoria seria capaz de encerrar a linguagem em sua totalidade. Para

Lyotard, a relação entre o Estado, a sociedade civil e as grandes empresas (agora produtoras do

saber) deverá ser reavaliada. Para que se compreendam as relações sociais atualmente, em face

destas alterações, é imperativo abandonar-se os antigos programas. Eles estavam alinhados com

uma sociedade que já não existe. Nesta perspectiva, o impacto da informatização sobre a

formação do saber, que deu azo às dúvidas dos cientistas em relação às possibilidades de

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avaliação do estatuto do saber científico, coloca à baila um problema essencial: o da

legitimação.

O saber é um conjunto de enunciados denotativos (ciência), mas também refere-se

ao saber-fazer, saber-viver, etc. “O consenso que permite circunscrever tal saber e descriminar

aquele que sabe daquele que não sabe” é o que constitui a cultura de um povo” (LYOTARD,

2011, p. 36). O que distingue este estado habitual do saber é a proeminência da narrativa. Esta

obedece “regras que lhe fixam a pragmática”. A pragmática do saber científico caracteriza-se

pelas tensões que regulam a aceitabilidade dos seus enunciados: supõe-se que o remetente diz

a verdade acerca do referente; que o destinatário possa conceder validamente o seu

consentimento; o referente supõe-se expresso pelo enunciado conforme ele é.

Assim, é verdade o que o remetente diz (o referente) porque pode ser provado, mas

quem garante verossimilhança à prova? Não importa, a ciência exclui os outros jogos. O que a

distingue de todos os outros jogos é o fato de ser “comandado pela exigência de legitimação”.

Mas como provar a prova, quem decide sobre o verdadeiro? As condições de verdadeiro são

imanentes a este jogo; não há outra forma de afirmar que as provas são boas a não ser o consenso

dos experts. Deste modo, não se pode negar: o saber científico recorre a outro, o relato (desde

o Mito da Caverna).

No contexto atual, de “mercantilização do saber”, a legitimação da pesquisa radica-

se no “desempenho”. No entanto, a pragmática do saber científico pós-moderna não se relaciona

com os resultados. Seu traço surpreendente é a questão da legitimidade que se cobra a si mesma;

sua imanência. É o pequeno relato que se torna a forma utilizada pela invenção imaginativa e

pela ciência. Assim, caso seja possível uma legitimação que se valha da paralogia (uma

imaginação diversificante), a ênfase desta pragmática científica recairá no dissentimento. Os

“lances fortes” dos cientistas, como atos terroristas, desestabilizarão o consenso. Nesta

perspectiva, a clivagem entre “decisores e executantes” – que pertence ao sistema sócio-

político, e não a esta pragmática científica – é um “obstáculo ao desenvolvimento da

imaginação dos saberes”, afirma Lyotard.

Constituindo-se como um dos diversos jogos de linguagem, a pragmática da ciência

está assentada em enunciados denotativos baseados em regras. Nesta, a atividade de paralogia

tem por função revelar estes pressupostos e sugerir que os outros os aceitem. Não é possível

um consenso que reúna estes jogos de linguagens. Aliás, o consenso tornou-se um valor

ultrapassado. A justiça, afirma o autor, não o é. Sendo assim, é necessário criar-se uma ideia de

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prática da justiça desvinculada da ideia de consenso. Num certo sentido, também Rorty (2007)

endossa estas ideias.

Ainda que não se possa buscar algo intrínseco ao homem (a razão) como

fundamento para a produção do consenso, as expectativas quanto às possibilidades de alguma

convergência permanecem. Negar-se a concepção tradicional de verdade (imanente às

ontologias modernas) não implica, na perspectiva nietzschiana defendida por Rorty, abandar a

“ideia de buscar as causas do que somos”. Aqui, o autoconhecimento é tomado como

autocriação – tal processo é idêntico à criação de uma nova linguagem. Neste sentido, o homem

(o poeta) falha quando aceita as descrições que os outros fazem dele, falha quando executa

projetos preparados pelos outros.10

Essa linguagem produzida, “apesar de desconhecida e idiossincrática, de algum

modo torna tangível a marca cega exibida por todas as condutas do indivíduo” (RORTY, 2007,

p. 66). Com sorte, esta linguagem (criada pelo “poeta forte”) parecerá inevitável, para usar as

palavras do autor, à geração seguinte. Neste contexto de contingências (da linguagem, da

sociedade) é que as convergências podem ser criadas. Convergências inclusive a respeito de

uma invenção (um lance dentro dos jogos de linguagem), tão sublime quanto moderna: os

direitos humanos.

É necessário distinguir, sugere Rorty, “entre a afirmação de que o mundo está dado

e a de que a verdade está dada”. A verdade não pode existir independente da mente humana, ao

passo que “o mundo existe, mas não as descrições do mundo. Só as descrições do mundo podem

ser verdadeiras ou falsas. O mundo em si – sem o auxílio das atividades descritivas dos seres

humanos – não pode sê-lo” (RORTY, 2007, p. 28).11 Os fatos não subsistem por eles mesmos,

a não ser para aqueles que veem a “verdade” e o mundo como projetos divinos.12 Deste modo,

a ideia de verdade (como algo a ser descoberto) deve ser descartada, mas Rorty não afirma que

não exista verdade alguma, sob o risco de incorrer em incoerência autorreferente.13 O que o

10

Ouve-se ao fundo, de longe, mas nitidamente, a voz de Marx (1999). A ideia segundo a qual o processo de

alienação retira do homem seu potencial criativo. 11

Postura próxima daquela empreendida por Chalmers (2000), denominada realismo não-representativo. 12 “O fato de o vocabulário de Newton permitir-nos prever o mundo mais facilmente que o de Aristóteles não

significa que o mundo fale newtoniano” (RORTY, 2007, p. 29). Este projeto não é novo, Copérnico pretendia

ouvir a música de Deus, descrita na matemática celestial. Também os gregos nutriam ambições congêneres. 13

Nietzsche e Derrida foram acusados de “alegarem saber o que eles mesmos dizem que não pode ser sabido”

(Rorty, 2007, p. 33). Eis a incoerência autorreferente da qual Rorty tenta se afastar.

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autor sugere, e de modo bem pragmático, é que “falemos pouco desses temas, para ver como

prosseguimos” (RORTY, 2007, p. 34).

Em uma palavra, o mundo não fala, os homens é que falam. Assim, ao construírem

linguagens, os seres humanos criam as únicas verdades. Nestes termos, o poeta afigura-se como

“vanguarda da espécie”, pois “mudar nossa maneira de falar é mudar, para nossos propósitos,

aquilo que nós somos” (cf. RORTY, 2007). Na perspectiva histórica tradicional, o culto ao

transcendente moveu-se para o mundo ou para o eu, todos, no entanto, são tomados como

divinos. Na corrente defendida pelo autor, linguagem, consciência ou comunidade são produtos

das contingências. Por isso, no debate sobre os ideais modernos (ligados à emergência das

questões sociais mencionadas neste texto), a palavra deve ser dada aos interessados. De

qualquer modo, há de se promover os meios pelos quais os homens possam se identificar com

a condição de sofrimento dos outros. Mesmo que não haja (e não parece haver) algo

intrinsecamente humano que possa ser avocado nesta empresa.

4.1 Ciência, verdade e retórica: as possibilidades democráticas do paradigma emergente.

A concepção pós-moderna apresentada por Kumar (2006), tomada como uma

ruptura epistemológica, encontra guarida na discussão empreendida por Boaventura de Souza

Santos (1989; 2003). Em Um discurso sobre as ciências, Boaventura ilustra dois modelos de

ciência: um paradigma dominante e um outro, o emergente. Este último é, em certo sentido, um

esboço da perspectiva pós-moderna desenvolvida pelo autor. Ademais, este paradigma (este

antiparadigma!) enseja uma prática que nutre um diálogo com outras práticas, de outros

campos. De qualquer modo, na medida em que o senso comum se apresenta como “conservador

e fixista”, a ciência (orientada no paradigma dominante ou emergente) deve ser construída em

oposição a ele. Ou seja, é necessária uma ruptura epistemológica que funde um novo universo

conceptual.

Segundo Boaventura, “a ruptura bachelardiana” interpreta fielmente o paradigma

da ciência moderna ao ensejar um discurso pretensamente rigoroso: que impõe limites à

circulação de novos discursos na sociedade. Estes limites, todavia, tornam-se contraditórios em

face da iminência de crise. Nesta perspectiva, Boaventura concebe o reencontro da ciência com

o senso comum. Esta é a dupla ruptura hermenêutica, que pretende gerar um “senso comum

esclarecido e uma ciência prudente”, mas que só é possível com a atenuação do

“desnivelamento dos discursos” (entre outras condições).

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Para o autor, toda vez que os cientistas questionam a sua prática concreta aí esta o

exercício da reflexividade. Assim, destaca-se o potencial democrático de uma postura

(reflexiva) que evidencie a subjetividade intrínseca à investigação científica. Esta

“humanização” revela a complexidade da ciência, como se pode observar na relação entre

consistência conceptual e adequação empírica e o consequente problema da validação. Nesta

discussão, a concepção paradigmática de Kuhn e a racionalista de Bachelard, conquanto tenham

contribuído para o debate, não se emanciparam do problema da circularidade da teoria.14 Esta

concepção racionalista, em tempo, nega qualquer concepção científica que se valha da

metáfora, antes toma como referência a matemática (cf. BACHELARD, 1988).

Boaventura procura um outro caminho. Para ele, captar o sentido do objeto de

estudo sempre foi um problema. Assim, Boaventura chama atenção para o fato de que o sucesso

explicativo das ciências naturais está relacionado à pressuposição de que os sistemas que ela

estuda sejam fechados. Os avanços da investigação científica, no entanto, têm demonstrado que

não há sistema fechado, do que se depreende que toda a explicação científico-social seja falível.

Nesta perspectiva, a reflexão hermenêutica sobre a metodologia e epistemologia apenas se

cumpre com uma nova retórica: aquela que busca identificar os argumentos considerados

válidos num determinado “auditório relevante”; cujo domínio é “o provável, o plausível”, o

consensual, ao contrário daquela postura maniqueísta que, segundo o autor, foi inaugurada na

era moderna com Descartes; e continua firme. As metáforas e as imagens são expurgadas do

discurso científico moderno na medida em que, à esteira do modelo dominante, a linguagem

científica identifica-se com a matemática. Em oposição a esta concepção, Boaventura resgata o

papel da analogia e da metáfora na inovação do pensamento científico.

Não parece exagero vincular-se, em alguma medida, esta postura de Boaventura, a

sua “teoria da argumentação do discurso científico”, com a concepção habermasiana de

“competência comunicativa”. Para Habermas, “o controle da ampla variedade de

representações que caracterizam as situações discursivas” e dos elementos demonstrativos

(expressões classificadoras), é básico para a competência comunicativa. O domínio dessas

características universais de situações discursivas torna possível a mutualidade da

comunicação. O diálogo puro, portanto, exclui os elementos não-linguísticos do contexto

discursivo, provocando uma simetria entre os participantes, “de maneira tal que a comunicação

14

Qual seja, “se o campo analítico e o campo observacional são teoricamente constituídos, a teoria que o constituiu

não pode deixar de se confirmar neles” (SANTOS, 1989, p. 89).

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não será impedida por obstáculos que não decorram de sua própria estrutura” (GIDDENS,

1978, p. 71 – grifos do autor).

Tal simetria, as chamadas condições ideais de fala, possuem três características:

obtenção de um consenso livre, alcançado pelo prévio exame racional dos argumentos; total

entendimento mútuo; a aceitação da participação legítima e igual do outro no diálogo. Isto

porque a verdade, para Habermas, não pode ser sondada separadamente da liberdade e da justiça

(cf. HABERMAS, 2004). Aqui, uma questão atinente aos problemas suscitados no presente

trabalho se impõe à reflexão. Levando-se em consideração a imagem e a metáfora, a tensão

entre a linguagem técnica e a metafórica que, segundo Boaventura, é inerradicável do ponto de

vista da segunda ruptura (da crítica à modernidade) até que ponto o autor acolhe a ideia de

“prévio exame racional” exigida por Habermas? Este exame racional não terminaria por excluir

alguns “tipos de discursos” do debate, certas demandas relacionadas às questões sociais

discutidas neste texto? Boaventura assegura que o conhecimento produzido por uma

comunidade pautada na segunda ruptura, no paradigma emergente, “será um conhecimento

edificante, mais formativo do que informativo, tanto na contemplação, como na transformação

do mundo, criador e não destruidor (...)” (SANTOS, 1989, p. 118).

Com efeito, mesmo admitindo-se que os discursos diferentes possam parecer um

pouco exóticos aos olhos de um auditório competente, a ideia de aniquilamento das vozes

dissonantes passa longe desse modelo. Semelhantemente, também no cenário das condições

ideais de fala de Habermas, a possibilidade de silenciamento das vozes dissonantes parece

incompatível com a noção de criação de um consenso livre. Em uma palavra, a noção de direitos

humanos (em suas relações com o atendimento das necessidades básicas do homem, da inclusão

social), embora moderna, é plenamente conciliável com a crítica às ontologias modernas. O

único problema é que, no contexto de crise das metanarrativas, talvez não haja algo além do

consenso que possa afiançar uma a ideia tão fundamentalmente humana.

Em suas considerações sobre a constituição das verdades no paradigma moderno,

Boaventura afirma que a comunidade científica, a despeito de constituir uma comunidade de

saber local, é a única que universaliza esse saber. Tal saber (que será aplicado no Estado, na

sociedade) não aparece como “poder”, uma vez que é “naturalizado”. Em outros termos, o que

se observa aqui é uma “violência simbólica”, que corresponde a um tipo de poder (poder

simbólico) que permite ao seu possuidor “constituir o dado pela enunciação, de fazer crer e ver

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(...). [Que] só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário” (BOURDIEU,

2000, p. 14).

Deste modo, é o paradigma dominante, e não o discurso pós-moderno, que pode se

constituir num obstáculos às demandas (como aquelas relacionadas aos direitos humanos)

provenientes de grupos vulneráveis, por exemplo. Nesta perspectiva, a partir da ideia de política

que se depreende de Burity (1997) - uma lógica de ação coletiva que demanda definição de

programas, mas que é calculadora e orientada por elementos arbitrários e dominativos - tais

demandas poderiam esbarrar nas justificativas restritivas do Estado. As mesmas que estão

legitimadas pelo know-how técnico. A história recente, aliás, é farta de exemplos aos quais se

poderiam recorrer, quer seja no campo das “imponderabilidades econômicas”, ou da imposição

de uma “visão de mundo moderna”, portanto inquestionável, promovida por países

imperialistas.

Quanto àquelas imponderabilidades, Viviane Forrester (1997) demonstra em seu

ensaio como uma concepção tradicional de trabalho pode ser manipulada simbolicamente a fim

de gerar “horror” ao desemprego e “sentimento de culpa” no trabalhador desempregado. As

consequências disto, entende a autora, podem ser drásticas, uma vez que o trabalho vivo, o

emprego, é uma modalidade fadada à extinção, ou pelo menos, em pleno declínio. Os

desdobramentos lógicos da máxima “o trabalho dignifica o homem” (o homem vale pelo que

produz), na iminência de fim do emprego, induzem à legitimação da exclusão social em suas

formas mais cruéis: um novo holocausto.

Bourdieu (1998), semelhantemente, percebeu um “serviço de doutrinação

simbólica”, cuja pretensão era fazer o cidadão acreditar que a lógica econômica defendida pelos

experts fosse a única possível. O pano de fundo deste debate é o neoliberalismo. A despeito de

o tema hoje parecer démodé, a crise que se alastra na Europa tem justificado ações político-

econômicas não muito diferentes daquelas empreendidas pelo receituário neoliberal. Em ambos

os casos apresentados (por Forrester e Bourdieu) os argumentos dos experts, as

imponderabilidades econômicas, justificaram ações calculadoras que, de algum modo,

implicaram em submissão, subordinação e, não raro, violação de direitos, exclusão. Quanto às

imposições (de caráter imperialista) dos países e regiões desenvolvidas economicamente, este

artigo é um espaço demasiadamente pequeno para que possam ser relatadas.

De volta à solução apresentada por Boaventura. Em lugar desta “aplicação técnica”,

o autor sugere uma “aplicação edificante” em que os sujeitos estejam comprometidos (social,

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ética e existencialmente) com o seu impacto; que os fins e meios ocupem o mesmo nível de

importância. Isto se daria num processo argumentativo em que o cientista fosse agente

envolvido na luta pelo equilíbrio de poder. Nesta aplicação edificante, procura-se reforçar as

definições alternativas e criticar os modos de racionalidade, as formas institucionais,

valorizando a comunicação, a solidariedade. O know-how ético tem precedência sobre técnico;

as deficiências dos saberes locais não justificam sua eliminação.

Com efeito, “a ampliação da comunicação e do equilíbrio das competências visam

à criação de sujeitos socialmente competentes” (SANTOS, 1989, p. 159). Talvez se possa falar

aqui, ainda que não se recorra a quaisquer ontologias, em respeito à diferença, em combate às

desigualdades, à exclusão social, ao aviltamento dos direitos humanos. Esta suposição se torna

plausível na medida em que os “interessados” - e não apenas os experts – participam das

decisões. Mais isso se daria no campo das contingências.

5 À guisa de conclusão: entre o público e o privado, contingências e convergências.

A tentativa de unir teoricamente estes dois vocabulários, o público e o privado, que

busca unir as demandas de solidariedade (relacionadas às questões sociais aludidas aqui) à de

autocriação (que se precipitam num cenário de crise dos paradigmas modernos) pressupõe a

noção de uma “natureza humana”. Céticos como Nietzsche rejeitam estas concepções

essencialistas, ou seja, qualquer senso de solidariedade é, para este autor, mero produto da

socialização. Este texto não visa à conciliação de teses imiscíveis, antes pretende discutir a

importância fundamental de ambas.

Retorne-se ao fio da meada. Historicistas como Hegel afirmavam não haver um

“nível mais profundo do eu”. Assim, “a circunstância histórica” seria o ponto mais fundamental

ao qual se poderia chegar. Conquanto esta guinada histórica tenha ajudado a solapar a

metafísica e a religião, a tensão entre o privado e o público permaneceu. Também se conservou

a divisão neste espaço de debates: de um lado os historicistas, como Heidegger e Foucault, que

enfatizam o desejo de autocriação, de outro os que, a exemplo de Habermas ou Marx, desejam

uma sociedade humana mais justa, em que a “perfeição privada” se dá a partir da contaminação

pelo “estético” (cf. RORTY, 2007).

Ao demonstrar por que as pessoas se comprazem com a perversidade em certas

situações, mas as repudiam em outras, Freud “deixa-nos um eu que é uma trama de

contingências, e não um sistema ao menos potencialmente bem ordenado de faculdades”

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(RORTY, 2007, p. 71). Aqui, a crítica de Nietzsche encontra eco e se amplifica. Em contraste

com os vocabulários disponíveis nas filosofias morais, o instrumental criado pelo psicanalista

parece talhado “sob medida” para o indivíduo (não para o sujeito da filosofia da história). Em

outras palavras, ao discutir a sofisticação das “estratégias inconscientes”, Freud demonstra, com

relativo sucesso, que não existe um eu central, bem entendido, uma razão intrínseca.

Freud abandona portanto qualquer projeto platônico de união entre público e

privado ao reconhecer que não há nenhuma faculdade ou desejo universalmente compartilhado

que permita esta ponte. Ao contrário, o que há são “as contingências idiossincráticas de nossos

passados individuais”, depreende Rorty do autor. O pai da psicanálise não opta entre os dois

modelos paradigmáticos de homem (o poeta forte da perspectiva nietzschiana ou o cumpridor

zeloso das obrigações universais da ética kantiana), mas enxerga duas estratégias adaptativas

capazes de lidar com as contingências. Nenhuma é mais verdadeiramente humana do que a

outra, para citar o Rorty.

O que se conclui destes debates é que a única coisa que se compartilha

universalmente entre aqueles que usam a linguagem (os que dispõem do equipamento e tempo

para fantasiar) “é a faculdade de criar metáforas”; não quaisquer conteúdos. Em outras palavras,

o que distingue o homem dos (outros) animais é esta faculdade: a de colocar em ato uma

“fantasia idiossincrática”. A fantasia gira em torno de metáforas que não se tornaram populares

(é o que a diferencia do talento). As causas dessa popularidade são, no entanto, contingentes.

Como tornar populares as metáforas que versam sobre o respeito à alteridade, aos direitos

humanos? Como se operam estas convergências?

A “solução” de Rorty para o problema da relação entre os vocabulários da

autocriação (da autonomia, que é privado) e da justiça (da solidariedade, que é público),

contempla, em parte, estas questões. O autor sugere que se tomem os dois grupos, suas

demandas, como opostos, mas também como igualmente válidas; incomensuráveis e

necessárias. Nesta perspectiva, esboça a figura do “ironista liberal” e recomenda uma “utopia”,

que implica a universalização dos aspectos relevantes do ironismo. À esteira de Shkalar, Rorty

entende por liberais aqueles que “consideram a crueldade a pior coisa que fazemos”; por

ironistas aqueles que enfrentam a contingência de suas convicções e desejos mais profundos.

“Os ironistas liberais são pessoas que incluem entre estes desejos (...) sua própria esperança de

que o sofrimento diminua” (RORTY, 2007, p. 18).

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Diante do exposto até aqui, é de se esperar que uma utopia desta natureza só possa

ser apresentada como “um objetivo a ser alcançado” pela “imaginação”; não como uma possível

“descoberta da reflexão”. Para Rorty, só é possível criá-la na medida em que a sensibilidade

dos homens em relação à dor e à humilhação dos outros for aumentada. Assim, ver os outros

como “um de nós”, enfatize-se, não é algo que se consiga com a teoria, com a reflexão

filosófica, com a ciência: é uma tarefa especialmente para a literatura, para o romance, para a

poesia. Estes ocuparão o lugar do “sermão” e do “tratado como principais veículos de mudança

e progresso morais” (RORTY, 2007, p. 20).15

Nesta perspectiva, é o poeta a vanguarda da espécie humana. Mas como distinguir

o “talento” da “excentricidade” pueril? À esteira de Harold Bloom, Rorty admite que o

talentoso, o “poeta forte”, padece de uma angústia: “pavor de se descobrir apenas uma cópia ou

replica”. Entretanto, se ele reconhecer essa “vontade de autocriação” (que contrasta com a

“vontade de verdade”, característica da concepção tradicional, do paradigma dominante) se

“puder descobrir as palavras ou formas distintivas para a sua própria distinção, demonstraria

não ter sido uma cópia” (RORTY, 2007, p. 59 – grifos do autor). Com sorte, esta linguagem

criada pelo “poeta forte” (de Nietzsche) parecerá inevitável à geração seguinte. Com mais sorte

ainda, as convergências (que não escapam às contingências) quanto aos lances dentro dos jogos

de linguagem, às metáforas, contemplarão uma invenção tão sublime quanto moderna, insista-

se: o respeito à alteridade; a dignidade da pessoa humana; os direitos humanos.

Com efeito, a tese freudiana segundo a qual a vida humana “é a elaboração

sofisticada de uma fantasia idiossincrática” (RORTY, 2007, p. 88) não oculta o fato de que esta

elaboração seja interrompida pela morte (ver também Vattimo, 2007). Esta interrupção revela

o caráter inacabado desta elaboração, tal qual a famosa sinfonia de Schubert. Aliás, esta coisa,

a iminência da morte, que não pode ser traduzida muito bem pela ciência ou pela filosofia, mas

sim pela criação do poeta, é que, de alguma forma, possibilita aquela elaboração. Não fosse

assim, Ivan Ilitch continuaria a fazer de sua vida uma “cópia”.

Os problemas existenciais vivenciados por Ilitch, protagonista do conto de Tolstói

(1999), não podem ser avocados pela ciência; Weber (2004), aliás, já havia feito esta

advertência. Antes é o poeta que traduz esta condição. Eis a tradução da tradução: a eminência

15 Todos os dias são veiculadas notícias de massacres e tragédias nos telejornais, sem que isso promova grandes

comoções. Mas notar o desprezo de terceiros em relação a tais tragédias, a exemplo do que acontece na literatura,

nas palavras dos escritores e poetas, pode ser uma experiência muito mais impactante.

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da morte lançou sobre o indivíduo, de cuja vida não passava de uma existência sem sentido, a

percepção da finitude, e, ao mesmo tempo, das possibilidades de autocriação, de significado.

Há quem reconheça esta finitude antes mesmo da iminência da própria morte, como é o caso

de Chicó. Dizia ele para aqueles que chegavam ao fim:

Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo

que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem

explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados,

porque tudo o que é vivo morre (SUASSUNA, 2005, p. 42).

Quem garante que tal reconhecimento tenha corroborado para a fundação de uma

empatia com o outro? Ou tenha promovido a autocriação? O desafio está em expandir aquela

tradução de Tólstoi, de modo a açambarcar as demandas de solidariedade. É esta a chave? A

promoção da autocriação produziria uma empatia, o reconhecimento da condição (humana)

singular do indivíduo, a despeito do pleonasmo, ensejaria o reconhecimento da condição do

outro? Talvez, mas, diante das contingências, nada pode garantir isso.

Destarte, se ao Estado tem sido destinada a tarefa de legitimar as formações sociais

consagradas pela sociedade, se a ideia de justiça que orienta as decisões vinculantes radica-se

nas ideologias produzidas pela cultura de um povo e se a ciência se impõe como inquestionável

acima de todos (ainda que não seja possível a ela, ou a qualquer outro discurso, estabelecer a

verdade), a discussão acerca das desigualdades sociais, da exclusão e do vilipêndio dos direitos

humanos deve levar em conta o cerne da crítica pós-moderna.

Os ideais modernos atinentes às questões sociais, com todas as suas consequências

abordadas neste texto, podem se tornar “ultrapassados” numa sociedade ontologicamente

intolerante. Mas não é a crítica à modernidade que promoverá uma tal ressignificação. É o

potencial caráter autoritário de uma sociedade que - pretensamente legitimada pela verdade

científica - silencia o dissenso e que põe em risco os direitos “das minorias”, as vozes

dissonantes, e mesmo os ideais modernos.

Nesta perspectiva, a ideia de “aumentar a sensibilidade dos homens em relação à

dor e à humilhação dos outros” (RORTY, 2007) parece ser uma alternativa à intolerância e à

crueldade, pois uma tal ressignificação irá reverberar também na esfera estatal, no aparato

jurídico-político. A informação, o conhecimento dissociado de certas exigências éticas

(vocabulário solidário) não surtirão maiores efeitos, pelo menos é isso que a história tem

demonstrado. Mas é a metáfora do poeta forte que aproxima o homem de sua contingência, sua

finitude... E, quem sabe, isso o aproxime dos outros.

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