modelos tecno-assistenciais em saúde - da piramide ao circulo

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469 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(3):469-478, jul-set, 1997 ARTIGO ARTICLE Modelos tecno-assistenciais em saúde: da pirâmide ao círculo, uma possibilidade a ser explorada Technical health care models: from the pyramid to the circle, a possibility to be explored 1 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Cidade Universitária Zeferino Vaz, Campinas, SP 13084-100, Brasil. Luiz Carlos de Oliveira Cecilio 1 Abstract The technical health care model that portrays the health system as a pyramid with as- cending and descending flows of users obtaining access to differentiated levels of technological complexity within articulated reference and counter-reference processes has been conceived as a rationalizing perspective, the merit of which would be to provide greater efficiency in the use of resources, in addition to universal, equitable access. In practical terms, by assuming that facts occur differently than intended under a certain technocratic rationality, the author provides some explanations for this “distortion”.He also defends the idea that the health system would be more adequately thought of as a circle, containing multiple “portals of entry” located at several points in the system rather than at a presupposed “base”. The author also questions the sense of a “top level”, a kind of expression related to a certain “technological hierarchy” with the hospital occupying the apex. At the same time he highlights the health system as an entity to be organized focusing on what is most relevant to each user, offering the most adequate technology in the right place and at the most appropriate time. Key words Techno-assistance Model; Health Services Accessibility; Health Planning; Public Health Resumo O modelo tecno-assistencial que pensa o sistema de saúde como uma pirâmide, com fluxos ascendentes e descendentes de usuários acessando níveis diferenciados de complexidade tecnológica, em processos articulados de referência e contra-referência, tem se apresentado como uma perspectiva racionalizadora, cujo maior mérito seria o de garantir a maior eficiência na utilização dos recursos e a universalização do acesso e a eqüidade. Reconhecendo que, na práti- ca, os fatos se dão de maneira muito diferente da pretendida por uma certa racionalidade tecno- crática, o autor aponta algumas explicações para esta “distorção”. Defende, ainda, a idéia de que o sistema de saúde seria mais adequadamente pensado como um círculo, com múltiplas “portas de entrada” localizadas em vários pontos do sistema e não mais em uma suposta “base”. Questio- na a idéia de um “topo”, expressão topográfica de uma certa “hierarquia tecnológica” que teria o hospital no seu vértice, e aponta a necessidade do sistema de saúde ser organizado a partir da lógica do que seria mais importante para cada usuário, no sentido de oferecer a tecnologia certa, no espaço certo e na ocasião mais adequada. Palavras-chave Modelo Tecno-Assistencial; Acesso aos Serviços de Saúde; Planejamento em Saúde; Saúde Pública

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Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(3):469-478, jul-set, 1997

ARTIGO ARTICLE

Modelos tecno-assistenciais em saúde: da pirâmide ao círculo, uma possibilidade a ser explorada

Technical health care models: from the pyramid to the circle, a possibility to be explored

1 Departamento de MedicinaPreventiva e Social,Faculdade de CiênciasMédicas, UniversidadeEstadual de Campinas.Cidade UniversitáriaZeferino Vaz, Campinas, SP13084-100, Brasil.

Luiz Carlos de Oliveira Cecilio 1

Abstract The technical health care model that portrays the health system as a pyramid with as-cending and descending flows of users obtaining access to differentiated levels of technologicalcomplexity within articulated reference and counter-reference processes has been conceived as arationalizing perspective, the merit of which would be to provide greater efficiency in the use ofresources, in addition to universal, equitable access. In practical terms, by assuming that factsoccur differently than intended under a certain technocratic rationality, the author providessome explanations for this “distortion”. He also defends the idea that the health system would bemore adequately thought of as a circle, containing multiple “portals of entry” located at severalpoints in the system rather than at a presupposed “base”. The author also questions the sense of a“top level”, a kind of expression related to a certain “technological hierarchy” with the hospitaloccupying the apex. At the same time he highlights the health system as an entity to be organizedfocusing on what is most relevant to each user, offering the most adequate technology in the rightplace and at the most appropriate time.Key words Techno-assistance Model; Health Services Accessibility; Health Planning; PublicHealth

Resumo O modelo tecno-assistencial que pensa o sistema de saúde como uma pirâmide, comfluxos ascendentes e descendentes de usuários acessando níveis diferenciados de complexidadetecnológica, em processos articulados de referência e contra-referência, tem se apresentado comouma perspectiva racionalizadora, cujo maior mérito seria o de garantir a maior eficiência nautilização dos recursos e a universalização do acesso e a eqüidade. Reconhecendo que, na práti-ca, os fatos se dão de maneira muito diferente da pretendida por uma certa racionalidade tecno-crática, o autor aponta algumas explicações para esta “distorção”. Defende, ainda, a idéia de queo sistema de saúde seria mais adequadamente pensado como um círculo, com múltiplas “portasde entrada” localizadas em vários pontos do sistema e não mais em uma suposta “base”. Questio-na a idéia de um “topo”, expressão topográfica de uma certa “hierarquia tecnológica” que teria ohospital no seu vértice, e aponta a necessidade do sistema de saúde ser organizado a partir dalógica do que seria mais importante para cada usuário, no sentido de oferecer a tecnologia certa,no espaço certo e na ocasião mais adequada.Palavras-chave Modelo Tecno-Assistencial; Acesso aos Serviços de Saúde; Planejamento emSaúde; Saúde Pública

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Uma breve contextualização das idéiasapresentadas a seguir

Boa parte da literatura sobre modelos assisten-ciais em saúde tem uma certa postura de “exte-rioridade” em relação ao objeto trabalhado, umolhar “desde fora”, quase sempre com a inten-ção de uma abordagem mais “estrutural”, nosentido de totalizador, como apresentado emdocumento do MPAS (1983). Observa-se assimuma visão que se poderia denominar de racio-nalizadora e “técnica”, na medida em que aspessoas reais, com suas angústias e sofrimen-tos passam a ser vistas, no jargão tecnocráticopresente nesta literatura, como “usuários” dosistema, espécie de “agentes” dotados de com-portamentos previsíveis, que deverão ser en-quadrados a partir desta racionalidade exte-rior.

As observações que são feitas a seguir nãopretendem pensar o modelo assistencial do“sistema de saúde” de uma forma fechada eacabada, mas iluminar certas dificuldades vivi-das, no cotidiano, por quem procura os servi-ços do SUS. Nesta medida, o autor coloca-se“no interior” do objeto trabalhado, abando-nando qualquer intenção de distanciamento ecompromisso com idéias racionalizadoras decaráter globalizante. Mais especificamente,olha-se o hospital como espaço privilegiadopara entender fluxos e demandas do “cidadãocomum”, com seus desejos e necessidades; umolhar compartilhado com trabalhadores desaúde, gerentes de nível intermediário e supe-rior e usuários, valendo-se de práticas institu-cionais desenvolvidas nos últimos anos comorelatado por Cecilio (1994).

Há, então, no texto, uma intenção explícitade abandonar qualquer concepção apriorísticado hospital, com base em uma certa racionali-dade que o coloque no topo de uma pirâmidehierarquizada de serviços e tentar, sim, explo-rar novas alternativas, novos circuitos de inte-gração entre os serviços, sem nunca perder devista os “usuários” reais. A referência passa aser as pessoas e suas necessidades e não qual-quer tipo de “modelo assistencial” que possaser previamente definido, conforme já aponta-do anteriormente por Campos (1994).

Sem desconhecer a discussão colocada porautores como Mendes (1996), no sentido danecessidade de uma crítica mais “estrutural” àprópria concepção de modelos de assistência àsaúde, o artigo tem como objetivo apenasapontar algumas possibilidades de intervençãono movimento real da assistência à saúde, nosmoldes em que a mesma se dá nos dias quecorrem em nosso país, quem sabe testando, na

prática, novas possibilidades de construção doSUS que queremos.

A pirâmide que traduzia nosso projetode atenção à saúde

Por tantos anos, temos utilizado a figura clássi-ca de uma pirâmide para representar o modelotecno-assistencial que gostaríamos de cons-truir com a implantação plena do SUS. Na suaampla base, estaria localizado um conjunto deunidades de saúde, responsáveis pela atençãoprimária a grupos populacionais situados emsuas áreas de cobertura. Para esta extensa redede unidades, distribuídas de forma a cobrirgrupos populacionais bem definidos (popula-ções adscritas) seria estabelecida, de uma for-ma geral, a seguinte missão: oferecer atençãointegral à saúde das pessoas, dentro das atri-buições estabelecidas para o nível de atençãoprimária, na perspectiva da construção de umaverdadeira “porta de entrada” para os níveis su-periores de maior complexidade tecnológicado sistema de saúde. Na parte intermediária dapirâmide estariam localizados os serviços ditosde atenção secundária, basicamente os servi-ços ambulatoriais com suas especialidades clí-nicas e cirúrgicas, o conjunto de serviços deapoio diagnóstico e terapêutico, alguns servi-ços de atendimento de urgência e emergência eos hospitais gerais, normalmente pensados co-mo sendo hospitais distritais. O topo da pirâ-mide, finalmente, estaria ocupado pelos servi-ços hospitalares de maior complexidade, tendono seu vértice os hospitais terciários ou quater-nários, de caráter regional, estadual ou, atémesmo, nacional. O que a pirâmide quereriaafinal representar seria a possibilidade de umaracionalização do atendimento, de forma quehaveria um fluxo ordenado de pacientes tantode baixo para cima como de cima para baixo,realizado através dos mecanismos de referên-cia e contra-referência, de forma que as neces-sidades de assistência das pessoas fossem tra-balhadas nos espaços tecnológicos adequados.

As vantagens de se pensar o sistema de saúde como uma pirâmide

A proposta de “regionalização e hierarquizaçãodos serviços”, traduzida na pirâmide descritano item anterior, foi incorporada ao ideáriodos que lutam pela construção do SUS no nos-so país e tornou-se uma espécie de “bandeirade luta” consensual do movimento sanitáriopelas seguintes razões:

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• está indissociavelmente ligada à idéia deexpansão da cobertura e democratização doacesso aos serviços de saúde para todos os bra-sileiros. A formulação de uma “porta de entra-da” para garantir acesso universal ao sistemapode ser vista como a expressão semiótica des-ta diretiva política do movimento sanitário; • o espaço propiciado por uma ampla redebásica de serviços de saúde, com responsabili-dade pela atenção a grupos populacionais bemdefinidos (população adscrita), sempre nos pa-receu como o ideal para o exercício de práticase saberes alternativos ao modelo hegemônicovigente, sabidamente centrado no atendimen-to médico, medicamentalizante, com pouca ounenhuma prática de prevenção das doenças epromoção da saúde. O espaço da rede básicaseria então o locus privilegiado para a testageme construção de um modelo contra-hegemôni-co de atenção à saúde; • a hierarquização dos serviços seria a prin-cipal estratégia para a racionalização no usodos parcos recursos existentes no setor saúde.Representaria a utilização do recurso tecnoló-gico certo, no espaço certo, de acordo com ne-cessidades bem estabelecidas dos usuários. Ahierarquização garantiria o acesso, para o pa-ciente que entrou pela “porta de entrada”, a to-das as possibilidades tecnológicas que o siste-ma de saúde dispusesse para enfrentar a dor, adoença e o risco da morte. A pirâmide, nessamedida, tem o valor quase de um símbolo daluta em defesa da vida; • a proximidade do serviço de saúde da resi-dência do usuário seria um facilitador tanto doacesso, como possibilitaria a criação de víncu-los entre a equipe e a clientela; • a pirâmide seria um orientador seguro paraa priorização de investimentos tanto em recur-sos humanos, como na construção de novosequipamentos, na medida em que seria maisfácil perceber onde estariam localizadas asreais necessidades da população.

Podemos dizer que a representação do sis-tema de saúde por uma pirâmide adquiriu tan-ta legitimidade entre todos os que têm lutadopela construção do SUS porque conseguiu re-presentar, de forma densa e acabada, todo umideário de justiça social no que ele tem de es-pecífico para o setor saúde.

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O que tem acontecido, na prática, com o nosso desejo de construir a pirâmide do SUS

Todos aqueles que têm atuado no setor saúdeou precisado se utilizar dele nos últimos anospodem afirmar, sem muitas dúvidas, que andabastante difícil visualizar qualquer coisa que,de fato, se aproxime da imagem projetada dapirâmide. Vamos aos fatos que demonstram es-ta afirmação: • A rede básica de serviços de saúde não temconseguido se tornar a “porta de entrada” maisimportante para o sistema de saúde. A “portade entrada” principal continua sendo os hospi-tais, públicos ou privados, através dos seus ser-viços de urgência/emergência e dos seus am-bulatórios. Atesta isto o fato de os atendimen-tos hospitalares serem expressivamente maio-res do que o atendimento total feito nas unida-des básicas de saúde, na maioria dos municí-pios nos quais exista a alternativa de acesso aohospital. Os pronto-socorros sempre lotadossão a imagem mais expressiva desta situação. • Todos os levantamentos realizados a respei-to do perfil de morbidade da clientela atendidanos pronto-socorros mostram que a maioriados atendimentos é de patologias consideradasmais “simples”, que poderiam ser resolvidas nonível das unidades básicas de saúde. Por exem-plo, pesquisa realizada pela equipe do HospitalMunicipal de Volta Redonda (RJ), no primeirosemestre de 1996, revelou que, no mês de feve-reiro/96, 66,5% das consultas em Pediatria e52,5% daquelas em Clínica Médica realizadasno Pronto-Socorro não podiam ser considera-das como de urgência/emergência. Ou seja, háuma “distorção” no atendimento tanto quanti-tativo, como qualitativo. Tal “distorção” tam-bém é detectada nos ambulatórios hospitalarese nos ambulatórios de clínicas especializadas. • O acesso aos serviços especializados é bas-tante difícil, mesmo quando são implantadasmedidas mais rigorosas de exigência da refe-rência (marcação de consulta) pelas unidadesbásicas. Em geral, as esperas são tão demora-das, que resultam em desistência da consultaagendada. O número de consultas em especia-lidades é insuficiente perante as necessidadesda população usuária do sistema. Os serviçosambulatoriais especializados mantêm certas“clientelas cativas”, que poderiam muito bemestar sendo acompanhadas em nível de redebásica. A contrapartida disto é que os médicosda rede freqüentemente se “livram”dos pacien-tes, encaminhando-os para os especialistas,quando poderiam fazer o seguimento no cen-tro de saúde mesmo.

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• É muito difícil conseguir acesso às cirurgiaseletivas, tanto usando o centro de saúde como“porta” ou mesmo o atendimento através dospronto-socorros.

Em resumo e como síntese destas constata-ções, é possível dizer que a pirâmide, a despei-to da justeza dos princípios que representa,tem sido muito mais um desejo dos técnicos egerentes do sistema, do que uma realidadecom a qual a população usuária possa contar.Na prática, aqueles que dependem exclusiva-mente do SUS – algo em torno de 80% da po-pulação – têm que montar o seu “menu” deserviços, por sua conta e risco, buscando ondefor possível o atendimento de que necessita.Daí ser uma prepotência tecnocrática dizerque o “povão” é deseducado, que vai ao pron-to-socorro quando poderia estar indo ao cen-tro de saúde. As pessoas acessam o sistema poronde é mais fácil ou possível. Não é à toa que aassistência à saúde ocupa um lugar central naspreocupações do “cidadão comum”. O fatocruel, mas não por isto menos real, é que agrande maioria da nossa população sente-seinsegura e abandonada quando necessita deatendimento médico-hospitalar. Por isso, é ne-cessário coragem e lucidez para repensar al-guns princípios que têm orientado o modeloassistencial do SUS, por mais que eles nos pa-reçam justos e adequados, por mais que sejadifícil rever certos pressupostos que, de tantorepetirmos, passamos a tomá-los como verda-deiros e suficientes para a transformação darealidade sanitária brasileira.

Algumas explicações para o fracasso do tão decantado modelo da pirâmide

Para entendermos as dificuldades listadas noitem anterior é possível trabalharmos com doisblocos principais de explicações. O primeirodeles diz respeito a causas mais gerais, ligadasà própria configuração do SUS nos seus aspec-tos de financiamento, relação público e priva-do, como é feita sua gestão e como é realizadoo controle por parte dos usuários. O segundoaponta, diretamente, para a questão de comotemos pensado o modelo tecno-assistencial,ou seja, coloca-nos a necessidade de questio-narmos a idéia da organização do SUS nosmoldes de uma pirâmide hierarquizada de ser-viços.

No primeiro bloco de explicações para asdificuldades de construção do SUS, é possívelapontar, resumidamente, os seguintes pontos: • os recursos destinados ao setor saúde têmsido insuficientes. Segundo Levcovitz (1995) a

adoção de políticas econômicas de ajuste es-trutural tem conduzido à restrição do volumede recursos financeiros para a Saúde na ordemde um terço do montante disponível há cercade cinco anos, ao passo em que se elevou deum terço a demanda pelos serviços públicos; • a atuação do setor privado de forma suple-mentar ao setor público, inclusive como pre-visto na Constituição de 1988 e na Lei Orgânicada Saúde de 1990, não tem ocorrido na prática.Ao contrário, há um processo de retração pro-gressiva da oferta de serviços para o SUS, namedida em que um número crescente de servi-ços ambulatoriais e hospitalares contratadosbuscam garantir sua sobrevivência financeiraatravés da criação de planos de saúde próprios,oferecidos a grupos populacionais que podempagar pelos mesmos. A conseqüência disto é adificuldade, quando não a impossibilidade, deacesso das amplas massas de brasileiros aoscuidados mínimos de saúde, mesmo quandohá capacidade instalada ociosa no setor priva-do; • o próprio setor público opera uma rede am-bulatorial e hospitalar, que é, paradoxalmente,muitas vezes ociosa. No caso, o paradoxo é acoexistência da grande dificuldade de acessoda população aos serviços com a ociosidade nautilização dos equipamentos e recursos exis-tentes. De alguma forma seria possível utilizar-mos a imagem de alguém morrendo de sedetendo um copo de água fresca ao alcance damão! Portanto, uma parcela importante de res-ponsabilidade pelas dificuldades de constitui-ção de uma rede pública de cuidados à saúdepode ser creditada ao modo como tem sido ge-renciado o setor público.

O primeiro bloco de explicações nos diz,em resumo, que os recursos para a saúde sãoescassos, mas que mesmo os poucos recursossão mal utilizados. Contribui para isto tanto aexistência de verdadeiros filtros, no setor pri-vado, baseados em critérios econômicos quediscriminam, de forma perversa, quais os bra-sileiros que podem e quais os que não podemusar determinados serviços, como a ociosida-de dos equipamentos públicos. O que se tentademonstrar, na seqüência, é que a forma comotemos pensado o modelo tecno-assistencialtem tido uma responsabilidade muito grandepara o agravamento dos problemas que são vi-vidos pela população na sua busca de assistên-cia à saúde. Vejamos alguns aspectos: • Não temos tido clareza suficiente sobrequal é o verdadeiro papel das unidades básicasde saúde, por mais que tenhamos discutido oassunto e escrito sobre ele nos últimos anos.Na verdade, temos oscilado de uma certa visão

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quase “purista” do centro de saúde como local,quase exclusivamente, de promoção da saúdee prevenção das doenças, com suas práticasorientadas pelo saber que nos vem da Epide-miologia e dedicado a fazer “vigilância à saú-de”, até uma visão mais “realista” de que as uni-dades básicas têm que se comprometer com anecessidade de pronto-atendimento das pes-soas, “virando-se” para organizar seus proces-sos de trabalho de forma a “não deixar nin-guém sem atender”. Nossa experiência institu-cional no Laboratório de Administração e Pla-nejamento (LAPA) da Unicamp, nos últimos 15anos, já nos mostrou quais são os problemasoriundos destas duas formas polares de se pen-sar uma unidade básica de saúde. Na primeira,acabamos organizando centros de saúde bem-estruturados, que desenvolvem muitas vezesum trabalho de ótima qualidade, mas que pa-decem de ser muito fechados às necessidadesmais agudas dos seus usuários. Como estes úl-timos costumam dizer: “Depois que a genteconsegue entrar nestes serviços é uma maravi-lha. O duro é conseguir entrar”. Por outro lado,a orientação de “escancarar” o centro de saú-de, no sentido de torná-lo a verdadeira portade entrada do sistema de saúde, por mais quese amplie e se invista nele, fica sempre aquémdo que desejamos. Seja porque parece não terfim a demanda por pronto-atendimento porparte da população, seja porque, por maisequipado que esteja o centro de saúde, ele ésempre menos resolutivo do que é necessáriodiante das situações que exijam um atendi-mento mais ágil, dito de “urgência”. Pelo me-nos é o que parece estar gravado com muitaforça no imaginário popular, na medida emque as pessoas não hesitam em buscar, nosserviços de pronto-socorro, a resposta paraseus “problemas” agudos de saúde. O centro desaúde fica reconhecido como um lugar em queele deve buscar atendimento em situaçõesbem específicas, com atendimento em geralagendado, em horários bastante rígidos e sem-pre com o risco de ser encaminhado para con-sulta no pronto-socorro. • Chama nossa atenção, também, o fato deque a orientação de aumentar cada vez mais aresolutividade do centro de saúde para realizaro “pronto-atendimento”, tanto por uma maior“complexificação tecnológica”, como por mu-danças radicais na organização de seus proces-sos de trabalho, acaba como que tendendo areproduzir um “mini-hospital” ou um pronto-socorro miniaturizado e simplificado (nemsempre muito resolutivo), de forma que a lógi-ca assistencialista, muito centrada no trabalhodo médico, acaba “colonizando” a vida da uni-

dade e “comprimindo” as atividades de preven-ção das doenças e promoção da saúde, já quehá uma “disputa” pela utilização dos recursosno serviço. Como conseqüência, a unidadeacaba não sendo nem um centro de saúde nemum hospital. A população continua buscandoos pronto-socorros e a unidade se deslegitimaainda mais, pois deixa de fazer aquilo que eraseu papel mais reconhecido pelos usuários. • Nos hospitais, como não poderia deixar deser, também são grandes as distorções em rela-ção ao que se supõe ser sua missão, pelo me-nos tomando como referência o modelo da pi-râmide. O grande volume de atendimento feitonos seus pronto-socorros e ambulatórios podeser considerado como de “nível primário”, paraser resolvido nos centros de saúde. Pelo menosé isto que um modelo pensado como hierar-quizado nos leva a crer. Em geral, afirmamosque “a população está entrando pela porta er-rada”, ou não seria mais correto afirmarmos,como já lembrado anteriormente, que as pes-soas, diante de suas necessidades, acabamacessando o sistema por onde é possível, con-trariando qualquer delírio racionalista que ostécnicos do setor saúde continuam a defendersob a forma de uma pirâmide de serviços? • As más conseqüências desta verdadeira “in-vasão” dos serviços de urgência/emergênciapor todo e qualquer tipo de patologia não sãopoucas. Além da tensão sempre presente noslocais onde é feito o atendimento de urgência eemergência, que resulta em grande estresse edesgaste dos trabalhadores de saúde e descon-forto para os usuários que acabam sendo aten-didos após longas esperas, de forma impessoale corrida, existe um problema que merece serespecialmente destacado: a inadequação doatendimento prestado. É claro que em algumasdituações de sofrimento caracterizadamentede urgência/emergência, em particular aque-les casos de sofrimento agudo (infarto do mio-cárdio, quadros infecciosos agudos, traumas,entre outros), o atendimento realizado nopronto-socorro é o ideal. É o que se poderianomear como a utilização da tecnologia certa,no espaço certo, no momento certo. A questãoé que já temos informações suficientes para sa-bermos que tais casos acabam constituindoum percentual muito pequeno dentro do volu-me total de atendimentos. “Misturados” comestes casos realmente agudos, é atendida umalegião de pessoas cujos problemas deveriamser abordados com outras tecnologias e em ou-tros espaços. É o caso das queixas relacionadascom as doenças crônico-degenerativas, tais co-mo diabetes, obesidade, hipertensão arterial,doenças osteo-articulares, doenças pulmona-

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res crônicas, doenças de fundo emocional, en-tre outras. O que ocorre então é que um núme-ro muito grande de pessoas acaba tendo umatendimento incompleto, descontínuo e, por-tanto, insuficiente e inadequado para os seusproblemas de saúde. É como se fosse dispensa-do um grande esforço e realizassem-se gastosenormes em atendimentos que poderiam serconsiderados, sem exagero, como “atendimen-tos de mentirinha”. Fecha-se um ciclo perver-so. Os profissionais de saúde sabem que o seutrabalho é inadequado e esta consciência, dealguma forma, pesa negativamente em suassubjetividades. Os usuários, mais do que nin-guém, sabem que o atendimento recebido épaliativo e insatisfatório. Os poucos recursossão mal gastos agravando o quadro crônico deinsuficiência dos mesmos. • Cabem agora algumas perguntas neste ro-teiro, que tenta debitar à concepção do modeloassistencial parte importante das responsabili-dades pelas mazelas na assistência à saúde dapopulação: que outro ator social, que não osgerentes e trabalhadores do setor saúde, detémrecursos de conhecimento e poder para en-frentamento dos problemas listados no itemanterior? Por que é que não temos nos mobili-zado para encarar estas questões, tentandoviabilizar alternativas mais adequadas de orga-nização dos serviços? • Os serviços ambulatoriais, localizados noshospitais ou em unidades de referência, ficamcomo “peças soltas” dentro do sistema, na me-dida em que sua articulação tanto com a redede serviços básicos, como com o hospital émal-equacionada. A missão destas unidadesnem sempre é trabalhada com clareza. Ideal-mente deveriam funcionar tanto como suportemais especializado, dotadas que são – ou deve-riam ser – de maior complexidade tecnológicae capacidade resolutiva, para atendimento deencaminhamentos feitos pela rede básica, co-mo deveriam funcionar como espécie de “am-bulatório de egressos” para dar cobertura aospacientes em alta hospitalar e que continuas-sem necessitando de atendimento mais cuida-doso e diferenciado, mas passível de ser reali-zado fora do ambiente hospitalar. Caberia ain-da às equipes lotadas nos ambulatórios o pa-pel de capacitação das equipes locais, buscan-do aumentar sua autonomia e capacidade deresolver problemas em nível de “atenção pri-mária”. A exigência formal de que a consultaespecializada só seja marcada se referenciadapela rede básica, acaba sendo mais um dificul-tador da vida do usuário do que uma estratégiapotente para o redesenho de novos circuitos efluxos no interior do sistema.

• Uma das faces mais prontamente identifi-cáveis das distorções do atual modelo assisten-cial, além de todas as já apontadas, diz respeitoà substituição de uma calorosa e humanizadarelação médico-paciente, por uma excessiva edesnecessária solicitação de exames comple-mentares.

Como síntese das observações feitas a res-peito das explicações que podem ser credita-das à forma como tem sido pensado o modeloassistencial, poderia ser dito o seguinte: temosinsistido em defender determinadas missõespara os serviços localizados nos vários níveisda pirâmide (centros de saúde, ambulatório ehospitais) que não guardam relação com a rea-lidade. Os centros de saúde nem bem fazem vi-gilância à saúde, assumindo efetiva responsa-bilidade pelos grupos de risco nas sua áreas decobertura, nem conseguem dar resposta paraas demandas por pronto-atendimento da po-pulação de sua área de cobertura; os ambula-tórios não conseguem exercer, em toda a suaplenitude, o seu papel de referência técnica es-pecializada para a rede básica; os hospitais sãoespaços profundamente desumanizados, tantopara os trabalhadores como para os usuários,gastando recursos e energias que resultam, namaioria das vezes, em baixo impacto sobre asreais condições de saúde da população. Quemmais sofre com isto é a população dependentedo SUS, que tenta furar os bloqueios de todasas formas, acessando aos cuidados de que ne-cessita por múltiplas entradas, tentando garan-tir alguma integralidade de atendimento porconta própria, na medida em que o sistema desaúde não se organiza para isto. Nesta medida,a concepção do sistema como uma pirâmideestá muito distante da realidade do usuárioreal. A tese que se procura apresentar e discutirno próximo ponto é a seguinte: não adiantamais insistir na idéia de que o modelo da pirâ-mide é ótimo e que só nos falta implantá-lo de-finitivamente para que tudo fique bem para osusuários. Pelo contrário, é necessário pensarnovos fluxos e circuitos dentro do sistema, re-desenhados a partir dos movimentos reais dosusuários, dos seus desejos e necessidades e daincorporação de novas tecnologias de trabalhoe de gestão que consigam viabilizar a constru-ção de um sistema de saúde mais humanizadoe comprometido com a vida das pessoas. Daíque se propõe um “arredondamento” da pirâ-mide, num movimento sutil, mas determina-do, que, quebrando seus duros ângulos, leve-nos a conceber o sistema de saúde como amais perfeita forma geométrica conhecida pe-los homens: o círculo!

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O modelo assistencial pensado comoum círculo

Antes de mais nada, é necessário esclarecerque repensar o modelo assistencial nos moldessugeridos no item anterior não significa aban-donar nenhum dos ideários da reforma sanitá-ria no que diz respeito ao compromisso inego-ciável de lutar por um sistema de saúde públi-co, voltado para o atendimento universalizado,com eqüidade, organizado de forma a garantirum atendimento integral, de boa qualidade,colocando à disposição da população brasilei-ra tudo o que as ciências de saúde têm de maisavançado para defender a vida das pessoas, ga-rantindo a participação dos trabalhadores desaúde e dos usuários, da forma mais radical eplena possível, na gestão dos serviços. Pelocontrário. É preciso entender as colocações,feitas a seguir, como parte de um esforço imen-so de ampliação e reorientação dos gastos emsaúde, pari passu com importantes medidas dereorganização dos serviços, dotando-os deuma racionalidade mais próxima das necessi-dades dos usuários do sistema. Discutem-seaqui quais medidas de reorganização do siste-ma podem e devem ser implementadas visan-do implementação do Sistema Único de Saúdebrasileiro.

Pensar o sistema de saúde como um círculoé, em primeiro lugar, relativizar a concepção dehierarquização dos serviços, com fluxos verti-cais, em ambos os sentidos, nos moldes que afigura da pirâmide induz. A pirâmide só fazsentido, no senso comum, quando vemos suabase mais larga voltada para baixo e a mais es-treita para cima. A sua imagem contrária, apre-sentada de forma invertida, dá idéia de instabi-lidade e transmite a sensação de que algo estáerrado. Assim, associar o modelo assistencial àfigura da pirâmide nos coloca em uma armadi-lha dos sentidos, que fatalmente nos faz pen-sar em fluxos hierarquizados de pessoas den-tro do sistema. Com tal concepção há de seromper com radicalidade. O círculo se associacom a idéia de movimento, de múltiplas alter-nativas de entrada e saída. Ele não hierarquiza.Abre possibilidades. E assim deve ser o modeloassistencial que preside o SUS. Trabalhar commúltiplas possibilidades de entrada. O centrode saúde é uma boa entrada para o sistema, as-sim como também o são os pronto-socorroshospitalares, as unidades especializadas depronto-atendimento e tantos outros serviços.A escola pode ser uma boa porta de entrada,assim como a farmácia do bairro, a creche, oquartel e qualquer outro equipamento social.A primeira estratégia nossa há de ser então a de

qualificar todas estas portas de entrada, nosentido de serem espaços privilegiados de aco-lhimento e reconhecimento dos grupos maisvulneráveis da população, mais sujeitos a fato-res de risco e, portanto, com mais possibilida-de de adoecimento e morte, para, a partir destereconhecimento, organizá-los no sentido degarantir o acesso de cada pessoa ao tipo deatendimento mais adequado para o seu caso.

Comecemos pela porta de entrada mais im-portante do sistema hoje: os serviços de urgên-cia e emergência. Por tudo que já foi dito, taisserviços têm, nas condições concretas da so-ciedade brasileira, uma enorme legitimidadeperante a população. Não ajuda muito dizerque isto é uma distorção. Fazer um juízo de va-lor deste comportamento dos usuários não le-va a lugar nenhum. Com o grau de carência degrandes extratos da nossa população e, princi-palmente, em função da ausência concreta dealternativas para acessar aos serviços de quenecessita, à maioria da população não resta al-ternativa que não seja a de utilizar dos serviçosde urgência para resolver todo e qualquer pro-blema de saúde. O mais complicado é que, co-mo já foi referido, tais serviços não estão estru-turados para oferecer o atendimento adequadoao grosso de sua demanda. O resultado disto éque os pronto-socorros vivem lotados, com umnúmero crescente de atendimento que podemdar a impressão de que a população está sendoatendida em suas necessidades, mas, de fato,não está. O tratamento feito, na maioria das ve-zes, é apenas paliativo, do tipo queixa-condutaou, para cada sintoma, um medicamento, demodo que o problema de fundo de quem estábuscando o atendimento não é enfrentado.Afirmar isto não significa desconsiderar que,como também já foi dito, um percentual dosatendimentos feitos em nível dos serviços deurgência é perfeitamente adequado para a pes-soa naquele momento. Citam-se aqui, só a tí-tulo de exemplo e sem querer esgotar todas aspossibilidades, as situações de trauma e os epi-sódios isolados de doenças infecciosas agudas.Nestes casos, o pronto-socorro ou a unidade depronto-atendimento oferecem a tecnologiacerta, no lugar certo, no momento certo, con-forme já colocado anteriormente. Porém, épossível oferecer mais para os usuários, nosentido de qualificar o atendimento prestado.Algumas possibilidades que podem ser pensa-das: • Trabalhar com protocolos que estabeleçamquais são as patologias que necessitam teracompanhamento mais apropriado que nãoaquele atendimento que está sendo feito nopronto-socorro. Com base nestes protocolos,

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as equipes dos serviços de emergência deve-riam se responsabilizar pelo encaminhamentodo paciente para o espaço tecnológico adequa-do dentro do sistema. O paciente hipertenso,diabético, asmático, ansioso, ou portador dequalquer patologia que necessita de apoio eacompanhamento mais sistematizado, já sairiado pronto-socorro com consulta com dia e ho-ra marcados no serviço apropriado. A respon-sabilidade de garantir a integralidade do aten-dimento é do sistema como um todo e nãouma batalha individual e solitária de cada pa-ciente. O destino deste cliente poderá ser ocentro de saúde mais próximo a sua residência,um ambulatório de especialidades ou qualqueroutra possibilidade existente dentro do siste-ma. Importa reter que este é, tipicamente, umtrabalho de toda a equipe, a fim de proporcio-nar ao paciente desde o atendimento médicoinicial até o documento que lhe garante o aces-so ao serviço do qual necessita. • Criar “vínculos provisórios” com médicosou equipes dos serviços de urgência, no senti-do de tentar aproveitar o atendimento inicialque o paciente está recebendo, para, em deter-minados casos estabelecidos também em pro-tocolos, avançar na exploração e elucidação doproblema do mesmo, dentro dos limites tecno-lógicos e organizacionais do pronto-socorro.Por exemplo, de um paciente hipertenso jo-vem, ainda sem vínculo estabelecido comqualquer serviço que lhe garanta o atendimen-to regular necessário, deverão ser solicitadosos exames complementares considerados co-mo preliminares ou uma outra consulta paranova avaliação, com agendamento para o mes-mo dia em que o médico que iniciou a explora-ção esteja de novo de plantão. Espera-se, comeste “vínculo provisório” ao médico ou à equi-pe do pronto-socorro, criar o sentido de res-ponsabilidade com o paciente e garantir o seuadequado encaminhamento ao serviço apro-priado, após realizadas as investigações ini-ciais.

O modelo assistencial que será trabalhadopara “dentro” do hospital, mais especificamen-te no cuidado ao paciente hospitalizado, deve-rá dar ênfase à constituição de equipes hori-zontalizadas, responsáveis por grupos de leitosnas enfermarias, de forma a facilitar a criaçãode vínculos entre a equipe e os pacientes. Osambulatórios hospitalares deverão ser reduzi-dos ao mínimo necessário para dar atendimen-to aos egressos das várias enfermarias, mas queainda estejam necessitando de seguimentomais próximo da equipe que iniciou o trata-mento. Esta é uma estratégia importante paraa redução do tempo de internação hospitalar,

valorizando novos espaços e tecnologias quepermitam, de alguma forma, esvaziar a centra-lidade da internação hospitalar no tratamentodos doentes.

É possível e necessário explorar estratégiasde desconcentração do atendimento hospita-lar. Os programas de internação domiciliar, devisita domiciliar ou do médico de família, comsuas abordagens diferenciadas, reforçam estenecessário movimento desconcentrador.

Poder-se-á argumentar que o tipo de solu-ção pensado para o atendimento de urgên-cia/emergência não é novo, pelo menos comoproposta. A questão é que, raras vezes, conse-gue ser implementado com a radicalidade ne-cessária, porque implica, entre outras coisas,uma verdadeira revolução tecnológica nos pro-cessos de trabalho nos serviços de urgência,uma “revolução cultural” na cabeça dos técni-cos e, outra vez, uma verdadeira revolução tec-nológica aliada à construção de uma nova éti-ca de trabalho nas unidades que compõem arede básica de serviços. E esta não é uma tarefafácil, conquanto não impossível. No próximoponto exploram-se algumas possibilidades dereorganização do centro de saúde em funçãoda lógica circular do sistema. • O centro de saúde deve ter, como missãoprincipal, o reconhecimento dos grupos maisvulneráveis na sua área de atuação e a respon-sabilidade de garantir atendimento adequadoàs pessoas sujeitas a maior risco de adoeci-mento e morte que compõem estes grupos. Pa-ra cumprir esta missão, o centro deverá se es-truturar para as seguintes atividades princi-pais: delimitar e conhecer em profundidade oseu território, em todos os aspectos que sãopertinentes aos cuidados de saúde; prestaratendimento direto às pessoas que pertençamaos grupos mais vulneráveis e funcionar comoarticulador competente do acesso destas mes-mas pessoas a recursos tecnológicos mais com-plexos, em outros pontos do sistema. O centrode saúde deve se qualificar bem para ser umadas portas de entrada do sistema de saúde e,como parte de uma rede básica, não deve maisser pensado como a porta de entrada do siste-ma (a porta hegemônica). O centro de saúdetem o papel muito importante de articular oacesso dos usuários aos outros pontos do siste-ma, devendo, por outro lado, organizar-se paradar acolhida a todas as pessoas que, tendo en-trado em outros pontos do sistema, necessitamde atendimento regular e qualificado. E, de fa-to, todos sabemos que a rede básica é o espaçoque dispõe de um grande acúmulo de expe-riência e possibilidade para este tipo de aten-dimento, denominado, de uma forma geral, de

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programático. O grande problema da rede é oacesso. Freqüentemente ótimos programas sãousufruídos por uma parcela muito pequena dapopulação adscrita. Aqueles que poderiam es-tar se utilizando da tecnologia de que o centrode saúde dispõe estão “perdidos” no sistema,forçando portas de entrada não organizadas ou“preparados” para fazer o seu acolhimento. Aspessoas, mesmo aquelas consideradas de risco,entram e saem do sistema repetidas vezes enão são “capturadas”. O atual modo de funcio-namento do sistema não propicia isto. Então, énecessário tanto introduzir novas lógicas detrabalho nos serviços de urgência e nos hospi-tais, como pensar o centro de saúde de outramaneira. Uma coisa é verdade: se os atuaiscentros de saúde se propusessem a cumprir assuas atribuições de fazer vigilância à saúde nassuas áreas de cobertura e garantir seguimentobem qualificado às pessoas que lhe fossem re-ferenciadas pelos outros serviços de saúde, nãolhes sobraria muitos recursos de espaço e pes-soal para se organizarem a fim de fazer o pron-to-atendimento. É claro que o centro de saúdedeve trabalhar, na medida de suas possibilida-des, com o que se denomina de agenda aberta.Isto implica organizar o seu processo de traba-lho de forma a garantir o máximo de “encaixes”de pacientes não agendados previamente. Talpreocupação deve existir tendo em vista, prin-cipalmente, os grupos de risco já matriculadosno serviço e que já vêm recebendo atendimen-to regular. Estas pessoas já têm seus prontuá-rios na unidade, já são conhecidas pela equipee precisam ser acolhidas da melhor forma pos-sível, pela unidade, nos momentos de suas “in-tercorrências”. Esta é, aliás, uma das melhoresformas de legitimar a unidade perante os olhosda população que a primeira se propõe a aten-der: estar aberta para receber as pessoas quan-do elas se sentem doentes e necessitando deatendimento. Porém, sem dúvida, consideran-do-se as atuais áreas físicas e equipamentosexistentes nas nossas unidades básicas, serápreciso fazer uma clara opção sobre qual mo-delo será priorizado: insistir que o centro desaúde deve se responsabilizar por toda a de-manda que bate à sua porta, reproduzindo decerta forma a missão que está colocada para osserviços de urgência, ou reorganizá-lo de for-ma a ser responsável pela vigilância à saúde nasua área de cobertura e uma boa referência pa-ra pacientes que necessitam de atendimentocontinuado e vínculo com equipes?

É necessário, no entanto, dizer que o autornão desconsidera a possibilidade de ser con-tra-argumentado com a idéia de que, se toda arede básica já existente nos municípios rece-

besse investimentos maciços para que se al-cançasse um padrão médio de centros de saú-de com área física em torno de 400 m2, equipede, no mínimo, 15 médicos (pediatras, clínicose toco-ginecologistas), funcionando das 7h às22 h, inclusive aos sábados, com gestão de óti-ma qualidade, responsável por uma coberturade, no máximo, vinte mil pessoas (70% depen-dentes do SUS), além de ter toda a sua lógicade trabalho orientada para a integralidade daatenção (da vigilância à saúde aos primeirossocorros em situações de urgência/emergên-cia), poderia talvez validar a concepção do sis-tema de saúde como uma pirâmide, em parti-cular a proposta da rede básica, pensada comouma grande “porta de entrada” do sistema (es-tes dados foram obtidos valendo-se da expe-riência concreta do Centro de Saúde da VilaIpê, da Secretaria Municipal de Saúde de Cam-pinas/SP, considerado como modelo de umcentro de saúde atuando em sua potencialida-de máxima). Este é, com certeza, um caminhopossível de construir o SUS e poderá ser expe-rimentado em determinados contextos muni-cipais muito particulares e favoráveis, mas nãoexclui a necessidade de se repensarem os flu-xos de usuários de forma muito mais flexível,bem como toda uma reorganização do modelode assistência hospitalar e ambulatorial espe-cializada, hoje hegemônico. A descentralizaçãoda política de saúde propiciada pelo SUS é fa-vorecedora da experimentação de mais de ummodelo assistencial em nível municipal. A im-plantação do programa de saúde da família éum bom exemplo disto.

Repensar o sistema de saúde como círculotira o hospital do “topo”, da posição de “estarem cima”, como a pirâmide induz na nossaimaginação, e recoloca a relação entre os servi-ços de forma mais horizontal. E que não se ve-ja aqui apenas um jogo de palavras. A lógicahorizontal dos vários serviços de saúde coloca-dos na superfície plana do círculo é mais coe-rente com a idéia de que todo e qualquer servi-ço de saúde é espaço de alta densidade tecno-lógica, que deve ser colocada a serviço da vidados cidadãos. Por esta concepção, o que im-porta mais é a garantia de acesso ao serviçoadequado, à tecnologia adequada, no momen-to apropriado e como responsabilidade in-transferível do sistema de saúde. Trabalhandoassim, o centro de nossas preocupações é ousuário e não a construção de modelos assis-tenciais apriorísticos, aparentemente capazesde introduzir uma racionalidade que se supõeser a melhor para as pessoas. Ter acesso aosserviços de um centro de saúde é, em incontá-veis situações, mais importante do que ter aces-

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so a qualquer serviço oferecido pelos hospitaishoje. Nestas situações, o centro de saúde é o“topo” para um número imenso de usuários.Repensar o sistema de saúde como círculo po-de ser uma ótima estratégia, afinal, para sequebrar a dura hegemonia do hospital e reco-locar a rede ambulatorial de serviços em outropatamar de reconhecimento pelos usuários.

Referências

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