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213 Fabrício Veiga Costa* MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO COLETIVO: UM ESTUDO CRÍTICO A PARTIR DA TEORIA DAS AÇÕES COLETIVAS COMO AÇÕES TEMÁTICAS CONSTITUTIONAL MODEL OF COLLECTIVE PROCESS: A CRITICAL STUDY ON THE THEORY OF COLLECTIVE ACTION AS THEMATIC ACTIONS MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESO COLECTIVO: UN ESTUDIO CRÍTICO SOBRE LA TEORÍA DE LAS ACCIONES COLECTIVAS COMO ACCIONES TEMÁTICAS Resumo: A concepção de processo coletivo centrada no sistema representativo não é compatível com o Estado Democrático de Direito pelo fato de não contemplar o cidadão como parte legitimada à propositura das ações coletivas. O advento da cidadania como fundamento do Estado Demo- crático de Direito é o fundamento regente para o entendimento do pro- cesso coletivo a partir do sistema participativo, em que a legitimidade processual contempla amplamente o direito de todos os interessados difusos proporem ações coletivas. A Teoria das Ações Coletivas como Ações Temáticas, desenvolvida pelo jurista mineiro Vicente de Paula Maciel Junior, busca estudar o processo coletivo a partir do objeto, e não a partir do sujeito, tal como propõe a Escola Paulista de Processo. Abstract: The conception process centered on collective representative sys- tem is not compatible with the democratic rule of law because it * Mestre e doutorando em Direito Processual pela PUC-MG. Prof. da Universi- dades Montes Claros e Araxá, Faculdades de Pará de Minas e Pitágoras-MG, da Fundação Pedro Leopoldo, e do Inst. Ed. Continuada PUC-MG. Advogado.

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Fabrício Veiga Costa*

MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO COLETIVO:UM ESTUDO CRÍTICO A PARTIR DA TEORIA DAS AÇÕES

COLETIVAS COMO AÇÕES TEMÁTICAS

CONSTITUTIONAL MODEL OF COLLECTIVE PROCESS:

A CRITICAL STUDY ON THE THEORY OF COLLECTIVE ACTION

AS THEMATIC ACTIONS

MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESO COLECTIVO:

UN ESTUDIO CRÍTICO SOBRE LA TEORÍA DE LAS ACCIONES

COLECTIVAS COMO ACCIONES TEMÁTICAS

Resumo:

A concepção de processo coletivo centrada no sistema representativo

não é compatível com o Estado Democrático de Direito pelo fato de não

contemplar o cidadão como parte legitimada à propositura das ações

coletivas. O advento da cidadania como fundamento do Estado Demo-

crático de Direito é o fundamento regente para o entendimento do pro-

cesso coletivo a partir do sistema participativo, em que a legitimidade

processual contempla amplamente o direito de todos os interessados

difusos proporem ações coletivas. A Teoria das Ações Coletivas como

Ações Temáticas, desenvolvida pelo jurista mineiro Vicente de Paula

Maciel Junior, busca estudar o processo coletivo a partir do objeto, e não

a partir do sujeito, tal como propõe a Escola Paulista de Processo.

Abstract:

The conception process centered on collective representative sys-

tem is not compatible with the democratic rule of law because it

* Mestre e doutorando em Direito Processual pela PUC-MG. Prof. da Universi-dades Montes Claros e Araxá, Faculdades de Pará de Minas e Pitágoras-MG,da Fundação Pedro Leopoldo, e do Inst. Ed. Continuada PUC-MG. Advogado.

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does not contemplate the citizen as a legitimate part of the commence-

ment of class actions. The advent of citizenship as the foundation of the

democratic rule of law is the basis to understanding the ruling collective

process from the participative system in which the procedural

standing extensively contemplates the right of all stakeholders propo-

sing collective actions. The Theory of Collective Action as Thematic Ac-

tions, developed by the lawyer Vicente de Paula Maciel Junior, seeks

to study the collective process from the object, not from the subject, as

proposed by the Paulista School of Process.

Resumen:

El concepto de proceso colectivo centrado en el sistema represen-

tativo no es compatible con el Estado Democrático de Derecho por

el hecho de no contemplar el ciudadano como parte legitimada a la

iniciación de la acción colectiva. El advenimiento de la ciudadanía

como fundamento del Estado Democrático de Derecho es el funda-

mento regente para la comprensión del proceso colectivo del sistema

participativo, en el cual la legitimidad procesal contempla amplia-

mente el derecho de que todas las personas interesadas difusas pue-

dan proponer acciones colectivas. La Teoría de las Acciones

Colectivas como Acciones Temáticas, desarrollada por el jurista de

Minas Gerais Vicente Paula Maciel Junior, tiene por objeto estudiar

el proceso colectivo a partir del objeto, y no de los sujetos, en la forma

propuesta por la Escuela Paulista de Proceso.

Palavras-chaves:

Ações temáticas, sistema participativo, ações coletivas.

Keywords:

Thematic actions, participatory system, class actions.

Palabras clave:

Acciones temáticas, sistema participativo, acciones colectivas.

INTRODUÇÃO

A reconstrução do Processo Coletivo a partir do ModeloConstitucional de Processo é uma necessidade no Estado De-mocrático de Direito. A superação do modelo de processo coletivo,centrado no sistema representativo, viabiliza o seu entendimentocrítico mediante a participação de todos aqueles juridicamente inte-ressados na construção do mérito das ações coletivas. Dessa forma,busca-se, com a presente pesquisa, apresentar um debate jurídicoacerca da problemática e da necessidade de discussão da procedi-mentalização do processo coletivo desvinculado de acepções au-tocráticas e individualistas. O advento do Direito Coletivo comoramo cientificamente autônomo demonstra a necessidade de pro-posições tendentes à criação de uma Teoria Geral do Processo Co-letivo, justamente para alcançar o desvencilhamento com o modelode processo centrado em pretensões de cunho individual.

Além disso, faz-se necessária a sistematização de toda alegislação brasileira esparsa referente aos Direitos Coletivos, com afinalidade de buscar a construção de um sistema jurídico de proteçãodas pretensões dos interessados difusos nos moldes democráticos.Reformas processuais pontuais não são suficientes para a rupturacom a acepção instrumentalista1 de processo, centrada no idealindividualista e liberal. Faz-se necessário repensar o processoconstitucional a partir do entendimento de que o devido processolegal, a isonomia processual, a publicidade dos atos processuais, o

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1 “A revisitação da metódica pluralista e aberta da visão instrumentalista dodireito processual para contextualizá-la e redimensioná-la à luz da teoria dosdireitos e das garantias constitucionais fundamentais é hoje caminho necessáriopara a ordenação do direito processual, a fim de que ele possa cumprir suasreais funções de instrumento como meio de proteção e de efetivação materialda Constituição, com a transformação positiva da realidade social. É essa umaexigência das próprias diretrizes do Estado Democrático de Direito, especialmenteno plano do direito coletivo, inserido constitucionalmente, na teoria dos direitose das garantias fundamentais” (ALMEIDA, 2007, p. 146).

contraditório e a ampla defesa são corolários indispensáveis à efe-tivação dos Direitos Fundamentais garantidos no plano constituinte.

É nesse contexto teórico que precisamos pensar o pro-cesso coletivo sob a ótica crítica2 do princípio da Supremacia daConstituição, para, assim, implementarmos a participação dos inte-ressados no provimento a partir da Teoria das ações coletivas comoações temáticas. A democratização do acesso à jurisdição coletivapelo princípio da participação é fundamento suficiente para superar-mos o entendimento dogmático de uma jurisdição de autoridade,centrada no poder do julgador, e assim apresentarmos proposiçõessuficientes ao entendimento da jurisdição como um Direito Funda-mental, assegurado indistintamente a todos os cidadãos, de discu-tirem pretensões tanto de conotação individual quanto coletiva.

A hipótese científica que conduzirá todo o estudo pro-posto nesta pesquisa gira em torno da seguinte problemática: o atualmodelo de processo coletivo proposto pela Escola Instrumentalistacorrobora com o paradigma do Estado Democrático de Direito?Certamente não, uma vez que o fato de o Direito Processual Co-letivo ser discutido sob o patamar da representatividade não é sufi-ciente para viabilizar a participação direta dos interessados difusose coletivos na construção isonômica do provimento jurisdicional,cujos efeitos da decisão afetarão indistintamente todos aqueles aquem devem ser assegurados o direito de participação no debatede todos os temas correlatos à pretensão inicialmente deduzida.

HISTÓRICO DO PROCESSO COLETIVO

Pensar o processo coletivo sob a égide individualista pro-posta pela Escola Instrumentalista é certamente admitir a existência

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2 “[...] a crítica, parece, é o único modo que temos de identificar nossos erros ede aprender com eles de maneira sistemática” (POPPER, 1987, v. 2, p. 396).

de profunda incompatibilidade entre o sistema representativo e osistema participativo. É a partir dessa premissa que se pretendedemonstrar a construção do pensamento do Direito e do ProcessoColetivo enquanto disciplinas cientificamente autônomas e dota-das de um objeto próprio.

A proteção dos direitos coletivos, de natureza metaindi-vidual, é uma preocupação que transpassa a historiografia mundialdesde os primórdios, ou seja, a necessidade de disciplinar juridi-camente tais direitos coincide, certamente, com o advento dascivilizações. Nesse ínterim, pode-se afirmar que o antecedentehistórico mais remoto de que se tem notícia no estudo do DireitoColetivo é a ação popular romana. O interesse dos romanos paracom a proteção jurídica não apenas dos conflitos individuaiscertamente se explica pela construção do ideal de Democraciaprevalente ao longo de toda a história do Império Romano. Talafirmação se justifica pela solidificação da ideia de interessepúblico, muito evidente no Direito Romano e produto da construçãoda res publica que viabilizava o sentimento de cada cidadãoromano poder pleitear judicialmente, e também participar, detodas as decisões referentes ao interesse público. Por isso, restaclara a afirmação de que, embora a base do Direito Romano en-contrava-se sedimentada no Direito Privado, o cidadão romanopoderia participar ativamente da vida do Estado através do ins-trumento da ação popular, o que não significava a prevalênciados interesses estatais em detrimento dos interesses dos cida-dãos (LEONEL, 2002, p. 40-43).

A ação popular romana tinha caráter predominantementepenal e visava, acima de tudo, a defesa de coisas públicas e de carátersacro. Dentre os legitimados, as mulheres e os menores eram ex-cluídos por não serem reconhecidos como cidadãos. Ressalta-se,ainda, a impossibilidade de substituição processual em caso demorte do autor da ação, o que demonstra ser um profundo equí-voco, até porque se o objeto da ação versa sobre uma pretensão

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metaindividual não se justificava a extinção do processo com amorte do autor da ação. Admitia-se também, a qualquer tempo, aoposição de exceção à coisa julgada sempre que demonstrado ointeresse juridicamente legítimo de prosseguir com o debate jurídicode novas questões relacionadas à pretensão inicialmente dedu-zida em juízo e de caráter e interesse da coletividade (LEONEL,2002, p. 44-45).

Resta esclarecer que, através da ação popular, o cidadãoromano podia controlar a atividade estatal, com o propósito de ave-riguar se o interesse da coletividade estava sendo efetivamenteprotegido. Tratava-se de um instrumento hábil para controlar nãosomente a atividade estatal, mas, acima de tudo, limitar o exercícioabusivo das liberdades individuais que pudessem contrariar osinteresses da coletividade. Nesse sentido, afirma-se:

A ação popular tinha em Roma amplitude extraordinária,servindo não somente para a tutela de interesses individuaiscom conseqüências públicas (como no caso de defesa pessoaldo uso de vias públicas por meio do interdictum ne quid in locopublico vel itinere fiate; como ainda da utilização dos rios,ancoradouros, bebedouros, entre outras coisas, por força dosinterdictum ne quid in flumine publico ripave ejus Fiat; uso deesgotos públicos, por meio do interdito de cloacis, entreoutros); mas ainda, e sobretudo, para a tutela de interessesmais propriamente coletivos, como na defesa de sepulturacomum, efetivação de fundações instituídas por atos dedisposição de última vontade, oposição à colocação de telhas ejanelas de coisas que pudessem ser lançadas à rua, entre outras.(LEONEL, 2002, p. 47)

É recente a regulamentação da ação popular, tendo ocor-rido em 30 de março de 1836, com a lei comunal, na Bélgica, e, emseguida, na França, com a lei comunal de 18 de julho de 1837. NaItália, foram implementadas, em 20 de setembro de 1859, a lei 26,que previa a possibilidade de ação popular para matéria eleitoral, etambém a Lei 765, de 06 de agosto de 1927, que previa o uso daação popular em matéria urbanística (LEONEL, 2002, p. 52).

No Brasil não foi diferente, uma vez que a gênese do

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processo coletivo está na Ação Popular, que foi inicialmenteinserida no Direito pátrio através do artigo 113, inciso XXXVIII,da Constituição de 1934: “Qualquer cidadão será parte legítimapara pleitear a declaração de nulidade ou anulação de atos lesi-vos do patrimônio da União, Estados ou dos Municípios” (BRA-SIL, 2001a, p. 161). É de suma importância esclarecer que oprimeiro instrumento processual hábil, no Direito pátrio, para o con-trole das atividades estatais encontrava-se na Constituição de1934, especificamente no que tange ao controle do patrimôniopúblico. Sabe-se que, historicamente, tal possibilidade foi supri-mida na Constituição de 1937, que, pelo próprio contexto histó-rico, marcado por um regime político de exceção, o cidadãoencontrava-se impossibilitado de participar das decisões esta-tais e se encontrava refém do arbítrio dos detentores do poder.Assim, ressalta-se:

No intervalo observado entre a Constituição do Estado Novoaté a publicação da Carta de 1946, foi editado o novo ordena-mento processual civil unificado, sendo que neste havia aprevisão, no artigo 670, da possibilidade de ajuizamento deação pelo Ministério Público ou por qualquer do povo, com oescopo de dissolver associação civil com personalidade jurídicaque promovesse atividade ilícita ou imoral, reavivando aquelaespécie de ação que já fora prevista anteriormente na própriaCarta de 1934, tida pela doutrina de então como popular.(LEONEL, 2002, p. 52)

Com o advento da Constituição de 1946 houve o renas-cimento da ação popular em seu artigo 141, inciso XXXVIII:“Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulaçãoou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio daUnião, dos Estados, dos Municípios, das entidades autárquicase das sociedades de economia mista” (BRASIL, 2001b, p. 103).Novamente, temos a possibilidade jurídica de controle do pa-trimônio público pelo cidadão. Dessa forma, observa-se:

[...] Em seguida, foram instituídas ainda duas ações de natu-reza popular no âmbito da legislação infraconstitucional, quais

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sejam: uma pelo artigo 35, §1º, da Lei 818, de 18.09.1949, re-lacionada à aquisição, perda e reaquisição da nacionalidadee perda de direitos políticos; e ainda outra, pelo artigo 15, §1º,da Lei 3.052, de 21.12.1958, relativa à impugnação do enri-quecimento ilícito (matéria hoje regulada pela Lei 8.429/92,que será tratada oportunamente). [...] (LEONEL, 2002, p. 54)

Em 29 de junho de 1965, em pleno período da DitaduraMilitar, foi sancionada a Lei 4.717, que disciplinava, no planoinfraconstitucional, a ação popular. Reconheceu-se a legitimidadeprocessual de qualquer cidadão pleitear a anulação ou a decla-ração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio dos entes daAdministração Pública Direta e Indireta. O requisito para acomprovação da cidadania e da legitimidade para a propositurada presente ação era o título de eleitor e a demonstração daregularidade no exercício dos direitos políticos. A sentença deimprocedência ou de carência da ação estava sujeita ao reexamenecessário e a de procedência à possibilidade de propositura derecurso de apelação recebido no efeito suspensivo (BRASIL,2007, p. 1080/1082).

Tal legislação denota a tentativa de o legislador institu-cionalizar o controle das atividades estatais diretamente pelo ci-dadão. Acontece que tal fiscalidade não era de naturezaampla, excluindo-se, por exemplo, a possibilidade de controledo meio ambiente e dos demais direitos de natureza metaindivi-dual e potencializador do exercício pleno da cidadania. Com isso,sabe-se que temos, nesse período da história brasileira, o inícioda legitimação do cidadão no controle e fiscalidade das ativida-des estatais, até porque tal controle era um tanto limitado emdecorrência do próprio contexto da historiografia brasileira, umperíodo de regime político de exceção.

A Carta de 1967, e a Emenda Constitucional 1/69, emseu artigo 153, inciso XXXI, previa: “Qualquer cidadão será partelegítima para propor ação popular que vise a anular atos lesivosao patrimônio de entidades públicas” (BRASIL, 2001c, p. 165).

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Novamente, ressalta-se a existência de uma previsão legal umtanto genérica, que garante ao cidadão um controle restrito dasatividades estatais, à margem da legitimidade democrática e doModelo Constitucional de Processo Coletivo.

Em 24 de julho de 1985 adveio para o sistema jurídico bra-sileiro a Lei 7.347, que disciplinou a ação civil pública, cujo objetopode ser o meio ambiente, o consumidor e o patrimônio público.Esta representa mais uma tentativa de o legislador pátrio regula-mentar, através de uma legislação específica, o processo coletivo.Verifica-se que o tratamento jurídico-legal dado ao processo cole-tivo ainda continua adstrito à concepção representativa, por nãocontemplar o cidadão como legitimado para a sua propositura.

A Constituição de 1988 reiterou o tratamento jurídico-legal dado à ação popular como um instrumento hábil que legi-tima o cidadão no controle dos atos e das atividades estatais.

O MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO NO ESTADODEMOCRÁTICO DE DIREITO

O fundamento teórico para a construção de teorias há-beis ao entendimento crítico do Estado Democrático de Direitoencontra-se na Epistemologia.

A garantia de participação na construção do mérito doprocesso coletivo não deve ser uma prerrogativa adstrita aopersonalismo do julgador, haja vista tratar-se de um DireitoFundamental garantidor da implementação da cidadania. Osistema representativo, como parâmetro ao estudo do processocoletivo, é a demonstração do caráter autocrático da legislaçãopátria, ao limitar o entendimento da legitimidade processualapenas àquelas pessoas autorizadas e escolhidas pelo legislador,

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como é o caso da exclusão do cidadão como legitimado para apropositura da ação civil pública.

No Estado Democrático de Direito a democracia é oregime político capaz de garantir, formal e materialmente, o exer-cício dos direitos fundamentais, cuja legitimidade perpassa pelaparticipação dos seus destinatários na construção das normasjurídicas a partir da teoria do discurso jurídico, conforme enten-dimento preconizado por Habermas (2003, p. 154):

Neste ponto, é possível enfeixar as diferentes linhas de argu-mentação, a fim de fundamentar um sistema dos direitos quefaça jus à autonomia privada e pública dos cidadãos. Esse sistemadeve contemplar os direitos fundamentais que os cidadãos sãoobrigados a se atribuir mutuamente, caso queiram regular suaconvivência com os meios legítimos do direito positivo.

Nesse mesmo sentido se manifesta Habermas (2003, p.157): “A idéia da autolegislação de civis exige que os que estãosubmetidos ao direito, na qualidade de destinatários, possam en-tender-se também enquanto autores do direito”.

O fundamento da legitimidade democrática é a garantiaassegurada a todos os interessados de fiscalizar amplamente aconstrução participada do provimento. Nesse sentido, ressalta-se o entendimento de Dhenis Cruz Madeira (2008, p. 24):

Por conseguinte, obstruir a fiscalidade popular sobre anorma jurídica é dar margem à vida nua, criando-se um espaçodiscursivo indemarcado e não-fiscalizável. Com isso, fomenta-seo aparecimento do espaço do soberano (e não o da soberaniapopular), do locutor autorizado da lei, que, à semelhançado soberano de Kafka, diz o que pode e o que não pode,sem, contudo, ofertar os fundamentos de suas decisões,ou mesmo, permitir que o destinatário da norma aponte asausências do discurso normativo. Esse espaço do soberano,a nosso ver, permite a criação de uma dimensão políticaacima da jurídica.

Buscando-se os fundamentos teóricos precipuamente nadoutrina da legitimação democrática do direito preconizada por

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Jürgen Habermas3 e na visão crítica falibilista4 de Karl Popper,Rosemiro Leal se propõe a estudar o processo no Estado Demo-crático de Direito a partir da premissa de que este não é uma sim-ples espécie de procedimento, mas sim uma instituiçãoconstitucionalizada regente das estruturas procedimentais pre-paratórias de provimentos estatais (TEIXEIRA, s/d). Há umaidentidade científica existente entre a Teoria Neo-institucionalistado processo e a Teoria do modelo Constitucional do Processo,já que ambas buscam o seu fundamento teórico nos direitos fun-damentais. Todavia, daquela teoria se afasta na medida em quecoloca o processo como pressuposto de legitimidade “de todacriação, transformação, postulação e reconhecimento de di-reitos pelos provimentos legiferantes, judiciais e administrati-vos” (LEAL, 2000, p. 97)”.

Os direitos fundamentais, considerados o substrato inter-pretativo da presente teoria, serão enunciados jurídicos proces-sualmente decididos por uma sociedade efetivamente apta ao

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3 “Os direitos de participação política remetem à institucionalização jurídica de uma for-mação pública da opinião e da vontade, a qual culmina em resoluções sobre leis e polí-ticas. Ela deve realizar-se em formas de comunicação, nas quais é importante o princípiodo discurso, em dois aspectos: O princípio do discurso tem inicialmente o sentido cognitivode filtrar contribuições e temas, argumentos e informações, de tal modo que os resultadosobtidos por este caminho têm a seu favor a suposição da aceitabilidade racional: o pro-cedimento democrático deve fundamentar a legitimidade do direito. Entretanto, o caráterdiscursivo da formação da opinião e da vontade na esfera pública política e nas corpora-ções parlamentares implica, outrossim, o sentido prático de produzir relaçõesde entendimento, as quais são isentas de violência, no sentido de H. Arendt,desencadeando a força produtiva da liberdade comunicativa. O poder comunicativo deconvicções comuns só pode surgir de estruturas da intersubjetividade intacta. E esse cru-zamento entre normatização discursiva do direito e formação comunicativa do poder épossível, em última instância, porque no agir comunicativo os argumentos também for-mam motivos. Tal cruzamento se faz necessário, porque comunidades concretas quedesejam regular sua conveniência com os meios do direito não conseguem separar asquestões de regulamentação de expectativas de comportamento das questões referentesà colocação de fins comuns, o que seria possível numa comunidade idealizada de pes-soas moralmente responsáveis. As questões políticas distinguem-se das morais.” (HA-BERMAS, 2003, p. 190-191)4 “[...] Por falibilismo se entende aqui a opinião, ou a aceitação do fato, de quepodemos errar e de que a busca da certeza (ou mesmo a busca de alta proba-bilidade) é uma busca errônea. Mas isto não implica que a busca de verdade

exercício da cidadania. A pressuposição democrática é que o direitoseja legitimamente projetado e construído por uma comunidade políticaconsciente e conhecedora do projeto constitucional consistente na de-mocratização da atividade legiferante (LEAL, 2004, p. 95-96).

O exercício da cidadania no Estado Democrático deDireito pressupõe o conhecimento da Teoria Processual dosDireitos Fundamentais5 discursivamente construídos pelos seusdestinatários. O referente lógico-jurídico para a compreensão daTeoria Neo-institucionalista do processo é a principiologia cons-titucional. Nos dizeres de Leal (2004, p. 97):

De conseguinte, o que se busca com uma teoria neo-instituciona-lista do processo é a fixação constitucional do conceito do que sejajuridicamente processo, tendo como base produtiva de seus con-teúdos a estrutura de um Discurso advindo do exercício perma-nente da cidadania pela plebiscitariazação continuada no espaçoprocessual das temáticas fundamentais à construção efetiva deuma Sociedade Jurídico-Política de Direito Democrático.

O processo deve buscar, na Hermenêutica ConstitucionalDemocrática, o referencial para a previsibilidade e objetividadedas decisões judiciais. A qualidade democrática de uma sociedadejurídico-política é definida pela produção das normas jurídicas apartir da institucionalização do Processo Constitucional (LEAL,2004, p. 98). O povo deve ser o pressuposto da legitimidade,criação, aplicação e alteração do direito.

O enunciado do processo para a Teoria Neo-instituciona-lista encontra-se nos princípios institutivos6: contraditório, isonomia

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seja errônea. Ao contrário, a idéia de erro implica a da verdade como padrão que po-demos não atingir. Implica que, embora possamos buscar a verdade e até mesmoencontrar a verdade (como creio que fazemos em muitíssimos casos), nunca pode-mos estar inteiramente certos de que a encontramos [...] Mas o falibilismo não precisa,de modo algum, dar origem a quaisquer conclusões céticas ou relativistas. Tornar-se-á isto claro se considerarmos que todos os exemplos históricos conhecidos de falibi-lidade humana – incluindo todos os exemplos conhecidos de erros judiciários – sãoexemplos do avanço de nosso conhecimento.” (POPPER, 1987, v. 2, p. 395-396).5 Importante destacar que a Processualidade Democrática dos DireitosFundamentais será discutida em tópico posterior.6 “[...] como elementos jurídico-existenciais do processo, em sua base institutiva,

e ampla defesa.A marca fundamental do contraditório, no paradigma do Es-

tado Democrático, é a igual oportunidade de participação dos inte-ressados na construção dos provimentos estatais (LEAL, 2002). ParaDierle Nunes (2004, p. 42), o princípio do contraditório é entendidotão somente como um direito de bilateralidade da audiência, possi-bilitando às partes a devida informação e possibilidade de reação.Gonçalves (1992, p. 128) entende que o contraditório tem como basea liberdade na busca da decisão participada. Através do contradi-tório, deve ser assegurada a defesa, não podendo ninguém sercondenado sem ela (CARREIRA ALVIM, 2004, p. 159). É imprescin-dível a observância do contraditório pelo juiz, que deverá adotar asprovidências necessárias para assegurá-lo, para fazê-lo observar(ARAÚJO, 2003, p. 119). Trata-se de um direito-garantia das partesexercerem livremente o direito de nada dizerem (LEAL, 2004, p. 103).Nery propugnou pela correlação existente entre o contraditório, aigualdade e o direito de ação7. O exercício da função jurisdicional sedará com a obrigatória participação em contraditório dos interessadosnos efeitos dos provimentos judiciais (DIAS, 2004, p. 87-88).

Nesse contexto, observa-se que o princípio do contradi-tório desencadeia uma série de implicações na aquisição e navaloração da prova, em vista da decisão sobre o fato (CATTONIDE OLIVEIRA, 2001, p. 160).

Indispensável ao exercício do contraditório, a isonomia,enquanto direito-garantia constitucionalizada, preza pela liber-dade de tratamento jurídico igual que não se opera pela distinçãojurisdicional do economicamente igual ou desigual, ou seja, tal

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o contraditório, a isonomia e a ampla defesa são princípios (referentes lógico-ju-rídicos), sem os quais não se definiria o PROCESSO em parâmetros modernosde direito-garantia constitucionalizada ao exercício de direitos fundamentaispela procedimentalidade instrumental das leis processuais. Como princípios jurí-dico-institutivos do PROCESSO, o contraditório, a isonomia e a ampla defesa, me-recem estudo particularizado.” (LEAL, 2000, p. 103, grifos meus)7 “O princípio do contraditório, além de fundamentalmente constituir-se em mani-festação do princípio do Estado de Direito, tem íntima ligação com o da igualdade

princípio constitucional não pode ser utilizado para conferir tra-tamento jurídico discriminatório aos indivíduos (LEAL, 2004, p.103). O professor Rosemiro Leal (2005, p. 78) alerta a comunidadecientífica para a existência das ações afirmativas como forma dediscriminação lícita contributiva para a produção da igualdade:

A pretexto de inclusão social das minorias e defesa dos direitosdos diferentes, acabam aplaudindo a excrescência conceitualde uma discriminação lícita (sic) contributiva para a produçãoda igualdade a ser desenvolvida em espaços políticos despro-cessualizados de autonomia pública e privada ocupados porinteligências salvacionistas dispostas a um movimento demudança geral de mentalidades.

O direito de igualdade perpassa pelo exercício amplo, efe-tivo e irrestrito dos direitos fundamentais nos patamares constitucio-nais8. A isonomia é o princípio garantidor da igualdade argumentativana formação do discurso de produção e aplicação do direito.

Sistema de Direitos, para Habermas, citado por Galuppo(2002, p. 204), é um conjunto de direitos fundamentais que tornapossível a participação de cada falante, da forma mais ilimitadapossível, dos discursos jurídicos, ou seja,

[...] é um conjunto de princípios jurídicos que garante a legitimidadede um ordenamento jurídico estatal contemporâneo, uma vezque estabelece as condições sob as quais as formas de comu-nicação necessárias para a gênese autonomamente políticado direito podem ser juridicamente (rechtlich) institucionalizadas(Habermas, 1994a: 134), e que contém os direitos fundamentaisque os cidadãos (Büerger) têm que garantir mutuamente unsaos outros, se eles desejam regular legitimamente sua vida emcomum por meio do direito positivo (Habermas, 1994a: 128).

A ideia de um Sistema de Direitos como garantia esubstrato da legitimidade do Estado Democrático de Direito

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das partes e o do direito de ação, pois o texto constitucional, ao garantir aos litiganteso contraditório e a ampla defesa, quer significar que tanto o direito de açãoquanto o direito de defesa são manifestações do princípio do contraditório.”(NERY JÚNIOR, 2000, p. 130)8 “Ora, se os direitos fundamentais não forem executados judicialmente, nunca

revela a importância da igualdade na Teoria Discursiva do Direito.A isonomia e a liberdade, pressupostos da legitimidade das nor-mas jurídicas, asseguram a inclusão dos cidadãos nos discur-sos jurídicos de justificação e aplicação9. A participação igualitáriade todos os cidadãos na formação da opinião e vontade pú-blica permitirá a construção discursiva do Estado Democrático.Ante o exposto, verifica-se que a igualdade é condição para aparticipação no discurso (GALUPPO, 2002, p. 207).

O princípio da isonomia é garantidor da igualdadeprocedimental de igual tratamento. O processo legitima o exercí-cio da função jurisdicional por meio da isonomia processual10. Aisonomia processual, pressuposto do Estado Democrático, afastaqualquer tipo de privilégio e proíbe quaisquer distinções nãoautorizadas pelo texto constitucional. Nos dizeres de Leal, “oProcesso na Teoria do direito democrático é o ponto discursivoda igualdade dos diferentes”.

Considerada a coextensão dos princípios do contraditório eda isonomia, a ampla defesa garante a irrestrita argumentação nodireito de defesa11. A dialeticidade entre as partes e a bilateralidade

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se poderá falar num piso de igualdade para incluídos e excluídos como pontode partida ao reconhecimento cognitivo, por igual tempo de argumentaçãoprocessual (ISONOMIA), de direitos a serem alegados ou pretendidos pelasminorias e diferentes. Só se saberá se alguém pertence ao bloco das minoriasou dos diferentes após atendimento dos direitos fundamentais à vida, à liberdade,à dignidade mínima para que se habilitem a disputar processual e igualmentedireitos em face de outrem. Antes de atendimento desses direitos fundamentais,as pessoas estarão sempre em níveis de uma desigualdade ilegal que os impedemde debater e pretender, no espaço-tempo procedimental, direitos em condiçõesargumentativas isonômicas.” (LEAL, 2005, p. 79)9 Ressalta-se que Rosemiro Pereira Leal não concorda com a distinção existenteentre discurso de justificação e discurso de aplicação.10 “A teoria neo-institucionalista distingue a isonomia substancial (material) da isono-mia processual. Em matéria processual, a isonomia equivale à igualdade temporalde dizer e contradizer para construção da estrutura procedimental, porque o direitoao processo não tem conteúdos de criação de direitos diferenciados pela disparidadeeconômica das partes, a disparidade econômica não pode impedir ou dificultar a prá-tica de atos processuais, diferentemente da isonomia substancial ou material, queconsiste em tratar os iguais de modo igual e os diferentes de modo diferente a fimde se atingir igualdade de condições econômica.” (ALMEIDA, 2005, p. 69-70)11 “A ampla defesa é co-extensiva aos princípios do contraditório e da isonomia,

de ação são os elementos caracterizadores do contraditório, quedeverão oportunizar o direito de informação e reação; o princípioda ampla defesa se materializa quer na defesa técnica exercidapelo advogado, quer na autodefesa do acusado (CINTRA; GRI-NOVER; DINAMARCO, 2005, p. 57-59).

A busca incessante pela efetividade processual atravésdos princípios da celeridade e da economia processual não po-derá restringir nem limitar a interpretação dos princípios instituti-vos. A efetividade processual no Estado Democrático se dá coma coparticipação dos destinatários na construção do provimento,conforme esclarece Andréia Alves de Almeida (2004, p. 89):

A efetividade processual, no paradigma democrático aproxima-seassim do conceito de legitimidade, ou seja, somente é possívelquando os destinatários das normas se considerarem seusautores. São os destinatários da normatividade legislada queefetivam o ordenamento jurídico pela via procedimental do devidoprocesso legal, mediante o qual se reconhecem autores dasnormas vigentes e aplicáveis. Não há como operacionalizar ademocracia pelos órgãos jurisdicional, legislativo e executivo porsi mesmos, pois a democracia é um sistema aberto e nenhumadas esferas do Estado pode pressupô-la e/ou absolutizar valorescomo corretos e universais. Na razão (concepção) discursiva, aefetividade processual se dá e se preserva pela regência do devidoprocesso constitucional na atividade legiferante e jurisdicional.

Passaremos a seguir a discutir a problemática da recons-trução do processo coletivo a partir da Teoria das ações coletivascomo ações temáticas para, assim, compreender o Modelo Cons-titucional de Processo no Estado Democrático de Direito.

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porque se faz nos limites temporais do procedimento em contraditório. A defesa(argumentação) irrestrita só se efetiva pela participação dos advogados das partesou interessados na estruturação dos procedimentos jurisdicionais, sejam ordinários,sumários, especiais ou extravagantes, porque a defesa apenas poderá ser exercidade forma plena e ampla quando o direito à liberdade e de acesso à informação nãofor limitado. O direito à liberdade [...] consiste na possibilidade de coordenaçãoconsciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal [...] e tudoque impedir aquela possibilidade de coordenação dos meios é contrário à liberdade.A fim de garantir o exercício desses direitos, a CR/88 impõe a indispensabilidadedo advogado na atividade jurisdicional (art. 133).” (ALMEIDA, 2005, p. 71)

TEORIA DAS AÇÕES COLETIVAS COMO AÇÕES TEMÁTICAS

A construção do mérito participado no processo coletivopressupõe a ruptura com o entendimento do direito coletivo apartir do sistema representativo para, consequentemente,repensá-lo no modelo participativo. Por isso, é imperiosa aampliação do rol de legitimados para, por conseguinte, permitirque o maior número possível de interessados possa defendersuas teses em juízo. O processo coletivo, no modelo constitucio-nal democrático, deve viabilizar amplamente o exercício da cida-dania através da participação ampla e direta de todos osinteressados na construção do mérito da demanda. Ou seja, o méritoda demanda não pode ser pré-definido apenas pelos legitimadospreviamente determinados em lei, uma vez que a legitimidadedemocrática do provimento jurisdicional perpassará pela ampliaçãoda participação de todos os legitimados e interessados nademanda: “Quanto maior fosse a participação na formação domérito, maior seria a legitimação da decisão do processo coletivoem relação aos efeitos que produziria em face dos interessadosdifusos” (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 181).

É nesse contexto que se constrói a Teoria das ações co-letivas como ações temáticas:

A ação coletiva deve ser a demanda que propõe um tema,abrindo a possibilidade de que o próprio conteúdo do processoseja definido de modo participativo. O processo coletivo de-manda, portanto, uma fase inicial na qual o seu objeto seja for-mado. O mérito do processo é construído, dentro de umdeterminado período de tempo fixado na lei, até quando serápossível que os diversos interessados compareçam na demandae formulem seus pedidos. (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 179)

A formação participada do mérito no processo coletivonão se dará no momento inicial de propositura da ação, mas simserá construída mediante a oportunização efetiva de todos osinteressados difusos juridicamente legitimados que apresentarem

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temas coerentes com a pretensão inicialmente deduzida em juízopara, a partir desse contexto, reconstruir o processo coletivo demo-crático a partir do sistema participativo. O momento processual paraa estabilização da demanda dar-se-á através da fixação dos pontoscontrovertidos, que será após a efetivação do direito de participaçãoem contraditório no processo decisório que afetará todos os interes-sados. A implementação efetiva do contraditório, enquanto princípioinstitutivo do processo (LEAL, 2000), dar-se-á através da efetivaparticipação de todos os interessados difusos na construção domérito do processo coletivo e, consequentemente, na construçãoparticipada do provimento jurisdicional. Trata-se de uma teoria cujoconceito de jurisdição não se encontra centrado solitariamente napessoa do julgador que, mediante a efetiva participação na cons-trução do mérito, terá reais condições de proferir sua decisão.Serão considerados legitimados à construção do mérito do pro-cesso coletivo todos aqueles interessados que demonstraremque sofrerão os efeitos da decisão judicial. Nesse sentido, temos:

Proposta uma ação cuja decisão envolva bem que afete umnúmero indeterminado de pessoas, o ideal seria que a leifixasse uma fase de divulgação para que os interessadosdifusos tomassem ciência e pudessem intervir no processo.Nas ações coletivas poderia ser estabelecida a obrigatóriaparticipação do Ministério Público, o que já ampliaria o rol doslegitimados presentes na ação e envolverá um órgão que tempor função primordial a defesa da legalidade.Recebida a defesa e os eventuais aditamentos à inicial, deveriahaver um despacho saneador no qual o juiz obrigatoriamente fi-xasse os pontos controvertidos e o objeto da prova e resolvesseas demais questões do processo. (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 183)

Admitir o Ministério Público como o único legitimado apropor as ações coletivas é legitimar a violação do princípio docontraditório mediante a supressão da participação de todos osinteressados difusos na construção participada do mérito coletivo.A publicização da pretensão deduzida é o fundamento para aconstrução participada do mérito mediante ampla fiscalidade portodos aqueles juridicamente interessados.

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A CONSTRUÇÃO DO MÉRITO PELO SISTEMA PARTICIPATIVO

A compreensão crítica do mérito participado perpassapelo entendimento do processo e das ações coletivas sob a óticado processo constitucional no Estado Democrático de Direito.

Toda problemática perpassa inicialmente pela distinçãojus-filosófica existente entre direito e interesse. Inicialmente, éimportante ressaltarmos o pensamento de Ihering, consideradoum utilitarista, que compreendia o direito a partir da ideia de exis-tência de um fim prático. É como explicita Vicente de PaulaMaciel Junior (2006, p. 20), citando Edgard Bodenheimer “Ihe-ring calcou o ponto central de sua Filosofia do Direito no fim. Ofim como criador de todo o Direito, não havendo norma jurídicaque não deva sua origem a um fim ou motivo prático”. É nessecontexto que Vicente de Paula Maciel Junior (2006, p. 20) afirmaque “Ihering entendia que os direitos não existem apenas pararealizar a idéia de vontade jurídica abstrata”. Dessa forma, sabe-se que, para Ihering, os direitos são vistos como interesses juri-dicamente protegidos.

A compreensão de Direito a partir da obra de Ihering éde caráter liberal e pautado na premissa de direitos individuais.Além disso, não se pode pensar o Direito enquanto ciência soba ótica processual, uma vez que os fundamentos metajurídicose de cunho axiológico representam o norte de toda a obra de Ihering.Dessa forma, é possível afirmar que atualmente a inaplicabilidadeda Teoria de Ihering evidencia-se na necessidade de proteçãojurídica não apenas de direitos individuais e de relações jurídicase privadas construídas entre particulares, mas, acima de tudo,no interesse em proteger direitos coletivos, cuja titularidade é dacoletividade, e não apenas de um indivíduo em si.

A partir dessas considerações iniciais, afirma-se que osinteresses jurídicos são construções individuais e de caráter

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liberal, cuja aplicabilidade no âmbito coletivo torna-se inviável.Dessa forma, sabe-se que, juridicamente, o mais adequado nãoé falarmos em interesses metaindividuais ou transindividuais,conforme preconizam alguns autores, mas sim em Direitos Cole-tivos, cuja efetivação dar-se-á através das ações coletivas edo processo coletivo. Nesse sentido revela-se o entendimentodo professor Vicente de Paula Maciel Junior (2006, p. 57-58):

Negamos em diversas oportunidades em nossa exposição aexistência de interesses coletivos e difusos. Sob o nossoprisma, os interesses são sempre individuais e, se assim é,não há como reconhecer que a manifestação individual dointeresse de uma parte em face de um bem possa ser difusa.O interesse é sempre identificável e relacionado a uma pessoaque manifesta sua intenção. Até mesmo a difundida expressãointeresses difusos foi idealizada tomando como pressupostobásico os sujeitos, para ressaltar que, com relação a essaespécie de interesses não há como identificar cada um daquelespossíveis interessados.

A garantia efetiva da participação pressupõe a publicizaçãoe a divulgação ampla da pretensão através de editais e outrosmeios de comunicação efetivos, tais como os veículos de comu-nicação, para que todos aqueles juridicamente interessadostenham a oportunidade de participação das discussões jurídico-constitucionais da pretensão. Essa foi a proposta adotada pelanova Lei de Ação Civil Pública em seu artigo 13:

Art. 13. Estando em termos a petição inicial, o juiz ordenará acitação do réu e, em se tratando de interesses ou direitosindividuais homogêneos, a intimação do Ministério Público eda Defensoria Pública, bem como a comunicação dos interes-sados, titulares dos respectivos interesses ou direitos objetoda ação coletiva, para que possam exercer, até a publicaçãoda sentença, o seu direito de exclusão em relação ao processocoletivo, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios decomunicação social.Parágrafo único. A comunicação dos membros do grupo,prevista no caput, poderá ser feita pelo correio, inclusiveeletrônico, por oficial de justiça ou por inserção em outro meiode comunicação ou informação, como contracheque, conta,fatura, extrato bancário e outros, sem obrigatoriedade deidentificação nominal dos destinatários, que poderão ser

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caracterizados enquanto titulares dos mencionados interessesou direitos, fazendo-se referência à ação e às partes, bemcomo ao pedido e à causa de pedir, observado o critério damodicidade do custo.

Importante esclarecer nessa publicização o objeto exatoa ser discutido, com o propósito de impedir alegações e discussõesimpertinentes e não relacionadas ao objeto em questão. O controledessa participação dos juridicamente interessados será feitodemocraticamente pelo Ministério Público e pelo magistrado,priorizando sempre o debate que venha a acrescentar e contribuirpara o deslinde da pretensão deduzida em juízo.

Imagine, por exemplo, uma ação civil pública cujapretensão é a extinção de festas populares na cidade de OuroPreto visando a proteção do patrimônio histórico-cultural, que épatrimônio da humanidade. Certamente o Judiciário deverá seincumbir de divulgar amplamente o objeto da presente açãocoletiva para oportunizar efetivamente a participação de todosaqueles interessados na proteção do patrimônio histórico-culturalda cidade de Ouro Preto. Tal participação não será asseguradaapenas aos cidadãos de Ouro Preto nem de Minas Gerais, tendoem vista a existência de sujeitos indiretamente interessados noobjeto da presente ação coletiva.

Talvez o grande desafio prático enfrentado pelo Judiciárioseja instrumentalizar efetivamente tal participação, argumentoesse que deve ser rechaçado e que não pode ser utilizado comosubterfúgio à supressão da construção participada do méritoparticipado das ações coletivas. Considerando que tal participaçãoé um Direito Fundamental assegurado a todos os cidadãos juri-dicamente interessados e atingidos pelos efeitos do provimentojurisdicional, afirma-se que problemas estruturais enfrentadospelo Judiciário jamais poderão ser argumentos utilizados parasuprimir tal participação.

Ressalta-se, ainda, a obrigatoriedade de observânciaefetiva dos princípios constitucionais da isonomia processual,

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contraditório e ampla defesa, para que não enfrentemos participa-ções meramente formais na discussão do mérito das ações cole-tivas. No momento da construção do provimento jurisdicional, omagistrado deverá apresentar argumentos jurídicos suficientespara admitir ou rechaçar as alegações apresentadas por todosaqueles que participaram do debate jurídico da pretensão coletiva.

É importante que fique claro que o foco de discussão paraa construção participada do mérito na Teoria das ações coletivascomo ações temáticas é o objeto, e não o sujeito, uma vez que alegitimidade democrática do provimento jurisdicional não se limitaem oportunizar a todos os cidadãos o direito de participar direta-mente da construção do provimento, mas sim oportunizar, me-diante o princípio da publicidade, que sejam apresentados todosos temas e argumentos possíveis, coerentes e pertinentes com apretensão inicialmente deduzida. É nesse sentido que o méritoparticipado deve ser pensado: garantir efetivamente a oportuni-dade de apresentação de todos os temas, argumentos e alega-ções pertinentes à pretensão inicialmente deduzida em juízocomo forma de definir o objeto do processo coletivo e, conse-quentemente, viabilizar a construção participada do mérito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reconstrução do processo coletivo a partir do ModeloConstitucional de Processo perpassa pelo entendimento da Teoriadas ações coletivas como ações temáticas, que utiliza o sistema par-ticipativo como instrumento de ampla fiscalidade a ser exercida pelocidadão e centra todo o foco de seu debate não no sujeito, mas simno objeto. Dessa forma, o rol de legitimados não pode ser taxativo edeve contemplar amplamente todo aquele que demonstrar interesse

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jurídico na pretensão deduzida em juízo. É nesse contexto da reflexão científica que o presente de-

bate pretende esclarecer acerca da necessidade de implementa-ção da disciplina de Teoria Geral do Processo Coletivo como formade superação do entendimento individualista e autocrático no es-tudo do processo coletivo, como quer a Escola Instrumentalista.

Nesse ínterim, é oportuna a necessidade de sistematizaçãode toda a legislação pertinente ao Direito e ao Processo Coletivo,para que se obtenha a autonomia científica necessária ao reco-nhecimento de tal disciplina. A existência de legislações esparsascertamente compromete a identidade do tema em questão.

A regulamentação da procedimentalização do processocoletivo é considerada matéria urgente tendo em vista a finali-dade de esclarecer como se efetiva a possibilidade de participaçãoe de exercício do contraditório e da ampla defesa por todos aquelesjuridicamente interessados. É de suma importância, ainda, adelimitação do momento processual da estabilização da pretensãodeduzida e até qual fase do procedimento será possível a inter-venção de terceiros para construir discursivamente o méritocoletivo. Outra questão que merece destaque diz respeito aosreflexos da estabilização da demanda na constituição da coisajulgada e de seus efeitos legais.

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