mobilizar o medo para disciplinar as praticas

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185 Rev. Eletrônica Mestr. Educ. Ambient. E - ISSN 1517-1256, V. Especial, jan/jun 2015. Universidade Federal do Rio Grande - FURG ISSN 1517-1256 Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental Revista do PPGEA/FURG-RS Mobilizar o medo para disciplinar as práticas: uma análise dos modos de persuasão das campanhas ambientais 1 Paula Corrêa Henning 2 Virginia Tavares Vieira 3 Clarissa Corrêa Henning 4 Renata Lobato Schlee 5 Resumo: O presente trabalho investiga os modos de funcionamento dos discursos de Educação Ambiental presentes em campanhas publicitárias e institucionais veiculadas pela mídia. Compreendemos a mídia não só como local proeminente de difusão dos discursos, mas como potente máquina que dota de significados determinados fatos e, assim, constrói certa economia de verdades acerca da crise ambiental. Nesse sentido, desencadeia processos de subjetivação que visam controlar a população mobilizando o medo quanto à continuidade da vida no planeta. A estratégia biopolítica funciona no sentido de normalizar determinadas práticas individuais. Para alcançá-las, as campanhas estimulam o medo e a culpa pela perda do planeta. Tais estratégias e as possibilidades de ultrapassá-las são analisadas tendo como aportes teóricos autores como Michel Foucault, Felix Guattari, Gilles Deleuze e Zygmunt Bauman. Palavras-chaves: Educação Ambiental, Mídia, Crise Ambiental. Abstract: This paper investigates the modes of operation of the Environmental Education discourses present in institutional and advertising campaigns transmitted by the media. We understand the media not only as a prominent place for the dissemination of discourses, but as a powerful machine that gives meanings to certain facts, in this way building a set of truths about the environmental crisis. It triggers subjectification processes aiming to control the population by mobilizing our fear of the continuity of life on the planet. The biopolitical strategy works towards 1 Este trabalho conta com financiamento do Programa Observatório da Educação CAPES/INEP e CNPq/Ciências Humanas. 2 Doutora em Educação. Professora do Instituto de Educação, do PPG Educação Ambiental e do PPG Educação em Ciências da Universidade Federal do Rio Grande FURG. E-mail: [email protected] 3 Mestre e Doutoranda em Educação Ambiental. Universidade Federal do Rio Grande FURG. [email protected] 4 Doutoranda em Educação pela UNISINOS e Mestre em Comunicação e Cultura - UFRJ. E-mail: [email protected] 5 Mestre e Doutoranda em Educação Ambiental. Universidade Federal do Rio Grande FURG. E-mail: [email protected]

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  • 185 Rev. Eletrnica Mestr. Educ. Ambient. E - ISSN 1517-1256, V. Especial, jan/jun 2015.

    Universidade Federal do Rio Grande - FURG

    ISSN 1517-1256

    Programa de Ps-Graduao em Educao Ambiental

    Revista Eletrnica do Mestrado em Educao Ambiental

    Revista do PPGEA/FURG-RS

    Mobilizar o medo para disciplinar as prticas: uma anlise dos modos de

    persuaso das campanhas ambientais1

    Paula Corra Henning2

    Virginia Tavares Vieira3

    Clarissa Corra Henning4

    Renata Lobato Schlee5

    Resumo: O presente trabalho investiga os modos de funcionamento dos discursos de Educao

    Ambiental presentes em campanhas publicitrias e institucionais veiculadas pela mdia.

    Compreendemos a mdia no s como local proeminente de difuso dos discursos, mas como

    potente mquina que dota de significados determinados fatos e, assim, constri certa economia de

    verdades acerca da crise ambiental. Nesse sentido, desencadeia processos de subjetivao que

    visam controlar a populao mobilizando o medo quanto continuidade da vida no planeta. A

    estratgia biopoltica funciona no sentido de normalizar determinadas prticas individuais. Para

    alcan-las, as campanhas estimulam o medo e a culpa pela perda do planeta. Tais estratgias e as possibilidades de ultrapass-las so analisadas tendo como aportes tericos autores como Michel Foucault, Felix Guattari, Gilles Deleuze e Zygmunt Bauman.

    Palavras-chaves: Educao Ambiental, Mdia, Crise Ambiental.

    Abstract: This paper investigates the modes of operation of the Environmental Education

    discourses present in institutional and advertising campaigns transmitted by the media. We

    understand the media not only as a prominent place for the dissemination of discourses, but as a

    powerful machine that gives meanings to certain facts, in this way building a set of truths about the

    environmental crisis. It triggers subjectification processes aiming to control the population by

    mobilizing our fear of the continuity of life on the planet. The biopolitical strategy works towards

    1 Este trabalho conta com financiamento do Programa Observatrio da Educao CAPES/INEP e

    CNPq/Cincias Humanas. 2 Doutora em Educao. Professora do Instituto de Educao, do PPG Educao Ambiental e do PPG

    Educao em Cincias da Universidade Federal do Rio Grande FURG. E-mail: [email protected] 3 Mestre e Doutoranda em Educao Ambiental. Universidade Federal do Rio Grande FURG. [email protected] 4 Doutoranda em Educao pela UNISINOS e Mestre em Comunicao e Cultura - UFRJ. E-mail:

    [email protected] 5 Mestre e Doutoranda em Educao Ambiental. Universidade Federal do Rio Grande FURG. E-mail: [email protected]

  • 186 Rev. Eletrnica Mestr. Educ. Ambient. E - ISSN 1517-1256, V. Especial, jan/jun 2015.

    normalizing certain individual practices. To reach them, the campaigns encourage fear and guilt for

    the loss of the planet. Such strategies - and the possibilities of overcoming them - are analyzed

    taking as theoretical support authors such as Michel Foucault, Felix Guattari, Gilles Deleuze and

    Zygmunt Bauman.

    Keywords: Environmental Education, Media, Environmental Crisis.

    A crise ambiental tem se intensificado desde o final do sculo XX e cada vez mais

    questionamos as possibilidades futuras da vida no planeta. A veloz expanso do

    crescimento demogrfico, a explorao dos recursos naturais, os desastres ecolgicos e

    tambm nossos modos de vida, fez com que se instalasse em nosso planeta uma crise

    ambiental e, por decorrncia, tambm social. Assim, a problemtica ambiental tornou-se

    uma questo central nos meios de comunicao de massas, nas escolas, nas empresas e nas

    organizaes estatais e civis.

    Propomos discutir os modos pelos quais tais discusses vm dotando de sentidos a

    crise ambiental, atentando para o fato de que tais significaes produzem determinados

    efeitos polticos e processos de subjetivao entre os indivduos. Os discursos miditicos

    colocam em discusso a forma como nos relacionamos com a natureza, o entendimento de

    meio ambiente, o futuro da espcie humana e a devastao que ns, humanos, vimos

    realizando com o lugar onde vivemos: o planeta Terra. Assim, este estudo tem como

    inteno problematizar tais ditos, colocando-os em suspenso e nos provocando a pensar

    sobre os efeitos produzidos em nossas vidas dirias. Destacamos que no se trata de negar

    a materialidade da crise, mas de perceber os efeitos produzidos pelos significados

    atribudos a ela.

    Mdia como ferramenta de normalizao

    A cobertura jornalstica sobre a crise ambiental que o planeta sofre atualmente j

    conquistou espao permanente na agenda miditica contempornea. A temperatura da

    Terra aumenta, as geleiras descongelam-se, a seca e as inundaes causam estragos ao

    redor do mundo. Os diversos dossis cientficos apontam para a mesma direo: o planeta

    Terra corre perigo e nos alertam dizendo que se no mudarmos nossos hbitos, a espcie

    humana poder ser extinta. Ao recortar o mundo e oferecer uma perspectiva sobre os

    contecimentos, a mdia dita tendncias e torna-se a mais potente ferramenta de produo e

    fabricao de verdades6.

    6 Como nos ensina Foucault: A verdade deste mundo; ela produzida nele graas a mltiplas coeres e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua poltica geral de verdade: isto , os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as

    instncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionam uns e

  • 187 Rev. Eletrnica Mestr. Educ. Ambient. E - ISSN 1517-1256, V. Especial, jan/jun 2015.

    Fabricamos a verdade e a produzimos a partir de discursos que fazemos circular

    como verdadeiros (NIETZSCHE, 2002; FOUCAULT, 1990; DELEUZE e GUATTARI,

    2007a e 2007b). Essa seleo do discurso produzida a partir de procedimentos que

    colocam alguns ditos no verdadeiro e outros no. Sendo assim, entendemos a mdia

    como potente ferramenta que constitui e legitima verdades atravs de seus programas

    televisivos, propagandas, marketing, etc. Nossas opes e escolhas no so questes

    privadas, so, pelo contrrio, escolhas governadas por um conjunto de valores que nos

    cerca e direciona nosso olhar para o que convencionamos chamar de certo, bem e

    verdadeiro.

    A tarefa da educao ambiental foi configurada no sentido de conscientizar seus

    aprendizes sobre a crise do meio ambiente. A importncia da educao ambiental na

    formao tanto de estudantes como de professores intensifica-se na mesma medida em

    que a preocupao com o meio ambiente cresce. Alis, essa conscientizao superou as

    salas de aula e atualmente somos educados ambientalmente a partir do momento que

    ligamos o aparelho televisor, que nos conectamos a internet ou at mesmo quando vamos

    s compras. Tendo em vista nosso entendimento sobre o novo papel que hoje foi dado

    educao ambiental, concomitante com a potencializao das redes miditicas, passamos a

    analisar os discursos ambientalistas que permeiam algumas propagandas exibidas na

    televiso e na internet.

    Para alm da valorao do certo ou do errado, preciso seguir os modos como

    a verdade articulada na ordem do discurso e os meios de comunicao so ferramentas

    estratgicas na difuso das verdades deste tempo. O lugar de fala da imprensa e da

    publicidade , inclusive, cobiado por empresas privadas e organizaes que criam

    diferentes formas de pautar a agenda pblica e assim figurar entre os assuntos do

    momento7. Isso porque o exerccio do poder, como diz Foucault (1990), cria objetos de

    saber que produziro informaes a serem acumuladas e utilizadas. So essas relaes de

    fora que procuramos examinar aqui, questionando os efeitos de sentido que tais ditos

    difundem no campo social.

    Os ditos sobre a crise ambiental so fortemente explorados por todo aparato

    publicitrio e seus efeitos, sutil e cotidianamente, nos captura. Ao significar a problemtica

    ambiental, a mdia ensina e disciplina o pblico de modo a incitar a periculosidade, o

    outros; as tcnicas e os procedimentos que so valorizados para a obteno da verdade; o estatuto daqueles

    que tm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (FOUCAULT, 1990, p. 12) [grifo do autor]. 7 Alm disso, a prpria crise econmica vivenciada pelo jornalismo refora o peso dos anunciantes na

    definio do que entra ou no na pauta dos veculos.

  • 188 Rev. Eletrnica Mestr. Educ. Ambient. E - ISSN 1517-1256, V. Especial, jan/jun 2015.

    salvacionismo e a culpa. Entram em cena os efeitos da normalizao (FOUCAULT, 2008).

    As disciplinas decompem os indivduos para perceb-los e, logo aps, modific-los com

    vistas a determinados objetivos, a um modelo ideal. Adestramento progressivo e controle

    permanente que norteiam a nomeao do normal e do anormal, do apto e do inapto, do

    capaz e do incapaz, e assim por diante.

    A normalizao disciplinar consiste em primeiro colocar um modelo, um

    modelo timo que construdo em funo de certo resultado, e a

    operao de normalizao disciplinar consiste em procurar tomar as

    pessoas, os gestos, os atos, conforme esse modelo, sendo normal

    precisamente quem capaz de se conformar a essa norma e o anormal

    quem no capaz. Em outros termos, o que fundamental e primeiro na

    normalizao disciplinar no o normal e o anormal, a norma.

    (FOUCAULT, 2008, pp. 74-75).

    preciso atentar para o fato de que, com a instalao da sociedade do controle

    (DELEUZE,1992), as disciplinas vazaram dos muros que antes as confinavam. Agora

    essas tcnicas atravessam todo o campo social, justamente porque seus mecanismos

    tendem a se desinstitucionalizar. As disciplinas no cindem a sociedade, mas a

    homogeneza produzindo uma linguagem comum que viabiliza a comunicao entre as

    instituies e comunicao absoluta, visto que a linguagem funciona por meio de

    redundncias sem fim. assim que A norma articula as instituies disciplinares de

    produo, de saber, de riqueza, de finana, torna-as interdisciplinares (EWALD, 1993, p.

    83). Nesse contexto, destacamos o papel-chave assumido pelas mdias e pelos ditos

    eleitos por elas.

    Ao fazermos essas consideraes, buscamos com este texto provocar o pensamento

    sobre esses discursos, por entend-los atrelados as relaes de poder sobre o corpo e a vida

    da populao, no intuito de preservar o meio ambiente. Gostaramos tambm de suscitar os

    leitores acerca da produtividade desses discursos miditicos, que nos ditam quando e como

    devemos agir frente aos problemas scio-ambientais.

    Acreditamos que a constituio do sujeito contemporneo produzida tambm

    pelas grandes mquinas miditicas, ou como sugere Guattari (2006), pelas grandes

    mquinas sociais mass-miditica. Aceitando ento o convite de Guattari (2006) buscamos

    deslocar a questo do quem disse a verdade para uma questo um tanto mais complexa.

    Talvez a possibilidade para entender os discursos que circulam no campo da educao

    ambiental seja problematizar como e em que condies se diz o que convencionamos

    chamar de verdade.

  • 189 Rev. Eletrnica Mestr. Educ. Ambient. E - ISSN 1517-1256, V. Especial, jan/jun 2015.

    Quais so as condies de possibilidade para um novo modo de agir e pensar as

    questes ambientais? Na esteira de Guattari, sugerimos pensar a educao ambiental para

    alm da impregnao naturalista e romntica do contato com a natureza ou para alm da

    imagem de uma pequena minoria de amantes da natureza ou de especialistas diplomados

    (GUATTARI, 1990, p.36).

    Articulando no s o que dizer, mas o como dizer, a mdia fabrica modos de vida de

    acordo com o ordenamento e a constituio do mundo capturado nas pginas dos jornais,

    nos portais de notcias, nas campanhas publicitrias e institucionais. O protagonismo de tal

    articulao, como j foi dito, evidenciado na ampla circulao das proposies

    difundidas. neste sentido que demarcamos nosso olhar para os atravessamentos

    miditicos que constituem verdades no campo da Educao Ambiental.

    Frente a esses entendimentos, temos como objetivo analisar quais discursos vm

    constituindo o campo da Educao Ambiental a partir das mdias. Assim, esse estudo se d

    na interlocuo potente entre o campo de saber da Educao Ambiental e os estudos da

    mdia como artefato cultural que vm produzindo formas de existir e conviver no mundo

    contemporneo. Para isso, colocamos sob exame alguns discursos que se proliferam na

    Educao Ambiental. Analisando alguns extratos miditicos (como propagandas

    veiculadas no rdio, na televiso e na internet), pretendemos provocar o pensamento sobre

    tais ditos, entendendo-os atrelados as relaes de saber-poder, no intuito de preservar o

    meio ambiente.

    Vale referirmos que as propagandas miditicas so estratgias de marketing, ou

    seja, fazem parte de um conjunto de operaes controlveis que deseja a demanda de seu

    produto. As propagandas ensinam o que ser ecologicamente correto, o que ter aes

    sustentveis e assim por diante. Dessa maneira, olhamos para tal artefato [as propagandas]

    como potentes ferramentas que auxiliam na fabricao de verdades para o campo

    ecolgico.

    Operando com alguns dos discursos que circulam na atualidade sobre a Educao

    Ambiental, buscamos problematizar os ditos, examinando suas recorrncias e

    descontinuidades. Nessa pesquisa no procuramos categorias previamente definidas. A

    partir do campo terico colocamos luz e contorno pesquisa agrupando as recorrncias e

    as sries discursivas e tambm os acasos que rompem com as sries discursivas.

    Atentamos para a importncia de um estudo que busca olhar para as mdias,

    artefatos de ampla penetrao nas escolas e na vida de crianas, jovens e adultos. Tais

    discursos vo constituindo verdades e produzindo sujeitos contemporneos a partir de seus

  • 190 Rev. Eletrnica Mestr. Educ. Ambient. E - ISSN 1517-1256, V. Especial, jan/jun 2015.

    ditos. A crise ambiental atravessa cada um de ns. Assim, parece-nos necessrio colocar

    luz nos ditos veiculados sobre tal discusso no sentido de examinar os desdobramentos

    ticos e polticos que vem constituindo nossos modos de vida no sculo XXI.

    Feitos estes primeiros delineamentos tericos e metodolgicos, apresentamos a

    seguir algumas discusses possveis a partir de um panorama geral da coleta de material

    realizado nesta investigao. O foco de anlise a preocupao com a devastao

    ambiental, permeada por discursos de medo e periculosidade frente a crise ambiental que

    se instala no cenrio contemporneo.

    Problematizando os efeitos de sentido veiculados sobre a crise ambiental

    A publicidade convida-nos a entrar no jogo do ecologicamente correto, do como

    e o que fazer para mudarmos a realidade ambiental: Feche a torneira ao escovar os

    dentes; Todos so responsveis pelo Planeta; Cuide do Planeta voc tambm so

    alguns dos comandos que aparecem todos os dias no nosso televisor. Deleuze e Guattari

    (2007a) ensinam que a linguagem um sistema de comando, no um meio de informao.

    Nesse sentido, a mdia seria um dos locais por excelncia de difuso de Palavras de

    Ordem, preconizando verdades e constituindo sujeitos. Isso se evidencia em anncios

    miditicos que nos ensinam cotidianamente o que a natureza, para que ela serve e como

    devemos preserv-la:

    A natureza tem lugares perfeitos para namorar e, assim como o amor,

    esses lugares devem ser protegidos com todo carinho para que durem

    para sempre. Compre seu presente do dia dos namorados no Shopping

    Campo Grande [...] Dia dos namorados no Shopping Campo Grande

    apaixonados por natureza! (Campanha publicitria do Shopping Campo

    Grande, junho: 2008).

    Os discursos presentes em diferentes campanhas de cunho ambiental so

    emblemticos para pensarmos no quanto a mdia nos interpela e nos captura, modificando

    nossos pensamentos e prticas cotidianas a respeito de nossa relao com o planeta.

    Destacamos duas questes presentes em muitos anncios miditicos: a chamada

    individualidade e coletividade para realizao das aes. Ou seja, esses discursos

    educam para o controle minucioso da ao individual pela auto-conscincia e, assim,

    tendem a regular o cotidiano, sob a ambivalente poltica da preveno e do medo. Vejamos

    um excerto emblemtico:

    Uma hora vai voltar para voc.

    Conserve seu planeta. Ainda d tempo. [grifos nossos] (Campanha

    institucional WWF- Uma hora vai voltar para voc, 2007)

  • 191 Rev. Eletrnica Mestr. Educ. Ambient. E - ISSN 1517-1256, V. Especial, jan/jun 2015.

    O Nosso Planeta est ficando: cada vez mais poludo; cada vez mais

    quente. Mas com atitudes muito simples voc pode ajudar a preservar o

    Meio Ambiente. Por exemplo: economizando energia; evitando o

    desperdcio de gua; separando o lixo e o leo de cozinha usado para

    reciclagem; reduzindo o uso de veculos d carona para seus amigos! No atirando fogo em matas e nos quintais ou fazendo suas

    compras no Modelo. Sim! Por que o Modelo apresenta a primeira sacola

    biodegradvel de Mato-Grosso. Ela se decompe com facilidade na

    natureza. Uma questo de atitude! Juntos podemos fazer mais pelo nosso

    planeta. (Campanha institucional Super-mercados Modelo, 2009) [grifos

    nossos]

    O endereamento de tais ditos no visa apenas um sujeito, mas o coletivo que deve,

    junto, se mobilizar para que aes individuais repercutam na transformao do meio

    ambiente. O campo de efetivao desse dispositivo intervm sobre a coletividade valendo-

    se do esprito da poca, o compromisso com a suposta liberdade de vontade e de estilo

    de cada um. Por fim, esses enunciados acabam regulando e direcionando nossas aes

    valendo-se do futuro do planeta.

    Para melhorar o mundo ningum pode fazer tudo. Mas cada um tem que

    fazer a sua parte. Comprando Yp voc ajuda a plantar rvores, a

    desenvolver produtos que contribuem para a preservao da vida aqutica

    e a fazer um futuro melhor para nossos filhos. (Campanha publicitria

    Detergente Yp. Veiculada no ano de 2009) [grifos nossos].

    [...] como as decises nos ocupavam muito, demoramos a perceber que

    so elas que podem decidir o nosso futuro. A decidimos fazer algo para

    cuidar de tudo isso. Que foi, que est sendo, ou ainda vai ser decidido

    daqui pra frente. A gente decidiu pelo trs. E queremos convidar voc a

    tomar essa deciso com a gente. Significa ter, pelo menos, trs atitudes

    por dia, pensando na sustentabilidade do planeta. Pode ser apagar a

    luz, fechar a torneira e ensinar algum. Trs. Pode ser plantar uma

    rvore, catar uma latinha no cho e agir com tica. Trs. Pode ser

    tomar um banho mais curto, respeitar as diferenas e usar a escada.

    Trs. Apenas Trs. E em todo lugar que voc vir esse nmero: 3, vai

    saber que ali existe uma forma de voc tomar uma deciso para cuidar do

    planeta, das pessoas e do pas em que a gente vive: Trs (Campanha institucional Banco do Brasil) [grifos nossos].

    As propagandas tornam-se eficientes em sua captura quando atingem o maior

    nmero de indivduos com a mesma intensidade e qualidade. Os discursos miditicos

    conseguem ser eficientes nesse disciplinamento no s por ter a capacidade de nos

    envolver emocionalmente, mas por invocar o individual e o coletivo: O que voc no

    pode mesmo esquecer do planeta. Cuidar bem do meio ambiente todo mundo pode.

    [campanha institucional Ibama, 20 anos cuidando do Brasil (2009)]. A eficincia no

    disciplinamento essencial para que se alcance o objetivo de nos tornarmos conscientes

    ecologicamente, ou seja, dceis e disciplinados para constituirmos qualquer verdade. Em

  • 192 Rev. Eletrnica Mestr. Educ. Ambient. E - ISSN 1517-1256, V. Especial, jan/jun 2015.

    suma, percebe-se que toda disciplina encerra um projeto de controle, que os dispositivos

    disciplinares operam controlando e que as circunscries de campo so efetivadas pelos

    discursos, esses funcionando como dobradura legitimao/exerccio das disciplinas, so

    puro controle (GOMES, 2003, p. 61).

    A culpabilidade, assim, fortalece a publicidade, funcionando como uma potente

    arma. por meio de tal responsabilizao que se engendram processos de subjetivao

    especialmente relevantes na problemtica ambiental. Primeiramente, a natureza passa a ser

    exaltada e concomitante a isso as destruies causadas pelo homem so evidenciadas; o ser

    humano torna-se vilo e, paradoxalmente, tambm um possvel heri: O homem o

    principal responssvel pelas graves mudanas climticas. Conscincia Ambiental.

    Defenda essa causa com a gente (Campanha institucional Conscincia Ambiental

    Mackezie; 2008) [grifos nossos]. Aqui o homem culpado pela crise ambiental e, ao

    mesmo tempo, o nico capaz de reparar os danos causados por ele mesmo e com isso

    reverter a situao do planeta Terra. Esse discurso acaba ento por nos convencer que

    tomando certas medidas e mudando nossos hbitos o mundo est salvo.

    Enunciaes como essas, que vimos colocando em evidncia, alertam para as

    possveis catstrofes que o homem poder ser acometido no futuro. Diante disso,

    ressaltamos a fora com que a mdia nos interpela e nos alerta para o futuro da vida na

    Terra. Artefatos culturais como a mdia so ferramentas potentes que ensinam e legitimam

    valores ao difundir verdades e saberes acerca da crise ambiental vivida por ns na

    atualidade. Esses discursos gerados pela mdia, em escala mundial, colocam tambm em

    circulao discursos de medo de perda do planeta. Corroborando dessa viso, Bauman

    comenta que

    O que mais amedronta a ubiqidade dos medos; eles podem vazar de

    qualquer canto ou fresta de nossos lares e de nosso planeta. Das ruas ou

    das telas luminosas dos televisores. [...] Do que chamamos de natureza (pronta, como dificilmente antes em nossa memria, a devastar nossos

    lares e empregos e ameaando destruir nossos corpos com a proliferao

    de terremotos, inundaes, furaces, deslizamentos, secas e ondas de

    calor) (BAUMAN, 2008, p. 11) [grifo do autor].

    Nos dias atuais, o medo, cada vez mais, vem tomando conta de nossas vidas. Esse

    sentimento, conhecido por todos os seres vivos ao longo da histria da humanidade, parece

    que na modernidade tornou-se mais evidente. O medo de perda do planeta e do futuro da

    existncia humana na Terra notavelmente atinge a todos ns em escala planetria. Essa

    constatao reporta-nos ao que Bauman chamou de medo derivado.

  • 193 Rev. Eletrnica Mestr. Educ. Ambient. E - ISSN 1517-1256, V. Especial, jan/jun 2015.

    O medo derivado uma estrutura mental estvel que pode ser mais bem descrita como sentimento de ser suscetvel ao perigo; uma sensao de

    insegurana (o mundo est cheio de perigos que podem se abater sobre

    ns a qualquer momento com algum ou nenhum aviso) e vulnerabilidade

    (no caso de o perigo se concretizar, haver pouca ou nenhuma chance de

    fugir ou se defender com sucesso; o pressuposto da vulnerabilidade aos

    perigos depende mais da falta de confiana nas defesas disponveis do

    que do volume ou da natureza das ameaas reais) (BAUMAN, 2008, p. 9)

    [grifo do autor].

    Em seu livro Medo Lquido, Bauman nos apresenta provocaes acerca da

    insegurana, incerteza e falta de proteo que compem a sociedade lquido-moderna.

    Devido a estes sentimentos, vividos em diferentes situaes por cada um de ns, o medo

    parece invadir nossas casas e trabalhos.

    Nesta obra, o socilogo nos coloca a pensar acerca do estgio de globalizao

    desenfreado que o mundo ocidental tem experimentado de forma to indita. Mesmo

    trazendo acontecimentos que tocam em questes ambientais, como os episdios de

    furaces, devastaes ambientais de forma mais ampla, a preocupao central de Bauman

    no se refere diretamente ao campo de saber da educao ambiental. Ainda assim,

    provocamo-nos a problematizar esse sentimento to presente em nossas vidas e que em

    diferentes mdias vimos, recorrentemente, um apelo para que ns, sujeitos lquido-

    modernos, possamos/devamos ser tocados por ele. Este sentimento o medo. Medo da

    perda do planeta, de catstrofes naturais devido s aes humanas, etc. O fato de tais

    medos serem absolutamente imaginrios pode ser confirmado pela autoridade dominante

    da mdia, que defende visvel e tangivelmente uma realidade que no se pode ver nem

    tocar sem a ajuda dela (BAUMAN, 2008, p. 29).

    Certamente a crise ambiental algo instalado em nossas vidas. No entanto, o apelo

    miditico sobre o tema incita a sensao de medo, com seus enunciados apocalpticos do

    fim de mundo. Propomos ao leitor que faa um exerccio de pensamento e procure lembrar,

    a partir de sua prpria experincia como espectador, das campanhas publicitrias ou

    institucionais que abordam o meio ambiente: quantas nos ajudam a pensar ecologicamente

    sem fazer uso/apelo ao medo, insegurana e incerteza da vida humana?

    No temos a iluso de acreditar que aes humanas, muitas vezes executadas para

    fazer valer a mxima baconiana o homem ser o senhor e o possuidor da natureza

    no nos empurrem para a intensificao da crise ambiental do sculo XXI. Porm, parece-

    nos que pensar no futuro do planeta no deve se limitar a uma preocupao individualista.

    Talvez Guattari (1990; 2006) nos ajude a olhar esta crise a partir da criao de uma

    ecosofia, sem necessariamente, apelarmos para uma poltica do medo e da periculosidade.

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    Provocando-nos a olhar a uniformalizao miditica, o autor nos coloca a pensar em uma

    ecosofia mental, que cutuque nosso pensamento, provoque-nos a olhar a educao

    ambiental pela esfera de um paradigma tico-esttico. Neste, os procedimentos so muito

    menos marcados pelo medo, e muito mais aproximados das questes sociais, coletivas e

    polticas estticas. Talvez essa seja a possibilidade de transitar para uma era ps-mdia,

    pensando em sua ressingularizao, como sugere o autor.

    A ecosofia provoca-nos a novas prticas sociais e tambm analticas, engendrando

    outras criaes e formao de subjetividades-ecolgicas. Nesse sentido, estaramos longe

    de agir por medo da perda de nosso planeta. As aes ecosficas so mobilizadas por

    agenciamentos maqunicos que provocam pensar em novas mentalidades articulando

    ecologia, poltica e filosofia. Tais prticas provocam a criao, a experimentao, sentindo-

    se afectado8 pelas aes ambientais que geram a heterogeneidade, muito diferente das

    uniformalizaes telemticas anunciadas pela mdia atual.

    No seria exagero enfatizar que a tomada de conscincia ecolgica futura

    no dever se contentar com a preocupao com os fatores ambientais,

    mas dever tambm ter como objeto devastaes ecolgicas no campo

    social e no domnio mental. Sem transformao das mentalidades e dos

    hbitos coletivos haver apenas medidas ilusrias relativas ao meio

    material (GUATTARI, 2006, p. 173).

    Arriscar outras escutas para inventar novos possveis

    Interpelar. Suscitar. Capturar. Conduzir. Essas parecem ser estratgias da mdia na

    busca de convocar-nos a tomar aes para preservao do Planeta Terra. No queremos

    com isso dizer que no devemos agir pensando no futuro. Talvez pensar nas aes por vir

    se torne fundamental para nossa vida na Terra. No entanto, parece que precisamos, pelo

    menos, provocar-nos a pensar em questes pouco problematizadas por ns ao olharmos

    discursos de Educao Ambiental veiculados pela mdia: qual fora e produtividade tm os

    discursos miditicos que nos conduzem a aes diante do cenrio contemporneo? Os

    modos ecolgicos de vida propagados pela mdia so assumidos por ns por nos

    entendermos pertencentes ao meio ambiente, ou muitas vezes so assumidos pelo perigo

    propagado de que perderemos o planeta caso no modifiquemos nossas aes? Talvez

    Foucault (1990; 2002; 2005; 2008) nos ajude a entender esse mecanismo de poder, to

    8 Afeco tornou-se um conceito especfico no pensamento dos filsofos franceses Gilles Deleuze e Flix Guattari. Aqui, restringimo-nos a utilizar o termo afeco como a tenso que se d no jogo entre tocar e ser

    tocado, atingir e ser atingido, afetar e ser afetado, na relao com todos os elementos que compem o mundo,

    sejam eles, pessoas, coisas, idias, sentimentos, etc.

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    evidente nas mdias, como uma ferramenta que fabrica verdades, produz sentidos e

    constitui modos de existir e conviver.

    Pensamos ser necessrio olharmos com desconfiana tais discursos to propagados

    e que auxiliaram, decisivamente, para colocar a educao ambiental na pauta das

    discusses atuais. A ns, professores e pesquisadores interessados por este campo de saber,

    caberia travar alianas potentes para que provoquemos os sujeitos desse mundo a pensar

    em micropolticas possveis para continuarmos a viver neste planeta. Uma escuta da vida,

    uma escuta do mundo que possibilite espaos de resistncia e criao diante da crise

    ambiental que se instala. Talvez seja necessrio pensarmos em pequenas aes dirias que

    nos provoquem a olhar para o mundo de uma forma no aterrorizante, como muitos

    discursos se apresentam para ns, mas como possibilidades de compormos um pensamento

    minoritrio para educao ambiental. No falamos de um projeto de todos em prol do

    futuro do planeta, mas pequenas aes que possibilitem a cada um uma tica poltica para

    pensar o futuro do planeta.

    Investir em projetos e espaos para pensar a educao ambiental torna-se

    indispensvel diante das relaes que vimos estabelecendo com o planeta. A escola, a

    mdia, a famlia e outros tantos lugares podem provocar novas discusses para este campo,

    entendendo-o como um importante instrumento de ao poltica na sociedade atual. Talvez

    pudssemos provocar os sujeitos com os quais convivemos a pensar possibilidades de

    resistncia e criao ao olhar a educao ambiental para alm do discurso do medo e da

    periculosidade. Talvez pudssemos, aceitando o convite de Flix Guattari (1990),

    pensarmos na criao de uma ecosofia, produzindo espaos ticos e polticos para este

    campo que nos debruamos a olhar e investigar.

    Pensar ecosoficamente as potentes ferramentas miditicas parece-nos ser uma

    forma de provocar novas discusses na educao ambiental, entendendo que nosso campo

    de saber pode ser um importante instrumento de ao poltica na sociedade atual. Quem

    sabe possamos provocar o pensamento e constituir nossas pesquisas, marcadas por uma

    educao ambiental minoritria, como uma singela ferramenta para constituio de uma

    mquina de guerra (DELEUZE e GUATTARI, 2007)?

    Aceitar a provocao de Guattari (2006) operar a ferramenta de modo a favorecer

    processos de ressingularizao e exercitar a oportunidade de abrir espao para novos

    possveis. Talvez olhando com desconfiana os discursos midticos possamos criar uma

    educao ambiental para alm do discurso do medo e da periculosidade.

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