mobilidade urbana leandro e jaciara

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Profuturo: Programa de Estudos do Futuro Editor científico: James Terence Coulter Wright Avaliação: Doublé Blind Review pelo SEER/OJS Revisão: Gramatical, normativa e de formatação Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 130 AS CARROÇAS DE CINCO SOUS PARA A COMODIDADE DOS BURGUESES: PARIS, SÃO PAULO E O DESAFIO HISTÓRICO DA MOBILIDADE URBANA Leandro Fraga Guimarães Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade Universidade de São Paulo [email protected] Jaciara Martins Fontes Cruz UBS Escola de Negócios [email protected] RESUMO Paris e São Paulo são cidades com histórias de ocupação marcadamente distintas. A partir de dados secundários, numa revisão bibliográfica que buscou o confronto de visões de autores das áreas de planejamento urbano e mobilidade, além de historiadores e estudiosos da formação e desenvolvimento de sistemas de mobilidade urbana, foi condensado o histórico em que as dificuldades da mobilidade evoluíram em cada um desses grandes centros urbanos, num estudo de caso abrangendo de seu aparecimento até o século XX, período de profundas transformações nas duas cidades, embora tenham ocorrido em sentidos substantivamente diversos. Nessa perspectiva, foram reunidos argumentos para também caracterizar, de forma geral, os desafios que a mobilidade urbana traz, literalmente há milhares de anos, para a convivência nos espaços restritos das grandes cidades. Muito ao contrário de ser um problema recente, é desafio que permanece e se modifica, embora alguns de seus elementos principais sejam incrivelmente perseverantes ao longo da história. Para concluir, são comentadas algumas das alternativas contemporâneas em uso, nas duas cidades, para melhor

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Profuturo: Programa de Estudos do Futuro

Editor científico: James Terence Coulter Wright

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Revisão: Gramatical, normativa e de formatação

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AS CARROÇAS DE CINCO SOUS PARA A COMODIDADE DOS

BURGUESES: PARIS, SÃO PAULO E O DESAFIO HISTÓRICO DA

MOBILIDADE URBANA

Leandro Fraga Guimarães

Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade

Universidade de São Paulo

[email protected]

Jaciara Martins Fontes Cruz

UBS Escola de Negócios

[email protected]

RESUMO

Paris e São Paulo são cidades com histórias de ocupação

marcadamente distintas. A partir de dados secundários, numa revisão

bibliográfica que buscou o confronto de visões de autores das áreas

de planejamento urbano e mobilidade, além de historiadores e

estudiosos da formação e desenvolvimento de sistemas de mobilidade

urbana, foi condensado o histórico em que as dificuldades da

mobilidade evoluíram em cada um desses grandes centros urbanos,

num estudo de caso abrangendo de seu aparecimento até o século

XX, período de profundas transformações nas duas cidades, embora

tenham ocorrido em sentidos substantivamente diversos. Nessa

perspectiva, foram reunidos argumentos para também caracterizar,

de forma geral, os desafios que a mobilidade urbana traz,

literalmente há milhares de anos, para a convivência nos espaços

restritos das grandes cidades. Muito ao contrário de ser um problema

recente, é desafio que permanece e se modifica, embora alguns de

seus elementos principais sejam incrivelmente perseverantes ao

longo da história. Para concluir, são comentadas algumas das

alternativas contemporâneas em uso, nas duas cidades, para melhor

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encaminhar o problema da mobilidade urbana, e também algumas

alternativas mais bem sucedidas do que se conhece como soluções

para este problema tão presente em todas as grandes cidades do

mundo.

Palavras-chave: Mobilidade urbana. Metrópoles. Crescimento urbano.

Transporte público. Transporte coletivo. Transporte individual. Paris. São

Paulo.

ABSTRACT

Paris and São Paulo cities are with markedly different histories of

occupation. Starting from secondary data, in a literature review that

sought the confrontation on visions of authors from the fields of

urban planning and mobility to historians and scholars of the

formation and development of urban mobility systems, this article has

condensed the history of how the difficulties of mobility evolved in

each of these major urban centers, in a case study comprehending

specially the twentieth century, a period of profound transformations

in the two cities, although having occurred in so substantially diverse

directions. In this perspective, were also gathered arguments to

characterize, in general, the challenges that urban mobility brings

literally from thousands of years, for the living in the restricted

spaces of the large cities. Quite unlike a recent problem, this is a

challenge that remains and changes, although some of its main

elements are incredibly persevering throughout history. To conclude,

some of the contemporary alternatives used in the two cities are

discussed, in order to better direct the issue of urban mobility, and

also some of the most successful alternatives that are recognized as

solutions to these problems so present in all major cities of the world.

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Key-words: Urban mobility. Metropolis. Urban growth. Public transport.

Collective transport. Private transport. Paris. São Paulo.

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1 INTRODUÇÃO

É comum que muitos dos habitantes de grandes cidades hoje se

sintam oprimidos pela agitação do dia a dia e sonhem com a mudança para

o interior, como uma forma de libertação. Na Idade Média, o ditado alemão

Stadtluft macht frei (algo como “o ar da cidade torna você livre”)

expressava o que a mudança contrária representava para o indivíduo que,

naquele tempo, via-se livre das obrigações feudais para um senhor de terra,

e sonhava com uma vida mais rica e com um futuro menos limitado. E não

é que as cidades do período fossem exatamente pequenas e

aconchegantes: Roma, na Itália; Bagdá, no Iraque; e Beijing (Pequim), na

China, são alguns exemplos daquelas que possuíram mais de um milhão de

habitantes em algum momento antes do Renascimento, dizem historiadores

especialistas – Morris (2010), Modelski (2000, 2003), Chandler (1987),

Chandler & Fox (1974).

Esses grandes aglomerados urbanos traziam e trazem enormes

desafios para a convivência cotidiana, sob os mais diversos aspectos. E a

mobilidade é um dos mais antigos e persistentes deles: para cumprir

percursos mais longos – ou cumprir quaisquer percursos com mais

comodidade e rapidez –, os cidadãos sempre recorreram a meios auxiliares

que, multiplicados, transformavam-se num problema novo. Liteiras,

cavalos, carroças, barcos, bicicletas, carros, motocicletas, bondes, trens,

teleféricos, ônibus, metrôs, helicópteros, e variações desses todos, e outros

mais; individuais ou coletivos, muitos são os meios que foram e são

utilizados pelas pessoas em sua busca pela melhor condição na mobilidade

cotidiana. Todos esses meios de transporte continuam em uso, com maior

ou menor intensidade, com novo formato ou no modelo original. Somados,

superlotam os espaços urbanos, poluem de muitas formas, provocam

contratempos, tomam áreas, promovem tumultos e ainda se envolvem em

acidentes.

Assim, nascidas para acomodar pessoas, as cidades se veem desde

sempre em grande dificuldade para receber essas tantas formas de

transporte que se aglomeram em seu interior. Haverá solução?

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Neste trabalho serão descritos alguns aspectos do crescimento urbano de

Paris e São Paulo, contrastados por suas enormes distinções, embora, nos

dois casos, a problemática da mobilidade urbana estivesse sempre muito

presente – mas recebendo soluções marcadamente diferentes em cada uma

delas, na forma e no tempo, ao longo dos anos. Assim, serão examinadas

algumas das alternativas contemporâneas em uso nas duas cidades para

melhor encaminhar o problema da mobilidade urbana. Discutir-se-ão

também algumas alternativas do que se antevê, hoje, como possíveis

contribuições para este problema comum a todas as grandes cidades do

mundo.

É correto concluir que o esforço aplicado neste artigo não traz

soluções definitivas, nem seus autores pretendem isso. A expectativa é a de

trazer uma perspectiva histórica, lembrar que nem tudo o que se vê e vive

hoje é exatamente novo ou inédito, e contribuir para a discussão de um

assunto tão necessário quanto urgente; urgência que vem à lembrança,

todo dia, na aventura recorrente de enfrentar o deslocamento rotineiro

numa grande metrópole.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 MOBILIDADE As cidades de hoje são espaços com velocidades múltiplas (Ascher,

1995). Cada indivíduo se move com característica própria, dependendo das

alternativas que escolhe diariamente. Esta superposição constitui um

desafio para as nossas formas habituais de abordar o espaço (Lévy, 2000),

densificando o papel da mobilidade no cenário urbano. Algumas

transformações do mundo contemporâneo reforçam essa necessidade

(Lévy, 2000): os espaços aos quais as pessoas se sentem pertencer não são

mais somente territórios, mas também redes; o número de lugares

pertinentes para um dado indivíduo aumentou; a distinção entre mobilidade

cotidiana (rotina) e mobilidade rara (profissional ou lazer) torna-se cada vez

mais difícil; ao lado de destinos mais impositivos, uma grande quantidade

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de outros rumos, novos ou velhos, mais ou menos relevantes, se

apresentam.

A mobilidade, ainda segundo Lévy (2000), é “a relação social ligada à

mudança de lugar”. O pesquisador do Instituto de Estudos Políticos de Paris

utiliza essa definição de forma a expandir a mobilidade para além do mero

conceito de deslocamento físico, e também para eliminar dimensões

metafóricas do termo como “mobilidade social”, ou associando-o a

telecomunicações. Para esse autor, a mobilidade forma um sistema de

movimentos potenciais, que podemos observar sob a ótica de três

virtualidades: a mobilidade como possibilidade, como competência, ou como

capital.

A mobilidade como possibilidade pode ser analisada como

acessibilidade, isto é, a oferta de mobilidade por meio da oferta de

transporte. Observada como competência, busca-se a mobilidade efetiva, a

relação entre a que é oferecida e a que é realmente realizada. A

competência de mobilidade relaciona o deslocamento à necessidade de

posse de recursos financeiros para tal, e à constituição de uma rede de

lugares frequentados (casa, emprego e tantos outros), eles próprios

situados numa boa posição no espaço das acessibilidades. A fluidez nesses

espaços é essencial, para que o fomento de regiões autossuficientes não

seja uma forma de isolamento ou exclusão de uma população de baixa

renda. Finalmente, “o conjunto constituído pela possibilidade, pela

competência e pelas arbitragens que a segunda permite sobre a primeira

pode ser lido como um capital social, um bem que permite ao indivíduo

desdobrar melhor sua estratégia no interior da sociedade”. (Lévy, 2000,

pág.76)

Costa (2003) ressalta a relação entre a mobilidade, o

desenvolvimento econômico e a sustentabilidade socioambiental do

contexto urbano. Para esta autora, alguns aspectos são fundamentais em

um sistema de mobilidade sustentável: o equilíbrio entre diversos meios de

transporte motorizados e não motorizados; o uso eficiente dos recursos

energéticos pelo meio de transporte; o uso de tecnologia em toda a cadeia;

o planejamento sobre a demanda de transporte, como atuar sobre as

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distâncias físicas com adensamento de regiões, apresentar privilégios para

maior ocupação de automóveis e incentivar a substituição do deslocamento

por outras formas de comunicação; o planejamento sobre a oferta de

transporte, utilizando-a como forma de gerir o equilíbrio entre transporte

individual ou público, por exemplo, na avaliação de obras de rodovias; a

integração do sistema de transporte com o plano de ocupação e uso do solo

(configuração urbana).

3 ABORDAGEM METODOLÓGICA

Pela natureza deste estudo, foi necessário adotar um conjunto de

abordagens capaz de não apenas fornecer os elementos necessários para a

discussão tanto a respeito do crescimento urbano, quanto de seu impacto

crescente, como também analisar aquelas práticas ligadas à mobilidade

urbana, ainda que estas não estejam, algumas vezes, estabelecidas ou

descritas de maneira formal.

Assim, foi preciso pesquisar inicialmente na literatura disponível

sobre a evolução da mobilidade aqueles elementos propostos por alguns

dos autores mais referenciados sobre o tema, o que será descrito a seguir.

Na sequência do trabalho, foi construído um conjunto de elementos que, de

acordo com os autores identificados, seriam necessários para a adequação

do desenvolvimento da mobilidade nas duas cidades selecionadas.

Para confrontar os itens desse conjunto de requisitos com as

orientações práticas, a metodologia escolhida foi a do estudo de caso.

Segundo Yin (1999), o estudo de caso é preferido quando o tipo de questão

de pesquisa é da forma “como” e “por quê?”; também quando o controle

que o investigador tem sobre os eventos é muito reduzido; ou quando o

foco temporal está em fenômenos contemporâneos dentro do contexto de

vida real. Todas essas premissas estão presentes neste objeto de estudo.

Além dos instrumentos tradicionais para evidenciar a realidade que se

deseja estudar, a metodologia prevê a observação direta, a observação

participante e também o uso de artefatos físicos, mas esses instrumentos

não foram objeto deste trabalho.

Os três princípios recomendados por Yin (1999) para coleta de dados são:

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a) Usar múltiplas fontes de evidência

O uso de múltiplas fontes de evidência permite o desenvolvimento da

investigação em várias frentes, ou seja, investigar vários aspectos em

relação ao mesmo fenômeno. As conclusões e descobertas ficam mais

convincentes e apuradas, já que advêm de um conjunto de corroborações.

Além disso, os potenciais problemas de validade de constructo são

atendidos, pois os achados, nessas condições, são validados por várias

fontes de evidência. Essa é a justificativa para que seja feita a pesquisa

envolvendo não uma única empresa, o que poderia facilitar o trabalho de

coleta, mas tornaria o estudo menos consistente.

b) Construir, ao longo do estudo, uma base de dados

Yin (1999) ressalta que, embora num estudo de caso a separação

entre a base de dados e o relato não seja comumente encontrada, é

recomendado que essa separação aconteça, para garantir a confiabilidade

do estudo, já que os dados encontrados ao longo da pesquisa são

armazenados, possibilitando o acesso de outros investigadores no presente

e no futuro. Os registros podem se dar por meio de notas, documentos,

tabulações e narrativas (interpretações e descrições dos eventos

observados e registrados). Esse cuidado será tomado ao longo de todo o

trabalho.

c) Formar uma cadeia de evidências

Como lembra Yin (1999), construir uma cadeia de evidências consiste

em configurar o estudo de caso de tal modo que se consiga levar o leitor a

perceber a apresentação das evidências que legitimam este estudo, desde

as questões de pesquisa até as conclusões finais. Assim como em um

processo judicial, o relato do estudo de caso também deve assegurar que

cada evidência apresentada foi coletada na “cena do crime”. Também este

ponto será objeto de observação ao longo da execução desta pesquisa.

Além disso, Yin (1999) enfatiza que se deve deixar claro que outras

evidências não foram ignoradas e que aquelas apresentadas não estão

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maculadas por vieses; ou explicitar a eventual ocorrência desses vieses, o

que se procurou observar com rigor ao longo do trabalho.

Assim foram pesquisados dados de fontes secundárias que comporão

este estudo, na busca pelas mais confiáveis em cada caso.

4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS PESQUISADOS

4.1 UM POUCO DA HISTÓRIA DE PARIS, ATÉ O SÉCULO XX

Lutécia era o nome do vilarejo que formaram os primeiros habitantes

das margens do rio Sena há cerca de 6.000 anos. Eles ocupavam, no

entanto, apenas uma fração do território atual da cidade de Paris: a

pequena vila em que viviam se limitava à Île de la Cité e à margem

esquerda do rio, próximo ao Jardim de Luxemburgo, como informa o site

oficial da França (France.fr, 2013). Houve, por óbvio, mudanças muito

relevantes ao longo desses tantos séculos.

Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos

(INSEE, sigla em francês), a população de Paris cresceu de forma constante

ao longo dos séculos, a partir da Renascença, como mostra o gráfico 1.

Gráfico 1: Evolução da população de Paris (em mil habitantes)

Fonte: Elaboração dos autores, a partir de dados do INSEE (2013)

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A cidade passou por pelo menos duas grandes intervenções urbanas

ao longo de sua história, como informa Hussey (2011): a primeira, ao final

dos anos 1590, quando Henrique IV e seus conselheiros se ocuparam de

organizar sua reconstrução, arrasada que fora por décadas de guerras civil

e religiosa; a segunda, em meados do século XIX, quando Napoleão III

nomeia prefeito de Paris Georges-Eugène Haussmann, no ano de 1853, e

este dá início a quase 20 anos de obras profundas, na direção dos planos do

imperador sobre urbanismo, habitação e circulação de pessoas e

mercadorias.

Mas muito antes, ainda no final do século XVI, Henrique IV lidara com

problemas muito graves em Paris. Naquela ocasião, a mobilidade era

dramaticamente prejudicada pelas condições cotidianas de vida:

Mesmo as mais prósperas ruas na parte central da cidade não eram mais

do que trilhas enlameadas e apenas os parisienses mais ricos conseguiam

atravessar a cidade, a cavalo ou em uma das poucas carruagens em

funcionamento, sem serem cobertos por esterco e excrementos. (Hussey,

2011, pág. 167)

Como melhorar a mobilidade? Ainda de acordo com Hussey (2011),

Nicolas Sauvage, um carpinteiro empreendedor havia criado, por volta de

1654, a carrosse, uma carruagem com vários assentos, que podia ser

alugada por várias pessoas ao mesmo tempo. Por volta de 1660, Paris

contava com mais de 20 destas, que podiam ser vistas na frente da Igreja

de Saint-Fiacre. O serviço, no entanto, era ainda desordenado, e as viagens

eram decididas a partir das necessidades combinadas de várias pessoas,

sem muitos critérios de valor e itinerário estabelecidos previamente.

Físico, matemático, filósofo e teólogo, Blaise Pascal é mundialmente

respeitado por sua obra extensa e relevante, além de lembrado por frases

marcantes, como a conhecida "nós conhecemos a verdade não só pela

razão, mas também pelo coração", que faz parte de seu último livro,

Pensées (Pascal, 2006). Quem lhe presta os respeitos hoje na Igreja de

Saint-Étienne-du-Mont, em Paris, onde está sepultado, pode não saber que,

entre suas muitas contribuições para a ciência e a filosofia, está também o

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lado técnico da criação do primeiro serviço de transporte público de que se

tem notícia.

Não que ele considerasse a mobilidade urbana um valor para si;

Pascal defendia firmemente, mesmo, era a opção de permanecer em casa:

“Descobri que toda a infelicidade humana resulta de um único fato; o fato

de que os homens não conseguem ficar quietos no próprio quarto”.

(Vanderbilt, 2009, pág. 6).

Ainda assim, possivelmente constatando que o restante de seus

concidadãos tinha maiores inquietudes que as próprias quanto ao mundo

exterior, juntou-se a empreendedores com título de nobreza, como o

marquês de Sourches, o marquês de Crenan e o duque de Rouanes, que era

também governador de Poitou, antiga província do oeste da França. Nessa

seleta companhia, conseguiu uma licença do rei Luís XIV para explorar rotas

de transporte de pessoas com carruagens de forma organizada. O rei, a

bem da verdade, concedeu-lhes mais que isso: outorgou-lhes um monopólio

real. Ou seja, se aparecessem competidores, os cavalos e os veículos do

oponente seriam confiscados. (Klaper, 1978)

A cidade contava com perto de 450.000 habitantes naquele período

(INSEE, 2013). O sistema, tratado formalmente como as Carrosses Publics

pour la Commodité des Bourgeois, ou as Carroças Públicas para a

Comodidade dos Burgueses, numa tradução literal, começou precisamente

em 18 de março de 1662, com sete veículos puxados por cavalos correndo

“da Porta Saint-Antoine até Luxemburgo” (Monmerqué, 1828). Cada

carruagem podia levar oito passageiros. Algumas fontes dizem que havia

três rotas, outras dizem que havia seis, e que uma delas era uma rota

circular.

Mas o fato é que as carosses à cinq sous, apelido que ganharam em

função da tarifa de base, não foram concebidas para a população como um

todo, e sim para “a comodidade dos burgueses”, como fica claro no

documento de outorga (Monmerqué, 1828). Muito por isso, foram até

populares no início, mas a novidade não durou muitos anos, porque não só

houve uma adesão inesperadamente elevada de “não burgueses” ao serviço

(embora, depois de algum tempo, o preço tivesse sido majorado de 5 para

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6 sous, de forma a inibir esta colateralidade), mas também porque Pascal

morreu no ano do início das operações, o que dificultou seu

desenvolvimento posterior.

Mas Pascal definiu, logo de início, os primeiros conceitos que iriam

nortear o serviço de transporte público coletivo até hoje. Em seu projeto, o

serviço adotou os seguintes critérios (Klaper, 1978):

as carroças seguiriam o mesmo trajeto de um ponto a outro;

as saídas obedeceriam a horários regulares, mesmo sem

passageiros;

cada ocupante iria pagar apenas por seu lugar, independentemente

de quantos lugares ocupados nos carros houvesse;

a rota ao redor de Paris seria dividida em cinco setores; a tarifa de

cinco sous (segundo Hussey (2011), o sous era uma unidade

monetária, 1/20 de uma livre, utilizada de 1667 até 1795, o nome é

uma versão francesa do termo latino libra) permitiria cruzar apenas

para mais um setor. Para além disso, deveria ser paga uma nova

tarifa;

não seria aceito ouro como pagamento, a fim de evitar problemas na

manipulação e atrasos para fazer o troco.

O empreendimento ainda perdurou por 15 anos após a morte de Pascal.

Naquele mesmo ano, porém, restrições do Parlamento para que fosse usado

apenas pelas pessoas para as quais tinha sido autorizado (“para o conforto

dos burgueses”...) e o aumento da tarifa para seis sous foram

gradualmente tirando a popularidade do negócio, até ele ser extinto em

1677.

Paris só voltaria a ter um serviço de transporte público no início do

século XIX, como conta Hussey (2011). Em 1826, com a criação do ônibus

por Stanislas Baudry, na também francesa Nantes, é que o conceito de

transporte público seria retomado, ainda seguindo os mesmos critérios

definidos por Pascal. (Klaper, 1978)

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Em 1828, próprio Baudry fundou, em Paris, a Entreprise Générale des

Omnibus, para explorar o serviço de transporte coletivo na capital francesa.

Logo em seguida, seu filho iniciaria empreendimentos similares em Lyon e

Bordeaux. Em Paris eram “100 carruagens puxadas a cavalos, com 18 a 25

assentos. Na metade do reinado de Luís Felipe, essas carruagens estavam

transportando mais de dois milhões e meio de viajantes pela cidade inteira”.

(Hussey, 2011, pág. 284)

Abraham Brower havia estabelecido em 1827 a primeira linha de

transporte público em Nova York. Em 1829 a novidade chegaria a Londres

pelas mãos de George Shillibeer e, a partir daí, alcançaria rapidamente as

principais cidades da América, Europa e demais partes do mundo.

Em 1863, a inauguração da primeira linha de metrô, em Londres, viria

estabelecer novos paradigmas de qualidade no transporte público, como

também ressalta Hussey (2011).

O metrô de Londres era uma adaptação urbana da já conhecida

ferrovia. Porém, segregando-se o sistema em vias exclusivas, subterrâneas,

o metrô alcançava inédita eficiência em velocidade e volume de passageiros

transportados, liberando a superfície para o transporte individual ou para os

pedestres.

Nesse período, Paris ainda passava pela reforma radical de

Haussmann que moldou a cidade hoje admirada, como descreve o resumo

de Glaeser (2011):

O que surge à mente quando você pensa em Paris? Talvez um café com

leite no velho lugar favorito de Sartre, Les Deux Magots, após uma

caminhada pelo Boulevard Saint-Germain. Esta via, como o Boul’Mich

(Boulevard Saint-Michel), foi criada por Haussmann, entalhada em uma

confusão de ruas mais antigas. Se você prefere a caminhada que descrevi

ao longo dos Champs-Élysées, apreciando a vista do Arco do Triunfo,

estará novamente em território de Haussmann. A rua e o arco são

anteriores ao barão, mas ele planejou as praças que fornecem esta visão

tão ampla (...). Entre 1853 e 1870, o trabalho de Haussmann removeu

mais da metade dos edifícios de Paris. Glaeser (2011, pág. 133)

Feitas estas muitas mudanças, a cidade estava mais pronta para o

que seria chamado de Le Grand Siècle, de Luís XIV. Com o crescimento e a

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ascendência cultural e política da França, e de Paris em particular, muitas

novidades surgiriam.

Assim, após Londres, Paris inauguraria seu Métropolitain em 1900.

Porque tanto tempo depois? Além de as grandes transformações de

Haussmann exigirem atenção e recursos, houve longas discussões entre as

autoridades parisienses sobre o financiamento das obras do metrô, e

também porque o modelo de transporte ferroviário como um todo havia

sido adotado tardiamente na França, “em parte, em razão da instável vida

política em Paris, mas também por ser vista com desconfiança pelos

franceses, por ser uma invenção anglo-saxônica”. (Hussey, 2011, pág. 375)

Vencida essa inércia, no entanto, o metrô de Paris cresceu

rapidamente e foi recebido em uma cidade inteiramente renovada, em um

período histórico particularmente intenso.

4.2 UM POUCO DA HISTÓRIA DE SÃO PAULO, ATÉ O SÉCULO XX

O deslocamento diário em São Paulo é uma missão desafiadora a

cumprir. No cotidiano dos habitantes da cidade, a mobilidade é mais do que

possibilidade, competência ou capital. É também a busca improvável da

jornada tranquila, a diferença entre o bom humor (ansiado) ou o mau

humor (quase certo). Scaringella (2001) contextualiza o que chama de crise

de mobilidade urbana paulistana. Na configuração do uso e ocupação do

solo, convive-se com duas São Paulos distintas: uma “oficial”, e uma

completamente fora da lei, em que áreas são ocupadas por favelas

irregulares em velocidade e extensão assustadoras.

O sistema viário passou de picos de trânsito de 40 km em 1992 para

120 km em 1997, e em 2012 chegou a registrar recorde de 295 km de

congestionamento em dia chuvoso (segundo o site da CET, a Companhia de

Engenharia de Tráfego, órgão da prefeitura que tem o difícil papel de gerir a

malha viária da cidade). A “viscosidade” do sistema extrapola as regiões

centrais e estende-se até a periferia, e as soluções baseadas em semáforo,

multas, viadutos e restrições horárias estão longe de ser suficientes, bem

como as ciclovias restritas e precárias e o transporte público

sobrecarregado, que é um dos campeões de queixas do morador da cidade.

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Mas como tudo isso começou? Muito diferente da história de Paris, a

de São Paulo foi relativamente sem fatos muito impactantes até o século

XIX. Conta o site da prefeitura (www.prefeitura.sp.gov.br) que a povoação

de São Paulo de Piratininga surgiu em 25 de janeiro de 1554 com a

construção de um colégio jesuíta por doze padres, no alto de uma colina

entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí. Esse colégio era destinado à

catequese dos índios que viviam na região do Planalto de Piratininga,

separados do litoral pela Serra do Mar. O nome São Paulo foi escolhido

porque o dia da fundação do colégio foi 25 de janeiro, mesmo dia em que a

Igreja Católica celebra a conversão do apóstolo Paulo de Tarso.

Ainda segundo o site oficial da prefeitura, o povoamento da região do

Pátio do Colégio teve início em 1560, quando o governador-geral do Brasil

Mem de Sá visitou a Capitania de São Vicente e ordenou a transferência da

população da Vila de Santo André da Borda do Campo (criada por Tomé de

Sousa em 1553) para os arredores do colégio, denominado Colégio de São

Paulo de Piratininga. O novo local era mais alto e adequado para se

protegerem dos ataques dos índios.

Se, por um lado, a capitania de São Paulo foi grande expoente na

partida de bandeiras, por outro, não estava entre as regiões de maior

importância econômica do país. Os territórios em que se encontraram as

minas com maiores quantidades de ouro e prata foram separados pela

coroa da capitania, para que aquela exercesse maior controle direto sobre a

região das Minas Gerais. A corrida para a região das minas enfraqueceu

ainda mais a capitania, que entre 1748 e 1765 esteve inclusive anexada ao

Rio de Janeiro. São Paulo seguia, assim, uma cidade pequena, quase um

vilarejo, cerca de 300 anos depois de fundada. (Marques, 1980)

É no início do século XIX, com o cultivo do café, que o estado de São

Paulo passa a desenvolver-se economicamente de forma expressiva. Nessa

mesma época, com o retorno da família real e da corte a Portugal, e a

permanência do príncipe D. Pedro Alcântara e Bragança no Brasil, a então

província de São Paulo volta ao cenário político pela nomeação de José

Bonifácio de Andrada e Silva, natural de Santos, como Ministro do Reino e

de Negócios Estrangeiros, além de principal conselheiro do príncipe (Fausto,

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1996). Em 1822, ano da Proclamação da República por D. Pedro I às

margens do rio paulista Ipiranga, a cidade contava 24.311 habitantes

(“classificados” em 12.032 brancos, 4.905 negros e 7.374 pardos), segundo

os Maços de População de São Paulo (Arquivo Público do Estado de São

Paulo, 2013), série de estudos censitários da província, ordenado pela

rainha D. Maria I a partir de 1797.

Com a abolição do sistema escravagista em 1850, o governo passa a

incentivar a imigração de europeus para compor a mão de obra das grandes

fazendas cafeeiras. Apenas considerando-se a imigração italiana, ela

começa em larga escala por volta de 1880; nos 10 anos seguintes, chegam

à província de São Paulo mais de 144 mil italianos, número que será de

impressionantes 430 mil na década de 1890 a 1900. Até a década de 1930,

o total será de quase um milhão de italianos (Lucena & Gusmão, 2006),

muitos dos quais fizeram da cidade de São Paulo sua nova moradia.

A segunda metade do século XIX foi, assim, um marco de

desenvolvimento do estado de São Paulo e de sua capital, com a construção

da ferrovia Santos-Jundiaí para escoamento da produção do café em 1867,

a inauguração da já grandiosa av. Paulista em 1891, do Viaduto do Chá em

1892, da linha de bondes Bom Retiro em 1900 e da Estação da Luz de trem,

já em 1901 (Monteiro, 2010), além de outras transformações marcantes,

com seus relevantes reflexos para a evolução da população urbana, como

mostra o gráfico 2, a seguir.

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Gráfico 2: Evolução da população de São Paulo (em mil habitantes)

Fonte: Elaboração dos autores, a partir de dados da Empresa de Tecnologia

da Informação e Comunicação do Município de São Paulo (Prodam)

São Paulo teve um final de século XIX agitado, como se vê. Os muitos

imigrantes mudaram bastante o panorama da cidade, que ainda mantinha

naquele momento, contudo, características muito distantes da metrópole

que surgiria nas décadas seguintes. Afinal, a cidade era, no raiar do século

XX, mais de três vezes menor do que o Rio de Janeiro; e quase 16 vezes

menor do que nossa outra personagem, Paris.

4.3 SÃO PAULO E PARIS NO SÉCULO XX

O início do século XX em São Paulo foi marcado pelo desenvolvimento

do centro da cidade e pelo importante fluxo de imigrantes, não apenas os já

citados italianos, mas também árabes e japoneses, além de portugueses e

espanhóis, que trouxeram crescimento incomum e prosperidade à cidade.

Segundo Monteiro (2010), até o século XIX, a região urbana da cidade

concentrava-se ainda entre o triângulo formado pelos principais conventos

da província (atuais ruas Direita, XV de Novembro e São Bento). Na virada

para o século XX, a expansão dos limites urbanos e a ocupação do espaço

passam a tomar forma mais clara, com a concentração das indústrias nos

bairros do Brás e Lapa, a consolidação das comunidades italianas no bairro

do Bexiga, das comunidades japonesas na região da Liberdade, e os

palacetes dos grandes cafeicultores na Paulista. Uma cidade em intensa

construção.

Já Paris resplandecia na virada do século XX, ao mesmo tempo

secular, renovada e dinâmica; nas palavras de Stéphane Mallarmé, poeta e

testemunha ocular dessa transformação, “uma paisagem que assombra tão

intensamente quanto o ópio...”. (Hussey, 2011)

São muito raras as cidades que crescem de maneira uniforme. Mas,

como afirma Glaeser (2011, pág. 134), Paris “é um todo ordenado (...). É

óbvio que Paris não foi construída através do aumento gradual da

densidade, como recomendam os urbanistas tradicionais”. São Paulo

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também está longe disso. Mas Paris, ele continua, “é uniforme porque foi o

resultado planejado de um único mestre de obras, cujo soberano imperial

lhe deu carta branca” (Glaeser, 2011, pág. 134). São Paulo tem a

desuniformidade típica das cidades que se fizeram em poucas décadas,

embora, é verdade, ela exista há quase 500 anos.

Aí está uma marcante diferença entre Paris e São Paulo para este

estudo: enquanto a primeira cresceu quase que apenas em sua periferia, ao

longo do século XX, mantendo muito pouco alterado seu admirável desenho

central projetado por Haussmann, a segunda iniciou um ciclo de

crescimento visceral e de velocidade dificilmente comparáveis no século XX

aos de outras grandes cidades, como se pode ver no gráfico 3.

Gráfico 3: Evolução do tamanho da população – Índice (1900=100)

Fonte: Elaboração dos autores, a partir de dados do IBGE, INSEE, INEGI,

Indiaonline, Londononline e US Census Bureau

O gráfico 4, a seguir, mostra a evolução das populações de São Paulo

e Paris, apenas as cidades centrais, no século XX. Enquanto Paris perdeu

cerca de 20% de seus habitantes, São Paulo viu sua população multiplicar-

se mais de 40 vezes. São experiências de ocupação urbana radicalmente

diversas.

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Gráfico 4: Evolução comparada das populações de Paris e São Paulo

no século XX (apenas as cidades – em mil habitantes)

Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados do IBGE e INSEE

Mas a população de Paris não cresceu de fato nesse período? Não na

cidade em si; cresceram as cidades periféricas, e de forma relevante. A

região metropolitana desenvolveu-se num arranjo singular, ao manter seu

desenho histórico central quase intocado e acomodar nas cidades vizinhas

os milhões de pessoas que vieram participar do desenvolvimento econômico

da capital da França durante o século XX.

A análise de Glaeser (2011) aponta aspectos interessantes desse processo:

A preservação da cidade pode exigir, de fato a destruição de parte dela. O

desejo moderno de preservar a Paris de Haussmann ajudou a transformar

a acessível Paris do passado em uma cidade-boutique que hoje só pode ser

apreciada pelos mais ricos. A história de Paris é repleta de grandes artistas

que viveram nela durante seus anos de privação e sem recursos no período

de formação, mas quais seriam os artistas pobres que poderiam viver no

centro de Paris nos dias de hoje? (Glaeser, 2011, pág. 245)

Ao contrário de Paris, São Paulo cresceu vertiginosamente nesse

período, como se viu. Mas também as cidades do entorno, particularmente

após o período de industrialização mais intenso, em meados do século XX

(embora a figura da “região metropolitana” tenha sido criada formalmente

apenas na década de 1970). Considerando essa visão ampliada das cidades,

as comparações entre Paris e São Paulo mudam, embora pouco, conforme

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se vê no gráfico 5: a grande Paris mais que triplica de tamanho nesse

período, mas a grande São Paulo cresce muitas dezenas de vezes.

Gráfico 5: Evolução comparada das populações de Paris e São Paulo

no século XX (regiões metropolitanas – em mil habitantes)

Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados do IBGE e INSEE (os dados

de São Paulo para 1900 e 1920 referem-se apenas à cidade em si)

As dificuldades para acolher esse crescimento são evidentes, e os

desafios da mobilidade não são menores que em outras áreas.

A primeira vez que a palavra “congestionamento” aparece no acervo

do jornal O Estado de S.Paulo é na edição de sete de janeiro de 1901. Em

extenso artigo intitulado “As grandes invenções do século”, V. da Silva

Freire discorre sobre as muitas inovações surgidas e postas em prática ao

longo do século XIX, e alerta para o “congestionamento das cidades”,

tratando aqui do aumento acelerado da população urbana e dos desafios

que ele trazia. (O Estado de S.Paulo, 2013)

Ainda de acordo com o jornal, em 1918, o problema na Avenida da

Aclimação era o congestionamento eventual de animais de montaria (ou

“tropas”), que dificultavam a passagem das pessoas. Em 1927 o jornal

trata, pela primeira vez, de “congestionamento de trânsito”, mas no Rio de

Janeiro, onde os então cerca de 12.000 veículos automotores acomodavam-

se com dificuldade nas ruas do centro, em alguns horários.

Mas, em meados da década de 1920, já é possível observar nas principais

avenidas da cidade de São Paulo, concentrações do “Ford Bigode”, como

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ficou conhecido o modelo T da Ford no Brasil. Em 1936, é inaugurado o

Aeroporto de Congonhas, na época a quilômetros de distância do perímetro

urbano.

A cidade de Paris passou a primeira metade do século XX vivendo

uma efervescência cultural intensa, mas também lidando com duas guerras

mundiais, que abalaram parcial e temporariamente sua destacada

infraestrutura, e que fizeram o tamanho de sua população oscilar para

baixo.

Ambas as cidades chegaram ao final do século XX muito transformadas

em relação ao ponto de onde começaram. E é razoável concluir que a

mobilidade urbana tenha realidades muito diversas em cada uma delas,

particularmente na oferta de serviços coletivos de transporte, dados esses

contextos evolutivos tão distintos.

4.4 DILEMA DA MOBILIDADE: TRANSPORTE COLETIVO OU TRANSPORTE

INDIVIDUAL?

A mobilidade urbana é um desafio de muitas facetas, há séculos. Na

Roma antiga, o tráfego de carruagens era a tal ponto intenso que César

“declarou que, em um certo período durante o dia, carroças e carruagens

não podiam circular, ‘exceto para o transporte de materiais de construção

dos templos dos deuses ou outras importantes obras públicas ou para

retirar materiais de demolição’” (Vanderbilt, 2009, pág. 7). Com esse

procedimento, no entanto, sequestrou o sono de boa parte de seus

concidadãos, que não conseguiam dormir devido ao ruído provocado pelo

tráfego noturno. O poeta Juvenal escreveu que, naquele século II, havia

tanto barulho à noite em Roma que “nem um peixe conseguiria dormir”

(Vanderbilt, 2009, pág. 7).

Não era só por lá que a convivência com as alternativas de transporte

urbano era ruim: havia no Liber Albus, livro de regras vigentes em Londres

no século XV, uma especificamente dedicada a proibir um condutor de

“dirigir sua carroça mais rapidamente quando ela estiver descarregada do

que quando carregada”, sob pena de multa ou, em casos mais graves,

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prisão. Na mesma Londres, por volta de 1720, acidentes de trânsito

provocados por carruagens e carroças ”conduzidas furiosamente”

representavam a principal causa de morte na cidade. Ainda segundo

Vanderbilt (2009), na cidade de Nova York, em 1867, uma média de quatro

pessoas por semana morriam por incidentes com cavalos.

As bicicletas não representavam um problema menor:

Depois de um ou dois falsos inícios, a ‘explosão das bicicletas’ no fim do

século XIX causou um furor social. As bicicletas eram rápidas demais. Elas

ameaçavam os ciclistas de males estranhos, como kyphosis bicyclistarum,

ou ‘cifose do ciclista’. Elas assustavam os cavalos e provocavam acidentes.

Ciclistas e não ciclistas brigavam aos murros nas ruas. As cidades tentaram

banir as bicicletas. Elas foram banidas das ruas por não serem carruagens

e foram afastadas das calçadas por não serem pedestres. (Vanderbilt,

2009, pág. 8)

Os meios de transporte multiplicaram-se, e o fato é que, com tantas

alternativas que parecem mais eficientes e confortáveis, abandonou-se,

progressivamente, o meio mais antigo de locomoção: caminhando.

Caminhar é o elemento mais importante do sistema de transporte de

qualquer área urbana em praticamente qualquer lugar do mundo. É um

modo de transporte elementar, tornando ainda possível a utilização de

todos os demais modos, que requerem acesso a pé, como ônibus, trem,

metrô e automóveis.

é como descreve o estudo “Premissas para um plano de mobilidade

urbana”, lançado em 2012 pela ANTP (Associação Nacional de Transporte

Público) e pela SPTrans. Importante, sem dúvida, mas em queda, como

descreve Vanderbilt (2009): no final da década de 1960 mais da metade

das crianças norte-americanas ia para a escola a pé ou de bicicleta; esse

percentual, hoje, é de apenas 16%. Entre o final da década de 1970 e

meados dos anos 1990, o número de trajetos percorridos a pé pelas

pessoas, nos Estados Unidos, reduziu-se em quase 50%.

Este não é um fenômeno isoladamente norte-americano, não

obstante pareça mais grave por lá, uma vez que em São Paulo as

caminhadas seguem sendo responsáveis por cerca de 30% dos percursos

cotidianos para o trabalho ou a escola. Em busca de mais rapidez e

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comodidade, no entanto, os cidadãos em todo o mundo buscam opções

mais práticas e mais convenientes.

Mas, apesar dos esforços e grandes investimentos no transporte

coletivo, o transporte individual parece ser uma escolha preferencial do

cidadão, quase invariavelmente, e não é de hoje, como se viu

anteriormente.

Mas por que o transporte coletivo não é a primeira alternativa para

todos?

Um estudo elaborado pelo Centro de Dados de Transporte do

Ministério do Transporte da Austrália (Corpuz, 2007) dá pistas interessantes

sobre isso. Os dados indicam que o uso de transporte coletivo é mais viável

nas seguintes situações:

a) quando a capacidade ou arranjos de estacionamento são

problemáticos para o uso do carro;

b) se o veículo não estiver disponível ou acessível;

c) quando é mais barato.

Outros aspectos, como tempo de viagem, conveniência e

acessibilidade são importantes, mas parecem ser menos significativos em

comparação com os três primeiros fatores. Esse estudo repete resultados de

outros realizados na Europa e Estados Unidos, também citados no trabalho.

Tempo de viagem e custo, tudo parece apontar, são fatores cruciais na

escolha do meio de transporte. Ou seja, transporte coletivo só é uma

alternativa ao individual se este último for, de alguma forma, inviável, diz a

maioria das pessoas.

Glaeser (2011) lembra que uma das dificuldades com o transporte

coletivo é que, quase sempre, o tempo de percurso é maior:

O problema (...) é o tempo envolvido para chegar até a parada de ônibus

ou estação de metrô, esperar o próximo veículo e ir até o destino final a

partir do ponto de descida. Este tempo alcança, em média,

independentemente da distância da viagem, 20 minutos para ônibus e

metrô. Mesmo antes de o ônibus chegar a percorrer a distância até a

próxima parada, os usuários já utilizaram o mesmo tempo que muitos dos

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que se deslocaram de carro gastam para fazer a viagem toda. (Glaeser,

2011, pág. 166)

Ele trata de números médios nos Estados Unidos, mas esta realidade

não é muito diversa em grandes cidades como São Paulo.

Isso fica agravado quando se considera, como lembra ainda Glaeser (2011),

que São Paulo tem opções ainda incipientes em alternativas para o

transporte individual motorizado, como uma rede de metrô com cobertura

aquém do necessário, do mesmo modo que a maioria das metrópoles dos

países em desenvolvimento.

Veja-se uma comparação entre os serviços de metrô de Paris e São

Paulo. A tabela 1 contém alguns dados úteis para entender o que se passa.

Tabela 1: Comparação das redes de metrô de Paris e São Paulo -

2013

Fonte: Elaboração dos autores, a partir de dados da RATP e da Secretaria

de Transportes Municipais de São Paulo

A rede de Paris é três vezes mais extensa, o que significa que oferece

uma cobertura muito mais completa da cidade. O tráfego total diário de

passageiros não é muito diferente entre as duas, embora cerca de 20%

maior em Paris. Mas a densidade média de passageiros, ou seja, quantos

passageiros passam por cada estação, ou por cada quilômetro de linha do

metrô, é muito maior na capital paulista do que na francesa. Ou seja, além

de cobertura menor – o que significa menor conveniência e mais tempo nas

caminhadas até as estações ou até o destino final –, os paulistanos têm

menos conforto no uso do metrô, pela grande densidade no uso das linhas e

estações (chegando a mais de quatro vezes superior, na comparação com

Paris). Como consequência, o metrô de Paris consegue ser uma alternativa

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cotidiana para o equivalente a quase 36% dos habitantes de sua região

metropolitana; em São Paulo, esse número é aproximadamente a metade.

As consequências desta escassez de boas alternativas são graves

para uma cidade assim, em que ocorre, de forma aguda, o que destaca o

mesmo Glaeser (2011, pág. 127): “Enquanto o século XIX viu várias

inovações nos transportes, a cidade do século XX foi dominada por uma

única: o motor a combustão interna”. Em função dessa baixa conveniência

trazida pelo transporte coletivo em São Paulo, e do aumento gradual no

poder aquisitivo das pessoas, o transporte individual motorizado cresce com

rapidez. Mas também em função do custo.

Um estudo da ANTP realizado em 2008 (ANTP, 2013) mostrava que,

na capital paulista, o custo total com ônibus em uma viagem urbana de sete

quilômetros é de R$ 2,30, com moto é de R$ 1,43 e, com automóvel, de R$

6,26 (gasolina) e R$ 5,39 (álcool). Isso acontece, entre outras razões, em

função do preço dos combustíveis. Em fins de maio de 2013, um litro de

gasolina em São Paulo custava cerca de € 0,93, comparado com € 1,660 na

França. Esta diferença de cerca de 40% ajuda a explicar uma face dessa

realidade paulistana.

Até porque o preço do combustível não afeta apenas as decisões

cotidianas sobre que meio de transporte utilizar naquele dia. Glaeser (2011,

pág. 176) explica que, em um estudo realizado por ele e Matthew Kahn em

mais de 70 cidades no mundo, “quando os países passam de baixos

impostos sobre a gasolina para altos impostos sobre a gasolina, a densidade

dos empreendimentos aumenta em mais de 40%. A propriedade de

veículos, evidentemente, também cai”.

O custo, portanto, determina muito de como a mobilidade se dará,

como demonstrado retrospectivamente. O mesmo Glaeser (2011) observa

que, ao longo da história,

nas áreas do mundo densamente povoadas (...) os cavalos foram uma

alternativa de transporte da elite. A manutenção de um animal tão grande

para o transporte pessoal estava muito além do alcance da maioria dos

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agricultores comuns ou dos moradores da cidade. (Glaeser, 2011, pág.

166)

O acesso aos carros, no entanto, é cada vez mais fácil hoje,

mundialmente. Os dados sobre a produção mundial de automóveis e

utilitários leves, mostrados no gráfico 6, dão a dimensão desse crescimento

que, segundo a Organisation Internationale des Constructeurs

d’Automobiles (OICA), acontece especialmente nas nações em

desenvolvimento.

Gráfico 6: Produção mundial de carros (em mil unidades)

Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados da OICA (2013)

Cervero (1998) destaca que o sistema coletivo de transporte vem

perdendo público para o carro, por diversas razões, entre as quais o fato de

que o uso do automóvel está, na maior parte das cidades, “maciçamente

subprecificado”.

Para o grupo mais abastado, claro, nunca faltam alternativas: São

Paulo conta, hoje, com a terceira maior frota de helicópteros do mundo, e

mais de 300 helipontos espalham-se pela cidade (Vanderbilt, 2009),

embora, evidentemente, esta não seja exatamente uma alternativa de

alcance popular para quem quer deslocar-se pela cidade. Mas o carro, que

no início do século era uma opção apenas para a elite, transformou-se

numa possibilidade para grande parte da população, mesmo em países em

desenvolvimento.

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As restrições forçadas de circulação também colaboram para essa

seleção de modos de locomover-se. São Paulo adotou em 1997 o rodízio de

placas de carros, que retira 20% da frota de automóveis das áreas centrais

nos dias úteis, de forma alternada, nos horários de pico, com efeitos

relevantes na poluição, mas decrescentes em relação à fluidez do tráfego,

como constata o estudo da ANTP (2013). Cingapura (1975), Londres (2004)

e Estocolmo (2006) são exemplos de cidades que adotaram o pedágio

urbano como solução e são citadas num estudo do IPEA (IPEA, 2011) que

trata desse tema e indica que uma eventual implantação gradual do sistema

para São Paulo seria vantajosa. Mas o próprio estudo ressalta que essa

adoção precisa ser concomitante com a ampliação da oferta de transporte

coletivo de maior qualidade.

A soma de combustível a preço baixo com uma indústria de

automóveis e motocicletas desenvolvendo-se intensamente no mundo, e o

acesso a esses meios individuais de transporte motorizado espalhando-se

com rapidez – pelo aumento de opções de baixo custo e ampliação das

alternativas de financiamento – parece atentar permanentemente contra o

transporte coletivo em metrópoles situadas em países em desenvolvimento,

como é o caso de São Paulo.

Mas e a bicicleta, não seria uma alternativa de transporte individual

barata, além do baixo impacto urbano? Sem dúvida, embora os dados

históricos já comentados informem que é preciso cuidado para que elas

possam transformar-se numa alternativa de fato viável para um grupo

relevante de pessoas, sem trazer colateralidades indesejáveis em sua

convivência com os veículos motorizados e os pedestres. Em grandes

cidades, parece sensato reservar para elas seu espaço próprio (ciclovias e

ciclofaixas) nas vias onde os veículos motorizados trafegam a velocidades

mais altas, como indica o estudo da ANTP (2013).

Paris foi além de fixar caminhos: seu Vélib, um sistema de

bikesharing que cobre boa parte da cidade, teve grande êxito. O estudo da

ANTP (2013) explica o modelo:

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O conceito central desse sistema é fornecer acesso gratuito ou a preços

acessíveis para bicicletas para trajetos de curta distância, em áreas

urbanas, como uma alternativa ao transporte motorizado, reduzindo,

assim, os congestionamentos, ruído e poluição do ar. Em maio de 2011,

havia 136 programas em 165 cidades com bikesharing ao redor do mundo,

envolvendo uma frota estimada de cerca de 240 mil bicicletas. Lançado em

2008, o programa público de bicicletas de Hangzhou, na China, é o maior

sistema de compartilhamento de bicicletas do mundo, com

aproximadamente 61 mil bicicletas e mais de 2.400 estações, e é seguido

pelo “Vélib”, em Paris, que abrange cerca de 20.000 bicicletas e 1.450

estações de bicicleta. Os países com o maior número de sistemas são a

França (29), Espanha (25), China (19), Itália (19) e Alemanha (5).

Recentemente a cidade de São Paulo aderiu à modalidade de

compartilhamento de bicicletas, embora ainda de forma modesta. (ANTP,

2013)

O Vélib aparece como mais uma alternativa de transporte na cidade

de Paris, integrado com metrô, ônibus, automóveis, motocicletas e tantos

outros. Envolve não apenas as preocupações com a mobilidade, mas

também as perspectivas de benefícios ambientais, tratando a bicicleta como

uma alternativa importante nesse processo, conectando-a de fato com os

outros modais de transporte, desafogando seu uso e oferecendo uma

alternativa a mais para os usuários.

Paris aparece regularmente em qualquer lista de cidades com melhor

sistema coletivo de transporte, como a do site Inhabitat (2013), ligado ao

Boston Architectural College; São Paulo ainda está longe de conseguir isso.

Qual o segredo do sistema de Paris? Não há um único.

As cidades têm diferenças estruturais muito relevantes. E algumas

delas seriam, em teoria, até favoráveis a São Paulo, como o adensamento,

por exemplo, que favorece a viabilização de sistemas coletivos de

transporte. o gráfico 7 mostra como a densidade demográfica na capital

paulista é cerca de oito vezes a da capital francesa.

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Gráfico 7: Paris e São Paulo: densidades demográficas (hab/km²)

Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados do IBGE e da EMTA (2012)

Mas, porque o sistema de transporte coletivo é muito menos eficiente

em São Paulo do que em Paris, o uso do transporte individual motorizado é

a opção eleita por quase o dobro das pessoas na primeira do que na

segunda cidade, como mostra o gráfico 8. É onde está uma das mais

marcantes diferenças entre as duas cidades aqui comparadas.

Gráfico 8: Deslocamento cotidiano nas regiões metropolitanas –

meio utilizado

Fonte: Elaboração doa autores, a partir de dados da EMTA (2012) e ANTP

(2012). (“Carro”: incluído no total “Motorizado”)

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Esse contraste repete-se nos ônibus. A frota de São Paulo é mais de

três vezes maior que a de Paris, mas com um grande número de médios e

pequenos veículos, que também não contribuem para maior eficiência do

sistema.

Gráfico 9: Paris e São Paulo – frota de ônibus

Fonte: Elaboração dos autores com dados da RATP (2013) e ANTP (2012)

E a importância do serviço de ônibus para São Paulo fica patente

quando se observa o que mostra o gráfico 10.

Gráfico 10: Paris e São Paulo: ônibus – número diário de viagens

Fonte: Elaboração dos autores, dados da RATP (2013) e ANTP (2012)

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A dependência do transporte sobre pneus na capital paulista é,

certamente, um dos fatores que mais amplificam os problemas cotidianos

de mobilidade, especialmente porque há poucas faixas de fato restritas para

a circulação desses veículos, o que reduz consideravelmente sua velocidade

e eficiência.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os problemas relacionados à mobilidade urbana são muito mais

antigos e persistentes do que muitos imaginam, como se procurou

exemplificar neste trabalho.

Cervero (1998) afirma que “rápida urbanização sempre fere” o

transporte coletivo. É tarefa de alta complexidade fazer com que o sistema

de transporte acompanhe adequadamente as muitas mudanças de

necessidade que ocorrem ao longo desse processo. São Paulo é uma vitrine

particularmente rica desse fenômeno. O crescimento extraordinário no

espaço de poucas décadas, ao longo do século XX, fez com que a cidade

mudasse radicalmente de perfil e, com isso, suas necessidades de

ajustamento das alternativas de mobilidade urbana. A demora em adotar –

e depois a lentidão em ampliar – o transporte sobre trilhos, o mais indicado

para transportar volumes maciços de pessoas, como também lembra

Cervero (1998), impuseram à cidade um cenário de múltiplos gargalos,

dificuldades de integração e baixa qualidade no serviço de transporte

coletivo. Com esforço de planejamento, aplicação de tecnologia no

monitoramento e gestão do fluxo, investimento em modernização dos

equipamentos e algumas medidas de restrição ao uso do automóvel, como

demonstra o estudo da ANTP (2013), esse cenário está mudando, embora

haja ainda muito que fazer.

Jackson & Cameron (1983) descreveram em seu trabalho que as

soluções inovadoras de transporte pelo mundo apontaram o “estilo

europeu” de sistemas integrados como a única alternativa viável, não

apenas para as metrópoles, mas também para as cidades médias: aplicação

correta dos modais e integração inteligente entre eles.

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A situação de Paris é um bom exemplo disso, como se viu, embora o

complexo sistema da cidade também esteja em constante evolução. A partir

da experiência pioneira de Pascal, muitas ações de impacto foram tomadas

ao longo do tempo. Seu mais que centenário Métropolitain é uma referência

em cobertura, bem como em estética, pelo cuidado na arquitetura das

estações, como lembra Hussey (2011) – embora os grandes subsídios

também pesem no modelo, como descreve o relatório da EMTA (2012). O

singular processo de evolução populacional de Paris foi, ao mesmo tempo,

causa e consequência de seu complexo sistema de transporte, como

destaca Glaeser (2011).

A questão da mobilidade, portanto, vai muito além do ir e vir diário.

Cervero (1998) e Glaeser (2011) destacam a relevância dos sistemas de

mobilidade urbana para o desenvolvimento mais saudável das cidades, sua

ocupação mais racional e adequada para os cidadãos. O contraste entre

uma cidade que quase não cresceu em seu núcleo central no século XX

(Paris) e uma que se multiplicou dezenas de vezes em apenas 100 anos

(São Paulo) teve o objetivo de mostrar como exemplos tão extremos podem

ilustrar alguns dos múltiplos desafios da mobilidade urbana.

Afinal, um desejo permanente em toda metrópole é o de que se

construa um sistema capaz oferecer alternativas de qualidade, eficientes e

com custos compatíveis para servir às necessidades de mobilidade da

maioria de sua população. Não apenas para a “comodidade dos burgueses”,

como ditava Luís XIV.

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