a manifestação de valores na história em quadrinhos v de vingança - jaciara reis veiga
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A MANIFESTAO DE VALORES NAHISTRIA EM QUADRINHOS
V DE VINGANA
Jaciara Reis Veiga*
As histrias em quadrinhos (HQs), para muitos, ainda so uma espcie de
cultura inferior, tendo como pblico a massa. So vistas, como infantis, revistascoloridas, de contedo nada muito srio, dificultando, assim, uma anlise mais profunda
e crtica dessa manifestao cultural. Por outro lado, as HQs tambm so consideradas
como produtos sociais que expressam atravs dos quadrinhos uma determinada fico
que, por sua vez, produzida por indivduos que so seres sociais que realizam um
trabalho coletivo, cuja base s pode ser histrica e social. Seu contedo tambm so
produtos histricos e sociais que manifestam valores, sentimentos, concepes, etc.
Desde as mais simples e superficiais, nada possuem de inocentes e neutras
(VEIGA, 2012).
As histrias em quadrinhos, alm de ser um produto social, so manifestaes do
social, ou seja, manifestam o social em suas histrias e possibilitam enxergar a
sociedade em seu universo ficcional (VIANA, 2013, p. 35). Num primeiro momento,
evidenciava-se somente o seu carter cmico, e de contedo que no era considerado
muito srio. Depois passaram a ser vistas como srias, desempenhando um papel
fundamental na formao do indivduo. Todavia, essa mudana no ocorre por si s,
independente do contexto social, mas, consequncia do processo de desenvolvimento
do regime de acumulao1 capitalista, que tem como finalidade agir politicamente na
configurao das relaes sociais. Ou seja, as HQ exercem um papel poltico importante
*Graduanda em Cincias Sociais/Universidade Federal de Gois,[email protected]
1Vejam O capitalismo na Era da Acumulao Integral(VIANA, 2009).
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na reproduo do capitalismo. Como exemplo, temos o gnero da aventura, que marca a
mudana formal e de contedo das mesmas, onde o individualismo da sociedade da
poca levado para a fico, na figura do novo hroi, forte e resistente (como Tarzan,
Dick Tracy, Flash Gordon, Zorro), que busca manter a ordem, caracterstica, essa,
configurada pela crise de 29 (MARQUES, 2006).
A realidade nos quadrinhos, portanto, reconstituda de forma figurativa e, a
partir de uma perspectiva a de seus criadores, indivduos concretos que possuem
valores. Segundo Marques, os quadrinhos uma produo cultural fruto
da imaginao de determinados indivduos que vivem emdeterminados contextos histricos, portadores de determinadosvalores, isto , indivduos que possuem determinados interesses e voexpress-los, consciente ou inconscientemente, no mundo ficcional
(MARQUES, 2011, p.96 apudMARQUES, 2013).
As HQs geralmente manifestam valores axiolgicos e, excepcionalmente,
axionmicos2. Porm, os indivduos possuem uma escala de valores que pode conter
tanto os valores dominantes quanto os autnticos (VIANA, 2012). Buscaremos,
portanto, descobrir qual a predominncia valorativa3na HQ V de Vingana, ou seja, se
h predominncia de valores dominantes ou de valores autnticos.
Os valores e ideias repassadas na HQ V de Vingana refletem a poca da sua
produo, tornando fundamental compreender o processo social das histrias em
quadrinhos. Nesse sentido, antes de analisarmos os valores manifestos em V de
Vingana, faz-se necessrio, definirmos o conceito de valores e apresentar nossa
concepo metodolgica. As contribuies desenvolvidas sobre quadrinhos (ECO,
2004; VIANA, 2005; VIANA, 2009; MARQUES, 2012; MARNY, 1970), juntamente
com o mtodo dialtico, articulado com anlise do discurso e anlise do contedo, num
primeiro momento e, posteriormente, uma discusso terica sobre o conceito de valores
(MANNHEIM, 1967; FRONDIZI, 1993; VIANA, 2007; MAIA, 2012) que, a partir do
mtodo dialtico, buscaremos inserir nas relaes sociais, evidenciam que a
compreenso de um universo ficcional depende do entendimento do contexto social e
2Axiologia: o padro dominante de valores numa determinada sociedade. Axionomia: uma
determinada configurao de valores humanos autnticos. Cf. Viana, 2007.3Todavia, se encontrarmos valores distintos e contraditrios, nosso objetivo ser saber quais valores so
predominantes.
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cultural nos quais ele se manifesta (VIANA, 2009), sendo esse um elemento comum
com a chamada anlise do discurso (BARDIN, 1995; ROBIN 1977). Outro elemento
fundamental compreender o processo de produo das histrias em quadrinhos, onde a
contribuio de Pags (1987) importante, ao afirmar que o discurso, simultaneamente,
informa sobre a realidade objetiva e o indivduo que o produz, ou seja, o campo social
e o campo psicolgico do indivduo. Os valores presentes na HQ V de Vingana esto
ligados ao contexto social e cultural no qual Allan Moore e David Lloyd produziram
sua obra, alm de suas percepes neste contexto. Assim, preciso fazer uma anlise
atenta da HQ para compreender como os autores expressam suas ideias e valores, para
descobrir quais valores so predominantes.
Mas o que so valores? Segundo Viana, valores no so atributos naturais dosseres, mas sim, atribuio dos seres quilo que os cerca, aos objetos, etc. aquilo que
considerado mais importante, mais significativo para os indivduos ou grupos sociais
(VIANA, 2013). Constitudos socialmente, os valores, so expresso de determinadas
relaes sociais e, sendo nossa sociedade perpassada por conflitos, os valores tambm
permanecem em conflito. Dentre estes est a axiologia, que so os valores dominantes,
tais como dinheiro, competio, ascenso social. E, em oposio a esse, temos a
axionomia que, so os valores autnticos, como a cooperao, a igualdade, a liberdade,
a criatividade e, que expressam a essncia humana (VIANA, 2007). As mensagensrepassadas pelas HQs manifestam tanto valores dominantes, quanto valores autnticos.
Desse modo, utilizaremos o mtodo dialtico com a categoria totalidade, integrada
categoria especificidade, pois, o mesmo contribui para uma anlise mais profunda dessa
manifestao cultural, partindo da totalidade das relaes sociais para a realidade
concreta que, por sua vez, possui mltiplas determinaes (MARX, 1983). Os valores
manifestos na HQ V de Vingana, ao serem analisados e inseridos na totalidade das
relaes sociais, nos possibilitam explicitar a predominncia valorativa contida na
mesma.
A histria em quadrinhos V de Vingana, de autoria de Allan Moore e David
Lloyd, foi publicada originalmente entre 1982 e 1983 pela editora britnica Warrior,porm no chegou a ser finalizada. Foi retomada e concluda em 1988, com edio
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completa republicada nos Estados Unidos e Reino Unido. No Brasil, foi publicada em
1989. A histria se d em uma fictcia Inglaterra que sara de uma hipottica terceira
guerra mundial e encontra-se num caos. Algum tempo depois a ordem reestabelecida,
porm de forma ditatorial. Um partido de cunho totalitrio se ascende ao poder e
implanta o neoliberalismo - um governo fascista onde os direitos civis so caados, a
censura imposta e toda e qualquer oposio rechaada, visando promover uma
limpeza tnica e ideolgica. O medo profetizado no sculo XX materializado numa
Inglaterra onde o Estado vigia o cidado e tolhe sua liberdade de expresso atravs de
mecanismos de vigilncia, utilizando tecnologias avanadas.
Figura 01. Cmera de vigilncia (p. 11).
nesse contexto que surge V, personagem que aclama a possibilidade de outra forma
de vida, onde no existam leis e regras arbitrrias de uma minoria sobre a maioria.
A HQ mostra uma sociedade marcada pelo domnio de um Estado vigilante e
controlador, equivalente a um Estado totalitrio. uma metfora ao Estado neoliberal
de Margareth Thatcher, conhecida como a Dama de Ferro. O Estado neoliberal surge
nos anos 80 e,. consequentemente,
chega para varrer os direitos trabalhistas, precarizar as condies detrabalho possibilitando contratos temporrios, terceirizao,subcontratao, aumento do desemprego, explorao do trabalhoinfantil, cortes drsticos nas polticas sociais, aumento da inseguranasocial com a expanso da criminalidade e da represso pelo EstadoPenal e um amplo processo de empobrecimento em escala global viaprocesso de lumpemproletarizao. Por conseguinte, o Estado
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neoliberal cria as condies legais para a construo de um mundode explorao sem limites (BRAGA, 2013).
Seu personagem central, V, um homem de passado desconhecido, que foi levado
para o campo de concentrao, passando por experincias terrveis e que, aps sua fuga,
comea uma vingana. Representa o ideal anarquista - se declara anarquista e anti-
Estado, atravs do qual prope uma transformao radical da sociedade, caracterizada
pela vigilncia e coero. Desse modo, podemos afirmar que, trata-se, portanto, de uma
expresso figurativa de uma realidade existente? possvel perceber a realidade da
poca manifesta na HQ V de Vingana?
Podemos realizar inmeras anlises acerca desse fenmeno cultural, todavia, nos
limitaremos somente questo dos valores, inserindo-os na totalidade do universo
ficcional em questo. A HQ V de Vingana nos apresenta fortemente um carter
poltico4. V, deixa explcito, sua concepo de Estado, mostrando seu carter
autoritrio, expresso na coero e no controle permanente, atravs da tecnologia.
Comea sua vingana atacando o Parlamento e, logo depois, a esttua da Justia, dois
grandes smbolos que personificam o poder estatal.
Figura 02. Parlamento (p. 16).Figura 03. Esttua da Liberdade (p. 43).
4A poltica tambm se manifesta no universo ficcional dos quadrinhos (VIANA, 2008).
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Aqui j podemos notar a discordncia de V aos valores dominantes representados nas
figuras 02 e 03: o poder e a justia.
Outra ao o assassinato dos principais lderes do Estado, sendo apresentado a
partir de uma metfora da Cabea, como centro do poder, e seus sentidos, cada um com
sua funo:
(...) os olhos que so responsveis pelo sistema de cmeras, alm deum dispositivo que capaz de identificar qualquer pessoa atravs daretina, aos ouvidos destinado o controle sobre o que dito a partir daescuta telefnica, o nariz tem como finalidade a investigaopropriamente dita, a boca responsvel por toda a propaganda dessegoverno, atravs dela que o governo transmite sua ideologia, seusavisos e mantm o controle da sociedade e finalmente o dedo, apesarde estar fora da cabea, como sentido direto, ele faz parte doaparelho de coero de Estado como extenso de todos os outrossentidos, sua funo de conteno e intimidao, o responsvelpelas prises, tortura e morte, onde o Estado se torna policial edemonstra toda sua fora de coero e onde mantm sua hegemonia
(MENDES, 2008, p.08).
Aos poucos, V, vai eliminando cada um daqueles que representam o Estado, abalando
o seu poderio, a sua noo de controle, a coerncia e a permanncia do poder vigente
(KRGER, 2012). Fica evidente, portanto, que ele busca mais que uma mera vingana.
Atravs do ideal anarquista, V, prope uma transformao radical na estrutura da
sociedade destruindo os valores dominates e propondo novos valores, valores
autnticos, segundo os ideais anarquistas.
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Figura 04. Faces da Anarquia (p. 224)
Um dos smbolos que representa esse ideal, o anarquismo, a mscara5, baseada
no rosto de Guy Fawkes, soldado ingls catlico que tentou assassinar o rei protestante
da Inglaterra, na chamada Conspirao da plvora. A data do atentado de Fawkes
coincide com a exploso do parlamento na HQ. Aqui, os autores usam o fato de uma
realidade existente no passado (o protesto de Guy Fawkes contra o rei) nos quadrinhos,
manifestando assim, o protesto de V, diante da atual forma de governo. Mais que um
protesto, a mscara representa uma ideia, a ideia de Anarquia (ordem voluntria).
Figura 05. Anarquia (p. 197)
V evidencia o carter autoritrio desse governo, mas no s. Acredita que noh diferena entre eles, sejam quais forem e, por isso, que prope a anarquia (sem
5Artigo publicado na Revista Warrior 17 (MOORE e LLOYD, 2012).
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lder, sem ordem), e acredita que a misso de cada indivduo a de de lutar contra sua
opresso e governar a si mesmo.
Figura 06. A misso dos oprimidos (p. 247)
Apesar do povo estar com medo e desorganizado, V acredita no momento
de tomada de conscincia da responsabilidade de cada um com a luta contra a opresso.
Figura 07. A voz do povo (p. 196)
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exatamente nesse momento, onde cada um toma conscincia de que
responsvel por transformar sua condio de dominado e oprimido, e comea a lutar,
que se descobre a face oculta que est por trs da mscara (da ideia, do ideal), ou seja,
da anarquia.
Figura 08. Evey ao assimilar os ideais de V (p. 252- 253).
Todos esses aspectos da histria evidencia que a predominncia valorativa da
HQ V de Vingana axionmica. V manifesta atravs da ideia anarquista, a busca por
uma mudana de concepes vigentes na sociedade da poca, expressando assim, o
desejo de mudana dos valores dominantes, como a dominao e opresso, para os
valores autnticos, como o autogoverno, a igualdade, a liberdade.
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Figura 09. Liberdade (p. 262)
Alm desses aspectos, o prprio objetivo da histria, nos ajuda a compreender os
valores transmitidos na mesma. Os autores manifestam suas insatisfaes e pessimismo
com a poltica inglesa da poca e, por conseguinte, propem uma alternativa para o
governo autoritrio que, na obra, ainda maior, apresentando outra perspectiva, outro
ideal de governo a ausncia de Estado. A HQ V de Vingana uma produo cultural
que nos leva a refletir sobre nossa realidade, nos incita tomada de conscincia de
nossas aes diante da necessidade de transformao radical da sociedade em que
vivemos. Incita-nos ao autogoverno, nos convidando a escolher entre a vida prpria ou
os grilhes.
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Figura 10. Escolha (p. 260)
Nesse sentido, os valores apresentados em V de Vingana so
predominantemente axionmicos, apesar de conter aspectos que demonstram outros
valores. Alm disso, evidencia uma profunda crtica social dos valores dominantes. A
concepo de V pode ser considearada uma expresso do descontentamento das
classes oprimidas e exploradas com esta sociedade, ao lutar constantemente pela
liberdade e contra o controle e a represso do estado. A HQ V de Vingana contribui
para a crtica da sociedade capitalista, buscando inserir nos quadrinhos, os valores dasclasses oprimidas.
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Resumo: Alm de serem um produto social, as histrias em quadrinhos, manifestam o social. A
realidade nos quadrinhos reconstituda de forma figurativa e, a partir de uma perspectiva a de seus
criadores, indivduos concretos que possuem valores. As HQs geralmente manifestam valores
axiolgicos e, excepcionalmente, axionmicos. O presente artigo busca evidenciar qual a
predominncia valorativa na HQ V de Vingana, para saber se a mesma axiolgica ou axionmica,
ou seja, se h predominncia de valores dominantes ou valores autnticos.
Palavras-chave: V de Vingana, Valores Axiologia, Axionomia, Predominncia valorativa