leandro seawright

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PODER E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA: UMA HISTÓRIA DE UM CISMA PENTECOSTAL NA CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA NA DÉCADA DE 1960 Por Leandro Seawright Alonso SÃO BERNARDO DO CAMPO 2008

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    UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS DA RELIGIO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA RELIGIO

    PODER E EXPERINCIA RELIGIOSA: UMA HISTRIA DE UM CISMA PENTECOSTAL

    NA CONVENO BATISTA BRASILEIRA NA DCADA DE 1960

    Por

    Leandro Seawright Alonso

    SO BERNARDO DO CAMPO

    2008

  • 1

    UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS DA RELIGIO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA RELIGIO

    PODER E EXPERINCIA RELIGIOSA: UMA HISTRIA DE UM CISMA PENTECOSTAL NA CONVENO BATISTA BRASILEIRA NA DCADA

    DE 1960.

    Por

    Leandro Seawright Alonso

    Orientador:

    Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth

    Dissertao apresentada em cumprimento

    parcial s exigncias do Programa de Ps-

    Graduao em Cincias da Religio, para

    obteno do grau de Mestre.

    SO BERNARDO DO CAMPO

    2008

  • 2

    LEANDRO SEAWRIGHT ALONSO

    PODER E EXPERINCIA RELIGIOSA: UMA HISTRIA DE UM CISMA PENTECOSTAL

    NA CONVENO BATISTA BRASILEIRA NA DCADA DE 1960

    Dissertao apresentada em cumprimento parcial s exigncias do Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio, para a obteno do grau de Mestre.

    rea de Concentrao: Teologia e Histria Data da defesa: Resultado_________________________________________ BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth _______________________________________ UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos________ __________________________ UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO Prof. Dr. Israel Belo de Azevedo____________________________________ FACULDADE BATISTA DO RIO DE JANEIRO

  • 3

    Aos meus pais, Hlio e Roseli

    minha irm,

    Raquel

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo a Deus, por me inventar, me lanar e cuidar de mim, dando-se e

    encarnando-se para salvar minha realidade. No entendo muito, mas tambm agradeo pelo

    ministrio pastoral, estranho privilgio de sofrimento e alegria. Para mim, Deus pessoal

    nos damos bem!

    Agradeo minha me por seu exemplo de vida e amor. Por jamais desistir

    de me amar e cuidar de mim. Por ser amiga, intercessora, ouvinte, conselheira e por ter forte

    influncia em minha f e ministrio. Por vencer em sua rea de atuao jurdica e pedaggica

    e me levar a vencer. Por chorar quando chorei e se alegrar quando me alegrei. Porque

    trabalhou para me sustentar e, no obstante, agigantou-se em passos acadmicos to largos.

    Agradeo por se transcender em tudo o que sabemos ter acontecido e ter me ensinado lies

    preciosas que levarei durante toda a vida, pois lhe prometo militncia em todas as boas causas

    que me ensinou desde a tenra idade. Agradeo- lhe, tambm, por me ensinar a ser pastor, pois

    seus ensinamentos prepararam um ministro do evangelho, nas mnimas atitudes e no exemplo

    de respeito ao prximo e dignidade humana.

    Ao meu pai que, sempre com muito cuidado, me aconselhou em diversos

    momentos de minha vida, orientando-me sobre o futuro e as dificuldades do percurso.

    Agradeo por seu exemplo de proteo e incentivo, bem como por aceitar minha escolha

    quando, aos 17 anos, sa de casa, no interior do Estado de So Paulo, para cursar Teologia e

    seguir minha vocao pastoral.

    minha irm voc sempre me ajudou, maninha compreendendo-me e

    apoiando-me com amor e boa vontade. Obrigado por me animar em meus intentos pessoais e

    acadmicos, jamais deixando de me ouvir. Agradeo- lhe, inclusive, por assistir s minhas

    aulas de filosofia, ainda que eu estivesse com a cara inchada e a voz rouca, no primeiro ano

    do mestrado, quando voltava para casa s trs da manh [risos].

    Aos meus avs paternos V Alonso e V Nomia, muito obrigado pela

    acolhida em So Paulo e pelo cuidado durante o perodo de minha graduao. Agradeo- lhes

    pela ternura com que me receberam, sempre com um sorriso e muito afeto. Agradeo- lhes

    porque sempre me incentivaram nos estudos, inclusive nos momentos de maior tenso e

    dificuldade. Vocs so muito importantes para mim, pois sem a ajuda preciosa que me deram,

    muitas coisas teriam sido impossveis.

  • 5

    Aos meus avs maternos, V Pipe (in memoriam) e V Dusolina. Agradeo

    pelo exemplo de garra e amor. V, obrigado por torcer por mim e me incentivar toda vez que

    ouviu sobre meu trabalho. Eu a tenho como exemplo de f e cuidado familiar, bem como de

    grande me, matriarca da famlia.

    Aos meus tios, Oldio e Solange, muito obrigado pelo constante apoio em

    forma de carinho, motivao e boas percepes do meu trabalho de pesquisa. Vocs sempre

    estiveram ao meu lado nos momentos decisivos da minha vida.

    Ao Prof. Dr. Lauri E. Wirth, por me oferecer com mestria uma orientao

    acadmica consistente, pela pacincia com minha infantilidade durante o mestrado. Obrigado

    por me embasar e por ter fornecido as ferramentas tericas e metodolgicas para o

    cumprimento de minhas tarefas.

    Ao Pr. Manoel de Jesus Th, por me amar e me ajudar a atravessar os

    desertos pr-ministeriais por que passei. Sem dvida, devo- lhe as grandes e preciosas lies

    do ministrio pastoral e agradeo pelos conselhos e por toda a dedicao. Sou grato por ter se

    tornado meu grande pai no ministrio.

    Ao Pr. Daniel Messias, grande amigo, obrigado por sua ajuda e apoio em

    todo o tempo. Entre os amigos, voc foi o mais presente em minha vida acadmica e

    ministerial.

    Isabel Cristina Le lis Ferreira, pela amizade, por toda a dedicao e

    excelncia na reviso ortogrfica da presente dissertao.

    Ao Prof. Ms. Marcelo Santos, obrigado por ter me incentivado a realizar a

    presente pesquisa quando fui seu aluno, na graduao.

    A uma famlia bastante especial: Nomia, Jos Mardnio, Paloma e Bruno.

    Obrigado pela acolhida em So Paulo e por me tratarem de forma amorosa e cuidadosa. Eu os

    levarei para sempre no corao e na memria e os terei em alto grau de importncia, sempre e

    sempre! Libertem-se [risos].

    Paloma, pelo incentivo e apoio constantes e pelo interesse que demonstrou

    pela presente pesquisa. Obrigado por me ajudar nos diversos processos desse perodo em que

    realizei meu mestrado em Cincias da Religio.

    Primeira Igreja Batista no Jabaquara, obrigado pelo carinho, amor e

    acolhida. Exero com dedicao o ministrio titular entre vocs e desejo que cresamos juntos

    na graa, no conhecimento e no amor que nos une.

  • 6

    Aos professores que criam Cidinha, Clia, Lia, Catarina, Ana Lcia e Eri.

    Obrigado pela confiana, amor e dedicao. Vocs esto vivas em minha memria e sempre

    caminharo comigo nas veredas da existncia.

    Aos professores que no criam A todos/as vocs: obrigado por causar um

    ambiente de instabilidade, pois, sem essas situaes, talvez eu no tivesse conseguido mostrar

    que, mesmo no sabendo, fiz-me um tolo aprendiz na mediocridade. Em tempo: eu j

    aprontei, lendo Nietzsche durante a aula de matemtica.

    Aos professores da graduao na Faculdade Teolgica Batista de So Paulo.

    Agradeo especialmente aos professores Dr. Loureno Stelio Rega, Dr. Jorge Pinheiro dos

    Santos, Dra. Gina Valbo Strozzi Nicolau, e Ms. Alberto Kenji Yamabuchi. Agradeo o

    incentivo essencial que me deram, no somente na minha formao ministerial, mas tambm

    na acadmica.

    Aos professores da Ps-Graduao, especialmente Dr. Geoval Jacinto da

    Silva, Dr. Jung Mo Sung, Dr. Antonio Carlos de Melo Magalhes e Dr. Etienne Alfred

    Higuet. Agradeo pelas boas conversas que travamos durante o tempo em que cursei as

    disciplinas oferecidas pelo Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio. Tambm

    agradeo pelas conversas de corredor, as quais foram fundamentais e corroboraram, mesmo

    informalmente, meu preparo acadmico formal.

    CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior),

    que me auxiliou no processo de ps-graduao concedendo-me uma bolsa de mestrado sem a

    qual jamais teria sido possvel prosseguir meus estudos na Universidade Metodista de So

    Paulo.

  • 7

    O problema poltico essencial para o intelectual no criticar os contedos ideolgicos que estariam ligados cincia ou fazer com que sua prtica cientfica seja acompanhada por uma ideologia justa; mas saber se possvel constituir uma nova poltica da verdade. O problema no mudar a conscincia das pessoas, ou o que elas tm na cabea, mas o regime poltico, econmico, institucional de produo da verdade. No se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder que seria quimrico na medida em que a prpria verdade poder mas de desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econmicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento.

    FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfsica do Poder, p. 14.

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    SEAWRIGHT, Leandro Alonso. Poder e Experincia Religiosa: uma Histria de um Cisma Pentecostal na Conveno Batista Brasileira na Dcada de 1960. So Bernardo do Campo, 2008. Dissertao de Mestrado. Universidade Metodista de So Paulo.

    RESUMO

    A presente dissertao resultado de uma pesquisa acerca de um cisma

    pentecostal na Conveno Batista Brasileira, na dcada de 1960. No foco do conflito

    encontra-se um Movimento de Renovao Espiritual, que defendia uma experincia de xtase

    religioso, designada de batismo com o Esprito Santo, como confirmao da relao do crente

    com Deus. A progressiva adeso de comunidades batistas a tal proposta transformou-a numa

    rede alternativa de poder que causou instabilidade nas relaes de poder no interior da

    denominao batista no Brasil. A pesquisa reconstri os embates decisivos deste episdio e

    ofereceu uma interpretao a partir das teorias de Michel Foucault e Michel de Certeau, na

    medida em que tenta decifrar os mecanismos institucionais de controle em confronto com as

    tticas das redes de poder. No contexto histrico brasileiro de efervescncia no s religiosa,

    os mecanismos de vigilncia da Conveno Batista Brasileira mostraram-se insuficientes para

    a manuteno da unidade ameaada, uma vez que puniu os grupos opositores com a excluso.

    Palavras-chave: Conveno Batista Brasileira, batismo no Esprito Santo, cisma pentecostal, redes de poder, vigilncia, experincia religiosa.

  • 9

    SEAWRIGHT, Leandro Alonso. Power and Religious Experience: a Hhistory of a Pentecostal Schism in the Brazilian Baptist Convention in the Decade of 60s. So Bernardo do Campo, 2008. Dissertao de Mestrado. Universidade Metodista de So Paulo.

  • 10

    ABSTRACT

    This dissertation is the result of a search about a Pentecostal schism in the

    Brazilian Baptist Convention, in the decade of 1960. The center of interest of the conflict is a

    Spiritual Renewal Movement, which defended an experience of religious ecstasy, called

    baptism with the Holy Spirit, as confirmation of the relationship of the believer with God. The

    gradual adhesion of Baptists communities to such proposal transformed it into an alternative

    web of power that caused instability in the relations of power within the Baptist denomination

    in Brazil. The research reconstructs the shocks of this crucial episode and offered an

    interpretation from the theories of Michel Foucault and Michel de Certeau, trying to decipher

    the institutional mechanisms of control in battles with the tactics of the web of power. In the

    historical context of Brazilian effervescence not only religious, the mechanisms of

    surveillance of Brazilian Baptist Convention have proved inadequate for maintaining the unity

    threatened, since the opposing groups were punished with the exclusion.

    Words Key: Brazilian Baptist Convention, baptism in the Holy Spirit, pentecostal schism, web of power, surveillance, religious experience.

  • 11

    SUMRIO

    Introduo................................................................................................................................12

    1. UM PERODO DE EFERVESCNCIA E O MOVIMENTO DE RENOVAO ESPIRITUAL..............................................................................................................19

    1.1. Um locus de transformaes poltico-religiosas e de efervescncia................19 1.2. Um locus fragmentrio do protestantismo no Brasil: Uma grande

    miscelnea........................................................................................................30 1.3. Um locus oscilante no vaivm das ondas: uma antidisciplina

    pentecostal........................................................................................................37 1.4. Ondas vm e ondas vo: Um locus de belicosidade para o Movimento de

    Renovao Espiritual e para Rosalee Mills Appleby ......................................45

    2. A EXPERINCIA RELIGIOSA NA BIBLIOTECA DO SEMINRIO

    TEOLGICO BATISTA DO SUL DO BRASIL E A FORMAO DAS REDES DE PODER..................................................................................................................59

    2.1. Jos Rego do Nascimento e Enas Tognini: Duas experincias religiosas de

    constituio no entretecimento da belicosidade histrica................................59 2.2. Da academia experincia religiosa: Poder e xtase na biblioteca e as redes de

    poder.................................................................................................................70 2.3. Um barulho que veio da biblioteca: Poder e represso da religio oficial.......82 2.4. Na abrangncia das redes de poder: Um manifesto da minoria excluda da

    Igreja Batista da Lagoinha...............................................................................92

    3. A FORMAO DA COMISSO DOS 13 E O MODELO PANPTICO DE VIGILNCIA...........................................................................................................101

    3.1. Um cisma na Conveno Batista Mineira......................................................101 3.2. A Conveno Batista Brasileira de 1962 e a formao da Comisso dos

    13....................................................................................................................108 3.3. A doutrina do Esprito Santo e os embates fiscalizadores ............................118 3.4. Os pareceres da Comisso dos 13: Um cisma na Conveno Batista

    Brasileira........................................................................................................131

  • 12

    4. O FUNDAMENTALISMO POLTICO-RELIGIOSO POR DETRS DAS

    TRINCHEIRAS........................................................................................................150 4.1. O fundamentalismo do Movimento de Renovao Espiritual.......................150 4.2. Rubens Lopes e Enas Tognini: Campanhas de Evangelizao e Encontros de

    Renovao......................................................................................................163 Consideraes Finais.............................................................................................................170 Bibliografia............................................................................................................................180 Anexos....................................................................................................................................187

  • 13

    Introduo

    No seio das igrejas batistas pertencentes Conveno Batista Brasileira

    possvel identificar um perodo intenso composto por incontveis conflitos de poder ocorridos

    em mbito denominacional. O perodo de 1956 a 1965 fo i impactado pelas controvrsias

    teolgicas ocasionadas pelo Movimento de Renovao Espiritual no interior das igrejas

    batistas. Atravs da influncia de Rosalee Mills Appleby, alguns lderes denominacionais,

    como Jos Rego do Nascimento e Enas Tognini, alegaram uma experincia de batismo no

    Esprito Santo posterior experincia de salvao nas categorias batistas de compreenso

    soteriolgica 1.

    Os entreveros denominacionais e os debates acerca da verdade sobre a

    doutrina do Esprito Santo conduziram e fomentaram disputas institucionais, premeditadas ou

    no, que tiveram como uma de suas principais conseqncias o primeiro cisma ocorrido na

    Conveno Batista Brasileira. No presente texto intentar-se- uma abordagem acerca do

    perodo mencionado, verificando os conflitos de poder que conduziram os batistas brasileiros

    ao cisma denominacional. Outrossim, adotar-se-, para a abordagem do referido episdio, as

    teorias de Michel Foucault e de Michel de Certeau como respaldos tericos para entender o

    conflito em pauta.

    A influncia do Movimento de Renovao Espiritual nas igrejas batistas

    brasileiras j foi objeto de diferentes estudos. Destacam-se aqueles de cunho marcadamente

    apologtico, produzidos no calor dos embates em torno da questo. H tambm referncias

    questo em trabalhos de concluso de curso de graduandos em Teologia. Contudo, salvo

    melhor juzo, o presente trabalho a primeira tentativa de investigao cientfica do cisma no

    campo batista.

    Para tanto, sabe-se que dois tipos de fontes possibilitam a pesquisa e o

    conhecimento no mbito da histria, a saber, as fontes primrias e as fontes secundrias.

    Fontes primrias ou originais so aquelas que documentam um fato, uma circunstncia, um

    vivido. So os documentos escritos, objetos de uso pessoal e coletivo, instrumentos

    diversificados. Essas fontes requerem a verificao do contexto histrico, social, poltico e

    cultural, porquanto preciso empregar metodologias hermenuticas para lanar mo de suas

    informaes.

    1 Termo utilizado nos estudos de Teologia Sistemtica para designar as compreenses acerca da salvao, nas molduras da teologia crist.

  • 14

    Em contrapartida, as fontes secundrias referem-se s muitas leituras das

    fontes primrias que os pesquisadores realizam. Mesmo que haja a possibilidade de que as

    fontes secundrias se transformem em novas fontes primrias de pesquisa, as fontes

    secundrias so postas no mercado de bens culturais para o consumo de diferentes categorias

    de sujeitos, a saber: os pesquisadores, os professores, os estudantes e os curiosos de maneira

    geral. As fontes primrias distinguem-se das fontes secundrias principalmente porque estas

    esto ligadas difuso do conhecimento histrico, enquanto aquelas produo do

    conhecimento da histria 2.

    Para a abordagem que se prope na presente dissertao, ressalta-se a

    utilizao de fontes primrias, tais como: cartas, jornais denominacionais, jornais seculares e

    atas. Algumas das correspondncias utilizadas, anexadas ao presente texto esto em poder de

    Enas Tognini, enquanto outras foram publicadas em seus livros. Consultou-se tambm O

    Jornal Batista, veculo oficial de informaes da Conveno Batista Brasileira3. Da mesma

    forma, lanou-se mo de O Estado de So Paulo, para verificar determinado perodo histrico

    em evidncia no quarto captulo. Como se mencionou, atas de Assemblias da Conveno

    Batista Brasileira tambm foram utilizadas e constituram fontes primrias preciosas .

    No que tange s fontes secundrias, procurou-se consultar livros

    apologticos e doutrinrios que evidentemente possuem carter confessional e, por via de

    regra, compem e corroboram discursos blicos na histria dos batistas brasileiros durante o

    perodo em que se situa o referido campo de pesquisa.

    As publicaes de Enas Tognini e Jos Rego do Nascimento forneceram

    boas interpretaes acerca do belicismo no perodo e na fundamentao do Movimento de

    Renovao Espiritual. Alm das obras desses autores militantes, muitas outras serviram de

    fontes secundrias para a amostragem dos conflitos denominacionais que culminaram no

    primeiro cisma da histria dos batistas no Brasil.

    No se pretende lanar uma hiptese com pressupostos solidificados com a

    finalidade de afirm- la ou neg- la. Entretanto, pretende-se elaborar suspeitas, no para que se

    tornem soberanas e determinantes sobre alguma investigao ou afirmao, mas para que tais

    suspeitas tragam consigo as instigaes acadmicas sobre o campo de pesquisa estabelecido,

    bem como sobre o problema que se suscitar, os quais se faro evidenciar na elaborao dos

    2 Cf. SOUZA, Joo Valdir Alves de. Fontes para uma reflexo sobre a histria do Vale do Jequitinhonha , p. 2. 3 Mais informaes sobre O Jornal Batista in: AVEZEDO, Israel Belo de. A palavra marcada: um estudo sobre a teologia poltica dos batistas brasileiros, de 1901 a 1964, segundo O JORNAL BATISTA .

  • 15

    captulos. Nesta dissertao tambm no se objetiva um trabalho doutrinrio, mas uma sucinta

    contribuio para se pensar parte do processo histrico e denominacional dos batistas no

    Brasil.

    O intelectual no tem mais que desempenhar o papel daquele que d conselhos. Cabe queles que se batem e se debatem encontrar, eles mesmos, o projeto, as tticas, os alvos de que necessitam. O que o intelectual pode fazer fornecer os instrumentos de anlise, e este hoje, essencialmente, o papel do historiador. 4

    Desse modo, elaborar-se-o suspeitas para a investigao historiogrfica. Por

    conseguinte, na instrumentao do leitor, ser visibilizada a tenso existente no perodo

    mencionado, pois as suspeitas indicaro o vis pelo qual se trilhar e um laboratrio de

    verificao do Movimento de Renovao Espiritual em curso na Conveno Batista

    Brasileira. Segundo Foucault, jamais se pode dizer: eis o que vocs devem fazer. Portanto,

    tambm no se pretende demonstrar nenhuma verdade cristalizada e tampouco a forma como

    se deve pensar, pois se trata de fornecer instrumentos para o cumprimento do papel do

    historiador.

    Assim, a primeira suspeita a de que as experincias religiosas so

    legitimadoras das atitudes de poder poltico na histria da Conveno Batista Brasileira e que

    as experincias produzidas e vivenciadas pelo Movimento de Renovao Espiritual foram

    causadoras de desequilbrio no mbito da denominao batista. Segundo Foucault, a

    referncia da histria, a qual tambm se estabelece para a escrita da historiografia, o modelo

    da guerra e o da batalha 5, uma vez que se deve verificar a inteligibilidade das lutas, das

    estratgias e das tticas para uma abordagem de um episdio poltico-religioso, como no caso

    em tela.

    Sendo, pois, plaus vel uma abordagem que se constitua para alm de uma

    reduo da histria a determinados eventos e a determinados modelos estabelecidos pela

    lngua, est posta a primeira suspeita, que se baseia no aspecto belicoso da histria pelo

    confronto das redes de poder no seu interior. Dessa forma, poder e experincia religiosa

    parecem estabelecer uma importante relao, fazendo do modelo de governabilidade

    congregacional um grande campo de batalhas, de onde a histria se pronuncia pela narrativa

    dos sujeitos que promoveram seus embates.

    4 FOUCAULT, Michel. Poder - corpo. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfsica do Poder, p. 151. 5 FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfsica do Poder, p. 5.

  • 16

    H uma segunda suspeita, a saber, a de que cada sujeito religioso agiu, com

    base na legitimao do poder a partir das experincias religiosas, inscrevendo-se por uma

    opo de favorecimento numa rede de poder, pela qual se tornava promotor de embates com

    outras redes opositoras no processo histrico do perodo de atuao do Movimento de

    Renovao Espiritual.

    Com base nessa suspeita, parece ter ocorrido um desencadeamento de aes

    que demonstram a formulao de um fundamentalismo religioso por parte do Movimento de

    Renovao Espiritual e de alguns sujeitos religiosos opositores ao mencionado Movimento.

    Desse modo, parece haver relaes de poder a partir de onde os sujeitos religiosos se

    posicionaram, pois se torna deveras importante a observncia do lugar vivencial onde as

    batalhas se deram. Os eventos ocorridos, os quais sero tratados nesse texto, so singulares na

    histria dos batistas no Brasil e precisam ser notados, bem como distinguidos em suas

    especificidades e em suas redes de poder.

    A terceira suspeita que se elabora neste ensejo requer um trabalho acurado,

    pois pensa-se que, possivelmente, atravs da formao da Comisso dos 13, que se verificar

    no terceiro captulo, houve um avano na tecnologia do poder exercido no mbito da

    Conveno Batista Brasileira. Entretanto, depois do desenvolvimento de um processo de

    vigilncia, parece ter havido um retrocesso muito similar s aes inquisitrias, como se ver.

    No puniu-se num primeiro momento, mas puniu-se depois do trabalho da Comisso dos 13, o

    que implica as mencionadas aes inquisitrias por parte da denominao ou a insistncia do

    Movimento de Renovao Espiritual a fim de provocar de forma premeditada um cisma

    pentecostal em uma denominao histrica.

    Props-se, pois, uma estrutura de captulos em que se viabilizou um

    observatrio poltico-religioso que, como se mencionou, objetiva evidenciar os confrontos no

    seio da Conveno Batista Brasileira no perodo outrora aludido. Quer, desse modo, fornecer

    uma leitura terica que contemple o locus altamente belicista, as experincias religiosas de

    xtases e os embates mais decisivos em mbito denominaciona l.

    Assim, na estrutura dos captulos, se conceder a amostragem de um

    trabalho, ainda que sucinto e limitado, que objetiva a constituio de instrumentos para a

    anlise do poder e da experincia religiosa que se formulou no interior da Conveno Batista

    Brasileira. Contudo, lana-se um olhar ao sistema guerra-represso, bem como sobre a

    sistemtica da vigilncia e da punio, que parecem ter proporcionado uma prtica, no

  • 17

    interior de uma pseudo-paz, de uma relao perptua de fora. Portanto, possvel que se

    veja no decurso dos captulos uma constante reflexo acerca da luta e da submisso. 6

    Desse modo, no primeiro captulo, que trata de Um perodo de

    efervescncia e o Movimento de Renovao Espiritual, constatar-se- uma grande

    mobilidade poltico-religiosa por meio da breve narrativa do contexto poltico do Brasil e

    tambm da efervescncia do pentecostalismo no Pas. Tambm se verificar um lugar

    altamente fragmentrio para o protestantismo no Brasil, inclusive por sua diversificao, por

    suas ramificaes e por sua pluralidade, arriscando-se numa tipologia e a partir de suas razes

    histricas.

    Nesse captulo se demonstrar a insuficincia do tratamento do

    pentecostalismo no Brasil atravs da idia de ondas, porquanto se quer evidenciar que, luz

    dessa concepo, h uma falta de lugar histrico para o Movimento de Renovao Espiritual.

    Porm, lanando-se a fragmentariedade poltico-religiosa e a formao contextual das

    concepes religiosas e dos movimentos pentecostais, especialmente no perodo de 1950 e 60,

    quer-se oferecer demonstrao um locus blico para a atuao do Movimento de Renovao

    Espiritual no seio da Conveno Batista Brasileira.

    Ainda no primeiro captulo, ser possvel constatar uma narrativa da

    influncia carismtica da missionria Rosalee Mills Appleby, que forneceu bases para o incio

    do Movimento de Renovao Espiritual, o que se far tratando-a como algum que vivenciou

    experincias religiosas fundantes, as quais se reproduziram nas experincias religiosas de

    importantes lderes batistas no Brasil.

    A abordagem que se propor no segundo captulo refere-se a uma

    experincia fundante ocorrida na biblioteca do Seminrio Teolgico Batista do Sul do Brasil,

    no Estado do Rio de Janeiro. Quer-se demonstrar, no aludido captulo, as experincias

    religiosas de Jos Rego do Nascimento e Enas Tognini, as quais foram determinantes para

    episdios extticos ocorridos na mencionada instituio teolgica e na denominao batista.

    Rego, quando pastoreava a Igreja Batista da Lagoinha, foi convidado para

    fazer uma srie de explanaes aos alunos do Seminrio Teolgico Batista do Sul do Brasil

    acerca do despertamento espiritual. As palestras tiveram a durao de uma semana e, aps

    suas ministraes, algo inusitado ocorreu e marcou a experincia do Movimento de

    Renovao Espiritual. Assim, se reconstituir tal experincia denotando a inscrio dos

    sujeitos religiosos e redes de poder que, aparentemente, haviam partilhado de manifestaes

    6 FOUCAULT, Michel. Genealogia e poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfsica do Poder, p. 177.

  • 18

    pentecostais para a insero em determinados grupos militantes no seio da Conveno Batista

    Brasileira.

    Aludir-se-, concomitante ao exposto, uma transmutao ocorrida na

    biblioteca do Seminrio, porquanto houve a passagem de vivncias acadmicas para vivncias

    pentecostais, atravs da experincia religiosa vivenciada no interior da biblioteca, na dinmica

    de um lugar. O lugar que passou a ser praticado, na biblioteca, foi fundamental para os

    desdobramentos institucionais que contriburam para a formao das redes de poder no

    interior da Conveno Batista Brasileira. Aps experincias de xtases de Rego e dos

    seminaristas da mencionada instituio teolgica, a belicosidade instaurou-se devido

    autenticao e adeso de lderes s redes de poder no interior da trama denominacional. Aps

    tais vivncias pentecostais, foram inmeras as expresses de represso por parte da religio

    oficial, no caso, de lderes influentes no mbito da Conveno Batista Brasileira.

    Acerca do terceiro captulo, alegar-se- um desenvolvimento na vigilncia

    criada no interior da denominao batista atravs da Comisso dos 13, dispositivo armado na

    44 Assemblia da Conveno Batista Brasileira, ocorrida em 1962. Aps o cisma da

    Conveno Batista Mineira, houve uma intensificao nos discursos e na propaganda do

    Movimento de Renovao Espiritual. Entretanto, na referida Assemblia da Conveno

    Batista Brasileira, criou-se uma forma de vigiar sem punir, porm puniu-se aps a vigilncia,

    fenmeno que se quer avaliar no dilogo entre as teorias de Foucault e Certeau.

    Tratar-se-, de igual forma, sobre os embates fiscalizadores travados nas

    mltiplas redes de poder no seio da Conveno Batista Brasileira, pois a doutrina do Esprito

    Santo, principalmente no que tange aos conflitos acerca do batismo no Esprito Santo, trouxe

    desequilbrio denominacional, o que ser suscitado do terceiro captulo. A Comisso dos 13

    ofereceu alguns pareceres em Assemblias denominacionais, o que fora decisivo para os

    embates e o cisma na denominao batista.

    No quarto captulo abordar-se- o desenvolvimento poltico-religioso de um

    fundamentalismo no Movimento de Renovao Espiritual, pois se verifica determinado

    desencadeamento de um anticomunismo por parte de Tognini e seus liderados. A imagem de

    Joo Goulart, formada pelos veculos de comunicao no incio da dcada de 1960, afetou,

    inclusive, o pensamento de importantes lderes denominacionais e motivou aes poltico-

    religiosas por parte do Movimento de Renovao Espiritual.

    Ainda na perspectiva do belicismo denominacional e das experincias

    religiosas promovidas no seio da denominao batista, houve embates contundentes entre

    Rubens Lopes, Presidente da Conveno Batista Brasileira, e Enas Tognini, um dos

  • 19

    proeminentes lderes do Movimento de Renovao Espiritual. Portanto, encontram-se no

    escopo do captulo as contendas poltico-religiosas, tanto entre dois importantes lderes

    religiosos, como tambm entre pastores e os movimentos polticos do Brasil.

  • 20

    1. Um perodo de efervescncia e o Movimento de Renovao Espiritual

    1.1. Um locus de transformaes poltico-religiosas e de efervescncia

    Com Lauri Emilio Wirth, pode-se considerar que h determinado interesse

    acadmico pela constituio da religio a partir de um sitz im leben, a saber, de lugares

    vivenciais que servem para a constituio de sujeitos vivenciais, os quais denotam, portanto,

    traos que evidenciam a possibilidade de um encontro experiencial na vida do sujeito

    religioso7. Com base no exposto, observe-se as categorias de Menshing:

    A religio a experincia humana do encontro com o sagrado e de ao do homem em consonncia com o impacto produzido por esse encontro. 8

    Nesses termos, o locus existencial, a partir dos elementos da religio e da

    interao humana no bojo dos fenmenos, resultar em uma produo religiosa atravs do

    impactante encontro entre o homem e o sagrado, bem como entre o sujeito religioso e os

    elementos sagrados da religio. Contudo, tal encontro, entre o homem e o sagrado, demarcar

    mais contundentemente um campo de desconhecimento, porque os elementos que compem a

    vivncia da religio no conduzem ao conhecimento pleno do todo que sinalizam 9.

    Para Michel de Certeau, a produo do historiador deve ser considerada

    como:

    (...) a relao entre um lugar (um recrutante, um meio, um ofcio, etc.), procedimentos de anlise (uma disciplina) e a construo de um texto (uma literatura). admitir que ela faz parte da realidade de que trata, e essa realidade pode ser compreendida como atividade humana, como prtica. Nessa perspectiva, (...) a operao histrica se refere combinao de um lugar social, de prticas cientficas e de uma escrita. 10

    Assim, parece haver uma relao importante entre o lugar, os procedimentos

    de anlise e a construo de um texto. Portanto, existe algo de vivencial na produo do

    historiador que preza as observncias a partir do lugar existencial onde a produo ocorre.

    7 WIRTH, Lauri E. Novas metodologias para a Histria do Cristianismo: em busca da experincia religiosa dos sujeitos religiosos, p.23. 8 MENSCHING, G. Die Religion, p. 18. 9 Cf. VALLE, Ednio. Psicologia e Experincia Religiosa, p. 17. 10 CERTEAU, Michel. A Escrita da Histria. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 1982.

  • 21

    Desse modo, a historiografia da religio procurar verificar os encontros entre o sujeito

    religioso, na sua experincia, com a poltica do lugar que se achar em evidncia.

    Dessa maneira, fazer abordagens acerca da operao histrica, considerando

    suas implicaes, dever trazer um estabelecimento de narrativas vivenciais que, por

    conseguinte, se formaro a partir das verdades que um locus poder suscitar, tanto para o

    sujeito que pratica em dado lugar, quanto para o historiador que verifica o lugar praticado.

    Portanto, uma verdade historiogrfica absoluta foi refutada por Certeau, entretanto, a histria

    pode produzir, segundo ele, algumas verdades, as quais so influenciadas pelo presente

    dos historiadores.

    No entanto, a historiografia lidar intensamente, no somente com a histria

    factual a que se prope estudar, mas tambm, como foi dito, com o lugar reflexivo onde se

    elabora, pois ele determinante devido constituio dos sujeitos que vivenciam as tramas11.

    Assim, observar a experincia e a ao dos indivduos que compe a histria de um episdio

    religioso relevante na medida em que se concebe a histria como uma prtica do lugar do

    historiador e dos sujeitos que preenchem seus prprios lugares religiosos12. Da mesma forma,

    verifica-se a necessidade de trabalhar na conduo de idias aos lugares e de contemplar a

    viabilizao do gesto de um historiador a partir disso13.

    Hayden White afirma, no entanto, que o trabalho da historiografia parte

    integrante de uma encenao, de um teatro acadmico, que visa conceder objetividade e

    carter cientfico produo histrica 14. Porm, Certeau, mesmo entendendo as limitaes

    do trabalho historiogrfico, no o desaprovou, porque esse trabalho seria uma tarefa de

    compreender para trazer uma continuidade da produo historiogrfica. Para Certeau, como

    mencionou, no se pode falar de uma verdade, mas de diversas verdades, a saber, de

    verdades no plural, porque o historiador prope a produo de um trabalho a partir do

    presente e das preocupaes de sua realidade concreta 15. No um trabalho aleatrio, mas

    deve-se visibilizar as tenses humanas e os aspectos de subjetividade. Assim, so relevantes

    as implicaes contextuais, polticas e subjetivas que culminaram nas experincias religiosas 11 CERTEAU, Michel. A Escrita da Histria. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 1982, p. 126. 12 CERTEAU, Michel. A OperaoHistrica, p. 28. 13 CERTEAU, Michel. A Oerao Hstrica, p. 17. 14 WHITE. H. A. Rejoinder. A response to professor Chartiers four questions. Storia della Storigrafia, p. 65.

    15 CERTEAU, Michel. A Cultura no Plural, p. 224.

  • 22

    no plural, as quais se do em contextos altamente complexos, sendo, da mesma forma, plurais

    nas suas constantes remontagens a partir da apreenso de quem produzem em um locus

    determinante.

    Tal combinao de lugar social, de prticas cientficas e de uma escrita,

    concebe a operao historiogrfica proposta por Certeau. Portanto, o locus a partir de onde se

    vivencia a experincia religiosa, tambm no caso do pentecostalismo, que irrompeu a

    realidade protestante brasileira, vivenciando a experincia do Esprito Santo, define o

    procedimento e a constituio de um texto que, enquanto se forma, fo rmativo, pois inclui

    o sujeito religioso que deve ser observado tambm a partir de sua subjetividade e das

    implicaes formativas da realidade que irrompeu o seu lugar de estar.

    O florescimento do pentecostalismo na Amrica Latina se processou devido

    a uma espcie de atualizao religiosa que se visualizou numa remontagem de um

    protestantismo brasileiro, pois vincula e mescla as novas experincias vivenciais dos sujeitos

    religiosos pertencentes ao Movimento Pentecostal. Os referidos sujeitos proporcionaram uma

    mensagem de experincia religiosa que parece ter contemplado as necessidades mais atuais

    dos sujeitos que praticavam religio no contexto do protestantismo brasileiro.

    Conforme Ren Padilla, em seu El evangelio hoy, o pentecostalismo

    avanou porque, entre outros aspectos, havia um universo religioso que, atravs da

    predominncia do catolicismo, constitua um sistema de opresso que impunha normas e

    condutas sobre a grande maioria. Para esse autor, o magisterium do catolicismo

    fundamentou-se rigidamente e, a partir da busca por novos horizontes religiosos, o

    pentecostalismo foi nascente, pois deu voz a sujeitos massacrados pelo modelo econmico,

    poltico e religioso16.

    Portanto, a religio, no seu desenvolvimento poltico e vivencial, se expressa

    na constituio de experincias formativas que transformam e, como sistema simblico,

    estrutura-se com base na coerncia relacional dos seus elementos de interesses internos, os

    quais, por estabelecimento de vnculos relacionais, tambm formam uma experincia

    religiosa. As categorias de sagrado e profano, material e espiritual, eterno e temporal,

    16 PADILLA, Ren. El evangelio hoy. Buenos Aires: Certeza, 1975.

  • 23

    funcionam como alicerces sobre os quais a experincia vivida construda17 e, vez por outra,

    remontada e vivenciada.

    Por isso, pode haver diversos processos nos mais variados perodos da

    histria de um avivamento religioso. Dessa forma, nesse mesmo delineamento, verifica-se

    que os motivos polticos imbricam-se com os motivos pessoais, porquanto trata-se de uma

    histria das transformaes poltico-religiosas, quer no mbito de uma igreja local, quer no

    bojo de uma denominao e tambm, fundamentalmente, no mbito da peculiaridade da

    experincia do sujeito religioso que se v relevante na estrutura da transformao contextual

    e situacional.

    No seio do protestantismo brasileiro, verifica-se a ecloso de movimentos

    denominados pentecostais e at mesmo no seio de igrejas histricas. Esses avivamentos,

    manifestos no mbito do protestantismo histrico, propiciaram a fundao de diversas

    denominaes com nfases nas experincias religiosas marcantes para a vida do sujeito

    religioso que, atravs do aspecto fragmentrio da subjetividade, encontra-se consigo mesmo

    diante das questes ltimas da vivncia humana. Para Galindo, o pentecostalismo representa

    um protestantismo que se desinteressa da doutrina e se centra no aspecto emocional e na

    vivncia do sobrenatural, mostrando-se mais interessado nas particularidades humanas.

    Portanto, conforme o autor, os milagres, a glossolalia, as curas e os exorcismos so deveras

    importantes para a concepo desse formato de protestantismo, pois esto vinculados ao

    carter de enunciao do sagrado que se apresenta na particularidade e transformado na

    peculiaridade das concepes vivenciais 18.

    Verifica-se, ento, que a interao de elementos polticos com elementos

    vivenciais e, para se obter relevncia no sentido, com elementos sobrenaturais, forma uma

    experincia de vida, na cotidianidade, que legitima aes de transformao no cenrio

    religioso brasileiro, donde ressalta-se a importncia dos lugares praticados que se formam por

    entre os lugares caracterizados pela solidez no que tange ordem e ao posicionamento dos

    elementos contextuais. Mesmo no campo da pesquisa, Certeau faz observaes interessantes,

    pois para ele o que se acha em jogo, no estatuto da anlise e na sua relao com o objeto, a

    produo que se baseia no lugar onde ela se achou possvel, tornando o referido campo um

    observatrio bastante peculiar e expressivo. Note-se, portanto, que o campo onde a pesquisa

    17Cf. OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. A teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu, p. 179. 18 GALINDO, Florencio. O Fenmeno das Seitas Fundamentalistas, p.190 e 191.

  • 24

    se torna possvel um locus que demonstra inmeros aspectos concernentes produo, a

    qual se baseia na posio do historiador e na posio do objeto abordado. Deve-se, portanto,

    entender a histria do pentecostalismo no Brasil a partir das concepes dos lugares onde as

    tramas ocorrem. Por isso, acha-se em alta relevncia, para Michel de Certeau, a distino

    realizada entre lugar e espao, pois um dos elementos tericos mais notveis em Inveno do

    Cotidiano, do mencionado autor, o conceito acerca dos lugares e dos espaos.

    Portanto, para Certeau, um discurso, seja ele qual for, carregar consigo as

    marcas de cientificidade, num estatuto da anlise, medida que explicita as condies, as

    regras e, principalmente, as relaes de onde a produo acontece, bem como a ligao do

    aporte concedido pelo lugar com o objeto da abordagem19.

    Um lugar a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relaes de coexistncia. A se acha portanto excluda a possibilidade para duas coisas, de ocuparem o mesmo lugar. A impera a lei do prprio: os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar prprio e distinto que define. Um lugar portanto uma configurao instantnea de posies. Implica uma indicao de estabilidade. 20

    H, a partir do descrito, uma formao especfica do lugar atravs da

    especificidade dos elementos estticos que compem a realidade, conquanto tal realidade, por

    meio dos seus elementos, coexiste em si mesma e se solidifica. A realidade cotidiana e a

    realidade histrica podero ser exemplificadas nos termos desse locus humano, o qual se

    entretece com uma ordem e com o sujeito que a vivencia. Porm, trata-se um locus que

    poder sofrer alteraes no que tange s suas posies de estar existindo.

    Assim, embora os elementos sejam estticos e coexistam, aplicando uma

    noo do lugar prprio, o qual deve ser considerado para fazer uma narrativa com

    seriedade historiogrfica, h que se rememorar o conceito de um ser humano que um sujeito

    vivo, com a capacidade de interagir com a realidade, promovendo atualizaes constantes,

    no somente consoante sua prpria existncia, mas tambm referente existncia da ordem

    19 CERTEAU, Michel. A Inveno do Cotidiano, p. 110. 20 CERTEAU, Michel. A Inveno do Cotidiano, p. 201.

  • 25

    ocasionada por expressividades humanas e, portanto, tambm da religio que se pratica no

    dia-a-dia ou na dinmica institucional21.

    Um lugar estabelece uma relao fundamental pela qual se torna perceptvel

    a noo da existncia de muitas coisas ao mesmo tempo e, com isso, tambm uma ordem de

    posicionamento se forma, a saber, h uma singularidade em tudo e, ainda que no mesmo

    ambiente, a essencialidade das coisas respeitada como fator de formao do objeto ali

    presente. Desse modo, aquilo que solidifica-se na singularidade de sua existncia, fazendo

    um preenchimento especfico das noes de uma realidade.

    Sobre os espaos Certeau afirma:

    Existe espao sempre que se tomam em conta vetores de direo, quantidade de velocidade e a varivel tempo. O espao um cruzamento de mveis. de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que a se desdobram. Espao o efeito produzido pelas operaes que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflitais ou de proximidades contratuais. 22

    Portanto, acerca de um conceito solidamente fundamentado na

    funcionalidade do lugar, a saber, no dinamismo adquirido pelo referido lugar na experincia

    do sujeito, verifica-se que o espao a interao numa determinada ordem, pois, segundo

    Certeau, o espao est para o lugar como a palavra quando falada e percebida. Assim, na

    mobilidade do lugar, na concepo da noo de espao, em certa movimentao, acha-se um

    lugar praticado, que melhor caracteriza o espao movimentado por um operador

    vivencial de realidades23.

    Em suma, o espao um lugar praticado. Assim, a rua geometricamente definida por um urbanismo transformada em espao pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura o espao produzido pela prtica do lugar constitudo por um sistema de signos um escrito. 24

    21 WIRTH, Lauri E. Novas metodologias para a Histria do Cristianismo: em busca da experincia religiosa dos sujeitos religiosos, p.29. 22 CERTEAU, Michel. A Inveno do Cotidiano, p. 202. 23 CERTEAU, Michel. A Inveno do Cotidiano. Petrpolis: Vozes, 1996, p. 202. 24 CERTEAU, Michel. A Inveno do Cotidiano. Petrpolis: Vozes, 1996, p. 202.

  • 26

    Com Certeau, pode-se dizer que as polticas dos lugares acham-se

    subjacentes s estratgias que se formam devido especificidade de cada mencionado lugar

    e, da mesma maneira, h determinados vnculos dessas prticas com o lugar prprio de um

    princpio coletivo na gesto referente a uma famlia ou a um determinado grupo25. Dessa

    maneira, a ao decorrente de um lugar a agitao dessa ordem pelo processo histrico, do

    qual o sujeito jamais poder ser alijado por ser fundamental, no na sua perpetuao, mas na

    transformao a partir da concepo dos espaos.

    O cotidiano, pela subjetividade da experincia do sujeito religioso, deve

    fornecer, pela noo dos espaos, que so lugares praticados, um locus do indivduo que

    produz sua experincia visando legitimao das atitudes de poder, pois o lugar determina

    em muito as estratgias e as tticas de uma religio que, s vezes, praticada de forma no

    oficial sob os desdobramentos do espao.

    Para os exames das prticas do dia-a-dia que articulam essa experincia, a

    oposio entre lugar e espao gera duas espcies de determinaes, a saber, uma

    definida pela fixidez de objetos reduzveis ao estar-a de um morto, pois, para Certeau, um

    corpo inerte parece sempre, no Ocidente, fundar um lugar e, a partir do referido lugar, faz-se

    a imagem de um tmulo; a outra, atravs de operaes, quando atribudas a uma pedra, a

    uma rvore ou a um ser humano (a um cadver?), demonstram os espaos, os quais se

    formam pela no fixidez gerada por sujeitos histricos que articulam em sua prpria

    constituio, na ordem das coisas, e pela mutao do locus existencial26. Em suma, o espao

    a dinmica proporcionada pelas articulaes existenciais de um sujeito que concede

    mobilidade a elementos da realidade que poderiam se petrificar numa experincia contnua

    do estar-a.

    Portanto, num perodo em que algumas denominaes histricas

    estabeleceram sua fixidez, como no caso das Igrejas da Conveno Batista Brasileira, alguns

    sujeitos religiosos, que viveram intensas experincias religiosas, decidiram promover um

    avivamento, conhecido como Movimento de Renovao Espiritual ocorrido na dcada de

    1950 e 1960.

    25 CERTEAU, Michel. A Inveno do Cotidiano. Petrpolis: Vozes, 1996, p. 202. 26 CERTEAU, Michel. A Inveno do Cotidiano, p. 202 e 203.

  • 27

    Ressalta-se que, acerca do locus religioso que se transformou, pode-se dizer

    que na dcada de 1950 e de 1960, o Brasil passou por um perodo de profundas modificaes

    que, na sua maior parte, foram conseqncias das implicaes do trmino da Segunda Guerra

    Mundial. Campos considera que aps a referida guerra a situao poltica, econmica e

    cultural sofreu profundas mudanas no Brasil27.

    Neste contexto, o nacionalismo e o populismo, caractersticos no governo

    Vargas, parece ter influenciado tardiamente o surgimento de certos grupos religiosos no

    Brasil28. Exemplo clssico dessa tendncia a Igreja O Brasil para Cristo, fundada por

    Manuel de Melo, na dcada de 50, que aliou o discurso religioso aspirao pelo poder

    poltico.

    Segundo Rolim:

    Sem perder as caractersticas das crenas e prticas pentecostais, O Brasil para Cristo procurava assumir prticas sociais, atravs das eleies. Estas experincias, que se poderia chamar de poltico-religiosa, foi de curta durao, uma vez que o golpe de 1964 lhe cortou o flego. Mas teve um aspecto bem positivo. que no ficou na livre iniciativa dos crentes. E partiu da orientao dos dirigentes da Igreja. Dessa forma, foi um ramo pentecostal, criado no incio de 1950, que corajosamente tentava unir duas experincias, a religiosa e a poltica. Com a represso dos governos militares, a partir de 1964, O Brasil para Cristo se recolheu na religiosidade 29.

    Incitada por Manuel de Melo a atuar diretamente nas campanhas eleitorais, a

    Igreja O Brasil Para Cristo permaneceu atuante, inclusive, apresentando candidatos prprios,

    entre os quais alguns foram eleitos. Tal insero do pentecostalismo na poltica concedeu

    uma amostragem de que havia um ambiente bastante agitado pelo nacionalismo, a partir do

    qual a Igreja O Brasil Para Cristo exerce diversas influncias. Assim, a dcada de 1950 foi

    bastante agitada pelo referido populismo e pelas conseqncias dos ideais de Vargas30.

    Toda essa mobilidade social, cultural, econmica e poltica no foi devidamente percebida pelo protestantismo histrico, que passou a perder o

    27 CAMPOS, Leonildo Silveira. Protestantismo Histrico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximaes e Conflitos, p. 87. 28 CAMPOS, Leonildo Silveira. Protestantismo Histrico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximaes e Conflitos, p. 87. 29 ROLIM, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil: Uma Interpretao Scio-Religiosa , p. 72. 30 Getlio Vargas governou o pas em dois perodos: de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954.

  • 28

    dinamismo e a apresentar crescentes sinais de exausto (...) Aps a Segunda Guerra, o Pas, por influncia americana, entrou num processo de redemocratizao. O mundo experimentava os efeitos da guerra fria, as organizaes comunistas continuavam na clandestinidade, e os trabalhadores, dentro da camisa de fora governamental instituda no decorrer da ditadura varguista. Predominava um clima de euforia nacionalista, que se expressava na construo de siderrgicas e na estatizao da produo e distribuio do petrleo. 31

    Contudo, aps o suicdio de Getlio Vargas32, em 1954, o nacionalismo foi

    substitudo pelo otimismo de Juscelino Kubitschek e, nesse sentido, houve uma abertura no

    Brasil para a implantao de indstrias estrangeiras, com destaque para as montadoras de

    automveis e a construo de Braslia. Portanto, depois da transio do ambiente nacionalista

    para o ambiente agitado do internacionalismo, o Brasil experimentou uma efervescncia

    bastante contundente no que tange redemocratizao, retomada da industrializao, ao

    surgimento da indstria siderrgica e troca da influncia europia pela influncia norte-

    americana 33.

    O perodo da internacionalizao, por meio do fortalecimento urbano 34,

    proporcionou um contexto favorvel ao surgimento de igrejas chamadas neopentecostais,

    como a Igreja Universal do Reino de Deus que, vivenciando as experincias do momento,

    props-se com um nome bastante sugestivo no que tange sua relao com o perodo.

    Assim, nosso objeto de estudo situa-se e produto de um contexto poltico,

    econmico e religioso em profundas transformaes, no obstante a influncia das chamadas

    causas remotas, vinculadas, por exemplo, procedncia estrangeira de missionrios atuantes

    neste contexto, o que abordaremos mais adiante. Segundo Campos, a efervescncia da poca

    foi muito grande, o que repercute nos novos movimentos que rompiam com os moldes

    31 CAMPOS, Leonildo Silveira. Protestantismo Histrico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximaes e Conflitos, p. 95.

    32 No perodo do governo de Getlio Vargas, houve um esvaziamento da zona rural, a acelerao da urbanizao, a implantao de uma indstria para substituir os bens importados. Tambm houve resolues internas, a participao do Pas na Segunda Guerra e a represso dos movimentos operrios e polticos de inspirao socialista e comunista.

    33 CAMPOS, Leonildo Silveira. Protestantismo Histrico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximaes e Conflitos, p. 87. 34 CAIRNS, Earle E. O Cristianismo atravs dos sculos, p. 447.

  • 29

    tradicionais das instituies religiosas. O locus do sujeito religioso alterou-se, tambm porque

    houve um processo intenso de evoluo na comunicao, e as distncias foram reduzidas

    atravs das novas rodovias, as quais levavam a todas as regies geogrficas.

    A partir da dcada de 1950, tambm constata-se um perodo de xodo rural

    bastante contundente, motivado principalmente pela rpida industrializao do Pas.

    Entretanto, mesmo com a industrializao, no houve capacidade de aproveitar toda a mo-

    de-obra gerada pelo xodo rural35. O pentecostalismo, principalmente o da chamada segunda

    onda, terminologia utilizada por Freston e Mariano, desenvolveu-se em centros urbanos e,

    portanto, participou ativamente das transformaes histricas e religiosas daquele perodo.

    Algo bastante marcante que, a despeito do golpe poltico de 1964, o Brasil continuou seu

    crescimento, sua urbanizao e sua efervescncia poltico-religiosa. Neste contexto, o

    pentecostalismo valeu-se de elementos urbanos e da cultura no plural, incutida no sujeito que

    se urbanizou.

    A partir dos anos 60, cismas pentecostalizantes (carismticos) surgiram em todas as igrejas histricas. Contudo, estes representaram no a descida das igrejas histricas para as massas brasileiras, mas a subida e adequao do fenmeno pentecostal a novos nveis sociais. 36

    Diversos movimentos religiosos tiveram incio no Brasil e, na maioria dos

    casos, lderes religiosos marcantes tiveram experincias contundentes. Ainda que j tivessem

    sido vivenciadas por outros sujeitos, tais experinc ias foram fundantes para os movimentos

    que se puseram em curso naquele perodo.

    Harold Williams, ex-ator de filmes de faroeste e missionrio da International

    Church of the Four-Square Gospel, veio da Bolvia, chegando ao Brasil em 1946. Williams

    fundou aps cinco anos de sua vinda ao Brasil, no interior de So Paulo, uma igreja que

    pregava o avivamento. Contudo, mesmo no intento de levar uma mensagem de avivamento s

    denominaes tradicionais, no obteve xito. Por isso, juntou-se com Raymond Boatrigth na

    organizao Cruzada Nacional de Evangelizao, a qual, num primeiro momento, aderiu a

    um nacionalismo, mas posteriormente tornou-se a Igreja do Evangelho Quadrangular,

    bastante modificada. Com uma nfase na pregao atravs de recursos radiofnicos e no uso

    35 CAMPOS, Leonildo Silveira. Protestantismo Histrico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximaes e Conflitos, p. 87. 36 FRESTON, Paul. Protestantes e Poltica no Brasil: da Constituinte ao Impeachment, p. 264.

  • 30

    abundante do espao pblico, a Igreja do Evangelho Quadrangular pregou de forma popular,

    falando, sobretudo acerca da cura divina, da soluo dos problemas gerais e das aflies

    internas dos sujeitos religiosos37. Grande parte da liderana da referida igreja era feminina e,

    por isso, tambm se estabeleceram certos vnculos com as demais mulheres que compunham

    a comunidade e que queriam se fazer ouvidas.

    Tendo uma passagem pela Assemblia de Deus e, posteriormente, pela

    Igreja do Evangelho Quadrangular, Manuel de Melo intitulou-se missionrio. Fundou, em

    1956, a Igreja de Jesus Betel, que, posteriormente, teve seu nome mudado para O Brasil para

    Cristo. Segundo Campos, como se mencionou, o nome da Igreja fundada por Manuel de

    Melo, refletia a situao poltica do nacionalismo da dcada de 195038. O lder em questo foi

    o primeiro brasileiro a fundar uma igreja pentecostal. Ele realizava reunies de milagres em

    praas pblicas e em estdios de futebol, e falava num programa de rdio chamado A Voz

    do Brasil para Cristo, que permaneceu no ar durante muito tempo. Composta, na sua maior

    parte, por migrantes nordestinos, resultado da urbanizao e da industrializao, a Igreja O

    Brasil para Cristo fortaleceu-se e, atravs de seu principal lder, um templo para dez mil

    pessoas foi inaugurado prximo regio central de So Paulo. Conforme Campos, depois do

    processo de institucionalizao e de rotinizao do carisma, nos anos 70 e 80, o carisma

    pessoal de Melo no subsistiu, permanecendo com as corriqueiras atuaes39.

    A Igreja Pentecostal Deus Amor teve incio no bairro operrio de Vila

    Maria e, depois de algum tempo, transferiu-se para a regio central da cidade de So Paulo e,

    em 1970 inaugurou sua sede, na Rua Conde de Sarzedas. O fundador da referida igreja foi

    Davi Martins de Miranda, que veio do interior do Estado do Paran em 1961, aos 26 anos de

    idade. Miranda, depois de 10 anos, comprou uma fbrica desativada nas proximidades da

    Praa da S, a qual, aps os devidos reparos, se tornou a Sede Mundial da Igreja

    Pentecostal Deus Amor. As inmeras concentraes de f so realizadas no mencionado

    37 CAMPOS, Leonildo Silveira. Protestantismo Histrico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximaes e Conflitos, p. 88. 38 CAMPOS, Leonildo Silveira. Protestantismo Histrico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximaes e Conflitos, p. 88. 39 CAMPOS, Leonildo Silveira. Protestantismo His trico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximaes e Conflitos, p. 88 e 89.

  • 31

    lugar e, alm disso, h grandes estdios de rdio nas dependncias da Igreja. O grande tema

    que perpassa o discurso da Igreja fundada por Miranda a cura divina40.

    Durante o perodo da dcada de 1950 e 1960, houve uma grande

    efervescncia no pentecostalismo, de tal forma que inmeras denominaes foram formadas.

    Contudo, consoante ao perodo, no se pode ignorar a presena do Movimento de Renovao

    Espiritual no Brasil, o qual no achou lugar na conceituao a respeito do pentecostalismo

    entendido pela idia de ondas. Nessa segunda gerao de pentecostalismo, surgiram

    algumas denominaes advindas de cismas em denominaes histricas: Congregacional

    Independente (1965), Metodista Wesleyana (1967), Batista de Renovao (1970),

    Presbiteriana Renovada (1972) e as igrejas autnomas oriundas da fragmentao

    pentecostal41.

    necessrio que se observe a insero do pentecostalismo tambm no

    mbito do protestantismo histrico no Brasil, conquanto essa verificao se far importante

    para entender o perodo marcado por muitos embates e seus conseqentes cismas

    denominacionais. Algumas igrejas, representantes do protestantismo histrico brasileiro,

    enquanto lugares confortavelmente repletos de fixidez, experimentaram o dinamismo da

    insero pentecostal atravs do Movimento de Renovao Espiritual, tornando-se lugares

    praticados na configurao da mobilidade dos espaos denominacionais.

    1.2. O locus fragmentrio do protestantismo no Brasil: Uma grande miscelnea

    Alguns pesquisadores, como Emilio Willems 42 e mile Lonard43,

    distinguiam o protestantismo brasileiro simplesmente como histricos e pentecostais.

    Porquanto, a princpio, a religio protestante no Brasil no se apresentava com aspectos de

    exacerbadas fragmentaes.

    Fazendo, pois, distino entre igrejas e seitas, alguns pesquisadores

    continuaram trilhando os caminhos a partir das diretrizes de Willems e Lonard. Para

    40 CAMPOS, Leonildo Silveira. Protestantismo Histrico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximaes e Conflitos, p. 89. 41 CAMPOS, Leonildo Silveira. Protestantismo Histrico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximaes e Conflitos, p. 90. 42 Pesquisador alemo que viveu no Brasil entre os anos de 1936 e 1949. 43 Protestante francs que ministrou aulas na Universidade de So Paulo na dcada de 1950.

  • 32

    pesquisadores como Beatriz Muniz de Souza e Cndido Procpio Ferreira de Camargo 44, as

    chamadas seitas so as igrejas pentecostais e, as chamadas igrejas dizem respeito ao

    mencionado protestantismo histrico.

    H de se enfatizar, no entanto, que os referidos autores no proporcionaram

    contribuies para os momentos posteriores aos do final da primeira dcada do sculo XX. O

    protestantismo, para alm da singularidade, apresentando-se como fragmentrio, revela,

    portanto, que inmeras expresses litrgicas e afirmaes doutrinrias tornaram-se possveis

    nos momentos subseqentes aos da primeira dcada do sculo XX.

    Mesmo antes dos anos 80, por causa da influncia de uma sociologia da

    religio norte-americana, falava-se de neopentecostalismo e de movimento carismtico,

    entretanto, foi a partir da dcada de 1980 que as classificaes que diziam respeito ao

    protestantismo foram mais bem elaboradas. Tal elaborao ocorreu devido a inmeras

    mudanas constatadas, devido a muitas fragmentaes verificadas e s influncias

    pentecostais no bojo da existncia das denominaes protestantes chamadas histricas.

    Houve uma abrangncia maior na classificao realizada por Mendona45,

    porquanto, na primeira etapa constata-se as ramificaes da Reforma no Brasil atravs das

    famlias de igrejas, mencionando as denominaes oriundas do protestantismo de misses e

    do protestantismo de imigrao, assim como tambm os chamados histricos e pentecostais:

    1. Anglicanos

    1.1. Anglicanos propriamente ditos, advindos dos ingleses

    e seus descendentes

    1.2. Episcopais, oriundos dos norte-americanos

    1.3. Metodistas, de origem do sul dos Estados Unidos

    2. Luteranos

    2.1 Luteranos vinculados Alemanha, com destaque para

    IECLB alemes e descendentes

    2.2 Luteranos ligados aos Estados Unidos, como o Snodo

    de Missouri alemes e seus descendentes IELB

    3. Reformados

    44 Os mencionados autores estudaram a problemtica da anomia em zonas urbanas, pois pretenderam verificar o papel do pentecostalismo no ajustamento dos migrantes advindos das zonas rurais, o que se configurava como um aumento do pentecostalismo nos grandes centros urbanos. 45 MENDONA, Antonio Gouva. Um panorama do protestantismo brasileiro atual. In: Sinais dos Tempos: Tradies Religiosas no Brasil, p. 34-44.

  • 33

    3.1. Presbiterianos, advindos das misses norte-

    americanas

    3.2. Congregacionais, oriundos das misses inglesas,

    norte-americanas e outras

    3.3. Reformados Europeus, que so igrejas de colnias,

    como as dos holandeses, hngaros, franceses, etc.

    4. Paralelas Reforma

    4.1. Batistas, oriundos das misses do sul dos Estados

    Unidos

    4.2. Menonitas, advindos de misses norte-americanas e

    alems

    5. Pentecostais

    5.1. Propriamente ditos ou clssicos

    5.1.1. Assemblia de Deus

    5.1.2. Congregao Crist no Brasil

    5.1.3. Cruzada Nacional de Evangelizao, ou Igreja do

    Evangelho Quadrangular

    5.1.4. O Brasil Para Cristo

    5.2. Cura Divina

    5.2.1. Deus Amor

    5.2.2. Inmeras outras

    A classificao de Mendona, acima descrita, demonstra-se eficaz. Contudo,

    segundo Freston, embora seja abrangente no seu intento de cobrir as ramificaes da Reforma

    Protestante no Brasil, tal classificao alija a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e as

    igrejas que vieram a existir a partir do movimento carismtico, a que chama igrejas

    carismticas46.

    H uma diviso, realizada por Mendona, acerca de dois grupos, no que

    tange ao pentecostalismo. Num dos grupos, composto por igrejas pentecostais chamadas

    clssicas, so mencionadas, a partir de movimentos na dcada de 1910 e 1911, as igrejas:

    Congregao Crist no Brasil e Assemblia de Deus. Constata-se, atravs das classificaes

    de Mendona, que nos anos 50 surgiram a Cruzada Nacional de Evangelizao ou Igreja do

    46 possvel que Mendona no tenha mencionado a Igreja Universal do Reino de Deus porque, naquele perodo, em 1987, a Igreja tinha apenas 10 anos existncia.

  • 34

    Evangelho Quadrangular e O Brasil Para Cristo. Noutro grupo, denominado como agncias

    de cura divina, Mendona inclui a Igreja Pentecostal Deus Amor, na dcada de 1960 e,

    assim tambm, inmeras outras que irromperam a realidade protestante.

    O critrio utilizado por Mendona para a classificao dos grupos

    pentecostais parece ser vinculado doutrina e no ao perodo histrico, porquanto igrejas que

    surgiram em perodos diferentes receberam a designao de clssicas, enquanto outras,

    cronologicamente mais aproximadas, foram denominadas como sendo de cura divina.

    Mariano menciona o fato de que Mendona refere-se ao pentecostalismo de

    cura divina, ao neopentecostalismo e ao pentecostalismo autnomo como sendo sinnimos,

    no entanto, lana mo novamente e conceitualmente do neopentecostalismo em suas

    abordagens, mas sem abandonar os outros dois47.

    Mendona identifica, contudo, que a agncia de cura divina uma

    terminologia utilizada para denotar grupos com formatos parecidos com os de igreja, mas que

    no tm corpo de fiis fixos, contudo, uma populao flutuante qual prestam servios

    religiosos mediante uma contribuio por parte do beneficirio 48.

    Numa outra etapa, Mendona apresenta um segundo quadro com os

    membros das famlias de algumas igrejas da Reforma, as quais foram frutos de dissidncias

    nos pases de origem e no Brasil 49:

    1. Metodista (igrejas de santidade)

    1.1. Igreja Metodista

    1.2. Igreja Metodista Livre

    1.3. Igreja Evanglica Holiness do Brasil

    1.4. Irmandade Metodista Ortodoxa

    1.5. Igreja do Nazareno

    2. Presbiteriana (igrejas da Reforma calvinista)

    2.1. Igreja Presbiteriana do Brasil

    2.2. Igreja Presbiteriana Independente

    2.3. Igreja Presbiteriana Conservadora

    2.4. Igreja Presbiteriana Fundamentalista 47 MARIANO, Ricardo. Neopentecostalismo: os pentecostais esto mudando, p. 19. 48 MENDONA, Antonio Gouva. Um Panorama do Protestantismo Brasileiro Atual. In: Sinais dos Tempos: Tradies Religiosas no Brasil, p. 72. 49 MENDONA, Antonio Gouva. Um Panorama do Protestantismo Brasileiro Atual. In: Sinais dos Tempos: Tradies Religiosas no Brasil, p. 46.

  • 35

    2.5. Igrejas reformadas de colnias holandesas,

    hngaras, etc.

    3. Batista (igrejas de volta ao cristianismo

    primitivo)

    3.1. Igreja Batista Brasileira

    3.2. Igreja Batista Restrita

    3.3. Misso Batista da F

    3.4. Igreja Crist Batista Bblica

    3.5. Igreja Batista Revelao

    3.6. Menonita

    Como se verificou, h o intento por parte do autor de relacionar igrejas

    oriundas de dissidncias ou que tm carter cismtico, segundo as origens de cada uma. Nesse

    aspecto, h diversas dissidncias de igrejas metodistas, presbiterianas e batistas, porquanto,

    segundo Mendona, elas possuem uma formao a partir das diversas divises que se pode

    constatar, mesmo ao longe de suas histrias.

    Mas, na terceira etapa, a partir de igrejas advindas do Movimento de

    Renovao Espiritual, tambm mencionadas por Freston como sendo igrejas carismticas,

    as quais, em parte so localizadas, segundo Mendona, no quadro que se segue 50:

    1. Pentecostais Clssicos

    1.1. Assemblias de Deus (batistas)

    1.2. Congregao Crist no Brasil (presbiterianos)

    2. Pentecostais Recentes

    2.1. Batista Independente (batistas)

    2.2. Metodista Wesleyana (metodista)

    2.3. Presbiteriana Renovada (presbiteriana)

    2.4. Assemblia de Deus Presbiteriana

    (presbiteriana)

    50 MENDONA, Antonio Gouva. Um Panorama do Protestantismo Brasileiro Atual. In: Sinais dos Tempos: Tradies Religiosas no Brasil, p. 47.

  • 36

    Embora as denominaes pentecostais chamadas de desviantes da

    reforma, sejam verdadeiramente protestantes, existe, nesse sentido, uma tenso bastante

    intensa:

    No h nenhuma dvida de que as molduras eclesisticas e teolgicas dos pentecostais so protestantes. No entanto, nem os protestantes histricos esto dispostos a admiti-los como membros da famlia nem os pentecostais se identificam com os protestantes. 51

    H uma tentativa de demonstrar que, mesmo com inmeras classificaes

    realizadas para constatar a atuao pentecostal, verifica-se que a realidade pentecostal

    brasileira muito fracionada. Jos Bittencourt Filho 52 apresentou em 1991, atravs do CEDI,

    uma tipologia na qual so utilizados os critrios temporais, doutrinrios e tambm os de

    transplante (misso e imigrao). A tipologia proposta por Bittencourt reformulou-se em

    1994, ganhando outro formato.

    Para Bittencourt, o Pentecostalismo Clssico abrange as igrejas: Assemblia

    de Deus, Igreja Pentecostal, Igreja de Deus, Congregao Crist no Brasil e a Igreja do

    Evangelho Quadrangular. Ainda, para o mesmo autor, o Pentecostalismo Autnomo refere-se

    s seguintes igrejas: O Brasil para Cristo, Deus Amor, Casa da Bno, Nova Vida, Igreja

    Universal do Reino de Deus e a Igreja Cristo Vive. Existe, porm, o conceito de

    nodenominacionalismo, que se encontra na tipologia de Bittencourt, compreendendo as

    igrejas: Batista de Renovao, Igreja Metodista Wesleyana, Igreja Crist Presbiteriana,

    Comunidade Evanglica, Igreja Renascer em Cristo e as inmeras Comunidades Autnomas.

    Se, no caso da tipologia de Mendona, verifica-se um campo fragmentrio,

    esse aspecto fica mais claro quando se lana mo da tipologia de Bittencourt, pois atualmente

    o pentecostalismo tornou-se uma srie de desdobramentos que no poderiam ser

    completamente mencionados.

    Com isso, procurando visibilizar o campo da pluralidade protestante e

    buscando bases para anlises missiolgicas a partir do contexto no qual se fazem misses,

    Arajo prope uma classificao do pentecostalismo brasileiro53:

    51 MENDONA, Antonio Gouva. Um Panorama do Protestantismo Brasileiro Atual. In: Sinais dos Tempos: Tradies Religiosas no Brasil, p. 45. 52 Jos Bittencourt Filho pastor da Igreja Presbiteriana Unida, porm oriundo do mbito das Igrejas Batistas Renovadas. 53 ARAJO, Stepheson S. A Manipulao no Processo da Evangelizao, p. 54 a 57.

  • 37

    1. Pentecostais Histricos Assemblia de Deus e Congregao Crist no

    Brasil;

    2. Neopentecostais Igreja Pentecostal Deus Amor, Igreja Pentecostal O

    Brasil para Cristo e Igreja do Evangelho Quadrangular;

    3. Renovados ou Carismticos Igreja Batista Nacional, Igreja Presbiteriana

    Renovada do Brasil, Igreja Crist Maranata e Igreja Metodista Wesleyana;

    4. Novos Carismticos Igreja da Restaurao, Igreja Tabernculo

    Evanglico de Jesus, Casa da Bno, Igreja Pentecostal de Nova Vida, Igreja Universal do

    Reino de Deus, Igreja Pentecostal Unida, Igreja Evanglica Pentecostal, Igreja Internacional

    da Graa de Deus, Igreja Evanglica Embaixadores de Cristo, Igreja Crist Evanglica, Igreja

    Betesda, Igreja Pentecostal Missionria da Arca, Igreja Evanglica Povo de Deus, Igreja do

    Nazareno, Comunidade Evanglica, Igreja Evanglica gape, Igreja Evanglica Cristo

    Ressurreto, etc.

    Para Stepheson S. Arajo, o pentecostalismo, de uma forma geral, tem

    caractersticas temporais-doutrinrias, porquanto no possvel fazer uma tipologia

    excludente, que observa o aspecto doutrinrio e alija o aspecto temporal.

    Destarte, o autor prefere o termo histrico a clssico para classificar o

    pentecostalismo da dcada de 1910. Arajo identifica, portanto, que o pentecostalismo da

    dcada mencionada caracterizado da seguinte forma54:

    1. Crena no batismo com o Esprito Santo como segunda bno;

    2. Ascetismo e sectarismo caracterizados pelo extremo rigor nos usos e

    costumes e constante risco de perda da salvao;

    3. nfase nas experincias individuais;

    4. Escatologia pr-milenista e pr-tribulacionista.

    Para denominaes constitudas a partir da dcada de 1950, Arajo aplica o

    termo neopentecostais, que apropriado para designar grupos advindos dos pentecostais

    histricos. Segundo Arajo, os neopentecostais mantiveram as caractersticas dos

    pentecostais histricos, entretanto, houve algumas alteraes55.

    Acrscimo e decrscimo de algumas caractersticas como as seguintes: o dom de curas e o dom de

    54 ARAJO, Stepheson S. A Manipulao no Processo da Evangelizao, p. 54. 55 ARAJO, Stepheson S. A Manipulao no Processo da Evangelizao, p. 55.

  • 38

    revelaes as divinas revelaes tambm so evidncias do batismo com o Esprito Santo e no apenas o dom de lnguas. 56

    No que tange aos conceitos de Arajo, os renovados, ou carismticos,

    constituram grupos denominacionais que so dissidnc ias das denominaes histricas na

    dcada de 1960. As caractersticas bsicas que identificam os grupos renovados so:

    1. Teologia fundamentalista baseada em doutrinas provenientes da Bblia;

    2. Batismo com o Esprito Santo como segunda bno o dom de lnguas

    s vezes evidncia da presena do mencionado batismo;

    3. Escatologia pr-milenista e pr-tribulacionista;

    4. Ascetismo caracterizado pela busca constante de santificao, mas sem o

    risco de perda da salvao por causa da no-observncia dos usos e costumes;

    5. nfases nas experincias individuais.

    1.3. Um locus oscilante no vaivm das ondas: uma antidisciplina pentecostal

    O socilogo Paul Freston introduziu, no estudo do pentecostalismo, em sua

    tese de doutorado intitulada Protestantes e Poltica no Brasil: da Constituinte ao

    impeachment, o conceito de ondas e, a partir disso, objetivou um estudo acerca da histria

    do pentecostalismo no Brasil. Freston observou que h trs ondas de implantao de igrejas

    pentecostais no Brasil; entretanto, para que fosse possvel essa abordagem, ele partiu da

    proposta de Martin, o qual identifica o protestantismo em trs ondas de dissidncia57, a saber,

    a calvinista, a metodista e a pentecostal.

    Segundo Freston:

    A primeira onda a dcada de 1910, com a chegada da Congregao Crist (1910) e da Assemblia de Deus (1911). Estas duas igrejas tm o campo para si durante 40 anos, pois suas rivais so inexpressivas. (...) A segunda onda pentecostal dos anos 50 e incio de 60, na qual o campo pentecostal se fragmenta, (...) e trs grandes grupos (em meio a dezenas de menores)

    56 ARAJO, Stepheson S. A Manipulao no Processo da Evangelizao, p. 55. 57 MARTIN, David. Tongues of Fire: The Explosion of Protestantism in Latin Amrica, p. 9 a 11.

  • 39

    surgem: a Quadrangular (1951), Brasil para Cristo (1955) e Deus Amor (1962). (...) A terceira onda comea no final dos anos 70 e ganha fora nos anos 80. Suas principais representante so a Igreja Universal do Reino de Deus (1977) e a igreja Internacional da Graa de Deus (1980). 58

    A cada onda descrita por Freston, verifica-se, segundo o prprio autor, que

    existe um contexto especfico para a sua existncia enquanto momento histrico, a saber, um

    locus especfico por entre um mbito fragmentrio. A primeira onda, com a Congregao

    Crist no Brasil e com a Assemblia de Deus, proporcionada atravs do momento em que,

    mundialmente, o movimento pentecostal se expandiu e se alastrou. A solidificao da

    Assemblia de Deus no nordeste foi culminante num sucesso pentecostal posterior, porquanto

    trata-se de uma regio de fluxo migratrio. A segunda onda, que ocorreu, na sua maior parte

    no seio do Estado de So Paulo, coincidiu com o momento histrico da urbanizao e da

    formao de uma sociedade de massas, na dcada de 1950. Tal perodo histrico facilitou a

    divulgao dos modelos existentes, sob a influncia direta da Igreja do Evangelho

    Quadrangular, que propunha diferenciados mtodos de evangelizao. A terceira onda, que

    ocorreu, na sua maior parte, no Estado do Rio de Janeiro, utilizou-se da economia decadente,

    da violncia, do jogo do bicho e da poltica populista para as formulaes de uma nova

    teologia, de uma nova liturgia, de uma nova esttica e de um novo mbito evanglico. As

    igrejas da terceira onda, que surgiram na dcada de 1970 e se fortaleceram na dcada de

    1980, foram beneficiadas pela modernizao da comunicao e da expanso do setor

    urbano59. Essa onda teve o seu incio com a Igreja Universal do Reino de Deus e com a Igreja

    Internacional da Graa de Deus, as quais foram fortes propagadoras do neopentecostalismo

    nascente.

    A conceituao de Freston a respeito das ondas faz-se entender numa idia

    de periodizao, no entanto, olhada na perspectiva das experincias religiosas histricas.

    Verifica-se que h bastante mobilidade naquele perodo, porquanto o pentecostalismo

    altamente criativo e verstil. Contudo, uma onda que se desmancha e se dilui no pode

    descrever a solidificao no Brasilda Assemblia de Deus, que se tornou a maior

    denominao pentecostal brasileira, mas pode enfatizar claramente aspectos da no-fixidez

    do pentecostalismo.

    58 FRESTON, Paul. Protestantes e Poltica no Brasil: da Constituinte ao Impeachment, p. 66. 59 FRESTON, Paul. Protestantes e Poltica no Brasil: da Constituinte ao Impeachment, p. 66.

  • 40

    H tambm um grande vcuo na conceituao do pentecostalismo quando se

    trata do Movimento Pentecostal baseado na idia das ondas, porquanto Freston no descreveu

    as igrejas do Movimento de Renovao Espiritual constitudas na dcada de 1960, e

    tampouco narrou acerca das comunidades crists que surgiram na dcada de 1980. Em sua

    tese, Freston dedicou um captulo ao qual chama de carismatismo brasileiro de classe

    mdia, e, nesse intento, dividiu-o em Renovao Carismtica Protestante e

    Comunidades Carismticas, porm, mesmo assim, o autor deixa de situar as igrejas que

    fazem parte desses carismatismos na tipologia edificada a partir da idia referente s

    ondas.

    Pode-se dizer que h uma grande dificuldade de classificao de um

    movimento religioso brasileiro atribuindo- lhe um rtulo que aplicado no exterior. H

    semelhanas entre o Movimento Carismtico Americano e o Movimento de Renovao

    Espiritual ocorrido no Brasil. No entanto, o lugar onde esses pentecostalismos ocorreram so

    distintos. Uma tarefa difcil escolher outra terminologia para designar o movimento

    brasileiro, pois o termo carismatismo mais apropriado para o protestantismo estrangeiro e,

    no estando no linguajar dos pregadores da Renovao, no reflete seus ideais de

    reconstituio das denominaes histricas em formato de expresses pentecostais.

    Mariano, lanando mo da tipologia de Freston, intentou nomear cada uma

    das ondas, mesmo tendo repetido as igrejas relacionadas por Freston, que compunham a

    primeira e a segunda onda. Para a primeira manteve o nome de clssicas, contudo, no que

    tange segunda, classificou-as como neoclssicas 60.

    O modelo da conceituao atravs das ondas de pentecostalismo um

    emaranhado conceitual pertencente a uma tipologia utilizada para explicar a realidade de um

    protestantismo aos moldes anglo-saxes e no aos moldes brasileiros. H uma tentativa

    vlida de adaptao de tal tipologia; entretanto, somente a primeira onda do pentecostalismo

    brasileiro coincide com a do pentecostalismo americano, no que se refere aos aspectos

    doutrinrio e temporal.

    A segunda onda do pentecostalismo brasileiro, embora coincida

    temporalmente com a segunda onda do pentecostalismo americano, insinua-se de forma

    diferenciada, pois nos Estados Unidos, em boa parte das experincias, o dom de lnguas no

    a evidncia do batismo no Esprito Santo e os pentecostais so mantidos no mbito das

    igrejas histricas. Nas concepes de Freston e de Mariano, na manifestao pentecostal no

    60 MARIANO, Ricardo. Neopentecostalismo: os pentecostais esto mudando , p. 22.

  • 41

    Brasil, referente segunda onda, a qual se procedeu na dcada de 1950 e de 1960, o

    pentecostalismo continua acreditando no dom de lnguas como evidncia do batismo no

    Esprito Santo, mas enfatiza veementemente as curas divinas.

    Encontram-se, portanto, vantagens e desvantagens em se fazer abordagens a

    partir da concepo da tipologia que denota as ondas de pentecostalismo, pois no se pode

    entender a realidade da experincia religiosa vivenciada no Brasil a partir dos movimentos

    que tiveram origem nos Estados Unidos, conquanto alm de similaridades, h distines

    marcantes entre os pentecostalismos. Segundo Freston, h uma justificao para a tipologia

    baseada na idia de ondas:

    A vantagem dessa maneira de colocar ordem no campo pentecostal que ressalta, de um lado, a versatilidade do pentecostalismo e sua evoluo ao longo dos anos e, ao mesmo tempo, as marcas que cada igreja carrega da poca em que nasceu. 61

    evidente que, para fazer um trabalho historiogrfico da narrativa das

    experincias religiosas, precisa-se trabalhar com determinados perodos, nos quais constatam-

    se as manifestaes experienciais. Nisto a periodizao das ondas algo pertinente e

    proveitoso.

    H, nas caractersticas pentecostais, inmeras maneiras de fazer e viver

    experincias religiosas, porm, levando em considerao que o formato da idia de ondas

    pressupe uma caracterstica de no-fixidez, realmente o locus pentecostal da experincia

    religiosa bastante instvel por conta da insero do sujeito na experimentao do Esprito

    Santo.

    Os pentecostais, como sujeitos histricos que vivenciam uma experincia

    religiosa, constituem mil prticas pelas quais, como usurios, se reapropriam do espao

    organizado pelas tcnicas de produo sociocultural no mbito das igrejas histricas.

    Ressalte-se tambm que houve uma reapropriao das conceituaes para atualizadas

    produes religiosa, heurstica e teolgica62.

    Freston, como fora dito, abordou os determinados Carimatismos de

    Classe Mdia, mas deixou de dizer quais seriam as igrejas que representariam a

    Renovao Caristmtica e as Comunidades Carismticas e, alm do mais, os aludidos

    grupos foram identificados demasiadamente com os protestantismos estrangeiros. Onde 61 FRESTON, Paul. Protestantes e Poltica no Brasil: da Constituinte ao Impeachment, p. 66. 62 CERTEAU, Michel. A Inveno do Cotidiano, p. 41.

  • 42

    estariam, de fato, as igrejas do Movimento de Renovao Espiritual? Qual seria o seu locus

    no grande e fragmentrio mar de ondas?

    As operaes quase que microbianas proliferaram-se no seio da estrutura

    pentecostal, formando-se em tticas que so atuantes na impregnao dos detalhes

    constitudos no cotidiano dos sujeitos religiosos. Essas maneiras sutis de fazer so

    evidenciadas atravs das experincias religiosas, as quais so como ondas, pois carregam

    consigo a caracterstica da no-fixidez de que se abordou63.

    A importncia da idia de ondas est no fato de que ela auxilia na

    periodizao; contudo, no se pode totaliz- la, pois, se esse fosse o intento de Freston, seria

    muita pretenso devido imensurvel fragmentao do protestantismo pentecostal. O que se

    pode constituir, a partir do pentecostalismo entendido atravs das ondas, seria uma noo da

    no-fixidez da experincia religiosa, que se d no campo da sub jetividade humana. Certeau,

    em A Inveno do Cotidiano, pretende abordar alguns procedimentos e astcias que, de

    alguma forma e atravs das tticas articuladas sobre os detalhes, compem a rede de uma

    antidisciplina64. Portanto, acha-se em questo no somente as ondas de pentecostalismos,

    mas as ondas nos pentecostalismos, enquanto fenmeno plural e fragmentrio, bem como

    experimental.

    A antidisciplina das ondas nos pentecostalismos concede uma abordagem

    bastante desconexa acerca da experincia religiosa e das aes dos sujeitos religiosos, pois

    cada vivncia religiosa concebida num contexto especfico. Por isso, h uma necessidade de

    se assumir que o sujeito que fala deve passar por um processo hermenutico a partir do lugar

    de onde fala.

    Michel de Certeau reporta-se a uma metfora muito pertinente sobre o

    estabelecimento da inveno do cotidiano e dos relacionamentos existentes entre as pessoas

    por meio dos procedimentos. Ele descreve acerca de uma viso do World Trade Center, no

    110 andar, donde se pode visualizar uma determinada massa que se imobiliza sob o olhar.

    H o estabelecimento de uma diferena gritante entre Nova Iorque e Roma, porquanto Nova

    Iorque nunca soube o que envelhecer cu