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750 MOBILIDADE E TECNOCULTURA: Q LINGUAJAR É ESSE? 1 Raquel Salcedo Gomes 2 Marcelo Salcedo Gomes 3 RESUMO: Considerando que o plano de trabalho do GT Linguagem e Tecnologias da Anpoll para o biênio de 2014-2016 congrega o tema tecnologias móveis e levando em conta a participação da primeira autora no grupo de pesquisa Escrita na Tela, o qual conjuga pesquisadores de diferentes instituições em investigações sobre o uso da linguagem mediado por tecnologias digitais, propomos aqui uma reflexão sobre o linguajar enquanto atividade humana situada no fluir de coordenações de coordenações consensuais de ações (MATURANA, 2001) na era da mobilidade tecnocultural. Intentamos circunscrever nossa discussão em torno dos conceitos de tecnocultura, mobilidade, linguajar e suas relações. Tomamos tecnocultura como conceito guarda-chuva que possibilita distinguir o tempo em que vivemos, de dinâmicas interações com dispositivos digitais; dentre esses, as tecnologias móveis. O adotamos devido a seu caráter antropológico de auto- referencialidade, permitindo pensar a cultura em suas dimensões acionais, no próprio fazer teórico- metodológico do pesquisador e em seu processo de produzir explicações sobre cultura, mobilidade e atividades de linguagem. Pensamos mobilidade como um componente da tecnocultura contemporânea que diz respeito ao deslocamento e ao posicionamento, às tensões entre presença e ausência, à produção de espacializações que emergem do interagir conversacional mediado por tecnologias móveis, as quais balizam atividades linguageiras que reestabelecem, a cada enunciação, novas semioses no que concerne ao estar perto e ao estar longe, aos sentidos que se produzem sobre os espaços, os quais são hibrizados, sobrepostos e dispersos nos fluxos discursivos. Entendendo o linguajar como um agir junto (con)sensualmente, em um tocar-se através de signos sonoros e/ou verbo-visuais, nas telas de nossos dispositivos móveis, objetivamos discutir implicações desse linguajar específico para a própria linguagem, enquanto sistema semiótico humano, e para a tecnocultura, como cultura do humano que produz a si mesmo e ao mundo enquanto age e linguajeia. PALAVRAS-CHAVE: Linguajar. Tecnocultura. Tecnologias Móveis. 1. Introdução Propomos aqui uma reflexão sobre o linguajar enquanto atividade humana situada no fluir de coordenações de coordenações consensuais de ações (MATURANA, 2001) na era da mobilidade tecnocultural. Intentamos circunscrever nossa discussão em torno dos conceitos de tecnocultura, mobilidade, linguajar e suas relações. Objetivamos discutir implicações desse linguajar específico para a própria linguagem, enquanto sistema semiótico humano, e para a tecnocultura, como cultura do humano que produz a si mesmo e ao mundo enquanto age e linguajeia. Assim, desenvolvemos uma teorização sobre o linguajar, a tecnocultura e a mobilidade e, a partir do método da intuição de Henri Bergson, procedemos a um estudo de alguns sistemas semióticos engendrados no seio da tecnocultura da mobilidade, possibilitados pelo entrelaçamento do linguajar com o emocionar, em nossas redes de conversações. 1 Texto completo de trabalho apresentado na Sessão Língua Estrangeira e Ensino do Eixo Temático Linguística Aplicada do 4. Encontro da Rede Sul Letras, promovido pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem no Campus da Grande Florianópolis da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) em Palhoça (SC). 2 Doutoranda em Linguística Aplicada pela Universidade do Vale dos Sinos e em Informática na Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 Doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale dos Sinos.

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MOBILIDADE E TECNOCULTURA: Q LINGUAJAR É ESSE?1

Raquel Salcedo Gomes2

Marcelo Salcedo Gomes3

RESUMO: Considerando que o plano de trabalho do GT Linguagem e Tecnologias da Anpoll para o biênio de 2014-2016 congrega o tema tecnologias móveis e levando em conta a participação da primeira autora no grupo de pesquisa Escrita na Tela, o qual conjuga pesquisadores de diferentes instituições em investigações sobre o uso da linguagem mediado por tecnologias digitais, propomos aqui uma reflexão sobre o linguajar enquanto atividade humana situada no fluir de coordenações de coordenações consensuais de ações (MATURANA, 2001) na era da mobilidade tecnocultural. Intentamos circunscrever nossa discussão em torno dos conceitos de tecnocultura, mobilidade, linguajar e suas relações. Tomamos tecnocultura como conceito guarda-chuva que possibilita distinguir o tempo em que vivemos, de dinâmicas interações com dispositivos digitais; dentre esses, as tecnologias móveis. O adotamos devido a seu caráter antropológico de auto-referencialidade, permitindo pensar a cultura em suas dimensões acionais, no próprio fazer teórico-metodológico do pesquisador e em seu processo de produzir explicações sobre cultura, mobilidade e atividades de linguagem. Pensamos mobilidade como um componente da tecnocultura contemporânea que diz respeito ao deslocamento e ao posicionamento, às tensões entre presença e ausência, à produção de espacializações que emergem do interagir conversacional mediado por tecnologias móveis, as quais balizam atividades linguageiras que reestabelecem, a cada enunciação, novas semioses no que concerne ao estar perto e ao estar longe, aos sentidos que se produzem sobre os espaços, os quais são hibrizados, sobrepostos e dispersos nos fluxos discursivos. Entendendo o linguajar como um agir junto (con)sensualmente, em um tocar-se através de signos sonoros e/ou verbo-visuais, nas telas de nossos dispositivos móveis, objetivamos discutir implicações desse linguajar específico para a própria linguagem, enquanto sistema semiótico humano, e para a tecnocultura, como cultura do humano que produz a si mesmo e ao mundo enquanto age e linguajeia. PALAVRAS-CHAVE: Linguajar. Tecnocultura. Tecnologias Móveis.

1. Introdução

Propomos aqui uma reflexão sobre o linguajar enquanto atividade humana situada no fluir de coordenações de coordenações consensuais de ações (MATURANA, 2001) na era da mobilidade tecnocultural. Intentamos circunscrever nossa discussão em torno dos conceitos de tecnocultura, mobilidade, linguajar e suas relações. Objetivamos discutir implicações desse linguajar específico para a própria linguagem, enquanto sistema semiótico humano, e para a tecnocultura, como cultura do humano que produz a si mesmo e ao mundo enquanto age e linguajeia. Assim, desenvolvemos uma teorização sobre o linguajar, a tecnocultura e a mobilidade e, a partir do método da intuição de Henri Bergson, procedemos a um estudo de alguns sistemas semióticos engendrados no seio da tecnocultura da mobilidade, possibilitados pelo entrelaçamento do linguajar com o emocionar, em nossas redes de conversações.

1 Texto completo de trabalho apresentado na Sessão Língua Estrangeira e Ensino do Eixo Temático Linguística Aplicada do 4. Encontro da Rede Sul Letras, promovido pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem no Campus da Grande Florianópolis da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) em Palhoça (SC). 2 Doutoranda em Linguística Aplicada pela Universidade do Vale dos Sinos e em Informática na Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 Doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale dos Sinos.

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Linguajar: uma concepção biocultural de linguagem

A noção de linguajar com o qual aqui opero tem origem na teoria autopoiética de Humberto Maturana e Francisco Varela (MATURANA & VARELA 1980; 1995), a qual foi posteriormente desdobrada independentemente por cada um deles na biologia do conhecer (MATURANA, 1997; 2001; 2002) e na teoria da enação (VARELA, THOMPSON & ROSCH, 1996; VARELA, 1992; 1999). A partir de um mecanismo explicativo de razoável simplicidade, busca-se, na teoria, explicar a complexidade da fenomenologia dos seres vivos (MAGRO, 2002). Seus objetivos concernem uma explicação sobre o que são os organismos vivos, qual seu modo de funcionamento e de conhecimento. Segundo a teoria autopoiética, o que caracteriza os seres vivos é a circularidade de seu funcionamento, a qual opera de modo a produzir a si mesmos continuamente. Essa autoprodução permanente situa a teoria no paradigma da cognição inventiva. Tendo de se autoproduzir, o próprio organismo não está pronto, acabado, ele precisa encontrar recursos para se refazer e assim continuar existindo.

Tudo o oque fazemos depende de nossa biologia, foi isso o que Maturana entendeu mediante um experimento com uma rã que teve seu olho extraído, girado em 180 graus e reimplantado. Para o cientista que observava, a rã apresentava um comportamento inadequado quando não conseguia capturar um mosquito para servir como seu alimento, já que apontava a língua para o lado oposto ao que estava o mosquito em exatamente 180 graus. Entretanto, Maturana percebeu que, para a rã, ela estava estava agindo adequadamente, conforme sua estrutura biológica permitia, em direção ao mosquito. Deste experimento, Maturana tirou inspiração para o primeiro aforismo ou princípio da teoria autopoiética: “tudo o que é dito é dito por um observador a um outro observador que pode ser ele mesmo” (MATURANA 1980, p. xx). Neste aforisma, Maturana explicita que só conhecemos como observadores e como observadores só conhecemos o que podemos conhecer por meio de nós mesmos, de modo que a cognição é estruturalmente dependente da biologia.

O próprio organismo produz os componentes que lhe permitem manter-se vivo, estando o sistema vivo assim, sob uma clausura operacional que determina sua estrutura a cada momento. Essa estrutura, embora determinada pela relação entre seus componentes, modifica-se continuamente, devido à interações entre seus próprios componentes e com seu nicho, isto é, o ambiente que circunda o organismo e lhe especifica seu domínio de interações. Seres vivos são fruto da história de sua espécie imbricada em sua história individual.

A mutante estrutura do sistema vivo está, por sua vez, subjugada à sua organização, que são as características invariantes precisa manter para continuar existindo como si mesmo, ou seja, para preservar sua identidade. É pela organização que definimos o que um sistema é, atribuindo-lhe um nome. A distinção entre estrutura e organização pode ser considerada para todo tipo de sistema, não apenas para seres vivos. Por exemplo, um livro é um conjunto de folhas de papel envoltas em uma capa e uma contracapa, estando, folhas e capas, coladas em um dos lados, de modo que o livro pode ser aberto, folhado e fechado. Se corto uma das "orelhas" do livro ou arranco-lhe algumas páginas, modifico sua estrutura, mas ele não deixa de ser um livro. Mas, se corto todas as suas folhas e capas ao meio, ele perde sua organização e deixa de ser o que é.

O mesmo ocorre com sistemas vivos, quando perdem sua organização, se desintegram, deixam de existir. Como organismos sob clausura operacional, vivendo em um nicho, que é seu domínio de interações possíveis ou domínio cognitivo, os seres vivos podem manter certos tipos de interações com seu nicho, mas não outros, os quais lhe causariam a perda da organização e, consequentemente, a morte. Nós, seres humanos, podemos andar de montanha russa se estivermos bem presos em nossas cadeiras, com cintos de proteção que nos mantenham atados a ela enquanto o brinquedo faz movimentos acelerados multidirecionais. O impacto dos movimentos não nos fazer perder nossa organização porque estamos seguros, embora nossa

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estrutura mude nessa interação. Sem o cinto de proteçao, entretanto, cairíamos da montanha russa e perderíamos nossa organização em nosso impacto contra o chão.

A distinção entre organização e estrutura é importante porque ajuda a estabelecermos os limites daquilo que os sistemas podem e não podem fazer. Como sistemas em clausura operacional, organismo e nicho estão em uma deriva natural, em seu domínio de interações modulam mutuamente um ao outro, por meio de perturbações. Para um organismo vivo, um outro organismo vivo faz parte de seu nicho, de modo que pode desenvolver interações com ele e assim também operar mútuas modulações.

Na teoria autopoiética, a estrutura determina as possibilidades de interação de um organismo a cada momento, mas como essa estrutura está sempre modificando-se, não é possível prever o próximo estado do organismo. Como o organismo opera indepentemente do meio, um também não determina o outro, embora se influenciem. Assim, conforme essa possibilidade teórica, não há teleonomia. Nada é determinado externamente.

De acordo com Magro (2002), a explicação autopoiética da vida também se dirige aos fenômenos observados no âmbito do viver dos seres vivos, incluindo a cognição, a linguagem, os fenômenos sociais, os fenômenos mentais, a autoconsciência, lançando um olhar novo e heterodóxo sobre cada um deles.

A linguagem portanto, não é uma representação de uma realidade externa que é absorvida e processada no interior da mente devido a uma faculdade inata programada no cérebro do organismo. Mas sua origem continua sendo biológica. Como biólogos, Humberto Maturana e Francisco Varela teorizam sobre a linguagem a partir desse ponto de vista. Eles propõem que o que caracteriza o ser vivo é a circularidade de seus processos constitutivos, que constituem ao próprio ser vivo continuamente, até que ele morra. A esse fenômeno de auto-produção contínua, Maturana denomina autopoiese, termo que nomeia a própria teoria.

Para Maturana (2001), a linguagem não é representacional, isto é, não se constitui ontologicamente como um sistema de signos. Sua origem é biológica, situa-se na filogenia da espécie humana. Ao conviver em pequenos grupos e fazer coisas juntos, em coordenações consensuais de ações, teria surgido entre os hominídeos um fenômeno de coordenações de coordenações de ações, num movimento recorrente e recursivo, isto é, de humanos agindo em conjunto e remetendo-se a essas suas ações, mediante posturas corporais, gestos, sons, formas etc, que um observador poderia denominar como linguagem, especificando, assim, o domínio do linguajar. A linguagem surge do viver junto, do fazer coisas coletivamente. Ela é efeito de ações coordenadas a respeito de ações coordenadas, o que tem sido possível somente devido à configuração biológica de nossa espécie,

A linguagem, ou o linguajar, como Maturana prefere alcunhá-la, tomando este verbo como substantivo a fim de ressaltar seu caráter acional, configura-se como uma forma de ação na concretude do cotidiano dos coletivos humanos. Ao linguajarmos, tocamo-nos uns aos outros com sons, mobilizamos emoções, despertamos nossa atenção mútua mediante gestos e formas. Certos animais também praticam ações semelhantes, mas o que o linguajar humano tem de específico é sua potência de autorreferência, de tornar a si mesmo e a suas próprias coordenações de ações prévias, linguageiras ou não, objetos desse linguajar, o que é fundamental para que um observador possa especificar domínios de ação ao efetuar operações de distinção.

Assim, para Maturana, a linguagem é uma forma de ação, assim como a cognição. Ela não representa um mundo externo para uma mente que existe no interior dos sujeitos, não é meramente um sistema de signos que processamos na caixa preta de nossa cabeça com movimentos de input e output. Sua origem reside na convivência consensual.

Ao fenômeno de nossa configuração biológica que viabilizou o aparecimento da linguagem, Maturana dá o nome de acoplamento estrutural ontogênico. O acoplamento é o resultado do estabelecimento de uma correspondência dinâmica estrutural, uma correspondência espaço-temporal efetiva entre as mudanças de estado do nosso organismo e as

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mudanças recorrentes de estado do meio em que vivemos. Devido à sua circularidade fechada, sua autopoiese, um sistema vivo tende, em suas condutas, à recorrência e à recursão. O que ocorreu uma vez e não causou problemas à autopoiese, tende a ocorrer novamente. O seres vivos são assim sistemas históricos, a importância de uma conduta ou modo de operar sempre é determinado no passado (MATURANA, 1980).

A linguagem é um dos modos ou condutas pelos quais um organismo pode modificar o comportamento de outro organismo. O outro é um comportamento entrelaçado, como os atos de luta e de côrte entre os animais, dirigindo um organismo na direção o outro. O comportamento linguageiro, ao contrário, não é entrelaçado, mas paralelo, suas condutas são independentes.

O comportamento linguístico é uma conduta de orientação. Ele orienta aquele que está sendo orientado dentro de seu domínio cognitivo para interações que são independentes da natureza do próprio comportamento linguístico orientador. Visto que o domínio cognitivo em direção ao qual está é especificado mediante interações, não sendo portanto geneticamente determinado, um organismo pode orientar outro em qualquer direção de seu domínio cognitivo através de modos arbitrários de conduta também especificados nessas interações. Assim, na medida que os domínios de interação dos dois organismos são até certo ponto comparaveis e interagem em paralelo, tais interações orientadoras consensuais são possíveis e permitem que os organismos desenvolvam um sistema de descrições comunicativas convencionais e específicas a fim de se orientar em classes ou tipos de interações que relevam a ambos.

A conduta orientadora depende inteiramente da estrutura do sistema vivo sendo orientado, de modo que a linguagem é conotativa e não denotativa. O gesto linguístico de apontar indica uma direção em uma interação, mas ele somente pode ser considerado linguístico devido à conotoção do interlocutor sendo orientado. A função da linguagem é "orientar o organismo sendo orientado dentro de seu próprio domínio cognitivo, e não apontar para entidades independentes" (MATURANA, 1980, p. 30). Se torna evidente assim que interações orientadoras aprendidas incorporam uma função de origem não-linguística que, a partir de uma pressão para sua aplicação recursiva, pode originar, ao longo da filogenia da espécie, a evolução de "sistemas consensuais cooperativos entre organismos" (MATURANA, 1980, p. 31), tal como é a linguagem. A compreensão da linguagem como um sistema de signos surgiu a posteriori, advinda da análise de um observador que distinguiu as regularidades dos usos linguísticos e estabeleceu que tais recorrências regulares formam um sistema passível de denotação.

Ao linguajar, entrelaça-se o emocionar, ou nossas disposições para a ação, que estabelecem uma gama de ações orientadoras possíveis em nossas redes de conversação. Entendemos o linguajar como um agir junto (con)sensualmente, em um tocar-se através de signos sonoros e/ou verbo-visuais, nas telas de nossos dispositivos móveis.

Mobilidade e Tecnocultura

Tomamos tecnocultura como conceito guarda-chuva que possibilita distinguir o tempo em que vivemos, de dinâmicas interações com dispositivos digitais; dentre esses, as tecnologias móveis. O adotamos devido a seu caráter antropológico de auto-referencialidade, permitindo pensar a cultura em suas dimensões acionais, no próprio fazer teórico-metodológico do pesquisador e em seu processo de produzir explicações sobre cultura, mobilidade e atividades de linguagem. Pensamos mobilidade como um componente da tecnocultura contemporânea que diz respeito ao deslocamento e ao posicionamento, às tensões entre presença e ausência, à produção de espacializações que emergem do interagir conversacional mediado por tecnologias móveis, as quais balizam atividades linguageiras que reestabelecem, a cada enunciação, novas semioses no que concerne ao estar perto e ao estar longe, aos sentidos que se produzem sobre os espaços, os quais são hibrizados, sobrepostos e dispersos nos fluxos discursivos.

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Cultura é palavra fácil nos textos que versam sobre os “novos meios de comunicação” que, via de regra, visam a um entendimento da comunicação midiática que transcende suas dimensões técnicas e a coloca como vetor cultural da sociedade contemporânea. Ganha relevância neste contexto a noção de uma cultura contemporânea midiatizada ou ainda da emergência de uma tecnocultura que, de qualquer forma, abrigaria, senão toda, ao menos fragmentos da diversidade cultural global em seus sentidos mais amplos. Uma concepção de cultura, dentro desta abordagem, põe em questão o ideal moderno de um contínuo desenvolvimento humano rumo a um objetivo transcendente. A seta unilateral do progresso cai em suspensão.

Em termos do “misto” bergsoniano, a cultura poderia ser pensada como virtualidade que se atualiza nos dispositivos midiáticos4. Neste sentido, os efeitos das técnicas e estéticas das mídias podem ser cartografados como atualização de um substrato cultural que dura, atravessando temporalidades. As materialidades das mídias e hábitos de uso podem constituir-se de materiais de pesquisa na medida em que dão a ver atualizações de situações culturais virtuais mais amplas, que não se restringem apenas às mídias, mas também as transcendem. Esta perspectiva comparece na concepção de audiovisualidades de Kilpp (2011) e acredito que possa valer também para a cultura entendida aqui como tecnocultura virtual.

Fischer (2013) propõe pensar em um “modo de produzir pesquisas de audiovisual com uma “visada tecnocultural”. Esta visada tecnocultural, em sua visão (FISCHER, 2013, p. 51, grifo do autor)

[...] teria o papel de reforçar esse processo de desnaturalização [do olhar do pesquisador], ao convocar a exploração dos sentidos produzidos pelas entranhas dos aparatos como essenciais para a compreensão deste contemporâneo, certamente aí demandando outras formas de instrumentalizar esse movimento.

Mas o que significa o termo tecnocultura? Não seria prudente oferecer uma definição lapidada para este conceito, que tem sido apropriado por inúmeros autores de formas tão diversas. Por ora, cabe aqui tensionar a maneira como a palavra tecnocultura vem sendo utilizada em diversos trabalhos da área das humanidades, sobretudo nos estudos culturais, comunicação, antropologia, literatura comparada e sociologia.

Há, dependendo do autor que se analise, um certo acento mais pronunciado ou no prefixo “tecno”, ou no termo “cultura” da palavra. Citamos como exemplo Lister et al. (2009, p. 429, tradução nossa), para os quais tecnocultura é definida como “fenômenos culturais em que tecnologias ou forças tecnológicas são um aspecto significante”5.

Já na coletânea de ensaios Technoculture, talvez a primeira obra que traga o termo no título, Penley e Ross (1991, p. xii), seus organizadores, não se preocupam em definir o conceito aos leitores. Na introdução, utilizam tecnocultura para descrever o processo pelo qual as “novas tecnologias culturais” estariam penetrando com mais profundidade na sociedade ocidental de forma a criar ambientes que nos parecem “quase como uma segunda natureza”. Pelo que se pode depreender, os textos reunidos pelos organizadores da obra apresentam estudos de casos que mobilizam soluções criativas para o problema de transferência de tecnologia daquele momento.

Segundo Genosko (2013, p. 29), a cunhagem do termo tecnocultura remete à década de 1960 e sua instituição inicial fez referência à influência mútua entre tecnologia e cultura com

4 Partindo do sentido de dispositivo adotado por Foucault, Braga (2011) afirma que se trata de investigar os elementos mais pertinentes ao seu objeto e o “sistema de relações” que eles mantêm entre si. Não se trata apenas da ideia de dispositivos como “meios de comunicação” e suas tecnologias, e sim do “conjunto heterogêneo de materiais e processos que não só ʻdecorreʼ da tecnologia, mas que, sobretudo, dá direção e sentido ao seu uso” (BRAGA, 2011). 5 Technoculture generally refers to cultural phenomena in which technologies or technological forces are significant aspects.

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foco em seus pontos de contato, estabelecidos pelos meios. Seu inventor teria sido o neologista estadunidense Henry G. Burger que, em uma carta enviada ao editor da revista Technology and Culture, sugeriu a necessidade de se criar uma nova área de estudos. “Eu proponho que a disciplina seja chamada de ‘Tecnocultura’” (BURGER, 1961, p. 261, tradução nossa)6.

O livro de Genosko (2013), When Technocultures Collide, traz a visão de como diversificadas correntes de subculturas tecnologicamente inspiradas oferecem resistência, “desvios etico-poéticos”, às instituições tecnocráticas organizacionais e governamentais. Neste caso, a tecnocultura constitui-se de um campo de disputa que pode ser orientado para elevar ou para subverter regimes dominantes. Um pouco na esteira de Penley e Ross (1991), Genosko analisa os resultados de experiências representativas de uma diversidade de ações, pensamentos, invenções e fracassos que refletem as inúmeras tentativas de lidar com os conflitos que impulsionam a inovação e a busca pela autonomia.

Na introdução de seu livro Technoculture: The key Concepts, Debra Shaw (2008, p. 2, tradução minha7) afirma que: “Apesar de todas as culturas serem, de certa maneira, tecnoculturas, algumas, sem dúvida, são mais que outras” [pensamos que entendemos o que Shaw quer dizer com tal assertiva, embora nos incomode a utilização da expressão “mais que outras” por referir-se a uma suposta diferença de grau entre tecnoculturas. Será que a tecnocultura não diferencia-se de si por natureza?). A autora utiliza-se da célebre afirmação do escritor de ficção científica Arthur Clark de que toda tecnologia suficientemente avançada se indistingue da magia, no sentido de que uma tecnologia que pode ser totalmente trivial em uma determina cultura e em um determinado tempo e lugar, pode ser tida como mágica em outro contexto. Como exemplo, Shaw lembra das “maravilhas” arquitetônicas do mundo antigo, como Stonehenge ou as Pirâmides de Gizé, que ainda intrigam os engenheiros contemporâneos.

Nesta perspectiva, a autora analisa o impacto da tecnologia e da ciência na forma como concebemos o mundo, definindo o estudo da tecnocultura como a análise da expressão da relação entre cultura e tecnologia nos padrões de vida social, na ciência, nas estruturas econômicas, na comunicação, na literatura e na arte. Falar de culturas contemporâneas como tecnoculturas é obvio, segundo Shaw (2008, p. 2), pois vivemos em um mundo onde tanto a economia global quanto a vida cotidiana estão imbricadas às tecnologias, em que nossa forma de comer e se reproduzir está sendo transformada com as biotecnologias e a forma como nos comunicamos e nos relacionamos com os outros e com o mundo tem sido refuncionalizada através do computador, dos aparelhos móveis e da internet.

As transformações nas relações de trabalho na modernidade em virtude do avanço da industrialização e suas técnicas, a crítica da objetividade da ciência, a impossibilidade de separação absoluta entre natureza e cultura, as relações da tecnologia com o corpo e a privatização do espaço tecnológico são as questões abordadas na obra, enunciadas como os “conceitos-chave” de tecnocultura. Um dos pontos interessantes é que Shaw (2008), assim como muitos dos autores dos trabalhos encontrados sobre o tema, toma como ilustração do potencial ambivalente da tecnologia muitas obras de ficção científica, desde a discussão sobre os filmes Metropolis (1927), de Lang, e Tempos Modernos (1936), de Chaplin, que criticam o culto à máquina, até Neuromancer (1984), de William Gibson, e Matrix (1999), dos irmãos Waschowksi, que refletem as noções complexas de hiperrealidade. A adoção de um ponto de vista “pós-moderno” da tecnocultura, adotado por Shaw, é interessante na medida em que reconhece as características abstratas da ambivalência no mundo atual, mas, ao tomar tais características pelo todo, a autora corre o risco de enquadrar os demais modos de engajamento com o mundo como obsoletos ou reacionários.

A autora percebe que o conceito de tecnocultura pode ser rastreado em pensadores muito anteriores à discussão das tecnologias digitais. Benjamin (1989), segundo a autora, fora inovador ao propor que a ressignificação da arte consistia no uso da técnica para romper com a

6 “I propose the discipline be named ‘technoculture’”. 7 Although all cultures are, to a certain extent, technocultures, some, arguably, are more so than others.

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autenticidade tradicional burguesa, mas que deixava em seu lugar uma outra forma de percepção, capaz de tornar a experiência estética acessível para as massas ou que, por outras palavras, via o surgimento de uma forma específica de tecnocultura. Em Benjamin, a perceptibilidade se transforma historicamente.

Por um outro viés, Cooper (2002, p. 1, tradução nossa8) propõe uma visão crítica da tecnocultura a partir do tema central de sua obra “como a tecnologia em uso trabalha para reconstituir nosso modo de ser no mundo, direta ou indiretamente”. O autor busca explorar a complexa relação entre tecnologia, cultura e política, dialogando com as filosofias de Heidegger, Benjamin, Lyotard, Virilio e Zizek em temas como a clonagem, a Internet, o ciberespaço, a realidade virtual e o pós-modernismo. Cooper (2002) explora a ambivalência do denominado “progresso tecnológico”, o qual, de um lado, permitiria que a humanidade se desenvolvesse de maneira mais construtiva e, de outro, aumentaria a capacidade de dominação, seja dos diferentes, seja do meio ambiente.

Um dos aspectos mais interessantes da obra é a recuperação das teorias de Heidegger para pensar a técnica como uma forma de revelação da existência em determinadas condições. Em Heidegger, diz Cooper (2002, p. 18), o sentido da técnica moderna é perdido se assumido somente seu lado positivo ou negativo, pois a técnica, como modo de ser de uma nova época para o ser humano, não está ao alcance de sua consciência, controle ou vontade. Desta forma, Heidegger neutraliza o papel preponderante do caráter instrumental da técnica. Se o sentido da técnica não está ao alcance da consciência é porque este sentido é constituído no imaginário tecnocultural, é inapreensível racionalmente, antes, ao contrário, a racionalidade é o resultado de uma mobilização do imaginário.

Nessa compreensão da técnica, alocamos os dispositivos móveis com os quais linguajamos e produzimos o mundo em que vivemos. Mas a mobilidade que eles nos proporcionam antecede em muito a qualidade de estes dispositivos serem móveis, em suposta oposição com o computador pessoal ou desktop, que seria uma tecnologia digital fixa. Segundo Bergson (1999), a mobilidade é a própria realidade, que é una e, simultaneamente, múltipla, porque vivida e produzida a parti de diferentes posicionamentos espaço-temporais e pontos de vista, diferindo continuamente de si mesma, de modo que a mudança é condição necessária à própria existência. Assim, defendemos que as tecnologias móveis, advindas da cultura da mobilidade que cultiva tecnologias de geolocalização, geoposicionamento e comunicação síncrona e assíncrona em suportes fluidos, são engendradas e também engendram a tecnocultura como a cultura do tempo que vivemos atualmente.

Intuição como método

A discussão sobre metodologia dentro da área das humanidades tornou-se questão sine qua non a qualquer projeto de produção de conhecimento. No fundo, tomar um caminho metodológico ou outro é também criar opções de ordem, sobretudo, epistemológica. Trata-se, não de filiações abstratas, mas de atitudes investigativas diversas que compõem o que Kastrup (2007, p. 15) denomina de políticas cognitivas: “[...] um tipo de atitude ou relação encarnada, no sentido em que não é consciente, que se estabelece com o conhecimento, com o mundo e consigo mesmo”.

Mas o que significa botar-se, de fato, em contato com seu objeto de estudo? Para responder a esta pergunta, recorremos a Bergson (1999, 2005, 2006), para quem as questões das quais se ocupa a ciência escapam às do tempo real (que o autor chama de duração), cujo princípio reside em passar incessantemente, o que é impossível discernir deduzindo suas partes

8 [...] how technology-in-use works to reconstitute our mode of being in the world, both directly and indirectly.

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imóveis e sobrepostas. “A duração é o progresso contínuo do passado que rói o porvir e incha ao avançar (BERGSON, 2005, p. 5)”. Se a ciência é fruto da inteligência que opera em uma economia atencional que se preocupa apenas com o que é necessário para agir no presente, ou por outras palavras, detém-se no que é importante para conservação do organismo, sua estratégia é decompor o movimento em representações imóveis a fim de reconstruí-lo, mensurá-lo e analisá-lo. Essa operação, sem dúvidas é útil para a vida prática, contudo, no campo da especulação filosófica, sua legitimidade não se justificaria, pois cria problemas insolúveis, como aponta Bergson (2006, p. 139): “Nossa inteligência só concebe claramente a imobilidade”.

O objeto de que se ocupa a ciência é a matéria, o sólido, o imóvel. Desta forma, seu produto quase sempre concebe as coisas prontas, como se não fizessem parte da duração. A ciência só se ocupa de objetos separados, daquilo que é passível de repetir-se e ser calculado, previsto. Segundo Bergson (2006, p. 4), “em toda mensuração, entra um elemento de convenção”, de uma sobreposição que lhe confere precisão na medida apenas de um de seus efeitos. Todavia, a duração “escapa à matemática” (BERGSON, 2006, p. 4), uma vez que é constantemente movente e nenhuma de suas partes ficaria estática quando uma outra se apresenta. Seria um absurdo, portanto, mensurar os efeitos sobreponíveis do tempo real, pois significaria que este não dura. Ao procedermos à medida do tempo, na verdade, estamos medindo momentos de uma linha imóvel já feita. A contagem de um certo número de intervalos t nos informa nada mais que simultaneidades convencionadas que poderiam ainda ser subdivididas em tantas outras simultaneidades o quanto se queira.

No entanto, como negar que esta duração que a ciência escamoteia, que é difícil de expressar em palavras, se apresenta à nossa consciência como qualidade do vivido? Como poderíamos nos ater a esta questão de uma forma direta, afastando todo prejuízo de uma visão artificial da vida consciente? Ao dedicar-se a tal questão, intrigou Bergson o fato de os sistemas filosóficos, aos se submeterem a procedimentos meramente conceituais, terem se afastado da realidade da vida ao ponto de perder-se em abstrações inócuas. O autor reivindica, à filosofia, precisão. Ao investigar os sistemas ao longo da história da filosofia, Bergson (2006, p. 7) constata que “tempo e o espaço são colocados no mesmo plano e tratados como coisas do mesmo gênero”. Procedendo esta "espacialização do tempo", pelo menos desde a Grécia Antiga quando Zenão de Eléia confundiu o movimento e o espaço, os filósofos acabam propondo pseudoproblemas. O que Bergson propõe é abrirmos mão da fixidez para darmos uma maior atenção à transição, às coisas em si, à efetividade do tempo real, colocando-nos diretamente na duração. "O que é real não são os 'estados' simples instantâneos tomados de nós, mais uma vez, ao longo da mudança; é; pelo contrário, o fluxo, é a continuidade de transição, é a própria mudança (BERGSON, 2006, p. 10). A intuição é, portanto, um método preciso para conhecer à duração.

Foi Deleuze (2008), em Bergsonismo, quem ofereceu uma leitura e sistematização do método intuitivo que segue a três atos que determinam regras precisas: o primeiro (problematizante) está relacionado à posição e criação de problemas; o segundo (diferenciante) leva às verdadeiras diferenças de natureza e o terceiro (temporalizante) à apreensão do tempo real. Os procedimentos seguem as três regras, das quais a primeira e a segunda possuem regras complementares (DELEUZE, 2008, p. 8 - 22):

PRIMEIRA REGRA: Aplicar a prova do verdadeiro e do falso aos problemas, denunciar os falsos problemas, reconciliar verdade e criação ao nível dos problemas. [...] REGRA COMPLEMENTAR: Os falsos problemas são de dois tipos: “problemas inexistentes”, que assim se definem porque seus próprios termos implicam uma confusão entre o “mais” e o “menos”; “problemas mal colocados”, que assim se definem porque seus termos representam mistos mal analisados. [...] SEGUNDA REGRA: Lutar contra ilusão, reencontrar as verdadeiras diferenças de natureza ou as articulações do real. [...] REGRA COMPLEMENTAR: o real não é somente o que se

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divide segundo articulações naturais ou diferenças de natureza, mas é também o que se reúne segundo vias que convergem para um mesmo ponto ideal ou virtual. [...] TERCEIRA REGRA: Colocar os problemas e resolvê-los mais em função do tempo do que do espaço.

Diante do exposto, intentamos apresentar um “verdadeiro problema” nos termos de Bergson (2006). Encontrar o que difere de si mesmo por natureza e não apenas em grau. Bergson considera que todas as coisas do universo, embora se apresentem a nossa experiência misturadas, podem ser entendidas por suas articulações naturais divididas em duas tendências, uma virtual (que compreende à duração, à memória, à mudança, à qualidade, à heterogeneidade, ao instinto etc) e outra atual (que diz respeito ao espaço, à matéria, à fixidez, à quantidade, à homogeneidade, à inteligência etc). A intuição é justamente o método da divisão dos mistos. Neste sentido, é necessário, a fim de reencontrar as articulações do real, ultrapassar a experiência em direção às condições da experiência, dividir o objeto em duas “presenças puras” que diferem por natureza.

Para desmilindrar este tipo de empasse, é preciso multiplicar os atos da intuição. Parte-se de um ponto comum confuso da experiência do qual são traçadas linhas que seguem direções divergentes (viravolta) em conformidade com as verdadeiras diferenças de natureza, mas que depois convergem novamente (reviravolta) no ponto original, preciso e virtual que pode ser chamado de real. Um destas linhas é da ordem da percepção da matéria e nos coloca, de súbito, em contato direto com a observação imediata do objeto, impessoal. A segunda linha é da ordem da subjetividade e remete à experiência interna que mobiliza a “afetividade”, as “lembranças da memória” e a “memória-contração” (qualidade), termos do problema que diferem por natureza dos termos postos na primeira linha e que permanecem como dualismos somente até o momento de sua (re)integração. As duas linhas já contêm, cada uma, parte da resposta do problema bem posto, embora esta ainda fique encoberto até o ponto em que elas se cortam.

Contudo, a diferença de natureza entre tendências é apenas superficial, visto que todas já estão contidas na divisão principal bergsoniana entre espaço e duração e sua constatação não nos bastaria para conhecer a verdade do objeto. Apenas uma das tendências, a duração, é que contém todas as diferenças de natureza (pois é a única que varia qualitativamente sobre si mesma), visto que o espaço só pode conter diferenças de grau quantificáveis. A primeira configura o modo de ser do objeto no tempo e a segunda o modo de agir do mesmo objeto no espaço. A intuição consiste em colocar e resolver os problemas mais em termos de duração tendo em vista que somente ela pode variar de natureza em relação a si mesma e em relação a outras coisas (alteração). Assim sendo, a intuição me permite, a partir da minha própria duração, perceber, reconhecer e me colocar na duração do objeto que estou investigando.

O método intuitivo ajuda a inventar o problema no sentido de que os problemas prontos tendem a ser falsos problemas que suscitam também respostas prontas, ambos são frutos das convenções da linguagem e do campo social. Os problemas precisam ser inventados. Se há algo que a ser descoberto, são as respostas que já estão implícitas pelo problema bem colocado.

Emoticons, Emojis, Hashtags e o internetês

Tomamos como objetos empíricos da reflexão sobre o linguajar em tecnologias móveis os emoticons, emojis e as hashtags, sistemas semióticos surgidos em meio à tecnocultura da mobilidade, componentes do internetês, o linguajar utilizado no meio digital. Considerando o método da intuição, nos perguntamos o que são esses sistemas semióticos e o que eles engendram em nosso linguajar, produzindo diferenças em nossas redes de conversações.

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Os emoticons tratam-se de um modo de comunicação considerado paralinguístico, em que uma sequência de caracteres tipográficos, tais como: “:(“ são inseridos em enunciados digitais a fim de expressar uma emoção, um estado afetivo variado, que pode ser de contentamento, descontentamento, ironia, ciúmes etc. O termo emoticon deriva da junção em língua inglesa das palavras emotion (emoção) e icon (ícone). Normalmente, os emoticons são usados em comunicações escritas de programas mensageiros e redes sociais, como o MSN Messenger, o Facebook, o Skype, o WhatsApp e outros. Nos meios eletrônicos, os emoticons foram utilizados pela primeira vez em 19 de setembro de 1982, por um professor universitário americano em um fórum virtual na ARPANet, precedente da internet.

Já os emojis são mais recentes, surgiram no Japão da década de 1990 e são caracterizados por pertencerem a uma biblioteca de figuras prontas. Eles foram concebidos por Shigetaka Kurita, que elaborou a palavra a partir das expressões japonesas “e” (imagem) e “moji” (personagem), significando em português “pictograma”. Por essa razão, os emojis agrupam outros símbolos originalmente considerados emoticons, porém apenas em suas versões em desenho. Tratam-se de caracteres animados que figurativizam e tematizam expressões faciais e outros objetos. O primeiro emoji foi um coração, lançado em 1995 pela NTT DoComo, local em que Kurita trabalhava. A companhia telefônica experimentava a explosão na venda de pagers e decidiu incluir o símbolo para atrair o público adolescente. Nesse meio tempo, Kurita trabalhava em um projeto que ofereceria serviços como previsão do tempo, notícias e e-mail, o qual se tornou a primeira plataforma de internet móvel difundida globalmente. Ao usá-lo, Kurita percebeu que era difícil identificar informações como “ensolarado” ou “chuvoso” sem imagens para representar.

Foi com essa experiência de usuário que o então executivo financeiro da DoComo resolveu retornar com os Emojis. A primeira biblioteca reuniu 176 imagens com 12 x 12 pixels de resolução, tendo em comum a capacidade de expressar as emoções humanas. As figuras foram imediatamente copiadas por companhias concorrentes, fazendo com que os emojis virassem febre no Japão. Em 2010, com o lançamento do iOS 4, a criação de Kurita ganhou o mundo. Depois da Apple, Google e Microsoft também adotaram os emojis para seus aparelhos Android e Windows Phone. Para saber o significado de cada um dos mais de 800 emojis do WhatsApp, a melhor forma é usar a Emojipedia, uma enciclopédia online especializada na qual se pode conferir a descrição e imagem de todos os emojis nas diferentes plataformas em que ele foi reproduzido, além de uma breve definição em inglês de seu significado.

As hashtags são palavras-chave precedidas pelo símbolo da cerquilha (#), que as pessoas podem incluir em suas mensagens, fazendo com que o conteúdo publicado online seja acessível a todas as pessoas com interesses semelhantes. As hashtags aparecem como links clicáveis quando usadas em mensagens, bastando clicar sobre elas para ver todos os resultados relevantes. Tags significam etiquetas, referem-se a palavras relevantes, que associadas ao símbolo da cerquilha se tornam hashtags, utilizadas nas redes sociais. Esse tipo de marcação, utilizada nas redes sociais e em outros meios, serve para associar uma informação a um tópico ou discussão.

As hashtags tornam-se links indexáveis pelos mecanismos de busca. Isso permite que os demais usuários possam clicar nelas ou procurá-las e visualizarem todas as informações relacionadas a elas. Por conta da grande utilização e incorporação ao vocabulário cotidiano das pessoas, o termo hashtag foi adicionado ao dicionário da língua inglesa Oxford em junho de 2014.

Chris Messina, um dos criadores da hashtag, apresentou a ideia a um desenvolvedor do Google. Messina sugeriu então que ela representasse a divisão de "grupos" no Twitter. Por meio das hashtags é possível que pessoas e empresas alcancem um público maior com as informações que divulgam nas redes sociais. Também, devido a utilização delas, é mais fácil conseguir mensurar e ter mais controle sobre o que está sendo publicado sobre um determinado tema. Por isso, as hashtags devem ser utilizadas como indexadores, com a finalidade de melhorar as buscas futuras dos usuários. Utilizá-las para destacar uma a uma as palavras de uma frase causa

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dificuldade na leitura, transmitindo uma qualidade negativa do conteúdo e da informação que está sendo passada.

Considerações finais

Essas três novidades semióticas produzem diferenças em nosso linguajar, uma vez que operam sincretismos entre o verbal e o não-verbal nas telas digitais. Há uma rostificação do signo verbal, uma vez que o teclado com o qual digitamos abriga agora caracteres não verbais, que acirram o entrelaçamento entre o linguajar e o emocionar em nossas redes de conversação.

A mobilidade inerente às coordenações de condutas humanas recursivas e recorrentes, sempre no linguajar, tem levado ao fenômeno que o observador pode denominar tecnocultura, no qual, atualmente, se pode distinguir uma Cultura da Mobilidade, impulsionada pela disseminação de tecnologias móveis, no âmbito da cultura da mobilidade.

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