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267 DISCURSO E PODER: ANÁLISE DAS DISPUTAS ACERCA DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NA UEPG 1 Daiane Franciele Morais de Quadros 2 Ione da Silva Jovino 3 RESUMO: Pretendemos apresentar neste artigo parte da pesquisa em andamento cujo objetivo principal é analisar os discursos que resultaram no atual sistema de reservas de vagas, tendo como foco principal as falas sobre o sistema de cotas raciais dentro da Universidade Estadual de Ponta Grossa. E para compreendermos os embates e as contradições que culminaram nas alterações aplicadas na política de cotas adotada pela universidade, realizaremos a análise crítica dos discursos presentes nas atas e gravações de reuniões dos Conselhos de Ensino, Pesquisa e Extensão e do Universitário do ano de 2013. A Resolução UNIV. Nº 17 DE 9 de dezembro de 2013 foi precedida de um intenso debate, mas culminou na retirada das cotas raciais. Após manifestações públicas o processo volta à pauta e depois de nova votação, a referida resolução manteve as cotas para alunos negros oriundos de escolas públicas. Outro material a ser analisado é uma cartilha informativa sobre cotas raciais, desenvolvida pela instituição no ano de 2015. Este material após ser divulgado na internet e impresso, também foi alvo de críticas e disputas de poder internas, sendo retirado do site institucional e sua distribuição da versão impressa às escolas cancelada. Pensando a partir de Machado, Lázaro e Tavares (2013) a importância das ações afirmativas, de Gomes (2003) e Sant’Anna (2006) a função social das mesmas, de Muniz (2009) e Ottoni (2014 e 2007) sobre a linguagem e as relações de poder, o foco desse trabalho será a análise da cartilha e de sua nova versão ainda no prelo. Buscará destacar as relações entre a estrutura social e a discursiva, em especial as escolhas lexicais, as estratégias discursivas, as propriedades visuais, evidenciando as questões que o discurso exerce num sistema social de desigualdade racial Dijk (2008). PALAVRAS- CHAVE: Análise crítica do discurso. Política de ações afirmativas. UEPG 1. Introdução O foco principal deste artigo resume- se em apresentar um dos resultados parciais da pesquisa: “Discurso e Poder: Análise das disputas acerca das ações afirmativas na UEPG” iniciada no ano de 2015 no programa de Pós-Graduação Mestrado em Linguagem, Identidade e Subjetividade da UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa), cujo objetivo principal consiste em analisar os discursos que resultaram no atual sistema de reservas de vagas, tendo como foco principal as falas sobre o sistema de cotas raciais dentro da Universidade Estadual de Ponta Grossa, para assim compreender os embates e as contradições que culminaram nas alterações aplicadas na política de cotas adotada pela universidade. Este projeto de mestrado foi parcialmente apresentado e publicado em eventos como: IV Pensando Áfricas e suas diásporas, Seminário: Discursos, Linguagens e Relações Raciais e EUDUSOPARANA (XXIV Semana da Educação II Encontro de Educação Social- do Paraná e IV Encontro de Comunicação e Educação de Ponta Grossa). 1 Texto completo de trabalho apresentado na Sessão Linguagens, Culturas e Identidades, do Eixo Temático Estudos de Análise do Discurso do 4. Encontro da Rede Sul Letras, promovido pelo Programa de Pós- graduação em Ciências da Linguagem no Campus da Grande Florianópolis da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) em Palhoça (SC). 2 Estudante de Mestrado do programa de Pós-graduação Mestrado em Linguagem, Identidade e Subjetividade da UEPG. Mestranda. E- mail: [email protected] 3 Docente do Doutorado em Educação da UFSCAR. Doutora. E- mail: : [email protected]

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DISCURSO E PODER:

ANÁLISE DAS DISPUTAS ACERCA DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NA UEPG1

Daiane Franciele Morais de Quadros2

Ione da Silva Jovino3

RESUMO: Pretendemos apresentar neste artigo parte da pesquisa em andamento cujo objetivo principal é analisar os discursos que resultaram no atual sistema de reservas de vagas, tendo como foco principal as falas sobre o sistema de cotas raciais dentro da Universidade Estadual de Ponta Grossa. E para compreendermos os embates e as contradições que culminaram nas alterações aplicadas na política de cotas adotada pela universidade, realizaremos a análise crítica dos discursos presentes nas atas e gravações de reuniões dos Conselhos de Ensino, Pesquisa e Extensão e do Universitário do ano de 2013. A Resolução UNIV. Nº 17 DE 9 de dezembro de 2013 foi precedida de um intenso debate, mas culminou na retirada das cotas raciais. Após manifestações públicas o processo volta à pauta e depois de nova votação, a referida resolução manteve as cotas para alunos negros oriundos de escolas públicas. Outro material a ser analisado é uma cartilha informativa sobre cotas raciais, desenvolvida pela instituição no ano de 2015. Este material após ser divulgado na internet e impresso, também foi alvo de críticas e disputas de poder internas, sendo retirado do site institucional e sua distribuição da versão impressa às escolas cancelada. Pensando a partir de Machado, Lázaro e Tavares (2013) a importância das ações afirmativas, de Gomes (2003) e Sant’Anna (2006) a função social das mesmas, de Muniz (2009) e Ottoni (2014 e 2007) sobre a linguagem e as relações de poder, o foco desse trabalho será a análise da cartilha e de sua nova versão ainda no prelo. Buscará destacar as relações entre a estrutura social e a discursiva, em especial as escolhas lexicais, as estratégias discursivas, as propriedades visuais, evidenciando as questões que o discurso exerce num sistema social de desigualdade racial Dijk (2008).

PALAVRAS- CHAVE: Análise crítica do discurso. Política de ações afirmativas. UEPG

1. Introdução

O foco principal deste artigo resume- se em apresentar um dos resultados parciais da pesquisa: “Discurso e Poder: Análise das disputas acerca das ações afirmativas na UEPG” iniciada no ano de 2015 no programa de Pós-Graduação Mestrado em Linguagem, Identidade e Subjetividade da UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa), cujo objetivo principal consiste em analisar os discursos que resultaram no atual sistema de reservas de vagas, tendo como foco principal as falas sobre o sistema de cotas raciais dentro da Universidade Estadual de Ponta Grossa, para assim compreender os embates e as contradições que culminaram nas alterações aplicadas na política de cotas adotada pela universidade. Este projeto de mestrado foi parcialmente apresentado e publicado em eventos como: IV Pensando Áfricas e suas diásporas, Seminário: Discursos, Linguagens e Relações Raciais e EUDUSOPARANA (XXIV Semana da Educação II Encontro de Educação Social- do Paraná e IV Encontro de Comunicação e Educação de Ponta Grossa).

1 Texto completo de trabalho apresentado na Sessão Linguagens, Culturas e Identidades, do Eixo Temático Estudos de Análise do Discurso do 4. Encontro da Rede Sul Letras, promovido pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem no Campus da Grande Florianópolis da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) em Palhoça (SC). 2 Estudante de Mestrado do programa de Pós-graduação Mestrado em Linguagem, Identidade e Subjetividade da UEPG. Mestranda. E- mail: [email protected] 3Docente do Doutorado em Educação da UFSCAR. Doutora. E- mail: : [email protected]

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Tal pesquisa de cunho qualitativo ainda encontra- se em andamento e consiste em realizar análise crítica dos discursos em registros do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão do ano de 2013, como: atas, gravações das reuniões, reportagens, panfletos, vídeos, entrevistas e etc. Pois, a Resolução UNIV. Nº 17 DE 9 de dezembro de 2013 foi precedida de um intenso debate, mas culminou na retirada das cotas raciais. E após manifestações públicas o processo volta à pauta e depois de nova votação, a referida resolução manteve as cotas para alunos negros oriundos de escolas públicas. Neste sentido, pretende- se apresentar neste artigo como resultado parcial desta pesquisa, a análise crítica dos discursos das duas versões da cartilha informativa sobre cotas raciais elaborada pela UEPG no ano de 2015 e publicada em 2016, pois este material trata- se de um dos desdobramentos da nova resolução sobre a política de cotas da UEPG, que após ser divulgado na internet e impresso, também foi alvo de críticas e disputas de poder internas, sendo retirado do site institucional e houve o seu cancelamento na distribuição para as escolas da rede pública da região.

O presente artigo segue a seguinte ordem: em nossa fundamentação teórica apresenta- se uma reflexão sobre discurso e relações de poder elencando questões raciais e ações afirmativas. A metodologia foi de base qualitativa que deu- se através de uma minuciosa análise comparativa sobre os discursos reproduzidos através da relação entre textos verbais e não verbais das duas versões da cartilha informativa sobre cotas raciais. Em nossas considerações finais, concluímos que tais textos analisados estrategicamente compõem narrativas visuais que reproduzem discursos orientados por ideologias a fim de influenciarem nas relações de poder dentro de um sistema social de desigualdade racial.

Discurso e poder dentro de um sistema social de desigualdade racial

De acordo com Djik (2008), Silva e Rosemberg (2008) e Ferreira (2010) em nossa sociedade há um discurso que proclama não haver racismo no Brasil ou de que em nosso país prevalece o sistema de democracia racial, pois, “na perspectiva de uma política ideológica e de uma ideologia acadêmica de “democracia racial”, o racismo foi frequentemente negado” (DJIK, 2008, p.13), porém de acordo com Silva e Rosemberg (2008) e Ferreira (2010) este discurso está em constante desconstrução por meio de pesquisas acadêmicas que comprovam que tais realidades estão longe de formar parte de nosso contexto. Pois, segundo Silva e Rosemberg (2008) e Djik (2008, p.14) “na América Latina o racismo está enraizado no colonialismo e nas subsequentes formas de dominação social, econômica e cultural pelas elites (mais) brancas”. Neste sentido, Djik (2008) elenca que o racismo não é algo inato, mas assimilado através de todo um complexo processo cognitivo que envolve vários elementos como: escola, meios de comunicação de massa, através de observações diárias e interações sociais, que Kleiman (1995) define como agências de letramentos.

é baseado na conversação e no contar histórias diárias, nos livros, na literatura, no cinema, nos artigos de jornal nos programas de TV nos estudos científicos, entre outros. Muitas práticas de racismo cotidiano, tais como as formas de discriminação podem até certo ponto ser explicadas, legitimadas ou sustentadas discursivamente de outro modo. Em outras palavras maioria dos membros dos grupos dominantes aprende a ser racista devido às formas de texto e de fala numa ampla variedade de eventos comunicativos. (DJIK, 2008, p. 15)

Podendo- se concluir de acordo nesta observação do autor, que tal processo descrito de aprendizado, assimilação do racismo é um fenômeno amplamente discursivo. Pois, como Cunha (2008), Sardelich (2006) e Manguel (2001) teorizaram que imagens de situações sempre vividas pelo ser humano são armazenadas em nossas mentes e compõem narrativas imagéticas, que

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podem ser consideradas como textos, pois tais elementos enquadram- se na definição que Marcuschi (2008) atribui para que um evento comunicativo seja considerado um texto:

um tecido estruturado, uma entidade significativa, uma entidade de comunicação e um artefato sociohistórico. De certo modo, pode- se afirmar que o texto é uma (re) construção do mundo e não uma simples refração ou reflexo. (MARCUSCHI, 2008, p. 72)

Ou seja, compreende- se de acordo com esta a definição textual de Marcuschi (2008), que as narrativas imagéticas como textos, são eventos comunicativos, pois nelas há convergência de ações linguísticas, cognitivas e sociais transmitindo assim, mensagens para os interlocutores. Podendo ser-nos apresentadas através da composição de diversificados gêneros textuais, como: fotografia, desenho, pintura, charge, cartum, histórias em quadrinhos, e etc. Pois, segundo Marcuschi (2008, p.161) “os gêneros são atividades discursivas socialmente estabilizadas que se prestam aos mais variados tipos de controle social e até mesmo ao exercício de poder”. Para Marcuschi (2008), os gêneros textuais como elemento da linguagem podem ser utilizados dentro de uma esfera discursiva como ferramenta de controle social “incontrolável, mas não determinista” (MARCUSCHI, 2008, p. 162) nas relações de poder.

Nesta perspectiva, visando à influência dos discursos nas construções de identidades, Muniz (2009, p.8) contextualiza que “a identidade e as relações de poder deixaram de ser apenas uma questão de classe para acontecer nos grupos e movimentos sociais”. Em concordância com Muniz (2009), Moita Lopes (2013), Rivas e Diez (2014) e Blommaert (2006) também nos induz a refletir que, nesta forma de manifestação da língua através da autoafirmação da identidade, há sempre discursos carregados de interesses políticos, pois de acordo com os autores, nenhum discurso é neutro. Moita Lopes (2013), argumenta que a abordagem da língua associada com aspectos sociais e culturais passaria a se tornar um projeto discursivo e não um fato estabelecido, de tal forma que o projeto discursivo é orientado por ideologias. Ottoni (2007) dialoga com Moita Lopes (2013) ao afirmar que:

vivemos um momento histórico de intensas mudanças sociais e discursivas e, em função disso, cada vez mais cresce a conscientização sobre a importância da linguagem que se insere como sistema mediador de todos os discursos. (OTTONI, 2007, p. 14)

É possível compreender na contextualização da autora que este espaço histórico, denominado como dinâmico está relacionado com aspectos sociais e discursivos, chamando-nos cada vez mais a atenção para a relevância da linguagem em todo este processo como mediadora de todos os discursos que sempre são orientados por ideologias. E ainda acrescenta:

uma vez no discurso e através dele os indivíduos produzem, reproduzem, ou desafiam as estruturas e as práticas sociais onde se inserem, descrever e explicar os gêneros discursivos, relativamente às representações, relações sociais e identidades neles e por eles construídas, é útil e necessário (OTTONI, 2007, p. 14)

Pois, seguindo o raciocínio de Ottoni (2007) em concordância com Marcuschi (2008) que afirma que poder multidimensional do discurso tornaria- se para os indivíduos uma espécie de arma capaz de causar vários efeitos nas estruturas e práticas sociais. Seguindo a mesma perspectiva teórica de Ferreira (2010) e Djik (2008), Muniz (2009, p.xi) acrescenta que esta “polarização entre brancos e negros” como estratégia social do movimento negro tornou- se ferramenta para adquirir força política para a essencialização da identidade racial negra “que até então estava diluída no “discurso da miscigenação e mascarada pelo mito da democracia racial” (MUNIZ, 2009, p.xi). E neste contexto, para a autora, tal essencialização da identidade negra pode ser considerada como um grande trunfo linguístico e político bastante relevante no processo de adquirir direitos historicamente negligenciados para a população negra no Brasil.

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Por este motivo, acredita- se que o que ajuda a desconstruir ainda mais o discurso da democracia racial, fortalecendo ainda mais a essencialização da identidade negra afim de promover reparação das desigualdades sociais vivenciadas por eles no Brasil que Muniz (2009), Djik (2008) e Ferreira (2010) referem- se, é a existência das ações afirmativas na sociedade brasileira, que segundo Gomes (2003) e Machado, Lázaro e Tavares (2013) nos últimos anos vêm concretizando- se através de propostas no Congresso Nacional e projetos de leis que visam à introdução de modalidades de ação afirmativa no Direito brasileiro, que Gomes (2003) define como:

Políticas públicas (e privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Na sua compreensão, a igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos, e se passa ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade. (GOMES, 2003, p. 21)

Ou seja, Gomes (2003) classifica as ações afirmativas como políticas públicas de reparação de desigualdade material, e nesta perspectiva, Machado, Lázaro e Tavares (2013) elencam que os objetivos das ações afirmativas seriam procuram combater através da aplicação de medidas de reparação das desigualdades sociais através de programas e projetos de leis que proporcionem as populações no Brasil que tiveram histórico de desigualdades, perseguições e maus- tratos, o direito a educação, saúde, moradia e emprego, para assim promover igualdade material dentro de um determinado prazo, os autores ainda elencam que tais atividades devem ser constantemente monitoradas e avaliadas. Pois, segundo o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana, já no início da jornada escolar, a educação básica ainda é profundamente demarcada pela desigualdade, pois nem todas as crianças e jovens permanecem na escola, e tal problemática afeta principalmente a infância e a juventude negra, pois muitos destes alunos não conseguem concluir a educação básica e muito menos ingressar no ensino superior.

Há evidências de que processos discriminatórios operam nos sistemas de ensino, penalizando crianças, adolescentes, jovens e adultos negros, levando-os à evasão e ao fracasso, resultam no reduzido número de negros e negras que chegam ao ensino superior, cerca de10% da população universitária do país. (BRASIL, 2009, p.9)

Em concordância com o Plano (2009), Veloso e Luz (2013) afirmam que por mais que nos últimos tempos exista todo um forte discurso de democratização do ensino de nível superior, ainda repercutem nas IES brasileiras reflexos de exclusão social que as classes menos favorecidas sempre sofreram ao longo de nossa história, pois conseguir uma vaga em uma universidade pública brasileira ainda tem sido um grande desafio para muitos estudantes pertencentes às categorias sociais de baixa renda.

Conseguir uma vaga na Educação Superior Pública no Brasil ainda constitui uma dificuldade, uma vez que o número de candidatos inscritos é sempre maior que o número de vagas ofertadas. Conforme o Censo da Educação Superior de 2010, o setor privado ofertou 84,89% das vagas na educação superior no Brasil, e o público apenas 15,02%, no entanto quando se observa a relação candidato/vaga, o setor público possuía a relação maior com 10,6% candidato para cada vaga (...). (VELOSO e LUZ, 2013, p. 45)

Machado, Lázaro e Tavares (2013) também refletem sobre este quadro, ao afirmar que, o ensino superior no Brasil manteve- se como um privilégio de acesso bastante restrito aos grupos sociais mais favorecidos, como as categorias sociais pertencentes à elite “em sua grande maioria

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brancos, de classes médias e altas, residentes nas capitais, filhos de famílias cujos pais já haviam frequentado a universidade” (MACHADO, LÁZARO e TAVARES, 2013, p. 6). Fato este que o Plano (2009) e Djik (2008), denunciam como um problema de dimensão racial, pois “a desigualdade social foi geralmente atribuída à classe social, e não à raça sem investigar completamente as várias raízes da desigualdade de classe e pobreza” (DJIK, 2008, p.13). Para comprovar este quadro Silva e Rosemberg (2008) expõem que:

O racismo histórico e contemporâneo constitutivo da sociedade brasileira fica evidente quando se analisam diversos indicadores sociais ou quando se calcula o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em separado para a população negra e para a população branca: o índice de brancos equivale a 0,791 (41° posição) e o de negros a 0,671 (108° posição). (SILVA e ROSEMBERG, 2008, p. 77)

Tais fontes e estatísticas mencionadas pelos autores indicam certa discrepância na diferença entre os números de brancos e negros nos índices de IDH, pois os negros ocupam a 108° colocação no Índice de Desenvolvimento Humano, enquanto que os brancos encontram- se na 41° posição. Dialogando com os autores, Santana (2006) indica-nos que uma maneira de situar este problema, no contexto da sociedade brasileira, seria que apreendêramos o racismo como um elemento nuclear nessa formação socioeconômica, político-cultural e que tal desafio, deveria ser enfrentado em profundidade.

Segundo Machado, Lázaro e Tavares (2013) em concordância com Muniz (2009), a aprovação da Lei de Cotas n° 12.711/ 2012 seria a representação de conquistas decisivas para os movimentos sociais brasileiros, especialmente para os movimentos negros que sempre debateram seus direitos abrindo o caminho para o acesso da juventude negra e pobre ao ensino superior público e de qualidade. Isto seria, um exemplo de situação que Spivak (2010) menciona ao teorizar que “os sujeitos oprimidos falam, conhecem e agem por si mesmos leva a uma política utópica e essencialista.” (SPIVAK, 2010, p.35). Por este motivo Sant’ Anna (2006) em concordância com Muniz (2009) argumenta que as ações afirmativas concretizadas nas universidades públicas no formato de cotas raciais é também um assunto político.

Não quero dizer com isso que todos os afro-descendentes ingressos nas universidades tenham que, por obrigação, assumir causas ou processos de revisão, mas, sem dúvida, esse aspecto da história das instituições acadêmicas merece vir a público. Isso porque, no caso brasileiro, essa é a história dessas instituições e de seus pensadores. E isso é um assunto político. (SANT’ANNA, 2006, p. 15)

Muniz (2009) ao citar o exemplo dos movimentos negros que lutam pelos seus direitos de serem e de existirem. Pode- se compreender de acordo com a autora, que a língua para estes sujeitos seria uma espécie de ferramenta nas relações de poder, e nesta situação a autora defende que a identidade torna- se:

ponto primordial da luta desse sujeito que não quer ser apenas identificado pela cor de sua pele, pela sua opção sexual ou pelo fato de ser mulher ou homem, mas antes de tudo pelo fato de ser um cidadão com deveres e direitos que devem ser respeitados. (MUNIZ, 2009, p. 8)

Pois, a autora esclarece que hoje para os sujeitos afrodescentes assumir a identidade étnico-racial negra, não trata- se somente de características fenotípicas é também uma questão política.

A intelectualidade negra, tanto a masculina quanto a feminina surge, como expressão coletiva, nos movimentos negros a partir da década de 1970, dado que foram nesses

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espaços que foi possível o cultivo de discussões e de uma auto formação no que tange a questões sobre política, racismo, artes, discriminação etc. (MUNIZ, 2009, p.9)

Neste sentido, Muniz (2009) assim como Hall (2010) chama-nos bastante atenção para a observação da importância da necessidade que temos de nos autonomear, pois de acordo com Muniz (2009), para existir alteridade deve haver auto nomeação, porque “assim, ratifica ou extingue nossa existência está e estará sempre presente. ” (MUNIZ, 2009, p.3), ou seja, para a autora assim como Hall (2010) também elenca, a diferença desempenha papel primordial na formação das identidades. Desta forma, é possível concluir com a reflexão dos autores e nas demais reflexões teóricas apresentadas neste tópico, que todo o processo linguístico envolve construções ideológicas e de alteridade que acarretarão em mobilizações e práticas políticas através da utilização da língua nas relações de poder dentro de um sistema social de desigualdade racial.

Metodologia

A metodologia deste trabalho foi de base qualitativa e exploratória que envolveu análise e revisão bibliográfica, concretizando- se também através da realização da análise crítica dos discursos nas duas versões da cartilha informativa sobre cotas raciais publicada pela UEPG em 2016, cuja análise será apresentada no próximo tópico.

Análise de dados

No presente tópico deste artigo realizamos um parecer geral sobre o perfil das duas versões da cartilha informativa sobre cotas lançada pela UEPG, ao mesmo tempo em que se realiza em ambas a análise crítica dos discursos. Pois, nos chama bastante atenção a diferença entre a capa da primeira e a segunda versão da cartilha, porque na capa da primeira versão, consta o seguinte subtítulo “Orientações sobre a reserva de vagas destinada a candidatos ao Concurso Vestibular da UEPG, estudantes de Instituições Públicas e que se autodeclarem negros”. E é dado destaque para o desenho caricatural da figura de uma mulher branca que fala: “Vamos entrar pessoal! ”, o que nos leva a presumir que, trata- se de uma professora convocando seus alunos para entrar na sala de aula. E ao lado direito desta figura aparece o enunciado, principal tema da cartilha: “Nosso assunto hoje são ações afirmativas - COTAS”.

Na capa da segunda versão há presença de quatro adolescentes estudantes, e dentre eles, três são alunos negros que estão em um ambiente de sala de aula de ensino médio, a fim de ilustrar que na UEPG, uma Instituição de Ensino Superior pública e gratuita, existem ações afirmativas no

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formato de cotas para estudantes negros e de escolas públicas. Ou seja, a linguagem visual, diferentemente da primeira versão da cartilha condiz com o título, “Ações Afirmativas na UEPG, fique atento (a)! ”, pois nota- se que os elaboradores desta nova versão objetivaram criar personagens muito mais parecidos com os próprios sujeitos atendidos pela política de cotas, para representar as ações afirmativas. Ponto este que destacamos como um avanço em relação à identificação e representatividade do público leitor, pois este aspecto deixou a desejar visivelmente desde a capa da primeira versão.

Quanto ao gênero textual utilizado por ambas as versões da cartilha, percebemos que intencionalmente foi eleito o gênero histórias em quadrinhos (HQ) para fins didáticos de esclarecimento das informações sobre as cotas na UEPG, pois este material será consumido por professores e estudantes dos últimos anos da Educação Básica. Lembrando- nos Marcuschi (2008) que discute que os gêneros textuais desempenham papel crucial nas relações de poder. Também devemos considerar que a própria temática demanda na discussão sobre representatividade imagética dialogada por Cunha (2008), Manguel (2001) e Sardelich (2006), que afirmam que as imagens nos constroem como sujeitos, compõem narrativas e principalmente visões de mundo.

E como em ambas as versões da cartilha tratam- se de narrativas em HQ, suas primeiras páginas chamam- nos bastante atenção. Pois, na ilustração da primeira versão da cartilha, a professora aparece rodeada por seis diferentes tipos de estudantes a fim de representar a diversidade cultural e racial das escolas públicas brasileiras. Porém, observa- se que esta representatividade da diversidade cultural e racial ocorreu de forma sarcástica, pois esta versão da cartilha foi fortemente demarcada entre suas principais características, pela presença de personagens caricaturados e infantilizados. Sendo também importante destacar assim como na figura abaixo, que os alunos caracterizados com o tom de pele mais clara encontram- se mais próximos à figura da professora.

Já a narrativa da segunda versão da cartilha informativa, a história inicia- se com a apresentação do que seria a representação de um ambiente escolar, neste ambiente é dado

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destaque para a placa deste colégio fictício, com o objetivo de situar e transmitir credibilidade ao leitor sobre o ambiente onde se desenvolverá a história dos protagonistas da HQ. Na porta da escola há o encontro entre um casal de adolescentes negros, que assim como em uma situação rotineira das escolas de nossa região, começam dialogar.

Observando esta imagem, nota- se que o foco principal deste diálogo informal entre os personagens Carolina e Igor, é as ações afirmativas, pois o rapaz após cumprimenta sua colega de escola e logo menciona este assunto. Nesta HQ da nova versão da cartilha, todos os personagens que apresentam suas vozes possuem também uma identidade, ou seja, um nome, como: Carolina, Igor, Cristian, Isa e Mateus, diferentemente da primeira versão da cartilha que todos os personagens são identificados pelos seus nomes, com exceção da professora que durante a narrativa nunca é chamada por um nome e sim referida apenas como “professora”. Outra característica fundamental para destacar nas duas versões da cartilha, seria a discussão sobre ações afirmativas. A situação utilizada como contexto de simulação da realidade de uma escola pública representada na narrativa imagética da primeira versão da cartilha é a simulação de uma aula onde a figura da professora serve como mediadora para os alunos das informações sobre o que são ações afirmativas e as cotas.

Como por exemplo, observa- se na imagem acima, que a personagem da professora começa a explicar o que são políticas de ações afirmativas com base em alguns livros que ela traz representados em suas mãos. Este monólogo da personagem poderia ser um pouco mais sintético: “as ações afirmativas são políticas voltadas para o atendimento de grupos discriminados e vitimados pela exclusão sócio- econômica ocorrida no passado ou no presente. ”. É importante destacar nesta sentença que há a definição do que são ações afirmativas. Quando a personagem

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refere- se aos grupos alvo destas políticas, os sujeitos são adjetivados como “discriminados” e “vitimados”.

Observa- se que esta estratégia discursiva da primeira versão da cartilha serve para justificar a existência das ações afirmativas quando se é reforçado a carga semântica de “discriminados” e “vitimados” na próxima sentença: “medidas transitórias que visam combater às discriminações étnicas, raciais, religiosas e de gênero. Buscando aumentar a participação destes grupos no acesso à educação, saúde, emprego etc.” justifica a existência das ações afirmativas, ao ser apresentado o raciocínio: “Buscando aumentar a participação destes grupos no acesso à educação, saúde, emprego etc.”. Aqui é descrito que estas políticas fornecem assistência a estes grupos minoritários, que assim como Muniz (2009) e Silva e Rosemberg (2008) elencam que no contexto da população brasileira o povo afro-brasileiro seu número populacional é de representação significativa, mas no quesito IDH, qualidade de vida tornam- se minoria. E para finalizar a definição do termo ações afirmativas, é apresentado como elas são aplicadas no contexto da UEPG, quando a personagem da professora afirma que a instituição “possui reserva de vagas para alunos que estudaram em escolas públicas e para alunos negros que estudaram em escolas públicas (cotas)”.

Ainda quanto às informações sobre as ações afirmativas, na segunda versão da cartilha, ao contrário da primeira, constatamos que há uma polifonia de discursos que envolvem as terminologias cotas e ações afirmativas. Pois, nesta versão é enfatizado a voz dos alunos da escola pública que dialogam informalmente sobre um assunto importante antes de iniciar a aula, apresentando seus multiletramentos e conhecimentos prévios que eles possuem sobre este assunto. Aspecto este que na segunda versão rompe completamente com os estereótipos criados na primeira versão da cartilha, de alunos de escola pública caricaturados, infantilizados, ingênuos, que não possuíam nenhum tipo de opinião e informação a respeito do tema. Assim como é explicitado nos exemplos a seguir da primeira versão da cartilha informativa:

Neste diálogo destacado, a professora explica de forma clara sobre a atual resolução da UEPG, que 50% das vagas são para estudantes oriundos de escolas públicas, destes 50% de vagas, 10% estão voltadas para candidatos que se autodeclararem negros. Também torna- se importante mencionar no próximo trecho que brevemente resumiremos, que houve esforço por parte dos autores da primeira versão da cartilha para esclarecer como funciona a atual resolução do sistema de cotas da UEPG. Exemplo este que reforça ainda mais as falhas de representatividade imagética na primeira versão da cartilha que manifesta- se no momento em que a personagem discute sobre o sistema de cotas para negros. Nesta situação, o único menino negro do grupo aparenta interessar- se pelo assunto, perguntando: “Como assim? ”.

É possível observar nesta esfera discursiva que envolve fala e ilustração do aluno negro, que ele é completamente estereotipado infantilizado e dotada de certa ingenuidade assim como Silva e Rosemberg (2008) observaram sobre estereótipo de meninos negros criados pela mídia. Porque, nesta situação somente o aluno negro e outro aluno que a professora define como

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“afrodescente” apresentam interesse sobre o assunto, e os demais alunos não pronunciam- se. E principalmente na expressão corporal da figura do menino negro, é possível observar os reflexos deste estereótipo de ingenuidade infantil, pois ele encontra- se de mãos unidas como em um gesto de agradecimento.

Na continuidade desta situação, é possível constatar no discurso da professora, no momento em que ela explica sobre o funcionamento das regras para prestar vestibular através do sistema de cotas para negros, exemplificando o caso de Luis, o aluno negro. Nota- se neste trecho da HQ uma sutil predominância de uma ideologia preconceituosa e confusa sobre à identidade racial afro-brasileira e a “etnia africana”, como no seguinte trecho da cartilha: “Vejam o caso do Luis, ele poderá optar por esse direito, pois possui características físicas, do grupo étnico africano (negro).”.

Pois, a professora afirma que Luis pode optar pelo sistema de cotas para negros no concurso de vestibular, porque este apresenta aspectos físicos “do grupo étnico africano”. E o termo “negro” na fala da professora é colocado entre parênteses, pois constatamos que nestas terminologias destacadas, que há ambíguas cargas semânticas, que reforçam a principal noção preconceituosa de que a África seria um país e o povo africano uma população fenotipicamente e culturalmente homogênea. Pois, a personagem da HQ menciona os povos africanos de forma singular, desconsiderando completamente que África não é um país, mas sim um dos maiores continentes do planeta que abrange diversas nações multiculturais.

Na seguinte imagem que apresentamos, há ilustração do menino Lúcio, que pela sua representação, ele aparenta não ter o tom de pele tão escura como a de Luis, mas ele parece identificar- se com a identidade racial negra no momento em que afirma também poder prestar vestibular ou PSS através do sistema de cotas para negros: “Ah! Eu também tenho esse direito!”.

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Como desdobramento desta fala de Lúcio, começa talvez a parte mais confusa e intrigante da primeira versão da cartilha, pois nesta situação foi demarcada de forma bastante confusa toda uma discussão acerca de identidade racial: O que é ser negro? O que é ser afrodescendente? Pois, nesta situação, a professora afirma para Lúcio que ele não se enquadra na categoria cotas para negros, porque ele é “afrodescente! ”, e que o sistema de cotas da UEPG é somente para alunos negros. A professora contradiz ainda mais a noção de que a identidade racial afrodescente não está relacionada com o termo raça negra, situação esta que acabou sendo mal representada dentro desta primeira versão da cartilha. Pois, em nossa concepção tal situação acabou tornando- se extremamente confusa e inconveniente para discutir o complexo assunto da autoafirmação.

Quanto aos recursos linguísticos que correspondem às imagens, na segunda versão, há destaque para a eliminação das caricaturas, transmitindo assim aos seus interlocutores, sensação de seriedade e delicadeza manifestos pelo detalhismo dos desenhos, ao mesmo tempo, que este assunto também é abordado de forma descontraída pela linguagem semelhante à do cotidiano das escolas públicas da região.

Na comparação entre os discursos sobre ações afirmativas reproduzidos na primeira e segunda versão da cartilha, constatamos algumas semelhanças nas falas da aluna e da professora. Pois, na segunda versão da cartilha houve a utilização do mesmo texto que o da primeira, porém este parece ter sido mais lapidado e sintético, porque os autores preferiram copiá-lo do mesmo site especializado que foi citado na primeira versão da cartilha onde as informações estão organizadas de forma didática e sintética para leigos. Demarcando assim, a importância da intertextualidade entre de ambas as versões como fonte de conhecimento. Este mesmo processo ocorre na fala de outro personagem, um aluno negro que se contrapõem completamente ao estereótipo de infância e juventude negra refletido na versão anterior da cartilha, pois o personagem Cristian apresenta resumidamente o informativo da UEPG, suas conclusões e leituras acerca das cotas.

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Também torna- se importante destacar no discurso deste personagem, a riqueza de conhecimentos que ele possui acerca do delicado assunto da autodeclaração. Porque, a forma como ele expõe sua argumentação e entendimento foram expressas de forma didática, por intermédio de citação de exemplos do cotidiano dos alunos, relacionando-os brevemente com o significado do termo fenótipo, também exemplificado como sinônimo de características físicas de um grupo étnico-racial. Pois, a mesma ideia também foi expressa na primeira versão da cartilha, assim como consta no exemplo a seguir:

Tal situação descrita no diálogo acima, poderíamos considerar como ponto positivo dentro da primeira versão da cartilha, pois no diálogo entre a professora e aluno houve algumas seleções lexicais que podemos assimilar como estratégia discursiva de tentativa de adequação da linguagem, a fim de assemelhar a linguagem da cartilha à linguagem de seus interlocutores por meio de gírias, como destaca- se no exemplo a seguir: “Tipo assim” e “ficarem ligados”, como forma de alerta para que os candidatos não cometam equívocos no momento da inscrição para o vestibular.

E como último discurso sobre cotas que analisamos na segunda versão da cartilha informativa da UEPG, destacamos a sentença “Cotas são um direito! ”.

Ao analisar este trecho da HQ, observa- se a presença da manifestação e confirmação de que para a segunda versão da cartilha (p.6): “A reserva de vagas é um direito conquistado.”. Prosseguindo com o raciocínio, é realizado um breve histórico sobre a trajetória das entidades e organizações sociais que conquistaram este direito, sendo também mencionado desde quando as

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cotas foram integradas às políticas públicas da UEPG e que no ano de 2013 foi mantida. Quanto às escolhas lexicais da segunda versão da cartilha, destacamos o subtítulo, pois nele há palavras-chave que contribuem para compor este conjunto que define a perspectiva de abordagem das cotas na cartilha como meio de promoção de: “Igualdade e oportunidade para todas e todos”. Nesta sentença nota- se principalmente que a proposital eleição lexical dos termos “igualdade” e “oportunidade” contrastam com o discurso da primeira versão da cartilha que expressa que as ações afirmativas seriam um direito concedido às populações desprivilegiadas da sociedade. Pois, a carga semântica de “igualdade” e “oportunidade” expressa o principal discurso de que ações afirmativas seria uma conquista de oportunidades, para que tais sujeitos beneficiados por tais políticas almejem alcançar igualdade no acesso às melhores condições de vida que já formam parte à agenda de direitos garantidos à elite.

Também torna- se importante destacar a presença do diálogo informal na segunda versão, como estratégia linguística e discursiva. Pois, ao analisarmos a maioria dos diálogos entre os personagens, constatamos a manifestação do fenômeno linguístico do processo de reestruturação silábica que envolve a supressão de sílabas do verbo estar, como reflexo da oralidade, que manifesta- se através da supressão ou eliminação das sílabas iniciais do verbo estar que encontrava- se conjugado em algumas situações na primeira e terceira pessoa do singular do tempo presente do modo indicativo, assim como consta nos seguintes exemplos: “Você tá sabendo que a UEPG tem “Ações Afirmativas”? (p.1); “eu tô atenta!” (p.1) e “Vocês já tão sabendo sobre as cotas para se inscrever no vestibular da UEPG?” (p.2).

Outro aspecto que caracteriza os diálogos entre os personagens adolescentes desta segunda versão, é a utilização de expressões do dia- a dia e gírias como estratégia linguística e discursiva. Como por exemplo, “O papo tá bom, heim?” (p.4), “Fique ligado (a)” (p.6) e “Não pise na bola” (p.7).

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Estas marcas da oralidade presentes no texto como expressões e gírias, na segunda e terceira imagem são subtítulos como “Fique ligado!” e “Não pise na bola:” a fim de prender a atenção de seus interlocutores. Pois, é possível identificar nas imagens, que ambos os subtítulos são prosseguidos de enunciados que servem como avisos, alertas aos futuros candidatos que prestarão concurso vestibular. Como no subtítulo “Fique Ligado!” o conteúdo do texto que segue abaixo, avisa os candidatos que prestarão vestibular que eles deverão ler o manual do candidato disponível no site da instituição, termo este digitado em letras maiúsculas, para os candidatos saberem se poderão ou não inscrever- se pelo sistema de cotas da UEPG. “Não pise na bola: Marque direito se você tem direito!” destacado como subtítulo. Observa- se que este trocadilho impregnado após o aviso “Não pise na bola” aparece com o objetivo de prender ainda mais a atenção do leitor de forma criativa em um jogo de palavras, ao mesmo tempo em que a carga semântica desta sentença apresenta fortemente a perspectiva subjetiva do significado semântico de que o termo “cotas” é sinônimo de direito quando não se cometem equívocos. Pois no corpo do texto envolve informações sobre os devidos procedimentos para a realização da autodeclaração perante a instituição e o alerta para as possíveis consequências no caso de denúncias e comprovações de falsas declarações.

Em seguida, também torna- se importante destacar a ênfase às relações de gênero presentes ao longo da cartilha, pois este aspecto reflete- se, principalmente, nos termos: “atento (a)” presentes no título, “todos” e “todas”, subtítulo, “negros e negras”, “eles (as)” (p. 2), pois a esta nova versão da cartilha ao contrário da primeira, todas as páginas foram numeradas. Podemos destacar que a menção do gênero feminino na cartilha expressa a carga semântica de inclusão, pois o subtítulo trata- se de abordar: “Igualdade e oportunidade para todas e todos”. Na primeira versão da cartilha informativa há também estas discussões que deu- se através da inclusão das relações de ideologia de gênero inserida através de informações sobre como solicitar o direito de utilização dos nomes sociais à comunidade LGBT, elencando sempre a leitura atenta do manual do candidato.

Considerações finais

Com base em todas as reflexões teóricas realizadas no decorrer deste artigo acerca de discurso e relações de poder refletidos através de textos, como a cartilha analisada neste trabalho que futuramente influenciará nas construções de identidades, opiniões e até mesmo na formação de novos discursos sobre as ações afirmativas dentro de um sistema social de desigualdade racial. Concluímos que na sociedade, todos os textos reproduzem discursos que são orientados por ideologias.

Por este motivo concluímos que nunca nenhum texto ou discurso será neutro nas relações de poder, porque analisando a definição que Marcuschi (2008) atribui ao texto, as narrativas reproduzidas pelo gênero histórias em quadrinhos analisadas nas duas versões da cartilha informativa enquadra- se nesta categoria, pois o gênero textual escolhido torna- se um elemento linguístico produzido e utilizado para atender a um objetivo específico nas relações de poder dentro deste sistema social de desigualdade racial que compõe nosso atual contexto acadêmico, e que pode causar imprevisíveis efeitos nas estruturas sociais.

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Por este motivo, conclui- se que a cartilha analisada neste artigo é um exemplo de tais reflexos pois sua finalidade social é discutir e informar acerca do funcionamento da política de cotas raciais dentro da UEPG. Pois, ambas as versões da cartilha reproduzem em alguns aspectos semelhanças, porém inúmeras diferenças em perspectivas de abordagens de representação da escola pública e pontos de vista sobre a temática das cotas e ações afirmativas manifestados através de um conjunto de elementos linguísticos que compõem tais narrativas imagéticas que provavelmente influenciarão no processo de identificação dos interlocutores, construções de identidades, formação de novas subjetividades e propagação de novos discursos e ideologias acerca destas políticas públicas.

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