mitos, deuses e heróis gregos

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Mitos, Deuses e Heróis Gregos

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Mitos, Deuses e Heróis Gregos

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Mitos, Deuses

e

Heróis Gregos

Page 3: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Claudio Blanc

Mitos, Deuses e

Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros

de São Paulo

Page 4: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Supervisão editorial Editora Avalon

Capa Olavo Bernardes

Projeto Gráfico Olavo Bernardes

Revisão Silvio Siqueira

Claudio Blanc Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Primeira edição – fevereiro de 2013

Sindicato dos Padeiros

de São Paulo

Page 5: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Índice

1. O Mundo Grego 11

2. A Religião dos Gregos 29

3. Cosgomonias 45

4. Deuses 54

5. Heróis 100

Notas 1XX

Sobre o Autor 147

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Page 7: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

À Julia e à Lívia

Page 8: Mitos, Deuses e Heróis Gregos
Page 9: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

9

1

O Mundo Grego

ergulhar no universo dos gregos é assistir à epopeia

de um povo de pastores que, em cerca de mil e qua-

trocentos anos, construiu uma das mais importantes

civilizações da História, cujos ecos ainda hoje ressoam em

alto e bom som nos alicerces da civilização ocidental. É

conhecer uma cultura que se espalhou por todo o mundo

antigo, mudando para sempre a face da humanidade. Bra-

vos guerreiros, sob Alexandre, o Grande, os gregos subju-

garam o mais poderoso exército do seu tempo e estabele-

ceram o maior império constituído até então; inspirados

filósofos, investigaram os céus, levantaram hipóteses so-

bre a origem do Cosmos, conceberam o átomo, aperfeiço-

aram a matemática e a geometria, deixaram, enfim, sua

profunda marca, estabelecendo a pedra fundamental da

civilização ocidental.

M

Page 10: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

A Grécia Antiga, porém, não era o que hoje entendemos

apenas como o país Grécia. O termo é usado para descre-

ver os povos que falavam grego e que compartilhavam

uma religião comum. Geograficamente, a área ocupada

por esses povos era bem maior do que a atual península

grega. Compreendia, também, regiões de cultura helênica

colonizadas pelos gregos antigos: Chipre, a costa egeia da

Turquia – então chamada de Ionia –, a Sicília e o sul da

Itália, ou Magna Grécia, e colônias espalhadas nas costas

das atuais Albânia, Bulgária, Egito, sul da França, Líbia,

Romênia, Catalunha e Ucrânia.

Os povos que vieram constituir a civilização helênica che-

garam à península grega em várias ondas migratórias, a

partir do terceiro milênio antes de Cristo. Aqui, receberam

grande influência da civilização minóica, estabelecida na

ilha de Creta.

Creta

A civilização minóica se desenvolveu na ilha de Creta entre

2600 e 1375 a.C. Exímios marinheiros, durante cerca de

quatro séculos os cretenses prosperaram, negociando com

o Egito e a Grécia Continental. A civilização de Creta che-

gou ao seu apogeu por volta de 1600 a.C., dominando com

seus navios e sua cultura o Mar Egeu. Os minóicos se sen-

tiam seguros com a proteção do mar. Viviam em cidades

não fortificadas, próximas ao litoral e em terrenos pouco

elevados. Foi seu contato com a Grécia continental que

introduziu mercadorias, tecnologias e conhecimentos do

Egito e das civilizações mais desenvolvidas do Oriente Mé-

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

11

dio na Europa durante a Idade do Bronze. Então, no século

14 a.C., os minóicos deixaram de ser influentes.

Os Micênicos

Ao mesmo tempo em que a civilização minóica se desen-

volvia, chegava ao seu apogeu e decaía, povos arianos de

língua indo-europeia se estabeleciam na península grega.

As montanhas da Macedônia, ao norte, ainda eram habi-

tada por um povo que mais tarde se fundiu aos futuros

gregos, os pelasgos. Mas o centro da península, o Pelopo-

neso, e o extremo sul, a Ática, haviam sido dominados

pelos aqueus, os quais os gregos consideravam seus ante-

passados. Os aqueus eram mais desenvolvidos que os pe-

lasgos e constituíram uma civilização de fato. Pastores de

ovelhas e guerreiros, haviam se estabelecido ali a partir de

2.500 a.C. Conheciam o uso da quatriga – uma carruagem

de guerra com quatro rodas – e davam mais importância

ao homem do que à mulher na sociedade. Seus objetos de

culto diferem muito dos objetos das religiões centradas

em deidades femininas, como era comum no Oriente Mé-

dio e na própria região do Mar Egeu, antes da sua chega-

da1.

O centro dessa civilização foi Micenas, um assentamento

no Vale do Peloponeso. A influência da civilização de Creta

sobre eles foi fundamental, e Micenas se desenvolveu. A

partir de 1600 a.C., durante cinco ou seis séculos, essa

civilização se espalhou pela maior parte da Grécia conti-

nental, estabelecendo as fundações da futura cultura he-

lênica. Na verdade, foi um aprimoramento da organização

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Projeto Cultura e Memória

tribal, sob o comando de reis. Sua cultura não se baseava

em um único sistema político, mas era compartilhada por

vários principados, dos quais Micenas era o mais impor-

tante2.

Arte Minóica (Palácio de Cnossos, Creta)

Por conta da influência dos cretenses, os micênicos acaba-

ram conquistando a supremacia comercial do Mar Egeu,

em aproximadamente 1400 a.C., contribuindo com a de-

cadência de Creta. Mas com a entrada de um novo povo

no palco da Grécia, os dóricos, a cultura de Micenas aca-

bou se extinguindo entre os séculos 12 e 11 a.C.

Os Helenos

No século 8 a.C., a Grécia, dividida em várias comunidades

independentes, começou a emergir da sua Idade das Tre-

vas, como ficou conhecido o obscuro período histórico que

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

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se seguiu à queda de Micenas. A literatura e a escrita mi-

cênicas se perderam, mas, em aproximadamente 800 a.C.,

os gregos, ou helenos, como esse povo chamava a si mes-

mo, adaptaram o alfabeto fenício3. Era o começo de uma

nova civilização. Os próprios helenos traçaram o início da

sua cronologia nessa época, estabelecendo os primeiros

Jogos Olímpico, em 776 a.C., como o seu início.

Com o desenvolvimento da nova civilização, a população

cresceu além dos limites da capacidade da sua terra ará-

vel. Povo de destemidos marinheiros, os gregos iniciaram,

a partir de 750 a.C., um período de expansão que durou

cerca de 250 anos. Expedições de diferentes cidades esta-

beleceram diversas colônias em lugares tão distantes um

do outro como a Espanha e a Ucrânia. A costa do Egeu da

atual Turquia, a ilha de Chipre, a costa sul do Mar Negro, a

Albânia, a Sicília, a Córsega, o sul da Itália e da França, o

nordeste da Espanha, o norte da África e até mesmo a

atual Ucrânia, abrigaram colônias gregas, abrindo essas

regiões para sua influência. Por volta do século 6 a.C., os

helenos tinham expandido sua língua e cultura a uma área

bem maior do que o Peloponeso.

Embora mantivessem laços religiosos e comerciais, as co-

lônias gregas não eram controladas politicamente pelas

cidades que as fundaram. As comunidades independentes

era uma característica dos helenos. A polis, como era

chamada essa comunidade, se aproxima mais da nossa

ideia de Estado do que de cidade. Ela não incluía todos os

habitantes da cidade e cercanias. Consistia, antes, dos

seus cidadãos: os guerreiros que defendiam a polis. Escra-

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Projeto Cultura e Memória

vos, mulheres e artesãos estrangeiros, chamados de méti-

cos, não podiam ser cidadãos.

No início, muitas polis eram governadas por reis, os basi-

leus4, mas os registros históricos mostram que a partir do

século 7 a.C. elas já eram governadas por aristocratas, ou

“pessoas melhores”5. Os aristocratas eram proprietários

de terras, suficientemente ricos para possuírem armas,

equipamentos de guerra e cavalos – o que os transforma-

va em líderes militares.

Com o desenvolvimento do comércio, artesãos estrangei-

ros se estabeleceram nas cidades, fazendo surgir uma

próspera classe mercantil. As tensões sociais resultantes

logo afloraram em conflitos. A partir de 650 a.C., os aristo-

cratas tiveram de enfrentar os líderes populistas. Muitos

deles foram bem sucedidos em assumir o controle das

cidades. Eram os Tyrranoi6, ou tiranos, cujo significado

original difere do seu sentido moderno.

No século 6, os horizontes da civilização helênica já esta-

vam bem definidos. As cidades de Atenas, Esparta, Corinto

e Tebas emergiram como principais centros de influência.

Elas controlavam as áreas rurais e pequenas aldeias ao seu

redor. Atenas e Corinto tinham se tornado grandes potên-

cias marítimas e mercantis. Mas, no campo político, as

rédeas estavam nas mãos de duas cidades rivais, Esparta e

Atenas.

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

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A Vida nas Cidades

Atenas tinha uma posição privilegiada no mundo grego do

século 6 a.C. Em meados do século 7 a.C., o povo da cida-

de se rebelou, apoiado por uma nova classe intermediária

de ricos comerciantes que exigia participação no governo.

Através dos esforços de homens como Drácon, Sólon, Pi-

sístrato e Clístenes, a aristocracia perdeu muitos dos seus

privilégios e importantes avanços se amalgamaram na vida

social e política de Atenas. Essas reformas acabaram cul-

minando no estabelecimento da primeira democracia do

mundo. O poder estava, agora, nas mãos de todos os cida-

dãos do sexo masculino.

Em Atenas, o coração da cidade era uma grande praça, a

ágora, onde havia um altar dedicado aos doze deuses o-

límpicos. Cercada de numerosos pórticos e de vários edifí-

cios públicos, da ágora partiam as principais estradas da

Ática. Na ágora ficava também o grande mercado de Ate-

nas – o centro nevrálgico da cidade, onde se reuniam os

cidadãos para discutir política, tratar de negócios ou as-

suntos legais7.

O dia-a-dia em Atenas era bem simples. A maioria das

pessoas tinha casas pequenas, feitas de argamassa fina,

branqueadas de cal. As residências maiores tinham vários

quartos, dispostos ao redor de um pátio central, para onde

todas as janelas se abriam. A família patriarcal praticava,

sob a direção do dono da casa, o culto religioso diário e o

culto aos antepassados8.

Page 16: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

A ágora da cidade de Atenas (J. Bühlmann, 1881)

Quando algum membro da família morria, o corpo era

exposto sobre um leito e depois enterrado. Sobre a sepul-

tura, era erguida uma lápide de pedra, a estela, que, às

vezes, era ornada com baixos-relevos representando as

ocupações que o morto tivera em vida. No mês de feverei-

ro era celebrado o dia de finados. Nessa data, cada família

deixava lugares vazios à mesa, em homenagem aos mor-

tos.

As mulheres só saiam para os festejos religiosos. No resto

do tempo, permaneciam em casa, ocupadas com tarefas

domésticas. Quando aparecia algum visitante, elas se re-

colhiam ao gineceu, a parte da residência reservada exclu-

sivamente às mulheres. A maior parte das mulheres de

Atenas recebia apenas educação básica. As mais educadas

eram as hetairas9, ou cortesãs, que frequentavam escolas

especiais. Já os homens passavam a maior parte do tempo

fora de casa. Logo cedo, tratavam dos seus compromissos

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

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e negócios e, em seguida, dedicavam-se aos esportes, às

conversas nos ginásios, ao cultivo das artes e às reuniões

políticas. Os banquetes à noite eram comuns. Nessas oca-

siões, os homens se reclinavam sobre divãs cobertos com

almofadas e, apoiando o cotovelo em pequenas mesas,

comiam, bebiam e se divertiam ouvindo música, poesia e

assistindo a espetáculos de dança. As refeições cotidianas

eram, porém, frugais. Quase sempre, consistiam de peixes

ou aves, cereais, legumes, frutas, queijo, mel e vinho diluí-

do em água.

As roupas dos atenienses também eram muitos simples –

outro reflexo de uma das principais características dos

gregos: a praticidade. Semelhantes tanto para os homens

como para as mulheres, eram panos retangulares de linho,

no verão, e lã, no inverno, enrolados ao redor do corpo,

preso aos ombros por alfinetes e à cintura por um cordão.

Os atenienses, em particular, e os gregos, de modo geral,

priorizavam o convívio e a conversa. Um antigo ditado

recomendava: “seis horas diárias bastam para o trabalho;

as restantes, dedica-as à vida10”.

Esparta

A cidade que dividia a liderança política da Grécia antiga

com Atenas era sua rival Esparta. A aristocracia local ga-

rantiu o poder em aproximadamente 650 a.C., através da

Constituição de Licurgo, que deu a Esparta um regime

militar permanente e uma dupla monarquia. Esparta do-

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Projeto Cultura e Memória

minava todas as outras cidades do Peloponeso, exceto

Argo e Achaia.

Esparta havia sido fundada pelos invasores dórios, que

dominaram as populações primitivas. Como eram muito

menos numerosos que os vencidos, os dórios tiveram de

permanecer sempre bem organizados e militarmente dis-

ciplinados. Essa necessidade acabou resultando numa

cultura diferente das outras cidades-estados gregas.

Desde meados do século 6 a.C., os espartanos haviam se

isolado completamente das outras polis, proibindo não só

a entrada de estrangeiros na cidade, mas também a saída

de seus cidadãos. A partir dessa época, Esparta foi mais

um acampamento militar do que propriamente uma cida-

de.

O objetivo da educação espartana era produzir disciplina-

dos cidadãos-soldados dispostos ao sacrifício pessoal e

voltados à simplicidade. A vida das pessoas não pertencia

a elas, mas à cidade. Os meninos eram obrigados a deixar

suas casas aos sete anos. A partir de então, viviam em

quartéis supervisionados por uma hierarquia militar, de

quem recebiam treinamento severo. Apesar de aprende-

rem a ler e a escrever na escola, esses conhecimentos não

eram tidos como importantes. O principal objetivo era

desenvolver a habilidade guerreira. Os meninos andavam

descalços, dormiam no chão ou em camas duras e pratica-

vam esportes. Aprendiam a ter orgulho de enfrentar a dor.

Música e dança também faziam parte da educação espar-

tana, mas seu caráter era absolutamente militar.

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

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Propositalmente mal alimentados, os meninos eram esti-

mulados a roubar. Se fossem pegos, porém, eram severa-

mente punidos. Um relato que sobreviveu até nossos dias

dá conta de um garoto que havia roubado uma raposa

viva, da qual pretendia se alimentar. Quando viu os solda-

dos se aproximando dele, escondeu o animal debaixo das

suas roupas. Ao ser interrogado, para não ser punido, ele

deixou que a raposa o mordesse de tal forma que o feriu

mortalmente, sem, no entanto, permitir que seu rosto

traísse qualquer sinal de dor11.

Jovens Espartanos Exercitando-se, (Edgar Degas, c. 1860)

Entre 18 e 20 anos, os rapazes espartanos tinham de pas-

sar num difícil teste de resistência, habilidade militar e

liderança. Os que passavam se tornavam soldados espar-

tanos, mas aqueles que falhavam viravam perioikos, ou

Page 20: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

membro da classe dos mercadores e artesão que, embora

pudessem ter propriedades e negócios, não tinham direi-

tos políticos e não eram considerados cidadãos.

Os cidadãos de Esparta não podiam sequer tocar em di-

nheiro. Isso era problema dos perioikos. Os cidadãos con-

tinuavam o serviço militar e a viver em quartéis até os

sessenta anos, mesmo que fossem casados e tivessem

família. Só depois dessa idade os soldados podiam se reti-

rar do exército e viver com os seus.

Com as mulheres as coisas não eram muito diferentes,

mas paradoxalmente, Esparta era a cidade onde elas ti-

nham mais liberdades em toda a Grécia antiga. Ao contrá-

rio das outras cidades-estado gregas, as meninas esparta-

nas recebiam uma educação que ia além das artes domés-

ticas. Seu treinamento não era muito diferente daquele

dos meninos. A partir dos sete anos, viviam em quartéis e

aprendiam a arremessar dardos, discos, táticas militares e

a lutar. O duro treinamento, provavelmente igual ao dos

meninos, vinha da crença de que mulheres fortes produ-

zem filhos fortes. Aos 18 anos, elas eram submetidas a um

teste de resistência física. As que passavam eram designa-

das a um marido. As que eram reprovadas, porém, perdi-

am o direito de cidadania e se tornavam perioikos. As es-

partanas, diferentemente das outras mulheres gregas, não

eram confinadas às suas casas. Em Esparta, elas tinham

liberdade de movimento e gozavam de grande liberdade,

uma vez que seus maridos não viviam com elas, mas nos

quartéis.

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

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Escravidão

Um aspecto fundamental na Grécia antiga era a escravi-

dão, influindo em praticamente todos os aspectos da civi-

lização grega: da vida doméstica à famosa frota naval ate-

niense. Eram os escravos que forneciam a mão de obra

que impulsionava a próspera economia grega.

Havia nas cidades gregas, provavelmente, um número de

escravos igual ao de cidadãos livres12. Alguns autores afir-

mam que um quarto da população de Atenas eram escra-

vos13. Eles serviam em todos os lugares: nas casas, lojas,

fábrica, minas, navios. Até a força policial de Atenas era

constituída de escravos. Suas vidas não diferiam muito das

vidas dos gregos mais pobres. Havia diversas maneiras

diferentes através das quais se tornava um escravo no

mundo grego. Os filhos dos escravos já nasciam nessa

condição, mas muitos eram prisioneiros de guerra, escra-

vizados quando sua polis foi tomada. Outros eram aban-

donados ainda bebês, nas portas das cidades, por pais que

não os desejavam. Muitas famílias necessitadas também

vendiam seus filhos como uma forma de sobreviver. Em

geral, as filhas, menos úteis que os filhos, é que eram ven-

didas.

Os escravos eram tratados de forma diferente, dependen-

do do trabalho que realizavam. Os domésticos eram, em

geral, tidos praticamente como membros da família e po-

diam participar dos sacrifícios e rituais familiares. Eram

supervisionados pela dona da casa, que procurava mantê-

los ocupados o tempo todo. No entanto, mesmo os escra-

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Projeto Cultura e Memória

vos domésticos não podiam frequentar os ginásios ou a

Assembleia Pública. Não podiam usar seu próprio nome,

mas apenas aquele dado pelos seus amos. Ao contrário

dos escravos domésticos, os designados para trabalhar nas

minas ou como tripulantes de navios tinham uma vida

dura e perigosa. Dificilmente sobreviviam muito tempo.

Quase sempre, esses escravos eram criminosos condena-

dos à morte.

A Expansão dos Gregos

No período clássico (500 – 338 a.C.), a civilização grega

atingiu seu apogeu. As cidades-estados se uniram para

enfrentar os persas, os senhores do maior império da épo-

ca. Os persas haviam tomado várias colônias gregas na

Ásia Menor, deflagrando as Guerras Persas (492 – 490 e

480 – 479 a.C.). Os gregos se uniram para por um fim à

ameaça. Os atenienses bateram os persas em Maratona,

Salamina e Plateia, enquanto os espartanos foram venci-

dos nas Termóplitas. Afastado o perigo da invasão persa e

buscando garantir sua soberania, as cidades gregas se

uniram na Liga de Delos, sob a liderança de Atenas. Por

conta da liderança da liga, Atenas passou a controlar todo

o Mediterrâneo e as rotas de abastecimento da Ásia.

Por conta disso, as cidades gregas sentiram-se ameaçadas

com o crescente imperialismo econômico ateniense. Cor-

cira, uma colônia da cidade de Corinto, o segundo centro

comercial da Grécia, foi apoiada militarmente por Atenas

para resolver um conflito com a metrópole. Corinto, por

sua vez, pediu ajuda de Esparta. Organizando a Liga do

Page 23: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

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Peloponeso, Esparta aliou-se a Corinto, Mégara e Tebas.

Foi o começo das guerras do Peloponeso (431 – 421 e 415

– 404 a.C.), que acabou com a vitória de Esparta e seus

aliados sobre Atenas.

Durante trinta anos, de 404 a 371 a.C., Esparta impôs seu

domínio às cidades gregas. A dureza do regime espartano,

porém, provocou novas lutas internas. Tebas conseguiu

vencer o exército de Esparta e, entre 371 e 362 a.C., impôs

seu próprio domínio sobre a Grécia. A hegemonia tebana,

por sua vez, provocou novos conflitos, e uma coligação de

cidades acabou por enfrentar Tebas e derrotá-la.

As cidades gregas ficaram enfraquecidas com a guerra do

Peloponeso e as sucessivas lutas que se seguiram, o que

levou Felipe da Macedônia a dominar toda a Grécia (338

a.C.). Os macedônios, embora fossem um povo de raça

helênica, eram bem menos adiantados. Felipe discordava

dos regimes políticos independentes das cidades-estados

gregas e conseguiu unir toda a Grécia – exceto Esparta –

sob sua coroa. O próximo passo planejado por Felipe era

atacar o império persa, mas ele foi assassinado antes de

realizar seu intento. Ao filho de Felipe, Alexandre, coube a

conquista do império persa. Em dez anos de campanhas

fulminantes – entre 333 e 323 a.C. –, Alexandre expandiu a

cultura helênica da península grega à Índia.

Page 24: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

Alexandre na Batalha de Isso, 333 a.C. (mosaico romano séc. 1 d.C.)

Quando Alexandre morreu inesperadamente em 323 a.C.,

sem deixar sucessores, seu império começou a se frag-

mentar em reinos governados por monarcas todo-

poderosos. A nova instituição política marcou o fim das

cidades-estado gregas, o que fez com que muitos gregos

emigrassem para os novos reinos, fundindo sua cultura à

oriental. A partir de então, os modos e maneiras helênicos

dominaram o mundo.

Page 25: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

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Notas do Capítulo

1 – A Shorter History of the World – J.M. Roberts, 2000, p.

150

2 – Um Estudo Crítico da História – Helio Jaguaribe, Paz e

Terra, 2001, p. 183

3 – A Shorter History of the World – J.M. Roberts, p. 175

4 – Ibid.

5 – Ibid., p. 177

6 – Ibid.

7 – História da Civilização – Sérgio Buarque de Hollanda,

Companhia Editora Nacional, 1977, p. 74

8 – A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, Martins Fontes,

2000, p. 15

9 – Greeks - Encyclopædia Britannica, 2006, in

www.britannica.com

10 – História da Civilização – Sérgio Buarque de Hollanda,

p. 76

11 – Daily Life in Ancient Greece, in

www.members.aol.com/Donnclass/Greeklife.html

12 – Encyclopedia Britannica Online,

Page 26: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

13 – Everyday Life in Ancient Greece, 4th Century BC,

EyeWitness to History, www.eyewitnesstohistory.com

(2001).

Page 27: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

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2

A Religião Grega

s gregos, como todos os povos antigos, eram profun-

damente religiosos. Em sua visão, o universo espiritual

permeava todos os aspectos da vida. Qualquer ativi-

dade tinha uma implicação mística. O historiador Helio

Jaguaribe se refere a isso ao afirmar que a religião da Gré-

cia “se mantém dentro dos limites da ideia imanente do

divino”1. Através da guerra conquistava-se honra e glória,

o que divinizava os homens; as artes e ofícios promoviam

conhecimento e sabedoria; o cultivo da terra revelava os

mistérios da Vida; a família mantinha estreito contato com

os ancestrais mortos. Tudo o que se fazia, por mais corri-

queiro que fosse, estava imbuído do sagrado. O mistério

que envolve todas as coisas e ações era representado a-

través de mitos, ou “metáforas”, conforme o mitologista

americano Joseph Campbell2. Assim, a luz da ciência e da

música era Apolo, o conhecimento técnico que conduz à

sabedoria, Atena, a mágica que faz a semente brotar, De-

O

Page 28: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

méter, e os ancestrais a tudo assistiam. Na visão grega,

deuses, daemons, demônios e forças da natureza regiam o

Cosmos, isto é, a “ordem sagrada das coisas”.

A religião dos gregos era um amálgama de diferentes con-

ceitos e práticas. Segundo Hélio Jaguaribe, ela era consti-

tuída de cinco níveis distintos. O primeiro era o nível das

famílias, isto é, dos deuses domésticos e do culto dos an-

tepassados; o segundo, o nível cívico dos deuses das cida-

des. Depois havia o nível mitológico do Olimpo, a religião

dos mistérios e o nível filosófico3. Tantas camadas teológi-

cas resultaram no fato de os gregos não possuírem um

conjunto claro de doutrinas, nem igreja, nem clero. Possu-

íam, antes, sacerdotes e adivinhos, com funções mais res-

tritas do que um membro do clero de outra cultura teria;

possuíam mitos, crenças e visões de mundo que buscavam

exclusivamente explicar a profunda experiência humana.

Lançavam-se devotadamente na procura pela inter-

relação com o sagrado, o misterioso. Interagiam com os

antepassados e os deuses por meio de rituais. A crença na

vida após a morte, o rito do fogo sagrado, as iniciações nos

“Mistérios”, onde o segredo da existência era revelado ao

aprendiz através da sabedoria expressa nos processos

naturais de germinação, crescimento, morte e renasci-

mento – presentes em tudo, da vida das plantas ao ciclo

das estações. Os sacerdotes e adivinhos gregos interpreta-

vam presságios e, consultando oráculos, ouviam as men-

sagens dos deuses – deuses especiais. Embora fossem

cultuados em todo o mundo grego irrestritamente, cada

cidade tinha seu deus ou deusa nacional, homenageado

Page 29: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

29

em festivais nos quais os rituais religiosos e sacrifícios se

mesclavam com jogos e atuações teatrais4.

Iniciação nos Mistérios (detalhe de afresco romano, sec. 1 d.C.)

Apesar de a religião grega ser a sedimentação final de um

processo sincrético que fundiu as religiões indo-europeias

com as crenças anteriores da Grande Deusa e, mais tarde,

asiáticas e egípcias5, o cerne da sua herança religiosa é

composta basicamente pela interação de duas mitologias:

a herança pré-homérica da Idade do Bronze e a mitologia

olímpica, repleta de autoconhecimento humanístico. Em

seu livro O Nascimento da Tragédia, publicado em 1872, o

filósofo Friedrich Nietzsche afirma: “a glória da visão trági-

ca grega está no reconhecimento da reciprocidade dessas

Page 30: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

duas ordens de espiritualidade, nenhuma das quais ofere-

ce individualmente mais do que uma experiência parcial

do valor humano”6.

A Religião Doméstica

Nos estratos mais antigos da herança religiosa e que veio a

constituir a mitologia clássica está a crença na vida após a

morte e o culto aos ancestrais. O historiador Fustel de

Coulanges relata que “as mais antigas gerações (dos gre-

gos), muito antes ainda da existência dos filósofos, acredi-

tavam já em uma segunda existência passada para além

desta nossa vida terrena. Encaravam a morte não como

uma decomposição do ser, mas como simples mudança de

vida”7. Mas ao contrário da teoria de metempsicose, que

sustenta que o espírito evade um corpo para dar vida a

outro, ou da moderna crença de que a alma passa a habi-

tar as regiões celestiais depois de uma vida virtuosa, os

gregos diziam que a alma permanece na terra, perto dos

homens. Acreditavam, também, que a associação entre o

espírito e o corpo continuava, mesmo depois do sepulta-

mento. Por isso, os objetos necessários, como roupas e

armas, eram enterrados juntos com o morto. “Derramava-

se vinho sobre o seu túmulo para lhe mitigar a sede; dei-

xavam-lhe alimentos para apaziguar sua fome; degolavam-

se cavalos e escravos pensando que estes seres, enterra-

dos com o morto, o serviriam no túmulo, como o que ha-

viam feito durante a sua vida”8. As oferendas eram repeti-

das em dias específicos ao longo do ano. Os túmulos gre-

gos tinham até mesmo um local destinado à imolação da

Page 31: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

31

vítima e à colocação da sua carne – alimento exclusivo do

morto.

No seu A Cidade Antiga, Fustel de Coulanges cita um texto

de Píndaro (518 – 438 a.C.) sobre essa antiga crença dos

gregos. Trata-se da história de Frixo que, fugindo da Grécia

pela madrasta que o queria matar9, morreu em Cólquida.

No entanto, mesmo morto, Frixo desejava ardentemente

voltar à sua terra natal. Seu espectro apareceu, então, a

Pélias e lhe pediu que fosse à Cólquida para dali trazer sua

alma de volta à Grécia. “Sua alma sentia sem dúvida a

saudade do solo pátrio, do túmulo da família; mas vivendo

ligada aos seus restos corporais, evidentemente que não

poderia abandonar a Cólquida sem os trazer consigo”10.

Essa crença implica da necessidade de se construir uma

sepultura, um lugar de repouso para a alma. Do contrário,

ela passaria a vagar errante, na forma de larva ou como

fantasma, em busca de um local de descanso. Sem receber

oferendas e alimentos de que precisa, cedo ou tarde essa

alma se torna má e passa a atormentar os vivos, enviando-

lhes doenças e os assombrando como forma de reivindicar

uma tumba. Não era pela dor da perda que se enterrava o

morto e se realizava cerimônias fúnebres, mas para apazi-

guar a alma. Temia-se menos a morte do que a privação

da sepultura.

Independentemente dos seus atos em vida, os gregos a-

creditavam que os mortos se tornavam “deuses subterrâ-

neos”, os manes. Os túmulos, com seus altares sacrificais,

eram os templos dessas divindades. Coulanges sustenta

Page 32: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

que o culto aos mortos é a primeira manifestação de reli-

giosidade não só dos gregos, mas de todos os povos indo-

europeus. “Antes de conceber e de adorar Indra ou Zeus, o

homem adorou os seus mortos; teve-lhes medo e dirigiu-

lhe preces. Parece que o sentimento religioso do homem

começou com este culto. Foi talvez por ver a morte que o

homem pela primeira vez teve a ideia do sobrenatural e

quis tomar para si mais do que lhe era legitimo esperar da

sua qualidade de homem. A morte teria sido o seu primei-

ro mistério, colocando o homem no caminho de outros

mistérios. Elevou seu pensamento do visível ao invisível,

do transitório ao eterno, do humano ao divino”11.

Com a evolução da civilização grega, porém, o destino

imaginado da alma sofreu alterações. Os gregos concebe-

ram uma região subterrânea, mas infinitamente maior do

que o túmulo, aonde todas as almas iam viver juntas, re-

cebendo penas e recompensas conforme a conduta que

tiveram em vida. Esse lugar era o Hades, onde os mortos

se transformavam em sombras imateriais. Os bons passe-

avam pelos os Campos Elíseos, mas sem qualquer poder12.

Outra corrente sustentava que o espírito imortal teria um

destino melhor ou pior, depois da morte terrena, confor-

me o morto fosse ou não um iniciado na religião dos mis-

térios. Alguns filósofos sofisticaram esse conceito, associ-

ando o destino da alma após a morte às virtudes e quali-

dades que a pessoa praticou em vida. No período helenís-

tico, essa ideia se popularizou e preparou o terreno para a

concepção cristã do Paraíso e do Inferno.

Page 33: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

33

O Fogo do Lar

Além do culto aos antepassados, outro aspecto importan-

te da religião doméstica dos gregos é o culto ao Fogo Sa-

grado. Toda casa grega possuía um altar, onde o chefe da

família tinha a obrigação de conservar acesso o Fogo Sa-

grado. As chamas deveriam ser alimentadas apenas com a

madeira de árvores santificadas. Oferendas de flores, fru-

tos, incenso, vinho eram feitas ao Fogo, enquanto a ele se

pedia proteção, saúde, riqueza e felicidade. O Fogo era a

divindade soberana do lar, a Providência da família. Era,

enfim, um poder tutelar, cuja importância era tão grande

que, quando se rezava a um deus qualquer, começava-se e

acabava-se com uma prece ao Fogo do Lar. Os Jogos Olím-

picos – a mais sagrada celebração de toda a Grécia – eram

iniciados com um sacrifício ao Lar. Só depois se sacrificava

em honra a Zeus13. O Fogo representava para os gregos o

ser invisível e divino que há em nós, a força moral e pen-

sante que anima e conduz nossas ações.

Era o Lar quem presidia as refeições. Ele é quem preparava

e transformava o alimento. Por isso, antes de comer, de-

positava-se sobre o altar um pouco de alimento, e antes

de beber, vertia-se vinho sobre o Fogo. Era a parte do

deus. Também se fazia uma oração no começo e outra no

final de cada refeição. Através do alimento, o homem e o

deus entravam em comunhão.

Page 34: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

Os Olímpicos

Além desses traços da religião grega, há ainda a caracterís-

tica mais notória desse corpo de crenças: a mitologia o-

límpica, repleta de autoconhecimento humanístico. Fustel

de Coulanges distingue “duas religiões” entre os gregos. A

primeira tomou seus deuses da alma humana e a segunda

da natureza física14. As duas correntes acabaram se amal-

gamando e se complementando, embora o culto dos deu-

ses do Olimpo e o dos mortos nunca tenham tido nada em

comum.

Tétis apelando a Zeus (Stanislaw Wyspianski, c. 1896)

Page 35: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

35

Com a evolução da religião grega, os deuses concebidos a

partir da crença da vida após a morte foram personifica-

dos, receberam nomes e forma humana. O Fogo do Lar

não fugiu à regra. Encarnado numa divindade feminina,

passou a se chamar Héstia. Surgiu também o culto aos

heróis. Homens excepcionais eram divinizados como for-

ma de reconhecimento público e exemplo a ser seguido,

com templos e sacerdotes a serviço da sua memória.

A religião da natureza, personificada nos mitos, também

se desenvolveu através dos tempos, modificando pouco a

pouco sua literatura e doutrinas. De modo geral, os deuses

habitavam o monte Olimpo, inclusive os deuses cósmicos,

divindades menores, como as musas e as ninfas, e os mor-

tos divinizados, os heróis. Contudo, os deuses olímpicos

eram apenas doze, cada qual com uma área especial de

influência, com atributos correspondentes a esse poder.

Zeus era a divindade suprema; seus irmãos, Posêidon e

Hades, eram senhores do mar e do reino dos mortos; Ares

controlava a guerra; Ártemis, as florestas e os animais

selvagens; Demeter fazia os grãos brotarem; Hefestos, o

deus do fogo, da forja e dos ferreiros; Atena, a deusa do

conhecimento; Hera, esposa de Zeus e deusa do casamen-

to e da maternidade; Hermes, o mensageiro dos deuses;

Dionísio, o deus do vinho e do êxtase; Apolo, também

chamado de Febo, era o deus das artes, da saúde e das

profecias; Afrodite, a deusa do desejo. Alguns autores

incluem Héstia, a personificação do Fogo do Lar, entre os

deuses olímpicos, mas as opiniões são divergentes quanto

a isso.

Page 36: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

A Religião dos Mistérios

A religião dos mistérios representa uma das dimensões

mais importantes da religiosidade grega. Tratava-se de

ritos de iniciação secretos. Estreitamente ligados às ideias

de vida após a morte, de modo geral, pretendiam assegu-

rar uma existência feliz após a passagem terrena15.

Havia três principais mistérios na Grécia, os eleusinos, os

dionísicos e os órficos. Os mistérios eleusinos eram prati-

cados em honra a Demeter, inicialmente na cidade de

Eleusis. Seus ritos fazem referência aos esforços que De-

meter empreendeu à procura de sua filha, Perséfone, rap-

tada por Hades. O mistério celebrava a morte como garan-

tia da vida, assim como a semente que “morre” – ou seja,

é enterrada e desce aos infernos – para gerar uma nova

planta.

Os mistérios dionísicos celebravam os poderes de êxtase

de Dionísio. De acordo com o mito órfico, o homem era

um composto das cinzas de Dionísio e dos Titãs. A alma, o

“fator Dionísio”, era divina, mas o corpo, o “fator Titã”, a

prendia16. Os mistérios celebravam a imortalidade da al-

ma, ritualizando a morte e a ressurreição de Dionísio17.

Esses ritos incluíam a ingestão de carne crua e o casamen-

to sagrado, ou Hiero Gamos.

Os mistérios órficos, que teriam sido fundados por Orfeu,

eram mais complexos. Joseph Campbell afirma que Orfeu

remonta os períodos mais arcaicos da cultura grega18. Os

Page 37: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

37

mistérios órficos envolviam toda uma literatura e uma

visão doutrinária, além dos rituais. Os praticantes deviam

seguir um padrão ético elevado, o que aproximava o or-

fismo do cristianismo. Os órficos acreditavam na metemp-

sicose (isto é, na transmigração da alma de um para outro

corpo), e nas punições e recompensas que a alma recebia

após a morte, conforme seus méritos em vida.

Morte de Orfeu (Albrecht Durer, 1494)

Page 38: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

Os conceitos órficos acabaram se desdobrando nos ensi-

namentos de filósofos como Pitágoras – que combinava

uma religião mística baseada na crença da metempsicose

com uma sofisticada competência matemática – e Platão –

que propôs que as essências, isto é, as ideias, representa-

das precariamente no mundo sensível, são, de fato, a rea-

lidade efetiva. A filosofia passou a explorar as concepções

religiosas em outro nível, mais racional, que, com o passar

do tempo, foi se aproximando cada vez mais daquilo que

hoje entendemos como ciência. Conforme o filólogo Wer-

ner Jaeger (1888 – 1961), “precisamos interpretar o cres-

cimento da filosofia grega como um processo pelo qual as

concepções religiosas originais do universo, a concepção

implícita no mito, foram crescentemente racionalizadas”

19.

A Religião das Cidades

Assim como o altar doméstico reunia à sua volta os mem-

bros da família, também a cidade era uma reunião de ho-

mens que tinham os mesmos deuses protetores e cumpri-

am o ato religioso no mesmo altar. Cada polis tinha o seu

hestia patroi20, sua divindade patronal, quase sempre um

deus olímpico, como acontecia em Atenas com Atena e

em Argos e Samos com Hera.

No entanto, apesar dos nomes iguais, as divindades não

eram as mesmas. A Hera de Argos tinha atributos diferen-

tes da Hera de Samos. Dessa forma, o hestia patroi era

exclusivo de cada cidade. “A urbe que possuía uma divin-

dade sua não queria que esta protegesse os estrangeiros,

Page 39: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

39

tampouco permitia que a deusa fosse adorada por estes

estrangeiros”, escreveu Fustel de Coulanges21. Quase

sempre, um templo só era acessível aos cidadãos daquela

polis. Para se entrar no templo de Atena, em Atenas, por

exemplo, era imprescindível que se fosse ateniense.

Cada cidade tinha, também, seu corpo de sacerdotes. Eles,

porém, não mantinham qualquer ligação com os sacerdo-

tes de outra urbe. Não havia comunicação ou troca de

preceitos ou de rituais. Cada cidade tinha o seu conjunto

de orações e práticas, sempre mantidas em segredo. As-

sim, o nível cívico da religião era totalmente local, particu-

lar, em cada cidade. Os cidadãos só respeitavam e honra-

vam os deuses da sua polis, nada temendo ou devendo

aos de outra cidade. Para que o deus velasse somente por

uma determinada cidade, era indispensável que recebesse

seu culto somente dela. Sendo honrados só por essa cida-

de, esperava-se que o deus fizesse favores somente àque-

le povo.

Do deus cívico, esperava-se proteção. Apenas ele ou ela

era invocado em caso de perigo. Os cidadãos garantiam

isso através de intermináveis oferendas depositadas no

templo do seu hestia patroi. O culto consistia em alimen-

tar o deus com tudo o que lhe agradasse os sentidos: car-

nes, bolos, vinho, perfumes, vestidos, joias, dança e músi-

ca. Em troca, a divindade deveria garantir benefícios e

proteção. Se a cidade fosse derrotada em uma guerra, a

culpa era do deus, que não cumpriu seu dever de defensor

da cidade. Frequentemente, tinha seus templos e altares

destruídos pelos cidadãos. Se a cidade fosse vencida, a-

Page 40: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

creditava-se que os seus deuses também haviam sido ven-

cidos e, consequentemente, se tornavam cativos. Outra

visão atesta que, se a cidade foi vencida, é porque seus

deuses a abandonaram, mudando-se dali. Muitos acredi-

tavam, ao tentar invadir uma cidade, que era preciso antes

fazer com que o deus abandonasse a cidade. Para tanto,

eram empregadas invocações especiais, as quais o deus

não poderia resistir. Em muitas ocasiões, em vez de usa-

rem a fórmula para atrair o deus, os gregos preferiam rou-

bar sua estátua. Por isso, os sitiados as escondiam cuida-

dosamente. Algumas vezes, eles prendiam a estátua do

deus protetor com correntes para que ele não desertasse.

Havia, também, festas religiosas das quais faziam parte

jogos e competições atléticas, procissões e espetáculos

musicais e teatrais. Em Atenas, por exemplo, celebrava-se

as Panateias, em honra a Atena, e as Dionísicas, em honra

a Dionísio. Havia também festas que eram realizadas em

santuários pan-helênicos, isto é, comum a todos os gregos.

A mais famosa delas eram os Jogos Olímpicos, celebrados

de quatro em quatro anos na cidade de Olímpia, em honra

a Zeus. Sua importância era tal, que os primeiros Jogos

Olímpicos marcavam o início do calendário grego.

Page 41: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

41

Notas do capítulo

Um Estudo Crítico da História – Hélio Jaguaribe, Paz e Ter-

ra, São Paulo, 2001, p. 324

The Power of Myth – Joseph Campbell, Anchor Books,

New York, 1991, p. 67.

Um Estudo Crítico da História –p. 325

A Shorter History of the World – J.M. Roberts, Ediouro, Rio

de Janeiro, 2000, p. 183

Um Estudo Crítico da História –p. 324

citado em The Masks of God – Occidental Mythology, Jo-

seph Campbell, Arkana, New York, 1991, p. 141

A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, Martins Fontes,

São Paulo, 2000, p. 7

A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 9

Dicionário da Mitologia Grega – Ruth Guimarães, Cultrix,

São Paulo, 1993, p. 157

A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 9

A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 18

Um Estudo Crítico da História – Hélio Jaguaribe, p. 328

A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 24

A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 127

Page 42: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

Um Estudo Crítico da História – Hélio Jaguaribe, p. 327

The Masks of God – Occidental Mythology, Joseph Camp-

bell, p. 183

The Golden Bough – James G. Frazer, Gramercy Books,

New York, 1981, i p. 324

The Masks of God – Occidental Mythology, Joseph Camp-

bell, p. 184

citado em Um Estudo Crítico da História – Hélio Jaguaribe,

p. 330

Um Estudo Crítico da História – Hélio Jaguaribe, p. 325

A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 161

Page 43: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

43

3

Cosmogonias

á dois autores fundamentais na compilação e preser-

vação da mitologia grega. Um deles é Homero (século

8 a.C.), o lendário rapsodo que seria o autor da Ilíada

e da Odisseia. Nas duas obras, Homero menciona detalhes

do relacionamento entre os homens e os deuses, além de

outros aspectos da tradição religiosa grega. Hesíodo (sécu-

lo 8 a.C.), tido como o “pai da poesia didática grega”1, é o

outro autor fundamental. O poeta detalha em sua obra

Teogonia (cerca de 750 a.C.) os poderes e atributos dos

deuses e a cosmogonia mitológica concebida pelos gregos.

Mais que uma coleção de histórias fantásticas sobre a

origem e a evolução do Universo, trata-se de uma tentati-

va de se estabelecer uma visão da natureza e da realidade.

O Mito de Criação dos Pelasgos

No princípio, tudo o que havia era o Caos – a possibilidade

de vir a ser do universo. Então, Eurinome, a Deusa de To-

H

Page 44: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

das as Coisas, emergiu nua do Caos. Como não tivesse

onde apoiar seus pés, Eurinome separou o mar do céu, e

se pôs a dançar solitariamente sobre as ondas. Ela dançou

em direção ao Sul, criando o vento com seu movimento.

Dançando e rodopiando, Eurinome segurou o vento e o

esfregou entre as mãos, criando a grande serpente Ofião.

Eurinome continuou sua dança, girando cada vez mais

rapidamente para se aquecer, até que Ofião – o princípio

masculino – foi tomado de desejo e se enrodilhou no sa-

grado corpo da deusa para amá-la. Grávida da semente de

Ofião, Eurinome se transformou numa pomba, e botou o

Ovo Universal sobre as ondas do mar cósmico. Ao coman-

do da deusa, Ofião se enrodilhou ao redor do ovo, dando

sete voltas ao redor dele com seu corpo. Assim, o ovo foi

chocado, partindo-se em duas metades. Desse ovo univer-

sal, saíram todas as coisas existentes: o sol, a lua, as estre-

las, os planetas e a Terra, com seus rios, mares, monta-

nhas, árvores, plantas e criaturas vivas – os filhos da gran-

de deusa Eurinome.

Depois disso, Eurinome criou os sete poderes planetários,

cada um deles sob o comando de um titã e de uma titânia.

Em seguida, nasceu o primeiro homem – Pelasgo, ances-

tral dos pelasgos. Ele brotou do chão da Arcádia, junto

com outros homens, a quem Pelasgo ensinou a construí-

rem choupanas, a cultivar grãos e a fazer roupas de pele

de porco2.

Page 45: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

45

O Mito de Criação Órfico

Os seguidores de Orfeu ensinavam que a Noite, uma deu-

sa a quem até mesmo Zeus respeitava profundamente, foi

cortejada pelo Vento. Repleta do amor do deus, Noite

botou um ovo de prata no útero da Escuridão. Quando o

ovo chocou, dele saiu Eros – o deus Amor, que colocou o

universo em movimento. Eros tinha os dois sexos, asas

douradas e quatro cabeças. A deusa Noite, manifestando-

se na tríade Noite, Ordem e Justiça, vivia numa caverna

com seu divino filho. Eros criou, então, a Terra, o céu e a

Lua. Mas era a deusa tripla, mãe de Eros, quem governava

o Universo, até que passou o cetro de poder a Urano.

O Mito de Criação Olímpico

No princípio, Gaia, a Mãe Terra, emergiu do Caos e, en-

quanto dormia, deu à luz seu filho Urano. Observando a

mãe do alto das montanhas, Urano se encheu de desejo e

verteu sobre ela uma chuva fértil que a fez se cobrir de

filhos: ervas, flores, árvores, animais, aves e insetos. A

mesma chuva fez surgir rios, lagos e oceanos. Então, Gaia

gerou seus primeiros filhos de forma semi-humana. Brira-

eu, Giges (ou Egeon) e Coto eram gigantes de cem braços

e cinquenta cabeças, os hecatônquiros. Em seguida, a Mãe

Terra teve Bronteu, Estérope e Argeu, ciclopes de um lho

só, que correspondem ao trovão, ao relâmpago e ao raio3.

Urano logo se desentendeu com seus filhos e os aprisio-

nou no Tártaro, um lugar sombrio no Mundo subterrâneo,

tão distante da Terra, como esta é do céu. Depois, engra-

Page 46: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

vidou sua mãe-esposa novamente. Dessa vez, Gaia deu à

luz os titãs, seis do sexo masculino – Oceano, Ceos, Crio,

Hiperião, Jápeto e Crono – e seis, do feminino. Eram seres

monstruosos e, à medida que nasciam, Urano os encerra-

va nas profundezas da Terra.

Gaia, como toda mãe, não se conformou com o destino

que o filho-marido reservou à sua prole e imaginou uma

forma de se vingar de Urano. Do próprio seio, Gaia tirou o

aço com o qual, ajudada pelos filhos, forjou uma foice.

Com a arma, Gaia incitou os titãs e se voltarem contra

Urano. No entanto, eles estavam por demais apavorados

para lutar contra seu poderoso pai. O único que tomou a

foice e enfrentou Urano foi Crono, o filho caçula.

Enquanto Urano dormia, Crono se aproximou sorrateira-

mente e o castrou, agarrando os genitais com a mão es-

querda e os lançando ao mar junto com a foice. Algumas

gotas do sangue de Urano caíram sobre Gaia, e ela gerou,

ainda, as três Erínias, as Fúrias que castigam os crimes que

perturbavam a ordem social e, principalmente, a família:

Aleto, Tisífone e Megera. Os titãs libertaram, então, os

ciclopes e os hecatônquiros do Tártaro e fizeram de Crono

soberano da Terra. Vendo-se como senhor supremo da

Terra, Crono tomou como companheira sua irmã Reia e,

temendo resistência ao seu poder, tornou a encarcerar os

ciclopes e os hecatônquiros no Tártaro.

Page 47: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

47

A castração de Urano – Giorgio Vasari, c. 1560 (detalhe)

Crono é Destronado

A posição de Crono, porém, não era segura. Enquanto

agonizava, Urano havia profetizado que Crono seria des-

tronado por um dos seus próprios filhos – exatamente

como ele havia feito com o pai. Gaia também previra a

mesma coisa. Temendo o mesmo destino de Urano, Crono

passou a devorar os filhos que gerou em Reia. Primeiro foi

Héstia, depois Deméter e Hera; finalmente, Hades e Po-

seidon. E como sua mãe Gaia antes dela, Reia se enfureceu

com o tratamento que Crono dedicou aos seus filhos.

Guardou em segredo sua nova gravidez e, retirando-se

para um lugar ermo, na calada da noite, teve Zeus. Reia

banhou seu filho no rio Neda e entregou a criança aos

cuidados da sua avó. Depois disso, ela enrolou cueiros em

uma pedra e a deu ao irmão-marido. Crono pensou tratar

de um dos seus filhos e engoliu a pedra sem titubear.

Page 48: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

Gaia por sua vez levou o pequeno Zeus a Lictos, na ilha de

Creta, onde o escondeu numa caverna, sob a responsabili-

dade das ninfas Adrasteia, de sua irmã Io e da cabra Amal-

téa. O berço de Zeus foi amarrado numa árvore, assim

Crono não o encontraria nem na terra, nem no mar e nem

no céu. Alimentado com mel e com o leite de Amalteia,

Zeus era protegido pelos curetes, filhos de Reia. Para que

Crono não ouvisse os choros da criança sagrada, os cure-

tes batiam suas lanças nos escudos e gritavam enquanto

executavam loucas danças de guerra.

Zeus cresceu entre os pastores do Monte Ida. Quando

chegou à idade adulta, traçou um plano para se vingar do

pai. Com essa intenção, foi à procura da titânia Métis, a

Prudência. Métis aconselhou Zeus a procurar Reia e a pe-

dir sua ajuda para destronar Crono. E assim ele fez. Reia o

colocou a serviço de Crono como seu copeiro e deu a ele

uma poção para misturar à bebida do pai. Crono bebeu

sofregamente e vomitou – primeiro a pedra que tinha

engolido no lugar do filho e, em seguida, os irmãos e irmãs

de Zeus. Eles saíram intactos das entranhas de Crono e

pediram que Zeus os liderasse numa luta contra os titãs,

os seguidores de Crono. Liderados por Atlas, pois Crono já

estava velho para comandar uma guerra, durante dez anos

os titãs se engalfinharam com Zeus e seus irmãos numa

guerra pelo controle do Cosmos. A vitória não pendia a

favor de nenhum dos lados. Mas Gaia profetizou que seu

neto Zeus venceria a disputa, se ele se aliasse aos ciclopes

e hecatônquiros, traiçoeiramente presos no Tártaro por

Crono.

Page 49: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

49

Crono devorando seu filho (Peter Paul Rubens, c. 1630)

Audaciosamente, Zeus desceu ao Tártaro e matou Campê,

a monstruosa carcereira dos ciclopes e hecatônquiros. De

posse das chaves da prisão, Zeus libertou seus novos alia-

dos e os fortaleceu, alimentando-os com comida e bebida

divinos. Em gratidão, os ciclopes deram a Zeus e seus ir-

mãos armas com as quais poderiam vencer a luta. Zeus

recebeu o raio; Hades, um capacete de invisibilidade; e

Poseidon, um tridente. Os três irmãos se reuniram num

conselho de guerra e estabeleceram um plano.

Invisível com seu capacete, Hades entrou nos aposentos

de Crono e roubou suas armas. Então, surgiu Poseidon,

ameaçando-o com o tridente. Distraído por Poseidon,

Crono não percebeu Zeus, que o acertou com um raio. Os

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Projeto Cultura e Memória

hecatônquiros também entraram em cena, arremessando

saraivadas de pedras com seus cem braços sobre os titãs

que ainda combatiam. Sem conseguir resistir ao ataque de

Zeus e de seus aliados, os titãs foram derrotados. Crono e

seu exército acabaram encarcerados no Tártaro e vigiados

pelos hecatônquiros. Atlas, o líder das forças inimigas,

recebeu um castigo exemplar. Por toda a eternidade, ele

tinha de sustentar o céu sobre seus ombros.

Os três irmãos vencedores dividiram entre si o poder so-

bre o mundo. A Hades coube o mundo subterrâneo; a

Poseidon, o mar; e Zeus passou a reinar sobre o céu. A

vitória de Zeus e de seus irmãos marcou o alvorecer de um

novo tempo – a era dos olímpicos.

Page 51: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

51

Notas do capítulo

1 – Hesiod – Encyclopædia Britannica. 2006. Encyclopædia

Britannica Premium, in www.britannica.com/eb/article-

9040276

2 – Greek Myths – Robert Graves, Penguin Books, London,

1984, p. 10

3 – Dicionário de Mitologia Grega – Ruth Guimarães, Cul-

trix, São Paulo, 1993, p. 104

Page 52: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

4

Os Deuses

eus, o Pai do Céu, chamado de Júpiter pelos romanos,

é o senhor do raio e do trovão. Foi Zeus, depois da

vitória sobre seu pai Crono, quem ordenou os corpos

celestes, promulgou leis, presidiu sobre juramentos e es-

tabeleceu os oráculos. É ele quem mantém a ordem e a

harmonia do mundo. Deus supremo do panteão helênico,

Zeus reúne em si todos os atributos divinos. Dispensador

do bem e do mal, Zeus era também piedoso. Amante viril,

gerou muitos filhos em deusas, musas e mulheres mortais.

Sua primeira aventura amorosa foi com Métis, a titânia.

Zeus se apaixonou por Métis quando foi pedir a ela a po-

ção que fez Crono vomitar seus filhos intactos. Métis, po-

rém, procurou fugir de Zeus, assumindo diferentes formas.

Mas Zeus finalmente conseguiu dominá-la, fez dela sua

mulher e a engravidou. Um oráculo de Gaia, a Mãe Terra,

previu que a criança seria uma menina e que, mais tarde,

Z

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

53

Métis conceberia um menino, que destronaria Zeus da

mesma forma como ele havia destronado Crono, e este

Urano. Temendo seu futuro, Zeus seduziu Métis com pala-

vras gentis, convidando-a se deitar com ele. Quando Métis

se aproximou, porém, Zeus abriu sua boca e a devorou.

Métis passou, então, a viver dentro da barriga do deus, de

onde o aconselhava.

Atena

Depois de ter devorado Métis, Zeus foi acometido de uma

terrível dor de cabeça. Seu sofrimento era tanto que o

deus urrava de dor e de raiva, fazendo a Terra e o céu

tremerem. Percebendo o desconforto de Zeus, Hemes, o

mensageiro dos deuses, chamou Hefésto, o deus do fogo,

e o persuadiu a abrir uma fenda no crânio de Zeus com

seu martelo de ferreiro. Essas trepanações eram comuns

na Antiguidade. Os cirurgiões egípcios eram mestres em

abrir uma “janela” no crânio através da qual a doença

sairia1. E assim fez Hefesto, aliviando imediatamente a dor

de cabeça de Zeus. No entanto, não foi doença que saiu

através da abertura no crânio do deus, mas a filha que ele

havia gerado em Métis, a deusa Atena, que nasceu vestida

e armada, dançando uma dança bélica e lançando brados

de guerra que estremeceram o firmamento.

Embora fosse uma deusa guerreira, Atena – cultuada em

Roma como Minerva – não tinha prazer nas batalhas, mas

sim na solução das disputas através da lei e de meios pací-

ficos. Ela trouxe civilização aos homens. Inventou a flauta,

a cerâmica, o arado, a rédea, a carroça e o navio. Foi Atena

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quem ensinou aos homens a ciência dos números e todas

as artes das mulheres. Embora fosse misericordiosa, Ate-

na, guardiã e protetora dos heróis2, nunca perdia uma

batalha, mesmo contra Ares, o deus da guerra.

Atena e Heracles (taça ática, c. 470 a.C.)

Muitos deuses e titãs desejavam Atena, mas ela desprezou

a corte de todos eles e permaneceu virgem. Mesmo assim,

ela acabou tendo um filho. Conta-se que certa vez, Atena

pediu a Hefesto, o ferreiro dos deuses, que fabricasse ar-

mas para ela. Hefesto concordou, afirmando que faria o

trabalho por amor. Atena não percebeu a intenção dissi-

mulada nessas palavras e planejou visitar o deus do fogo

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na sua oficina infernal. Ao saber disso, Poseidon, senhor

do mar, armou uma peça contra Hefesto. Disse-lhe que

Atena queria ser possuída com selvageria. Hefesto acredi-

tou em Poseidon, e assim que Atena entrou em sua oficina

ele tentou violentá-la. A deusa se desvencilhou, mas não

conseguiu evitar que Hefesto lançasse seu sêmen sobre

sua coxa. Revoltada, ela se limpou com um pedaço de lã,

que atirou em seguida no chão. O que Atena não contava

é que, ao cair no chão, o sêmen de Hefesto engravidou

Gaia, a Mãe Terra. Gaia se revoltou com a afronta e se

manifestou, dizendo que não aceitaria qualquer responsa-

bilidade sobre a criança. Movida de misericórdia, Atena

adotou o bebê, a quem deu o nome de Erictônio. Para

evitar que Poseidon soubesse do sucesso da sua trama,

Atena encerrou Erictônio numa arca e o entregou às filhas

do rei de Atenas, Cécrope, ele mesmo um filho de Gaia.

Com o tempo, Erictônio, o filho adotivo de Atena, se tor-

nou rei de Atenas, o primeiro a introduzir carros de guerra,

o uso de dinheiro e as Panateneias, festas em homenagem

a Atena.

Zeus e Hera

Reia havia confiado sua filha Hera, irmã mais velha de

Zeus, reverenciada pelos romanos como Juno, aos cuida-

dos das Horas – as divindades que representam as esta-

ções do ano –, depois de Hera ter sido vomitada por Cro-

no. Zeus desejava a irmã. Dizem que o amor dele por Hera

é muito antigo, do tempo em que Crono ainda reinava

sobre o Universo.

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Depois de ter banido Crono, Zeus foi procurar Hera para

cortejá-la. Zeus tentou seduzi-la de inúmeras formas, mas

sem sucesso. Hera não se deixava impressionar. Finalmen-

te, Zeus assumiu a forma de um passarinho – um cuco –

ferido. Compadecida, Hera pegou a frágil criatura e a ani-

nhou entre seus seios para aquecê-la. Foi então que Zeus

voltou à sua forma original, e Hera, sentindo-se vexada,

aceitou se casar com ele. Todos os deuses trouxeram pre-

sentes valiosos ao divino casal. Gaia presenteou a neta

com uma macieira de frutos de ouro, que foi replantada

no Jardim das Hespérides. A noite de núpcias de Zeus e

Hera, em Samos, durou trezentos anos. Hera deu a Zeus

três filhos: Ares, o deus da guerra, Hefesto, o deus do fo-

go, e Hebe, a Juventude. Algumas fontes, porém, susten-

tam que Hera gerou Hefesto sozinha, através de parteno-

gênese. De acordo com essa versão, Zeus não acreditou na

história. O desconfiado marido prendeu Hera numa cadei-

ra mecânica de onde só a libertou depois que ela jurou

pelo deus-rio Estige que tinha gerado Hefesto sem a ajuda

de nenhum imortal ou mortal.

Por ser a esposa do deus supremo, Hera era tida como a

protetora dos maridos, mesmo vivendo em eterno conflito

com Zeus. Hera não tolerava as infidelidades do esposo e

frequentemente perseguia os filhos que ele teve com ou-

tras imortais e mortais. A paixão de Zeus era tão grande

que o deus não havia poupado nem mesmo sua mãe, Reia.

Prevendo os problemas que o desejo desenfreado do filho

acarretaria, Reia o repreendeu. Zeus enfureceu-se e ame-

açou violentar a mãe. A resposta de Reia veio na forma de

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uma serpente, na qual ela se transformou para se defen-

der do filho. No entanto, Zeus fez valer sua ameaça: trans-

formou-se numa serpente macho, enrodilhou em Reia e a

amou. Essa foi sua primeira aventura extraconjugal. De-

pois, Zeus teve vários filhos com diversas amantes.

Zeus e Hera (Jupiter e Juno), Annibale Carracci, séc. 17

Certa vez, Hera o admoestou pelas suas infidelidades, e

Zeus tentou justificar seu comportamento explicando que,

quando ele e Hera compartilhavam o leito, a esposa – por

ser da natureza das mulheres – tinha muito mais prazer do

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que ele. Hera não aceitou a explicação. Para resolver a

disputa, os dois resolveram chamar o sábio Tirésias, que,

embora nascido homem, já havia sido transformado em

mulher e voltado a ser homem. “Se o prazer pudesse ser

dividido em dez partes”, declarou o sábio na presença dos

deuses, “eu daria nove partes à mulher, e somente uma ao

homem”. Hera ficou tão enfurecida com o sorriso triunfan-

te no rosto de Zeus que, como vingança, cegou Tirésias.

Zeus, porém, se compadeceu de Tirésias e lhe deu a visão

interior, isto é, o dom da profecia, e estendeu sua vida por

sete gerações.

Mas as disputas de Hera e de Zeus não se resumem so-

mente a problemas de infidelidade. Dizem que o Poder é

um dos maiores inimigos dos homens e dos deuses, pois

tende a dominar quem o conquistou. O poder de Zeus

acabou cegando-o, impedindo-o de ver qualquer coisa

além da sua própria glória. Sua petulância se tornou tão

intolerável que Hera – com ajuda de Poseidon, Apolo e de

todos os outros olímpicos, exceto Héstia, tramou contra o

marido. Cercando-o em sua cama, enquanto Zeus dormia,

os imortais o amarraram com tiras de couro cru, de forma

que ele não pôde se mover. Enfurecido, Zeus ameaçou

eliminar a todos, mas os conspiradores haviam colocado o

raio, sua arma, fora do seu alcance e apenas riram da situ-

ação do deus supremo. Enquanto celebravam a vitória,

começaram a discutir quem sucederia Zeus, e conflitos

começaram a aparecer. Tétis, a nereida, temendo que a

discussão acabasse numa guerra entre os olímpicos, liber-

tou Zeus. Ele, então, voltou sua fúria contra Hera, pois

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havia sido ela que liderara a rebelião. Como castigo, Zeus

pendurou a esposa no teto do céu, com uma bigorna presa

a cada tornozelo. Temendo Zeus, os outros deuses não se

atreveram a tentar libertar Hera. Mas apesar do seu cará-

ter instável Zeus gostava da esposa e, no final, resolveu

libertá-la. Para tanto exigiu que os olímpicos jurassem que

nunca mais se rebelariam, o que fizeram prontamente.

Poseidon e Apolo também foram punidos. Enviados para

servir ao rei Laomedonte, construíram para ele a cidade de

Tróia3.

Poseidon

Depois de destronarem seu pai Crono, Zeus, Poseidon e

Hades fizeram um sorteio para ver quem iria governar o

céu, os mares e o mundo subterrâneo – a Terra seria co-

mum aos três. Tirando a sorte no capacete de Hades, Zeus

ficou com o céu, Hades com o mundo subterrâneo e Po-

seidon com o mar.

Poseidon, embora menos poderoso do que Zeus, é igual

ao irmão em dignidade. Em seu palácio submarino, Posei-

don – venerado pelos romanos como Netuno – mantém

estábulos repletos de cavalos brancos que, ao se aproxi-

marem de uma tempestade, fazem-na cessar instantane-

amente. Sua consorte é Anfitrite, a personificação femini-

na do mar. Com ela Poseidon teve três filhos, Tritão, Rodes

e Bentesícime (certas fontes sustentam que o casal não

gerou filhos). No entanto, Poseidon despertou tanto ciúme

na esposa, como seu irmão Zeus provocou em Hera, ge-

rando diversos filhos em diferentes amantes – quase todos

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violentos e cruéis. Algumas tradições registram que entre

seus muitos rebentos, Poseidon também é o pai de uma

das figuras mais conhecidas da mitologia grega, o cavalo

alado Pégaso4.

Poseidon e Anfitrite, Jacob de Gheyn II (c. 1565 - 1629)

Ansioso por estender seus domínios à Terra, Poseidon

racha ao meio montanhas, formando ilhas com os roche-

dos rolados para o mar. Por conta da ambição de aumen-

tar seus domínios, Poseidon se desentendeu com muitos

deuses. Certa vez enfrentou Atena numa disputa pela Áti-

ca. A lenda conta que o senhor do mar se apossou da Áti-

ca, fincando seu tridente na acrópole, em Atena. Imedia-

tamente um poço de água salgada se abriu no lugar onde

o tridente tocara. Dizem que o poço ainda está lá para ser

visto. Tempos depois, durante o reinado de Cécrope, cujas

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filhas criaram o enteado de Atena, Erictônio, Atena tomou

posse da Ática ao dar aos homens um presente melhor:

ela plantou a primeira oliveira ao lado do poço. Encoleri-

zado com a afronta, Poseidon surgiu rasgando o mar em

sua carruagem dourada puxada por cavalos brancos e a

desafiou para um combate singular. Zeus, porém, interfe-

riu, ordenando que a disputa fosse resolvida pelo julga-

mento dos deuses. Como se tratava de um conflito entre

seu irmão e sua filha, Zeus se absteve de votar. Os olímpi-

cos se dividiram – todos os deuses apoiaram Poseidon,

enquanto as deusas escolheram Atena. Assim, por uma

diferença de apenas um voto, Atena teve direito de gover-

nar Atenas.

Hades

Hades, que em Roma era cultuado com o nome de Plutão,

governa o mundo subterrâneo, o Tártaro, para onde vão

os espíritos dos mortos. Os fantasmas chegam trazendo

uma moeda, que piedosos parentes colocaram debaixo da

língua do seu cadáver. Com esse dinheiro, eles pagam a

Caronte, o barqueiro infernal, para atravessar o rio Estige,

de fogo e lava. Os espíritos que não têm a moeda ficam

eternamente esperando na margem. Uma vez do outro

lado, os mortos passam pelo guardião do Inferno – o cão

de três cabeças Cérbero – e entram no reino de Hades.

Cérbero abana a cauda para os que entram, mas devora

impiedosamente as almas que tentam escapar5.

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Hades e sua consorte Perséfone (taça ática, séc. 5 a.C.)

Na primeira região do Tártaro há um jardim triste, os

Campos de Asfódelo, onde as almas esvoaçam sem rumo,

como morcegos. Sua única alegria são as oferendas e os

sacrifícios de sangue feitos a eles pelos vivos. Quando

comem, esses fantasmas se sentem quase vivos de novo.

Além desses campos está o Érebo – o Campo da Verdade,

onde nem a mentira, nem a calúnia podiam se aproximar –

e o palácio de Hades e de sua consorte, Perséfone. Aqui,

as almas eram julgadas por três filhos que Zeus gerou em

Europa, Minos, Radamanto e Éaco. As almas que não eram

nem boas nem más deviam voltar aos Campos de Asfóde-

lo; os fantasmas dos maus eram confinados no campo de

punição do Tártaro; e os espíritos dos virtuosos passavam

aos jardins dos Campos Elísios. Nessa região, banhada de

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sol e de luz, reinava uma primavera eterna. As almas dos

bons que ali habitavam viviam em completo descanso,

sempre jovens, sem qualquer perturbação ou dor. Dormi-

am sobre leitos de flores ou de relva macia. Os heróis que

lá chegavam conservavam seus corpos e passavam seu

tempo ouvindo os cantos de louvor que os poetas escrevi-

am em sua homenagem.

Hades dificilmente deixava seu palácio para visitar o mun-

do superior. Na verdade, ele mal sabia – e não se importa-

va em saber – o que acontecia nos outros reinos. Seu bem

mais precioso é o capacete que o torna invisível, um pre-

sente dos ciclopes quando ele e seus irmãos os libertaram

do jugo de Crono. Hades também é senhor de todas as

pedras e metais preciosos entranhados na terra.

Perséfone e Deméter

A consorte de Hades é uma das mais antigas e importantes

personagens mitológicas. Perséfone, também chamada de

Core e, pelos romanos, de Proserpina, era filha de Demé-

ter – irmã de Zeus e deusa da terra cultivada – e sua histó-

ria remete ao ciclo das plantas, que tanto influenciou as

primeiras sociedades agrícolas. Em Roma, Deméter era

celebrada como Ceres, nome que originou a palavra cere-

al.

Conta-se que, numa manhã de sol, Perséfone colhia flores

numa campina quando, de repente, a terra se abriu, e

Hades surgiu numa carruagem reluzente. Hades se apai-

xonara pela sobrinha e pedira o consentimento de Zeus

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para se casar com ela. Zeus sabia que não podia concor-

dar, pois magoaria a irmã se deixasse Hades levar Perséfo-

ne para viver com ele no sombrio submundo. Zeus, porém,

também temia se desentender com o irmão. Por isso, ele

disse a Hades que não poderia consentir, mas também

não poderia proibi-lo de tomar Perséfone para si. Hades

quis entender a resposta de Zeus como uma permissão e

tratou de realizar o seu intento.

Passando pela jovem deusa como um raio, Hades agarrou

Perséfone e a levou consigo para as regiões infernais. Os

berros da jovem encheram o ar, e Zéfiro, o Vento, carre-

gou os gritos de desespero através do mundo. Deméter

ouviu as súplicas da filha e, vestida de luto, saiu a sua pro-

cura. Ela cruzou rios, mares e montanhas em busca da

filha perdida. No décimo dia, encontrou Hecate, a deusa

Nutriz que concede o dom da prosperidade material. He-

cate a levou a Hélios, o Sol. Hélios, a divindade que tudo

vê, contou a Deméter sobre o rapto de Perséfone. Disse,

também, que Hades tinha o consentimento de Zeus para

fazer o que fez. Sentindo-se traída, Deméter jurou que só

devolveria a fertilidade da terra depois que sua filha lhe

fosse devolvida. Ela voltou, então, a vagar pelo mundo,

proibindo as sementes de brotarem e as árvores de pro-

duzir.

A mágoa de Deméter devastou a Terra. Os homens aravam

os campos e os semeavam, mas nada nascia. As árvores

frutíferas secavam. Não havia trigo, uvas ou olivas, e a

humanidade começou a padecer. Ao saber disso, Zeus

ordenou às moiras – as três irmãs que personificam o Des-

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tino – que fossem ter com Hades e o ordenassem a liber-

tar Perséfone. O deus dos mortos concordou. Hermes, o

mensageiro dos deuses e guia das almas, a levou à mãe.

Deméter encheu-se de alegria ao ter a filha de volta. Sua

felicidade se irradiou pelo mundo, devolvendo a fertilida-

de aos campos.

Demeter (cópia romana de original grego do séc. 4 a.C.)

Hades, porém, tinha um trunfo escondido. Ele havia de-

terminado que Perséfone poderia voltar à superfície desde

que ela não tivesse comido nada no Tártaro. Para garantir

que Perséfone retornaria a ele, o apaixonado Hades havia

dado a ela uma semente de romã antes que ela partisse. A

jovem deusa teve, então, de voltar àquele reino sinistro.

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Uma vez mais Deméter se desesperou com a ausência da

filha e amaldiçoou a Terra. Vendo aquele estado de coisas,

Zeus, que a tudo ordena e harmoniza, interveio. O deus

supremo decretou que Perséfone deveria passar um terço

de cada ano com sua mãe e o restante do tempo com seu

consorte, Hades6. Graciosa e misericordiosa, Perséfone é

fiel a Hades. No entanto, ela não lhe deu filhos e, na ver-

dade, prefere a companhia de Hecate à do marido.

Tanto Perséfone como Deméter são personificações do

grão. Deméter é a velha semente, produzida no ano ante-

rior; Perséfone, por sua vez, é a semente plantada no ou-

tono e os brotos nascidos na primavera. O período em que

a semente permanece sob a terra corresponde ao tempo

que Perséfone passa com Hades no submundo7. Deméter

também se apresenta de diferentes formas. A Deméter

Negra personifica a terra improdutiva do inverno; a Demé-

ter Verde é a deusa dos brotos; e a Deméter Amarela é a

divindade da colheita.

Apesar de as sacerdotisas de Deméter terem sido respon-

sáveis por iniciar as noivas e os noivos nos segredos da

alcova, a deusa não tinha nenhum consorte.

Afrodite

Afrodite – a Vênus dos romanos – surgiu das águas, nasci-

da da espuma do mar, e, acompanhada de Amor e de De-

sejo, cavalgou as ondas numa concha até a Ilha de Chipre.

O mundo nunca tinha visto nada como ela: a perfeição

manifestada como mulher no apogeu da criação. Bela

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como a existência, seu perfume de fêmea acelerou o tem-

po, embriagando o vento. Ela caminhou nua pela praia até

um rochedo – flores brotando do chão onde seus pés pisa-

vam. Então, ascendeu ao Olimpo, galgando o ar numa

revoada de pombos e pardais, e sentou-se no seu trono

junto aos outros deuses. As nuvens enrodilharam-se de

prazer saudando a deusa do Desejo e da Paixão.

Zeus a deu em casamento a Hefesto, o manco deus ferrei-

ro, e logo Afrodite o presenteou com três filhos: Fobos (o

Medo), Deimos (o Espanto) e Harmonia. Acontece que

nenhum dos três era, na verdade, filhos de Hefesto, mas

sim de Ares, o deus da Guerra. Hefesto só descobriu que

sua esposa o traía quando os dois amantes se demoraram

na cama, e Hélios, o Sol, os surpreendeu ao se erguer nu-

ma manhã. Hélios contou a Hefesto o que estava aconte-

cendo, e o deus do fogo planejou um meio de se vingar.

Para tanto, o ferreiro do Olimpo fabricou uma rede de

caça de bronze, tão fina quanto uma teia de aranha, mas

impossível de se quebrar. Secretamente, ele afixou a rede

sobre a cama e disse a Afrodite que iria fazer uma viagem

até a ilha de Lemnos. Afrodite, é claro, não se ofereceu

para acompanhar o marido na viagem, e assim que Hefes-

to virou as costas, ela correu para os braços de Ares. Os

dois se amaram a noite toda no leito da deusa, mas ao

amanhecer eles se viram presos na rede de caça – nus e

sem poder fugir. Era a hora esperada por Hefesto. O deus

do fogo os surpreendeu e chamou todos os olímpicos para

testemunhar sua desonra. Encolerizado, Hefesto afirmou

que só iria libertá-los depois que Zeus lhe devolvesse os

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presentes que havia recebido dele pela mão de sua filha

adotiva.

Os deuses todos correram para ver a situação dos aman-

tes, mas as deusas, por uma questão de delicadeza, fica-

ram em suas casas. Apolo perguntou a Hermes se ele se

importaria em estar no lugar de Ares. Hermes jurou que

não se incomodaria, mesmo que estivesse preso com três

redes e com todas as deusas a observá-lo. Mas enquanto

Apolo e Hermes riam divertidos, Zeus permanecia grave e

contrariado. Tendo uma especial predileção pela filha ado-

tiva, disse que não interferiria, nem devolveria os presen-

tes. Poseidon, por sua vez, procurou contemporizar, apoi-

ando Hefesto. “Já que Zeus se recusa a interferir”, disse

ele, “proponho que Ares pague o equivalente aos presen-

tes de casamento para ser libertado”. Hefesto concordou

com a ideia, mas impôs uma condição: “se Ares não pagar,

então você deve tomar o lugar dele na rede”. Poseidon

concordou: “se Ares não devolver os presentes, estou

pronto para pagar o debito e me casar com Afrodite”.

Assim, os amantes foram libertados. Ares foi para a Trácia,

enquanto Afrodite tratou de renovar sua virgindade, ba-

nhando-se no mar, como sempre fazia depois de usufruir o

amor. Lisonjeada pelo que Hermes havia dito sobre ela,

Afrodite foi procurá-lo e ofereceu-lhe uma noite de prazer,

da qual resultou em Hermafodito, um ser com os dois

sexos. Depois, agradecida pela intervenção de Poseidon, a

deusa do Desejo lhe deu dois filhos: Rodis e Herófilo.

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Marte desarmado por Vênus e as Três Graças (Jacques-Louis David, 1824)

Eros

Algumas tradições contam que Eros, nascido do ovo uni-

versal, foi o primeiro deus, pois sem ele – o Amor – ne-

nhum outro mortal ou imortal poderia ter sido criado.

Outras fontes, porém, sustentam que Eros é filho de Afro-

dite com Hermes, ou Ares ou até mesmo com seu próprio

pai adotivo, Zeus.

Chamado pelos romanos de Cupido, a imagem universal

do deus Amor é a de um menino com asas douradas que

voa pelo mundo disparando flechas que incendeiam de

paixão o coração dos amantes. Uma versão diferente do

nascimento de Amor é contada pelo filósofo Platão, no seu

O Banquete.

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O Amor e Psique (William-Adolphe Bouguereau, 1889)

No palácio de Zeus, uma ceia foi preparada para receber a

recém-ascendida Afrodite e os deuses abandonaram-se à

celebração. Os brindes de néctar eram muitos, e logo es-

tavam todos entregues aos seus desejos. Dionísio embria-

gava-se de vinho; Hermes trapaceava no jogo de dados;

Apolo emanava música com sua lira. Mas a atmosfera lú-

brica da festa vinha de Afrodite que enfeitiçava a todos,

enchendo-os de lascívia. Recurso, filho de Prudência, tam-

bém estava no banquete e bebeu como nunca. Embriaga-

do, cambaleou até o jardim do palácio, deitou-se na grama

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e dormiu. No entanto, não estava só. Entorpecido daquele

jeito, não percebeu que Pobreza esmolava no jardim as

sobras do banquete. Ela viu Recurso adormecido e achou

que poderia tirar vantagem da situação. Pensou um pouco

e achou que seria proveitoso ter um filho dele. E, como

uma lua no cio, deitou-se nua ao seu lado, beijando-o e

despindo-o, e os dois saciaram-se um com o outro. E as-

sim, desse encontro no jardim de Zeus, Pobreza concebeu

Amor, aquele que quer para si o bom e o belo.

Por causa da sua origem, a natureza de Amor é ambígua.

Como a mãe, ele é sempre pobre, necessitado, carente e

sem lar. O tempo todo na estrada, desabrigado, acompa-

nhado de sua eterna amiga, Necessidade. Mas como o pai,

Recurso, tem muito a oferecer. Decidido, enérgico, cheio

de trunfos e possibilidades. Paradoxal, está entre a sabe-

doria e a ignorância; o sofrimento e o êxtase. Busca a re-

conciliação dos opostos, renovando-os, criando uma coisa

nova dessa união. Nem mortal nem imortal, no mesmo

dia germina, vive, morre e de novo ressuscita. E por não

ser nem homem nem deus, Amor passou, então, a ser o

mensageiro entre imortais e mortais, habitando o coração

dos homens. Amor nem enriquece nem empobrece, por-

que aquilo que consegue sempre lhe escapa 8. Tal é a na-

tureza de Eros.

Hermes

O infiel Zeus gerou filhos em muitas ninfas – as descen-

dentes dos titãs –, deusas e, depois da criação do homem,

até mesmo em mulheres mortais. Com Maia, a mais jovem

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das sete filhas de Atlas, as Plêiades, Zeus teve um filho

excepcionalmente esperto e eloquente: Hermes, também

venerado pelos romanos como Mercúrio. Quando Hermes

nasceu, sua mãe o enrolou com faixas, como se fazia com

os bebês gregos. No entanto, o pequeno deus cresceu com

velocidade estonteante. Assim que Maia terminou de en-

volvê-lo, ele já era um menino, e, tão logo a mãe virou as

costas, Hermes escapuliu em busca de aventura. A primei-

ra coisa que fez o futuro deus dos ladrões foi roubar. Sua

vítima foi Apolo, de quem subtraiu doze vacas, cem novi-

lhas e um touro. Para não ser apanhado, Hermes amarrou

ramos de carvalho nos rabos do gado. Assim, a manada

roubada foi apagando seus rastros na medida em que

caminhava. Hermes também sacrificou duas novilhas aos

deuses do Olimpo e com suas tripas fez cordas para um

instrumento que inventou.

Apolo descobriu o roubo, mas foi enganado pelo truque

de Hermes. Sem poder encontrar as pegadas que levariam

ao seu gado, Apolo se viu obrigado a oferecer uma recom-

pensa a quem lhe entregasse o ladrão. Os sátiros – lúbri-

cas entidades da natureza, meio bodes, meio homens –

atenderam ao chamado de Apolo e se espalharam em

grupos pelos quatro cantos do mundo. Mas não tiveram

sucesso. Muito tempo se passou até que um desses gru-

pos de sátiros passou pela Arcádia e ouviu uma intrigante

música, vinda da entrada de uma caverna. A ninfa Cilene,

que estava ali perto, contou-lhes que o som vinha de um

instrumento inventado por uma criança extraordinária, da

qual ela estava cuidando. Amarrando as tripas das novi-

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

73

lhas sobre uma carapaça de tartaruga, Hermes havia fabri-

cado a primeira lira. Vendo duas peles de novilhas sendo

curtidas fora da caverna, os sátiros desconfiaram de que

tinham achado o gado roubado. Nesse instante, Apolo

apareceu. Furioso, entrou na caverna, acordou Maia, con-

tou-lhe do roubo e exigiu que Hermes devolvesse seu ga-

do. Maia apontou para o menino, que dormia tranquila-

mente em seu berço, com as faixas ainda enroladas ao

redor do seu corpo, e perguntou indignada como Apolo

ousava acusar uma criança de roubo. Mas Apolo já havia

reconhecido as peles das novilhas. Ele pegou Hermes pelas

mãos e o levou ao Olimpo, onde o acusou formalmente de

roubo, mostrando as peles como evidência. Como Maia,

Zeus também não quis acreditar que seu filho recém-

nascido fosse um ladrão. Apolo, porém, tanto fez e insistiu

que Hermes acabou confessando. “Venha comigo”, disse o

deus-menino, “e eu lhe devolverei o gado. Sacrifiquei ape-

nas duas novilhas, mas o fiz em honra aos deuses do Olim-

po, realizando o primeiro holocausto jamais feito”.

Os dois deuses voltaram ao Monte Cilene, onde ficava a

caverna em que Hermes vivia com a mãe, e o deus pegou

sua lira de carapaça de tartaruga. Apolo quis saber o que

era aquele estranho objeto, e, em reposta, Hermes tocou

uma canção. Em seguida, levou Apolo ao local onde havia

escondido o gado. Mas Apolo tinha ficado tão fascinado

com a lira que ofereceu seu gado em troca do instrumen-

to, o que Hermes aceitou imediatamente.

Enquanto Apolo se divertia com a lira, Hermes cortou ca-

niços e com eles fez uma flauta de pã. Ouvindo o novo

Page 74: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

instrumento, Apolo se encantou de novo. Ansioso para

possuir a flauta, Apolo ofereceu seu cajado de ouro em

troca dela. Hermes, porém, não aceitou de pronto. Disse

que sua flauta valia mais do que o cajado de ouro, mas

concordou em trocá-la se Apolo lhe desse também o dom

da profecia. “Isso eu não posso fazer”, respondeu Apolo.

“No entanto, minhas velhas amas, as Trias, ensinarão vo-

cê”. Assim, o cajado de ouro de Apolo passou às mãos de

Hermes.

Depois, Apolo voltou com o menino para o Olimpo e con-

tou a Zeus o que acontecera. O deus supremo não pôde

deixar de se divertir e, orgulhoso, elogiou o filho. “Então

faça de mim seu arauto e eu serei responsável pela segu-

rança da propriedade divina e nunca direi mentiras, apesar

de não poder prometer dizer sempre toda a verdade”,

pediu Hermes. Zeus concordou. “Sua tarefas também in-

cluirão proteger os tratados, o comércio, os ladrões e os

viajantes em qualquer estrada do mundo”, determinou o

Zeus, presenteando o filho com um chapéu para protegê-

lo da chuva e sandálias com asas, que o fariam veloz como

Zéfiro, o Vento. Hades também o convidou para ser seu

arauto, convocando os moribundos ao tocar suas frontes

com o cajado de ouro.

Page 75: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

75

Atena e Hermes (Bartholomäus Spranger, c. 1585)

Logo depois, Hermes foi ter com as Trias, que lhe ensina-

ram a ver o futuro observando como pedregulhos se de-

positavam no fundo de uma vasilha de água. O inventivo

Hermes aperfeiçoou o método, criando um jogo de ossos e

a arte de adivinhação através deles. Ajudado pelas Moiras,

Hermes também inventou o alfabeto, a astronomia, a es-

cala musical, os pesos e as medidas, além do boxe e da

ginástica. A ele também é associado o planeta Mercúrio (o

nome do deus na mitologia latina), por causa da rápida

velocidade com que orbita o sol e da dificuldade em se

observá-lo9.

Page 76: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

Apolo

Com Leto, divindade da Noite, filha do titã Céu e de Febe,

Zeus teve Apolo e Ártemis. Leto precisou fugir da fúria de

Hera por toda a Grécia. Buscando um lugar onde pudesse

dar à luz seus filhos, Leto acabou encontrando um abrigo.

Sua irmã Astéria, por ter resistido às investidas de Zeus,

fora transformada numa ilha flutuante. Foi nessa ilha que

Apolo e Ártemis nasceram. Durante nove dias e nove noi-

tes, Leto esteve em trabalho de parto, dilacerada por do-

res terríveis. Todas as deusas estavam ao seu redor naque-

le momento difícil, menos Ilícia, a deusa dos partos felizes,

retida pela conversa de Hera. A esposa traída estava pos-

suída de ciúme doentio, pois sabia que a bela Leto daria à

luz um filho poderoso. As outras deusas, porém, enviaram

Íris – a deusa do arco-íris – para trazer Ilícia, prometendo

dar à divindade dos partos felizes um cordão de ouro se

ela viesse sem demora.

Quando Ilícia chegou, Ártemis, a irmã gêmea de Apolo já

havia nascido e ajudava a mãe no parto do irmão. Final-

mente, quando Apolo nasceu, Zeus desceu do Olimpo para

receber seus rebentos. A Apolo, o deus supremo deu uma

mitra de ouro, uma lira e uma carruagem puxada por cis-

nes brancos. Mas enquanto os imortais se regozijavam

com o nascimento, Hera ardia de ciúme e raiva. A vingati-

va deusa dirigiu a ira de Píton, uma gigantesca serpente

incumbida de guardar o oráculo de Gaia, contra a infeliz

Leto. Píton não a deixava em paz, perseguindo Leto até os

confins da terra. Apenas quatro dias depois do seu nasci-

mento, Apolo se armou com um arco e flechas feitos para

Page 77: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

77

ele por Hefesto e foi em captura do inimigo mortal da sua

mãe. Ao chegar no monte Parnaso, onde a serpente o

espreitava, Apolo feriu Píton com uma saraivada de fle-

chas. O monstro buscou refúgio no oráculo de Gaia, em

Delfos, mas Febo, como Apolo era chamado em Roma, o

seguiu até lá e o matou impiedosamente. Depois de se

purificar do contato com a serpente, Apolo se apoderou

do oráculo e nele consagrou um tripé onde uma sacerdoti-

sa se sentava e recebia as mensagens divinas.

Certa vez, Febo desdenhou de Eros, que passava o dia

flechando o coração de homens e imortais. Disse que aqui-

lo não passava de uma brincadeira. Eros, então, feriu o

deus com uma das suas flechas da paixão e, ao mesmo

tempo, flechou Dafne – uma ninfa da montanha, compa-

nheira da sua irmã Ártemis – com uma seta de aversão.

Movido de amor e desejo, Apolo tentou abordar a solitária

ninfa, mas Dafne fugiu como uma gata que escapa da chu-

va. Apolo suplicou em vão que parasse, pois quem a per-

seguia era o deus da luz, filho do próprio Zeus, que des-

vendava o futuro aos homens. Apolo chegou mesmo a

alcançá-la, mas Dafne pediu ajuda a Gaia. Imediatamente,

a terra se abriu, e a ninfa desapareceu nas entranhas da

Grande Mãe. No lugar onde Dafne desapareceu, surgiu um

loureiro – que passou a ser a árvore privilegiada por Apo-

lo.

Page 78: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

Apolo Perseguindo Dafne (detalhe) – Carlo Maratti, 1681

Dafne não foi a única experiência amorosa infeliz de Febo.

O deus, porém, teve muitas outras amantes, as quais não

lhe resistiram. Ao contrário, deram-lhe muitos filhos, entre

eles Orfeu, o fundador dos Mistérios Órficos, e Asclépio, o

deus da medicina. Certas lendas o colocam até mesmo

com pai de Pitágoras. Como presidisse o cortejo das Mu-

sas, Apolo teve muitas amantes entre elas. Mas o deus da

luz não se limitava a amar somente mulheres. Uma vez,

ele se apaixonou por Jacinto, um adolescente dono de

estonteante beleza, filho do rei Amiclo, de Esparta. Um

dia, Apolo lançava discos às margens de um rio. Movido

pelo ciúme, o Vento Oeste, que também se apaixonara

pelo jovem príncipe espartano, desviou o disco e o fez

atingir o crânio de Jacinto, matando-o. Desconsolado,

Apolo o transformou na flor jacinto.

Page 79: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

79

Outro amante do deus foi o mortal Ciparisso. O jovem

matou sem querer um gamo de chifres dourados consa-

grado às ninfas e, desconsolado pelo sacrilégio que come-

teu, acabou se suicidando. Comovido, Febo o transformou

em cipreste.

Apolo era também o deus da música10. Certa vez, Atena

inventou uma flauta de dois tubos e se pôs a tocar na as-

sembleia dos deuses. Apesar de a música agradar a todos,

Hera e Afrodite, suas rivais, riam-se divertidas. Atena des-

ceu ao mundo, então, e tocou a flauta nas margens de um

rio, observando o reflexo do seu rosto nas águas. Perce-

bendo o quanto parecia ridícula soprando aqueles tubos

com as bochechas inchadas, a deusa jogou a flauta fora e

voltou ao Olimpo. Marsias, um mortal que passava por ali,

achou a flauta e começou a tocá-la. Talvez porque o ins-

trumento estivesse imbuído da sabedoria da deusa, ou

talvez porque Marsias tivesse sido inspirado, a música que

saiu da flauta encantou homens e feras. Os camponeses

ignorantes começaram a dizer que Marsias tocava melhor

que o próprio Apolo – um boato que o incauto flautista

não cuidou de desmentir. Quando aquela afronta chegou

aos ouvidos do deus, ele desceu imediatamente à terra e

desafiou Marsias para uma competição. Quem vencesse

poderia infligir o castigo que bem entendesse ao perde-

dor. No entanto, nenhum dos músicos conseguia superar

ao outro. Apolo resolveu propor outro desafio: eles teriam

de tocar com as flautas invertidas e ao mesmo tempo can-

tar. Marsia não conseguiu vencer seu desafiante. O vinga-

tivo deus da música puniu Marsias exemplarmente: esfo-

Page 80: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

lou o músico vivo e pendurou sua pele num pinheiro, pró-

ximo da nascente do rio que desde então leva o nome do

infeliz flautista.

Os atributos de Febo-Apolo como deus da luz, da música,

da harmonia que rege a natureza, da profecia, da inspira-

ção poética, da medicina o tornam uma das mais impor-

tantes divindades do panteão grego. É provável que, origi-

nalmente, ele não fosse um, mas muitos deuses que aca-

baram se fundindo. Há indicações de que Apolo tenha sido

um deus solar originário da Ásia, cujo caráter teria se a-

malgamado ao de um deus campestre do norte da Grécia,

a divindade principal dos dórios.

Ártemis

Quando Ártemis, a divindade lunar, deusa das florestas e

da caça, cultuada em Roma como Diana, era ainda criança,

seu pai Zeus lhe perguntou o que ela queria de presente.

“Dê-me eterna virgindade”, pediu ela, “tantos nomes

quanto meu irmão Apolo, arco e flechas como os dele, a

tarefa de trazer a luz, uma túnica de caça que chegue aos

meus joelhos, sessenta ninfas do oceano como damas de

honra e vinte ninfas do rio para cuidar dos meus cães de

caça, todas as montanhas do mundo e apenas uma cidade

que me honre, pois pretendo viver nas montanhas a maior

parte do tempo”. Zeus riu e concedeu seus pedidos. Mas

em vez de apenas uma cidade, ele lhe deu trinta e, além

disso, a fez guardiã das estradas e dos portos.

Page 81: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

81

Em seguida ela foi ao Oceano, escolher as ninfas que a

acompanhariam, e visitou os ciclopes. Deles, ela recebeu

um arco de prata e flechas. Pã, o deus dos pastores e dos

rebanhos, também presenteou a jovem deusa. Deu-lhe

dez cães de caça rápidos como o pensamento e capazes de

vencer até mesmo leões.

Ártemis, a eterna virgem, desejou ser livre dos caprichos

dos homens. Certa vez, o deus-rio Alfeu se apaixonou por

ela e a perseguiu por toda a Grécia. Quando ele estava

quase a alcançando, Ártemis sentou-se às margens de um

rio e cobriu seu rosto com lama, ordenando às suas ninfas

que fizessem o mesmo. Dessa forma. Alfeu não pôde mais

distinguir quem era a deusa e a deixou em paz.

Em outra ocasião, foi um mortal que ousou perturbar Ár-

temis. Actéon a surpreendeu nua, banhando-se num rio.

Não bastando isso, o incauto Actéon, em vez de se retirar,

aproveitou o prazer de observar a nudez da deusa. Árte-

mis, percebendo a presença do homem, transformou-o

num cervo e fez com que seus cães o estraçalhassem.

A severa Ártemis exigia a mesma castidade das suas nin-

fas. Quando seu pai seduziu uma delas, Calisto, Ártemis

percebeu e a transformou num urso, atiçando sua matilha

de cães de caça contra ela. Calisto teria sido despedaçada,

se Zeus não tivesse intercedido. No momento em que os

cães se atiravam sobre ela, Zeus a levou os céus e a trans-

formou numa constelação11.

Page 82: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

Diana (Artemis) Como Personificação da Noite - Anton Mengs c. 1765

Ares

O “deus que ama o sangue”, filho legítimo do casamento

de Zeus e Hera, é dotado de uma coragem cega e brutal,

cheio de fúria sanguinária. Na Ilíada, Homero conta que

Zeus definiu o próprio filho com estas palavras: “de todos

os deuses que habitam o Olimpo, você é o mais odioso,

uma vez que você não ama outra coisa senão a discórdia, a

guerra, os combates. Você tem o espírito intratável e in-

dócil da sua mãe, Hera, que muito me custa reprimir com

palavras”12. De fato, a não ser por Afrodite, sua eterna

amante, em quem Ares gerou Harmonia, Hades, que se

apraz ao receber as almas dos guerreiros mortos em bata-

Page 83: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

83

lha, e sua irmã Eris, a Discórdia, Ares era odiado por seus

pares olímpicos.

O deus da guerra, chamado de Marte em Roma, combatia

a pé ou num carro de guerra puxado por quatro cavalos.

Nas batalhas, era auxiliado por quatro demônios-

escudeiros: seus dois filhos, Deimos, o Espanto, Fobos, o

Terror, e ainda Éris e Enio, o “destruidor de cidades”. Era

também acompanhado das Queres, lúgubres divindades,

sedenta do sangue dos guerreiros agonizantes.

Ares representava a força bruta, aquela que se opõe à

coragem inteligente e refletida, personificada no panteão

olímpico por Atena. Assim, Ares e Atena estavam sempre

numa luta constante. Mas é Atena quem sempre sai ven-

cedora – isto é, a inteligência sobre a força desmedida –,

como aconteceu na guerra de Tróia. Homero conta que

Ares lutou ao lado do príncipe troiano Heitor. Numa bata-

lha, Ares atacou o herói grego Diomedes. Ele não contava,

porém, que Atena, tornada invisível pelo capacete de Ha-

des, estava ao lado de Diomedes, protegendo-o. Atena

desviou o golpe de Ares e dirigiu a lança do mortal contra

o deus, ferindo-o. Ares soltou um grito pavoroso, que pa-

ralisou os dois exércitos combatentes, e se retirou da bata-

lha, fugindo para o Olimpo. Zeus recebeu o filho queixoso

e permitiu que Apolo lhe preparasse uma beberagem que

lhe acalmasse as dores.

Page 84: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

Detalhe de O Combate de Marte e Minerva (Jacques-Louis David, 1824)

Em outra ocasião, Ares enfrentou Heracles, por conta de

uma luta que o herói travou contra Cicno, filho do deus.

Destino havia determinado que Heracles não seria morto

por ninguém. Era Cicno, portanto, quem deveria padecer

na contenda, e Ares não aceitou. Cheio de fúria, armou-se

e saiu para defender o filho. Atena tentou chamá-lo de

volta à razão, lembrando que nem mesmo os deuses po-

dem interferir nas decisões de Destino. Ares, naturalmen-

te, não a escutou. Estava, como de costume, cego de raiva.

Durante a luta, Heracles o feriu na coxa, e o deus fugiu

vergonhosamente.

Ares também foi o primeiro réu a ser julgado por assassi-

nato. Conta-se que o deus da guerra surpreendeu Halirró-

cio, filho de Poseidon, tentando violentar sua filha Alcipe.

Page 85: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

85

Como não poderia deixar de ser, Ares o matou. Poseidon,

porém, levou o caso ao tribunal dos deuses. Ares alegou

que agira em defesa da sua filha. E como não havia teste-

munhas, os deuses o absolveram.

Hefesto

O deus ferreiro, sobre quem Hesíodo afirma ser “entre

todos os filhos do Céu, o mais habilidoso em qualquer

arte”13, era feio, coxo e mal-humorado. Hesíodo conta que

Hera, por ter se desentendido com Zeus, o concebeu sozi-

nha, sem se unir ao marido ou a qualquer outro mortal ou

imortal. Mas Hefesto, cultuado em Roma como Vulcano,

era tão fraco e feio ao nascer que Hera, tentando se livrar

do embaraço, o jogou do alto do Olimpo – afinal, o infanti-

cídio não era uma prática incomum na Grécia antiga. He-

festo, porém, sobreviveu à queda. Ele caiu no mar e foi

salvo por Eurinome e Tétis. As duas deusas cuidaram dele

numa caverna submarina, onde Hefesto montou sua pri-

meira oficina. Grato à bondade das amas, o deus lhes fa-

bricava joias e objetos úteis de presente.

Nove anos se passaram assim. Um dia, Hera encontrou

Tétis e não pôde deixar de notar o belo broche que a ne-

reida usava. “Onde você conseguiu essa rara joia?”, quis

saber a rainha dos imortais. Tétis hesitou, mas acabou

contando toda a história. Fosse pelo interesse nos dons do

filho, fosse por ter se arrependido, Hera quis, então, se

reconciliar com Hefesto e o trouxe de volta ao Olimpo,

onde montou para ele uma nova oficina, muito maior e

Page 86: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

melhor equipada que a anterior. Além disso, ela providen-

ciou arranjos para casar o filho com Afrodite.

Apolo na Oficina de Vulcano (Diego Velásquez, 1630)

Ao que parece, mãe e filho se entenderam perfeitamente

bem. Tanto que Hefesto ousou reprovar Zeus, quando o

deus supremo pendurou Hera pelos pulsos do Olimpo, por

ocasião da revolta dos deuses, liderada por Hera. Irado,

Zeus jogou Hefesto do Olimpo pela segunda vez. O deus

passou um dia todo caindo e, ao atingir o chão, quebrou as

duas pernas. Passada sua fúria, Zeus o perdoou e o trouxe

de volta ao Olimpo. Hefesto, apesar de imortal, ficara coxo

com a queda. A partir de então, ele só podia andar com

muletas de ouro que ele mesmo fizera para si.

Page 87: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

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Dionísio

Quase sempre, pensa-se em Dionísio – o Baco romano –

apenas com o deus do vinho. Na verdade, a metáfora que

ele abrange é muito maior. Dionísio é, também, um deus

das árvores e da vegetação, o que consequentemente

encerra nessa divindade os mistérios da vida e da morte.

Patrono das árvores frutíferas – foi Dionísio quem desco-

briu todas elas –, os agricultores sempre colocavam uma

estatua de Dionísio em seus pomares e ofereciam ao deus

preces pedindo frutos em abundância. E entre todas as

árvores, o pinheiro era a que mais o representava14.

Dionísio era também o deus protetor dos maridos – do

homem comum que cumpre seu ciclo de existência, dei-

xando sua marca no trabalho e em outras ações e atitudes

humanas – e do êxtase místico – um atributo relacionado

aos efeitos do vinho.

Como outros deuses da vegetação, Dionísio teve uma mor-

te violenta, mas foi trazido à vida novamente. Nos seus

ritos, os fieis representavam o sofrimento, a morte e a

ressurreição do deus. Dionísio trazia em seu mito e ritual a

doutrina da imortalidade da alma – era a versão grega do

deus egípcio Osíris e do sumério Tamuz. O culto de Dioní-

sio era uma parte importante dos Mistérios Órficos. De

acordo com o mito órfico, o homem foi criado a partir das

cinzas de Dionísio e dos titãs. A alma, isto é, Dionísio, era

divina, mas o corpo, representado pelos titãs, a mantinha

presa. A alma só seria libertada através de práticas ascéti-

cas15.

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Dionísio era, como muitos olímpicos, filho bastardo de

Zeus com Sêmele, uma mortal fulminada pelo ciúme de

Hera. A esposa de Zeus, ao saber que Sêmele daria um

filho ao seu marido, apareceu à mortal transfigurada numa

velha. Hera elogiou sua avançada gravidez e sugeriu mali-

ciosamente que Sêmele pedisse ao seu amante que ele se

mostrasse a ela em toda a sua glória. A infeliz mortal não

suspeitou da perfídia de Hera e aceitou o conselho. Pri-

meiro fez Zeus jurar que a atenderia; depois pediu. Numa

intensidade apocalíptica, Zeus se transformou em luz e

raios. Sêmele não suportou a visão e tombou fulminada.

Mas a criança em seu ventre não morreu. Hermes retirou-

a do útero da mãe morta e a costurou na coxa de Zeus,

pois ainda faltava algum tempo para ela nascer. No devido

tempo, Dionísio veio ao mundo. (Em outra ocasião, Dioní-

sio desceu aos infernos para resgatar Sêmele e a levou ao

Olimpo, onde ela foi imortalizada).

Hera, porém, continuou a nutrir seu ódio pelo filho do

marido. Numa antiga versão cretense do mito de Dionísio,

Zeus teve de se ausentar e preparou Dionísio para ficar em

seu lugar. Assim que ele partiu, Hera imaginou uma forma

de se livrar do bastardo indesejável. A deusa ludibriou

Dionísio com palavras doces e o entregou aos titãs, os

quais o desmembraram ainda vivo e o devoraram. Atena,

porém, vendo o que havia acontecido ao seu irmão, guar-

dou seu coração. Quando Zeus voltou ao palácio, Atena

contou a ele o que havia acontecido e entregou-lhe o co-

ração de Dionísio. Como vingança, Zeus torturou os titãs

até a morte. Desolado, Zeus encerrou o coração de Dioní-

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sio numa arca que, por sua vez, colocou num templo cons-

truído em honra do filho. Logo depois do seu sepultamen-

to, Dionísio ergueu-se dos mortos e ascendeu aos céus,

onde assumiu seu lugar, à direita de Zeus pai.

Detalhe de Baco (Caravaggio, 1593/4)

Héstia

Filha de Reia e de Crono, Héstia – ou Vesta, na mitologia

romana – é a personificação da antiga divindade protetora

do lar, o Fogo do Lar. Héstia é a única entre os deuses o-

límpicos que nunca participou de guerras e disputas. Como

Ártemis e Atena, Héstia não teve consortes ou amantes.

Ela resistiu a todas as propostas feitas a ela. Dizem que

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Projeto Cultura e Memória

depois que Crono foi destronado, Poseidon e Apolo vieram

propor se casar com ela. Os rivais se exaltaram, e Héstia,

para pôr um fim à disputa, jurou por Zeus que permanece-

ria virgem para sempre. Por conta de ter preservado a paz

entre os olímpicos, a partir de então, Zeus a premiou com

a primeira vítima de qualquer sacrifício público.

Detalhe de Sacrifício à Deusa Vesta (Sebastiano Ricci, início séc. 18)

Como deusa do Fogo do Lar, Héstia também personifica a

proteção e misericórdia que os lares das pessoas repre-

sentam. Ela era cultuada em todas as casas gregas como a

mais branda, caridosa e elevada entre os deuses olímpi-

cos.

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A Revolta dos Gigantes

Depois de Zeus, Hades e Poseidon terem destronado Cro-

no eles puderam assumir a ordem do Universo e estabele-

cer suas harmonias. Mas os que os olímpicos não espera-

vam era uma revolta dos antigos inimigos. A raiva que os

gigantes – filhos de Gaia fecundada pelo sangue de Urano,

quando Crono o mutilou – nutriam por Zeus e seus irmãos

por terem prendido seus irmãos, os titãs, no Tártaro, não

podia ser mitigada. Sem qualquer aviso, os 24 gigantes se

ergueram no cume das montanhas mais altas e bombar-

dearam o Monte Olimpo com rochas e enormes árvores

em chamas. Os imortais se viram presas da ameaça dos

gigantes. Hera profetizou que os gigantes não poderiam

ser mortos por nenhum deus, apenas por um único mortal

vestindo uma pele de leão; e até mesmo Heracles, o mor-

tal em questão, não poderia fazer nada a não ser que os

olímpicos se tornassem invulneráveis pelo efeito de certa

erva que crescia num lugar secreto. Zeus ordenou Atena

que fosse chamar Heracles, enquanto ele mesmo iria pro-

curar a tal erva. Para que os gigantes não o vissem, o deus

proibiu que Hélios – o Sol –, Eos – a deusa que descerra as

pálpebras do dia – e Selene – a Lua – de brilharem, en-

quanto ele empreendia a busca. Sob a luz das estrelas,

Zeus encontrou a erva da invulnerabilidade e a trouxe de

volta aos céus. Finalmente, os olímpicos estavam prontos

para o combate.

Heracles disparou a primeira seta contra Alcioneu. O líder

dos gigantes tombou ferido, mas não morreu. Ergueu-se

furioso e prosseguiu a batalha, pois havia sido atingido na

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sua terra natal, Palena, onde nada poderia afetá-lo. Atena

mandou, então, que Heracles arrastasse o gigante para

outras terras, onde poderia ser morto. O herói combateu o

gigante até a Trácia, onde o matou com sua clava.

Entrementes, o gigante Porfírio havia empilhado monta-

nhas e rochedos, formando uma grande pirâmide, através

da qual chegou aos céus, onde os olímpicos combatiam.

Imediatamente, Porfírio avançou sobre Hera – os dedos de

pedra a estrangular a deusa. Eros, indo ao socorro de He-

ra, atirou uma de suas flechas no fígado de Porfírio. O

gigante foi, então, tomado de lascívia e, em vez de liquidar

Hera, tentou possuí-la. Foi quando Zeus entrou em cena,

descarregando sobre Porfírio a fúria de todos os raios do

céu. Porfírio caiu neutralizado. No entanto, como Hera

havia predito, nenhum deus conseguiria abater qualquer

gigante. Porfírio se ergueu novamente, mas foi apenas

para ser atingido por umà flechada letal de Heracles.

O herói se virava de um lado para outro disparando setas

sem parar, ajudando os deuses a abater os gigantes. Elfia-

tes, que havia instigado em seus irmãos o ódio contra os

olímpicos, tinha derrubado Ares. O deus da guerra jazia de

joelhos, prestes a receber o golpe de misericórdia, quando

Apolo o salvou, cravando uma flecha no olho esquerdo de

Elfiates. Heracles terminou por abater o gigante com outrà

flechada.

Perdidos com a morte dos seus líderes, os invasores fugi-

ram, perseguidos pelos deuses. Atena lançou uma enorme

rocha sobre Encélado. O gigante ficou sepultado sobre a

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gigantesca laje, a qual veio a ser a Sicília. Até hoje, seus

habitantes dizem que quando Encélado se vira em sua

tumba, a ilha toda treme.

Poseidon fez a mesma coisa com Polibotes. O deus do mar

perseguiu o gigante até Cós, onde fincou seu tridente na

terra, arrancando um enorme pedaço da ilha. Poseidon

lançou, então, a rocha sobre Polibotes, matando-o e for-

mando a ilhota de Nisiros.

Os gigantes que restaram tentaram se abrigar em Batos,

mas foram alcançados e executados por seus perseguido-

res com a ajuda de Heracles. Todos os deuses haviam par-

ticipado da luta, exceto Héstia e Demeter, que permane-

ceram aflitas assistindo sua família derrotar os terríveis

gigantes16. A guerra estava ganha. Os olímpicos se cobri-

ram de glórias. Agora, poderiam restabelecer a ordem do

Cosmos, que tinha sido abalada. Assim imaginavam. No

entanto, um perigo ainda maior iria logo ameaçá-los no-

vamente.

Tífon

Gaia, a Mãe Terra, chorou a morte de seus filhos, e sua

mágoa se solidificou em raiva. Buscando apaziguar sua dor

na vingança, Gaia deitou com Tártaro – o elemento pri-

mordial do mundo17 – e gerou seu filho mais novo, Tífon.

Nada havia sido criado, até aquele momento, tão mons-

truoso e poderoso quanto Tífon. Meio homem, meio ser-

pente, sua força rivalizava com a do próprio Zeus. Era e-

norme: sua cabeça tocava as estrelas, e seus braços se

Page 94: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

estendiam do nascente ao poente. Dos seus ombros, er-

guiam-se centenas de cabeças de serpentes, todas sibilan-

do gigantescas línguas de fogo, enquanto os milhares de

olhos do monstro dardejavam chamas. Suas muitas vozes

produziam sons que os deuses compreendiam, mas tam-

bém rugiam, mugiam, latiam, baliam e sibilavam com uma

intensidade que fazia as montanhas ruírem18.

Tífon se voltou para o Olimpo, buscando assumir o contro-

le do Cosmos. Vendo-se ameaçados por aquela criatura

apocalíptica, os deuses fugiram para o Egito, onde, para se

disfarçar, assumiram a forma de animais. A corajosa Atena

foi a única que ficou para enfrentar o monstro, acusando

Zeus de covardia. As palavras da filha trouxeram o deus

supremo de volta a si. Zeus assumiu sua forma verdadeira

e lançou um raio sobre Tífon, seguido de um golpe da

mesma foice usada para castrar Urano. Tífon fugiu para o

Monte Casio, com Zeus nos calcanhares. Quando o deus

alcançou seu inimigo, os dois se engalfinharam. Tífon se

enrodilhou em torno de Zeus, o desarmou e cortou com a

foice os tendões das suas mãos e pés. Em seguida, enrolou

os tendões em uma pele de urso e levou seu prisioneiro

para uma caverna, deixando-o sob a guarda de sua irmã

Delfines – como ele, meio cobra, meio mulher.

Zeus fora derrotado. Com os tendões cortados, não podia

se mexer. Os deuses ficaram ainda mais desanimados.

Tífon poderia, agora, controlar o Cosmos. Mas Hermes e

Pã – o deus dos pastores e dos rebanhos – não aceitaram a

derrota. Os dois entraram secretamente na caverna onde

Zeus jazia prisioneiro, e Pã, com um grito terrível, assustou

Page 95: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

95

Delfines. Aproveitando a distração da monstruosidade,

Hermes pegou os tendões de Zeus da pele de urso e os

reimplantou em seu pai. Em seguida os três fugiram para o

Olimpo.

Zeus combatendo Tífon (detalhe de ânfora grega, c. séc. 5 a.C.)

Mal se recuperou dos ferimentos, Zeus retornou à luta.

Cruzando os céus num carro de guerra puxado por cavalos

alados, o deus supremo voltou a atacar Tífon com seus

raios. O monstro, por sua vez, atirava montanhas inteiras

sobre Zeus. A batalha dilacerava Gaia – a Mãe Terra –,

rasgando o chão, abrindo vales e moldando uma nova

paisagem na deusa. Finalmente, Zeus conseguiu ferir Tífon

gravemente. Buscando sobreviver, Tífon se refugiou na

Sicília. Mas foi em vão. Zeus o liquidou, esmagando-o sob

uma enorme laje de pedra, que veio a ser o Monte Etna19.

Page 96: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

Notas do Capítulo

1 – Ortopedia Brasileira – Momentos, Crônicas e Fatos –

Claudio Blanc e Mânlio Napoli, SBOT, São Paulo, 2000, p.

10

2 – The Masks of God: Occidental Mythology – Joseph

Campbell, Arkana, New York, 1991, p. 150

3 – Greek Myths – Robert Graves, Penguin Books, London,

1981, p. 16

4 – Dicionário da Mitologia Grega – Ruth Guimarães, Cul-

trix, São Paulo, 1993, p. 262

5 – Theogony – Hesíodo, Online Medieval and Classical

Library Release #8, 2006, in

http://omacl.org/Hesiod/theogony.html, versos 767 - 774

6 – Crete & Pre-Helenic Myths and Legends – Donald A.

Mackenzie, Studio Editions, London, 1995, pp. 178-180

7 – The Golden Bough – James G. Frazer, Gramercy Books,

New York, 1981, vol. II pp. 44-48

8 – Os Pensadores vol. III – Diálogos, Platão, Abril Cultural,

São Paulo, 1972, p. 41

9 – The Hutchinson Dictionary of Symbols – Jack Tresidder,

Helicon, Oxford, 1997, p. 132

10 - Theogony – Hesíodo, versos 75-103

Page 97: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

97

11 - Greek Myths – Robert Graves, p. 34

12 – citado in Dicionário da Mitologia Grega – Ruth Guima-

rães, p. 67

13 – Theogony – Hesíod versos 924-929

14 - The Golden Bough – James G. Frazer, vol. I pp. 321

15 – The Masks of God: Occidental Mythology – Joseph

Campbell, Arkana, New York, 1991, p. 183

16 - Greek Myths – Robert Graves, Penguin Books, London,

1981, p. 46

17 - Dicionário da Mitologia Grega – Ruth Guimarães, Cul-

trix, São Paulo, 1993, p. 282

18 – The Masks of God: Occidental Mythology – Joseph

Campbell, p. 23

19 – Greek Myths – Robert Graves, p. 47

Page 98: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

5

Heróis

s heróis gregos são figuras emblemáticas, muitas ve-

zes baseadas em lendários homens de ação – reis,

líderes, guerreiros, poetas, músicos, atletas. Alguns

deles, como Heracles, foram divinizados e elevados à con-

dição de imortais. A disposição que os levou a realizar seus

feitos era observada como um ideal a ser buscado. Os

heróis são imagens que modelam decisivamente a vida

das pessoas, inspirando-as e orientando-as – mesmo hoje,

uma época em que os mitos foram reduzido a estereóti-

pos. Ser um herói é o que todos almejam – no Brasil mo-

derno ou na Grécia clássica –; tornar-se herói é, simboli-

camente falando, a realização maior que um homem ou

uma mulher podem atingir no seu ciclo de existência. É

uma iniciação – a grande iniciação.

As aventuras vividas pelos heróis em suas sagas se basei-

am na fórmula representada nos rituais de passagem – os

O

Page 99: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

99

ritos que iniciam uma pessoa nas diversas fases da vida,

como o bar mitzvá judaico ou a primeira comunhão dos

católicos –, isto é, separação, iniciação, retorno. “Um herói

vindo ao mundo cotidiano se aventura numa região de

prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e

obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua miste-

riosa aventura com o poder de trazer benefícios a seus

semelhantes”1.

As narrativas dos mitos e lendas de praticamente todas as

culturas – grega, romana, egípcia, suméria – obedecem

quase sempre ao padrão que o mitologista norte america-

no Joseph Campbell (1904 – 1987) chamou de Ciclo do

Herói. Na imensa maioria das histórias, o ponto inicial da

trama é a falsa estabilidade em que o protagonista se en-

contra. De repente, são detonados acontecimentos que

levam o herói rumo a seus maiores potenciais, numa via-

gem que vai da luz de volta à luz, através da sombra da sua

alma. É a jornada pela qual Psique passou para reconquis-

tar o amor do deus Eros, ou que Jasão empreendeu para

se apoderar do Velo de Ouro.

Logo no início das histórias, o mundo do protagonista é

virado de cabeça para baixo por um erro vindo de desejos

e conflitos reprimidos. Isso faz com que o personagem

perca totalmente o controle da situação. Outras vezes é

um acontecimento externo, como uma tragédia, que colo-

ca em movimento um processo que fará do protagonista

um herói. Campbell chamou esse momento de Separação,

o começo da descida rumo ao reino da noite, do desco-

nhecido.

Page 100: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

A partir de então, a instabilidade é constante e a tensão

cresce à medida que uma crise se soma à outra, desafian-

do o protagonista a superá-las, num crescendo que culmi-

nará no clímax da história. Essa parte da epopeia Campbell

batizou de Descida. É quando surge o Guia para orientar o

protagonista. Esse guia pode ser qualquer coisa que con-

duza o herói na sua aventura: um artigo de jornal, uma

situação ou uma pessoa. No mito do Minotauro, o guia

que aparece para Teseu é Ariadne, que lhe propõe que se

case com ela em troca de um meio para voltar das trevas:

um novelo de lã que, desenrolado na entrada do labirinto,

permitiria a Teseu segui-lo de volta à luz, depois de ter

matado o monstro.

A jornada inicia seu período mais crítico com a entrada do

protagonista no reino da noite, onde tudo é absolutamen-

te desconhecido. Isso é marcado com o surgimento de um

novo personagem, que é o guardião do Limiar entre os

reinos da luz e da sombra, os reinos do conhecido e do

desconhecido: o Antagonista. A batalha que se trava entre

eles leva o protagonista ao que Campbell chamou de Inici-

ação. Embora inimigos, o protagonista e o antagonista são

dois aspectos opostos da mesma verdade, cuja união ofe-

rece a complementação daquilo que o herói é verdadei-

ramente. Esse encontro, portanto, busca completar o per-

sonagem foco, pois o antagonista é e possui o que o herói

não é e não tem. Esses valores serão adquiridos através do

conflito.

As dificuldades aumentam exigindo que o protagonista

busque meios para responder a elas, até que a tensão –

Page 101: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

101

física, psicológica, do ambiente – acaba por esgotá-lo: o

ponto onde tudo parece perdido. É quando Tífon corta os

tendões de Zeus e aprisiona o deus numa caverna, ou

quando Ares, derrotado em combate pelo gigante Elfiates,

está para receber o golpe de misericórdia. Nesse momen-

to agentes externos interferem para o bem do herói, ou

então o protagonista consegue encontrar um reservatório

de energia psíquica que lhe dá recursos até então desco-

nhecidos para superar a crise, para dar a resposta mais

eficiente, para vencer ou renunciar. Quando Zeus jaz prisi-

oneiro de Tífon, Hermes e Pã surgem para libertá-lo; antes

que Elfiates matasse Ares, uma flecha de Apolo derruba o

gigante – e o herói vence. É o que Campbell chamou de

Iniciação. Na história de Heracles, essa iniciação pode ser

representada pela pele de leão – sua armadura e símbolo.

Quando o herói enfrentou o Leão de Nemeia, dentro do

covil da fera, e as armas do herói se mostram inúteis. A

clava não teve efeito contra os duros ossos do animal, as

flechas mal roçaram a pele impenetrável. Heracles teve de

bloquear uma das saídas da cova e lá entrar para comba-

ter com as mãos nuas, terminando por estrangular o leão.

Depois, a iniciação: Heracles tira a pele e faz dela sua ar-

madura. É por isso que o herói é sempre representado

envolto na pele do Leão de Nemeia: sua recompensa, seu

principal trunfo. Ela representa a força do antagonista que

ele conquistou, aquilo que foi buscar ao fazer a jornada e

que o transforma em herói. É esse o sentido do ato cani-

bal, comum entre os antepassados dos índios brasileiros,

de devorar o inimigo para absorver suas forças.

Page 102: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

Depois do triunfo há o Retorno, a volta para a posição

inicial da história, onde tudo se conhece e se controla.

Agora, porém, o protagonista é um herói, achou, como

Jasão, um tesouro e volta para casa libertar o seu povo do

jugo do tirano usurpador.

É, portanto, essa estrutura narrativa que reflete a força do

herói. Assim, a figura do herói é cultuada como uma metá-

fora dos valores encarnados por uma sociedade e uma

inspiração e orientação para os homens e mulheres dessa

cultura.

Herói e Heroína (detalhe de afresco de Jacques Iverny, c. 1420)

Page 103: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

103

Os Doze Trabalhos de Heracles

Eracles, uma das figuras mais ricas e complexas da

mitologia ocidental, é hoje mais lembrado pelo seu

nome romano, Hércules. Suas lendas, contadas e re-

contadas em todo o mundo greco-romano, estiveram em

constante evolução desde a época pré-helênica até o final

da Antiguidade. Talvez Heracles tenha sido uma figura

histórica, um civilizador que introduziu modos e conceitos

entre os povos que vieram a formar os gregos, ou talvez

tenha sido um guerreiro ou líder militar que realizou proe-

zas que o tornaram lendário. Essa hipótese, porém, se

perde nos séculos, sem poder ser provada.

Heracles havia nascido de uma das muitas aventuras amo-

rosas de Zeus. Sua mãe, Alcmena, rainha de Tebas, era um

mulher de beleza sem igual; e além de bela, Alcmena per-

meava com sua graça todos que dela se aproximavam.

Zeus havia decidido gerar um herói tão forte e virtuoso

como jamais houvera e resolveu que Alcmena seria a mãe

ideal para seu filho. Mas a rainha era esposa virtuosa e

não trairia Anfitrião, seu marido, nem mesmo com Zeus. E

para cumprir seu intento, mais uma vez o deus supremo

lançou mão de um estratagema. Quando o rei estava lon-

ge de casa, travando uma guerra, Zeus se transfigurou em

Anfitrião e, sob essa forma, entrou no seu palácio. Todos

os receberam como o senhor de Tebas e nem mesmo

Alcmena desconfiou. A rainha ficou feliz em receber notí-

H

Page 104: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

cias de que sua campanha tinha sido bem sucedida e parti-

lhou seu leito com o marido, recebendo em si o entusias-

mo da vitória que seu suposto senhor trazia para casa. A

noite de amor durou três dias, pois Zeus havia ordenado a

Hélios, o Sol, que não se erguesse a não ser depois de

transcorrido esse tempo.

Depois de usufruir da união com a mortal, Zeus partiu, e

Anfitrião chegou em seguida. Alcmena surpreendeu-se ao

ver o marido de volta tão rapidamente. E espantou-se

mais ainda quando Anfitrião disse não se lembrar nada

dos carinhos que dedicara à esposa na (longa) noite ante-

rior. O rei, por sua vez, também se alarmou quando soube

que Alcmena já conhecia todos os incidentes da campanha

que acabara de empreender. Desconfiado, Anfitrião foi

consultar Tirésias, o vidente. O velho cego lhe revelou o

estratagema de Zeus. Anfitrião ficou enfurecido. Buscando

vingança, mandou amarrar Alcmena numa estaca em meio

a uma pilha de lenha. No entanto, quando o rei ordenou

que a pira fosse acesa, uma forte chuva desabou, apagan-

do as chamas. Anfitrião entendeu a vontade de Zeus e

desistiu da vingança. Calou e aceitou o filho que o deus

gerara em sua esposa. Tomou-o como seu e o chamou de

Palemon.

Zeus zelava, de fato, para que o filho fosse um prodígio,

um homem perfeito. A seu pedido, Atena o escondeu nu-

ma fenda, na muralha de Tebas, e casualmente convidou

Hera para dar uma caminhada. Sem que Hera desconfias-

se, Atena a levou até onde estava o pequeno Heracles. Ao

ver o bebê abandonado, Hera ficou condoída e, estimula-

Page 105: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

105

da por Atena, ofereceu seu peito, que ainda tinha leite, ao

menino. Heracles sugou com tanta força, que o leite de

Hera jorrou no espaço, criando a Via Láctea. Ao perceber o

estratagema, já era tarde. Heracles havia sido alimentado

com seu leite sagrado e agora ele se tornaria o homem

mais forte do mundo.

Hera, porém, não aceitou a criança. A deusa estava decidi-

da a destruir mais aquele bastardo – além de tudo, ela se

sentia humilhada por sua rival ser uma mortal. Quando

Heracles tinha oito anos, Hera buscou realizar sua vingan-

ça. Ela fez aparecer duas serpentes na cama do menino.

Mas em vez de se tornar vítima, Heracles, revelou seu dom

de herói. Agarrando as serpentes, ele estrangulou as duas.

A tentativa falhou, mas Hera não desistiria da vingança.

Heracles estrangulando as serpentes (gravura florentina, c. 1600)

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Projeto Cultura e Memória

Assistido pelos mais ilustres mestres, o menino teve a

melhor educação que se poderia ter. Lino, filho do deus

Apolo, ensinou a Heracles a arte das letras; Eurito, um

arqueiro tão bom que era considerado filho de Apolo, o

arqueiro divino, ensinou o futuro herói a manejar essa

arma; e com Eumolpo, um músico que rivalizava com o

próprio Orfeu, Heracles aprendeu a tocar cítara e a cantar.

Dizem que Heracles também aprendeu filosofia e astro-

nomia, mas não se sabe quem foram seus professores.

Além disso, era versado na interpretação de augúrios.

Apesar da educação voltada para as artes e literatura,

Heracles se revelou mesmo um guerreiro e um arqueiro

como jamais houvera outro. O próprio rei Anfitrião, seu

pai adotivo, ensinou o enteado a conduzir o carro de guer-

ra.

E foi durante sua educação que a natureza ariana de Hera-

cles aflorou pela primeira vez. Uma vez, Lino zombou dele

por ter escolhido um tratado sobre culinária para estudar.

Enfurecido, o adolescente Heracles arremessou sua lira na

cabeça do mestre. Heracles, porém, não conhecia sua

força, e a violência do golpe acabou matando o tutor. Anfi-

trião puniu seu enteado, mandando-o trabalhar como

pastor, nas montanhas, onde ficou até completar dezoito

anos.

Naquela região, havia um leão atacando as ovelhas e fa-

zendo vítimas até mesmo entre os aldeões. A fera, chama-

da de Citaeron, espalhara pânico e destruição para além

do reino de Anfitrião, até Téspia. Depois de cumprir o cas-

tigo determinado por Anfitrião, Heracles quis acabar com

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

107

a ameaça do leão Citaeron e foi em busca do seu covil. No

caminho, ele se hospedou no palácio do rei Téspio, senhor

do reino da Téspia, onde foi muito bem recebido. Tendo

ouvido falar do prodigioso filho de Zeus, Téspio fizera pla-

nos para Heracles. O rei tinha cinquenta filhas e temendo

que alguma delas se cassasse com alguém sem valor, re-

solveu que cada uma delas teria um filho de Heracles.

Assim, Téspio fez com que Heracles passasse cinquenta

noites em seu palácio, cada uma delas em companhia de

uma das suas filhas. Algumas versões, porém, dizem que

Heracles possuiu as cinquenta filhas de Téspio numa só

noite. Apenas uma delas recusou Heracles e permaneceu

virgem, servindo como sacerdotisa no templo do herói até

a morte. Assim, Heracles gerou cinquenta e um filhos nas

princesas de Téspia. A mais velha delas, Procris, e a mais

nova lhe deram gêmeos. Esses netos de Téspio não morre-

ram. Quando chegou o tempo de sua passagem para o

outro mundo, dormiram um sono profundo, eterno. Seus

corpos não se corromperam e nem foram enterrados.

Depois dessa aventura, Heracles finalmente deixou o palá-

cio de Téspio e foi abater Citaeron, o que não lhe custou

muito trabalho. Seja como for, esse foi seu primeiro feito

heroico.

Ao voltar para o palácio do seu padrasto, Heracles cruzou

com uma embaixada de um reino próximo, Orcomeno. Os

membros da comitiva desdenharam do rapaz e informa-

ram que estavam indo a Tebas, cobrar um tributo devido

por um antigo crime. Seu rei Climeno havia sido morto

numa disputa com os tebanos. Ergino, filho de Climeno,

Page 108: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

vingou a morte do pai sitiando e derrotando Tebas. Então,

exigiu que a cidade pagasse um tributo anual de cem bois

durante trinta anos. Do contrário, Ergino cortaria as ore-

lhas, o nariz e as mãos de todos os tebanos. Heracles es-

tava cheio de si depois de ter matado o leão e de ter sido

celebrado como herói em Téspia e, ao ser informado das

intenções dos orcomenianos, resolveu expressar em nome

de todos os tebanos – inclusive de seu rei, Anfitrião – que

eles não aceitariam imposições. E Heracles fez isso não

com palavras, mas com ação. Ele cortou o nariz, as orelhas

e as mãos de todos os membros da comitiva e os mandou

de volta, como uma mensagem viva do que aconteceria

aos orcomenianos se voltassem a cobrar tributos dos te-

banos.

Ao saber do que aconteceu à sua embaixada, Ergino, rei de

Orcomeno, exigiu que os tebanos lhe entregassem Hera-

cles. O herói, porém, conclamou Tebas a resistir. Ele per-

correu os templos da cidade e recolheu todas as armas,

escudos, armaduras e capacetes que haviam sido oferta-

dos aos deuses como espólio de guerra. Com esse equi-

pamento, armou e treinou os cidadãos de Tebas – e bem a

tempo. Ergino já ordenara que seu exército marchasse

sobre Tebas. Não contava, porém, que enfrentaria um

homem de força sem igual, filho do próprio Zeus. Heracles

e seus homens emboscaram as forças de Ergino num desfi-

ladeiro. Derrotados, os orcomenianos bateram em retira-

da, mas Heracles os perseguiu e matou Ergino à flechadas.

Os tebanos exultaram. Finalmente tinham se livrado do

jugo de Orcomeno. No entanto, a vitória teve seu preço.

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

109

Entre as baixas de Tebas estava o padrasto de Heracles, o

rei Anfitrião.

Depois de bater as forças de Ergino, Heracles entrou em

Tebas como herói. Ele, que havia sido banido como um

criminoso, condenado a viver entre os pastores numa al-

deia distante, retornava agora em triunfo. O novo rei, Cre-

on, lhe deu o título de Protetor da Cidade e a mão da sua

filha mais velha, Megara. Sua lenda começava a ser soli-

damente construída, e Heracles cuidou de acrescentar

mais andares ao seu templo de fama.

O Grande Hércules (Hendrick Goltzius, c. 1595)

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Projeto Cultura e Memória

Depois de gerar filhos em Megara – algumas fontes falam

de dois, outras de oitos –, chamados Alcaides, Heracles se

voltou contra os eubeus, tradicionais inimigos de Tebas.

Como não poderia deixar de ser, o herói os derrotou, mas

horrorizou toda a Grécia com o castigo que impôs a Pira-

ecmus, rei de Eubeia: fez com que dois cavalos o puxas-

sem até desmembrar seu corpo, o qual deixou insepulto às

margens do rio Heracleio.

Os 12 Trabalhos de Heracles

O barbarismo de Heracles chocou não só o mundo civiliza-

do, mas também os deuses – exceto, claro, Ares e seus

pares. A velha raiva de Hera pelo filho bastardo de Zeus se

acendeu de novo. Os excessos de Heracles justificavam

uma intervenção divina, especialmente porque ele era um

herói, um exemplo para todos os gregos. Hera o puniu,

então, com a loucura. Tomado de uma fúria cega, Heracles

viu inimigos em sua própria família e matou seus próprios

filhos, cujos corpos ele queimou numa enorme pira, dei-

xando suas almas para sempre sem lar.

Quando recuperou a razão, Heracles se fechou dentro de

si mesmo. Deprimido, retirou-se para uma câmara escura

e sem janelas, onde permaneceu trancado e sem nenhum

contato com o mundo exterior durante vários dias. Ao sair

do retiro, foi purificado pelo rei Téspio – o rei-sacerdote

em cujas filhas Heracles tinha gerado cinquenta e um fi-

lhos. Depois, Heracles viajou até Delfos, consultar o orácu-

lo de Apolo, buscando saber o que poderia fazer para

compensar a hediondez que havia praticado.

Page 111: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

111

O oráculo de Delfos ficava num promontório, cercado por

bosques sagrados. Depois de sacrificar um bode para Apo-

lo à entrada do templo, Heracles foi recebido pelos sacer-

dotes do deus e fez sua pergunta. Então, foi conduzido até

o interior do templo, onde a pítia aguardava. Um dos sa-

cerdotes sussurrou a pergunta do herói no ouvido da sa-

cerdotisa, e a mulher se preparou para encontrar o deus.

Sentou-se num banco de carvalho entalhado colocado

sobre uma fenda na rocha, por onde vazavam vapores.

Logo, ela entrou em transe. Ergueu-se e começou a dançar

uma coreografia louca, falando, vez por outra, frases sol-

tas que pareciam não fazer sentido. No entanto, os sacer-

dotes prestavam cuidadosa atenção ao que ela dizia. De

repente, a pítia parou e caiu – só não se estatelou no chão

porque um dos sacerdotes a segurou a tempo. O mais

velho dos sacerdotes se certificou de que a sacerdotisa

estava bem e foi até Heracles interpretar a confusa men-

sagem de Apolo.

Em vez de Palemon, o nome que recebera de Anfitrião, a

pítia lhe havia dado um novo nome, Heracles, isto é, “Glo-

ria de Hera”, e o instruía a ir a Tirinto, onde deveria servir

ao rei Euristeu por doze anos, realizando qualquer missão

ou tarefa que ele lhe desse – custasse o que custasse. Em

troca ele se tornaria imortal. Heracles, que já estava abati-

do, ficou ainda mais desanimado. Seu orgulho o impedia

de servir a um homem sabidamente inferior a ele; por

outro lado, Heracles jamais desobedeceria à vontade dos

deuses, expressa pelo oráculo.

Page 112: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

Mas o herói não estava só; tinha a simpatia dos olímpicos

– menos de Hera. Ao partir para sua longa jornada, Hera-

cles recebeu de Apolo um arco e flechas guarnecidas com

penas de águia; de Hermes, uma espada; de Hefesto, um

peitoral dourado; Poseidon lhe deu uma parelha de cava-

lo; Zeus, um escudo que jamais se partiria; e Atena lhe

ofereceu um manto. Além disso, Atena o abençoou com a

promessa do gozo dos prazeres simples, e Hefesto, com a

proteção contra os perigos da guerra. Heracles partiu,

então acompanhado de seu escudeiro, o sobrinho Iolau,

expiar as ofensas que seu orgulho o levaram a cometer

contra o Cosmos – a Ordem Harmoniosa das Coisas2.

Os 12 Trabalhos de Heracles (Pietro da Cortona, meados séc. 17)

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

113

O Leão de Nemeia

Euristeu decidiu que daria dez trabalhos impossíveis de

serem realizados a Heracles. A primeira tarefa que o rei

exigiu de Heracles, mal o herói chegou a Tirinto, foi matar

e esfolar o leão de Nemeia – uma fera enorme, cuja pele

não podia ser violada por nenhuma arma. Sem demora,

Heracles foi para Nemeia, mas tantos haviam sido mortos

pelo leão, que o herói não encontrou ninguém na região.

Também não encontrou rastros da criatura – nem nos

arredores das aldeias, nem nas montanhas. Um dia, depois

de muito procurar, Heracles surpreendeu a fera voltando

ao seu covil. O leão – presas lambuzadas de sangue – an-

dava pesado com a recente vítima que devorara. Heracles

disparou uma saraivada de flechas, mas elas mal roçaram

a pele dura do leão. Desembainhando a espada que Her-

mes lhe dera, Heracles investiu de novo. O herói golpeou o

leão diversas vez. A arma, porém, quebrou, sem ferir a

fera. E num instante Heracles estava atacando novamente,

dessa vez com a clava. A bordoada que Heraces desferiu

na cabeça do leão o atordoou um pouco – o bastante para

que ele entrasse no seu covil. Então, Heracles despiu o

peitoral que recebeu de Hefesto e pôs de lado o escudo

que Zeus lhe dera. Dali em diante, suas armas eleitas seri-

am mesmo o arco e flechas e a clava de madeira de olivei-

ra; sua armadura, ele estava prestes a conquistar.

Fechando uma das entradas da caverna que servia de covil

ao leão, Heracles entrou de mãos nuas para buscar a fera.

Sabia que a única forma de vencer era estrangulando o

animal. E assim fez. Durante a luta, o leão arrancou um

Page 114: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

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dos dedos de Heracles, mas o herói apertou ainda mais as

mãos, até que finalmente estrangulou o oponente. Vitori-

oso, Heracles levou a carcaça a Tirinto e a depositou aos

pés do rei. Euristeu ficou apavorado. Jamais esperava que

Heracles voltasse vivo e, temendo pela sua segurança e de

sua capital, proibiu-o de entrar em Micenas novamente.

Dali por diante, ele deveria exibir os frutos dos seus traba-

lhos do lado de fora das muralhas da cidade.

A Hidra de Lerna

O segundo trabalho que Euristeu confiou a Heracles foi

destruir a Hidra de Lerna, um monstro gerado por Tífon –

o arqui-inimigo dos deuses – e Equidna – uma criatura

meio mulher e meio serpente. Quando a hidra nasceu,

Hera decidiu usá-la na sua vingança contra Heracles, e a

criou.

Heracles mal descansou da sua primeira missão e já partia

para Lerna, uma fértil região no litoral, bem perto da cida-

de de Argos. Há anos, a hidra aterrorizava Lerna. O covil da

besta – um estranho ser com enorme corpo de cachorro

dotado de centenas de cabeças de serpentes venenosas,

sendo que uma delas era imortal – ficava numa árvore na

nascente do rio Amimone. De lá, a fera assombrava o e-

norme manguezal de Lerna – o túmulo de muitos viajantes

desavisados. O veneno destilado pelas milhares de presas

tinha tal potência que até mesmo o hálito da hidra era

fatal. Heracles só venceria com a ajuda dos deuses. E ele a

tinha.

Page 115: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

115

Atena – a gentil senhora das vitórias – esperava Heracles

em Lerna, pronta para dirigir suas ações. Quando o herói

chegou em seu carro de guerra, conduzido pelo sobrinho

Iolau, a deusa lhe mostrou onde era o covil da hidra. Ela

também instruiu Heracles sobre a melhor forma de com-

bater o monstro. Seguindo o conselho de Atena, Heracles

atacou a criatura com uma saraivada de setas incandes-

centes. A hidra saiu da sua cova sob a árvore – as cabeças

de cobra cuspindo peçonha, matando todas as coisas vivas

que ainda restavam a seu redor. Heracles prendeu a respi-

ração e atacou a aberração com sua clava – em vão. Para

cada cabeça que o herói esmagava, duas ou três outras

surgiam no lugar, vomitando ainda mais pestilência.

Para piorar ainda mais as coisa, Hera fez um gigantesco

caranguejo sair do mangue em auxílio à hidra. A criatura

agarrou os pés de Heracles com suas pinças, tentando

desequilibrá-lo. Heracles esmagou a carapaça do caran-

guejo com sua clava, mas não conseguiria vencer a hidra

sem ajuda. Gritando por Iolau, Heracles prendeu a respira-

ção de novo e voltou a atacar o monstro, esperando que o

sobrinho viesse em seu socorro. Ioulau ateou fogo a um

bosque adjacente e, munido de tochas, entrou no comba-

te. Enquanto Heracles esmagava as cabeças com a clava,

Ioulau cauterizava o ferimento com a tocha. Assim, sem o

sangue para nutri-las, as cabeças pararam de se reprodu-

zir. Heracles e seu escudeiro foram abrindo caminho na-

quela selva ululante de cabeças de serpentes, até que

finalmente restou apenas uma – a imortal, parte da qual

era de ouro. Acossada, a hidra se tornou ainda mais feroz,

Page 116: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

lançando veneno e sibilando. Heracles decepou a última

cabeça e a enterrou, ainda cuspindo peçonha, debaixo de

uma grande pedra. Depois, abriu a carcaça do monstro e

mergulhou a ponta de suas flechas na sua bile. A partir de

então, um mínimo arranhão das suas já letais setas seria

mortal.

Mais uma vez, Hera lamentou a vitória do seu desafeto.

Em homenagem ao caranguejo esmagado por Heracles,

ela colocou sua imagem nas estrelas, como a constelação

de Câncer. Hera também advertiu Euristeu para não con-

tar aquele trabalho como completado, pois Iolau tinha

ajudado Heracles.

Herácles contemplativo depois de abater a hidra (Ludovico Caracci, fin. séc. 18)

Page 117: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Sindicato dos Padeiros de São Paulo

117

A Corça de Cirineu

Euristeu ordenou, então, que Heracles lhe trouxesse viva a

maravilhosa corça do Monte Cirineu. Era um animal raro:

veloz como o pensamento, seus cascos eram de bronze e

seus chifres, de ouro. No entanto, quem capturasse a cor-

ça estaria cometendo um sacrilégio, pois o animal era con-

sagrado à Ártemis. Certa vez, quando a deusa caçadora

ainda era criança, ela viu cinco corças pastando próximo a

um regato. O sol dardejava em seus cascos de bronze, e a

luz refletida pelo ouro dos chifres cegava quem tentasse

distinguir as criaturas por trás daquele brilho. Desejando-

as, Ártemis perseguiu as corças e as capturou com as pró-

prias mãos – todas menos uma, a qual Hera havia feito a

corça fugir para o Monte Cirineu, planejando usá-la em

seu plano contra Heracles.

Como temesse ferir a corsa, o herói perseguiu sua presa

pacientemente durante um ano. Com Heracles em seu

encalço, o animal fugiu para o norte longínquo, para a

terra dos hiperbóreos – os quais muitos acreditam ser os

celtas. Sem descanso, a corça continuou a fuga, voltando

para a Grécia. Ao chegar às margens do rio Ládon, na Ar-

cádia, o animal estava exausto. Heracles teria, agora al-

guma chance de capturar a veloz corsa. Enquanto o animal

corria, Heracles trespassou suas pernas dianteiras com

uma flecha. A corça não foi ferida, pois Heracles fez a seta

passar entre os ossos e os tendões, sem derramar sequer

uma gota de sangue. O herói colocou a corça sobre os

ombros e partiu para Tirinto, mas Ártemis surgiu em seu

encalço. Estava irada por ele ter capturado um animal

Page 118: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

consagrado a ela. Heracles a apaziguou, dizendo que ele

não tivera escolha e que a culpa era de Euristeu. Ártemis,

inspirada por Atena, acabou deixando que o herói levasse

a corça para Tirinto e cumprisse mais um desafio.

O Javali de Erimanto

Nas encostas cobertas por florestas do Monte Erimanto

havia um javali que espalhava a ruína entre os pastores. A

brutalidade da besta parecia ser uma punição divina, al-

gum capricho de Ares, senhor dos javalis3. E foi no terceiro

ano da servidão de Heracles que Euristeu resolveu ordenar

que o herói capturasse o javali de Erimanto e o trouxesse

vivo a Micenas.

No caminho para Erimanto, Heracles passou pela Élida,

assombrada pelo bandido Sauro. O “Lagarto” emboscava

os viajantes nas estradas, os roubava e assassinava. Hera-

cles aproveitou sua passagem por aquela terra para livrá-la

de Sauro – a quem liquidou facilmente. Em seguida, hos-

pedou-se na casa do centauro Folo, seu velho amigo.

Os centauros – seres monstruosos e brutais, metade ho-

mem e metade cavalo – viviam nas montanhas e se ali-

mentavam de carne crua. Essas criaturas haviam sido ge-

radas pela lubricidade de Ixion. Esse rei mortal, depois de

ter assassinado brutalmente a esposa, se arrependeu e foi

perdoado por Zeus. Mas ao ser recebido no Olimpo, Ixion,

bêbado, tentou violentar Hera. Zeus fez uma nuvem as-

sumir a forma da deusa, e foi essa nuvem que Ixion possu-

iu, nela gerando os centauros.

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

119

Folo, porém, não era descendente de Ixion, mas de Sileno

– o filho do deus dos pastores Pã – e de uma ninfa5. Ele

recebeu Heracles na sua casa e o serviu com hospitalida-

de: para o herói carne assada; para ele, crua. Folo descul-

pou-se, porém, por não servir vinho. Ele explicou que só

havia uma jarra, mas não poderia abri-la porque era co-

munal – um presente de Dionísio para todos os centauros.

Heracles insistiu, dizendo para Folo não temer. No entan-

to, quando o anfitrião abriu a jarra e serviu seu conteúdo,

os centauros farejaram o aroma do forte vinho e, enraive-

cidos, armaram-se e correram até a casa de Folo. Enquan-

to Folo se escondia assustado, Heracles recebeu os cen-

tauros à flechadas. O herói os teria derrotado imediata-

mente, mas Néfele, a Nuvem, intercedeu em favor de seus

netos e fez cair uma pesada chuva, prejudicando a ponta-

ria de Heracles. Os centauros fugiram, com Heracles em

seu encalço, e se refugiaram no palácio de Quíron, seu rei.

Quíron, o mais sábio de todos os centauros, um imortal,

filho de Crono, que havia ensinado diversas artes a deuses

e heróis, era velho amigo de Heracles. Mas Heracles esta-

va cego de fúria e perseguiu os centauros até a casa de

Quíron. Uma das suas flechas – envenenada com a bílis da

hidra de Lerna – trespassou o braço do centauro Elato, e

cravou no joelho de Quíron. Como Quíron era imortal, o

veneno da hidra não o matou. Sua imortalidade não impe-

diu, porém, que ele padecesse de dores lancinantes. Quí-

ron, que tinha ensinado a medicina ao próprio Asclépio – o

deus dessa arte –, não podia nem se curar, nem morrer.

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(Depois, quando Zeus perdoou Prometeu por ter roubado

o fogo do céu e o entregado aos homens, Quíron aceitou

substituir Prometeu no Hades. Assim ele se livrou das do-

res terríveis o ferimento de Heracles lhe causara)

Apesar de Folo não ter participado da luta, ele se sentiu

culpado por ter oferecido o vinho comunal dos centauros

a Heracles, começando, assim, a disputa. Consternado,

Folo cuidou de enterrar seus congêneres. Mas ao retirar

uma flecha envenenada do corpo de um deles, Folo deixou

acidentalmente a flecha cair, trespassando seu pé. Conta-

minado com o poderoso veneno, o centauro morreu em

seguida. Heracles, que já havia partido em busca do javali

de Erimanto, retornou para se encarregar do funeral do

amigo, realizando uma cerimônia magnífica em sua home-

nagem.

Capturar o javali vivo foi uma tarefa difícil – mesmo para

Heracles. O herói desentocou o animal assustando-o com

berros. Em seguida, Heracles o perseguiu, levando a fera

Monte Erimanto acima, até uma funda ravina, cheia de

neve. Com as patas afundadas na neve, o javali ficou im-

pedido de correr. Heracles aproveitou o momento e pulou

sobre o dorso do animal, agarrando-o e o imobilizando

com correntes. Depois, colocou-o sobre os ombros e o

levou de volta a Micenas.

Ao chegar na cidade, Heracles ouviu falar da expedição

dos Argonautas, que partiam, liderados pelo herói Jasão,

em busca do Velo de Ouro. Heracles foi tomado pelo im-

pulso de se juntar a eles e sem esperar por outras ordens

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

121

de Euristeu – o qual havia covardemente se escondido

com medo do herói –, deixou o javali na entrada do mer-

cado4 e seguiu com os Argonautas em busca de aventura.

A Estrebaria de Áugias

O quinto trabalho que Euristeu deu a Heracles foi limpar a

estrebaria do rei Áugias em apenas um dia. Áugias, rei de

Élis, no Peloponeso, filho de Hélios, o Sol, era o homem

que possuía o maior rebanho da terra. Por decreto divino,

seus animais não ficavam doentes nunca, além de serem

extremamente férteis. Há anos sua estrebaria não era

limpa, e, embora os animais fossem imunes às doenças

produzidas pela sujeira, o esterco acumulado veio a espa-

lhar uma pestilência fatal através de todo o Peloponeso.

Euristeu divertia-se antecipando a humilhação de Hera-

cles: o filho de Zeus teria de encher cestos mais cestos de

estrume e carregá-los nos ombros. Heracles se comprome-

teu com Euristeu a realizar a missão em apenas um dia,

mas, ao chegar a Élis, pediu a Áugias a décima parte do

seu rebanho como pagamento pelo trabalho. A reação de

Áugia foi incredulidade. O rei não acreditava que Heracles

fosse capaz de remover a sujeira de seus rebanhos, mes-

mo que levasse a vida inteira se dedicando à tarefa. Por

isso, Áugias concordou com o preço pedido por Heracles.

Mandou que seu filho mais velho, Fileu, servisse de teste-

munha do trato. Fileu pediu que Heracles jurasse que

cumpriria a missão no prazo estabelecido. O herói jurou –

a primeira e única vez em sua vida que Heracles se subme-

teu a um juramento.

Page 122: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

Ajudado pelo sobrinho Iolau, Heracles lançou mãos à obra.

Primeiro eles abriram duas frestas nos muros da gigantes-

ca estrebaria e em seguida desviaram os rios Alfeu e Pe-

neu de maneira que suas águas corressem através da es-

trebaria, arrastando toda a imundície acumulada. Dessa

forma, Heracles cumpriu a tarefa em um dia e, além de

tudo, sem sequer sujar as mãos.

Entrementes, Áugias soube que Euristeu havia ordenado a

Heracles que ele realizasse aquele trabalho. Quando o

herói apareceu para reclamar seu pagamento, o rei, sen-

tindo-se ludibriado, se recusou a pagá-lo e até negou que

tivesse feito um trato com ele. Heracles não se deu por

vencido e exigiu que o caso fosse julgado por um tribunal.

No entanto, quando Fileu testemunhou em favor de Hera-

cles, seu pai se ergueu enfurecido do trono e, dizendo que

o trabalho tinha, na verdade, sido feito pelos deuses-rios

Alfeu e Peneu e não por Heracles, baniu o filho e o herói

de Élis. Euristeu, por sua vez, afirmou que Heracles estive-

ra a serviço de Áugias e fôra ajudado por Iolau e não con-

tou aquela tarefa entre as dez que exigiria de Heracles.

Os Pássaros de Estinfalo

Junto ao Pântano de Estinfalo havia um bando de aves

monstruosas consagradas a Ares que se alimentavam de

carne humana. Seus bicos, garras e asas eram de bronze;

suas penas, setas mortais que disparavam contra homens

e animais, vitimando-os. O excremento das aves era i-

gualmente mortal, destruindo as plantações e poluindo

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

123

rios e fontes. Euristeu desejou que Heracles livrasse a re-

gião do Pântano de Estinfalo daquela ameaça.

Ao chegar ao seu destino, Heracles se viu impedido de

cumprir a missão: os pássaros eram muito numerosos para

serem abatidos à flechadas. O herói quedou-se pensativo

na extremidade do pântano, sem saber ao certo o que

fazer. E, mais uma vez, os deuses intercederam por ele.

Atena apareceu a Heracles e lhe entregou um par de cím-

balos de bronze feitos por Hefesto. Heracles soou os cím-

balos, os quais produziram um som tão alto que os pássa-

ros assassinos se ergueram tontos de pavor numa revoada

infernal. Heracles aproveitou para abater um grande nú-

mero deles à flechadas. O restante fugiu para Ilha de Ares,

no Mar Negro, onde os Argonautas os encontraram, tem-

pos depois.

Hércules abatendo os pásaros de Estinfalo (Albrecht Dürer)

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O Touro de Creta

Para provar a seus irmãos seu direito ao trono, Minos, o

rei de Creta (e criador da pederastia), disse que era capaz

de fazer aparecer do mar o touro mais majestoso que ja-

mais surgira. Orando a Poseidon, Minos prometeu ao deus

sacrificar o magnífico touro, tão logo ele surgisse. Posei-

don fez o que Minos lhe pedira, mas o rei, ao ver criatura

tão majestosa, resolveu se apossar do touro e sacrificou

um animal inferior ao deus. A ganância de Minos o impe-

diu de ver Poseidon não se deixaria enganar facilmente.

Enfurecido, o deus do mar lançou um maldição sobre Mi-

nos. Primeiro, Poseidon fez a esposa de Minos, a rainha

Pasifae, se apaixonar perdidamente pelo touro surgido do

mar. A pobre mulher pediu a Dédalo, o inventor de Minos,

que a ajudasse a consumar sua paixão. Dédalo construiu

uma vaca, dentro da qual Pasifae entrou para ser coberta

pelo touro de Poseidon, gerando assim uma criatura hedi-

onda – um homem com cabeça de touro, o Minotauro. Em

seguida, para completar sua vingança contra Minos, Po-

seidon transformou o belo touro branco que fizera sair do

mar numa criatura ensandecida. O animal se tornou uma

ameaça a Creta. Soltando fogo pelas ventas, passou a des-

truir pomares, plantações, animais e pessoas. O sétimo

trabalho de Heracles era destruir o Touro de Creta.

Ao chegar à ilha, Minos ofereceu toda ajuda possível a

Heracles, mas ele escolheu agarrar o touro à unha – o que

conseguiu depois de uma batalha titânica. Como fez com a

corça de Cerineu e o javali de Erimanto, Heracles levou o

touro de Creta vivo para Micenas e o entregou ao rei. Eu-

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

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risteu, então, dedicou o animal à deusa Hera e soltou o

magnífico touro branco. Mas Hera odiou a homenagem.

Não poderia se comprazer numa oferenda vinda a ela a-

través de um feito glorioso de Heracles, o odiado bastardo

de Zeus. Marcando a terra com sua fúria, ela fez o touro

correr por toda a Grécia, espalhando terror e destruição

por onde passava, até que o herói Teseu o capturou e o

levou a Atenas, onde ofereceu o touro em sacrifício à deu-

sa Atena.

As Éguas de Diomedes

Podargo, Lâmpon, Xanto e Deino eram animais demonía-

cos. Éguas carnívoras, com afiados cascos de bronze e

presas de leão. Seu dono, Diomedes, filho de Ares e rei da

Trácia, tinha o odioso costume de alimentar suas éguas

com a carne dos estrangeiros que se atreviam a entrar no

país.

No oitavo ano a serviço de Euristeu, Heracles foi incumbi-

do de roubar esses animais de Diomedes e levá-los vivos

para Micenas. Heracles zarpou para a Trácia com um

grande número de voluntários, visitando no caminho seu

velho amigo Admeto, rei de Feres, na Tessália, e compa-

nheiro de Heracles na expedição dos Argonautas. Quando

chegou, o herói encontrou a cidade de luto – as lamenta-

ções das carpideiras ecoando por toda a parte. Soube,

então que a rainha, Alceste, havia morrido. Encontrando

Admeto sufocado de dor pela perda da esposa, Heracles

se comoveu e resolveu descer aos infernos em busca de

Page 126: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

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Alceste, de onde a trouxe de volta, mais bela e mais jovem

do que nunca.

Finalmente, Heracles chegou à Trácia e imediatamente

roubou as éguas de Diomedes. Enquanto ele as levava

para seu navio, para embarcá-las a Micenas, os súditos de

Diomedes o atacaram. Heracles deixou os animais aos

cuidados de Abdero, um dos filhos do deus Hermes, e se

preparou para combater os habitantes do país. Ele contava

com poucos homens e teria de usar astúcia em lugar de

força. Rapidamente, Heracles mandou cavar um canal,

fazendo com que o mar invadisse a planície por onde os

homens de Diomedes avançavam, alagando-a. Fugindo das

águas, os inimigos se puseram em retirada, e Heracles e

seus homens aproveitaram para persegui-los. O próprio

Heracles se encarregou de Diomedes. Derrubando-o com

um golpe de clava, Heracles o arrastou até seu navio e o

deu como repasto às suas próprias éguas. Euristeu teve

seu desejo realizado, mas a um preço alto: a morte do

filho de Hermes. Enquanto Heracles lutava contra Diome-

des, Abdero havia sido morto e devorado pelas éguas.

O Cinturão de Hipólita

Admetes, filha de Euristeu e sacerdotisa de Hera, desejou

um prêmio raro e especial, o cinturão de Hipólita, rainha

das amazonas, dado a ela pelo próprio Ares. Euristeu en-

carregou, então, Heracles de trazê-lo à filha. O herói partiu

acompanhado de uns poucos voluntários, entre eles seu

sobrinho Iolau e Teseu, o grande herói ateniense que ha-

via matado o minotauro.

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As amazonas eram um povo guerreiro, descendente de

Ares, composto exclusivamente de mulheres. Em sua capi-

tal, Temiscira, às margens do rio Termódon, na Capadócia,

os homens eram impedidos de entrar, a não ser uma vez

por ano, quando as amazonas se uniam aos gargarenos,

seus vizinhos. Das crianças que nasciam desse encontro,

elas mantinham as meninas; os meninos, elas os matavam

ou os entregavam aos pais. Dizia-se que essas filhas de

Ares, costumavam suprimir o seio direito para melhor

poder manejar o arco. Por isso eram chamadas de amazo-

nas, isto é, “mulheres sem um seio”. Poderosas, as ama-

zonas haviam fundado várias cidades e chegaram a invadir

a Ática para vingar a morte de Antíope, irmã da sua rainha,

Hipólita, assassinada por Teseu. Conta-se que todos os

anos, os atenienses ofereciam sacrifícios aos manes, ou

espíritos, das inimigas tombadas nesse combate.

Quando Heracles chegou a Temiscira, Hipólita o recebeu

pacificamente. Ela foi visitá-lo em seu navio, ancorado no

rio Termódon, buscando descobrir o que Heracles viera

fazer em seu reino. O herói não ocultou nada. Enquanto

ele explicava sua missão, Hipolita o observava e ficou en-

cantada pelo corpo forte de Heracles. Ela lhe disse que

daria o cinturão de Ares a ele, como prova de amor.

Mas as coisas não seriam assim tão fáceis para Heracles.

Hera havia se transfigurado em uma amazona e, enquanto

Heracles e Hipólita se amavam, ela espalhou o boato entre

as mulheres guerreiras de que o herói viera raptar sua

rainha. Enfurecidas, as amazonas se armaram, montaram

seus cavalos e atacaram o barco de Heracles. Achando que

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Hipólita tinha armado tudo para atacá-lo de surpresa, He-

racles a matou imediatamente e arrancou seu cinturão.

Em seguida, armou-se com o machado de guerra de Hipó-

lita e saiu para combater as amazonas. Apesar de as guer-

reiras serem em grande número, Heracles e seus homens

as massacraram e puseram as sobreviventes em fuga. As-

sim, o herói pôde levar o prêmio de Admetes de volta a

Micenas.

Heracles e Hipólita (Luca Penni, 1ª metade séc. 16)

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O Gado de Gerião

Gerião era o ser mais forte de todo o mundo. Era um gi-

gante de três cabeças, seis braços e três torsos unidos na

cintura. Gerião vivia numa ilha longínqua na Espanha, Erí-

cia, e possuía enorme rebanho de gado vermelho, tão belo

quanto raro. Essa imensa riqueza era guardada por um dos

filhos de Ares, Eurícion, e pelo cachorro de duas cabeças

Ortro, irmão de Cérbero, o cão de guarda do inferno.

Euristeu cobiçava o gado de Gerião e, convencido de que

Heracles poderia satisfazer também esse seu desejo, man-

dou que o herói o roubasse. Heracles partiu, então, à Es-

panha, enfrentando e destruindo diversos monstros por

onde passou. Ao chegar a Tartesso, Heracles separou a

África da Europa, cavando um profundo canal, e erigiu

duas gigantescas colunas, uma em cada continente – as

Colunas de Heracles. Mas o calor escaldante o perturbou.

Irritado, o filho de Zeus armou seu arco com uma flecha

envenenada e disparou contra Hélios, o Sol. Irado com a

insolência, Hélios ordenou que Heracles se acalmasse, o

que o herói fez prontamente, desculpando-se pelo mau

humor. Hélios não quis ser menos cortês do que Heracles

e abrandou a intensidade dos seus raios. Ainda por cima,

emprestou a Heracles a taça de ouro em forma de lírio

que, quando Hélios desce do céu, o conduz por baixo da

terra até o ponto onde ele deve subir novamente. Foi na-

vegando nessa taça que Heracles chegou a Erícia.

Em busca do gado de Gerião, Heracles subiu num promon-

tório. Ortro, porém, farejou o herói e o atacou, apenas

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para ter suas duas cabeças esmagadas pela clava de Hera-

cles. Alertado pelos latidos de Ortro, Eurícion correu em

seu socorro, mas seu destino foi o mesmo que o do cão.

Heracles reuniu o gado vermelho e estava começando a

embarcá-lo na taça de Hélios quando Gerião, avisado por

outros pastores, surgiu e o desafiou para uma luta até a

morte. Heracles armou seu arco e, posicionando-se de

frente para o flanco do gigante, disparou uma única flecha

que varou os três corpos de Gerião. Então, Hera se mani-

festou, buscando ajudar Gerião. Heracles, porém, não se

deixou intimidar pela figura divina. Ele a flechou no seio

direito, ferindo-a e a fazendo fugir.

Parte do caminho, Heracles venceu usando a taça de Hé-

lios, a qual devolveu na primeira oportunidade. Pelo traje-

to da Espanha à Grécia, Heracles fundou diversas colônias,

entre elas as cidades de Pompeia e Herculano, na Itália.

Quando cruzou os Pirineus, Heracles cortejou a princesa

Pirene, que empresta seu nome às montanhas. Suas faça-

nhas entre s gauleses foram eternizadas nas canções dos

seus melhores bardos, e o herói passou a ser cultuado

também entre aquele povo.

Heracles precisou igualmente enfrentar, ao longo do ca-

minho, inimigos que desejavam o raro gado de Gerião.

Numa das batalhas, ele se viu sem flechas e desarmado.

Ajoelhando-se em desespero – lágrimas correndo pelo

rosto –, ele pediu socorro ao seu pai. Zeus o ajudou pron-

tamente, fazendo cair uma chuva de pedras.

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

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Continuando a tanger o gado até a Grécia, sempre se en-

volvendo com os habitantes das regiões por onde passava,

Heracles finalmente se aproximou da Grécia. Mas Hera fez

valer sua vingança, mandando um gigantesco moscardo

que enlouqueceu o gado, dispersando-o por todo o país.

Depois de muito esforço, Heracles conseguiu reunir a mai-

or parte do rebanho e o levou até Micenas.

Os Pomos de Ouro

Heracles havia realizado suas dez missões em oito anos e

um dia, mas Euristeu não considerou o segundo e o quinto

trabalhos – a derrota da hidra de Lerna e a limpeza dos

currais de Áugias –, pois Heracles havia recebido ajuda.

Por isso, ele estabeleceu mais duas tarefas para Heracles

realizar antes de liberá-lo de seus serviços. Euristeu temia

Heracles. Sabia que o humilhava e não se sentia seguro

com relação à atitude do herói depois que sua expiação

terminasse. Pensou, então, em dois trabalhos impossíveis

de se realizar. O primeiro era uma clara provocação à He-

ra, cujo ódio a Heracles o colocara naquela situação. O

filho mortal de Zeus teria de roubar uma das maçãs de

ouro que cresciam no Jardim das Hespérides. A árvore

havia sido o presente de casamento que Gaia, a Mãe Ter-

ra, dera a Hera. Ela gostou tanto do presente que o plan-

tou no seu jardim divino, guardado pelas filhas da Noite,

as ninfas Hespérides. As maçãs de ouro também eram

vigiadas por um filho de Tífon: o dragão de cem cabeças

Ládon.

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Projeto Cultura e Memória

Heracles confrontando um dragão (Antonio Tempesta, c. 1608)

No entanto, ninguém sabia onde era o Jardim das Hespé-

rides. Heracles foi buscar conselho com as ninfas do deus-

rio Erídano, que também não sabiam dizer, mas lembra-

ram ao herói que Nereu, o velho do mar, conhecia todos

os segredos do céu, da terra e das águas. Nereu, filho de

Ponto, o Mar, e de Gaia, já era ancião quando Poseidon

começou a governar os mares. Heracles decidiu capturar o

velho para obrigá-lo a dizer onde ficava o misterioso jar-

dim. Ele esperou Nereu dormir, agarrou-o e o amarrou,

dizendo que só o soltaria quando ele revelasse o caminho

para as maçãs de ouro. Como outras divindades marinhas,

o velho do mar podia se transmutar numa série de criatu-

ras – e foi o que fez, tentando escapar. Ele se transformou

num leão, mas as correntes que Heracles havia usado para

prendê-lo estavam apertadas demais; então, Nereu assu-

miu a forma de uma enorme serpente – igualmente sem

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

133

resultado–; finalmente o velho virou uma labareda. Hera-

cles, porém, não se deixou intimidar, e Nereu foi obrigado

a revelar o segredo.

Heracles viajou até os confins do Ocidente, até encontrar

os portões de ouro do jardim. Ao seu lado, Atlas, o titã,

sustentava a abóbada celeste. O dragão Ládon guardava a

entrada do jardim, e Heracles perguntou a Atlas qual era a

maneira pela qual ele conseguiria roubar as maçãs. Para

sua surpresa, Atlas se ofereceu para ir buscá-las, desde

que Heracles ficasse no seu lugar, sustentando o firma-

mento. O herói concordou e assumiu o lugar do titã. Atlas

voltou pouco depois, com as maçãs, mas tinha gostado da

sua liberdade e, tentando estendê-la ao máximo, disse que

queria ir ele mesmo entregá-las a Euristeu. Heracles esta-

va numa situação delicada: não podia simplesmente largar

o céu... Pediu apenas que Atlas sustentasse um pouco o

firmamento, enquanto ele conseguia um apoio para não

machucar a cabeça. Atlas voltou a segurar o fardo, mas

Heracles se apossou das maçãs e, com um irônico adeus

ao titã, partiu para entregá-las a Euristeu. O rei, temendo

a ira de Hera, tratou de consagrar os frutos a Atena, a

qual, agindo de acordo com sua dignidade emblemática,

as devolveu às hespérides.

A Captura de Cérbero

Decidido a se livrar de Heracles, Euristeu lhe deu a última

e mais difícil tarefa: capturar Cérbero, o cão de três cabe-

ças que guarda a entrada do inferno. Antes de partir, o

filho de Zeus buscou purificação e viajou a Eleusis, onde

Page 134: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

pediu para ser iniciado nos Mistérios. Depois de ter sido

purificado pelo sangue que derramara ao longo de suas

aventuras, Heracles pôde finalmente descer ao reino de

Hades. Hermes, o guia das almas, e Atena o acompanha-

ram na jornada. Intimidado pela presença de Heracles,

Caronte atravessou-o em seu barco através do rio de fogo

e lava, o Estige.

Heracles capturando Cérbero (gravura renascentista)

Ao entrar no Tártaro, Heracles foi direto ao palácio de

Hades, o senhor dos mortos, e lhe disse o que queria. Ha-

des, admirando a bravura daquele mortal, concordou,

desde que Heracles capturasse Cérbero de mãos limpas.

Isso não foi difícil. Heracles agarrou o monstruoso cão e o

sacudiu com tanta violência, que Cérbero passou a segui-

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

135

lo como se fosse seu novo dono. E foi assim que Heracles

apareceu no palácio de Euristeu, com Cérbero a segui-lo.

No entanto, ao ver o cão de três cabeças de Hades, Euris-

teu ficou tão aterrorizado que ordenou que Heracles o

devolvesse ao seu legitimo dono6. Heracles havia final-

mente cumprido sua penitência. Tinha conquistado a i-

mortalidade e estava livre agora para voltar a Micenas. Os

trabalhos a Euristeu haviam terminado, mas ainda teria

muitas aventuras para viver.

Page 136: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

Os Argonautas

izem que o poder é um dos maiores inimigos do ho-

mem sábio, pois depois de conquistado ele se volta

contra seu detentor, enchendo-o de cobiça, deixando-

o ainda mais sedento de poder, impedindo-o de distinguir

o certo e o errado. O rei Pelias, embora filho de um imor-

tal, não foi exceção.

O rei Pelias, filho de Poseidon, era um homem poderoso,

mas cobiçava ainda mais poder. Mesmo velho, ainda ten-

cionava estender seu domínio sobre toda a Tessália. E

pensando que o fim justifica os meios, usurpou o trono da

próspera cidade de Iolco, governado pelo seu meio irmão

Aeson, a quem manteve prisioneiro. Depois, Pelias assas-

sinou tantos aliados de Aeson quanto conseguiu deitar

mão. Alcimede, esposa de Aeson, tinha um filho, Jasão,

legítimo herdeiro do trono de Iolco. Ostentando luto e

dor, ela fingiu que a criança tinha morrido e, em segredo,

a entregou a Quíron, o sábio rei dos centauros, para que

ele a criasse. Alcimede temia que Pelias matasse o menino

se soubesse de sua existência. Mas Pelias, desconfiou e

consultou um oráculo que o avisou para ter cuidado com o

homem que surgisse vestindo apenas um pé de sandália.

Quíron iniciou Jasão em todas as artes civilizadas, e quan-

do seu mestre disse que já não havia mais nada a lhe ensi-

nar, ele partiu de volta a Iolco, reclamar o que era seu por

D

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

137

direito. Jasão chegou às margens do Anauro e estava pres-

tes a entrar na cidade, mas ao ver uma pobre velha que

implorava aos passantes para ajudá-la a atravessar o rio,

Jasão ofereceu para carregá-la à outra margem, sem saber

que a velha era a deusa Hera. Ao sair do rio, Jasão havia

perdido um pé do seu par de sandálias. A deusa agradeceu

a ajuda e o abençoou, sabendo o que esperava pelo jo-

vem.

Na cidade, Jasão, acompanhando um grupo de príncipes

aliados, juntou-se a Pelias num sacrifício a Poseidon. Mas

quando o rei viu aquele jovem com um só pé de sandália,

temeu. Perguntou, então, a Jasão o que ele faria se fosse

confrontado com o homem que traria a sua queda. Sem

perceber a intenção de Pelias, Jasão respondeu que o

mandaria em busca do Velo de Ouro. O tosão de lã de um

carneiro de ouro alado sacrificado a Zeus – um emblema

de sabedoria e iluminação que conferia poder e prosperi-

dade – era consagrado num templo florestal de Zeus, na

longínqua Cólquida. Havia tantos perigos no caminho que

buscar o velo era uma missão quase impossível de ser

cumprida.

Pelias quis, então, saber quem era aquele rapaz e o que

fazia em seu reino. Jasão revelou ser o filho do rei Aeson e

que viera reivindicar o trono que era seu por direito. Peli-

as, conhecendo a ilegitimidade de sua própria posição,

consentiu, mas colocou uma condição para abdicar em

favor do príncipe: Jasão deveria lhe trazer o Velo de Ouro.

Ele achava que dessa forma poderia se livrar do sobrinho.

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Projeto Cultura e Memória

Jasão, porém, tratou de garantir o seu sucesso. Em vez de

partir sozinho, convidou os maiores heróis da Grécia anti-

ga para acompanhá-lo na aventura. Ao todo, cinquenta

deles, entre os quais Heracles, os gêmeos Castor e Poli-

deuces – filhos de Zeus e de Leda –, Atalanta – a caçadora

virgem – e o próprio Orfeu atenderam ao chamado de

Jasão. A pedido do jovem, Argos, o armador, construiu

uma nau de cinquenta remos, o Argo. A própria Atena, a

patrona das artes e ofícios, dirigiu a construção do navio.

Dizem que foi a deusa que forneceu a peça da proa da

embarcação, um tronco de carvalho sagrado do templo de

Zeus em Dodona, o qual conferiu à embarcação o dom da

palavra e da profecia. Hera também abençoou a expedi-

ção. A deusa tinha uma cisma com Pelias, pois ele não a

honrara, negligenciando os sacrifícios a ela.

E assim, os tripulantes do Argo, agora chamados de argo-

nautas, partiram numa manhã de outono, rumo à ilha de

Lemnos7, sua primeira parada. Quando chegaram, foram

recebido com uma oferenda de alimentos e vinho, enviada

pela rainha Hipsipile. Os argonautas souberam, então que

a ilha era habitada exclusivamente por mulheres. As lem-

nianas haviam faltado com seus sacrifícios a Afrodite, e a

deusa as castigou, fazendo com que cheirassem tão mal

que seus maridos passaram a recusá-las. Um ano antes da

chegada dos argonautas, eles abandonaram as esposas e

foram viver com concubinas que sequestraram na Trácia.

Iradas, as mulheres de Lemnos se rebelaram e mataram

todos os homens da cidade. Agora, com a chegada dos

argonautas, Hipsipile achou que seria uma boa oportuni-

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

139

dade de repovoar a população masculina e ofereceu seu

trono e sua cama a Jasão, o líder da expedição. Embora

Jasão não tenha aceitado a coroa, compartilhou de bom

grado o leito de Hipsipile. Assim fizeram também os outros

argonautas com o restante das mulheres de Lemnos. Ao

que parece, o cheiro das lemnianas não era assim tão

mau. Após duas semanas na ilha, os argonautas finalmen-

te partiram, deixando em Lemnos uma geração de futuros

heróis.

Depois de alguns dias no mar, Jasão aportou o Argo na ilha

de Misia e mandou alguns homens à terra, para se reabas-

tecerem de água e alimentos. Entre eles estavam Heracles

e seu servo Hilas. O jovem se afastou do grupo, indo a um

regato ali perto buscar água. As ninfas do riacho se encan-

taram com Hilas, e o puxaram para o fundo de suas águas.

Enquanto isso, os homens que haviam desembarcado já

estavam a bordo do Argos novamente, e Hilas tardava.

Heracles decidiu ir a sua procura e, se embrenhando na

mata, também ele demorava a voltar. Jasão foi obrigado a

ordenar a partida, deixando Heracles e Hilas para trás8.

Sem encontrar seu servo, Heracles voltou a Micenas, para

terminar de cumprir seu termo servindo o rei Euristeu.

Em busca do caminho para Cólquida, onde deveriam en-

contrar o Velo de Ouro, os argonautas pararam em Salmi-

desso, onde foram recebidos pelo rei-profeta Fineu. O

próprio Apolo, o deus da profecia, havia concedido esse

dom ao rei. Mas Fineu começou a revelar as deliberações

dos deuses aos homens, o que irritou profundamente os

imortais. Além de cegá-lo, Zeus infestou suas terras com

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Projeto Cultura e Memória

criaturas imundas, enormes aves com cabeça de mulheres,

as harpias. Todas as noites, quando Fineu se sentava para

jantar, as criaturas tomavam o céu, invadiam o palácio,

roubavam a comida e cobriam a mesa do rei com excre-

mentos. Impedido de comer, Fineu definhava cada vez

mais.

Jasão resgatando Fineu (Bernard Picart, 1731)

O rei propôs revelar o caminho a Cólquida se os argonau-

tas o livrassem das harpias. Dois tripulantes do Argo, Calais

e Zetes, os filhos alados de Boreas, o Vento do Norte, se

lançaram ao ar, assumindo a missão. Os irmãos persegui-

ram as harpias e mataram muitas delas à flechadas. As que

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

141

sobreviveram, fugiram para tão longo que nunca mais

voltaram a incomodar Fineu. Agradecido, o rei revelou,

então, o caminho a Cólquida e como cruzar as Simplega-

des, as ilhas que se entrechocam.

O Argos passando pela Simpleglades (B. Picardt, 1731)

A única forma de chegar a Cólquida era passando através

das Simplegades – dois enormes rochedos que batiam um

no outro sempre que uma embarcação tentava navegar

entre eles. Fineu disse a Jasão que se ele fizesse com que

um pássaro voasse entre as rochas, precipitando-as,

quando elas começassem a se afastar novamente, eles

poderiam remar a toda velocidade e passar antes que as

Page 142: Mitos, Deuses e Heróis Gregos

Projeto Cultura e Memória

ilhas se entrechocassem pela segunda vez. Foi o que os

argonautas fizeram. O Argo passou quase intacto, tendo

apenas um pequeno pedaço da popa atingido, quando as

pedras voltaram a se chocar.

Cólquida

Cólquida era um reino bárbaro, localizado nos confins do

mundo civilizado. O rei Eteu e seus súditos não toleravam

estrangeiros e os sacrificavam aos deuses os poucos ousa-

dos (ou desavisados) aventureiros que entravam no país.

O único estrangeiro a ser poupado por Eteu foi Frixo, e

mesmo assim, em condições especiais. Frixo chegou ao

país montado num carneiro alado de lã dourada. Frixo

fugia de sua madrasta que o perseguia e como encontrara

refugio em Cólquida, sacrificou o carneiro em agradeci-

mento a Zeus. Depois, Frixo pendurou a lã de ouro no alto

de uma árvore, numa floresta sagrada, e encarregou Eteu

de guardá-la.

Jasão foi recebido com reservas por Eteu; mas o rei não

ousou fazer nada contra os argonautas – os maiores heróis

de toda a Grécia. Ao ouvir do capitão do Argo o motivo

que trazia os arganautas ao seu reino, Eteu concordou em

ceder a eles o Velo de Ouro. Ele temia a tripulação do Ar-

go, mas não queria, também, que aquele objeto sagrado

saísse dos bosques das suas terras. Por isso ele concederia

o tosão em troca de alguns favores, que eram, na verdade,

praticamente impossíveis de se realizar. Jasão se sentiu

desencorajado ante a dificuldade das tarefas. Ele não sabi-

a, porém, que Atena e Hera, suas benfeitoras, tramavam

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

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em seu favor. As duas deusas pediram que Eros, o deus

Amor, cravasse uma das suas flechas de amor na princesa

Medeia, filha de Eteu, iniciada nas ciências ocultas por sua

tia Circe, a feiticeira. Cega de paixão por Jasão, Medeia

propôs ajudá-lo a realizar as tarefas impossíveis ordenadas

pelo pai, se ele se cassasse com ela. Jasão aceitou.

Primeiro, o líder dos argonautas teria de arar um campo

com touros que soltavam fogo pelas ventas. Medeia deu a

ele um unguento que o protegeria das chamas. Assim,

Jasão pôde prender a parelha de bois no arado e arar o

campo. Em seguida, Jasão semeou as sementes de dragão

que Eteu lhe dera. O que o herói não sabia é que cada

semente germinava num guerreiro armado quase que

instantaneamente. Quando deu por si, Jasão estava cerca-

do por todo um exército inimigo. Mais uma vez, foi Me-

deia quem o salvou. Dessa vez, a princesa não usou mági-

ca, mas a inteligência. Seguindo sua sugestão, Jasão atirou

uma pedra no meio do exército. O guerreiro atingido pen-

sou que tinha sido atacado por seu vizinho e revidou, es-

palhando uma briga entre as fileiras. No final, os guerrei-

ros deram cabo uns dos outros sem que Jasão precisasse

fazer qualquer outra coisa.

Embora Jasão tivesse cumprido as missões que Eteu havia

lhe dado, o rei não quis entregar o Velo de Ouro e plane-

jou um meio de liquidar os argonautas. Mais uma vez, foi

Medeia quem livrou os heróis do perigo. À noite, ela levou

Jasão até a árvore de onde pendia a lã dourada. Um dra-

gão de fogo guardava o local, mas Medeia o fez dormir

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com sua magia. E naquela mesma madrugada, ela fugiu

com os argonautas, levando consigo o Velo de Ouro9.

Jasão encontra o Velo de Ouro (B. Picart, 1731)

Percebendo a fuga, Eteu lançou sua frota em perseguição

do Argo. Na escaramuça, Atalanta foi gravemente ferida.

Os homens de Eteu ganhavam vantagem. Medeia, então,

matou seu próprio irmão, Apsirto, esquartejou o cadáver e

começou a arremessar pedaços do corpo no mar. Para não

deixar seu filho insepulto – e, consequentemente, seu

manes sem um lar – Eteu ordenou que os barcos abando-

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nassem a perseguição e recuperassem as partes de seu

filho. Em seguida, Medeia curou Atalanta.

Medeia esquartejando Apsirto (René Boyvin e Leonard Thiry, 1563)

Mas a viagem de retorno não foi fácil. Zeus, em punição

pelo crime de Medeia, rasgou o céu e o mar com tempes-

tades. A nau perdeu o rumo. Foi Argo, que tinha o dom da

fala e da profecia, que avisou sua tripulação que eles de-

veriam buscar purificação pelo assassinato de Apsirto com

Circe, a feiticeira, tia de Medeia.

Depois de passarem algum tempo em Ea, a ilha onde vivia

Circe, executando rituais de expiação, os argonautas parti-

ram novamente.

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Projeto Cultura e Memória

O Argo passou pelo pequeno arquipélago de Sireno – um

lugar fantasmagórico, pontuado com as carcaças de navios

naufragados. Os heróis navegavam atentos às traiçoeira

rochas. De repente, uma música doce e hipnotizante co-

meçou a encher o ar. Eram as sereias que viviam naquelas

ilhas; seu canto tirava os marinheiros de si e os fazia mer-

gulhar no mar, onde as águas os tragavam. Ao ouvir a es-

tranha música, Orfeu, patrono de todos os músicos e poe-

tas, começou a tocar sua lira e o fez tão maravilhosamente

que as sereias se calaram para ouvir aquele som celestial.

O Argo pôde, então, passar através do arquipélago.

Ao se aproximarem de Creta, os argonautas foram ataca-

dos por Talo, um gingante de bronze. Talo era o último

representante da raça de bronze, antecessora dos homens

atuais, e servia a Minos, o rei de Creta, vigiando a cidade.

Talo tinha uma única veia que ia do pescoço ao tornozelo,

protegida por uma cavilha. Quando Talo avistou o Argo

surgindo no horizonte, começou a arremessar pedras e-

normes contra a embarcação. De novo, Medeia se inter-

pôs; com sua mágica ela fez com que a veia de Talo se

rompesse, e o gigante sangrou até morrer.

Finalmente, o Argo retornou a Iolco. Os argonautas cobri-

am a Tessália de glória com seus feitos. O povo os saudava

nas ruas, e os rapsodos já começavam a dar forma épica às

suas aventuras, narrando suas histórias em versos nas

praças dos mercados de toda a Grécia. Todos se rejubila-

vam, exceto Pelias. Apesar de Jasão ter voltado com o Velo

de Ouro, o rei relutava em abdicar o trono de Iolco. Foi

Medeia quem resolveu a questão, livrando-se de Pelias.

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Sindicato dos Padeiros de São Paulo

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Ela disse às filhas do rei que poderiam tornar seu pai jo-

vem de novo, se elas cortassem o seu corpo e o fervessem

num caldeirão com ervas mágicas. Para provar que isso

era possível, ela desmembrou um carneiro, que cozinhou

numa poção. Depois de um tempo, o animal pulou para

fora do caldeirão. Não era mais um carneiro, de fato, e sim

um cordeiro de poucos dias. As filhas de Pelias fizeram o

mesmo com o pai. Médeia, porém, não adicionou as ervas

mágicas, e Pélias encontrou, dessa forma, seu fim.

Jasão não pôde, entretanto, assumir o trono. Acasto, filho

de Pélias, acusou-o e a Medeia de assassinarem o rei. Os

dois foram condenados ao exílio e se estabeleceram em

Corinto, onde receberam asilo do rei Creonte. Ali, Jasão

buscou fortalecer seus laços com o rei. O rumo dos acon-

tecimentos havia mudado, e Jasão, esquecendo que fora

graças a Medeia que ele conquistara o Velo de Ouro, ago-

ra via na companheira a fonte de seus problemas. Ele não

hesitou, então, em se casar com Gláucia, filha de Creonte

e princesa de Corinto. Mas Medeia não aceitou calada a

traição de Jasão. Fingindo concordância, ela deu a Gláucia

um vestido de casamento. Quando a infeliz mulher vestiu

o presente, o vestido se agarrou à sua pele e ardeu em

chamas. Creonte correu para ajudar a filha e morreu ele

também consumido pelo fogo. Cega de raiva, Medeia ain-

da matou os filhos que tivera com Jasão e fugiu para Ate-

nas.

A traição de Jasão havia lhe trazido a ruína. Ajudado por

Peleu, pai de Aquiles, o herói da Guerra de Tróia, ele re-

conquistou o trono de Iolco, mas havia perdido o favor de

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Hera por ter quebrado sua promessa a Medeia. Jasão ter-

minou seus dias infeliz, sem amigos e amaldiçoado pelos

deuses. Certa noite, quando dormia saudoso sob a popa

do Argo, a madeira apodrecida cedeu e caiu sobre ele,

matando-o instantaneamente. Quanto a Medeia, dizem

que ela nunca morreu. Tornou-se uma imortal e reina nos

Campos Elíseos, onde se casou com o herói Aquiles10.

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Notas do Capítulo

1 – O Herói de Mil Faces – Joseph Campbell, Cul-

trix/Pensamento, São Paulo, 1997, p. 36

2 – Todos os Nomes da Deusa – J. Campbell, Editora Rosa

dos Tempos, Rio de Janeiro, 1997, p. 92

3 – The Hutchinson Dictionary of Symbols – Jack Tresidder,

Helicon, Oxford, 1997, p. 28

4 – Argonautica – Apollonius Rhodius, Online Medieval

and Classical Library Release #27b, 2006, versos 122 - 132

– In http://omacl.org/Argonautica/

5 – Dicionário de Mitologia Grega – Ruth Guimarães, Cul-

trix, São Paulo, 1993, p. 155

6 – Greek Myths – Robert Graves, Penguin Books, London,

1984, pp. 142 - 172

7 - Argonautica – Apollonius Rhodius, versos 592 – 608

8 – Argonauts – Wikipedia, 2006, in

http://en.wikipedia.org/wiki/Argonauts

9 – The myth of Jason, the Argonauts and the Golden

Fleece – Myth Web, 2006, in

http://www.mythweb.com/heroes/jason/

10 – Greek Myths – Robert Graves, p. 215

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Sobre o Autor

Claudio Blanc é escritor e tradutor, autor de cerca de 600

artigos sobre História, Ciência, Literatura e Filosofia, publi-

cados em revistas como Discovery Magazine, Filosofia

Ciência & Vida, Revista do Explorador e Grandes Líderes

da História. É autor de Uma Breve História do Sexo, O Lado

Negro da CIA e de O Homem de Darwin. Entre seus livros

infanto-juvenis estão Histórias Sopradas no Tempo e De

lenda em Lenda se Cruza Fronteiras, indicado como Alta-

mente Recomendável pela Fundação Nacional do

Livro Infanto-Juvenil. Claudio Blanc também assina a

tradução de 35 obras nos mesmos campos de conhe-

cimento sobre os quais escreve, entre elas os best-

sellers Fumaça e Espelhos, de Neil Gaiman, e O Rela-

tório da Cia – como será o mundo em 2020?

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de São Paulo

Direito reservados: Sindicato dos Padeiros de São Paulo, 2013 Este artigo pode ser reproduzido para fins educativos;

a fonte deve ser citada