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Sydnei Ulisses de Melo Junior MITO E RELIGIÃO NO PENSAMENTO POLÍTICO DE JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI CAMPINAS 2015 i

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Sydnei Ulisses de Melo Junior

MITO E RELIGIÃO NO PENSAMENTO POLÍTICO DEJOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINASINSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA

Sydnei Ulisses de Melo Junior

MITO E RELIGIÃO NO PENSAMENTO POLÍTICO DEJOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI

Orientação: Prof. Dr. Alvaro Gabriel Bianchi Mendez

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, para obtenção do título de Mestre em Ciência Política.

Este exemplar corresponde à versão final da dissertação, defendida e aprovada em 29 de janeiro de 2015.

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RESUMO

Esta dissertação é dedicada ao estudo dos trabalhos do marxista peruano José Carlos

Mariátegui (1894-1930) e, especialmente, à análise da importância política assumida pelos

conceitos de mito e religião no conjunto de sua obra. Os capítulos referem-se a três etapas

da vida do autor – a juventude (1914-1919), o exílio (1919-1923) e o regresso e posterior

militância socialista no Peru (1923-1930) – e por meio da exposição de sua formação

intelectual e política procuramos compreender as preocupações do Amauta com os

conceitos acima mencionados. A pesquisa mostra que, contrastado a outros autores

clássicos do marxismo, Mariátegui assume um olhar mais sensível ao papel histórico e

social cumprido por diferentes manifestações religiosas – contribuindo para isto a

referência a sua formação pessoal e familiar, marcada por mística e religiosidade. Em seu

desenvolvimento como socialista, o Amauta incorpora ao seu discurso termos como mito,

fé e religiosidade, que passam a constituir o horizonte de sua reflexão revolucionária. Por

outro lado, ao demonstrar uma preocupação criteriosa com a análise das manifestações

políticas e históricas de atores e instituições religiosas – tanto na Itália, quanto no Peru e no

continente latino-americano – Mariátegui não deixa, porém, de distanciar-se de críticas

racionalistas e anticlericais, afirmando uma “nova concepção” de religião, mais ampla e

profunda, que se descola de adjetivações obscurantistas.

Palavras-chave: Mariátegui, José Carlos, 1894-1930; Marxismo; Socialismo - América

Latina; Mito - aspectos políticos; Religião e política.

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ABSTRACT

This dissertation is dedicated to the study of Peruvian Marxist José Carlos

Mariátegui (1894-1930) works and especially to the analysis of the political relevance of

concepts such as myth and religion in his work. The chapters refer to the three phases of

Mariátegui's life – his youth (1914-1919); exile (1919-1923); return and posterior socialist

activism in Peru (1923-1930) – we aim at a better understanding of Amauta’s concerns

regarding the aforementioned concepts by evaluating his intellectual and political

formation. The research shows that, in contrast with others classical Marxist authors,

Mariátegui assumes a more sensitive vision of the social and historical roles performed by

different religious expressions – for which his personal and family education, marked by

religiosity and mystique, are a great contribution. In his socialist development, Amauta

incorporates to his speech expressions such as myth, faith and religiosity, which constitute

the horizon of his revolutionary thought. On the other hand, by demonstrating a careful

concern in his analysis about political and historical manifestations of religious actors and

institutions – in Italy as well as in Peru and Latin America – Mariátegui distances himself

from rationalists and anticlerical critics, affirming a “new conception” of religion, wider

and deeper, and detached of obscurantist adjectives.

Keywords: Mariátegui, José Carlos, 1894-1930; Marxism; Socialism - Latin America;

Myth - political aspects; Religion and politics.

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SumárioIntrodução..............................................................................................................................1

Cap. 1 – O jovem Mariátegui – 1914 - 1919......................................................................13

Saúde débil, curiosidade voraz.................................................................................17

Antecedentes das ideias políticas e da religião no Peru e na América Latina......20

Independências e reações eclesiásticas..............................................................20

A fé do povo latino-americano...........................................................................24

A relação Igreja-Estado no Peru........................................................................27

O Peru durante a “República Aristocrática”..........................................................30

Primeiros passos de Juan Croniqueur.....................................................................34

Mariátegui e González Prada............................................................................34

A experiência de La Prensa e a fome literária de Mariátegui............................37

A experiência colonidista ..................................................................................39

O misticismo e a emoção religiosa em Juan Croniqueur ......................................42

Escândalo e desilusão........................................................................................47

Para além de Juan Croniqueur................................................................................48

Primeiras divagações socialistas.......................................................................48

La Razón e as lutas populares............................................................................51

Cap. 2 – Mariátegui na Itália – 1919 - 1923......................................................................59

Mariátegui e a política italiana.................................................................................62

Contexto histórico e político..............................................................................62

Os católicos na política italiana........................................................................66

O envolvimento de Mariátegui com a política local..........................................68

Influências intelectuais.......................................................................................73

Mariátegui, política e catolicismo na Itália.............................................................91

Cap. 3 – Mariátegui, militante socialista – 1923 - 1930.................................................107

Os primeiros anos do oncenio de Augusto Leguía (1919-1930)...........................108

Economia e política..........................................................................................108

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As Universidades Populares.............................................................................112

Os protestos de 23 de maio de 1923.................................................................114

As conferências sobre a “história da crise mundial” e a repressão governamental 117

Mito, fé e revolução..................................................................................................122

Homens pré-bélicos e pós-bélicos....................................................................124

O homem e o mito.............................................................................................127

Pessimismo da realidade e otimismo do ideal.................................................132

Crítica da laicidade..........................................................................................134

O marxismo como agonia........................................................................................135

De Amauta aos 7 ensayos.........................................................................................139

Amauta e os homens novos do Peru.................................................................139

Haya, a APRA e os comunistas........................................................................141

A repressão governamental em 1927 ..............................................................143

A publicação dos 7 ensayos..............................................................................148

O fator religioso........................................................................................................152

Para além do obscurantismo............................................................................152

A religiosidade indígena nos Andes.................................................................154

Conquista e evangelização...............................................................................156

A independência peruana e a Igreja.................................................................160

Conclusão...........................................................................................................................169

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS............................................................................177

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En mi camino, he encontrado una fe. He ahí todo. Pero le he encontrado porque mi alma había partido desde muy temprano en busca de Dios. Soy una alma agónica, como diría Unamuno. (Agonia, como Unamuno, con tanta razón lo remarca, no es muerte sino lucha. Agoniza el que combate) (MARIÁTEGUI, 1987a, p. 154)

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Introdução

Esta dissertação é fruto de pesquisa desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-

graduação em Ciência Política do IFCH/UNICAMP, nível de Mestrado, sob orientação do

Prof. Alvaro Gabriel Bianchi Mendez (DCP/IFCH/UNICAMP). O trabalho em questão

integra um conjunto de pesquisas situadas no interior do Grupo de Pesquisa Marxismo e

Pensamento Político (GPMPP), vinculado ao Centro de Estudos Marxistas

(CEMARX/IFCH/UNICAMP), e contou com financiamento da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). A pesquisa se dedicou ao estudo

da obra do marxista peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930) e, mais precisamente, à

importância política dos conceitos de mito e religião no conjunto de sua obra.

O caráter inovador dos estudos de José Carlos Mariátegui é comumente atestado por

seus comentadores. José Aricó faz notar que o desenvolvimento da formação marxista do

Amauta não se produz dentro dos limites do movimento comunista no âmbito da Terceira

Internacional; além disso, o movimento socialista peruano teria se estruturado no quadro de

um amplo movimento intelectual e político, não submetido ao cerceamento de um partido

comunista e nem à herança de um partido socialista que fixasse no movimento social a forte

marca positivista que, por muitos anos, influenciou diversos marxistas (ARICÓ, 1987, p.

450). Exilado nos anos de 1919-1923, vivendo grande parte deste período na Itália,

Mariátegui tomaria contato com diversas experiências políticas envolvendo os

trabalhadores daquele país, as lutas sociais, a crise do Estado liberal italiano e o ascenso do

fascismo. Em solo italiano é que se daria, fundamentalmente, o aprofundamento dos

estudos e das convicções socialistas aos quais Mariátegui dedicaria os anos restantes de sua

vida (cf. SYLVERS, 1981; BEIGEL, 2005; PERICÁS, 2010).

Após seu retorno ao Peru, Mariátegui proporia uma análise marxista da realidade

latino-americana – e, mais especificamente, da realidade peruana – que se distanciava

consideravelmente da rigidez pela qual os comunistas sob a tutela da Terceira Internacional

se guiavam. A esperança revolucionária para os chamados “países coloniais” ou

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“atrasados”, no escopo do Comintern, se baseava na necessidade de uma “via chinesa”, de

uma revolução democrático-burguesa de libertação nacional (RICUPERO, 2000, p. 81).

Mariátegui afirmava defender, por sua vez, nada menos do que o próprio aspecto dialético

do pensamento marxista e seu apoio integral na realidade dos fatos, entendendo que a

operação e a ação do marxismo devia se dar em consonância com a especificidade de cada

país (MARIÁTEGUI, 1988a, p. 112). Através desta perspectiva, o Amauta traria para o

âmbito do pensamento marxista temas pouco usuais e normalmente ignorados pelos

círculos socialistas da época – em especial, o problema indígena – que dariam importantes

colorações à iniciativa do autor de pensar a construção de um socialismo propriamente

latino-americano.

O caráter inventivo e, poderíamos também dizer, herético do marxismo de José

Carlos Mariátegui não apenas diz respeito a uma tentativa de apropriação “nacional” das

ideias de Marx, mas também se referencia no diálogo que o socialista peruano promove

com uma diversidade espantosa de fontes e ideias. O contexto do pensamento político no

Peru do início do século XX, não obstante a presença do liberalismo e do positivismo entre

diversos grupos intelectuais e dirigentes, também abarcava perspectivas tais quais o

irracionalismo, o anarquismo e, em certa medida, o socialismo – os rumores e temores das

elites e dos governantes do país se faziam aumentar em vista das notícias da Revolução

Russa, de 1917, que aos poucos alcançavam o país andino. Mariátegui, antes de atingir os

25 anos, já possuía um produção jornalística formidável, além de ser um ávido leitor de

jornais e revistas nacionais e estrangeiras e também de diversos nomes da literatura

universal. Com sua viagem para a Europa, o ânimo intelectual do jovem Amauta só fez se

expandir, permitindo-se diálogos bastante frutíferos com nomes como Henri Barbusse,

Benedetto Croce e Piero Gobetti, além de testemunhar episódios importantes da política

italiana e europeia, tal como o Congresso do Partito Socialista Italiano (Livorno, 1921), de

onde dissidiriam aqueles que, sob a liderança de Antonio Gramsci, fundariam o Partito

Comunista d'Italia. Com tamanha abertura e disposição de conhecimento, a assimilação do

marxismo se deu simultaneamente à incorporação de elementos e ideias vinculados ao

pensamento de outros intelectuais como Friedrich Nietzsche, Henri Bergson, Miguel de

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Unamuno, Georges Sorel, os surrealistas, entre outros (LÖWY, 2005, p. 10).

A originalidade do trabalho de Mariátegui recai, portanto, sobre diversos aspectos e

temas, e para compreender tais especificidades é necessário recorrer não apenas ao

entendimento daquilo que o autor afirmava e apresentava em seus escritos, mas também à

compreensão do contexto histórico vivido pelo personagem que estudamos e às fontes

intelectuais e ideológicas que ajudaram a forjar o conjunto de ideias defendidas pelo

Amauta.

***

A religião é o “ópio do povo”, nos afirma Karl Marx em sua Crítica da Filosofia do

Direito de Hegel. Esta é uma expressão clássica1, tida usualmente como a quintessência da

análise marxista do fenômeno religioso – tanto pelos adeptos do marxismo, quanto por seus

adversários (LÖWY, 1998, p. 157). De fato, Marx, Engels e outros autores que reivindicam,

em suas análises e estudos, os fundamentos do pensamento marxista, se apoiam na célebre

assertiva para tecerem suas considerações sobre a religião, pontuando seu caráter opiáceo,

obscurantista, contraditório, alienante da realidade da natureza e da humanidade. É também

significativamente presente na proposta teórica vislumbrada pelo marxismo de vários

autores o declínio da religião em benefício de uma cultura materialista, de um novo modo

de enxergar o mundo que não mais atravessa o campo das manifestações religiosas.

Podemos reconhecer que as questões levantadas pelas análises marxistas não

beiram, obrigatoriamente, o simplismo da condenação do fenômeno religioso como um

aspecto deplorável e que deva ser eliminado. A religião pode não ser um dos grandes temas

abordados pelo pensamento marxista, mas grande parte daqueles que dedicaram-se a esta

tarefa o fizeram com honestidade, critério, e preocupações legítimas2. Tommaso La Rocca

1 “Entretanto”, no diz Löwy, “esta fórmula nada tem, em especial, de marxista. Com desprezíveis gradações, podemos encontrá-la, antes de Marx, em Kant, Herder, Feuerbach, Bruno Bauer e muitos outros” (1998, p. 157).

2 Cabe a observação, porém, de que o olhar sobre a qualidade da argumentação marxista acerca do tema é controverso. Jean-Pierre Cot (1984, p. 11-12), por exemplo, nos diz que a tradição marxista é curiosamente incompleta diante do fenômeno religioso, hesitando entre a especulação filosófica e o

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nos recorda que, após Marx e Engels, diversos autores de relevância no campo marxista

dedicaram análises ao tema religioso – como Karl Kautsky, Rosa Luxemburgo, V. I. Lenin,

Antonio Labriola, Antonio Gramsci, Karl Korsch, György Lukács, Ernst Bloch, além de um

numeroso grupo de pensadores marxistas do segundo pós-guerra (LA ROCCA, 1998, p.

521).

No caso de José Carlos Mariátegui o olhar sobre as diferentes manifestações

religiosas assume outros contornos, não simplesmente de modo crítico, mas também

sensível ao papel cumprido pela fé no conjunto de uma sociedade profundamente desigual

como aquela na qual o Amauta vivia no Peru. Ainda antes de se assumir como socialista,

Mariátegui redigia muitos textos atravessados por aspectos místico e religiosos, em grande

parte fruto de sua própria formação familiar, já que sua mãe era fervorosamente católica.

Tinha grande apreço pelas festas populares, como a da celebração do Senhor dos Milagres,

que lhe rendeu um premiado artigo publicado em 1917. Ao viajar à Europa, Mariátegui

também não deixou de notar a importância histórica e política cumprida pelos católicos,

especialmente na Itália recém-unificada. Mariátegui não apenas aprofundou sua perspectiva

antipositivista e antidogmática acerca do socialismo marxista, como também começou a

enxergar a importância de figuras como a do mito para a construção de um ímpeto de luta

que fosse capaz de romper com os lastros imobilistas e conservadores da racionalidade

burguesa. Conceitos como mito, fé e religiosidade passam a constituir o horizonte da

reflexão revolucionária de Mariátegui, forjando uma “dimensão religiosa” da empreitada

socialista.

Contrastado a outros autores marxistas, Mariátegui também defenderá um olhar

sobre a religião que vá além de sua identificação com o “obscurantismo”. Afirmando a

amplitude do conceito de religião, Mariátegui se oporá às críticas racionalistas e

anticlericais, cuja origem identificava no liberalismo burguês. E enquanto se valia do mito,

da fé e da religiosidade para alimentar seu propósito revolucionário, também era cuidadoso

combate político, o que consequentemente impediu o marxismo de dotar-se de uma sociologia da religião: “Os autores marxistas raramente se interrogaram sobre as condições de formação e de distribuição das opiniões religiosas. Na falta desta reflexão, sua análise das funções da religião e de suas relações com a estrutura econômica só podia levar a conclusões simplistas”.

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para promover tanto análises quanto críticas das manifestações históricas e políticas dos

atores e instituições religiosas. “O fator religioso”, capítulo publicado em 7 ensayos de

interpretación de la realidad peruana, é um excelente exemplo de tentativa de explicação

da intervenção da concepções religiosas e do papel cumprido pela religião na vida social e

no desenvolvimento da história do Peru (RIVERA, 1985, p. 37).

A presente pesquisa se norteou pelos seguintes pontos:

I. Identificar os fatores que conduzem Mariátegui à análise da religião: o que

lhe permite se interessar pelo fenômeno religioso, e o modo como o observa;

II. Salientar os diferentes momentos do desenvolvimento das reflexões de José

Carlos Mariátegui, em consonância com as diferentes situações históricas e

nacionais vividas pelo autor, destacando a presença e a importância que

temas como mito e religião assumem em seus escritos;

III. Esclarecer as relações estabelecidas entre suas análises sobre os temas

citados acima e as propostas políticas que defende ao longo de sua obra.

Com este estudo procuramos trazer novos elementos para o desenvolvimento de

uma reflexão sobre o tema da religião no âmbito do pensamento político marxista. O

esforço aqui pretendido é o de apresentar a importância deste assunto nos escritos de José

Carlos Mariátegui, notoriamente nas relações estabelecidas com a constituição de seu

discurso revolucionário, e na análise histórica e concreta das instituições religiosas e dos

fenômenos sociais e políticos que envolviam, com significativa importância, a presença de

aspectos místicos e religiosos.

Realizamos este exercício através de uma tentativa de resgate aprofundado de seus

trabalhos (cartas, periódicos, artigos e ensaios publicados), situando-os em uma perspectiva

de análise da história do pensamento político. Era fundamental que a pesquisa apresentasse

qualitativamente a importância das fontes históricas e teóricas das quais Mariátegui se

alimentava intelectualmente; e a compreensão do contexto histórico que Mariátegui vivia, a

dinâmica política e das lutas sociais em que o Amauta estava envolvido. Também

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dedicamos importância à melhor compreensão da atuação política das instituições

religiosas, e do elemento religioso como constitutivo tanto da formação da personalidade e

das ideias de José Carlos Mariátegui, como da cultura e da sociedade peruana em que o

socialista se inseria. Para tanto, além dos trabalhos de Mariátegui, também recorremos aos

textos de autores que influenciaram teoricamente o Amauta, bem como os analistas que se

debruçaram sobre a vida e obra do autor peruano e sobre a história do pensamento no Peru

e, em certa medida, na Europa (especialmente na Itália)3. Os recursos desta pesquisa foram

consultados especialmente nos acervos da Biblioteca Octávio Ianni (IFCH/UNICAMP), do

Arquivo Edgard Leuenroth (AEL/IFCH/UNICAMP), da Biblioteca Central Cesar Lattes

(BCCL/UNICAMP), da Biblioteca Florestan Fernandes (FFLCH/USP), da Biblioteca

Central Luis Jaime Cisneros e da Biblioteca de Ciencias Sociales Alberto Flores Galindo

(ambas da Pontificia Universidad Católica del Perú).

Optamos por organizar a pequisa em capítulos dedicados a cada etapa do

desenvolvimento dos trabalhos e ideias de Mariátegui, cronologicamente, tais como:

juventude (a chamada “edad de piedra”4, 1914-1919), quando Mariátegui inicia sua

atividade periodística, passando por diferentes órgãos de comunicação da imprensa de

Lima, dando no final deste período seus primeiros passos rumo a tendências socialistas; o

exílio na Itália (1919-1923), quando Mariátegui, através do contato com diversos

intelectuais e com o ambiente político local, amadurece o seu contato com o marxismo e as 3 Estas observações metodológicas buscam se conectar a um exercício coletivo direcionado ao

desenvolvimento de novos métodos de estudo da história do pensamento político, exercício este que se realiza atualmente no interior do GPMPP. Uma das expectativas que norteiam os debates internos do grupo é a consideração da unidade entre filosofia, história e política no estudo do pensamento político, permitindo aos pesquisadores esclarecer um processo de criação das ideias políticas que pode ser marcado por conflitos políticos e intelectuais em relação aos quais o autor estudado toma parte. Assume importância a compreensão, no interior da obra, das fontes, dos interlocutores, dos adversários e dos colaboradores da mesma, os quais – embora existindo fora da obra do autor – adquirem uma importância particular para a história do pensamento político em seu interior (cf. BIANCHI, 2014).

4 O termo é atribuído a Mariátegui, que assim teria classificado seus trabalhos escritos antes do exílio em 1919. Tal expressão é recorrentemente usada por vários comentadores, sem no entanto haver um registro da expressão na obra do Amauta. Apesar desta falta, a informação de que Mariátegui se valia da classificação “edad de piedra” foi corroborada por seu filho, o intelectual peruano Javier Mariátegui, sendo consagrada entre os mariateguistas com a publicação do primeiro tomo do trabalho biográfico de Guillermo Rouillón, La creación heroica de José Carlos Mariátegui: La edad de piedra.Agradecemos ao professor Ricardo Portocarrero Grados, cujos esclarecimentos sobre o assunto colaboraram para esta nota.

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ideias socialistas; e finalmente a “edad revolucionaria”5 (1923-1930), em que o Amauta se

dedica à tarefa de construção da luta socialista no Peru por vias como a imprensa e a

organização sindical e partidária. Deste modo, esperamos situar mais precisamente a

discussão feita por Mariátegui sobre os temas desta pesquisa (mito e religião) no interior de

um trajeto histórico com aspectos particulares, associando a forma como o Amauta os

aborda ao amadurecimento de suas ideias.

***

No primeiro capítulo deste trabalho nos dedicamos à compreensão das atividades de

Mariátegui nos anos de juventude: sua infância; aspectos de seu contexto familiar; sua

voracidade intelectual; a passagem pelos jornais La Prensa e El Tiempo; o crescimento do

reconhecimento público de Mariátegui; seus primeiros contatos com o anarquismo e as

reivindicações dos trabalhadores (por influência de González Prada); sua participação no

grupo Colónida; a fundação dos periódicos Nuestra Época e La Razón, seus primeiros

contatos com as ideias socialistas e o papel cumprido por Mariátegui nas revoltas sociais

eclodidas especialmente no ano de 1919 (quando Augusto Leguía, através de um golpe,

assume o poder e inicia sua ditadura – o oncenio). Neste ínterim, procuramos apresentar

também como as questões místicas e religiosas se entrelaçavam com sua realidade, seja no

ambiente familiar, nas leituras que fazia, e na sua observação da realidade social e cultural

peruana, que procuramos compreender a partir das leituras de seus artigos, publicados

posteriormente sob a alcunha de Escritos Juveniles (cf. MARIÁTEGUI, 1994).

Entendemos ser inviável a compreensão das questões e reflexões propostas por Mariátegui,

já após 1923, sem entender que papel cumpre estes aspectos do passado do Amauta em suas

próprias ideias – concordando com a hipótese levantada por Aníbal Quijano (2007, p.

XXXIV-XXV) a respeito da permanência destas preocupações emocionais, metafísicas, que

atravessam sua concepção voluntarista da ação política e que implicam particularidades em 5 O termo “edad revolucionaria” foi cunhado por Guillermo Rouillón no segundo volume de seu trabalho

biográfico sobre José Carlos Mariátegui: La creación heroica de José Carlos Mariátegui: la edad revolucionaria.

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sua adesão ao marxismo. Também procuramos trazer um panorama histórico sobre a

relação entre religião (especialmente o catolicismo) e política no Peru e na América Latina,

e também acerca da força da religiosidade popular e do papel do catolicismo na

organização da sociedade peruana, para melhor compreensão do contexto a que nos

referimos.

No segundo capítulo é brevemente observado o contexto da política italiana que

precede a chegada de Mariátegui à Itália: o Risorgimento, a ascensão dos socialistas e dos

nacionalistas, o papel cumprido politicamente pelos católicos naquele país. A continuidade

deste texto dirá respeito à trajetória intelectual e política percorrida por Mariátegui na

época. Daremos especial atenção à importância de alguns nomes que marcam a formação

do Amauta no período, entre eles Georges Sorel. O teórico francês era um dos principais

entusiastas do “sindicalismo revolucionário”, tendência que marcou em grande medida a

organização do movimento operário na Itália (bem como na França), e defendia em sua

obra mais conhecida, Reflexões sobre a violência (1908), a importância do mito, definida

pelo autor francês como uma construção, um conjunto de imagens capaz de orientar a ação

dos revolucionários, evocando com a força do instinto o sentimento de luta. Para Sorel, a

greve geral e a “revolução catastrófica” defendida por Marx eram exemplos de mitos

(SOREL, 1992, p. 41; cf. GALASTRI, 2011). É bastante notável a importância que

Mariátegui atribui ao pensamento de Sorel, e entendemos que as ideias do teórico francês

constituem um contributo fundamental para a reflexão mariateguiana sobre o mito, a fé, o

ascendente religioso do socialismo.

O segundo capítulo também analisa as reflexões de Mariátegui sobre o catolicismo

na Itália. O Amauta dedica artigos à organização política dos católicos, em especial ao

recém-fundado Partito Popolare Italiano (PPI) e sua figura mais conhecida, Dom Luigi

Sturzo. As reflexões do Amauta também buscavam analisar as disputas entre “populares”,

socialistas e liberais. A presença parlamentar, a polêmica do divórcio, as eleições italianas,

o ascenso do fascismo ao poder e sua aproximação com a Igreja, entre outros temas, trariam

o PPI para o conjunto das análises de Mariátegui6. 6 Os textos do período concentram-se no volume Cartas de Italia (v. 15 das Obras completas), e traduções

8

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O terceiro capítulo apresenta o desenvolvimento das ideias socialistas de Mariátegui

no Peru entre 1923-1930. Nos preocupamos em recuperar seus trabalhos junto aos

operários e estudantes peruanos (por exemplo, a ministração das conferências sobre a

“História da Crise Mundial” nas Universidades Populares González Prada), sua

aproximação a Haya de la Torre e a proposta de uma frente anti-imperialista, a fundação da

revista Amauta (1926), a polêmica de Mariátegui com o aprismo e a construção do Partido

Socialista Peruano. Neste conjunto, abordamos aspectos referentes ao tema religioso que

surge em seus trabalhos, buscando compreender a importância política que assumem na

análise de Mariátegui.

Neste sentido, dois eixos fundamentais marcam o capítulo. O primeiro diz respeito

às reflexões que o Amauta desenvolve no sentido de estabelecer identidades entre o político

e o religioso, entre a “dimensão revolucionária” e a “dimensão religiosa” da luta socialista,

em contraposição ao ceticismo e ao racionalismo que marcavam as doutrinas políticas

liberal-burguesas e que encontravam guarida também no seio dos socialistas alojados no

campo da II Internacional. É neste conjunto de análises que o mito assume força especial

como conceito de caráter político, constituindo junto a outros termos (como mística, fé,

religiosidade, etc) um léxico revolucionário do qual o Amauta se apropria não apenas em

seus escritos mais conhecidos sobre o tema (de 1925, publicados em El alma matinal) mas

também em outros textos que produzirá até o fim de sua vida.

O segundo refere-se às análises publicadas em sua obra mais celebrada e conhecida,

os 7 ensayos de interpretación de la realidad peruana (1928). Neste trabalho encontramos

um capítulo dedicado exclusivamente ao tema da religião (“El factor religioso”), que

aborda o papel da religião e da espiritualidade indígena no Peru, o papel histórico do

catolicismo desde sua chegada com a “conquista” espanhola no país, suas diferenças em

relação às tarefas cumpridas pelo protestantismo na América do Norte, além de trazer uma

permanente discordância sobre a identificação da religião com o “obscurantismo”.

Podemos notar em Mariátegui, a despeito das críticas que possa tecer à Igreja, uma

de textos do período também estão disponíveis na seleção organizada por Luiz Bernardo Pericás, As origens do fascismo (cf. MARIÁTEGUI, 1991; 2010).

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preocupação com um anticlericalismo simplista e que o mesmo identifica como um desvio

liberal-burguês.

***

A produção deste trabalho seria inviável sem o apoio de determinadas pessoas e

instituições, aos quais gostaria de registrar agradecimentos.

Primeiramente, sou grato à CAPES pelo amparo financeiro que permitiu o

desenvolvimento desta pesquisa; e ao professor Alvaro Bianchi pela dedicação e atenção

com as quais supervisionou a presente investigação. Seus diálogos, observações e críticas

foram essenciais para este trabalho e também para o meu amadurecimento como

pesquisador. Devo mencionar também minha gratidão aos colegas do GPMPP que, ao

longo deste período, contribuíram com leituras, observações e diálogos que foram

importantes para a produção desta dissertação. Por fim, a Isabella Meucci e Julia Abdalla,

meus agradecimentos pelo auxílio em traduções aqui utilizadas.

Agradeço, em segundo lugar, aos colegas discentes e docentes do DCP/IFCH e

demais colegas de pós-graduação pelos debates que me ajudaram a levantar questões não

apenas sobre esta pesquisa, mas também sobre outros temas pertinentes ao campo da

ciência política – além, é claro, de reduzir um pouco o impacto da dura rotina a qual nos

submetemos. Agradeço pelos diálogos, e também pelas boas risadas. De semelhante modo,

registro minha satisfação ao encontrar, durante este período, outros jovens pesquisadores

interessados na obra de Mariátegui como Ricardo Streich, Deni Alfaro Rubbo e Bernardo

Soares. Obrigado pelas trocas de informações e pelos frutíferos diálogos.

Em alguns momentos o andamento da pesquisa dependeu de auxílios materiais

fundamentais. Neste sentido, gostaria de registrar meus agradecimentos ao professor

Bernardo Ricupero pelas sugestões oferecidas a esta investigação e também por me permitir

o acesso aos Escritos Juveniles. Também menciono minha gratidão ao professor Ricardo

Portocarrero Grados pela indicação de materiais e publicações e pelo esclarecimentos de

dúvidas surgidas ao longo deste trabalho.

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Um registro especial deve ser feito em relação aos funcionários das bibliotecas e

arquivos consultados. Habitualmente, pouco recordamos o valor destes trabalhadores em

relação à garantia, segurança e cuidado com que tratam nossos instrumentos de trabalho.

Neste sentido, deixo aqui minha gratidão aos funcionários da biblioteca do IFCH e do DCP

pelo importantíssimo auxílio que ofereceram neste tempo. De semelhante modo, quero

agradecer também aos cordialíssimos funcionários da PUCP durante o período de pesquisas

realizado em Lima. Seu auxílio foi inestimável.

Ainda em referência ao Peru, é impossível não recordar, com imensa gratidão, a

atenção que me dispensou a querida Ruty Nicacio em minha estadia em Lima, me

permitindo conhecer esta encantadora cidade e vários colegas peruanos, seus gostos e suas

histórias; e também, e especialmente, a meu caro Oscar Mejía Muñoz e toda sua querida

família, que me receberam com paciência e ternura impressionantes. Lembrarei sempre de

vocês como “minha família peruana”. Com muito carinho é que lhes agradeço e, por meio

de vocês, também saúdo aos demais colegas peruanos com quem pude dialogar neste

período.

Agradeço à atenção e à paciência que muitos amigos dedicaram a mim durante estes

anos. Gostaria de citar, especialmente: Maíra Bichir, Thaís Lima, Priscila Akemi, Felipe

Eltermann, meus queridos amigos da Casa da ABU. Cito estes, mas com o intuito de que

representem outros tantos colegas para os quais também dedico grande carinho.

Por fim, agradeço ao apoio inestimável de minha família. Aos meus pais, Sydnei e

Joselita, por terem sempre acreditado em meu potencial, pelo amor sempre dedicado e

especialmente por me desafiarem a nunca abaixar a cabeça diante dos momentos de

cansaço e de angústia que se apresentaram; à minha avó, dona Dodô, por seu apoio

incondicional e por suas orações; ao meu irmão, Vitor, pelos diálogos e pelas necessárias

doses de pragmatismo; e finalmente à minha namorada, May, pelo carinho e amor com que

cuidou de mim em tantos momentos destes anos de pesquisa. Obrigado por cada abraço

apertado e amoroso que pude desfrutar contigo.

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Cap. 1 – O jovem Mariátegui – 1914 - 1919

“(...) mi alma había partido desde muy temprano en busca de Dios”, afirmava

Mariátegui, em 1926, numa entrevista concedida a Angela Ramos7. Neste momento,

Mariátegui já desenvolvia suas orientações socialistas com relativa maturidade. Um ano

antes, havia publicado seu primeiro livro, La Escena Contemporánea, e proferido discursos

sobre a “História da Crise Mundial”8. Havia quatro anos desde seu retorno da Europa, em

março de 1923, donde vinha com a convicta tarefa de construir o socialismo no Peru.

E, no entanto, poderiam soar estranhas as palavras de Mariátegui àqueles que,

naturalmente, tendiam a enxergar naquele homem, já conhecido no periodismo peruano

desde 1914, claras mudanças de orientação em suas ideias e convicções. Angela Ramos, ao

questionar como se modificaram os rumos e as aspirações literárias de Mariátegui – bem

como em que momento elas se definiriam – ouviria do próprio entrevistado que, no fundo,

não estava convicto de haver mudado. Era uma questão de trajetória e de época:

He madurado más que cambiado. Lo que existe en mí ahora, existía embrionaria y larvadamente cuando yo tenía veinte años y escribía disparates de los cuales no sé por qué la gente se acuerda todavía” (MARIÁTEGUI, 1987a, p. 154).

Este período ao qual Mariátegui se refere – sua produção periodística de 1914 a

1919 – é recordado também, e especialmente, em carta encaminhada pelo marxista peruano

dois anos mais tarde, em 10 de janeiro de 1928, ao argentino Samuel Glusberg,

estabelecendo de forma bem mais objetiva uma ruptura com seus “primeros tanteos de

literato inficionado de decadentismos y bizantinismos finiseculares”, rumo a uma

orientação socialista, a partir de 1918. Mariátegui – que propriamente afirmava não ser um

7 Mundial, Lima, 23 de julho de 1926. Apresentando esta entrevista, Angela Ramos destaca: “la vida de Mariátegui es una vida heroica, de santo y de luchador, y su obra el resultado de su vida. ¿Cómo ha conseguido este hombre admirable esta serena armonía entre su vida y su obra? El mismo nos lo dice más adelante que por la fe, y si la fe opera grandes milagros en seres mediocres qué no haría en espíritus de selección?” (MARIÁTEGUI, 1987a, p. 154).

8 Proferida nas Universidades Populares González Prada, a convite de Victor Raúl Haya de la Torre, a partir de junho de 1923.

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escritor muito autobiográfico – assim resume este período:

Nací el 95. A los 14 años, entré de alcanza-rejones a un periódico. Hasta 1919 trabaje en el diarismo, primero en La Prensa, luego en El Tiempo, finalmente en La Razón diario que fundé con Cesar Falcón, Humberto del Águila y otros muchachos. En este último diario patrocinamos la reforma universitaria (MARIÁTEGUI, 1994, p. 1875).

Há, é verdade, alguns equívocos e omissões, que cabe esclarecer: Mariátegui era

nascido, de fato, em 18949; não menciona suas colaborações em El Turf, Lulú ou Mundo

Limeño; busca oferecer a imagem de uma iniciação periodística ao largo de suas

preocupações “literárias” e sem mencionar suas crônicas, contos e mais de cinquenta

poemas publicados entre 1915 e 1917 (FLORES GALINDO, 1982, p. 119).

Entre o enxergar de um amadurecimento das ideias, como exposto na entrevista de

Mariátegui a Angela Ramos, e a afirmação da ruptura, relatada na carta a Samuel Glusberg,

parece ter sido este último olhar aquele melhor recebido pelos estudiosos da obra do

Amauta – recepção esta certamente reforçada pelas próprias palavras de Mariátegui, que

teria classificado o período de 1914 a 1918 como sua “edad de piedra”. Não por menos, as

Obras Completas de José Carlos Mariátegui, primeiro trabalho de reunião de textos do

autor, não incluiriam os escritos anteriores a 1919, devido a um posicionamento editorial

que não reconhecia qualquer acréscimo ou contribuição dos textos desta época à

compreensão das ideias do autor10. Se a ampla maioria dos estudiosos enxergavam

nitidamente a existência de duas etapas no desenvolvimento intelectual de Mariátegui – a

“edad de piedra”, primeiramente, e em segundo lugar a “edad revolucionaria”, referente a

sua afirmação marxista – isto se converteu em um detido interesse sobre os escritos do

9 Este erro aparentemente não é proposital. Guillermo Rouillon observa que possivelmente Mariátegui não sabia seu verdadeiro ano de nascimento. Esta informação é reforçada pelo registro de certidão de nascimento ao qual o pesquisador obteve acesso para o trabalho biográfico que desenvolveu sobre José Carlos Mariátegui, indicadora do nascimento do autor em Moquegua, em 14 de junho de 1894. O documento contrapunha-se a outro, que referia o nascimento de Mariátegui em Lima, em 14 de junho de 1895, e no qual provavelmente Mariátegui se baseava (ROUILLON, 1975, t. 1, p. 35-38).

10 Esta posição é justificada pelos editores das Obras Completas: “Respetuosos de la apreciación que ese período de su vida le mereciera, y que irónicamente llamaba su 'edad de piedra', no incluimos sus escritos de aquella época, que, además, poco añaden a su obra de orientador y precursor de la conciencia social en el Perú” (em MARIÁTEGUI, 1987, p. 5).

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Amauta posteriores ao seu retorno ao Peru (pós-1923), e uma bastante reduzida curiosidade

sobre seus escritos de juventude.

Todavia, trabalhos interessados no resgate desta primeira etapa intelectual da vida

de José Carlos Mariátegui foram, ao poucos, se apresentando. Segundo Flores Galindo

(1982, p. 120-121), Edmundo Cornejo inauguraria estes estudos em 1955, propondo uma

antologia de textos sob o título de Páginas literarias, reeditada em 1978, oferecendo uma

imagem objetiva de Juan Croniqueur11. A seguir, entre tarefas de reunião de textos e

promoção de análises, se acrescentariam a esta empreitada os trabalhos de Anibal Quijano,

em 1956; Hugo Neira em 1960; Carnero Checa, em 1964; Diego Messeguer Illán, em 1974;

Jeffrey Klaiber, em 1977; e especialmente Guillermo Rouillon, sempre lembrado por vários

estudos contemporâneos como autor de uma das mais completas biografias sobre o Amauta,

La creacion heroica de José Carlos Mariátegui, de 1975. O amplo conjunto de escritos de

Mariátegui referentes à “edad de piedra” só seria finalmente reunido para publicação na

década de 1980, sob o título de Escritos Juveniles: oito tomos de poesias, contos, crônicas,

textos teatrais, entrevistas e artigos que permitiriam aos novos pesquisadores um

instrumento mais qualificado para a compreensão do significado das ideias e dos escritos

do jovem Mariátegui, e as relações desse período com sua fase mais madura, na década de

1920.

O reconhecimento da importância desta primeira fase da obra de Mariátegui nos

parece, deste modo, fundamental – especialmente no sentido de compreender com maior

agudez o envolvimento de Mariátegui com temas como mística e religião. Tratar do legado

de Mariátegui a respeito destes temas exige a observação de que falamos de um autor cuja

juventude foi profundamente marcada pela reflexão de fundo místico. É notório para Aníbal

Quijano (1982, p. 75) que a experiência mística e religiosa pela qual teria passado o jovem

José Carlos tenha influenciado sua obra posterior – principalmente ao referir-se a uma

concepção heroica da existência e à necessidade de fundamentos metafísicos para a ação

revolucionária – mediante um conflito não resolvido entre esta sua formação e a 11 Juan Croniqueur era o principal pseudônimo utilizado pelo jovem José Carlos. Também valeu-se de outros

como Jack, X. Y. Z., El de siempre, entre outros. Tauro (1994, p. 2121-2126) analisa os usos e a importância destes pseudônimos.

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assimilação do materialismo marxista12.

Assim, se no início dos estudos e da organização das publicações dos trabalhos de

Mariátegui a “edad de piedra” era propositadamente ignorada – concebendo-se uma

drástica interrupção entre os escritos de Juan Croniqueur e aqueles do Mariátegui “marxista

convicto e confesso” pós-1923 – posteriormente surgiriam estudos dispostos a salientarem

a relevância de seu período juvenil. Evidentemente, está distante a possibilidade de

enxergarmos um Mariátegui de pensamento monolítico e permanente. É equívoco afirmar

Juan Croniqueur como um socialista pleno. Porém, o que nos parece claro, corroborando a

preocupação de Guillermo Rouillon, é que há uma inquietude no jovem Mariátegui que

permite explicar suas posições revolucionárias futuras, bem como suas preocupações

provenientes dos acontecimentos da Revolução Russa de 1917, que influenciarão suas

posições políticas. Assim, concordamos que a obra de Mariátegui não pode ser bem

explicada sem um atento exame dos anos de sua mocidade e dos complexos problemas que

confrontou (ROUILLON, 1975, t. 1, p. 13). Afirmamos, de semelhante modo, que a

sensibilidade de Mariátegui a temas como mística e religião permanecerá e também

amadurecerá, no sentido de promover o diálogo e uma incorporação singular desta

discussão no escopo das ideias revolucionárias do nosso autor. Um amadurecimento que

também será fruto do futuro contato de Mariátegui com outras teorias revolucionárias

baseadas na construção de grandes mitos e símbolos. Neste sentido, reconhecendo o rigor

da autocrítica de Mariátegui quanto ao seu labor juvenil, nos cabe, porém, resgatar este

passado como um passo necessário à compreensão das ideias deste valioso marxista latino-

americano.

12 A hipótese de Quijano é que a não resolução deste confronto no terreno epistemológico e metodológico foi devida às insuficiências de sua formação inteiramente autodidata, e por encontrar um meio ético-filosófico de solução que, não por ser teoricamente inconsistente, era menos eficaz psicologicamente no Mariátegui maduro. A isto teria contribuído o caráter mesmo do debate ideológico italiano (com o qual Mariátegui se envolveu entre 1919-1923) e o predomínio das questões culturais e políticas, porém sobre a base da própria formação de Mariátegui (QUIJANO, 1982, p. 75).

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Saúde débil, curiosidade voraz

Nascido em 14 de junho de 1894, José del Carmen Eliseo13 era filho de Maria

Amalia La Chira Ballejos (1860-1946) e de Francisco Javier Mariátegui y Requejo (1849-

1907). Amalia La Chira, uma mestiça de educação religiosa, fervorosamente católica, com

uma origem campesina remetida ao povoado de Sayán, serra norte de Lima, seria a

principal responsável pela criação de Mariátegui e de outros dois filhos14. Javier Mariátegui

era descendente de uma ilustre e aristocrática família de liberais de Lima15. José Carlos,

porém, não o conheceu, e nem teve esclarecidas por sua mãe as circunstâncias de seu

nascimento16.

Devido tanto à desgastada saúde da própria mãe, bem como a uma artrite

tuberculosa, doença diagnosticada ainda na infância, Mariátegui sempre teve uma saúde

bastante frágil. Em 1902, cursando seu primeiro ano escolar, o pequeno José Carlos sofre

um acidente na perna, que lhe trará problemas definitivos de locomoção. Para realizar seu

tratamento, dá entrada no Maisón de Santé, uma clínica beneficente de origem francesa.

Sofre uma intervenção cirúrgica e permanece internado no local por quatro meses (outubro

de 1902 a fevereiro de 1903), seguidos de mais dois anos de convalescença transcorridos

entre as frequências hospitalares e a vida familiar. No período de internação, Mariátegui

teve contato com diversas pessoas, entre familiares (maternos), “amigos” franceses,

vinculados à casa de saúde, e religiosas, as monjas de San José de Cluny, também

13 Este é o nome de batismo do Amauta. A mudança de José del Carmen Eliseo para José Carlos Mariátegui se daria mais tarde, por iniciativa do próprio autor (ROUILLON, 1975, t. 1, p. 40)

14 Mariátegui era o sexto de sete filhos. Os quatro primeiros morreram ainda pequenos. Tinha uma irmã mais velha, Guillermina Mariátegui La Chira, e um mais novo, batizado Juan Clímaco Julio, mas que mudaria seu nome para Julio Cesar Mariátegui (ROUILLON, 1975, t. 1).

15 Javier – como se apresentava – descendia de uma família com direto envolvimento na luta de independência do Peru, e com profunda influência liberal. Seu avô, Francisco Javier Mariátegui y Telleria (1793-1884), aproximado aos ideais da Revolução Francesa, foi ativo anticlerical e fundador da maçonaria no país, circunstâncias que o apartaram da Igreja e das convencionalidades sociais da época (ROUILLON, 1975, t. 1).

16 A conturbada relação dos pais de Mariátegui é marcada por separações e retornos, frutos da vida fugaz de Javier. Porém, a separação definitiva ocorre após Amália descobrir a ascendência familiar de Javier, especialmente seu avô, malquisto pela Igreja por suas tendências anticlericais. Amália, muito católica, decide afastar-se definitivamente de Javier (ROUILLON, 1975, t. 1).

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responsáveis por seu cuidado. Ali ouviria muitas histórias: dos familiares, a dimensão

localista das lendas e superstições indígenas; dos franceses, grandes narrativas, crenças,

mitos e lendas, parte de um acervo cultural europeu; das religiosas, versos místicos,

representações legendárias, a vida dos santos da Igreja e seus milagres. Estas narrativas

contribuiriam para o desenvolvimento imaginativo de Mariátegui e sua precoce dedicação à

reflexão. Tal experiência também aportaria elementos importantes na formação humanista

de Mariátegui: reforçará a fé religiosa, inculcada pela mãe, que se projetará durante sua

juventude até ser um prestigiado periodista, ao mesmo tempo em que demonstrará

crescente curiosidade pela cultura europeia, alimentando um espírito cosmopolita

(ROUILLON, 1975, t. 1; BRUCKMANN, 2009, p. 20).

Com a saúde ainda mais debilitada por conta de seu problema na perna, José Carlos

vive longe do ambiente escolar. Quase reduzido a uma vida monástica, o menino passa a

demonstrar mais claramente sua predileção à leitura, com espantosa voracidade,

demonstrando especial interesse pela poesia e pela literatura, e ensaiando também pequenos

artigos e poemas – através dos quais, afirma Rouillon, Mariátegui também expressava

inquietações místicas e religiosas17. Lendo e relendo diversas obras, ainda cedo Mariátegui

também começa a aguçar seu senso crítico. E seu interesse ainda o orientou ao estudo da

língua francesa enquanto pequeno. É assim que nosso autor inicia o seu caminho

autodidata, marca profunda de seu desenvolvimento intelectual, e o qual, já na madurez,

reivindicará de modo veemente:

soy un autodidacto. Me matriculé una vez en Letras en Lima, pero con el solo interés de seguir un curso de latín de un agustino erudito. Y en Europa frecuenté algunos cursos libremente, pero sin decidirme nunca a perder mi carácter extra-universitario y talvez si hasta anti-universitario (MARIÁTEGUI, 1994, p. 1875-1876)

Cabe reiterar a importância destes momentos da infância de Mariátegui à medida

17 “El binomio poesía y religión se convierte en un refugio para José Carlos, o si se quiere en una válvula de escape para su incertidumbre y duda. Los sufrimientos descritos refuerzan sus convicciones religiosas. Y su misticismo es producto del ambiente en que vive rodeado de exaltación de la fe” (ROUILLON, 1975, t 1, p. 55-56).

18

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que buscamos lidar com os desafios de sua fase adulta. Esta experiência infantil, marcada

pela pobreza e por ausências, pela enfermidade e pela inatividade física, pela solidão e pela

melancolia, pela religiosidade e pela poética mística, pelas leituras inquietas e

questionadoras, nos ajuda a uma fundamental compreensão da obra adulta mariateguiana.

Corroborando as indagações de Aníbal Quijano (1982, p. 34), como não ver ali a origem

dos impulsos emocionais que atravessarão permanentemente uma parte de seu

desenvolvimento, e em especial uma tensão agonista entre uma concepção metafísica da

existência – alimento de uma vontade heroica de ação – e as implicações necessárias da

adesão ao marxismo, que caracterizam grande parte de seu pensamento?

Com cada vez mais ávida dedicação aos livros, e com a permissão médica para não

permanecer mais “enclausurado” em sua casa, ainda por alguns anos Mariátegui

acompanhará sua mãe nas residências onde ela prestava seus serviços como costureira,

sempre despertando atenções por sua curiosidade e entrega à leitura.

Como temos observado, o ambiente familiar em que crescia Mariátegui era bastante

humilde, e marcado por grande fervor religioso, especialmente por parte de sua mãe. Sendo

“una mezcla de raza española y de raza india” (MARIÁTEGUI, 1987, p. 94), a herança

paterna não se materializou, porém, na presença do pai, mas se traduziu no conhecimento

de suas relações de consanguinidade com a família Marátegui, que no ínício da década de

1910 passava a assumir maior prestígio social18. A biblioteca particular também deixada por

seu pai, herança do avô Francisco Javier Mariátegui y Telleria, não apenas se tornaria mais

uma fonte de leituras, mas também instigaria a curiosidade de Mariátegui pelas suas raízes

paternas – por exemplo, ao constatar nas páginas das obras as iniciais F. J. M, sem poder,

no entanto, elucidar a pertença daqueles volumes (ROUILLON, 1975, t. 1, p. 67). A

curiosidade voraz de Mariátegui em torno de grandes nomes da literatura da época era

notada pelas famílias para quem sua mãe trabalhava, e que gentilmente lhe emprestavam

diversos dos livros lidos pelo jovem na época, além dos volumes com que tinha contato na

18 Segundo Rouillon (1975, t. 1, p. 69), os Mariátegui teriam permanecido fora das posições de poder e prestígio social no Peru como consequência das atitudes anticlericais de Francisco Javier Mariátegui y Telleria. Este prestígio se refez com a chegada de Augusto B. Leguía ao poder, em seu primeiro governo. A esposa do então presidente, Julia Swayne y Mariátegui, era prima do pai de José Carlos.

19

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biblioteca deixada pelo pai19.

Crescendo e observando a aumentada fragilidade da saúde de sua mãe, os irmãos

José Carlos e Julio César decidem-se pela tarefa de buscar um emprego, de modo a

amenizar os esforços de dona Amalia. Em 1909, Mariátegui assume seu posto como

entregador e trabalhador das gráficas de La Prensa20.

Antecedentes das ideias políticas e da religião no Peru e na América Latina

Antes de analisarmos mais detidamente a trajetória política e intelectual do jovem

Mariátegui a partir de seu ingresso na imprensa, cabe fazer algumas considerações a

respeito do ambiente ideológico, político e religioso que o cercava e lhe permitia forjar suas

reflexões.

Independências e reações eclesiásticas

O contexto social e político na América Latina se altera consideravelmente no curso

do século XIX, após as colônias atravessarem vários processos de luta política que

rumaram para a consolidação de nações independentes no continente. Com a exceção de

alguns países centro-americanos e de Cuba, os demais países hispano-americanos tornaram-

se independentes entre os anos de 1809 e 1821. O Peru, mais especificamente, teve sua

independência declarada em 1821, mas apenas em 1826 os últimos destacamentos

espanhóis seriam expulsos do território peruano (BUSHNELL, 2004, p. 174). Além disso, a

19 Entre os autores lidos, Luis Benjamin Cisneros, Charles Baudelaire, Rufino Blanco Fombona, J. S. Chocano, Francisco Villaespesa, Juan de Dios Peza, Carlos Roxlo, Rubén Dario, José Martí, Manuel Beingolea, Guy de Maupassant, Anatole France, os irmãos Ventura e Francisco García Calderón, e Amado Nervo – este último, o “poeta místico”, que se tornaria à época um dos autores favoritos de Mariátegui. Acrescente-se também as leituras de Marco Anneo Lucano, Dante Alighieri, Jules Michelet, e Baltasar Gracían – trabalhos que instigariam Mariátegui a melhor compreender outras línguas como o latim, o francês e o italiano (ROUILLON, 1975, t. 1, p. 58 e 68)

20 Diário de tendência liberal, La Prensa foi fundada em 1903 por Pedro de Osma. Entre 1908 e 1912, encampou persistente oposição ao então presidente Augusto B. Leguía .

20

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cultura das elites dirigentes e intelectuais da América Latina tem suas origens na cultura da

Europa Ocidental – neste caso, filtradas pelas peculiaridades das relações coloniais

estabelecidas entre a América Latina e as metrópoles espanhola e portuguesa. Podemos

considerar, assim, que estes dois fatores – as independências políticas no início do século

XIX, e a forte influência euro-ocidental sobre as elites latino-americanas – afetarão

consideravelmente as ideias políticas e sociais na América Latina (HALE, 2009, p. 331).

Nestas nações recém independentes, o liberalismo constituiu-se como base

fundamental para a formulação dos programas e teorias com fins ao estabelecimento e

consolidação de governos e à reorganização das sociedades. Cabe observar, porém, que o

desenvolvimento das ideias liberais na América Latina deve ser notado em sua

especificidade. Como afirma Hale (2009, p. 332), há uma experiência distinta sob a qual se

dá o liberalismo latino-americano na medida em que este corpo de ideias é aplicado em

conjunturas sociais de extrema estratificação social e racial, subdesenvolvimento

econômico, com profundo arraigo na tradição de uma autoridade estatal centralizada. Se

havia inicialmente na América Latina o entusiasmo com uma perspectiva liberal

constitucional – a convicção de que um código de leis escritas e concebidas racionalmente

podia distribuir com eficácia o poder político e garantir, assim, a liberdade individual, mola

mestra da harmonia e do progresso social – tal perspectiva, porém, entraria em corrosão e

declínio (desde 1830, mas especialmente após a década de 1870). Os liberais

constitucionais, empenhados na limitação da autoridade e na criação de barreiras legais ao

“despotismo”, fariam frente à afirmação do Estado secular, refletida numa tendência mais

ao fortalecimento do que ao enfraquecimento do poder governamental21. O declínio do

constitucionalismo clássico tornou menos aparente esse conflito tradicional e, para as elites

dirigentes e intelectuais, o triunfo do chamado liberalismo passou a ser sinônimo de

progresso do Estado laico (HALE, 2009, p. 342).

21 O fortalecimento dos poderes se traduziria no caudilhismo, fenômeno político presente nas novas repúblicas latino-americanas através do fortalecimento do poder pessoal de grandes lideranças políticas, por meio da inobservância dos preceitos constitucionais. Safford defende que, até certo ponto, “a autoridade não conseguiu corporificar-se nas instituições formais propostas por muitas constituições da América espanhola; ao contrário, ela se encarnou nas pessoas” (SAFFORD, 2004, p. 355).

21

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O republicanismo, em especial, foi apreciado pelas elites criollas como um sistema

que parecia representar uma tendência do futuro. A constituição de repúblicas nas antigas

colônias espanholas também ajudou a justificar o rompimento destas com a metrópole. E,

especialmente após 1820, as tentativas de consolidar um controle central nas novas nações

apresentaram, pelo menos formalmente, um caráter republicano (SAFFORD, 2004, p. 344).

Assim, ao longo do século XIX a independência política do hemisfério ocidental implicaria

a rejeição da monarquia (exceto no Brasil) e os intelectuais hispano-americanos se

revelariam sensíveis às ameaças de restauração da monarquia em seu continente e ao fluxo

e refluxo do ideal republicano na Europa (HALE, 2009, p. 333).

A Igreja Católica, por sua vez, se portava como um adversário do novo processo

histórico latino-americano. Ela tinha uma relação direta de dependência com a coroa

espanhola, mostrando-se bastante hostil às repúblicas recém-criadas. Diante das novas

independências nacionais a liderança católica viu-se enfraquecida por ter parte do clero,

sobretudo a hierarquia eclesiástica, defendido a causa realista; e também por conta do

conflito permanente entre os novos Estados e o papado sobre o direito de nomear bispos.

Além disso, os liberais tinham várias críticas à Igreja em face dos problemas econômicos

que ela causava – como nos explica Safford:

a Igreja obstruiu de várias maneiras a implantação da economia liberal: os feriados religiosos prejudicavam a produtividade, e, na verdade, o próprio clero era acusado de ser improdutivo. O dízimo, cobrado sobre os produtos agrícolas, diminuía os lucros das fazendas, impedindo assim o desenvolvimento agrícola. Acreditava-se que os censos que a Igreja detinha sobre a propriedade privada impediam sua livre circulação no mercado. Do mesmo modo, dizia-se que os bens de mão-morta da Igreja impediam a livre circulação da propriedade e, segundo as concepções liberais, não eram trabalhados de maneira produtiva – portanto, eram, sob esses aspectos, semelhantes às terras comunitárias dos índios.

Assim, o poder e os privilégios da Igreja eram vistos por muitos políticos civis

como um importante obstáculo ao crescimento econômico, e tinha o seu poder notado como

uma ameaça ao controle do Estado secular pelos civis (SAFFORD, 2004, p. 334).

Não obstante as críticas econômicas, o prestígio da Igreja Católica nos aspectos

intelectual e moral também se enfraqueceu na América espanhola. As lideranças

22

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intelectuais que rejeitavam a monarquia absolutista também contestavam a religião

revelada, ou ao menos pareciam fazê-lo. A busca por legitimação dos novos sistemas

políticos se fazia mediante inspiração da filosofia das luzes, e não no pensamento político

católico. Sem condição de interferir no debate intelectual, a Igreja reage pedindo ao Estado

para que suprima os inimigos da religião – o que levanta a questão das relações entre Igreja

e Estado (BETHELL, 2004, p. 269). Ainda, sendo os liberais desejosos de afirmar a

supremacia do Estado secular e, especialmente, reduzir o poder temporal e a influência da

Igreja – tida como obstáculo à modernização não apenas econômica, como já mencionado,

mas também política e social – os novos governos tomaram medidas favoráveis ao

princípio da tolerância religiosa e da liberdade de culto22, e aboliram a Inquisição. Com a

consequente e cada vez maior aproximação da Igreja aos setores mais conservadores das

sociedade hispano-americanas, o conflito entre o Estado liberal e a Igreja Católica

assumiria contornos de uma questão central para a política na América espanhola –

especialmente no México, onde, nas décadas de 1850 e 1860, surgiria um violento

confronto e uma guerra civil de amplas proporções23 (BETHELL, 2004, p. 271;

PETERSON e VÁSQUEZ, 2008, p. 132).

Sob um olhar amplo, podemos afirmar que, a partir das décadas de 1850 e 1860, o

liberalismo foi triunfante sobre a Igreja na batalha travada entre a defesa dos princípios

seculares contra os privilégios eclesiásticos. Na maioria dos países da América Latina, não

apenas implementou-se a tolerância religiosa e a liberdade de culto, como também retirou-

se da Igreja privilégios jurídicos e restringiu-se o poder econômico do clero. Retirou-se

também de suas mãos a propriedade dos registros civis e foi instituída a educação pública

obrigatória. E mesmo com alguns países preservando em suas constituições o

reconhecimento do catolicismo como religião oficial, a diversidade de cultos e o laicismo

22 Bethell (2004, p. 271) observa, todavia, que a liberdade de culto fora garantida muitas vezes pelos tratados que os vários países hispano-americanos assinaram com a Inglaterra na sequência das independências.

23 Diversas leis aprovadas pelo governo mexicano feriam privilégios clericais, impediam membros do clero de se candidatarem ao parlamento, e dispunham as propriedades da Igreja para venda. A recusa da Igreja a estas medidas de reforma culminou numa guerra entre 1858 e 1860, na qual a Igreja foi beligerante. A consequência foi uma derrota ainda maior para Igreja, com o Estado mexicano se separando definitivamente da Igreja e aprovando supressão de ordens religiosas, a instituição da liberdade religiosa, a secularização das escolas, entre outras medidas (LYNCH, 2009, p. 472).

23

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começava a impor-se no conjunto da vida social (RAMOS, 2008, p. 252).

A fé do povo latino-americano

O fato dos avanços seculares e liberais sobre a lei, a política e o Estado não

representavam, porém, grandes mudanças na fé da população latino-americana. A religião

era, em todo continente, uma religião do povo, e a Igreja continuou a receber a adesão e o

respeito de índios, mestizos e outros setores populares. Sendo os grupos dirigentes os

menos comprometidos com a religião, o grande medo da Igreja era a apostasia destes, e não

das massas. A reação da Igreja à gradativa perda de adeptos entre os setores da elite política

e intelectual foi representada em sua busca por aliados, o que produziu vínculos frequentes

entre os eclesiásticos e os políticos conservadores, tornando o pensamento político católico

mais identificado com o conservadorismo em meados do século XIX24.

Se o secularismo tinha uma base social entre as elites, ou entre os aspirantes à elite,

as massas, por sua vez, mantinham-se afeitas às suas crenças. Neste sentido, Lynch (2009,

p. 439-440) nos oferece um interessante panorama da assiduidade religiosa dos diferentes

grupos sociais na América Latina:

Entre as populações indígenas, a frequência à missa aos domingos e o recebimento dos sacramentos eram grandes mas irregulares; no entanto, os índios mostravam grande respeito pelos padres, pelos santos e pelas cerimônias religiosas e peregrinações. Os negros não eram muito católicos, embora fossem religiosos à sua maneira, enquanto as grandes populações de mulatos do Brasil, da Venezuela e do Caribe se revelaram muito indiferentes à religião organizada. A verdadeira base do catolicismo ortodoxo era a população mestiça e nas zonas de colonização mestiça é que se observava melhor a vida plena da Igreja. As elites, por outro lado, produziram os católicos negligentes do século XIX, que mudaram para o livre-pensamento, para a maçonaria e o positivismo; era bastante comum, porém, em muitas dessas famílias a esposa ser religiosa e o marido, agnóstico. As classes profissionais e acadêmicas da América Latina contemporânea são os herdeiros identificáveis desses setores. Entre os grupos econômicos, o mais

24 Eram, porém, alianças arriscadas. Os conservadores, por seu lado, defendiam a coerção da religião como forma de controle da pretensa irracionalidade do homem, que demanda a instituição de um governo forte. A Igreja, porém, tornava-se alvo ainda mais explícito de liberais e progressistas, na medida em que tomava parte nos reveses de seus aliados (LYNCH, 2009, p. 419).

24

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provável é que os pequenos proprietários e os colonos fossem mais religiosos do que os fazendeiros e os criadores de gado.

A membresia leiga da Igreja no século XIX abarcava multidões e um amplo

espectro de crenças e práticas religiosas: desde aqueles que iam a todas as missas

dominicais e recebiam regularmente os sacramentos, até aqueles cujo único contato com a

religião se dava no nascimento, na primeira comunhão, no casamento e na morte. Havia,

ainda, aqueles cujo catolicismo era, antes de tudo, social e político. O fato, todavia, era a

existência de um catolicismo entranhado nas massas populares, um catolicismo que não

podia ser facilmente medido pela prática externa, mas que fazia parte da cultura nacional e

popular.

A Igreja, para os leigos, era normalmente a sua paróquia, e por meio dela é que os

leigos construíam seu contato com a religião organizada. A Igreja tinha presença pastoral

destacada nas cidades mais antigas e nas vilas provinciais da América Latina, onde várias

paróquias, escolas e outras instituições atendiam às diversas necessidades religiosas das

populações urbanas. Já no campo, a estrutura da religião foi difundida de modo mais amplo

e frequentemente superficial, e os serviços oferecidos pela Igreja dependiam bastante dos

padres, individualmente. Mesmo assim, a fé dos camponeses no catolicismo e na Igreja era

indubitável.

No próprio Peru temos um exemplo ilustrativo. Tradicionalmente, os indígenas

peruanos sofreram sob a ameaça de exploradores – religiosos entre eles, através de

comportamentos extorsivos e que iam além da cobrança de taxas por serviços religiosos.

Mesmo assim, no contexto das rebeliões indígenas25 em fins do século XIX, ocorridas nos

Andes centrais e meridionais, os chefes da Igreja no Peru, como os da diocese de Puno,

defenderam os interesses dos índios ou pelo menos atuaram no sentido de mediar o conflito

entre os rebeldes e o governo. A esta iniciativa os índios reagiram com a reafirmação de seu

25 A difusão do republicanismo na América Latina serviu como um elemento de distinção contra o monarquismo espanhol, mas não serviu como um princípio de subversão das fronteiras étnicas que caracterizavam as desigualdades sociais da época (VALAREZO, 2008, p. 301). No caso peruano, desde a independência, levantes indígenas foram brutalmente reprimidos pelo governo – como a Revolta de Astuparia (1885), uma das principais rebeliões indígenas da história do país. A respeito da integração dos indígenas, e da repressão governamental, no Peru moderno, cf. DAVIES Jr., 1973.

25

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apego à religião e o respeito aos seus ministros religiosos. É claro que se pode questionar

que, na pacificação dos índios, os padres serviram, às vezes, mais aos interesses

governamentais do que aos dos rebelados, e que é difícil estabelecer o equilíbrio da ação da

Igreja na sierra peruana. A maioria dos padres das áreas indígenas eram brancos ou

mestizos – embora muitos falassem as línguas regionais indígenas, como o quíchua e o

aimará. E a Igreja não buscou, de fato, estimular as vocações religiosas entre os próprios

índios26. Todavia, a fidelidade dos índios ao catolicismo tradicional perdurou até mesmo

durante períodos revolucionários, e parece não haver indícios de que a religião tenha sido

usada como um paliativo ou um fator inibitório sobre a longa luta dos índios contra os

abusos que sofriam (LYNCH, 2009, p. 428).

A Igreja, até 1870, teve sua posição social debilitada – não apenas na América

Latina, face sua hostilidade às novas repúblicas e a outros países em que os princípios

políticos liberais se fortalecessem, como também ocorria na Europa27. Mas a partir da

realização do I Concílio Vaticano (1869-1870) o catolicismo alcançou uma melhor

organização e unidade no continente. A ortodoxia das posições católicas foi reforçada, e a

autoridade eclesiástica e o clero latino-americano aproximaram-se das orientações romanas

acerca da vocação religiosa. Após a perda de sua influência no pós-independência, a Igreja

latino-americana readquiriu forças, expandindo fronteiras missionárias. Foi neste momento

de reforma que a Igreja também passou a dedicar maior atenção aos fiéis, na medida em

que o clero e os párocos, voltando a crescer em termos numéricos, já não aceitavam

passivamente a inércia religiosa dos católicos, e trabalhavam no sentido de difundir uma

crença e devoção mais ativa.

A definição mais rigorosa da religião, em certa medida, estreitava as portas e

mostrava uma descontinuidade entre a fidelidade popular à religião e a dedicação à crença

26 No Peru recém independente o clero era originário, em sua maioria, da classe média, especialmente de famílias de profissionais liberais e educados junto a outros grupos de elite nos colégios ou nas universidades. Ao longo do século XIX, porém, o número de postulantes ao clero declinou. A pouca disciplina e certa mentalidade secular caracterizavam o clero peruano (LYNCH, 2009, p. 420).

27 Esta hostilidade é expressada na encíclica Quanta cura, publicada em 1864 pelo papa Pio IX (1846-1878), reforçando o posicionamento da Igreja contra elementos modernos como, por exemplo, a liberdade de culto e de consciência. (<http://www.montfort.org.br/old/documentos/quantacura.html>, acesso em 07/08/2013).

26

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segundo as expectativas da Igreja. A nova religiosidade pregada nos púlpitos atacava a

modernidade e exortava os fiéis à maior dedicação aos sacramentos. Os padres, porém,

tiveram de se satisfazer com a observância formal, a devoção privada e a moralidade

individual. As bases populares do catolicismo, contudo, permaneciam firmes, com

contínuas manifestações de fé em santos, milagres e santuários, muitas delas envolvidas em

um processo sincrético com outras formas de religiosidade, configurando expressões

peculiares de religiosidade popular28 no continente (PETERSON e VÁSQUEZ, 2008, p.

133)

A relação Igreja-Estado no Peru

As ideias políticas na América Latina caminhavam a passos largos rumo à

secularização do Estado e da vida pública, e isto obrigou a Igreja a se reorganizar e

recolocar-se socialmente diante do novo paradigma político e social vigente, e da perda de

seu poder temporal e de seus privilégios. É verdadeiro, porém, afirmar que a forma como a

Igreja e o Estado se relacionaram nesta conjuntura variou em cada país, o que pode ser

justificado considerando-se as histórias e tradições nacionais particulares, o contraste entre

as diferentes construções dos Estados nacionais, o caráter de determinados governos e

28 John Lynch comenta que, contrapostas a uma religião “oficial”, os rituais e elementos do que habitualmente se classifica como religiosidade popular também podem ser entendidos como formas de apropriação das expressões católicas – o ensinamento sobre os santos, a veneração de relíquias, entre outras. Segundo o autor, estas características permitem questionar a validade do conceito de religiosidade popular como uma espécie de subcultura religiosa independente da Igreja institucional. A presença de diferentes expressões e movimentos religiosos de origem católica constituiria, ao seu ver, uma heterogeneidade da Igreja latino-americana, na qual “as crenças e práticas do catolicismo popular não representavam mais do que as tentativas das pessoas de tornar o abstrato mais concreto, de redefinir o sobrenatural em termos do ambiente natural no qual viviam” – em certa medida, situação beneficiada pela anterior distância da Igreja em relação à preocupação pastoral com as massas (LYNCH, 2009, p. 444).Já observamos, porém, que muitas manifestações religiosas populares desenvolviam-se em um processo sincrético com outras formas de religiosidade. Se o conceito de religiosidade popular é questionável na medida em que não denomina um segmento independente da oficialidade católica, é porém passível de reconhecimento nos termos de identificar setores que, aos olhos do alto clero, eram vistos com certa preocupação e anseio por controle, talvez pelo distanciamento entre suas práticas e a sã doutrina ou, em alguns casos, até certa hostilidade em seu relacionamento com a Igreja – como foi o caso de algumas irmandades (cf. PETERSON e VÁSQUEZ, 2008, p. 134)

27

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caudilhos – e suas crenças – e, especialmente, o poder e a riqueza da Igreja local (LYNCH,

2009, p. 452). Alguns exemplos se fazem notar: na Argentina a tolerância religiosa já era

admitida desde 1853, mesmo com o Estado apoiando a religião católica. A polêmica sobre a

reforma da educação e a lei do casamento civil, porém, opôs em diferentes lados o Estado e

a Igreja, e a situação avançou para a completa laicização e secularização do Estado no final

do século XIX – processo que se deu pacificamente e com a aceitação dos católicos, que já

não eram tão poderosos no país. Por outro lado, os mexicanos testemunharam verdadeiras

guerras entre o Estado e a Igreja, entre 1858-1860, e repressões anticlericais dos

governantes do país a partir da década de 1870. A situação somente seria amenizada no

início do regime de Porfírio Diaz, mas jamais significaria para a Igreja o retorno do poder

que detinha antes de 1856, quando foram promulgadas as Leis de Reforma no país.

No caso peruano, a secularização do Estado e da vida pública não se deu da mesma

forma. Diferente de grande parte dos países latino-americanos, no Peru deu-se preferência a

uma maior unidade entre a Igreja e o Estado: a Igreja se valia de privilégios legais, e o

Estado se declarava oficialmente católico. O anticlericalismo dos liberais peruanos era

relativamente moderado e não envolvia o povo – o que expressava a influência da tradição

e da cultura espanhola entre a elite, e o entusiasmo religioso das massas. Após a

independência, conventos foram fechados, o número de padres se reduziu, e foram

abolidos, na constituição de 1856, os foros eclesiásticos e os dízimos cobrados pelo Estado.

A constituição de 1860, por sua vez, buscando um meio-termo entre o conservadorismo e o

liberalismo, dispôs o dever do Estado de proteger a religião católica, sem permitir o

exercício público de outros credos, e a salvaguarda das riquezas e propriedades da Igreja.

Porém, manteve o fim dos foros eclesiásticos e da cobrança de dízimos pelo Estado, e

também instituiu um sistema de educação público, encerrando o monopólio da Igreja sobre

a educação. A tolerância religiosa, por sua vez, se imporia gradativamente após a derrota do

país na Guerra do Pacífico (1879-1883), sendo oficialmente adotada em 1915 (RAMOS,

2008, p. 254). Esta situação relativamente confortável da Igreja no Peru seria abalada a

partir da década de 1870 com a redução da influência católica sobre intelectuais e homens

28

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públicos, à medida em que os valores seculares avançavam e o positivismo29 e influências

mais radicais começavam a substituir o liberalismo tradicional nas mentes das elites.

Como já observamos, as raízes familiares de José Carlos Mariátegui se dividem

entre a vida humilde e o ambiente profundamente católico que o mesmo viveu sob os

cuidados de sua mãe, e o vínculo paterno com uma família de notório reconhecimento

social e encabeçada por personagens diretamente vinculados ao processo político de

independência peruana e aos ideários liberais. Poderíamos reconhecer, nestas distintas

origens familiares de Mariátegui, uma espécie de metáfora do cenário político e religioso

peruano e latino-americano, caracterizado pelo conflituoso relacionamento entre as elites

políticas e intelectuais latino-americanas, influenciadas majoritariamente pelo pensamento

liberal e secular – com um avanço das ideias positivistas nas últimas décadas do século

XIX – e a Igreja Católica, que viu seus poderes e privilégios serem gradativamente

reduzidos – em alguns casos, tais situações culminaram em episódios de violência entre o

Estado e a Igreja. Porém, a Igreja continuava sendo uma referência inconteste à maior parte

da população dos países da América Latina. A cultura católica do povo se preservava

mesmo em um situação de maior distanciamento da Igreja de sua atividade pastoral e de

redução dos quadros clericais da instituição, que só voltariam a crescer e se fortalecer após

a reforma e a orientação da ortodoxia da Igreja no I Concílio Vaticano. Esta prática

religiosa popular, e o respeito dos fiéis católicos às lideranças da Igrejas, em alguma

29 O crescimento da influência positivista ocorreu em todo o continente, na sequência da afirmação dos princípios utilitários e liberais que inspiravam as elites latino-americanas. A proclamação do triunfo da ciência mostrava-se consensual, e sua influência se dava nos esforços de reforma da educação superior, na ênfase em uma visão organicista e administrativa da sociedade – sustentando uma relação ambivalente com o liberalismo na América Latina – e na procura por explicar a formação e o desenvolvimento das sociedades no continente através da adoção de teorias sociais com grande preocupação com o tema da “raça” (HALE, 2008). No Peru, o positivismo se expressaria nos trabalhos de Francisco García Calderón (1883-1953) e influenciaria, na sua origem, o pensamento de intelectuais como Victor Andrés Belaúnde (1883-1966), José de la Riva Agüero (1885-1944) e Manuel González Prada (1848-1918). Este último, especialmente, dedicou severas críticas à República e à Igreja: de influência original positivista, González Prada avançou para posições anarquistas e uma assídua defesa da população indígena, e reivindicou a restauração da identidade dos índios em separado das tradições da cultura hispânica e católica. Suas ideias seriam importantes bases para as primeiras ações políticas organizadas dos trabalhadores peruanos, e também exerceria certa influência na nova geração de intelectuais das décadas de 1910 e 1920, entre os quais Mariátegui, que o chamaria de “El Maestro” – em “La Generacion Literaria de hoy”. Lima, El Tiempo, 2 de outubro de 1916 (cf. MARIÁTEGUI, 1994, p. 2398-2400; VANDEN, 1975, p. 21).

29

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medida serviu também como instrumento de manutenção da influência católica nas

sociedades do continente, mesmo com o abalo das posições de poder da Igreja.

Estes aspectos que ajudam a forjar o cenário intelectual e político do Peru, bem

como as origens místicas e católicas da criação materna, estarão em permanente

confluência na formação das ideias do jovem José Carlos. Sua atividade periodística

refletirá ao mundo tais confluências, e também permitirá à Mariátegui dialogar com a

realidade de sua sociedade, num exercício de amadurecimento e de maior e mais constante

aproximação aos setores populares do Peru.

O Peru durante a “República Aristocrática”

As atividades periodísticas de Mariátegui, especialmente de 1914 até 1918, se dão

no interior de uma conjuntura política de hegemonia e declínio do poder civilista no Peru, a

chamada “República Aristocrática”, que data da segunda eleição presidencial de Nicolás de

Piérola (1895) até o início do oncenio de Augusto Leguía (1919-1930). Apesar de uma

breve exceção – a vitória de Guillermo Billinghurst em 191230 – os políticos do Partido

Civilista estiveram sempre próximos ou dominando diretamente o poder – mesmo que isto

não representasse a completa unidade partidária em torno da figura política eleita, como

ocorreu com Augusto Leguía em seu primeiro mandato (1908-1912).

Economicamente, o país vivia um processo de modernização e de consequentes

mudanças sociais e urbanas. O ingresso do capital estrangeiro se fortalecia (primeiro, o

inglês; posteriormente, o norte-americano), o país aumentava sua exportação de matérias-

primas para os grandes centros industriais do hemisfério norte, e se forjavam novas

estruturas de produção que pudessem superar os destroços da derrota peruana na Guerra do

Pacífico. De semelhante modo, a agricultura também foi reorganizada e dinamizada para

30 A eleição de Billinghurst se deu sob forte respaldo popular, e sua vitória pode ser justificada pela ausência de unidade no interior do Partido Civilista durante o primeiro governo de Augusto Leguía, que cada vez mais se distanciava de seu antecessor, José Pardo, e outras lideranças partidárias. Billinghurst foi deposto por um golpe militar em 1914. No ano seguinte, José Pardo assumiu o poder (KLARÉN, 2008, p. 359-361).

30

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beneficiar a economia de exportação, especialmente de açúcar e algodão.

Crescia, assim, a dependência do país às economias estrangeiras. A burguesia local

em desenvolvimento – comercial e rural – teria poucas possibilidades para avançar a uma

“revolução industrial” no país. E o capital monopolista se implantava na economia peruana,

formando núcleos capitalistas de produção em setores produtivos cuja matriz prévia era

quase totalmente pré-capitalista. Todavia, as necessidades do capital em implantação

encontraram benefícios em seu assento sobre as estruturas pré-capitalistas de produção,

formando-se deste modo uma combinação entre capital monopolista e pré-capital: uma

estrutura econômica que, sob o domínio do primeiro, tendeu a acentuação de seu poder.

Uma das consequências desta configuração econômica será a expansão da grande

propriedade agrária sob o controle dos senhores de terra, especialmente na sierra peruana, e

o enfeudamento da maior parte da população campesina sob este domínio. Neste processo,

grande parte desta classe de senhores se converteria em uma burguesia comercial e rural,

com significativo controle de capital comercial (QUIJANO, 1982, p. 20).

O domínio político da oligarquia civilista, sustentado até 1919, de certo modo se

deu sob a inserção cada vez mais intensa do capital estrangeiro, e sob o fortalecimento do

poder econômico e político dos donos das haciendas: a modesta diversificação econômica e

industrial da década de 1900 teve vida razoavelmente curta por conta de uma recessão entre

1907 e 1908, beneficiando o poder dos latifundiários. Mas apesar da conjuntura ser de

contínuo enfraquecimento da burguesia nacional, a maioria dos membros da oligarquia

civilista ascendente aparentemente não faziam qualquer objeção à influência estrangeira –

segundo Klarén (2008, p. 342), possivelmente devido à mentalidade dominante, neste

grupo, de exaltação do “ocidental” e de rejeição do nativo, do “peruano”, justificada, em

certa medida, pela presença do pensamento positivista. O caminho à consolidação de um

Estado oligárquico verdadeiramente nacional também era nebuloso: não apenas a própria

classe dirigente, a oligarquia civilista no poder, era regionalizada31, mas também as

31 No centro do Estado oligárquico apareciam grandes produtores de açúcar (como os Aspíllaga, os Leguía e os Pardo – do Norte – e também os Romaña). Outros, como os mineiros e os criadores de ovinos na sierra central (Olavegoya, Valladares) e grandes comerciantes de lã (Forga, Gibsson, Ricketts), junto a senhores de terra do sul, continuaram à margem da elite “nacional” e constituíram um limite regional ao exercício

31

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haciendas representavam um importante obstáculo à formação do Estado nacional, na

medida em que o próprio Estado compelia os seus administradores a depender dos senhores

locais e de seus aliados para a manutenção da ordem e para governarem no plano local,

ilustrando sua inerente fraqueza (cf. KLARÉN, 2008, p. 344). Não bastasse isto, os

encraves de mineração e açúcar, controlados por estrangeiros, se transformaram em

entidades autônomas, imunes à autoridade do Estado oligárquico quando seus respectivos

interesses divergiam. Mas mesmo com estas limitações, a oligarquia manteve seu domínio

político, beneficiado em grande parte pela pequena e “dependente” classe média, e pela

contínua heterogeneidade das classes populares, ainda divididas e com limitado senso de

identidade ou solidariedade de classe32 (KLARÉN, 2008, p. 345).

Era rígida e hierarquizada a sociedade da ''República Aristocrática”. A conservação

do poder político oligárquico trazia à classe dominante a sensação de viver em uma ordem

social eterna e imóvel. A pertença à classe dominante não se fazia apenas pelo viés das

posses econômicas, mas também através dos vínculos parentais e do estilo de vida – ou

seja, além de critérios de “classe”, somavam-se outros de tipo “estamental” (BURGA e

FLORES GALINDO, 1981, p. 88). A vida cotidiana era ritualizada33, e a família ocupava

um lugar central na sociedade à medida que era vista como depositária do patriotismo e

garantia do futuro nacional. De semelhante modo, a repetição afetava também as rotinas

políticas da cidade de Lima, das quais Mariátegui reclamava em suas crônicas

parlamentares: “no pasa nada”, “ninguna novedad”, entre outras frases similares que

permitem a Flores Galindo (1982, p. 133) atestar a monotonia e o tédio como componentes

essenciais da “República Aristocrática”.

Não obstante, as mudanças econômicas promovidas sob domínio civilista também

forjaram câmbios e novas questões sociais no Peru dos 1900 e 1910. A população de Lima,

de poder do Estado oligárquico (cf. BURGA e FLORES GALINDO, 1981, p. 89; KLARÉN, 2008, p. 344).

32 Klarén explica (2008, p. 345): “A raça, a etnia, a língua (os índios falavam quíchua e aimará), a geografia e o caráter fragmentado da sociedade rural, tudo atuava para dividir as massas, dando condições à classe governante de exercer um certo controle sobre o país”. O autor observa, porém, que durante a “República Aristocrática” o que houve foi um controle tênue, e nunca absoluto.

33 Mariátegui (1994, p. 2181) registra suas impressões em versos: “Mi vida en este instante tiene un vulgar teorema: / a las seis de la tarde el landó y el cinema, / a las siete el fastídio y a las ocho el cocktail”.

32

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por exemplo, que era de 104 mil em 1891, passou a 141 mil em 1908 e 224 mil em 1920 (e

seguiria a 384 mil em 1932). A capital do Peru refletia, através de seu crescimento

demográfico, sua condição de centro financeiro e administrativo da economia de

exportação em crescimento. Na mesma medida, crescia também a força de trabalho, com a

formação de uma classe trabalhadora vinculada principalmente ao processamento de

alimentos e à indústria têxtil34.

Não demoraria, assim, a surgirem os primeiros sinais de um movimento trabalhista

organizado. A Federação de Trabalhadores da Panificação, criada em 1905, seria uma das

primeiras a almejar objetivos proletários, especialmente a redução da jornada de trabalho.

Também surgiram sociedades de socorro mútuo (em 1911 já eram aproximadamente 62),

mas com finalidades mais associativas do que de luta política. O caráter de militância

anticapitalista do movimento trabalhista foi inspirado, de fato, pelos anarquistas,

culminando em 1911, em Lima, na primeira greve geral da história do país (KLARÉN,

2008, p. 348). Mas a formação da classe trabalhadora não se dava apenas em Lima. Além

do porto de Callao – associada à capital do país – grandes encraves proletários também

surgiram na extensão da costa norte peruana, especialmente no setor rural de exportação,

com mais ênfase na indústria do açúcar. Por outro lado, surgiam no mundo rural formas de

contrato de trabalho que combinava traços pré-capitalistas de trabalho forçado às novas

exigências da agricultura capitalista de mão-de-obra assalariada – o chamado enganche35.

No sul, as lavouras de algodão se expandiam, ameaçando comunidades indígenas e o

conjunto da população campesina que, frente à monopolização da terra e dos recursos

naturais pela nova burguesia rural, viu-se obrigada a migrar para as grandes lavouras e

também para as atividades de mineração. Estes migrantes, junto aos pequenos proprietários

cujas propriedades foram absorvidas pelas grandes fazendas, passaram a constituir um novo

proletariado rural. O resultado, após a Primeira Guerra Mundial, seria a ampliação dos

34 O crescimento é expressivo: segundo Peter Blanchard (1982, p. 11-12), o número de trabalhadores passou de 9.548 em 1876 para 23.879 em 1908 e 44.327 em 1920. A proporção em relação a população local seria de 9,5 porcento em 1876, para 16,9 em 1908 e 19,8 porcento em 1920.

35 Os enganchados eram normalmente índios e mestiços contratados mediante pagamento adiantado, o que estimulava uma situação de escravidão por dívida (KLARÉN, 2008, p. 349).

33

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círculos trabalhistas e o aumento das agitações operárias na década de 1910:

No final da Primeira Guerra Mundial, quase trinta mil pessoas trabalhavam nos engenhos de açúcar e quase 35 mil nas fazendas de algodão, uma massa crítica que logo foi atraída pelo movimento trabalhista que estava começando a galvanizar a classe trabalhadora em Lima. Algumas doutrinas, principalmente as anarco-sindicalistas, espalharam-se para o norte da capital, penetrando nas regiões de Huacho e de Trujillo. O resultado foi o alargamento do círculo de agitação trabalhista, que explodiu em greves violentas ao longo da costa em 1910, 1912, 1916 e 1919 (KLARÉN, 2008, p. 351).

Assim, o declínio do poder civilista no Peru se dará até sua conclusão, em 1919,

através de diferentes problemas sociais e políticos: a unidade do Partido Civilista, abalada

em diferentes momentos por conta das divergências internas; e o surgimento de conflitos

sociais e trabalhistas no país, em seguida às mudanças econômicas levadas a cabo no

processo de modernização da economia peruana desde 1895. As dificuldades se farão ainda

mais claras na medida em que o Estado oligárquico se demonstra incapaz de dar respostas

convincentes às crescentes tensões sociais, agravadas pela crise econômica pós-Primeira

Guerra, quando o país era governado por José Pardo (1915-1919), adotando a máxima da

repressão contra os movimentos populares do país.

Primeiros passos de Juan Croniqueur

Mariátegui e González Prada

Inicialmente exercitando suas tarefas como trabalhador gráfico, para poucos meses

depois passar à atividade de auxiliar de tipografia, Mariátegui é notoriamente reconhecido

por sua dedicação ao trabalho, bem como aos debates e discussões promovidos por seus

colegas operários na gráfica. Nesta época, o anarquismo era o pensamento predominante

entre os trabalhadores gráficos de Lima, e naturalmente Mariátegui se aproximou destes

núcleos de reflexão anarquista. Animado por José Campos, periodista de La Prensa através

34

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de quem Mariátegui teve seu primeiro contato com o órgão jornalístico, Mariátegui

conhece pessoalmente o já ilustre Manuel González Prada e também seu filho, Alfredo,

com quem desenvolverá profícua amizade.

González Prada provinha de uma família de apoiadores da causa real espanhola no

Peru, com os quais rompeu seus vínculos ainda na mocidade. Na década de 1870, se

sensibilizaria à situação dos índios e campesinos peruanos, e em 1879 se posicionaria

publicamente contra as classes governantes e a Igreja Católica do país, às vésperas da

Guerra do Pacífico – que se encerraria com a derrota peruana frente aos chilenos. González

Prada serviu na guerra e, após o término do conflito (em 1883), se envolveu em uma

reflexão a respeito do destino nacional do Peru. Liderando o Círculo Literário36, via em si

mesmo a liderança de um grupo destinado a se tornar o partido radical da literatura da

época. Isto significava o início do encontro deste grupo com a vida pública. Tais ideias

começaram a ser traduzidas em ação no “Discurso en el Politeama”, declarado no dia da

independência peruana, 28 de julho, em 1888: um manifesto de repúdio às elites e ao

governo peruano, à Igreja, àquilo que representava o que havia de retrógrado; e de

exaltação à ciência e aos povos oprimidos do país, especialmente os indígenas37,

reivindicando a afirmação do novo:

Hablo (…) de la ciencia positiva que en sólo un siglo de aplicaciones industriales produjo más bienes a la Humanidad que milenios enteros de teología y metafísica. Hablo, señores, de la libertad para todos, y principalmente para los más desvalidos. (…) En esta obra de reconstitución y venganza no contemos con los hombres del pasado: los troncos añosos y carcomidos produjeron ya sus flores de aroma deletéreo y sus frutas de sabor amargo. ¡Qué vengan árboles nuevos a dar flores nuevas y frutas nuevas! ¡Los viejos a la tumba, los jóvenes a la obra! (GONZÁLEZ PRADA, 2004, p. 24-25)

González Prada reivindicava a crítica radical da política peruana, na qual enxergava

36 Conhecido antes de 1886 como Bohemia Literaria, o grupo foi criado por Luis M. Márquez, e agregava inicialmente um grupo de escritores socialmente militantes. Quando Márquez abdica a presidência do grupo, González Prada assume sua liderança (CHAVARRIA, 1970, p. 261).

37 González Prada também procurava trazer ao debate a centralidade do dilema indígena, e o dever de sua integração à cultura nacional e à sociedade peruana, orientação que abriu portas para o desenvolvimento da militância indigenista. Compartilhavam das ideias de González Prada as escritoras Juana Manuela Gorriti e Clorinda Matto de Turner (CHAVARRIA, 1970, p. 262).

35

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apenas oportunismo e descrédito. Em “Propaganda y Ataque”, publicado em 1889, deixaria

muito claro o papel do escritor na referida conjuntura, exigindo-lhe o dever de inferir-se na

política para desacreditá-la, dissolvê-la e destruí-la (GONZÁLEZ PRADA, 2004, p. 73).

Em 1891 o Círculo Literário torna-se um partido político, a União Nacional. Esta,

porém, não ganha notoriedade política, permanecendo pequena e restrita no cenário político

peruano38. No mesmo ano, González Prada parte para a Europa, onde permanece por sete

anos, e tem contato com outras ideologias da época, como o socialismo e, especialmente, o

anarquismo, o qual abraçou em sua nova fase ideológica após seu retorno ao Peru em 1898.

Em 1902, abandona a União Nacional, quase completamente desintegrada, e passa a

contribuir com o incipiente movimento de trabalhadores da cidade de Lima, se tornando

uma das principais influências doutrinárias de trabalhadores e estudantes universitários,

através de seus escritos e discussões em grupo, até 1918, ano de sua morte (CHAVARRÍA,

1970, p. 265).

O contato com a família González Prada abre a Mariátegui um novo horizonte em

sua formação intelectual, organizando e aprofundando leituras poéticas e de narrativas

contemporâneas, relacionadas ao que havia de mais representativo da intelectualidade

peruana da época, o que lhe permitia ampliar sua formação humanista. O olhar do jovem

Mariátegui para González Prada era bastante alimentado pela admiração, porém, a partir do

ângulo literário. Anos mais tarde, esclareceria o fato de a obra literária de González Prada

lhe ser mais atraente do que suas ideias políticas anarquistas: “si nos sentimos lejanos de

muchas ideas de González Prada, no nos sentimos, en cambio, lejanos de su espíritu”

(MARIÁTEGUI, 2007, p. 220). Rouillón, curiosamente, também faz notar no jovem

Mariátegui o distinto reconhecimento da qualidade literária de González Prada, à revelia de

seu anti-clericalismo: “Para él, bastaba que escribiera poemas para tenerle simpatía y

disculparle, en cierta forma, su ateísmo y credo libertario” (ROUILLON, 1975, t. 1, p. 77).

38 Além das dificuldades de integração do partido ao sistema político peruano (seu programa estava em completo desacordo com a forma de funcionamento da política no país), a hegemonia dos militares e do Partido Civilista também foram severos obstáculos ao crescimento do grupo. Durante a estadia de González Prada na Europa, a União Nacional se aproximou do Partido Liberal – atitude esta profundamente criticada por González Prada (CHAVARRÍA, 1970, p. 264).

36

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A experiência de La Prensa e a fome literária de Mariátegui

As atividades de Mariátegui em La Prensa serão interrompidas três meses após seu

ingresso no periódico, quando as lideranças do órgão de imprensa são detidas e o diário

fechado por catorze meses pelo regime do presidente Augusto Leguía39. Passado este prazo,

Mariátegui retoma suas atividades no periódico, assumindo novas tarefas que o aproximam

da redação de La Prensa, como a responsabilidade de transportar os artigos originais dos

colaboradores do jornal. A primeira publicação de Mariátegui, porém, se daria de modo

clandestino. À época, o jovem não tinha autorização para escrever para o periódico, de

modo que agiu espertamente ao escrever, como se fosse um correspondente estrangeiro, um

artigo com a devida advertência de “especial para La Prensa”. As “Crónicas madrileñas”,

um artigo sobre “esta alegre y bella capital de España” e de “todo aquello más interesante y

seductor” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 2269), discorria sobre a política republicana na

Espanha. Foi o primeiro artigo de Mariátegui sob a firma de seu pseudônimo mais famoso,

Juan Croniqueur. A publicação do texto em La Prensa, em 24 de fevereiro de 1911,

despertou uma confusão na redação. O diretor, Alberto Ulloa, iniciou uma ampla

investigação para descobrir como o texto havia passado pelo controle do diário – afinal,

quem poderia ser Juan Croniqueur? – e se irritou ainda mais ao descobrir que a travessura

periodística coube ao jovem José Carlos40, proibido, dali em diante, de publicar qualquer

texto sem a devida autorização da direção de La Prensa. O episódio, porém, evidenciou a

qualidade de Mariátegui como escritor, e foi o primeiro passo para uma participação mais

efetiva no periodismo limenho.

A trajetória de Mariátegui em La Prensa, passando pela gráfica até assumir a tarefa

39 Segundo Bruckmann (2009, p. 22), em 29 de maio de 1909 um grupo dirigido por Isaías de Piérola toma de assalto o despacho presidencial e coloca em cativeiro o presidente Leguía. Esta tentativa de golpe de Estado é rapidamente desarticulada,. A direção de La Prensa, acusada de apoiar o ato, é presa; e o jornal, fechado temporariamente.

40 Alberto Ulloa, de fato, apenas acreditou que o autor do texto era realmente Mariátegui ao ter acesso a uma carta, escrita pelo próprio funcionário, marcada pelo mesmo estilo elaborado registrado no artigo em questão (BRUCKMANN, 2009, p. 23).

37

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de periodista41, foi uma relevante experiência de formação intelectual. Isto permitiu a

Mariátegui envolver-se com calorosos debates sobre arte, literatura e política, promovidos

por aqueles vinculados ao trabalho de La Prensa.

A este tempo, o modernismo proporcionava um clima de fecunda atividade cultural

e artística a partir de um movimento de ruptura com os valores estéticos vigentes e com

profundo espírito contestador que se relacionava ao proletariado emergente nas cidades e ao

aumento da agitação política. O modernismo peruano recebeu grande inspiração de Rubén

Darío e José Enrique Rodó42, e fomentou debates entre diversos intelectuais peruanos43. O

jovem Mariátegui, nesta época, dedicava-se não apenas à leitura de vários escritores da

literatura universal44 como também, e sistematicamente, à leitura da imprensa internacional,

além de participar das reuniões da direção de La Prensa, onde era discutida a realidade de

seu país. Envolveu-se também, e cada vez mais, com a vida cultural limenha: os cafés, os

teatros e os círculos de debates promovidos pela boemia literária local45.

Mariátegui dizia: “En mi época de diarista, escribía en cualquier parte y a cualquier

hora”46 (MARIÁTEGUI, 1987a, p. 143). O vínculo com o periodismo permitiu a

Mariátegui o desenvolvimento de uma atividade febril como escritor, escrevendo sobre

assuntos tão diversos quanto os estilos de escrita que dominava: crítica literária e de arte, 41 Mariátegui assumiu seus primeiros trabalhos como periodista ao substituir Hermilio Valdizán, que era

redator das crônicas policiais. Segundo Rouillón (1975, p. 98), Valdizán teve importante contribuição no aprendizado de Mariátegui a respeito da tarefa informativa.

42 O principal ensaio de Rodó, Ariel (1900) inspirou a reafirmação dos valores humanistas na cultura latino-americana e a resistência à onda de pessimismo que permeava o pensamento social. Neste sentido, também criticou o utilitarismo e a mediocridade democrática dos Estados Unidos. Mas apesar de aclamado idealismo, Ariel é escrito em moldes positivistas, revivendo uma concepção histórica de raça que não esclarece sua raiz (hispânica? Indígena e negra? Latina?) (cf. RODÓ, 1991, p. 72). Segundo Hale (2009, p. 385-386), esta ambiguidade seria ponto de partida para diversas tendências de pensamento no século XX.

43 Podem ser citados nomes como González Prada, Frederico More, Abraham Valdelomar, Enrique Bustamante y Ballivián, Félix del Valle, Antonio Garland, Alejandro Ureta, César Falcón, Pablo Avril de Vivero, Lonidas Yerovi, entre outros.

44 Bruckmann (2009, p. 24) menciona alguns deles: Miguel de Unamuno, Azorín, Valle-Inclán, Rubén Darío, García Calderón, Gómez Carrillo, Amado Nervo, Giovani Pascoli, Gabrielle D'annunzio, Oscar Wilde, Stéphane Mallarmé, Guillaume Apollinaire, Paul Verlaine e Gustavo Adolfo Bécquer.

45 Cabe relembrar que a formação autodidata de Mariátegui se dava em um ambiente, em sua maior parte, dominado pelo positivismo conservador de Javier Prado, Francisco García Calderón e José de La Riva Agüero, e também pelo pensamento de González Prada (BRUCKMANN, 2009, p. 24; ROUILLÓN, 1975, p. 147).

46 Variedades, Lima, 9 de janeiro de 1926.

38

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contos, poemas, crônicas, ensaios, peças de teatro, etc. A maior parte da produção, porém,

se concentraria nos artigos e nas crônicas. Mariátegui confessaria, em meados de 1918, sua

predileção pela vertente literária, e que ao periodismo devia seu sustento econômico e seu

reconhecimento público47. Não obstante, o periodismo absorveria sua produção intelectual

e, pouco antes de 1918, já deixaria de escrever contos ou poesias. É relevante, porém, que

de primeiro de janeiro de 1914 a 22 de junho de 1918 Mariátegui tenha escrito mais de 700

textos, o que atesta sua produtividade e dedicação à escrita (FLORES GALINDO, 1982, p.

122).

Com sua aguda intervenção jornalística, que já o destacava no interior do

periodismo limenho a partir dos 20 anos, Mariátegui escrevia regularmente em La Prensa,

onde chegou a assumir a ocupação de cronista parlamentar, fato que lhe permitiria avançar

na compreensão do processo político peruano e também mundial. Além disso, também

colaborava com Mundo Limeño, revista semanal de literatura, moda e novidades; El Turf,

revista de grande circulação e dedicada à aristocracia de Lima, aficionada às corridas

hípicas; e outras pequenas publicações, como Lulú, dedicada às celebridades artísticas de

Lima.

A experiência colonidista

Em 1916, Mariátegui ingressa no grupo Colónida, capitaneado por Abraham

Valdelomar48 (1888-1919), cronista de La Prensa cuja principal marca era o radicalismo da

recusa de qualquer tipo de arte, e/ou vida passível de assimilação pelas elites limenhas

(ESCORSIM, 2006, p. 59). Em torno da liderança de Valdelomar, Colónida apresentava-se

47 “Si yo me gobernara, en vez que me gobernara la miseria del medio, yo no escribiría diariamente, fatigando y agotando mis aptitudes, artículos de periódico. Escribiría ensayos artísticos o científicos más de mi gusto. Pero escribiendo versos o novelas yo ganaría muy pocos centavos porque, como este es un país pobre, no puede mantener poetas o novelistas”. Em “Mariátegui explica su artículo de Nuestra Época”. El Tiempo, Lima, 27 de junho de 1918 (MARIÁTEGUI, 1994, p. 2543)

48 Mariátegui e Valdelomar, que vieram a trabalhar juntos em La Prensa, nutriam grande amizade, e chegariam a escrever conjuntamente uma adaptação teatral de um dos textos de Valdelomar, La Mariscala.

39

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como um movimento de renovação e de ruptura dos cânones estéticos e dos valores da

literatura nacional, denunciadas como portadoras de um espírito colonial, perseguidoras

medíocres da literatura espanhola. Contra tais práticas, os colonidistas reivindicavam novos

modelos estéticos, e tinham na obra de González Prada uma de suas principais fontes de

inspiração. Representava, neste sentido, um espírito de contestação, antiacadêmico, frente a

influência conservadora e oligárquica que dominava o ambiente intelectual e literário

peruano.

A revista publicada pelos colonidistas, batizada com o mesmo nome do movimento,

foi efêmera – teve apenas quatro edições49. Segundo Wiesse (1988, p. 15), Mariátegui

publicou em uma de suas edições três sonetos, sob a alcunha de Juan Croniqueur, que

faziam parte de um livro de poemas que elaborava por iniciativa própria, e que receberia o

título de Tristeza – trabalho este que não veio a ser publicado.

Apesar de seu ethos revoltoso, Colónida não representou um projeto com claras

consequências estéticas e políticas. Mariátegui, anos depois, ao tecer comentários sobre a

experiência de Colónida, esclareceria os problemas da inefetiva crítica antielitista do

movimento, bem como de sua negação e ignorância da política:

Fugaz meteoro literario, no pretendió nunca cuajarse en una forma. No impuso a sus adherentes un verdadero rumbo estético. El “colonidismo” no constituía una idea ni un método. Constituía un sentimiento ególatra, individualista, vagamente iconoclasta, imprecisamente renovador. (…) Los “colónidos” no coincidían sino en la revuelta contra todo academicismo. Insurgían contra los valores, las reputaciones y los temperamentos académicos. Su nexo era una protesta; no una afirmación. (…) El “colonidismo” negó e ignoró la política. Su elitismo, su individualismo, lo alejaban de las muchedumbres, lo aislaban de sus emociones. Los “colónidos” no tenían orientación ni sensibilidad políticas. La política les parecía una función burguesa, burocrática, prosaica. La revista Colónida era escrita para el Palais Concert y el jirón de la Unión (MARIÁTEGUI, 2007, p. 235-237)

No mesmo ano, os caminhos de Mariátegui mudariam no âmbito da imprensa.

Apesar da importância de La Prensa no início da carreira do jovem jornalista, divergências

49 Respetivamente: 18 de janeiro de 1916; 1º de fevereiro de 1916; 1º de março de 1916 e 1º de maio de 1916.

40

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a respeito das orientações políticas assumidas pelo jornal levarão Mariátegui a abandoná-lo

e assumir seu posto de periodista em outro meio de comunicação: El Tiempo50. A explicação

para esta mudança se encontra no momento em que La Prensa, antes de tendência liberal,

assume posição favorável a José Pardo, já em seu segundo mandato (1915-1919),

corroborando as posições oligárquicas do governo. Esta mudança reflete o processo de

amadurecimento das ideias de Mariátegui, especialmente no sentido de se posicionar, de

modo mais contestador, aos valores dominantes não apenas na literatura, como também na

política. Em El Tiempo, a atividade de cronista parlamentar continuará a ser desenvolvida

por José Carlos através da coluna “Voces”, que logo se converterá em uma das colunas

mais lidas do país (BRUCKMANN, 2009, p. 27).

Se Mariátegui, neste momento, participava de Colónida, isto não necessariamente

significava que o movimento saturava as preocupações do autor. As visitas ao parlamento,

recorrentes no conjunto de sua tarefa informativa, despertavam em Mariátegui uma postura

diferenciada do ethos colonidista, alheio à franca política. E o parlamento destes anos,

como nos informa Quijano (1982, p. 37) era cenário de debate entre opções ideológicas e

de conflitos políticos dentro da coalização dominante, antes da derrota das frações

senhoriais que culminariam no golpe de Augusto Leguía em julho de 1919. Além disso,

eran también los años de la prédica wilsoniana, cuyos ecos resonaban también en el Perú, junto con los de las tempestades políticas europeas, particularmente el triunfo de la revolución rusa, y los primeros impactos de la revolución mexicana, mientras se extendian las luchas obreras y la influencia del anarquismo y el anarcosindicalismo, y los jóvenes de las nuevas capas medias intelectuales iniciaban su enfrentamiento a la educación oligárquica en la universidad (QUIJANO, 1982, p. 37)

Esta tarefa tornava-se, assim, porta de entrada para um olhar mais agudo sobre os

problemas políticos e sociais peruanos, e também do mundo, que a esta época se tornavam

cada vez mais agitados.

50 De orientação leguísta, foi fundado em 14 de julho de 1916.

41

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O misticismo e a emoção religiosa em Juan Croniqueur

Mariátegui aprofundava suas aventuras no jornalismo político, e também continuava

a escrever suas crônicas sociais e hípicas (assumindo a co-direção de El Turf em 1916).

Neste ano, também publicou um soneto que expressa muito de seu misticismo, sempre

presente em sua adolescência. O contato de Mariátegui com ideias questionadoras do status

conservador da literatura da sociedade peruana, mesmo que situada no âmbito de um

questionável espírito anárquico, parecia longe de desafiar a permanente fé de Juan

Croniqueur.

Não significava que Mariátegui estivesse isolado em seus questionamentos místicos:

Flores Galindo comenta que Juan Croniqueur era fiel ao seu tempo. O Peru, de fato,

apresentou entre seus pilares intelectuais um critico voraz da religião, como o foi González

Prada. A poesia de Alberto Hidalgo também se aproximava desta orientação. Mas a

religiosidade permeava a vida cotidiana de todas as classes no Peru, inclusive entre

intelectuais como Abraham Valdelomar, César Vallejo e Aguirre Morales. Mas Mariátegui,

sob o olhar do comentarista peruano, seria aquele que viveria com maior intensidade sua

experiência mística – compreendida como a relação pessoal, individual e solitária com

Deus. Uma concepção, observa, que será variante ao longo do tempo (FLORES

GALINDO, 1982, p. 138).

Um episódio que explicita bem as preocupações profundamente místicas do jovem

Mariátegui é o de sua ida ao Convento de los Descalzos, em fevereiro de 1916, durante os

dias das festividades de carnaval. Em meio a solidão e orações, escreve dois sonetos: “La

voz evocadora de la capilla”, e um de seus poemas mais célebres, “Elogio de la celda

ascética”51 (MARIÁTEGUI, 1994, p. 2178):

Piadosa celda, guardas aromas de breviario,tienes la misteriosa pureza de la cal,y habita en ti el recuerdo de un Gran Solitarioque se purificara del pecado mortal,

51 Publicado em El Tiempo, Lima, 28 de agosto de 1916.

42

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Sobre la mesa rústica duerme un devocionarioy dice evocaciones la estampa de un misal:San Antonio de Padua, exangüe y visionariotiene el místico ensueño del Cordero Pascual.

Cristo Crucificado llora ingratos desvios.Mira la calavera com sus ojos vaciosque fingen en las noches una inquietante luz.

Y, en el rumor del campo y de las oraciones,habla a la melancólica paz de los corazonesla solidad sonora de San Juan de la Cruz.

A este modo de expor suas angústias místicas poderíamos acrescentar também

outros textos , como “La plegaria del cansancio” e “Plegaria nostalgica”, também escrita

em 1916, na qual afirmava: “Está lejos de mi la fragancia / de la mistica fe de mi infancia /

que guardaba con blanco cariño. / Siento el hondo dolor de la duda / y solloza mi cántiga

muda / por el don de volver a ser niño” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 2182). Juntos, literatura e

religião confluíam na escrita de José Carlos Mariátegui, a medida que buscava expressar

suas impressões místicas, seus atos de fé.

A religiosidade de Mariátegui em sua juventude não é um objeto totalmente

controverso. Citamos Flores Galindo, mas outros escritores como Guillermo Rouillon,

Anibal Quijano e, mais recentemente, Mônica Bruckmann, reconhecem na história de

Mariátegui a presença notável de uma fé religiosa, especialmente devido às origens

maternas de sua criação. Robert Paris (1981, p. 28-29), por sua vez, credita ao misticismo

de Mariátegui um aspecto mais estritamente literário – e pouco presente nos artigos

rotineiros que publicava até 1917. E Leila Escorsim argumenta que o Mariátegui que está

“em busca de Deus” volta-se menos para a aceitação de uma forma qualquer de teísmo (ou

mesmo a ideia de uma salvação pessoal) e mais para a referencialidade estética da

experiência religiosa. Seria a estetização desta experiência que estaria no núcleo do

misticismo do jovem José Carlos, uma estetização que não se resumiria ao fenômeno

religioso, mas se colocaria como uma posição global diante da vida – ou seja, a estetização

da vida social que, defende Escorsim, “é um traço característico do anticapitalismo

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romântico52, com todas as suas consequências político-sociais” (ESCORSIM, 2006, p. 56).

O argumento de Escorsim se baseia, especialmente, em uma análise de outro famoso

texto publicado por Mariátegui, em 1917, acerca das festividades do Senhor dos Milagres.

É certo que Mariátegui sustenta neste texto um olhar de especial atenção às manifestações

populares e ao comportamento das massas em face de tradições culturais e religiosas.

Veremos que Mariátegui observa o impacto emocional, sedutor, mobilizador das tradições.

Mas isto não necessariamente nos permite afirmar que o olhar arguto do jovem periodista o

distancie de uma fé particular.

Um interessante exemplo de como Juan Croniqueur se posiciona sobre a questão

está em sua “Carta a un poeta”53, artigo destinado a Alberto Hidalgo, onde exalta as

benesses e progressos do século, e reconhece na postura “insolente y audaz” de Hidalgo um

aspecto ao qual o país não está acostumado, uma postura de talentos que se despojam da

modéstia e enfrentam os riscos de considerarem, a si mesmos, grandes. Comentando a

postura do poeta perante Deus, Juan Croniqueur afirma:

Usted no niega a Dios pero no le ama y tiene usted ante él un gesto rebelde de ángel caído. Yo creo en Dios sobre todas las cosas y todo lo hago, devota y unciosamente, en su nombre bendito (…). Soy cristiano, humilde y débil y no puedo sentirme Luzbel. Y pienso que Dios me asiste y consuela cuando lo invoco (MARIÁTEGUI, 1994, p. 2523).

Mais adiante, completará: “non creo en la sinceridad de su apóstrofe a Dios y le

exhorto para que de él haga arrependimiento y contrición que le devuelvan al dulce aprisco

católico en el cual me siento tan a gusto y regalo” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 2523). Tais

assertivas evidenciam uma identidade religiosa que Mariátegui, aparentemente, nunca

desejou ocultar. De modo que, ao observarmos sua análise da procissão do Senhor dos

Milagres, podemos enxergar suas preocupações estéticas, mas também reconhecer que

52 O anticapitalismo romântico seria, para Escorsim, um traço característico do período juvenil de Mariátegui, e apenas deste momento. Neste sentido, a autora polemiza e nega a leitura proposta por Michael Löwy, que propõe classificar o já maduro Mariátegui nos quadros de um “romantismo revolucionário” (LÖWY, 1990, p. 16). Para uma discussão mais aprofundada sobre o romantismo revolucionário de Mariátegui, cf. também LÖWY, 2005.

53 La Prensa, 1º de janeiro de 1917.

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existem fundamentos místicos que não são alheios às suas preocupações intelectuais – e

que estão conectadas a sua formação familiar, o tempo histórico e a cultura da sociedade

em que se situa.

O primeiro artigo54 de Mariátegui sobre a manifestação popular do Senhor dos

Milagres apontava a procissão como um dos últimos traços do passado tradicional peruano.

Nela, a devoção dos limenhos à imagem do Cristo crucificado era justificada por sua

identificação com a tradição e os costumes populares, por meio de um crescente entusiasmo

com a festividade, um entusiasmo contrastante com o processo de “europeização” das

classes dominantes, “las personas que han visitado Paris, Londres y Nueva York y que

consideran estas resurreciones de nuestro pasado incopatibles con la cultura de una ciudad

moderna” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 2355).

Esta preocupação com o público, despontada em sua primeira análise, se tornará

mais clara no segundo texto55 sobre o tema, publicado em abril de 1917, sob a firma de

outro pseudônimo, El Cronista Criollo. Lima é lembrada como uma cidade católica, porém

não fervorosa. Ali, a fé permanece pela sobrevivência da tradição e pelo temor de um

desamparo misterioso: “No es una ciudad sentimental. Es sólo una ciudad medrosa”. Mas

uma cidade que, por ocasião das festividades, testemunha uma intensa ressurreição de seu

misticismo, sufocado pelo cotidiano moderno da cidade. E nestes momentos, saltam aos

olhos de Mariátegui as multidões movidas pelas tradições, e as emoções que promovem:

Las manifestaciones de la fe de una multitud son imponentes. Dominan, impresionan, seducen, oprimen, enamoran, enternecen. La contemplación de una muchedumbre que invoca a Dios conmueve siempre con irresistible fuerza y honda ternura. El paso de la procesión de los Milagros por las calles de Lima, produce una emoción muy profunda en la ciudad que se encuentra sorpresivamente invadida por un sentimiento ingenuo, sedante y religioso (MARIÁTEGUI, 1994, p. 2337).

Não apenas as multidões e as emoções, mas também o aspecto sacrificial dos rituais

da procissão, comovem Mariátegui. A dor e a exaustão daqueles que carregam as imagens

54 “La Procésion Tradicional”. La Prensa, 20 de outubro de 1914.55 “La Procesión Tradicional”. El Tiempo, 10 de abril de 1917.

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da procissão – homens negros e mulatos, pertencentes às confrarias responsáveis pela

condução dos símbolos católicos nas ruas de Lima – não é capaz de desanimar seus

condutores, que nunca se queixam, mas sentem prazer e regozijo em seu trabalho, além da

esperança de que o Senhor dos Milagres conduza, todos os anos, um deles ao céu56.

Em meio a detalhes dos rituais envolvidos na procissão, das diferentes pessoas que

saem às ruas, dos sentimentos ali presentes, Mariátegui traz à tona em seu premiado texto57

o reconhecimento da força das tradições e dos mitos em sua condição de mobilizar

multidões. Para além da resignação, enxerga a devoção profunda dos fiéis, o ânimo pela

oportunidade de participarem da mobilização, de se extenuarem no transporte das imagens,

flores e oferendas religiosas.

A importância deste texto deve ser considerada no conjunto dos escritos publicados

por Mariátegui naqueles anos. Oportunamente, Mariátegui publicava a respeito de

festividades religiosas, especialmente contrastando-as com os aspectos “monótonos” da

sociedade peruana e das grandes referências políticas e literárias da época. Como já

mencionamos, Mariátegui escrevia para revistas voltadas especialmente para públicos de

recorte aristocrático – são os casos de El Turf e Lulú. Antes de dar um passo mais efetivo

rumo a um periodismo claramente contestador, Mariátegui tinha um razoável envolvimento

com o mundo da alta sociedade de Lima, em certa medida fruto de suas incursões

jornalísticas e literárias. Escrevia crônicas de festividades populares religiosas, mas também

das corridas de cavalos e da monotonia dos hipódromos. O sentimento aristocrático, sua

aparente elegância, em um ambiente intelectual permeado por decadentismo, ceticismo e

individualismo, exercia fascínio sobre Juan Croniqueur58. Ficaria conhecido como um

56 Esclarece o autor: “Ellos piensan acaso que esta muerte es una muerte edificante y cristiana y que es casi un premio que los conduce a la bienaventuranza” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 2338).

57 O artigo em questão rendeu a José Carlos Mariátegui o prêmio Municipalidad de Lima, oferecido pelo Circulo de Periodistas da cidade, em 1917. No mesmo ano, Mariátegui seria eleito vice-presidente do grupo.

58 Rouillon procura apontar, por diversos momentos, o significado da sedução que o ambiente aristocrático exercia sobre o jovem José Carlos, devida especialmente ao seu anseio pela figura paterna, que jamais conheceu pessoalmente. Rouillon aponta, todavia, que as divergência de Mariátegui quanto à política oligárquica de José Pardo, ou à representação literária conservadora de Riva-Agüero, demonstram que, no fundo, a aspiração aristocrática de José Carlos era apenas um meio para se chegar ao pai, mas não para identificar-se com tal valor classista e anacrônico (ROUILLON, 1975, t. 1, p. 132).

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irônico comentarista da cotidiana realidade nacional59.

“La Procesión Tradicional”, por sua vez, parece traduzir um processo, já em curso,

de mudanças nas orientações políticas do autor, sinalizando os novos caminhos políticos a

serem traçados por Mariátegui. Reconhecia a importância do misticismo para aquelas

mobilizadas multidões das ruas de Lima, a vitalidade das tradições e dos sentimentos

religiosos para as classes populares. Tratava-se de uma mais fina aproximação ao público,

numa sociedade amplamente desigual.

Escândalo e desilusão

Naquele ano de 1917, Mariátegui não seria lembrado apenas pela qualidade de seu

trabalho como periodista, mas também pelo escândalo envolvendo ele e seus colegas

literatos juntos à bailarina Norka Rouskaya. Na noite de 4 de novembro, reuniram-se no

cemitério de Lima para uma intervenção artística: Rouskaya, vestida com véus brancos,

dançava entre as lápides, ao som da “Marcha fúnebre” de Chopin. O episódio acabou em

confusão e intervenção do prefeito e das forças policiais, que interromperam as atividades e

detiveram Mariátegui e outros líderes e convidados daquela atividade. E no dia seguinte, se

evidenciaria aos olhos de Mariátegui seu desencontro com os valores da conservadora

cultura oligárquica do Peru. Denuncias da “escandalosa” intervenção, acusações de

“profanação”: dançar no cemitério, qual fosse o motivo, se mostrava como uma

inadmissível violação das regras religiosas e sociais60.

59 Nota preliminar de entrevista concedida por José Carlos Mariátegui: “Instantaneas”. Variedades, Lima, 26 de maio de 1923 (MARIÁTEGUI, 1987a, p. 138).

60 As manchete dos periódicos limenhos, a respeito do episódio, são ilustrativas:- "Dilettantismo macabro. Un grupo de excéntricos conduce a la Rouskaya al cementerio a las 12 de la noche". La Prensa, 5 de noviembre de 1917, p. 7; - "El ruidoso asunto de la noche de anteayer. La eximia artista baila frente a las tumbas la marcha fúnebre de Chopin: ¿Arte o profanación? La bailarina y sus acompañantes son citados a la Prefectura. En la tarde de ayer Norka Rouskaya es detenida y enviada a Santo Tomás. Prisión de dos redactores de 'El Tiempo' (Falcón y Mariátegui). Actitud del Dr. Pérez, en la Cámara de Diputados. Reunión del Círculo de Periodistas". La Crónica, 6 de noviembre de 1917, p. 4-6;- "Los sucesos del Cementerio. Norka Rouskaya y sus acompañantes son puestos a disposición del Juez. Separación de los empleados de la Beneficencia Pública". El Comercio, 6 de noviembre de 1917, p. 2.

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Em resposta às acusações, coube a Mariátegui justificar-se com a defesa de sua fé e

piedade religiosa: “le pido que ricuerde que yo he hecho más de una vez alarde de mi

cristianismo, que he escrito versos místicos en el convento de los Descalzos a donde me

condujo el mismo móvil de especulación estética que me condujo al panteón”61. A situação,

porém, culminaria em mais um passo de Mariátegui rumo ao afastamento do ambiente

aristocrático, que já não correspondia mais aos seus anseios. Enquanto isso, as lutas sociais

tornavam-se cada vez mais intensas, e chegavam no Peru as notícias da Revolução de

Outubro, na Russia.

Para além de Juan Croniqueur

Primeiras divagações socialistas

Em 1917 grande parte dos textos de Mariátegui publicados em El Tiempo eram

consagrados à política nacional. Através da coluna “Voces”, Mariátegui narrava com fina

ironia o cotidiano dos políticos do país, e não se restringia mais apenas à crônica

parlamentar. Através da tarefa de enfrentar a política institucional diariamente – e pela

crítica a qual a submeterá – o absenteísmo do ethos colonidista é ultrapassado por

Mariátegui definitivamente (ESCORSIM, 2006, p. 65).

O periodismo começa a ser enxergado por Mariátegui como veículo de expressão de

um novo olhar crítico sobre a sociedade, abraçando uma tendência já vislumbrada por

outros de seus colegas de redação, como César Falcón e Félix del Valle, que a este tempo já

eram interessados em acompanhar as lutas sociais e em instruir-se acerca das ideias

socialistas. Provavelmente exerceram importante influência sobre Mariátegui nestes anos

Somente o jornal El Tiempo publicou nota em defesa de Mariátegui e César Falcón: "La verdad sobre la visita nocturna de Norka Rouskaya. Los detenidos protestan de todo propósito de profanación. El espíritu público debe contemplar serenamente este suceso". El Tiempo, 6 de noviembre de 1917, p. 1.

61 “El asunto de Norka Rouskaya / Palabras de justificación y de defensa”. El Tiempo, 10 de novembro de 1917. Citado em FLORES GALINDO, 1982, p. 136.

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(QUIJANO, 1982, p. 38), especialmente Falcón62. Se Mariátegui e Falcón saem de La

Prensa para assumir postos de redação em El Tiempo por conta de divergências políticas

frente à orientação governista assumida pelo primeiro periódico, El Tiempo, por sua vez, já

não mais podia comportar a radicalização política que os periodistas ousavam assumir. O

periódico fora criado para enfrentar a oligarquia e o governo de José Pardo, através de uma

aliança que unia antigos adeptos de Billinghurst e os novos seguidores de Augusto Leguía.

Em sua redação convergiam correntes positivistas e liberais, leguístas e billinghuristas e,

mais debilmente, a influência de González Prada e as primeiras ideias socializantes

(QUIJANO, 1982, p. 37). Percebia-se, assim, que o periódico apresentaria limites à

tentativa de dar voz às inquietações populares mais radicais da época. A necessidade de

ultrapassar estas fronteiras coloca para Mariátegui, assim como para Falcón e del Valle, a

importância de buscarem um meio alternativo de expressão de suas preocupações sociais e

posições políticas.

Em 1918 Mariátegui inicia seus primeiros estudos sobre as ideias socialistas, junto a

um grupo de jovens intelectuais sob a orientação de Victor Maúrtua63. Envolvidos no clima

político da Revolução Russa de 1917, o grupo promove leituras de trabalhos de Hegel,

Marx, Engels, Henri Bergson, Georges Sorel, Antonio Labriola, Miguel de Unamuno, Luis

Araquistain, Henry Barbusse, Romain Rolland, Jack London, colocando no centro do

debate a necessidade de transformar o mundo e o crescente interesse por entender os

grandes processos revolucionários que vive a humanidade neste período histórico

(BRUCKMANN, 2009, p. 28). A importância destes estudos se concretiza na elaboração de

uma consciência política que passa a se distanciar das influências anarquistas, bastante

repercutidas no ambiente político e intelectual das primeiras décadas do século XX. Em 62 Mariátegui e Falcón desenvolveram uma sólida amizade desde a época em que trabalharam em La Prensa,

passando juntos por El Tiempo e movidos pelos mesmos ideais que forjariam os projetos de Nuestra Época e La Razón. César Falcón (1891-1970) também participou do grupo Colónida. Sobre o amigo, Mariátegui observaria, anos mais tarde: “Falcón y yo somos, casi desde las primeras jornadas de nuestra experiencia periodística, combatientes de la misma batalla histórica”. Em “Nota polémica a 'El Conflicto Minero' por César Falcón”, publicado em Amauta, 6 de fevereiro de 1927 (MARIÁTEGUI, 1988a, p. 229).

63 Victor Maúrtua (1867-1937), jurista peruano, periodista e professor universitário, também foi deputado e ministro da Fazenda no governo de José Pardo. No grupo em questão participavam, entre outros, César Falcón, Félix del Valle, César Ugarte, Percy Gibson e Alberto Ureta,

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pouco tempo, estes jovens conformarão um comitê com o objetivo de organizarem um

partido socialista, disposto a impulsionar e contribuir com as lutas proletárias, material e

culturalmente.

É neste ano que, inspirados pelas novas ideias, Mariátegui, Falcón e outros colegas

decidem publicar a revista Nuestra Época. A nova publicação é inspirada no semanário

España64 (Madrid, 1915-1924), de orientação socialista e antimonárquica. Na primeira

edição de Nuestra Época, publicada em 22 de junho de 1918, o editorial escrito por

Mariátegui e Falcón justificava a empreitada: “creemos que comienza con nosotros una

época de renovación que exige que las energías de la juventud se pongan al servicio del

interés público”. Tratava-se da primeira tentativa de Mariátegui em construir um

periodismo independente, orientado para a análise da realidade nacional e para a afirmação

da renovação. Cumpria-se um momento de mudança na consciência política do jovem

Mariátegui que, a partir daquele momento, renunciava também ao seu pseudônimo, Juan

Croniqueur, após sete anos de diarismo. Significava isto a conclusão da ruptura com o

esteticismo e os valores aristocráticos, e uma orientação para a busca de novas ferramentas

para a compreensão dos fenômenos sociais e dos processos revolucionários em curso no

mundo (BRUCKMANN, 2009, p. 29-30).

Nuestra Época, porém, teve apenas duas edições. A curta vida da revista foi

ocasionada pela polêmica envolvendo Mariátegui e representantes das forças militares

peruanas. O polêmico artigo publicado por José Carlos, “Malas Tendências”65, trazia

posições em defesa do afastamento dos militares da política, e da priorização de

investimentos públicos em educação e trabalho, e não na militarização do país: “en vez de

pensar em acuartelar soldados pensemos en formarlos” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 2542).

Oficiais indignados com as posições expostas por Marátegui se dirigirão até as gráficas de

El Tiempo, onde Nuestra Época era impressa, para agredir Mariátegui. O mal-estar

provocado pela estúpida reação daqueles militares teria repercussão nacional,

desembocando na renúncia do Ministro de Guerra da época (ROUILLON, 1975, t. 1, p. 64 Fundada por Ortega y Gasset e dirigida posteriormente por Luis Araquistain, contou com destacados

colaboradores, como Miguel de Unamuno e Ramón del Valle Inclán (BRUCKMANN, 2009, p. 29). 65 Nuestra Época, 22 de junho de 1918.

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220), e aprofundaria as tensões entre Mariátegui e seu companheiros e a direção de El

Tiempo, que não permitiria novamente a impressão de Nuestra Época em sua gráfica.

La Razón e as lutas populares

Com a inviabilização da publicação de Nuestra Época, e as dificuldades explícitas

na relação com El Tiempo, Mariátegui e Falcón decidem assumir a tarefa de construir um

novo diário, que permitisse a difusão de suas posições políticas, de modo independente.

Proposta que se afirma na criação de La Razón.

No interlúdio entre o fim de Nuestra Época e a publicação inaugural de La Razón, o

Peru foi agitado por uma importante greve de trabalhadores têxteis, no final de 1918, que

reivindicava aumento salariais e a definição da jornada de oito horas de trabalho. As

reivindicações se alastram por outros setores da industria e logram também o apoio de

grupos estudantis, como a Federación de Estudiantes del Peru, da qual participava o então

estudante Victor Raúl Haya de la Torre. A crescente mobilização, que caminhava para a

organização de uma greve geral, é enfrentada pelo governo de José Pardo com fortes ações

repressivas que transformam as ruas de Lima em campos de batalha, com trabalhadores

mortos e vários feridos. Em sua coluna “Voces”, ainda no jornal El Tiempo, Mariátegui

publica diversas notas de solidariedade ao movimento de trabalhadores e, junto a Falcón,

converte o diário em importante meio de informações e difusão das reivindicações do

movimento paredista, o que logo se transforma em um problema para o diário, fechado por

ordem do governo de Pardo, sob a acusação de estimular as classes populares à adoção de

“atitudes extremas”66 (ROUILLON, 1975, t. 1, p. 239). Apesar das medidas repressivas, a

greve se alastra e assume contornos insustentáveis para a manutenção das posições do

governo que, no dia 15 de janeiro de 1919, decreta a jornada de oito horas. Mariátegui,

impedido de escrever por conta da censura a El Tiempo, participa ativamente das ações

grevistas e se aproxima cada vez mais dos trabalhadores organizados.

66 Nota publicada sob o título “El Paro General”, em El Comercio, Lima, 14 de janeiro de 1919.

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A greve “vitoriosa”67 representaria um importante fato na história dos trabalhadores

peruanos, marcando o ano de 1919 como um ano de avanços na organização de suas lutas,

na construção de vínculos com outros setores sociais, como o movimento estudantil, e na

elaboração de ricos processos de conscientização e formação.

Após o fim da greve e a reabertura de El Tiempo, as divergências de propósitos

tornam impossível a permanência de Mariátegui e Falcón no periódico. Após a direção do

jornal recusar uma oferta dos articulistas pela compra do diário – compra esta que, se

efetivada, permitiria a Mariátegui e Falcón atribuir maior independência a sua linha

editorial e maior proximidade com as perspectivas socialistas – eles decidem fundar o

diário La Razón68, publicado inicialmente em 14 de maio de 1919. Apesar dos recursos

limitados, La Razón já era aguardada com expectativa, devido ao prestígio de seus editores.

Em sua edição inaugural, Mariátegui justifica o propósito de seu empreendimento:

Nuestro propósito sustantivo consiste en contemplar todos los hechos y todas las situaciones con elevación de concepto y de palabra, en decir siempre la verdad, en emplear los caminos más reales para llegar hasta ella, en denunciar y combatir los vicios de nuestro régimen político y social, en trabajar por el advenimiento de esa era de democracia que tanto ansía nuestro pueblo, en defendernos de la influencia de los prejuicios que sirven habitualmente de punto de partida al criterio criollo y en difundir, sin olvido de la realidad nacional, las ideas y las doctrinas que conmueven actualmente la consciência del mundo y que preparan la edad futura de la humanidad69 (MARIÁTEGUI, 1994, p. 2548)

Defendendo os princípios da independência política (diante da conjuntura de

disputas partidárias que se formava no Peru), o compromisso doutrinário e de ideias

patrióticas, e a difusão de ideias que preparam “la edad futura de la humanidad”, La razón

rapidamente se torna o principal meio de informação e articulação do movimento sindical,

estudantil e popular. Em suas oficinas de redação circulam dirigentes e ativistas de

diferentes movimentos sociais de Lima e do resto do país, como Adalberto Fonkén e

67 Como faz notar Paris (1981, p. 90), o decreto nunca foi concretamente aplicado pelo governo de Pardo.68 O novo periódico conta com o apoio de alguns políticos liberais, e com o apoio financeiro de um

comerciante cubano. A dificuldade de encontrar uma gráfica para a impressão das edições foi superada através de um acordo com o Arcebispado de Lima, sob o compromisso de que o novo periódico não atacasse a Igreja (BRUCKMANN, 2009, p. 35).

69 “Palabras Preliminares”. La Razón, 14 de maio de 1919.

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Nicolás Gutarra, militantes operários anarquistas, e o dirigente estudantil Haya de la Torre.

Tal espaço propiciava um ambiente de troca de experiências e ricos debates sobre a política

e as lutas sociais do país.

Maio a Julho são meses de grande importância em 1919, quando se assiste a novas

mobilizações dos trabalhadores em defesa da redução do custo de vida e pela denuncia da

escassez de subsistências que afetavam as famílias de trabalhadores do país, através do

Comité Pro Abaratamiento de las Subsistencias, criado em abril de 1919. A nova resposta

repressiva do governo de José Pardo, com mortos, feridos e presos, conduz os trabalhadores

a decretarem nova greve geral, em 28 de maio de 1919, sem, no entanto, alcançar suas

reivindicações com o mesmo sucesso de antes. Os estudantes, por sua vez influenciados

pelo movimento de reforma universitária de Córdoba (Argentina), defendiam a

modernização da universidade e se opunham ao tradicionalismo universitário sobre o qual

se baseavam os grupos oligárquicos que dirigiam a política peruana, cujo centro

encontrava-se na tradicional Universidad San Marcos. O ápice das lutas estudantis se dá na

instalação de uma greve geral universitária de aproximadamente quatro meses (PARIS,

1981a, p. 96). O movimento estudantil não era homogêneo – comportava grupos

conservadores, mais afinados com as elites oligárquicas; e também grupos emergentes, que

melhor se relacionavam com trabalhadores e com maior sensibilidade aos problemas

sociais e políticos da época. A participação destes últimos, porém, traria grande

contribuição às lutas daquele tempo, com proximidade aos trabalhos de La Razón.

O papel cumprido pelo novo diário dirigido por José Carlos Mariátegui e César

Falcón não passaria imune às ameaças políticas do período. A crítica ácida dos editores de

La Razón à política local incomodava profundamente os políticos tradicionais. E quem

daria a principal resposta aos jovens jornalistas seria Augusto Leguía, então presidente do

Peru, que havia assumido o posto após um golpe que destituiu José Pardo do poder, em 4 de

julho de 191970. O novo presidente – em seu segundo mandato – procuraria reforçar a ideia

70 Leguia havia vencido as eleições presidenciais peruanas de maio de 1919, com vantagem sobre o candidato situacionista, Antero Aspíllaga. A lei eleitoral peruana, porém, previa que, caso a vitória não fosse por maioria absoluta, o parlamento tinha a prerrogativa de designar o novo presidente. O golpe teria funcionado, assim, como uma espécie de ato preventivo contra um parlamento de inclinação civilista.

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de que representava uma ruptura radical com a velha política, representada pelos civilistas.

Assim como Billinghurst, Leguia buscava ter sua imagem respaldada pelos movimentos

populares, que pelos menos em caráter temporário responderam positivamente ao leguísmo.

Trabalhadores detidos nas manifestações de maio foram libertados pelo novo governo. Do

outro lado, porém, La Razón seguia com uma linha editorial francamente crítica ao novo

governante, respaldando-se no apoio cada vez maior que encontrava nos setores

organizados dos trabalhadores71.

O ápice da crise entre o governo e o periódico é a publicação de um comentário de

César Falcón intitulado “La Patria Nueva”, em referência ao novo governo (que assim se

nominava), e que carregava o subtítulo: “Un personal senil e claudicante” (ROUILLON,

1975, t. 1, p. 290). Voltava-se para a análise das principais figuras do novo regime. A crítica

acirrou os ânimos dentro do governo. O arcebispado de Lima, que alimentava boas relações

com o governo, cancelou o contrato de impressão das edições de La Razón – de certo

modo, um mecanismo que o governo de Leguía encontrou para enfraquecer a publicação,

evitando o conflito direto com ela e com os movimentos sociais. Apesar dos esforços de

Mariátegui e Falcón, La Razón não encontraria outra gráfica em que pudesse ser impressa.

Em seguida, os editores de La Razón serão “convidados” pelo regime de Leguía para

trabalharem como “agentes de propaganda” do governo peruano no exterior – o que, na

verdade, nada mais era do que um exílio dissimulado72.

Em 8 de outubro de 1919, Falcón e Mariátegui embarcam rumo a Europa, com

breve escala em Nova York. Falcón se dirigiria à Espanha; Mariátegui, à França, e depois à

Itália.

Proclamando-se “presidente provisório” e em seguida dissolvendo o parlamento, foi confirmado meses mais tarde como “presidente constitucional” (PARIS, 1981a, p. 102; KLARÉN, 2008, p. 366).

71 Na ocasião da libertação dos trabalhadores presos em maio de 1919, o movimento sindical comemorou o episódio justamente nas dependências de La Razón, aclamando aos seus diretores. Paris (1981a, p. 105) chega a citar a declaração de um destes presos, Nicolás Gutarra, em que dizia que o periódico em questão era o único periódico que, em um clima de conservadorismo e em momentos difíceis, havia defendido as causas do povo.

72 Cita Rouillon (1975, t. 1, p. 310) uma declaração de Falcón: "Un pariente suyo (refiriéndose a Piedra familiar de Leguía) fue a vernos y habló a solas con Mariátegui y conmigo. Al final, los dos entendimos esta frase sin equívocos: O fuera del país o en la cárcel. Podríamos escoger; sin embargo, no escogimos. El gobierno escogió por nosotros".

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***

Buscou-se, neste momento inicial, demonstrar a trajetória das ideias de José Carlos

Mariátegui enquanto periodista na década de 1910, antes de sua viagem à Europa.

Reconhecendo não uma ruptura absoluta, mas um processo de amadurecimento, com

tensões e continuidades, entendemos que os episódios vividos por Mariátegui nesta época

contribuem para a compreensão das ideias que o autor defenderá futuramente, quando de

seu retorno ao Peru e de seu compromisso com a consolidação de um processo

revolucionário no país.

Com vistas a adensar a pesquisa sobre o tema religioso em seus escritos, era

fundamental situar a evolução histórica das relações estabelecidas entre as ideias políticas

seculares e religiosas, que tomaram formas conflituosas no panorama geral da América

Latina do século XIX e início do século XX, mas que no caso peruano não se transformou

em uma exacerbada divergência, como ocorrido no México. Críticas, evidentemente,

existiram – como se enxerga nos escritos de González Prada, que para a geração intelectual

de 1919 se tornaria um ícone. Porém, também foi recordada a importância assumida pelos

sentimentos e símbolos religiosos que permeavam a cultura dos peruanos, e também a força

que a moral religiosa comportava no interior da sociedade daquele país, tanto entre as

camadas populares, fossem elas urbanas ou campesinas, quanto entre as elites do país.

O jovem Mariátegui, através de seus textos, procura lidar com estes aspectos e

sentimentos que permeiam os peruanos de seu tempo. Através de suas poesias e suas

crônicas, faz confluir sob sua pena seus anseios literários e suas angústias e emoções

religiosas. Somados a isto, uma preocupação política incipiente que, com o passar dos anos

e o envolvimento de Mariátegui com iniciativas inovadoras de contestação literária como

Colónida, bem como sua dedicação à crônica parlamentar e aos debates políticos dos cafés,

círculos sociais e redações em que trabalhou, se tornaria avançada e disposta à construção

de um novo futuro para a humanidade.

Como ainda falamos de ideias a caminho do amadurecimento, cabe observar alguns

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pontos a respeito das preocupações demonstradas por Mariátegui. Primeiro, a percepção

que desenvolve José Carlos a respeito da importância dos mitos e das tradições no interior

das massas não deve ser tomado como um elemento definitivo, mas um ponto de partida,

algo que contribui, no desenvolvimento intelectual do autor, para as futuras reflexões que

tecerá a respeito da força “religiosa”, “mística”, dos socialistas revolucionários. Certamente

o premiado texto de Mariátegui, lembrado neste capítulo, revela uma empatia singular do

jovem escritor aos setores populares que especialmente compõem a celebração do Senhor

dos Milagres. Não obstante, é necessário considerar que as preocupações de Mariátegui em

distinguir a “dimensão religiosa” da empreitada socialista e o racionalismo incrédulo da

burguesia – incapaz de celebrar um mito que a mova na história – também serão

amadurecidas no conjunto das leituras e dos aprendizados intelectuais que Mariátegui

obterá em sua estadia na Europa, especialmente a partir do contato mais profundo com as

ideias de Georges Sorel e seu “sindicalismo revolucionário”.

Segundo, devemos ser cuidadosos a respeito dos primeiros contatos de Mariátegui

com as ideias socialistas. É admissível que Mariátegui já estivesse disposto a lidar com

novas ideias e projetos políticos de caráter socializante e democrático, mas é inseguro

afirmar que Mariátegui já tinha clara consciência de suas ideias como socialistas. Esta

suposição é defendida por estudiosos como Diego Messeguer Illán (1974, p. 57), que

afirma que, apesar das indicações de Mariátegui em defesa de novos ideais, sua ideologia

ainda não está clarificada, fato que se dará a partir de sua estadia europeia; por sua vez,

Quijano (1982, p. 39), dirá que as ideias socialistas de Mariátegui correspondem, nesta

época, a uma orientação democrática radicalizada por elementos socializantes. Ricárdez

(1978) chega a afirmar em seu ensaio que o declarado socialismo de Mariátegui é, porém,

um socialismo pequeno-burguês, vago, fortemente tingido de liberalismo. Mas estas

observações não rebaixam, evidentemente, o compromisso assumido por Mariátegui com

os trabalhadores organizados. Na verdade, isto explicita o processo de transformação dos

objetivos que Mariátegui assumia para sua vida política, a sua “opção de classe”, sem

contudo nos permitir afirmar que Mariátegui já tivesse em mente um projeto político

concreto e referências socialistas consolidadas em seu pensamento.

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Por fim, nota-se que nos textos publicados por Mariátegui em Nuestra Época e La

Razón o tema religioso não é recordado. Quando Rouillon (1975, t. 1, p. 209-210) observa

este ponto, afirma que, mesmo sem recorrer ao tema religioso, haveria em Mariátegui a

preocupação de manter um ideal socialista que não dissolvia suas raízes religiosas (e nos

parece que, diferentemente dos autores citados logo acima, Rouillon defende que

Mariátegui já expressa, antes de sua ida à Europa, preocupações socialistas claras). Mas é

necessário recordar a gravidade do momento histórico vivido especialmente no ano de

1919, em que o envolvimento político de Mariátegui através de La Razón assumiu feições

inéditas na vida do jovem escritor. Certamente isto exemplifica uma mudança de

prioridades temáticas e de preocupações pessoais, fortemente simbolizadas no momento em

que já não mais assina seus artigos sob a firma de Juan Croniqueur, mas propriamente

como José Carlos Mariátegui; e respaldada em sua busca por constituir um periodismo

independente e politicamente engajado em um novo projeto político e de sociedade para o

Peru. Não significa, porém, o abandono ou o desprezo pelo tema religioso que, como se

fará mostrar nos próximos capítulos, contribuirá significativamente com o desenvolvimento

das próprias ideias revolucionárias do autor.

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Cap. 2 – Mariátegui na Itália – 1919 - 1923

Os caminhos de José Carlos Mariátegui em sua estadia europeia, entre 1919 e 1923,

lhe apresentarão situações de grande euforia e estímulo intelectual, e que serão afirmadas

mais tarde pelo próprio socialista como momentos que ajudaram a definir o projeto político

e de vida que defenderia para o seu país. Segundo suas próprias palavras,

Por los caminos de Europa, encontré el país de América que yo había dejado y en el que había vivido casi extraño y ausente. Europa me reveló hasta qué punto pertenecía yo a un mundo primitivo y caótico; y al mismo tiempo me impuso, me esclareció el deber de una tarea americana (MARIÁTEGUI, 1987, p. 192)

Desembarcando no porto francês de Le Havre e, logo em seguida, dirigindo-se à

capital francesa, no mês de novembro de 1919, os amigos César Falcón e Mariátegui se

separam em Paris – Falcón segue para a Espanha, enquanto José Carlos permanece cerca de

40 dias em território francês antes de se dirigir definitivamente à península itálica. Período

curto, mas bastante aproveitado pelo jovem peruano em termos de conhecimento cultural,

político e intelectual. Com base em sua experiência como cronista parlamentar, chegou a

acompanhar algumas das reuniões da Câmara de deputados francesa. Marcariam sua

memória as experiências de seu contato pessoal com o grupo responsável pela organização

da revista Clarté e com alguns de seus principais organizadores – Romain Rolland e Henri

Barbusse. Mariátegui e Barbusse, especialmente, se conheceram nas oficinas de Clarté,

estabelecendo uma relação de impacto e influência recíproca. Anos mais tarde, Mariátegui

dedicará artigos e ensaios às ideias do autor francês73, além de manter uma constante troca

de correspondências e revistas, e de introduzir uma de suas obras para o espanhol (Con el

cuchillo entre los Dientes, em 1924), o que permite delinear que Mariátegui tenha em

Barbusse uma relevante influência intelectual. Imerso em um ambiente atravessado pelas

sequelas da Primeira Guerra Mundial, Mariátegui parecia se identificar com os

apontamentos de Barbusse, de certo modo também reivindicadas pelo grupo Clarté, a

73 Publicados em La Escena Contemporánea (1925) e também na revista Amauta.

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respeito do indubitável declínio da sociedade capitalista e da necessidade de um

renascimento espiritual da Humanidade (VANDEN, 1975, p. 26-27; 30)74. Outro elemento a

impactar Mariátegui durante seu curto período em Paris é o conjunto de manifestações do

proletariado parisiense na região de Belleville. Nos registros da obra biográfica de

Armando Bazán constam declarações do Amauta a respeito dos atos do movimento

operário de Paris, prestigiados pela presença de remanescentes da Comuna de Paris (1871).

Sobre tais manifestações, Mariátegui afirmou, segundo o biógrafo, ter sentido “en su más

alta intensidad el calor religioso de las nuevas multitudes” (BAZÁN, 1939, p. 71)75. Apesar

do curto tempo de permanência de Mariátegui na França, cabe ressaltar seu contato

recorrente aos trabalhos dali originários, e seu ativo interesse pelo pensamento socialista

francês e outra variedade de escritores e correntes intelectuais do país (especialmente as

progressistas). Se a Itália torna-se um marco na história da formação política e intelectual

de Mariátegui, isto não descarta, por sua vez, a duradoura impressão dos trabalhadores,

escritores e políticos franceses sobre o pensamento do Amauta (VANDEN, 1975, p. 36).

Apesar de Paris ser, à época, o grande polo de atração da maior parte dos

intelectuais e artistas latino-americanos do início do século XX, Mariátegui opta por viver a

maior parte de seus anos de exílio na Itália. Não foi, aparentemente, uma obrigação do

governo: Bazán nos permite entender isto ao citar os depoimentos em que Mariátegui

justificaria sua escolha a partir de questões de saúde – o clima francês não seria favorável

para suas condições físicas; Pericás, por sua vez, também acrescenta a consideração de

Mariátegui ao convite de seu amigo Palmiro Machiavello76 para viver na Itália (BAZÁN,

74 Vanden salienta a importância de se compreender o impacto das ideias de Barbusse sobre Mariátegui, reivindicando o intelectual francês como uma das mais importantes referências do Amauta – travando polêmica especialmente com Robert Paris que, segundo o comentarista norte-americano, reduziria ao mínimo a influência de Barbusse sobre o jovem peruano. Ver também os comentários de Antonio Melis (1976) a respeito das leituras divergentes a respeito das principais influências e dos caminhos pelos quais Mariátegui compreendeu o marxismo.

75 Esta passagem é modificada na edição da biografia de Bazán (1980, p. 56) publicada nas Obras Completas: “Mis mejores recuerdos son los mítines de Belleville, donde sentí en su más alta intensidad la emoción social revolucionaria de las nuevas multitudes” (grifos nossos). Quijano (2007, p. XL) repudia esta mudança, considerando-a “uma falsificação contra o espírito de Mariátegui”.

76 Palmiro Machiavello era cônsul do Peru e vivia na cidade de Gênova. A pedido de Mariátegui, traduziria mais tarde contos de alguns autores italianos como Alfredo Panzini e Massimo Bontempelli (PERICÁS, 2010, p. 11)

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1980, p. 56-58; PERICÁS, 2010, p. 11). A explicação – que é plausível – não deve ser

tomada, porém, como única. A opção pela Itália pode ser compreendida no âmbito da

importância das influências culturais italianas sobre o universo intelectual peruano naquelas

décadas iniciais do século passado77. Mariátegui não apenas era atento a estas influências,

como também se cercava de admiradores da cultura italiana. Recordando a experiência

colonidista de Mariátegui, podemos citar Abraham Valdelomar, que residiu na Itália por

alguns meses – entre 1913 e 1914, no período pré-guerra – publicando impressões em suas

também intituladas Cartas de Italia, a respeito de suas experiências no velho continente e

as tendências artísticas e ideológicas locais, com especial referência aos trabalhos de

Filippo Marinetti. Impressões que muito provavelmente despertaram o interesse do jovem

Mariátegui em conhecer o país.

Havia também muitas traduções de escritores e poetas italianos, cujas publicações

em espanhol se tornavam conhecidas no Peru. Autores como Giacomo Leopardi, Giovanni

Pascoli e Gabrielle D'Annunzio eram muito influentes entre as novas gerações de escritores

peruanos. Manuel González Prada havia sido divulgador e tradutor de diversos escritores e

poetas italianos tais como Giosué Carducci, Giovanni Prati e Lorenzo Stecchetti. Além

disto, a imprensa de língua italiana78 era apreciada por diversos setores intelectuais

peruanos. Por fim, cabe notar o encontro de Mariátegui, em solo italiano, no ano de 1921,

com José de la Riva Agüero, este um homem de posições diametralmente opostas às de

Mariátegui, mas também admirador do pensamento italiano, especialmente de D'Annunzio

e suas ideias reacionárias (QUIJANO, 2007, p. XLI; PERICÁS, 2010, p. 11-12; NUÑEZ,

1991).

Estuardo Nuñez acrescenta que, além do objetivo consciente de conhecimento dos

77 Malcolm Sylvers (1981, p. 25) sugere também a ida de Mariátegui à Itália por outros dois motivos: sua recusa a viver na Espanha, no sentido de buscar uma “libertação” intelectual frente a antiga metrópole colonial – a partir das sugestões de González Prada – e a consideração daquele momento histórico na Itália como o de pico da luta de classes, seja no nível da praxis como no da elaboração teórica (sugestões estas baseadas na introdução de Robert Paris à edição italiano dos 7 ensayos). Estranhamos especialmente a primeira sugestão, afinal Mariátegui, como já mencionamos no capítulo anterior, era leitor de escritores espanhóis, e a publicação de Nuestra Época se inspirava na revista socialista España.

78 Entre as publicações recorrentes estavam Corriere del Pacifico La Patria, L'Italiano, Araldo, Stella d'Italia e a Rivista italoperuviana (PERICÁS, 2010, p. 11)

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aspectos intelectuais e culturais italianos, Mariátegui também poderia oportunamente

aproximar-se do pensamento europeu contemporâneo à medida que a Itália comportava

diversos tradutores, comentadores e críticos da diversidade de pensamentos produzida em

países como França, Alemanha, Rússia e outras nações europeias, que estabeleciam o país

como um canal de contato e debate com as ideias literárias, sociais, jurídicas e filosóficas

em emergência no velho continente (NUÑEZ, 1991, p. 30). Ou seja, o cenário italiano a ser

explorado por Mariátegui era rico e complexo. Era atravessado por uma intensa vida

cultural, e um movimento operário emergente em um ambiente político extremamente

atraente do ponto de vista da teoria revolucionária e da construção a rigor de uma

alternativa socialista para os trabalhadores italianos.

Mariátegui e a política italiana

Contexto histórico e político

Mariátegui chega a Gênova em dezembro de 1919, e no mês seguinte se muda para

Roma, onde viverá a maior parte de sua estadia italiana. Na cidade de Florença, entre junho

e julho de 1920, fará um curso de verão e, ali, conhecerá a jovem Anna Chiappe, com quem

se casará em 1921, terá quatro filhos e sua companhia até o fim da vida79.

Esta Itália em que Mariátegui desembarca é um país de episódios históricos

traumáticos. O Risorgimento havia se dado aproximadamente sessenta anos antes, sendo a

Itália, portanto, um país de formação política e nacional bastante recente. Seu processo de

unificação, organizado sob os auspícios dos liberais “moderados” do reino sardo-

piemontês, se deu distante de qualquer possibilidade de participação popular no interior do

79 Jocosamente, Mariátegui se referia à Itália como o país onde desposou uma mulher e algumas ideias (MARIÁTEGUI, 1994, p. 1875). A respeito das relações familiares e matrimoniais de Mariátegui, sugere-se a leitura da delicada entrevista oferecida por Anna Chiappe ao jornalista peruano Cesar Levano: “La vida que me diste”. Lima, Caretas, nº 393, 1969, p. 26.

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mesmo80. As desigualdades deste processo se refletiam na distância social e econômica

entre o sul agrário e dependente e o norte industrial81, bem como no frágil equilíbrio entre a

massa de camponeses pobres, a classe operária em ascensão e um setor político preocupado

fundamentalmente com compromissos parlamentares e a perpetuação de seu poder. Neste

último ponto pode ser afirmado que, mesmo com a existência de grupos políticos de

diferentes colorações, o Estado italiano teve sua funcionalidade sujeita ao parasitismo de

elites políticas – nutrido por diversos casos de corrupção e por coalizões e alianças de

grupos aparentemente rivais, desejosos da manutenção de seus poderes, segundo os

resultados eleitorais e as necessidades conjunturais82. Tal política alcançou seu ápice

durante os sucessivos mandatos de Giovanni Giolitti à frente do parlamento italiano, entre

os anos de 1903-1914 (BELLAMY, 1987, p. 5; PERICÁS, 2010, p. 15).

Avanços econômicos e reformas democratizantes – como a implementação de

benefícios trabalhistas, sufrágio universal masculino e melhorias na educação fundamental

– permearam a política de Giolitti no sentido de garantir a ordem social e as bases para o

80 A difusão do pensamento liberal e nacionalista que contribui para o avanço do processo político de unificação da península pode ser compreendido na medida em que o continente europeu é profundamente atravessado pelas sequelas da Revolução Francesa (1789), forjando uma cultura de preparação intelectual e moral sob sua influência (momento este que poderia ser demarcado entre 1815-1847). Outros três momentos do processo de unificação podem ser denotados como: a eclosão de vários movimentos republicanos de curta duração e o abandono da hipótese “neoguelfa” de unificação, sob a direção de um papado liberal (1848-1849); a afirmação progressiva da política “moderada” de Camilo Benso di Cavour e da Casa de Savóia, do Reino do Piemonte-Sardenha, com a libertação do Sul por obra de Garibaldi e sua “Expedição dos Mil” (1850-1861); e, finalmente, a fase de unificação e consolidação estatal, com a anexação de Veneza em 1866 e a ocupação de Roma em 1870 (1861-1870). A periodização é baseada nas notas de Richard Bellamy (1987, p. 171-172).

81 O domínio nortista da política italiana pós-unitária é perceptível na constituição dos quadros dirigentes do país. Uma pequena elite da região controlava especialmente o governo italiano. O país só teria um primeiro ministro sulista a partir de 1887. Primeiros-ministros de renome como Agostino Depretis e Giovanni Giolitti eram de origem piemontesa (DUGGAN, 1996, p. 199).

82 O termo transformismo caracteriza fundamentalmente este fenômeno, assim como toda a vida estatal italiana desde 1848. Assim o explica Gramsci, ao definir o termo como a “elaboração de uma classe dirigente sempre mais ampla, (…) com a absorção gradual, mas contínua e obtida com métodos de variada eficácia, dos elementos ativos surgidos dos grupos aliados e também dos adversários que pareciam irreconciliavelmente inimigos” (GRAMSCI, 1975, p. 2011). Este fenômeno caracterizaria os limites e as formas da hegemonia dos moderados piemonteses na conjuntura do Risorgimento, dominando a energia política das classes subalternas a partir do controle dos grupos dirigentes destas respectivas classes (BIANCHI, 2008, p. 265). Isto permitiu a Gramsci pontuar a importância da direção política como aspecto do exercício do domínio, bem como da “atividade hegemônica” ao qual deve proceder todo grupo que se pretenda politicamente dominante, antes mesmo de alcançar o poder.

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desenvolvimento do setor industrial e financeiro do país83. As iniciativas governamentais,

todavia, não foram capazes de escantear a importância crescente e a transformação de

outros partidos e grupos políticos que, gradualmente, se fortaleciam e adquiriam maior

organicidade na conjuntura política italiana, a partir do âmbito extra-parlamentar. Eles

vinham na contramão do típico liberalismo oligárquico que dominava a política do país

desde a unificação, ainda representado pelo governo Giolitti. Entre eles, nacionalistas,

socialistas e católicos.

Com sua retórica radicalizada, os nacionalistas davam grande importância ao valor

da guerra como instrumento de unidade e de criação de um sentimento coletivo, perante a

subordinação das vontades individuais aos interesses da nação. Forjavam, assim, um

discurso militarista, patriótico, e de claros contornos antissocialistas84. Além disso, a

retórica nacionalista pouco se afeiçoava às preocupações da economia política. Em nome

de grandes “ideais” imperialistas, os nacionalistas afirmavam, através de romances,

manifestos, escritos teatrais, entre outros, a imposição de valores culturais como elementos

suficientes para a afirmação da nova nação italiana, e a constituição de um Estado forte,

autoritário e expansionista, que favorecesse o grande capital nacional em sua reprodução e

desenvolvimento em outras regiões fora da península itálica (PERICÁS, 2010, p. 17). Por

volta de 1914 os nacionalistas estariam cristalizados em torno de um partido antissistêmico,

rechaçando a classe dirigente italiana e o sistema parlamentar, e afirmando um novo

modelo de Estado que respondesse às necessidades da nação e ao qual se submetessem

todos os “produtores” (tanto trabalhadores quanto proprietários) (DUGGAN, 1996, p. 263).

A repressão governamental e as tentativas de reforma política empreendidas pelo

governo no final do século XIX não foram capazes de conter o crescimento de outro grupo:

os socialistas. Passada a influência inicial do anarquismo entre os trabalhadores, o

83 Isto implicou o reforço dos aparatos policiais, a maior burocratização do Estado, a ampliação da desigualdade regional norte-sul e a criação dos primeiros trustes. A Itália rural, por sua vez, permanecia em grande miséria e contrastando fortemente com o crescimento industrial (DUGGAN, 1996, p. 246).

84 A retórica nacionalista se nutria de fontes como o d'annunzianismo e o futurismo, buscando se consolidar em diferentes camadas da população. O futurismo, especialmente representado na figura de seu fundador, Filippo Marinetti, reivindicava explicitamente a guerra e o intervencionismo bélico italiano. Em certa medida, A decisão do governo italiano (de Giolitti) de invadir a Líbia em 1911 confirmava a contribuição dos nacionalistas para o clima progressivamente beligerante que se desenvolvia no país.

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movimento operário italiano assumiu progressivamente coerência e organicidade à medida

que os socialistas avançavam em sua organização político-partidária – representada

especialmente na fundação do Partito Socialista Italiano (PSI)85.

Desde sua fundação, o PSI não deixou de enfrentar disputas políticas internas, como

no caso da divisão entre “minimalistas” e “maximalistas” no congresso de Roma (1900). O

poder entre reformistas e revolucionários se alternaria nas disputas no interior do PSI,

chegando ao ponto de, em 1912, no congresso de Reggio Emilia, os chamados

maximalistas conseguirem a expulsão de alguns militantes mais conservadores e adeptos

das teses do socialismo evolucionista e reformista86. As disputas internas do PSI

prejudicaram as iniciativas do governo Giolitti de trazer os parlamentares socialistas para

sua base de sustentação: muitas eram as denúncias de colaboracionismo feitas pelos setores

radicais do partido, e a dificuldade de Giolitti de controlar as greves que pululavam no país

ao longo da década de 1900, bem como de limitar as violentas ações repressivas contra as

greves – que, consequentemente, reforçavam a indisposição do movimento operário com o

governo – prejudicava consideravelmente suas pretensões políticas. Já não bastasse isto, as

medidas de reformas sociais implementadas sob a gestão de Giolitti indispunham também o

governante italiano com grande parte do empresariado do país.

A deflagração da Primeira Guerra Mundial complicou ainda mais o cenário político

nacional, o que se ilustrou no enorme despreparo militar dos italianos para um conflito de

tais proporções – somando a isto grandes perdas humanas87 – e na ampliação do fosso de

desigualdades que já caracterizava o país88. O turbulento cenário italiano no pós-guerra

85 O PSI foi fundado em 1895. Em termos sindicais, as fileiras socialistas também foram engrossadas com a criação da Federazione nazionale fra i lavoratori della terra (Federterra) em 1901 (contando com 200 mil membros ao final de seu primeiro ano) e a Confederazione Generale del Lavoro (CGL), que também contou com 200 mil filiados quando criado em 1906, reunidos em 700 ligas.

86 Perda de espaço esta que, por sua vez, não prejudicou a continuidade do controle reformista sobre a CGL87 O ingresso da Itália na guerra, em 1915, sob o ministério de Antonio Salandra (1914-1916), se deu

especialmente sob pressão de grupos intervencionistas e por força das obrigações relativas à assinatura do Pacto de Londres. O saldo para a Itália foi catastrófico: 66 mil mortos, 190 mil feridos, 22 mil prisioneiros, apenas nos seis primeiros meses de intervenção. Em 1918, acabado o conflito, o número de italianos mortos alcançava os 600 mil – e a conjuntura política interna se polarizava de forma ainda mais delicada (cf. PARIS, 1976, p. 56-60).

88 Os principais beneficiários do envolvimento italiano na guerra foram as grandes corporações industriais, com uma consequente centralização industrial e a eliminação de um expressivo contingente de pequenas e

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comportava um Estado economicamente quebrado89, um país atravessado por greves de

trabalhadores das grandes cidades e por manifestações contra o aumento do custo de vida

no país. Aumentavam as agitações políticas de sindicalistas, camponeses e

“revolucionários”, enquanto setores de classe média, latifundiários e representantes de alas

da grande indústria iniciavam uma reação contra as tendências socialistas. O governo

italiano encontrava-se diante do desafio de assegurar o ritmo crescente da produção

industrial do período de guerra, controlar greves e enfrentar a crescente pobreza e

desemprego industrial. Os fascistas também começavam a despontar publicamente – se não

por meio de sua força eleitoral (naquele momento, ainda menor do que as dos socialistas),

certamente por meio de ações violentas, especialmente contra sindicatos e demais

organizações socialistas.

Os católicos na política italiana

No turbulento cenário político italiano entre o Risorgimento e a eclosão da Primeira

Guerra Mundial a história testemunhou o processo de declínio e reorganização política do

catolicismo na península. Várias foram as medidas levadas a cabo pela Igreja Católica90

para enfrentar os diversos governos liberais que despontavam nesta época – e suas

consequentes medidas secularizantes. Para conter a perda de sua influência política, a Igreja

médias empresas; o setor agrário, por sua vez, enfrentou grande instabilidade e redução de sua produtividade. Também não deixou de ter lugar no país a inflação e o aumento do custo de vida, além da ampliação do déficit público, cujos custos recaíram sobre a pequena burguesia italiana (PARIS, 1976, p. 58-59).

89 O déficit do Estado italiano elevou-se de 214 milhões (1914-1915) para 23.345 milhões (1918-1919) (PARIS, 1976, p. 59).

90 Ao longo do século XIX a Igreja Católica oficialmente se oporia à unificação italiana e às novas diretrizes políticas levadas à cabo pelos governos liberais, que no seu bojo sustentavam as mesmas demandas secularizantes que já observamos a respeito da evolução das ideias liberais na América Latina: liberdade de crença, secularização da educação e do matrimônio (com o estabelecimento do casamento e do divórcio civil), supervisão estatal do clero e limitação do controle papal sobre a igreja italiana, limitação dos privilégios legais do clero, confisco de propriedades da Igreja e a dissolução de determinadas ordens religiosas – especialmente de caráter contemplativo ou mendicante. Havia uma reforma eclesiástica no coração da “revolução liberal” em curso (POLLARD, 2008, p. 17), que tomaria lugar na Itália na etapa final do Risorgimento.

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adotou medidas como a excomunhão de governantes, o auxílio militar de outros países

como França e Áustria e, especialmente, a promulgação do non expedit (1874), proibindo a

participação dos católicos na vida política do Estado unitário.

Por outro lado, a Igreja temia o crescimento das correntes revolucionárias entre os

operários do país. Apesar de sua condenação ao capitalismo e ao liberalismo, o Vaticano

recusava o “conflito de classe” e enxergava nas ideias anarquistas e socialistas uma

influência negativa sobre a fé dos trabalhadores urbanos e rurais. Como resposta ao ascenso

das organizações socialistas, surgiram na virada do século XIX-XX sindicatos, ligas

camponesas, cooperativas e outras organizações sociais católicas – sendo as primeiras

organizações marcadas por trabalhos caritativos e filantrópicos, voltados à educação e

alfabetização de jovens trabalhadores. A Igreja italiana se valia especialmente de dois

mecanismos: suas estruturas paroquiais, através das quais se constituíam pontos de

referência para grupos de artesãos, confrarias e outras associações pias, e que tornaram-se

espaços chaves de organização em várias áreas da Itália com crescimento de iniciativas

sociais católicas; e a organização da Opera dei Congressi (1874-1904), que patrocinou

associações de trabalhadores, sociedades de ajuda mútua, jornais e bancos, e “controlou” as

atividades destes diversos setores sociais (POLLARD, 2008, p. 59-60; PERICÁS, 2010, p.

19).

Na medida em que compreendiam o novo momento político italiano, os católicos

passaram a adotar medidas que permitissem a eles se reorganizarem e reinserirem-se

naquela conjuntura. O non expedit, por exemplo, foi gradativamente suavizado, permitindo

aos católicos maior diálogo com setores desvencilhados politicamente de tendências

anticlericais – especialmente os liberais conservadores –, bem como a inserção dos

católicos no cenário eleitoral e parlamentar91. Nomes importantes também passavam a se

91 O crescimento do número de deputados católicos foi constante nas eleições de 1905 e 1909, chegando ao número de 29 católicos eleitos nas eleições de 1913 – pleito que se seguiu à implementação do sufrágio universal masculino. As mudanças ainda não apontavam, porém, para a emergência de um partido político católico. O Vaticano procurou sempre controlar a atividade política católica, embora a heterogeneidade no interior do grupo parlamentar católico – que incluía moderados e de orientação cristã-democrática – resultasse em raros momentos em que o grupo votava em bloco. Em 1913 também foi firmado o Pacto Gentiloni, que assegurou o apoio dos católicos a candidatos liberais com adesão a alguns pontos programáticos (como liberdade de ensino, oposição ao divórcio, etc) e também de liberais a alguns

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destacar nos quadros católicos, sendo relevante mencionar para esta discussão a figura de

Dom Luigi Sturzo, que exerceria um importante papel no impulsionamento das

reivindicações por reformas econômicas, sociais e políticas, e pela formação do

sindicalismo católico (ou bianco)92. Traniello, neste sentido, ressalta a percepção de Sturzo

de que a aceitação popular das ideias socialistas constrangia a cultura social católica a se

reposicionar, distinguindo a ideologia coletivista do socialismo do “movimento social do

proletariado”, propondo os contornos de uma teoria das classes que procurava se

diferenciar do socialismo a partir do papel que assumia o componente profissional

(TRANIELLO, 2007, p. 215-216).

A crescente influência dos católicos na política do país, demonstrando a adequação

da instituição – antes, contrária à unidade italiana – aos mecanismos políticos vigentes, e o

avanço da organização católica sobre setores como trabalhadores e camponeses, forjando a

elaboração de um sindicalismo católico, ilustra o desenvolvimento de uma cultura política

própria e adequada para a constituição da atividade partidária dos católicos, que resulta em

1919 na criação do Partito Popolare Italiano (PPI) sob a liderança de Luigi Sturzo.

O envolvimento de Mariátegui com a política local

Mariátegui desfrutará de uma intensa atividade política e cultural naqueles anos, e

que se traduzirá em uma profícua produção periodística publicada, à época, no periódico

peruano El Tiempo. São 46 textos escritos e enviados ao Peru no período (havendo um

atraso de cerca de três a quatro meses entre o envio e sua publicação), com conteúdos como

narrativas descritivas das cidades, crônicas de costumes, arte, cultura, política e

candidatos católicos. Estes pontos retratam a aproximação em curso entre a governança liberal e o Vaticano – uma aproximação, diga-se, bastante pragmática e sem um caráter oficial – com vistas à sustentação do poder liberal na Itália (DUGGAN, 1996, p. 264).

92 Apesar de minoritárias perante as organizações socialistas, os sindicatos e ligas camponesas católicas conseguiram se estabelecer firmemente no cenário político italiano. Segundo dados relativos ao ano de 1910, os sindicatos socialistas abrigavam 650 mil filiados, enquanto que as organizações católicas arregimentavam 104 mil membros, especialmente concentrados nas regiões da Lombardia e Veneza (POLLARD, 2008, p. 64-65).

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personalidades. O conjunto dos artigos produzidos apontam para um agudo

desenvolvimento intelectual do jovem jornalista peruano em sua capacidade de analisar as

circunstâncias políticas da Itália e da Europa. Vivendo esta realidade europeia, nosso autor

consolidará suas posições socialistas, amadurecerá seu olhar político e aprofundará seu

conhecimento teórico.

Em janeiro de 1921, Mariátegui assistirá – como correspondente do jornal El

Tiempo – ao XVII Congresso do PSI, em Livorno. Este evento tem uma importância

histórica salutar para a organização dos trabalhadores na Itália por ser marcado pela cisão

dos setores mais radicalizados do partido. O grupo de Turim, liderado por Antonio

Gramsci, e de Nápoles, com Amadeo Bordiga, encabeçarão a formação do Partito

Comunista d'Italia (PCd'I), pontuando naquele momento o ápice das tensões internas

protagonizadas entre “maximalistas” e “reformistas” no interior do PSI. A leitura93 que

Mariátegui fará a respeito dos episódios daquele congresso dirão respeito à fisionomia do

movimento socialista italiano, que estaria passando por situações de divisão semelhantes ao

ocorrido em outros países europeus, apesar de uma aparente adesão de todos os setores do

PSI aos princípios mais radicalizados da III Internacional. Mariátegui, no entanto, procura

esclarecer que é o partido proveniente da cisão dos comunistas em Livorno que deve ser

considerado “efetivamente maximalista”, a partir de uma ruptura “inevitável e necessária”.

Além disso, o Amauta também reconhece no PCd'I o resultado de um processo em curso

(desde o congresso anterior, em Bologna), voltado para a construção da revolução através

de uma preparação não apenas material mas também espiritual – apontando, finalmente, a

importância de alguns intelectuais e o semanário L'Ordine Nuovo (MARIÁTEGUI, 1991, p.

127-129).

A menção de Mariátegui ao semanário não é elemento menor. Buscando

compreender amplamente os acontecimentos políticos na Itália e em outros países, o

Amauta lerá uma diversidade de publicações italianas, desde os jornais “socialistas” ou de

esquerda até as publicações da grande imprensa “burguesa”94. Por sinal, o contato com o 93 “El cisma del socialismo”. Concluído em Roma em março de 1921, publicado em El Tiempo, Lima, 12 de

junho de 1921. 94 Além de L'Ordine Nuovo, Mariátegui também será leitor de Avanti, Il Soviet, Critica Sociale, Umanità

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jornalismo europeu levaria Mariátegui a alimentar uma forte crítica à imprensa peruana no

que diz respeito à sua qualidade:

El periodismo peruano, en general, es de una incipiencia escandalosa. Así los diarios como las revistas carecen de selección, de mesura, de sustancia. Por una parte están detestablemente escritos. Por otra parte son de una vaciedad máxima. Esto unido a su tropicalismo, a su exageración, a su huachafería. Imitamos a la Argentina, a la rastacuera Argentina, que imita a su vez a los Estados Unidos. Y los Estados Unidos no saben siquiera imitar a Europa. Cuando se está en Europa, habituado a la prensa de París o de Roma, la lectura de los periódicos peruanos produce una impresión pésima95 (MARIÁTEGUI, 1994, p. 1633)

L'Ordine Nuovo deve ser notado não apenas como uma importante fonte de

informação e crítica política, mas também como um elemento de grande influência no

desenvolvimento da praxis periodística do jovem peruano (BEIGEL, 2005, p. 38). No

interior da conjuntura socialista italiana foi L'Ordine Nuovo que encabeçou a luta pela

aproximação da militância socialista à III Internacional. Trazia no seu bojo a experiência

das ocupações de fábricas turinesas – que deram início ao episódio histórico do biennio

rosso (1919-1920) – e convertia-se na fração comunista mais expressiva do país. Neste

sentido, a experiência dos soviets lhe parecia central, constituindo um modelo para a

formação dos conselhos de fábrica italianos. Com a convocação do congresso de Livorno, a

campanha de L'Ordine Nuovo voltou-se à difusão das posições internacionalistas e a uma

campanha de reforço da liderança soviética no movimento comunista. Documentos da III

Internacional foram publicados nas páginas do semanário, muitos destes exigindo firme

postura diante dos elementos direitistas no conjunto do socialismo italiano. Porém, com a

decisão congressual de não acatar tais diretivas, a fração comunista separou-se

definitivamente do PSI.

É em torno do periódico que podemos falar no desenvolvimento de uma concepção

e de uma praxis política propriamente “ordinovista”, que se manifestaria especialmente

Nuova, La Rivoluzione Liberale, Il Corriere della Sera, La Stampa, Il Resto di Carlino, Il Messagero, La Tribuna, l”poca, Il Corriere d'Italia, Il Paese, L'Idea Nazionale e La Nazione, entre outros (PERICÁS, 2010, p. 35). A respeito, ver artigo de Mariátegui, “La Prensa Italiana”, El Tiempo, Lima, 10 de julho de 1921 (texto concluído em Roma, junho de 1921) (MARIÁTEGUI, 1991, p. 170-175).

95 Correspondência de José Carlos Mariátegui a Bertha Molina, redigida em Florença, 30 de junho de 1920.

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entre os anos de 1919-1921 em ampla correspondência com as lutas operárias e o

crescimento de um movimento de massa que se forjava nas ocupações fabris do norte da

Itália. O ordinovismo comportava uma praxis editorialista e uma valorização do papel da

cultura no processo revolucionário – o que se exemplifica no seu trabalho de edição de

cadernos temáticos, traduções e edições de livros, envolvendo uma capacidade de

articulação de distintas expressões da vida política e cultural. Segundo Beigel (2005, p. 40),

Mariátegui contará com uma “influência ordinovista” em sua formação política no período,

beneficiada pela sua tendência a aproximar-se das posições “maximalistas” – Mariátegui

enxergou com bons olhos a ruptura comunista com o PSI. Tais prerrogativas se

concretizariam futuramente na formulação da revista Amauta (1926-1930) e do periódico

Labor (1928-1929) (BEIGEL, 2005, p. 47).

A importância de L'Ordine Nuovo nos remete inevitavelmente à figura de Antonio

Gramsci, umas das principais lideranças políticas do semanário e também da fração

comunista surgida em 1921. No entanto, é difícil concluir se ocorreu ou não um encontro

de fato entre o jovem jornalista peruano e o marxista sardo. Muito provavelmente

Mariátegui e Gramsci se cruzaram no Congresso de Livorno, mas é difícil postular um

diálogo pessoal entre os autores. Sylvers (1981, p. 25) afirma que Mariátegui “conheceu a

Gramsci e Togliatti”. Jorge del Prado (1970, p. 20) chega a dizer que Mariátegui e Gramsci

teriam sido amigos pessoais. Até mesmo Anna Chiappe, falando de seu relacionamento com

o Amauta, afirma que Mariátegui “conversava amistosamente” com Gramsci e Togliatti

durante o Congresso de Livorno (CHIAPPE, 1969). Mas a ausência de informações mais

amplas sobre Antonio Gramsci nos escritos de Mariátegui nos aproxima da conclusão pela

inexistência de uma influência direta e pessoal entre ambos. São bastante escassas as

menções a Gramsci nos escritos que constituem a obra de Mariátegui. Nos textos

publicados nas Cartas de Italia, Gramsci é citado uma única vez, em um artigo concluído

em junho de 1921, a respeito da imprensa italiana (MARIÁTEGUI, 1991, p. 174). Nota-se

que nem mesmo o artigo de Mariátegui sobre o Congresso de Livorno, “El cisma del

socialismo” (já recordado acima), cita o dirigente comunista96.96 A título de comparação, Pericás (2010, p. 41-42) observa que José Carlos Mariátegui conheceu figuras

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Mesmo com esta dificuldade objetiva, não são poucos os estudos que procuraram

estabelecer relações intelectuais entre Gramsci e o Amauta, a ponto de o primeiro artigo

escrito na Itália dedicado ao pensamento de José Carlos Mariátegui o classificar como “o

Gramsci americano”97. A tendência parece residir na exploração do ambiente intelectual e

das referências teóricas comuns a ambos, permitindo aproximações entre os temas de

interesses e as ideias defendidas por cada um98. Não parece adequado, portanto, indicar

influências diretas entre os autores. Podemos, porém, falar de uma influência ordinovista

que certamente se apoiava nas contribuições políticas de Antonio Gramsci e que ajudaria a

construir a leitura mariateguiana da realidade política italiana, além de embasar a futura

empreitada editorial de Mariátegui no Peru (cf. BEIGEL, 2005, p. 40-41).

Retornando a Gênova em março de 1922, Mariátegui acompanhará a Conferência

Econômica Internacional convocada pela Liga das Nações e realizada entre os dias 10 de

abril e 19 de maio. No local, encontra seus colegas peruanos César Falcón, Palmiro

Machiavello e o médico Carlos Roe. Desta reunião, procuraram articular o que seria o

primeiro núcleo socialista peruano – todavia, de escassa duração. De volta a Roma,

Mariátegui realiza funções consulares na representação diplomática peruana no país.

Sustenta relações cordiais (embora discordâncias políticas aflorassem) com diplomatas e

artistas peruanos residentes na Itália99. Mariátegui também passou por um breve período de

dificuldades financeiras, quando as verbas governamentais de que dependia para seu

sustento deixaram de ser enviadas (o que acarretava um problema não apenas para o

intelectualmente menos importantes que Gramsci, como o húngaro Miguel Karolyi e o italiano Giuseppe Maria Perrone. A aparentemente pouca relevância destes personagens, porém, não impediu o autor peruano de dedicar artigos a eles. Se Mariátegui tivesse efetivamente encontrado e dialogado com Gramsci, era de se esperar que o Amauta escrevesse algo a respeito. cf. “El Conde Karolyi, expulsado por bolchevique” (El Tiempo, Lima, 21 de junho de 1921) e “Un libro notable: 'Il Peru' del Conde Perrone” (El Tiempo, Lima, 23 de abril de 1922) (MARIÁTEGUI, 1991, p. 130-132; 258-261).

97 Trata-se do artigo de Gianni Toti, “Mariategui, il Gramsci americano”, publicado em La Situazione, abril de 1962 (cf. PODESTÁ, 1981, p. 14).

98 Cf. MELIS, 1978, p. 208-209; VANDEN, 1975, p. 49-51. Cf. também o relato da conferência internacional “Culture and Politics in the Life and Work of José Carlos Mariátegui and Antonio Gramsci” promovida em Hamburgo, outubro de 1986, em que se debateram estudos e aproximações temáticas e conceituais entre os dois autores (BUTTIGIEG, 1989).

99 Entre os quais o primeiro secretario, Pedro López Aliaga; o segundo secretario, Pío Artadi; o escultor Artemio Ocaña; o general e ministro plenipotenciário do Peru, Oscar Benevides; e Arturo Osores, que ocuparia em seguida o lugar de Benevidez na missão peruana.

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Amauta, mas também para sua família – casado e com um filho pequeno para cuidar).

Problema este resolvido em maio daquele ano. Em todo este tempo, Mariátegui conheceu

cidades, artistas, escritores e militantes. Dizia buscar ver uma Itália “sem literatura”100, sem

romantismos, sem um olhar turístico. Queria vê-la de modo objetivo, tentando compreender

as singularidades de seu povo, sua história e seu processo político.

Entre junho e julho de 1922, Mariátegui parte em viagem pela Europa, com a

expectativa de retornar ao Peru. Visita mais uma vez Paris, onde revê Barbusse, viajando

em seguida para a Alemanha, primeiramente para Munique e depois Berlim. Após seis

meses de intensa vivência local, reencontrando amigos e intelectuais peruanos e estudando

alemão, faz nova viagem, desta vez através do rio Danúbio, junto ao seu amigo César

Falcón, passando pelas cidades de Viena, na Áustria, e Budapeste, na Hungria. Também

visita Praga, na então Tchecoslováquia. Mariátegui não pôde visitar a Rússia por razões

familiares, mas certamente desejava conhecer aquele país diante da experiência

revolucionária ali ocorrida. Durante o périplo no Velho Continente, pôde continuar o estudo

de movimentos revolucionários que brotavam no continente no período pós-guerra. Reuniu-

se mais uma vez com Falcón no início de 1923 para discutir as possibilidades da

organização socialista no Peru. Em fevereiro, embarca no navio alemão Negada, partindo

da Antuérpia, Bélgica, com sua esposa e seu filho, Sandro, em regresso ao seu país de

origem101.

Influências intelectuais

A experiência italiana de Mariátegui, como dito acima, pode ser recordada como um

passo fundamental para sua maturidade intelectual e política. Em 1928 o próprio Amauta

registrou, na Advertencia dos 7 ensayos que havia feito sua melhor aprendizagem na

100 “El paisaje italiano”. Mundial, Lima, 19 de junho de 1925 (MARIÁTEGUI, 1987, p. 77)101 Cf. cronologia organizada por Alberto Flores Galindo e Ricardo Portocarrero (MARIÁTEGUI, 1989, p.

89-90); cronologia publicada por Luiz Bernardo Pericás (MARIÁTEGUI, 2005, p. 137-138); cf. também PERICÁS, 2005, p. 19-20; 2010, p. 33-34.

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Europa. E mais: acreditava que não havia salvação para a Indo-América sem a ciência e o

pensamento europeus e ocidentais (MARIÁTEGUI, 2007, p. 6). Não se tratava, porém, de

uma mera transposição de leituras e ideias do Velho Continente para a realidade peruana. A

importância que Mariátegui atribui às ideias e à vivência intelectual e política obtida na

Europa diz respeito, entre outras coisas, ao instrumentos teóricos e analíticos oferecidos por

um contexto político em que a reflexão socialista encontrava-se mais avançada. Tais

reflexões permitiriam a Mariátegui compreender a importância de se constituir um caminho

revolucionário e socialista através do qual fosse possível transformar a realidade peruana.

Mais precisamente, forjar um socialismo propriamente peruano – para o qual se faria

necessário considerar as especificidades locais e situá-las no âmbito da reflexão e da luta

revolucionária.

Mariátegui estabeleceu relações pessoais com vários nomes relevantes do

pensamento político e filosófico da época, e também aprofundou seu estudo sobre outros

personagens de significativo impacto intelectual.

Por exemplo, Benedetto Croce, que aparentemente Mariátegui teve a oportunidade

de conhecer pessoalmente102. O autor italiano é certamente um nome de grande valor para

Mariátegui. Nas Cartas de Itália há um artigo dedicado ao filósofo103, sendo bastante

significativa a presença de Croce nos escritos posteriores de Mariátegui – com efeito, o

Amauta se vale de determinadas leituras croceanas para apresentar sua visão própria do

materialismo histórico.

É o que ocorre anos mais tarde, por exemplo, na Defensa del marxismo, quando

Mariátegui afirma que “Marx no tenía por qué crear más que un método de interpretación

histórica de la sociedad actual”, referindo-se ao materialismo histórico (MARIÁTEGUI,

1988, p. 40). Certamente é possível identificar uma leitura baseada em concepções

croceanas: o autor italiano argumentava que o materialismo histórico não era nem uma

102 Em entrevista, Anna Chiappe afirma que Benedetto Croce interveio junto a sua família em favor do jovem peruano (CHIAPPE, 1969).

103 Escrito por ocasião da polêmica de Croce com a imprensa italiana ao se recusar, como Ministro da Educação Pública do reino italiano, a conceder verbas públicas para a realização de eventos em homenagem a Dante Alighieri. “Benedetto Croce y el Dante”. Concluído em Gênova em 14 de agosto de 1920; publicado em El Tiempo, Lima, 9 de dezembro de 1920 (MARIÁTEGUI, 1991, p. 98-100).

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filosofia da história, nem um novo método historiográfico, mas simplesmente um “cânone

de interpretação histórica” que aconselhava dirigir a atenção ao substrato econômico da

sociedade para melhor entender suas configurações e vicissitudes (CROCE, 1921, p. 79)104.

Croce foi um expoente do idealismo italiano no início do século XX, mas entre os

anos de 1895 e 1900 interessou-se particularmente pelas ideias de Marx, cumprindo

importante papel em um movimento revisionista que, em diferentes momentos e através de

diferentes caminhos teóricos, também contou com trabalhos de autores como Eduard

Bernstein, Georges Sorel, Francesco Savério Merlino, Henri de Man, entre outros.

Incentivado por Antonio Labriola, certamente o principal difusor das ideias de Marx na

Itália da época, Croce iniciou suas leituras e publicou vários ensaios sobre as teorias dos

revolucionário alemão. Porém seus estudos, contrariando as expectativas de Labriola,

acabaram atribuindo limites à importância teórica das ideias de Marx e ao seu significado

prático na vida política e social: os prefácios que publicou para as edições de seu

Materialismo storico ed economia marxistica (escritos em 1899, 1906 e 1917) permitem

observar que Croce gradualmente se afasta das concessões que inicialmente havia feito à

teoria marxista para, finalmente, concluir que o marxismo encontrava-se relegado ao

passado na história das ideias105 (CROCE, 1921, p. XIV-XVI; cf. CASERTA, 1983;

GALASTRI, 2011).

Desde a apresentação de suas críticas aos marxismo até o início da década de 1920,

momento em que Mariátegui encontra-se na Itália, Croce desenvolveu larga e influente

obra106, elaborando uma de suas contribuições mais fundamentais: o conceito de

104 Apesar de Mariátegui tomar de empréstimo tal ideia croceana, é importante ressaltar que o socialista peruano reconhecia Croce como “um verdadeiro liberal” e “um dos representantes mais autorizados da filosofia idealista” (MARIÁTEGUI, 1988).

105 Mesmo em 1899 Croce já defendia nunca ter sido um “marxista ortodoxo” que havia se convertido em crítico do marxismo, denunciando isto como uma percepção corrente e incorreta de seus trabalhos. Sem descartar a genialidade de Marx, Croce reconhecia a existência de um núcleo são e realista nas ideias do comunista alemão, não obstante buscasse livrar este núcleo dos adornos metafísicos e literários que considerava encontrar no próprio Marx, e das exegeses e deduções pouco cautelosas de seus intérpretes e seguidores (CROCE, 1921, p. XI).

106 Em 1903 publicaria, em colaboração com Giovanni Gentile, o primeiro número da revista La Critica, que se tornará nos anos seguintes o principal instrumento de difusão do idealismo, alcançando uma ampla duração de 41 anos. Publicará também Estetica come scienza dell'espressione e linguistica generale (1902), Logica come scienza del concetto puro, Filosofia della pratica (ambas em 1909) e Teoria e storia

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historicismo, no interior do qual desenvolve suas ideias políticas e cujo ponto de partida se

dá a partir da leitura e interpretação da filosofia clássica alemã, a qual o filósofo italiano

contribuiu para sua divulgação na península. Contrapondo-se a uma historiografia fundada

na neutralidade do sujeito – como postulado por vertentes positivistas – Croce afirmará

uma história construída a partir da situação em que se encontra o sujeito que, delimitado

pelas necessidades da ação, reinterpreta o passado, o avalia a partir de seu presente: um

juízo histórico determinado pelo presente. Uma historiografia que o próprio Croce define

como liberal por natureza, posta acima de partidos e orientada por uma ideia universal de

liberdade, com a finalidade de “encontrar a razão de todo fato e indicar o posto e o papel de

cada qual no drama” em que se constitui a história. A partir de sua concepção

historiográfica é que Croce desenvolve o seu peculiar pensamento liberal, devendo ser

especialmente considerada para tais ideias a importância da releitura croceana de Hegel –

na contramão do processo político da época, em que os elos eram mais fortes entre as

releituras de Hegel e as origens do fascismo (cf. TESTAVERDE, 2007, p. 13-15;

SCHLESENER, 2007).

Outro personagem italiano de grande importância para as ideias do Amauta é Piero

Gobetti. Não é possível afirmar se ambos se conheceram pessoalmente, mas é bastante

clara a admiração que Mariátegui dedica ao jovem liberal italiano no decorrer de sua obra.

Gobetti, assim como Mariátegui, desenvolveu um amplo conjunto de ensaios – sobre

política italiana e também sobre crítica literária e teatral – sendo ainda muito jovem107.

Gobetti era entusiasta de um liberalismo “herético”, correspondente a um projeto de

redefinição dos compromissos práticos do liberalismo. Com efeito, o jovem militante e

intelectual se defrontava, assim como vários liberais europeus daquele tempo, com o

della storiografia (1915), trabalhos estes que constituirão a chamada Filosofia dello Spirito croceana.107 Nascido em 1901, Gobetti funda em 1918 a revista Energie Nove, logo após ingressar na faculdade de

direito em Turim. Logo, também estará em contato com o movimento operário da cidade e colaborando com L'Ordine Nuovo através de farta produção jornalística. Em 1922 fundará La Rivoluzione Liberale, publicação pela qual difundirá seu liberalismo “herético” e sua feroz oposição ao fascismo, então em ascensão. Os fascistas não tardariam em reagir, culminando no violento episódio de espancamento sofrido por Gobetti em 1924 por um grupo de fascistas. A radicalização do regime nos anos seguintes levou o liberal italiano à decisão pessoal de exilar-se, indo para Paris em 1926. Ali, falecerá no mesmo ano, vítima de uma doença respiratória, com apenas 25 anos.

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colapso das fórmulas liberais frente ao crescimento do comunismo e do fascismo.

Especificamente no caso italiano, o pós-guerra (1914-1918) testemunhou uma geração de

intelectuais italianos que se indagava sobre as razões da incompletude do Risorgimento, e

que alcançaram relativa unidade em torno de um problema: o que dizia respeito ao

tratamento negligente que a nova classe política proveniente daquele processo dispensou à

questão social.

Gobetti, ao seu modo, identificava no processo politico do Risorgimento um caráter

incompleto e proveniente de dois aspectos: a natureza retrógrada da classe dirigente

piemontesa – cujo liberalismo, ao invés de aliar-se às massas populares, fez-se cúmplice da

monarquia; e o fato de que esta aliança reacionária se fortalecia na medida em que se

estendia à Igreja, historicamente antiliberal e anti-iluminista. Tais razões contribuíram para

que a classe dirigente piemontesa – “como minoria organizada e como elite” – não fosse

capaz de incluir no interior de suas alianças as novas forças emergentes da modernização

econômica local, impossibilitando a inclusão dos quadros laicos e independentes dentro do

Estado. Assim, a elite piemontesa, dirigente da unificação, se mostrava incapaz de cumprir

suas tarefas históricas, e o novo Estado nacional emergia “anacrônico e doente de crise de

secularização” (RÊGO, 2001, p. 67, grifos da autora). As constatações conduziam o liberal

italiano a uma reflexão sobre a necessária mudança no sentido da revolução italiana, que

implicava na constituição de uma nova classe dirigente capaz de criar um cultura civil laica

e verdadeiramente liberal e nacional. Com isto, outra exigência também se impunha: a da

redefinição, conforme as necessidades do tempo, do próprio liberalismo – redefinição esta

que passava por retirar de seu corpo doutrinário os elementos de legitimação de privilégios

sociais e econômicos, bem como recuperá-lo de contaminações clericais e papistas (RÊGO,

2001, p. 68).

As forças sociais laicas e autônomas, vislumbradas por Gobetti como portadoras da

modernidade, são percebidas nas lutas dos operários turineses:

necessitava esperar o movimento operário para haver na Itália iniciativas autônomas das massas populares que possam conduzir a revolução liberal a suas últimas consequências (cf. RÊGO, 2001, p. 67-68).

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Em La Rivoluzione Liberale (publicado em 1924), criticando tanto o liberalismo italiano

quanto os socialistas (estes últimos teriam aceitado a herança corrupta da democracia ao

invés de manterem-se coerentes com a lógica revolucionária), Gobetti reconhece o valor

revolucionário dos comunistas e seu caráter de primeiro movimento laico italiano, sendo

estes capazes de levar às últimas consequências o significado revolucionário do novo

Estado italiano e de concluir, com uma nova ética e uma nova “religiosidade”, a luta contra

as velhas crenças (GOBETTI, 1995, p. 32). A iniciativa intelectual de Gobetti visa,

portanto, introduzir a questão operária no coração do liberalismo, dando os primeiros

passos para um fecunda tradição de diálogo entre certo liberalismo e socialistas e

comunistas: o socialismo

é o simbolo em nome do qual há muitos anos o povo luta por sua redenção; é a mais ativa das ideias com as quais temos operado na realidade como impulso à autonomia, é um dos principais fatores de liberdade e de liberalismo no mundo moderno108 (GOBETTI, 1997, p. 439, grifos nossos)

Com este pensamento, Gobetti progressivamente buscava se distanciar de um nacional-

liberalismo, conservador, anti-socialista e comprometido com o catolicismo de traços

ultramontanos. Suas ideias dirigiam-se à tensa condição de defender o liberalismo em

diálogo com os imperativos igualitários da tradição socialista109.

Pesa sobre os escritos de Gobetti o tributo ao pensamento historicista e idealista

desenvolvido por Benedetto Croce. A distinção formulada por Croce entre liberismo

(referindo-se ao olhar liberal sobre a economia) e liberalismo político constituía esta última

como expressão de forte conteúdo ético e compromisso com a justiça social, semeando na

Itália a possibilidade de se aplicar uma nova fórmula política, o liberal-socialismo.

Influenciado também por Gaetano Mosca – especialmente na medida em que concebia o

108 “Liberalismo e democrazia”. La Rivoluzione Liberale, ano II, n. I, 2 de janeiro de 1923.109 Anos antes, registraria sua admiração pelos episódios da Revolução Russa de 1917 e principalmente pelas

figuras de Lenin e Trotski – não obstante permanecesse fiel ao cânones liberais econômicos ao criticar as estatizações promovidas pelo governo bolchevique (GOBETTI, 1997, p. 150-151).

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desenvolvimento de uma elite dirigente apropriada à tarefa revolucionária liberal110 –

Gobetti reivindicava uma constituição de laços comuns entre governantes e governados que

à princípio nunca se materializou na história italiana, em consonância com a reclamação de

diversos intelectuais progressistas do país, cientes desta lacuna histórica, pela projeção de

um novo Risorgimento: um empenho por um rinovamento civile, vivido como missão

intelectual e política de uma geração (RÊGO, 2001, p. 78-79). A luta de classes para este

“croceano de esquerda”, nesta situação, era vista como campo de formação de novas elites

e, especialmente, como concepção de sentido da história. A classe operária de Turim

incorpora o papel de novo ator histórico e de nova e potencial classe dirigente, a edificadora

da modernidade secular do país e herdeira da realização das tarefas não cumpridas na

revolução passiva italiana (RÊGO, 2001, p. 91).

Apesar de Gobetti não ser citado nos artigos escritos por Mariátegui na Itália, sua

presença pode ser notada amplamente nos textos publicados pelo Amauta após seu retorno

ao Peru. Além das diversas menções, Mariátegui dedicou três artigos exclusivamente ao

liberal italiano111. Afirmou ter lido os quatro primeiros volumes da obra de Gobetti

(Risorgimento senza eroi, Paradiso dello spirito e Opera crítica – primeira e segunda

partes), encontrando neles originalidade de pensamento, força de expressão e riqueza de

ideias (MARIÁTEGUI, 1987, p. 136). Também elogiava Gobetti pela modernidade e pelo

realismo de suas análises que, segundo o Amauta, não se devia a uma hermética educação

marxista, mas a um autônomo e livre amadurecimento de seu pensamento (MARIÁTEGUI,

1987, p. 138). É impossível ignorar a afirmação de Mariátegui: se o socialista peruano

reivindicava o marxismo como norte de seu projeto revolucionário, estaria porém muito 110 Gobetti afirmará que a doutrina da classe política, cuidadosamente elaborada por Mosca e Vilfredo Pareto

poderia iluminar os significados da luta política no campo social se estivesse conectada mais diretamente às condições da vida pública e aos contrastes históricos existentes entre seus vários setores. O conceito de uma elite, que se impõe explorando uma rede de interesses e condições psicológicas gerais contra os velhos dirigentes que exauriram suas funções, é claramente liberal. Além disso, Gobetti dirá também que o processo de gênese das elites é claramente democrático e que a aristocracia que representa o povo representa a medida da força deste último, bem como sua originalidade: “O Estado que disto deriva não é tirânico e para isto hão contribuído os livres esforços dos cidadãos, tornados combatentes nesta ocasião” (GOBETTI, 1997, p. 955-956).

111 São eles: “Piero Gobetti”, em Mundial, Lima, 12 de junho de 1929; “La economia y Piero Gobetti”, Mundial, Lima, 26 de julho de 1929; e “Piero Gobetti y el Resorgimento”, Mundial, Lima, 15 de agosto de 1929 (cf. MARIÁTEGUI, 1987).

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longe de recusar o diálogo com outras matrizes de pensamento, corroborando sua

preocupação – que já parece bastante clara desde o início de nossa análise – em acessar e

compreender uma diversidade de fontes e ideias. Tratava-se de uma tarefa complexa. O

diálogo com Gobetti, no caso de Mariátegui, parece bastante franco: “Pensamos y sentimos

como Gobetti que la historia es un reformismo más a condición de que los revolucionarios

operen como tales”112 (MARIÁTEGUI, 1988a, p. 249-250). Aparentemente baseado nas

ideias de Gobetti, Mariátegui também afirmaria que “el destino de todo liberalismo

auténtico es preparar el camino al socialismo”113 (MARIÁTEGUI, 1988b, p. 136). Neste

sentido que é viável afirmar a disposição de Mariátegui para o diálogo com o pensamento

de Gobetti – bem como o de Croce e sua filosofia liberal e historicista. Cabe ressaltar

também a coincidência analítica entre ambos: nem Mariátegui, nem Gobetti, se

preocuparão demasiadamente com temas econômicos (PERICÁS, 2010, p. 40).

Por fim, Georges Sorel. É inviável discutir o desenvolvimento da obra de

Mariátegui sem fazer menção ao impacto das ideias do teórico francês sobre as análises do

jovem peruano. Como já afirmamos no capítulo anterior, Sorel era um dos autores lidos

pelo círculo de intelectuais organizado em 1918 em Lima para o estudo das ideias

socialistas. Disto podemos deduzir a existência de um primeiro contato do Amauta com o

trabalho de Sorel já no Peru. Porém, o aprofundamento nos textos do socialista francês se

daria, efetivamente, na Itália (SYLVERS, 1981, p. 25).

Engenheiro de formação, Sorel se aproxima das ideias marxistas no início da década

de 1890. Proveniente de um ambiente de cultura liberal e conservadora, Sorel inicialmente

se identificará com as definições de conceitos como liberdade e igualdade a partir das ideias

de Alexis de Tocqueville, Ernest Renan e Hippolite Taine. Seu percurso intelectual, porém,

será impactado pela leitura e dialogo com vários autores, alguns deles já citados acima:

intelectuais do revisionismo como Merlino, Bernstein, Croce, mas também autores como

Labriola, Vilfredo Pareto, Henri Bergson, William James e, especialmente, Pierre-Joseph

Phroudon e Karl Marx. A trajetória marxista inicial de Sorel coincide com o começo da

112 “Aniversario y balance”. Amauta, n. 17, ano II, Lima, setembro de 1928.113 “Política Uruguaya”. Variedades, Lima, 1º de janeiro de 1927.

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difusão das ideias marxistas na França, através dos debates registrados nas publicações de

L'Egalité (1870-1883) e em grande parte influenciadas pelas leituras de Jules Guesdes114 e

Paul Lafargue115.

Iniciando suas primeiras publicações como teórico socialista na revista L'Ere

nouvelle (fundada em 1893), a crítica do determinismo e um novo conceito de liberdade

serão os polos em torno dos quais se darão as preocupações de Sorel naqueles anos.

Preocupava-se especialmente em afastar os aspectos fatalistas que constituíam as leituras

do marxismo na época. Entre 1895 e 1897, o teórico francês editou a revista Le Devenir

Social116 e, através dela, tornou-se um dos principais teóricos do marxismo em seu país.

Mesmo tendo suas ideias pouco consideradas pelos políticos socialistas na França, por

outro lado foi bastante considerado no exterior, já que Le Devenir Social havia

definitivamente penetrado no debate cultural de outros países europeus como Itália e

Alemanha. A revista será uma etapa importantíssima também no percurso intelectual de

Sorel, já que através dela estabelecerá contato com Antonio Labriola e, posteriormente,

com Bendetto Croce, gradualmente transformando suas posições iniciais.

Em 1896 Sorel prefaciará a edição francesa de In memoria del Manifesto dei

comunisti (1895), e demonstrará identificar-se com a leitura de Labriola, assim como

refutará as críticas ao pensamento de Marx no ambiente intelectual e político francês. Sorel

se oporá aos críticos da obra do revolucionário alemão, que denunciavam fatalismos e

determinismos em seu trabalho, apontando que isto provinha de leituras vulgares e

equivocadas através das quais as ideias de Marx seriam apresentadas na França (cf.

SOREL, 1897). Neste momento, tanto Sorel quanto Labriola se aproximavam na

114 Retornando de um exílio na Alemanha no ano de 1877, Guesdes ajudou a introduzir na França o debate de Karl Marx e Ferdinand Lassale em torno do programa do Partido Social-democrata alemão (o qual Marx atacou em sua Crítica ao programa de Gotha).

115 A leitura promovida por estes autores, porém, não deixou de atravessar percalços e atingir uma influência ainda restrita e com oposição de vários intelectuais franceses. Alguns, como os possibilistas, acusavam o marxismo de ser uma doutrina autoritária e contrária à autonomia dos trabalhadores (GERVASONI, 1997, p. 12; 45-47)

116 O grupo que fundou a revista, em 1894, era formado por Sorel, Lafargue, Gabriel Deville e Alfred Bonnet. O objetivo era promover a difusão dos textos originais de Marx e de trabalhos baseados em seu método. Continuando o trabalho de L'Ere nouvelle, teve no entanto maior impacto internacional, com colaboração de alemães, russos e italianos (GERVASONI, 1998, p. 73).

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preocupação com questões como a oposição ao positivismo, as distinções entre uma “nova”

ciência e aquela positivista, a crítica ao mecanicismo da relação causa-efeito, a separação

do socialismo em relação às tendências mitológicas de modo a fundar uma leitura

“objetiva” do desenvolvimento histórico. Também se aproximavam no que diz respeito à

reflexão sobre a história entendida como produto de um homo faber (a atividade produtiva

como meio da conformação do homem – e da história), e sobre a distinção entre ambiente

social e ambiente biológico (incorporando mais uma vez o dilema antipositivista) (cf.

GERVASONI, 1998, p. 96-97). No préface, Sorel também dará indicações sobre a

necessidade de um desenvolvimento da temática da moral no pensamento de Marx.

A aproximação a autores como Croce e Merlino permitirá a Sorel tomar parte no

debate revisionista da passagem dos séculos XIX e XX. Especialmente Merlino,

inicialmente um anarquista que aderiu ao socialismo na década de 1890, e que teve uma

obra publicada na França sob o título de Formes et essence du socialisme117 (1898), foi uma

importante influência para o socialista francês. Sorel também prefaciou este livro, e nele

definiu sua ruptura com Labriola: afirmou que os socialistas erraram ao reivindicar a

constituição de um “partido científico”, e apontou a necessidade de uma “revisão rigorosa”

da doutrina de Marx e Engels, a fim de separar cuidadosamente o que era essencial e

científico daquilo que dizia respeito às tradições revolucionárias e às preocupações políticas

(GALASTRI, 2011, p. 175). Passava a rejeitar enfaticamente também os nexos causais

entre economia e sociedade, o que levava o marxismo a ter negado o seu caráter de

“filosofia da história” (já que não era interessado em prever o decurso da história)

(GERVASONI, 1998, p. 115). Como Merlino, entendia a necessidade de se afirmar uma

nova moral, distinguindo a moral individual da moral social, e dando ênfase a esta última

no que diz respeito ao peso de seu influxo na trama da transformação social. Considerando

falsa qualquer lei que dispusesse a prever a crise do capitalismo, afirmava porém a

importância de se sustentar a imagem da catástrofe como modo de nutrir a identidade do

proletariado socialista, permitindo também a construção de instituições autônomas da

burguesia e capazes de impor verdadeiras e significativas reformas (GERVASONI, 1998, p. 117 A obra em italiano recebeu o título de Pro e contro il socialismo, publicada no país em 1897.

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118).

Sorel, neste momento, avança categoricamente para o reconhecimento do papel

político das instituições organizadas por trabalhadores (como sindicatos e cooperativas), o

que já permite indicar os caminhos teóricos futuros do socialista francês. Sorel desejava um

“retorno à Marx”, observando a teoria do revolucionário alemão sob um aspecto “jurídico”,

e não puramente “econômico”. O socialismo tornava-se uma questão moral, no sentido de

conduzir o mundo a uma nova maneira de apreciar os atos e valores humanos. A aposta que

Sorel assume é na edificação de novos valores morais no seio do proletariado, por conta da

luta de classes (GALASTRI, 2011, p. 175).

As passagens de Sorel estão situadas num processo de revisão que caminha para a

radicalizada ideia do mito na constituição da luta operária. Neste momento, apesar de suas

desconfianças frente às instituições, Sorel dialogava com os teóricos da socialdemocracia

alemã, em especial Eduard Bernstein. Também adotava conceitos croceanos para a análise

dos elementos da teoria marxista do valor e concordava com o olhar sobre o materialismo

histórico como cânone de interpretação histórica, ao modo de Croce.

Outros apontamentos sobre a organização autônoma dos socialistas foram feitos em

L’Avenir socialiste des syndicats (1898), mas a ruptura final com o socialismo “político-

partidário” parece se dar, segundo John L. Stanley (1987, p. 9), à partir de 1901. Na

ocasião, o governo francês, que contava com participação de socialistas – como Alexandre

Millerand e Jean Jaurès – foi criticado por Sorel devido a aprovação de leis limitantes à

autonomia das ordem religiosas, fato que levou Sorel a enxergar naquele governo os

mesmos aspectos repressivos que enxergava no jacobinismo118. Vislumbrando no

socialismo levado a cabo pelos líderes socialistas no parlamento uma inclinação a

tendências ditatoriais, Sorel aos poucos passava a depositar suas esperanças na criação de

um movimento de trabalhadores não partidário, não parlamentar, iniciando um novo

118 Segundo Leandro Galastri, o antijacobinismo de Sorel é caracterizado pela recusa da ação política protagonizada e centralizada em um partido revolucionário, da presença de intelectuais em posições de vanguarda e da unificação da luta em torno do programa político de uma classe hegemônica. Para o teórico francês, todo jacobinismo se tornaria, de fato, violência como força estatal (GALASTRI, 2011, p. 269-270)

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momento de sua revisão do marxismo, em que se distanciava das ideias de Bernstein e

forjava as bases de seu ataque à democracia francesa (STANLEY, 1987, p. 10). As

repercussões políticas do caso Dreyfus119, somadas à escalada de radicalismo político e a

insignificância das reformas sociais da época, despertavam em Sorel um rechaço à aliança

entre o proletariado e as forças políticas democráticas. Passaria, então, a considerar o

conceito de democracia como sinônimo de poder político da pequena burguesia, apoiado

pelo poder econômico burguês ao mesmo tempo em que se apresentava como porta-voz dos

interesses gerais (GALASTRI, 2011, p. 203).

Sorel se aproximava, assim, do sindicalismo revolucionário. Seus primeiros

argumentos em apoio à concepção seriam publicados em 1905120, quando afirmaria a

necessidade do retorno aos princípios do marxismo e da substituição da noção de paz social

(cara aos socialdemocratas) pela noção de guerra de classes. Posteriormente, em “La

Décomposition du marxisme”, Sorel buscaria identificar o verdadeiro caráter do marxismo;

em “Le Illusions du progrès”, exploraria conceitos chaves da ideologia burguesa das quais a

classe trabalhadora necessitava se afastar. Réflexions sur la violence, provavelmente o

trabalho mais conhecido de Sorel, traria à cena principal a greve geral e a construção da

“nova moral dos produtores” (JENNINGS, 1985, p. 120-122; GALASTRI, 2011, p. 111).

Com esta última publicação, Sorel evidenciava os novos caminhos de seu estudo rumo à

defesa de perspectivas voluntaristas e espontaneístas acerca da luta revolucionária.

Buscando diferenciar os escritos de fato produzidos por Marx das leituras promovidas

especialmente pelos teóricos da II Internacional, o socialista francês afirmava o desejo de

empreender uma “decomposição”, uma depuração dos aspectos supostamente positivistas

do marxismo, reencontrando na teoria de Marx suas bases metafísicas (morais) e finalmente

119 Em 1894 o militar e judeu Alfred Dreyfus foi condenado à prisão por traição – acusado de compartilhar segredos militares franceses com o exército alemão. As provas posteriores de sua inocência, todavia, foram propositadamente ignoradas, ao mesmo tempo em que o antissemitismo ganhava força na França. O caso assumiu amplos contornos políticos, criando uma divisão entre dreyfusards e antidreyfusards. Georges Sorel se posicionou entre os primeiros. A consequência mais direta deste imbróglio foi o declínio político das tendências monarquistas e clericais, posicionadas entre os antidreyfusards. Sobre o “caso Dreyfus”, cf. DERFLER, 2002.

120 Nos artigos “Lé syndicalisme révolutionnaire” e “Conclusions aux 'Enseignements sociaux de l'économie moderne'” (Cf. JENNINGS, 1985, p. 119).

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reagrupando e reestruturando os elementos do sistema marxiano capazes de servir à causa

socialista (GALASTRI, 2011, p. 109).

A força do sindicalismo revolucionário presente nas ideias de Sorel dialogava com o

movimento político dos trabalhadores franceses. Legalizados na França desde 1884, os

sindicatos se organizariam em torno da Confédération Générale du Travail (CGT) em 1895.

Desde o início, a tendência de atuação do movimento sindical se daria em torno das ações

diretas e, pelo menos no discurso, buscariam permanecer independentes de partidos e

demais representantes políticos121. Na conjuntura das disputas políticas, o sindicalismo

revolucionário norteou a atuação dos trabalhadores especialmente entre os anos de 1905 e

1909 – “os tempos heroicos do sindicalismo” (Cf. JENNINGS, 1985, p. 117). Movimento

paralelo também ocorria na Itália. Ao final de 1904, na sequência da primeira greve geral

nacional a balançar o país, o setor revolucionário do PSI passaria a invocar o sindicalismo

revolucionário (ou simplesmente sindacalismo), em grande parte referenciada no

movimento político francês (GALASTRI, 2011, p. 50). Basicamente, o sindicalismo

revolucionário se orientava para a completa destruição do capitalismo e sua substituição por

uma sociedade nuclearizada no sindicato, o principal agente da mudança. Atribuindo

grande ênfase à realidade da luta de classes, o sindicalismo revolucionário enxergava na

ação direta sua principal arma. Os adeptos desta perspectiva buscavam assegurar a

emancipação da classe trabalhadora através de suas próprias mãos, o que conduzia à

comum hostilidade dos sindicalistas revolucionários a teorias e intelectuais. Reivindicava-

se a prática em detrimento da teoria.

Sorel, especialmente recorrendo à filosofia de Henri Bergson – e sobretudo ao

conceito bergsoniano de “princípio vital” - afirmará que uma identidade própria à classe

operária seria formada e preservada a partir do imaginário do confronto permanente, pela

memória coletiva da tradição revolucionária e por um heroísmo moral tingido de

pessimismo. A recorrência à revolta constante seria um caminho para manutenção da

121 A relativa unanimidade em torno das táticas não significava, porém, um consenso sindical em torno dos objetivos a serem buscados: potencialmente, os objetivos mais claros dentro do movimento eram ou a defesa dos interesses econômicos imediatos, ou a emancipação final do proletariado através da destruição do sistema capitalista.

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identidade do proletariado. É neste momento que se insere a discussão soreliana sobre o

mito122.

Nas Réflexions, o mito será representado pela noção de greve geral:

os homens que participam dos grandes movimentos sociais representam sua ação imediata sob a forma de imagens de batalhas que asseguram o triunfo de sua causa. Propus chamar de mitos essas construções (…): a greve geral dos sindicalistas e a revolução catastrófica de Marx são mitos (SOREL, 1992, p. 41).

Outros exemplos de mitos recordados por Sorel, como o cristianismo primitivo, a

Reforma, a Revolução Francesa e os mazzinianos ilustram a orientação que o autor atribui

ao conceito como um sistema de imagens, que não deve ser decomposto em diferentes

elementos, mas tomado em bloco, como forças históricas: um conjunto de imagens

percebidas instantaneamente e capaz de evocar com a força do instinto o sentimento de luta

(cf. SOREL, 1992, p. 41; ANDREASI, 1975, p. 23).

Ao defender a pertinência do mito, e mais precisamente do mito da greve geral,

Sorel procura demonstrar como tal conceito força o socialismo a deixar de ser uma doutrina

apenas exposta em palavras, com tendência a permanecer em um “meio-termo”,

conferindo-lhe um valor moral elevado e uma grande lealdade: a condução do socialismo

ao “meio-termo” “é manifestamente impossível quando se introduz o mito da greve geral,

que comporta uma revolução absoluta” (SOREL, 1992, p. 45). O papel que o mito exerce

nas ideias de Sorel, deste modo, é bastante audacioso: se o socialismo até então era apenas

uma utopia123, agora tratava-se de incentivar a aprendizagem revolucionária e completar (e

não simplesmente comentar) a doutrina de Karl Marx:

122 Segundo Galastri (2011, p. 204), o mito teria surgido na obra de Sorel em ligação com a problemática teórica com a qual ele se confrontaria durante os anos de 1899-1902, enquanto que seu conteúdo, desenvolvido à época em que escreveu as Réflexions, traria a marca das lutas sociais do período 1904-1907.

123 Sorel distingue mito e utopia. Os mitos revolucionários seriam quase puros, permitindo compreender os sentimentos e as ideias das massas em luta. Seriam expressões de vontades; por sua vez, a utopia seria produto de um trabalho intelectual com vistas a construção de modelos. “Enquanto nossos mitos atuais conduzem os homens a se prepararem para um combate destinado a destruir o que existe, a utopia sempre teve por efeito dirigir os espíritos para reformas que poderão ser efetuadas fragmentando o sistema” (SOREL, 1992, p. 49-50).

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Por muito tempo, o socialismo foi pouco mais do que uma utopia. É com razão que os marxistas reivindicam para seu mestre a honra de ter mudado essa situação: o socialismo tornou-se uma preparação das massas empregadas pela grande indústria, que querem suprimir o Estado e a propriedade. Doravante, não se trata mais de saber como os homens se arranjarão para gozar da felicidade futura. Tudo se reduz à aprendizagem revolucionária do proletariado. (…) O mito da greve geral tornou-se popular e plantou-se solidamente nos cérebros. Temos ideias sobre a violência que Marx não teria podido formar facilmente. Podemos, portanto, completar sua doutrina, em vez de comentar seus textos, como fizeram por tanto tempo discípulos desastrados (SOREL, 1992, p. 51)124

A força dos mitos se ilustraria no ânimo de luta dos socialistas. A hegemonia do

mito da greve geral entre os trabalhadores dava a eles, consequentemente, uma confiança

muito maior, e os insucessos possíveis de suas lutas nada poderiam lhes provar em

contrário ao socialismo. Sorel defendia que o fracasso era uma questão de aprendizagem,

que apontava para a necessidade de trabalhar a causa com mais coragem, insistência e

confiança: “A prática do trabalho ensinou aos operários que é por meio da paciente

aprendizagem que se pode vir a ser um verdadeiro companheiro e é também a única

maneira de tornar-se um verdadeiro revolucionário” (SOREL, 1992, p. 52-53).

Com suas afirmações, Sorel aponta para o caráter pedagógico da luta socialista,

enfatizada em sua dimensão prática. É muito explícita sua recusa de se classificar como um

“intelectual” justamente por entender o papel deste ator como infrutífero para o movimento

dos trabalhadores. Ao invés de se propor à elaboração de sistemas de pensamento e utopias,

como afirma ser a atividade exercida pelos intelectuais, Sorel apenas diz se limitar ao

reconhecimento do alcance histórico da noção de greve geral, demonstrando que novas

culturas poderiam emergir das lutas desenvolvidas pelos sindicatos revolucionários contra

os patrões e o Estado: “nossa maior originalidade consiste em ter afirmado que o

proletariado pode libertar-se sem precisar recorrer aos ensinamentos dos profissionais

burgueses da inteligência”. A utilidade de sua função, escreve Sorel, reside na negação do

124 Sorel reconhecerá que o mito situa-se num terreno de aparente refúgio das críticas, o que leva muitos a compreenderem o socialismo como uma espécie de religião, cujos adeptos a afirmam independente das críticas que sofram. Sorel, porém, reivindicava o argumento de Henri Bergson sobre a capacidade dos mitos revolucionários de também ocuparem um lugar na consciência dos homens – assim como o faz a religião. Mariátegui fará uma releitura deste ponto de Sorel, a ser conferido no capítulo 3.

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pensamento burguês, de modo a advertir o proletariado, quando necessário, contra uma

invasão das ideias ou dos costumes da classe inimiga (SOREL, 1992, p. 53-54).

O confronto social tornava-se, então, caminho de formação da moral proletária. E

tal embate recebia o olhar entusiasta de Sorel, que enxergava especialmente na

intensificação dos conflitos sociais na França da época – especialmente protagonizadas pela

CGT – o papel influente do mito da greve geral. Mas se o espontaneísmo soreliano

repudiava o papel de instituições tais como o partido e o Estado, todavia reconhecia o papel

de instituições como as federações operárias. Ao se tornarem novas autoridades sociais,

estas teriam a missão de trabalhar pela cisão da sociedade, contribuindo para a criação de

uma cultura paralela e evitando as vias de aburguesamento da consciência do proletariado

(GALASTRI, 2011, p. 206). Nota-se, portanto, que não há uma recusa de toda e qualquer

instituição. A questão está na ênfase que o teórico francês atribui ao papel do sindicato

como espaço e agente das lutas sociais, da transformação radical e da nova consciência. É

possível afirmar em sua análise a ocorrência de um elitismo sui generis, haja vista que Sorel

repudie qualquer tipo de liderança que reivindique o comando da classe trabalhadora fora

do domínio das próprias organizações de classe. De tal modo, intelectuais e políticos

profissionais permaneceriam irrevogavelmente excluídos da possibilidade de integrar

legitimamente a luta do trabalhadores, sendo responsabilidade do sindicato o fomento das

ideias de cisão permanente de classe e de constituição do horizonte mítico da violência

proletária e da greve geral (GALASTRI, 2011, p. 170-171).

As teorias sorelianas exerceram impactante impressão sobre Mariátegui, que tinha

em sua biblioteca particular três exemplares do teórico francês (De l'utilité du pragmatisme

e duas edições das Réflexions). Se Mariátegui não cita Sorel nas Cartas, nos escritos pós-

1923 o Amauta o terá não apenas como um figura intelectual de aguda relevância, como

também o colocará no mesmo patamar de Lenin e Marx. Afirmará na Defensa, por

exemplo, que Sorel foi “el continuador más vigoroso de Marx” em um contexto de

parlamentarismo socialdemocrático e crise revolucionária pós-bélica; e também uma

influência decisiva para Lênin125, o mais enérgico e fecundo restaurador do pensamento 125 A afirmação de Mariátegui dista, no entanto, da própria leitura de Sorel que, em um apêndice de 1918 à

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marxista, segundo Mariátegui.

Para os comentaristas da obra de Mariátegui é comum o espanto com tal admiração.

Mas a presença constante de considerações sobre as teorias de Sorel é justificada. O

Amauta pôde conhecer o socialista francês através de seus vínculos com Croce, mas

também o leu na imprensa italiana (Sorel colaborou com L'Ordine Nuovo, Avanti! e outras

publicações). Com sua presença no debate político italiano, Sorel tornou-se também uma

influência para os setores socialistas daquele país. O problema é que Sorel, de semelhante

modo, teve suas ideias vistas com bons olhos pelos fascistas126. Quijano sugere,

ironicamente, que foi justamente os seguidores de Mussolini que melhor compreenderam a

mensagem soreliana (2007, p. LXXIII). Não por menos, os apelos nacionalistas que

ascendiam nos anos anteriores à primeira guerra mundial parecem ter sido ignoradas por

Sorel, que também aparentemente não compreendeu porque as tensões sociais de sua época

inclinavam-se gradualmente para enfrentamentos nacionalistas. Além disso, a teoria de

Sorel seria insuficiente para interpretar a evolução do moderno processo de trabalho: o

socialista não teria notado que, em uma época de atomização social crescente, os mitos

conduziriam as massas a uma mais intensa manipulação política, que terminaria por

reforçar o Estado moderno, e não por enfraquecê-lo. A espontaneidade e o irracionalismo

das massas teriam, em sua maior parte, contribuído mais para o surgimento de “césares”

modernos do que para a construção de uma moral operária (SAND, 1985, p. 225;

GALASTRI, 2011, p. 207)127.

quarta edição das Réflexions, diz: “não tenho nenhuma razão de supor que Lênin haja tomado ideias de meus livros. Mas se assim fosse, muito me orgulharia por ter contribuído para a formação intelectual de um homem que me parece ser (…) o maior teórico que o socialismo teve depois de Marx” (SOREL, 1992, p. 315-316). A generosa afirmação de Sorel não teria a mesma correspondência do líder bolchevique, que consideraria Sorel um “confusionista bem conhecido” (LENIN, s/d, p. 305).

126 Mariátegui também reconhece isto ao mencionar a influência de Sorel sobre Mussolini (MARIÁTEGUI, 1988, p. 21-22).

127 Especialmente a partir de 1909, Sorel contribuirá com artigos para a revista nacionalista L'Independence, indicando sua aproximação aos setores nacionalistas e uma desilusão com o marxismo e o sindicalismo revolucionário, o qual afirmava estar em crise naquela época. Retornaria, anos mais tarde, ao âmbito do socialismo, registrando inclusive impressões positivas a respeito dos bolcheviques na Russia (GERVASONI, 1998, p. 366-364; 423). Sobre possíveis interpretações que incorporem Sorel aos quadros do fascismo, Sand (1985, p. 15; 20-21) afirma que, apesar de reminiscências fascistas poderem surgir a partir de sua exposição, seria inviável localizar Sorel neste campo político, especialmente se considerada sua repugnância a um movimento político revolucionário hegemonizado por uma “pequena burguesia”.

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A análise acima concentrou-se especialmente na conceituação soreliana do mito.

Certamente, este é o conceito que mais atrai a atenção de Mariátegui e sobre o qual o

socialista peruano se debruçará em uma quantidade considerável de artigos publicados no

Peru após 1923. O conceito assume um papel bastante conveniente na elaboração teórica de

alguém que, como já demonstramos no capítulo anterior, apresentava fortes inclinações

místicas e pouco tendeu a se afastar delas nos anos de amadurecimento marxista na Itália.

Soma-se a isto a crítica do positivismo, salutar para alguém que, retornando ao seu país, se

defrontará com um regime político cujas bases ideológicas ainda se apoiavam em

elementos positivistas – como ocorria com o oncenio (QUIJANO, 2007, p. LXXIII-

LXXIV).

Sorel e Mariátegui se assemelhavam em alguns aspectos, como no caráter

fragmentário e pouco sistemático de seus trabalhos. Mariátegui também parecia sensível às

posições anticientíficas, anti-intelectuais e anti-academicas defendidas pelo teórico francês.

Quanto às diferenças, apesar de Mariátegui reivindicar categoricamente a importância do

mito como fundamento da ação política, não se valerá de outras ideias polêmicas de Sorel

como, por exemplo, o rechaço completo às estruturas partidárias. É possível afirmar que a

vasta quantidade de leituras empreendidas por Mariátegui – que incluía, vale ressaltar,

nomes de diversas matrizes intelectuais, mas também clássicos do marxismo como os

trabalhos de Marx, Engels e Lênin – permitiu ao socialista peruano desenvolver um

pensamento profícuo e consciente das estratégias políticas a serem empreendidas no Peru, e

não uma mera transposição do sorelismo à sua realidade. Se Sorel era admirado

profundamente por Mariátegui – e é praticamente impossível negá-lo – todavia parece

exagerado afirmar que o Amauta tenha sido um pleno soreliano, como o faz Garcia

Salvattecci (s/d, p. 17).

Ver também GALASTRI, 2011, p. 273.

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Mariátegui, política e catolicismo na Itália

A menção à organização política dos católicos aparece já nos primeiros artigos

escritos por Mariátegui. Ao escrever “Las fuerzas socialistas italianas”128 Mariátegui tecerá

algumas comparações a respeito do papel político exercido pelos integrantes do Partito

Popolare Italiano junto aos trabalhadores e aquele realizado pelos socialistas.

El partido “popular” tiene puntos de contacto com el socialismo en el terreno de las realizaciones políticas. Pertenece al matiz socialista cristiano. Ha nacido recientemente agitando la bandera de audaces reformas económicas y sociales. Pero no puede ser considerado efectivamente como una fuerza socialista. Más que por su mentalidad espiritualista adversa a la mentalidad materialista del marxismo, por la autoridad que ejerce sobre su dirección el Vaticano. Además, el Partido Socialista extrema sus ataque contra esta agrupación más que con ninguna outra. Por ser la única que le disputa el ascendiente sobre las clases trabajadoras. Por ser la que opone, sobre todo en el campo, los sindicatos blancos a los sindicatos rojos (MARIÁTEGUI, 1991, p. 68)

O PPI, como já mencionamos, constituía-se como consequência histórica do

desenvolvimento de uma cultura política própria do catolicismo diante das novas diretrizes

políticas do Estado unitário italiano, especialmente no período posterior à primeira guerra

mundial. Sua fundação também situa-se em uma política geral da Igreja como resposta ao

momento histórico de ascensão das ideias revolucionárias após os episódios de 1917 na

Rússia. Preocupada em não ver dispersa sua influência sobre um segmento expressivo das

massas, a Igreja buscava se colocar como força renovadora, pacifista e popular,

encorajando tendências democráticas no movimento católico, sem contudo enfraquecer

suas relações com as forças conservadoras. Criado em 1919, o partido católico foi

precedido, alguns meses antes, pela constituição da Confederazione Italiana dei Lavoratori

(CIL), que em pouco tempo congregou os sindicatos bianchi e apresentou uma declaração

de princípios bastante fundada no colaboracionismo de classe, como uma espécie de “via

do meio” entre o capitalismo e o socialismo. A fundação do PPI correspondia, naquele 128 Concluído em Roma, abril de 1920; publicado em El Tiempo, Lima, 28 de julho de 1920.

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momento, também à necessidade de uma direção que não podia se restringir ao âmbito

sindical, mas que igualmente demandava uma direção política que agisse como propulsor

do movimento católico mais geral, e de modo autônomo, na luta política italiana

(CANDELORO, 1982, p. 382).

Neste ínterim, deve ser lembrada mais detidamente a importância de Dom Luigi

Sturzo para a fundação do PPI. Sua formação eclesiástica não o apartou do interesse pelos

estudos sociais e pela atividade política, demonstrando também grande capacidade

administrativa e organizativa. Participando do movimento democrático cristão na década de

1900, e colaborando com textos escritos à revista Cultura sociale, afirmaria já em

dezembro de 1905 a necessidade de constituir um partido nacional católico, essencialmente

“aconfessional” e “democrático”. Homem prudente e paciente, Sturzo não se envolveu em

grandes polêmicas políticas e teóricas, o que lhe permitiu angariar o respeito de diversas

tendências católicas nos anos posteriores, especialmente ao final da primeira guerra. Em

1915, Sturzo gozava de estima entre os católicos, bem como da confiança do próprio

Vaticano. Surgia, assim, como o nome mais adequado para a tarefa de fundação e direção

de um partido que, dadas as circunstâncias, devia obrigatoriamente ser apresentado ao povo

como um partido aconfessional, democrático e inovador. Suas ações para a formação do

novo partido se delineariam em 1918 sob a defesa de uma reforma política na Itália cuja

primeira medida deveria ser a adoção da representação proporcional129 (CANDELORO,

1982, p. 383).

Em janeiro de 1919 era publicado o programa do futuro partido com apontamentos

que reivindicavam uma via alternativa em relação ao liberalismo e ao socialismo da época –

“um Estado popular, que reconheça os limites de sua atividade, que respeite os núcleos e os

organismos naturais – a família, as classes, os municípios – que respeite a personalidade

individual e encoraje a iniciativa privada”. Afirmavam os popolari que tratava-se de uma

proposta de criação de um ordenamento “orgânico”, única alternativa capaz de impedir a

desagregação social e a agitação baseada no conflito de classe, promovendo o valor da

autoridade como uma força expoente junto à soberania popular e à colaboração social 129 “Riforma politica o revisione constituzionale?”. Corriere d'Italia, 11 de novembro de 1918.

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(CANDELORO, 1982, p. 386). Entre seus pontos programáticos fundamentais,

preservavam algumas reivindicações tradicionais da Igreja (hostilidade ao divórcio e

liberdade de promoção da educação pela religião – a “liberdade de ensino” – além de tomar

o catolicismo como elemento fundante da vida nacional); entre as propostas mais

democráticas, a defesa da representação proporcional no parlamento, e uma vaga afirmação

do direito ao voto feminino; em termos sociais e econômicos, o programa restringia-se à

garantia de determinados direitos sociais como o direito de organização de classe, o de

segurança social por doença, velhice ou invalidez, defesa da pequena propriedade rural e,

de modo mais progressista, uma ampla reforma tributária com imposto progressivo

global130.

Mariátegui, como notamos acima, se apoiava na impressão do PPI como uma força

não socialista, mas com pontos de contato com as reivindicações do PSI. Mas afirmava que

o PPI não era socialista mais por razão da autoridade que o Vaticano exercia sob sua

direção do que propriamente “por su mentalidad espiritualista adversa a la mentalidad

materialista del marxismo” (MARIÁTEGUI, 1991, p. 68). O apoio indireto do Vaticano ao

novo partido se expressou especialmente na revogação total do non expedit (12 de

novembro de 1919), pouco antes das próximas eleições. Era assim sancionada uma nova

conformação do movimento católico caracterizada pela existência de uma organização

estritamente política, composta de católicos mas não oficialmente dependente do Vaticano

(o PPI) e de outra organização, de objetivo ideológico e cultural, com funções políticas

indiretas, formalmente vinculada ao Vaticano (a Azione Cattolica). Apesar da resistência de

alguns grupos mais identificados com o clericalismo intransigente131, a maioria das forças

católicas aderiu às fileiras do novo partido – inclusive algumas mais propensas à esquerda, 130 Segundo Candeloro (1982, p. 390), tratava-se de um programa econômico-social enfraquecido. As

reivindicações democráticas ali apresentadas sob a influência de Sturzo e outros fundadores do partido, propostas no âmbito da política constitucional, não eram suficientes para definir o PPI como uma força inovadora e progressista.

131 Traniello exemplifica: “o grau de identificação e de fidelidade ao partido por sua base católica era, em muitas áreas do país, relativa; o apoio mais amplo e convicto dado ao partido por ramos específicos do associacionismo, como a Juventude Católica, e a consequente transferência de seus quadros dirigentes à atividade política e administrativa do partido, suscitavam preocupações, senão hostilidades, de uma parte consistente da hierarquia eclesiástica; em geral o aval da Igreja ao partido era sujeito a muitas condições vinculantes e, em sua substância, um tanto inseguras” (TRANIELLO, 2007, p. 228).

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como era o caso do grupo de Guido Miglioli. Mas a tendência centrista, norteada por Luigi

Sturzo, tomou conta das diretrizes do PPI, sendo ratificadas no primeiro congresso do

partido nas datas de 14 a 16 de junho de 1919, na cidade de Bologna (cf. CANDELORO,

1982, p. 391-400).

Até o final de 1919, os popolari assumiriam posição expressiva no cenário político

italiano. Logo após o fim do congresso do PPI, em 23 de junho, forma-se o ministério de

Francesco Nitti, em que dois ministérios são assumidos por membros do PPI. Aumentam

também as hostilidades entre os socialistas (especialmente por influência das posições

anticlericais dos chamados maximalistas) e os bianchi, devido a relação destes grupos com

os movimentos sindicais e a agitação operária daquele ano. Mas o notável desenvolvimento

dos popolari se materializou especialmente nas eleições gerais de 16 de novembro de 1919,

fato que pode ser relacionado ao apoio não oficial do Vaticano e à grande adesão católica ao

partido, e que também foi beneficiado pela introdução da proporcionalidade naquele pleito,

permitindo a conquista de 100 cadeiras. Com os socialistas elegendo 156 deputados, e as

diferentes tendências liberais (ou constitucionais) reunindo outras 252 vagas, os popolari se

estabeleciam como partido de massas e tornavam-se um elemento indispensável para a

formação de uma maioria de governo132 (CANDELORO, 1982, p. 404-405).

Entre 29 e 31 de março de 1920 ocorre em Pisa o primeiro congresso da CIL, e

entre 8 e 11 de abril o segundo congresso do PPI em Nápoli, reunião que delibera pela

manutenção das orientações centristas do partido. Antes disso, no dia 28 de março daquele

ano, o jovem Mariátegui conclui um artigo no qual tece mais precisamente suas impressões

sobre o partido liderado por Sturzo, “El Partido Popular Italiano”133. Reconhecendo o

impacto eleitoral do PPI, Mariátegui enxerga os popolari como o mais vigoroso e influente

132 Era claro para Nitti e os liberais a necessidade de manter os popolari na base de governo, a despeito das também crescentes diferenças entre Nitti e o PPI. Como forma de manter sólida esta base, Nitti assumiu o compromisso de introduzir discussões como a reforma tributária, o problema agrário e o da representação operária e da reforma do Conselho superior do trabalho, pontos bastante próximos aqueles reivindicados pelos popolari (CANDELORO, 1982, p. 408).

133 Publicado em El Tiempo, Lima, 15 de setembro de 1920. Vale notar que a conclusão deste texto (28 de março de 1920) é anterior à conclusão do artigo “Las fuerzas socialistas italianas” (abril de 1920), não obstante a publicação de ambos não seguir a mesma ordem temporal (o segundo artigo foi publicado em 28 de julho de 1920). Não há informações sobre o dia específico em que este segundo texto foi concluído.

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agrupamento político depois do PSI, representando um papel decisivo na política italiana.

Destaca, introdutoriamente, o modo como os católicos atuavam politicamente antes da

fundação do partido, ao lado de liberais moderados, neutralizando o anticlericalismo dos

extremistas e o predomínio dos maçons. O Partido Popular era para o jornalista peruano a

expressão inédita dos católicos como um partido autônomo (MARIÁTEGUI, 1991, p. 62).

Mariátegui também dedica especial atenção à figura de Sturzo, aquele que seria,

mais do que um coordenador, o construtor do partido:

La fundación del Partido Popular ha sido preparada por él poco a poco. Y ha sido preparada con tal acierto que se puede decir que a él, esencialmente a él, debe el Partido Popular su posición y su autoridad actuales (MARIÁTEGUI, 1991, p. 62).

Sendo um homem que, segundo Mariátegui, preocupou-se em construir um apoio sobre

sólida base popular (fruto de sua dedicação à organização sindical dos trabalhadores

católicos, baseado em um programa “socialista-cristão”) antes de dirigir-se à burguesia

católica e de proceder à constituição do partido católico, Sturzo era visto pelo autor peruano

como um tipo admirável de organizador, inteligente e completo:

Después de haber sido creador, continúa siendo todo para el Partido Popular: el líder, el apóstol, el caudillo. No há aceptado entrar a la Cámara. Pero desde su puesto de Secretario Político dirige la marcha de la agrupación en sus menores detalles. Es original la figura de este curita menudo, nervioso, activo y meridional, tan práctico e idealista, tan flexible y firme al mismo tiempo. Se trata, según parece, de un hombre de extraordinaria facultad de captación y de una facultad de adaptación más extraordinaria todavía (MARIÁTEGUI, 1991, p. 63).

A despeito de reconhecer que o trabalho de Sturzo fosse realizado em proximidade

com os interesses do Vaticano, Mariátegui não deixava de observar no trabalho do líder

católico a aplicação de uma marca pessoal: “La meta”, dizia Mariátegui, “ha sido señalada

tal vez por el Vaticano; el camino ha sido señalado siempre por Don Sturzo”

(MARIÁTEGUI, 1991, p. 63). E a descrição do modo de trabalho de Sturzo naqueles anos

deixava claro para Mariátegui a atualidade e o sentido profundamente oportunista daquele

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partido: caso os popolari se fundassem em um espírito estritamente burguês e conservador,

seu fracasso seria irremediável; derrocada esta que poderia ser esperada da mesma forma se

afirmassem a si mesmos como paladinos das reivindicações vaticanas. Pelo contrário, o PPI

acertadamente não declarou aspirações confessionais, e defendeu uma série de demandas

econômicas congruentes, afirmava Mariátegui, com as orientações e interesses do

proletariado e particularmente dos trabalhadores do campo. Seria o exemplo mais evidente

da hábil percepção que Sturzo tinha da realidade política da Itália e da realidade social do

mundo (MARIÁTEGUI, 1991, p. 63).

As afirmações de Mariátegui conduzem sua reflexão para a esfera do equilíbrio de

forças que os popolari são obrigados a lidar, envolvendo três polos: o Vaticano, os liberais e

os socialistas. As pretensões pontificiais, não obstante as atitudes mais moderadas do

Vaticano diante da conjuntura política nacional, ainda se prendiam, dizia Mariátegui, ao

desejo de restabelecimento de seu poder temporal; os liberais não apenas desejavam manter

a estabilidade de seu poder como também esperavam de sua aliança com os popolari uma

importante via de enfrentamento às investidas socialistas, sem contudo abrir mão de

princípios basilares como a neutralidade religiosa do Estado e a oposição à “liberdade de

ensino” (religioso); os socialistas, sem forjar relações políticas com os popolari,

posicionavam-se como adversários políticos diretos na disputa dos trabalhadores italianos,

base popular que em grande medida constituía a força do PPI. A defesa de um programa

mínimo, apontando demandas tanto de fundo institucional católico quanto econômicos e

sociais, era um importante caminho que Mariátegui enxergava na atuação dos popolari.

Nisto se enquadrava a ação de Dom Sturzo de conciliar com os interesses do Vaticano a

necessidade de o PPI se orientar de modo afirmativo e colaboracionista (e não de modo

negativo e abstencionista). Também tinha em consideração a exigência dos popolari de

garantia da “liberdade de ensino”134 e que a neutralidade religiosa do Estado implicasse

também uma neutralidade frente a demandas secularizantes – tais quais a aprovação do

divórcio civil reclamada pelos socialistas. Como é possível denotar – e Mariátegui não fez 134 Sobre isto, Mariátegui observava: “Creen los católicos que es en la escuela donde hay que librar la batalla

definitiva. Yque es en la escuela donde hay que intentar la conquista política de Italia” (MARIÁTEGUI, 1991, p. 64-65).

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diferente – certas demandas seculares eram caras tanto a socialistas quanto às facções

liberais mais extremistas. O conflito que isto gerava com as reivindicações católicas

também não deixava de impor certas tensões entre os grupos governantes e os popolari.

Sem a coalização entre liberais e o PPI, porém, a Itália se tornava ingovernável para os

liberais e fragilmente sujeita à investida socialista.

Mariátegui considerava este último ponto o lugar que estabelecia o papel decisivo

do PPI na política italiana. Mas não apenas era a chave para a governança: era também um

estágio decisivo para o próprio PPI em relação à manutenção de suas bases populares:

el Partido Popular extrae sus fuerzas del proletariado. De aquella parte del proletariado atraída por la bandera del socialismo-cristiano. Y bien. Si el Partido Popular no consigue que el gobierno desenvuelva una política acorde com sus principios programáticos, si por el contrario, se solidariza con una política de represión, perderá la confianza de sus masas proletarias. Los socialistas no desperdician, por esto, la ocasión de colocar a los populares entre los intereses de la burguesía y los intereses del proletariado para empujarles a un renuncio. Saben perfectamente cuál sería el efecto de dos o tres renuncios en la muchedumbre electora (MARIÁTEGUI, 1991, p. 66).

O que leva Mariátegui a uma conclusão aparentemente cética a respeito da

continuidade do PPI. O logro de Dom Sturzo – o de constituir um partido de aristocratas,

burgueses, sacerdotes (curas) e trabalhadores, reunidos sob o laço de uma espiritualidade

cristã – conformava um partido que podia ser comparado a uma árvore (uma referência que

Mariátegui dizia tomar de empréstimo do deputado socialista Claudio Treves): sua copa

seria a aristocracia; suas raízes se alimentariam do húmus proletário. Enquanto este não lhe

faltasse, o partido viveria; do contrário, a árvore secaria:

Y en estos tiempos de lucha de clases, nada más dificil de conservar mancomunados y solidarios a los católicos de arriba con los católicos de abajo. Aunque esté de por medio de un Sturzo, ecléctico, sagaz y persuasivo (MARIÁTEGUI, 1991, p. 66).

O problema da influência católica sobre os trabalhadores era colocado, assim, num

horizonte de contradições e mudanças a longo prazo. Mariátegui, neste momento,

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enxergava dificuldades para que esta colaboração de classe norteada pelo sentimento

católico no interior do PPI fosse realmente perene. O avanço da luta de classe poderia

colocar esta relação em xeque.

A questão do operariado católico era colocada nestes termos pelo Amauta. Mas os

socialistas italianos também travavam esta discussão, a exemplo de Gramsci. Em 20 de

março de 1920 (pouco antes de Mariátegui concluir o artigo comentado acima), Gramsci

publica uma nota não intitulada em L'Ordine Nuovo em que polemiza com um

representante maximalista – não identificado no texto – crítico à iniciativa de diálogo com

autoridades religiosas e de estes serem tratados como outros trabalhadores (caso

exercessem um “trabalho útil à sociedade”). Sua preocupação reside principalmente no

diálogo com as alas popolari mais inclinadas à esquerda:

Será necessário extirpar do solo italiano os operários e camponeses que politicamente seguem a bandeira do Partido Popular em sua ala esquerda? Os operários comunistas, não contentes de dever lutar contra o esfacelamento econômico que o capitalismo deixará de herança ao Estado operário; não contente de dever lutar contra a reação burguesa; deverão também suscitar na Itália uma guerra religiosa ao lado de uma guerra civil? (…) O Partido Socialista, como partido da maioria da classe trabalhadora, como partido de governo do futuro Estado operário italiano, deverá ter uma “opinião” a propósito e deverá divulgá-la entre as massas proletárias que seguem politicamente os clericais. Na Itália, em Roma, há o Vaticano, há o Papa: o Estado liberal precisou encontrar um sistema de equilíbrio com o poder espiritual da Igreja. O Estado operário deverá, de semelhante modo, encontrar um sistema de equilíbrio (GRAMSCI, 1975a).

Gramsci, neste sentido, se contrapunha a uma tendência anticlerical bastante

representativa no conjunto dos socialistas. Mas evitemos uma interpretação equivocada que

coloque Gramsci como um conciliador diante da instituição católica. Longe disto, a

preocupação do marxista sardo dizia respeito ao enfrentamento da hegemonia da Igreja

sobre o mundo camponês e, por outro lado, à desarticulação das relação entre a Igreja e o

Estado liberal, consequentemente superando a contraposição entre catolicismo e socialismo

de modo a favorecer a penetração das ideias socialistas no mundo católico popular. Gramsci

entendia que, para desagregar a base popular da Igreja, o abandono da luta anticlerical

como estratégia política era uma condição indispensável para o PSI (não nos esqueçamos

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que Gramsci só romperia com os socialistas em 1921). Segundo La Rocca (1991, p. 48),

Gramsci se posicionava pela solução de classe, ou seja, pela aliança com as classes

proletárias (operários e camponeses) que militavam em outros partidos, e jamais pela

unidade com os partidos que gerenciavam setores de base proletária, especialmente por

estar convencido de que a aliança com os partidos burgueses retardariam notavelmente o

desenvolvimento do processo revolucionário.

Os artigos posteriores de José Carlos Mariátegui em que se fariam presentes as

análises do PPI diriam respeito fundamentalmente às condições da política italiana e dos

processos eleitorais ocorridos naqueles anos iniciais da década de 1920. Também haveria

um artigo voltado à polêmica do divórcio – defendido pelos socialistas, rechaçado pelos

católicos, e com possibilidade de graves repercussões políticas para os liberais135.

Mariátegui previa uma dificuldade cada vez maior para a consolidação de uma aliança de

governo estável sob a tutela dos grupos constitucionais. Estes, com suas diferentes

tendências em bloco, contavam com a possibilidade de apoio dos católicos – não obstante

Mariátegui enxergasse um embaraço neste apoio, especialmente a partir de Giolitti, que via

nas novas eleições convocadas para 15 de maio de 1921 a possibilidade de ver as forças

liberais crescerem no parlamento. Mariátegui também vislumbrava o ascenso de setores

extremistas como os comunistas e os nacionalistas. Seu ingresso na arena eleitoral poderia

dificultar ainda mais a formação de uma coalização136. Os resultados eleitorais, comentados

posteriormente por Mariátegui, surpreenderiam tanto governistas quanto oposicionistas,

“los primeros por exceso de optimismo y los segundos, por exceso de pesimismo”137

(MARIÁTEGUI, 1991, p. 153). A redução mínima do número de deputados socialistas e o

135 “El divorcio en Italia”. Concluído em Florença, 30 de junho de 1920. Publicado em El Tiempo, Lima, 10 de outubro de 1920. Neste artigo relativamente descontraído, Mariátegui se posiciona sobre o assunto: “Yo soy partidario del divorcio, más que por altas razones filosóficas, por una menuda razón accesoria. Porque noto que sus más encarnizados enemigos son las mujeres. Y, claro, deduzco que si a las mujeres no les conviene que exista el divorcio, es porque a los hombres tal vez nos conviene. (…) Desengañémonos, con divorcio o sin divorcio, la humanidad continuará siendo tan desventurada como ahora” (MARIÁTEGUI, 1991, p. 218-219).

136 cf. “Visperas de elecciones”. Concluído em Roma, março de 1921. Publicado em El Tiempo, Lima, 15 de junho de 1921 (MARIÁTEGUI, 1991, p. 133-136).

137 “Como esta compuesta la nueva Camara”. Concluído em Roma, maio de 1921. Publicado em El Tiempo, Lima, 24 de julho de 1921.

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aumento do contingente popolare na Câmara praticamente mantinha estanque a

conformação do parlamento. Mais que isso: com um número maior (passaram de 100 a

108), os católicos poderiam ampliar suas exigências na possibilidade de colaboração com

os governistas. Por sua vez, as tendências de extrema direita também haviam crescido entre

os deputados constitucionais, com a participação dos fascistas (que elegeram 35 deputados

na ocasião). Na tentativa de fortalecer o governo, as eleições acabaram por implicar sua

derrota.

A crise do governo permanecia com os popolari tensionando o ministério de Giolitti

a respeito dos caminhos para a realização de uma reforma da burocracia estatal, alvo de

uma greve de funcionários públicos. Para evitar uma batalha aberta com os católicos,

Giolitti se demite e, em seguida, forma-se o ministério liderado por Ivanoe Bonomi (4 de

julho de 1921), com três ministros do PPI e a iniciativa popolare de cada vez mais

consolidar sua influência no poder do país. Também naquele momento cresce o terrorismo

fascista, que passa a atingir as organizações sindicais sob os cuidados dos bianchi, ao

mesmo tempo em que Mussolini, então deputado fascista, discursava no parlamento que o

catolicismo era a representação da tradição latina e imperial de Roma138: era a tentativa dos

fascistas de se apresentarem como defensores do catolicismo e patrocinadores de uma

conciliação e de uma colaboração com o Vaticano. Se por enquanto a iniciativa fascista

representava, como afirma Candeloro (1982, p. 429) apenas uma estratégia de ação

antissocialista (buscando agregar diferentes setores simpáticos às bandeiras reacionárias),

por sua vez permitia uma delineação inicial de uma aliança entre o fascismo, de um lado, e

o Vaticano e a ala conservadora do movimento católico por outro – o que certamente

impactaria o relacionamento entre a hierarquia católica e os popolari e sua direção

centrista.

As declarações de Mussolini não passaram desapercebidas por Mariátegui:

Es sintomático que el líder del "fascismo", Benito Mussolini, político de insospechable filiación librepensadora, haya sostenido en su reciente discurso-programa en el Parlamento la conveniencia de solucionar la cuestión con el

138 Discurso proferido em 21 de junho de 1921. cf. CANDELORO, 1982, p. 428.

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Vaticano. Mussolini se ha fundado, naturalmente, en razones nacionalistas. Ha dicho que la Iglesia Católica es en el mundo un gran agente de italianidad. Pero, en el fondo, las palabras del líder "fascista" constituyen un homenaje a la fuerza del Partido Popular. El "fascismo" maniobra por atraer a los populares a la derecha. Por evitar que se acentúe su inclinación a una colaboración con los socialistas139 (MARIÁTEGUI, 1994, p. 794)

A fala de Mussolini corroborava as mudanças que o cenário político italiano havia

sofrido desde o estabelecimento da unidade nacional italiana. O liberalismo já não se

afirmava do modo intransigente que marcou sua atuação e seu espírito anticlerical no

contexto do Risorgimento. A hegemonia liberal já não era mais ponto pacífico diante do

crescimento das outras duas grandes forças políticas, o Partido Socialista e o Partido

Popular. Seu programa já não se subordina à tradição anticlerical pela necessidade de se

adequar aos novos tempos da política na Itália. E o catolicismo italiano, com sua crescente

influência e seu papel decisivo na governabilidade do país, poderia permitir o início de um

diálogo de conciliação entre a monarquia e o Vaticano:

El Papado no pretende ya el restablecimiento de su fenecido poder temporal. Parece que se conformaría con el reconocimiento de su suoberanía territorial en los palacios papales. Reconocimiento que, evidentemente, la monarquía no encontraría comprometedor acordarlo (MARIÁTEGUI, 1994, p. 793)

Nos textos italianos de Mariátegui os católicos são citados com destaque, pela

última vez, no artigo que relata uma séria crise governamental no mês de fevereiro de 1922.

Nos primeiros dias daquele ano a violência fascista se intensificava. Em 18 de janeiro,

terceiro aniversário do PPI, Sturzo acusou Giovanni Giolitti de incorporar os fascistas ao

Estado italiano, oferecendo-lhes parte do organismo estatal e tornando-se “prisioneiro” do

fascismo140. Contudo, Sturzo não fez observações sobre que ações adotar frente ao

fascismo, tampouco sobre possíveis diálogos com outras forças políticas para uma luta em

defesa da democracia: a hostilidade ao velho Estado liberal-democrático e ao giolittismo

parecia dominar o ânimo político do líder do PPI sem abertura para outras considerações

139 “El Vaticano y el Quirinal”. Concluído em Roma, 30 de junho de 1921. Publicado em El Tiempo, Lima, 30 de agosto de 1921.

140 Discurso intitulado Crisi e rinnovamento dello Stato (citado por CANDELORO, 1982, p. 434).

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(CANDELORO, 1982, p. 435). Em seguida, a crise: com a demissão do então primeiro-

ministro Bonomi, o PPI se posicionou contundentemente contra nova nomeação de

Giovanni Giolitti (o que ficou conhecido como o “veto de Dom Sturzo”). Ocorreram

diversas tentativas de formação de novas coalizões a serem lideradas por políticos como

Enrico De Nicola, Vittorio Emanuele Orlando, e até a proposta de um possível retorno de

Bonomi. Mas a crise se encerrou somente com a constituição do gabinete de Luigi Facta –

situação esta que foi aceita pelo PPI, mas com a relutância de Sturzo.

Em seu artigo141, Mariátegui relata os caminhos desta última crise esclarecendo as

forças principais do parlamento: socialistas, popolari e constitucionais, pontuando a

ausência de coesão deste último em relação aos outros. Também pontua a inclinação de

setor expressivo do grupo socialista ao colaboracionismo – possibilidade que se tornava

mais palpável após a ruptura da fração comunista no congresso de Livorno do ano anterior.

E, fundamentalmente, explica a dificuldade de conformação do novo gabinete a partir da

pressão dos popolari, em especial na sua disputa de influência contra Giolitti. A solução

alcançada pela instalação do ministério Facta representava, segundo Mariátegui, um

governo giolittiiano sem Giolitti: “los católicos, satisfechos de impedir que Giolitti

gobierne personalmente, no han tenido inconveniente para aceptar que gobierne por medio

de un apoderado” (MARIÁTEGUI, 1991, p. 200).

Apesar do claro poder de negociação do PPI e de sua influência na política, os

tempos vindouros trariam tensões à continuidade do projeto idealizado por Dom Sturzo. Se

uma aproximação entre o Vaticano (no papado de Benedetto XV) e os fascistas já se

colocava no horizonte político italiano antes de 1922, a morte deste e a eleição de Pio XI

para o cargo, em paralelo à crise que se desenrolava no parlamento em fevereiro, aceleraria

este processo. No período em que o parlamento foi presidido por Facta (25 de fevereiro a 8

de outubro de 1922), enquanto se intensificavam as ações fascistas, realizaram-se

discussões sobre possíveis colaborações entre popolari e socialistas, mas sem alcance de

resultados. Internamente, o PPI começava a sentir cada vez mais forte o peso da ala

141 “La ultima crisis italiana: crisis de gobierno y crisis de camara”. Concluído em Roma, 24 de fevereiro de 1922. Publicado em El Tiempo, Lima, 13 de abril de 1922.

102

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conservadora enquanto buscava, oficialmente, uma aproximação aos socialistas de direita,

abertos a uma possível colaboração com o governo. Tais tentativas, porém, foram

fracassadas, e os popolari permaneceram reclusos à possibilidade de uma ação comum com

os socialistas em prol de uma aliança antifascista. A tendência antissocialista no interior do

partido se reforçava em episódios como o da mensagem enviada por diversos senadores do

PPI a Dom Sturzo em 18 de setembro de 1922, na qual reproduziam a profunda hostilidade

aos socialistas declarada por diversos dirigentes católicos como também exigiam uma

“purificação” do partido a partir do questionamento dos quadros favoráveis à colaboração

com os socialistas: mais do que sensíveis às orientações do Vaticano, suas intenções

pareciam preparar o terreno para a colaboração dos popolari com os fascistas.

Às vésperas da Marcha sobre Roma (28 de outubro de 1922) o Vaticano orienta o

clero a se manter em posição de neutralidade e de evitar tomar partido a favor dos popolari

– na prática, uma advertência à direção do PPI para que não assumisse frente ao fascismo

uma posição de intransigência. Em 31 de outubro, Mussolini assume o poder ministerial.

Os popolari ingressam no primeiro governo de Mussolini através da atuação de Alcide De

Gasperi e Stefano Cavazzoni. Sturzo, apesar de contrário, cede à decisão. Nos anos

seguintes o PPI seria definitivamente abandonado pela hierarquia católica. Pio XI dedicaria

seus esforços à reformulação da Azione Cattolica. As manobras políticas do fascismo

levariam à liquidação do PPI em 1926. Em 1929 o Vaticano e o regime fascista assinam a

Concordata.

***

No presente capítulo a proposta foi apresentar a conjuntura europeia na qual José

Carlos Mariátegui forjou sua formação política e que o próprio reconheceu como

fundamental para suas atividades políticas posteriores. Apresentamos o histórico do

processo de unificação nacional italiana iniciado no século XIX, a situação política, social e

econômica enfrentada pelos governos decorrentes, bem como a organização e

desenvolvimento das forças políticas socialistas, nacionalistas/fascistas e, especialmente,

103

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católicas. Estes relatos tinham por objetivo melhor esclarecer o momento histórico que

Mariátegui testemunha quando de sua estadia italiana e europeia nos anos de 1919 a 1923.

Procuramos também esclarecer as ideias de alguns nomes que são conhecidos como

influências representativas no pensamento do Amauta, tais como Benedetto Croce, Piero

Gobetti e, especialmente, Georges Sorel. E, por fim, apresentar o que concretamente

Mariátegui escreveu na Itália envolvendo assuntos ou objetos de análise que tivessem

vínculos ao tema da religião.

A ausência de reflexões mais intimistas entre os textos italianos de Mariátegui

refletem o processo de amadurecimento em curso, como citamos no capítulo anterior, desde

1918 com as publicações de Nuestra Época e La Razón. Mariátegui opera suas reflexões no

bojo de um aprendizado intelectual plural e de uma busca assídua por informações e

vivência de diversos episódios de importância política e histórica. Mas, reiteramos, trata-se

de um processo, mais do que uma simples ruptura.

Podemos observar, por exemplo, a análise mariateguiana do partidarismo católico

na Itália. Mariátegui promove uma análise concreta da atuação política dos popolari no

parlamento, expressando tanto olhares admirados quanto clareza e objetividade política. Os

católicos são fundamentalmente analisados, na maior parte dos artigos, no âmbito de seus

ganhos e perdas políticas, num típico trabalho de crônica parlamentar que certamente

remete à experiência do jovem jornalista peruano antes de seu exílio, quando protagonizava

a coluna Voces. Além disso, praticamente não existem críticas ou sequer opiniões sobre a

Igreja, os católicos e os princípios políticos e morais que os moviam. Na discussão sobre a

secularização do divórcio é possível observar um posicionamento mais afirmativo de

Mariátegui sobre um assunto de polêmica religiosa, mas mesmo neste caso a defesa do

divórcio pelo Amauta não diz respeito à pertinência ou não do argumento, e sim a uma

irônica questão de conveniência.

Contudo, cabe observar que a introdução da noção de “luta de classes” no

argumento de Mariátegui aparentemente permite extrair uma leitura da realidade com

pretensos fundamentos socialistas e marxistas. Como já relatamos acima, Mariátegui

acreditava que as diferenças de classe no interior do PPI implicariam uma dificuldade real

104

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para a manutenção da unidade do partido. Relatou inclusive os interesses dos socialistas de

colocar os popolari em xeque na denuncia de seu apoio à repressão governamental contra

os trabalhadores. Observando com certo respeito o que chamava de doutrina “socialista

cristã” a mover a atuação política geral dos popolari, Mariátegui porém parecia acreditar,

naquele artigo concluído em março de 1920, em uma possibilidade concreta de o PPI

perder o apoio das massas operárias sob sua tutela. Ironicamente, o que se viu foi um

partido de fundo católico permanentemente unido, em paralelo a um agrupamento político

socialista obrigado a viver uma quebra de seu quadro protagonizada pela dissidência

comunista e tensões internas que expressariam, antes do ascenso do fascismo ao poder, a

polêmica querela do colaboracionismo no interior das fileiras socialistas142. As dificuldades

do PPI, mais do que por fruto de tensões de classe protagonizadas pelos setores operários

católicos, surgiram em grande medida a partir do fortalecimento das tendências

conservadoras, sustentadas pela hierarquia eclesiástica, em gradativa aproximação com o

fascismo.

Por fim, a questão do mito. Ou melhor, a ausência deste. O termo não surge nos

textos italianos com as conotações políticas que viria a adotar na reflexão mariateguiana

após 1923. O que nos parece claro é que, no exílio, Mariátegui foi significativamente

impactado pelas leituras de Sorel. A importância que o mito assume nos escritos mais

programáticos de Mariátegui depois de seu retorno ao Peru segue, portanto, à partir deste

registro.

***

142 Ironia esta que, como procuramos demonstrar, não passou desapercebida de Mariátegui nos artigos posteriores.

105

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Cap. 3 – Mariátegui, militante socialista – 1923 - 1930

O navio em que Mariátegui e sua família haviam embarcado na Europa chega ao

porto de Callao em março de 1923. Após um período de ampla experiência política e

intelectual vivida na Itália, Mariátegui regressa a Lima assumindo tarefas intelectuais e de

militância junto ao movimento estudantil e operário da época. Seu objetivo: construir o

socialismo em seu país. Assim explica o próprio Amauta, em 1928:

Desde Europa me concerté con algunos peruanos para la acción socialista. Mis artículos de esa época, señalan las estaciones de mi orientamiento socialista. A mi vuelta al Perú, en 1923, en reportajes, conferencias en la Federación de Estudiantes y la Universidad Popular, artículos, expliqué la situación europea e inicié mi trabajo de investigación de la realidad nacional, conforme al método marxista (MARIÁTEGUI, 1994, p. 1875).

O Peru ao qual Mariátegui retorna ecoa os eventos políticos de 1919, ano de sua

partida para a Itália. As greves e as lutas protagonizadas por trabalhadores e universitários

naquele ano contribuíram para a formação de um movimento operário e estudantil mais

sólido e organizado. Um exemplo concreto deste avanço organizativo é a criação, por

decisão do Primeiro Congresso Nacional de Estudantes (Cuzco, 1920), das Universidades

Populares González Prada, sob responsabilidade da Federación de Estudiantes del Perú, e

dirigida por Victor Raul Haya de la Torre.

Por outro lado, estava em curso o oncenio, o governo de Augusto Leguía, iniciado

em 1919. Foi sob a responsabilidade de Leguía que Mariátegui se viu forçado a aceitar o

convite para sair do Peru nos anos seguintes. Se o governo em questão, em seus primeiros

anos, havia agido de modo a consolidar uma base popular de apoio ao regime, através de

uma postura reformista “democrática”, nos anos seguintes apelaria às práticas políticas

despóticas e intensificaria a dependência política e econômica internacional dos peruanos

em relação aos Estados Unidos (KLARÉN, 2008, p. 366).

Mariátegui, portanto, regressa ao Peru em um momento de grande eferverscência

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política e de conflitos que opunham o governo de Augusto Leguía contra os estudantes e

trabalhadores organizados do país. É neste caldeirão que o Amauta se dedicará à construção

do socialismo no Peru.

Os primeiros anos do oncenio de Augusto Leguía (1919-1930)

Economia e política

Classificado como um “capitalista selfmade”143, com reconhecido tino empresarial e

experiência em administrações civilistas anteriores, Leguía havia se tornado o líder da ala

progressista do Partido Civilista, assumindo a presidência peruana entre 1908-1912. Ao

final de seu primeiro mandato, Leguía rompeu com os civilistas e permaneceu em exílio

durante o segundo mandato de José Pardo. Ao notar a encruzilhada histórica em que o Peru

se encontrava em 1919, Leguía regressou ao país buscando capitalizar politicamente com a

agitação social generalizada que colocava em xeque a ordem civilista.

Em sua campanha presidencial, Leguía prometeu diversas reformas e desferiu vários

ataques aos políticos civilistas. Com isto, angariou contundente apoio de setores da classe

média e de trabalhadores que sofriam com as fortes e cíclicas flutuações da economia de

exportação peruana. Eleito, Leguía habilmente agiu de modo a impedir a frustração de sua

posse através de um “golpe preventivo”. A dissolução do parlamento, de inclinação

civilista, foi o passo seguinte144. Em outubro de 1919, seria proclamado, finalmente,

“presidente constitucional”.

Buscando consolidar as bases populares de seu apoio, Leguia se dedicou à

dissolução das tensões da classe trabalhadora urbana por meio da adoção de reformas como

a jornada de oito horas, o arbitramento obrigatório e a instituição do salário mínimo.

Paralelamente, expandiu as obras públicas, gerando novos empregos para uma classe

143 KLARÉN, 2008, p. 365.144 A conjuntura política que culminou nestes eventos é mencionada na nota 70.

108

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trabalhadora urbana que sofria com o colapso das exportações no pós-guerra. A classe

média, essencial para a constituição do regime e em acelerado crescimento durante todo o

oncenio145, também foi beneficiada por reformas como a “Ley de Empleado” e a expansão

dos empregos públicos, que foram quintuplicados. Por fim, Leguía também atendeu a

algumas reivindicações camponesas e indígenas: criou uma secretaria de assuntos

indígenas, instituiu o feriado nacional do dia do índio e reconheceu, constitucionalmente, a

legalidade da propriedade comunal indígena146. Apesar de Leguía aumentar sua

popularidade entre os camponeses, as medidas em questão não alteraram fundamentalmente

a estrutura da sociedade rural andina, mas permitiram atenuar o descontentamento dos

indígenas do sul do país, ao mesmo tempo em que fortalecia seu apoio em setores de casta

mestiça das cidades em ascensão, que se encontravam em processo de redescobrimento de

suas raízes índias junto ao movimento indigenista (KLARÉN, 2008, p. 366-367).

Estas últimas medidas não eram ainda suficientes para dissolver a inquietação social

no campo. Para tanto, Leguía buscou reajustar a economia do país para adequá-la à

realidade da economia internacional do pós-guerra. Totalmente voltada para a exportação, a

estratégia do presidente foi acelerar o crescimento do espaço capitalista no Peru, ao mesmo

tempo em que encorajava o capital estrangeiro a dirigir seus investimentos ao país e em que

expandia o papel econômico do Estado. Os Estados Unidos, no mesmo momento,

procuravam sanar as crises internas do pós-guerra através da expansão de seus

investimentos de capital e de seus mercados na América Latina. E isto não passou

desapercebido por Leguía. O presidente peruano estimulou os investimentos norte-

americanos diretos e em grande escala, especialmente no setor de mineração, cuja

desnacionalização foi praticamente concluída durante o oncenio. Elementos como cobre e

petróleo passavam a ser os principais produtos de exportação peruanos ao final da década

145 Vários grupos profissionais de setores médios tiveram expansão significativa no período de 1920-1931. O números de estudantes aumentou em 97,47%, e o de escritores e jornalistas em 153,28%. Entre médicos, o crescimento foi de 158,37%. Porém, o maior crescimento está entre os empregados da administração pública: 491,65% (cf. STEIN, 1980, p. 74).

146 O texto da nova carta magna promulgada em 1920 afirmava, em seu artigo 58, que “a nação reconhece a existência legal das comunidades índias e a lei determinará os direitos que lhes correspondem”. A nova constituição incorporou várias das ideias do crescente indigenismo que se desenvolvia entre a intelectualidade do país (cf. DAVIES JR., 1973, p. 195).

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de 1920. O governo de Leguía também foi bem sucedido na aquisição de empréstimos nos

mercados monetários estrangeiros, implicando em um crescimento de 105 milhões de

dólares da dívida externa peruana entre os anos de 1920 e 1928 (cf. BONILLA, 1977, p.

597; THORP, 1978, p. 115). Com este aporte financeiro, desenvolveu-se uma grande

expansão da infraestrutura do país com vistas ao atendimento da economia de exportação:

obras públicas para modernização das principais cidades em termos de saneamento,

estradas, etc – especialmente na capital, Lima; ampliação dos transportes nacionais e da

rede de comunicações, construção de sistemas de irrigação na costa peruana, e aumento da

burocracia governamental.

Se todas estas medidas estavam de acordo com a preocupação de Leguía em

expandir e modernizar a capacidade exportadora do país, todavia os impactos políticos de

cada despesa eram cautelosamente calculados de modo a ampliar as bases de poder do

presidente. Não apenas a classe média foi beneficiada pela modernização urbana, mas

também grupos de especuladores e construtores diretamente ligados a Leguía. Neste

sentido, o governo da “Patria Nueva” favorecia o surgimento no país de uma nova

plutocracia, que em grande medida substituiu politicamente a velha oligarquia civilista. A

moralidade oficial e pública, nesta ocasião, desceria a níveis extremamente baixos, sendo

inúmeros os casos de especulação, concussão e fraude (KLARÉN, 2008, p. 368).

Recorrendo aos empréstimos externos e ao estímulo às inversões estrangeiras,

especialmente as norte-americanas, Augusto Leguía levava o Peru ao aprofundamento de

sua dependência frente a economia de exportação. O impacto econômico destas medidas

foram enormes, e sentidos especialmente na debilitada industria peruana. Se na passagem

do século XIX para o XX a industria sinalizava a expectativa de um desenvolvimento

autônomo e equilibrado, duas décadas depois ela assistiria o aprofundamento de seu próprio

descenso iniciado ainda no ano de 1908. Era o visível indicador do declínio do capitalismo

nacional: se, no ano de 1902, 29% da capacidade industrial peruana era controlada por

firmas estrangeiras, esta porcentagem cresceria para 45% em 1910, 55% em 1918 e mais de

80% em 1935. Por sua vez, as exportações continuavam a se destacar, especialmente nos

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setores de algodão, minérios e, em menor grau, de açúcar147.

Outro ponto é que os empréstimos estrangeiros e os gastos deficitários deram ao

governo central um elevado grau de poder, cuja força e influência se fizeram presentes

também no interior do país. O aumento do poder estatal às custas da autonomia das

províncias são ilustradas pela ampliação da rede nacional de transportes e comunicações,

exemplificadas na criação da “Ley de Conscripción Vial”, um ambicioso programa de

construção de rodovias realizado com o recrutamento de mão de obra camponesa e

indígena148. A melhoria no acesso às regiões remotas do país permitiu a Leguía organizar

uma campanha de erradicação do banditismo, endêmico em certas regiões do interior e

também dos arredores de Lima. O aumento da presença policial e governamental nestas

regiões permitiu um maior controle estatal de lideranças latifundiárias que, através de

exércitos particulares, historicamente monopolizavam a política nestas regiões e em vários

momentos chegavam a desafiar a autoridade governamental.

O uso hábil dos recursos financeiros do Estado peruano foi um importante

instrumento de Leguía na arquitetura de sua política clientelista, que culminou na criação

de uma nova casta “oficial” de funcionários públicos e empresários profundamente

dependentes do Estado – ou seja, dos interesses do presidente. Somado a isto, as fraudes e

manipulações eleitorais perpetradas já no início de seu governo permitiram a Leguía

transformar o Congresso em apenas um legitimador de suas vontades. Leguía sabia como

adquirir e distribuir os novos poderes do Estado de modo personalista e cada vez mais

ditatorial. Em 1922, o presidente que reivindicava o distanciamento da velha política

civilista já abandonara suas políticas reformistas. A maioria das greves eram reprimidas

147 Este último setor entraria em dificuldades em meados da década de 1920: extensos períodos de seca, seguidos de chuvas catastróficas e grandes inundações, comprometeram os amplos investimentos aplicados pelos donos de engenho na época. Com a elevação do mercado internacional do açúcar a partir de 1925, assistiu-se a perdas em grande escala e uma nova onda de concentração e apropriação da industria por parte de estrangeiros em 1930 (KLARÉN, 2008, p. 369-370).

148 Com esta medida, todas as preocupações demonstradas inicialmente pelo governo com o reconhecimento e a proteção do índio na Constituição peruana foram anuladas. A construção das vias de integração do país não apenas alteraram os padrões de vida dos camponeses indígenas, mas também impuseram a eles grandes custos de vida e sofrimento. Razão de diversas práticas de abuso de poder e repressão, e denunciada por diversos porta-vozes do indigenismo peruano, a “Ley de Conscripción Vial” foi defendida e conduzida sem interrupções por Leguía (Cf. DAVIES JR, 1973, p. 198).

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pela força e o exército era mobilizado para conter os levantes camponeses no sul. Aos

poucos, Leguía estreitava sua base de apoio, restringindo-a à nova plutocracia que ajudara a

formar, enquanto reprimia brutalmente seus opositores (KLARÉN, 2008, p. 370-371).

As Universidades Populares

Em contrapartida à política clientelista e autoritária que se desenrolava sob a tutela

do Estado peruano, novos espaços de formação cultural e política se articulavam sob

especial influência do movimento estudantil organizado em torno da Federación de

Estudiantes del Peru. As Universidades Populares assumiam como diretriz programática de

seus cursos, por um lado, a formação cultural geral, de orientação nacionalista; e, por outro,

a especialização técnica com vistas às necessidades de cada região onde suas unidades se

localizavam149. Estes programas de ensino eram direcionados a trabalhadores e estudantes

universitários como parte de sua preparação para a luta política, visando a constituição de

uma frente única entre estes setores. O anarquismo, especialmente, exercia forte influência

neste movimento, o que resultou no compartilhamento de conteúdos de caráter

majoritariamente apartidário nas classes das Universidades (BRUCKMANN, 2009, p. 59;

QUIJANO, 2007, p. XLV).

Haya de la Torre foi a grande liderança das Universidades Populares. Mas o projeto

também contou com a colaboração de estudantes e militantes que assumiriam papel

destacado na história política peruana, como Raúl Porras Barrenechea, Jorge Basadre,

Eudocio Ravines e o próprio José Carlos Mariátegui. E as Universidades Populares

alcançaram grande êxito, muito além do que estimavam seus idealizadores. Em seu apogeu,

cerca de mil trabalhadores, majoritariamente mestiços, iam ao Palacio de la Exposición,

sede da Universidad Popular em Lima, para escutar às exposições de Haya de la Torre ou

de Mariátegui. A respeito da composição social das Universidades Populares, Jeffrey

149 Em 1923 as Universidades Populares, além de ter centros em Lima, também contava com unidades em Arequipa, Trujillo, Ica, Cuzco, Jauja, Chiclayo, Piura, Huaraz, Puno e Madre de Dios (KLAIBER, 1988, p. 146).

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Klaiber comenta uma fotografia registrada em uma das unidades limenhas da Universidad:

En el centro del círculo de los obreros, sentados en el pasto, cerca de un bosque, vistiendo camisas blancas y corbatas formales, figuran Haya de la Torre y vários outros estudiantes de San Marcos. Alrededor de ellos están los obreros, de aspecto más oscuro y vestidos con las camisas y los pantalones blancos y burdos, típicos de los peones de hacienda en la costa. Finalmente, acompañando a los obreros están sus esposas, notablemente más indígenas, con largas tenzas, sobreros de paja y las faldas o “polleras” tan típicas de la sierra. Algunas de las mujeres que escuchan atentamente a los jóvenes estudiantes llevan a la espalda a sus niños, envueltos en mantas (KLAIBER, 1988, p. 146-147).

Curiosamente, Klaiber afirma que esta diversidade de composição social, cultural e

de conscientização política daria origem a uma mescla de ideias entre o radicalismo

baseado no pensamento anticlerical de González Prada e o cristianismo bíblico. Não

deixava de haver críticos da religião no interior das Universidades. El Obrero Textil (1920-

1925), periódico de orientação anarquista e principal canal de expressão dos trabalhadores

têxteis do Peru, funcionou também como a voz oficial das Universidades Populares a partir

de 1921. Diversos artigos publicados em suas páginas resgatavam o positivismo e o

anarquismo anticlerical e antirreligioso de González Prada. Não obstante todas as críticas

dirigidas tanto à religião organizada quanto a própria existência da crença religiosa, a

imprensa anarquista estimava a figura de Jesus, a concebendo como representação do

protesto social. É o caso do artigo “Jesus fue anarquista”150, onde seu autor afirma que

“Jesus, en nuestro siglo, habría dado mejores resultados. Su gran poder sugestivo

imprimiria un rumbo uniforme a la Revolución Social” (cf. KLAIBER, 1988, p. 148).

Em maio de 1923 é criado por Haya de la Torre o periódico Claridad, que passaria a

ser o órgão de comunicação oficial das Universidades Populares. Semelhante a El Obrero

Textil, Claridad alternaria ataques anticlericais com a apresentação de citações bíblicas em

uma seção intitulada “A los Católicos”, publicada nas duas primeiras edições do

periódico151. O objetivo era chamar a atenção da burguesia católica e do clero peruano à

mensagem de justiça social presente nas mensagens bíblicas e de personagens da história da

150 Lima, El Obrero Textil, outubro de 1923, p. 4.151 Em Claridad, Organo de la juventud libre del Perú, n. 1, maio de 1923, p. 8; n. 2, 1923, p. 6.

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Igreja – especialmente aquelas que condenavam os abusos e as injustiças cometidos pelos

ricos e poderosos. Este discurso também estaria presente em aulas ministradas nas

Universidades Populares. O próprio Haya, ao ministrar uma conferência sobre religião,

exortaria os trabalhadores a não reduzirem seu catolicismo a um mero hábito devocionário,

e sim a transformarem sua fé em um ato prático de caridade fundado na busca da justiça, da

verdade, do amor e do perdão – elementos que constituiriam o trabalho apostólico de Jesus

e da “legítima religião cristã”.

Capitaneados por Haya de la Torre, as Universidades Populares desenvolviam um

trabalho de formação intelectual e política de acentuado caráter contestatório ao regime de

Leguía, e que incorporava, dentro de seus limites, a releitura da cultura e do olhar religioso

dos trabalhadores. Do outro lado, a hierarquia católica peruana continuava a cumprir amplo

papel conservador e de corroboração aos desmando do regime. Esta mescla entre política e

religião forjaria o cenário de um dos episódios mais marcantes de oposição política ao

governo.

Os protestos de 23 de maio de 1923

Em 25 de abril de 1923 o arcebispo de Lima, monsenhor Emilio Lísson, anuncia a

consagração do Peru ao Sagrado Coração, cerimônia que se realizaria na Plaza de Armas da

capital. O ato solene, em si, não comportaria nenhum agravante político e social, não fosse

o fato do arcebispo convidar o próprio Augusto Leguía, com quem sustentava relações

pessoais de amizade, para presidir o evento religioso. O ato passava, deste modo, a assumir

contornos de exaltação e apoio ao ditador, explicitando o uso político da iniciativa

episcopal pelo regime. A resposta contra tal situação, amplamente criticada por diversas

figuras públicas em vários diários e periódicos limenhos, foi a organização de um

expressivo movimento de contestação à cerimônia constituído por diferentes grupos e

atores sociais: a Federación de Estudiantes, setores protestantes, maçons, anarquistas,

alguns grupos católicos, e especialmente os trabalhadores vinculados às Universidades

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Populares e os estudantes da Universidad Mayor de San Marcos, num movimento em que

Haya de la Torre despontava como principal dirigente.

Os protestos, deflagrados em 23 de maio, contaram com milhares de participantes e

enfrentaram cruel repressão governamental que resultou na morte de dois manifestantes e

vários feridos. O episódio serviu para exaltar ainda mais os ânimos e a força dos protestos,

resultando na convocação, para o dia seguinte, de uma paralisação geral de estudantes e

trabalhadores em manifestação contra as ações repressivas do governo e também contra a

hierarquia católica, alvo de severas críticas e palavras de ordem. Haya, especialmente,

dirigia-se aos manifestantes concentrados na Plaza de Armas de Lima acusando o clero de

destruir a liberdade de consciência no Peru e de se valer de métodos comparáveis ao do

período da Santa Inquisição.

Uma terceira grande marcha, no dia 25, ocorreu como procissão fúnebre em

homenagem aos manifestantes mortos. A grande multidão presente nesta nova manifestação

ouviria mais uma vez as palavras de um hábil e persuasivo Haya de la Torre que, após um

discurso de exaltação das vítimas da repressão, afirmaria o “quinto mandamento” em clara

alusão ao silêncio da hierarquia católica frente a corrupção e a repressão governamental:

“¡El Quinto, no Matar! ¡El quinto, no Matar! ¡El quinto, no Matar!” (KLAIBER, 1988, p.

154; VEGA-CENTENO, 2008, p. 280). Diante da força dos protestos, o arcebispo de Lima

não viu outra alternativa se não a de suspender a realização da cerimônia – porém,

registrando mais uma vez sua posição de aliança com o regime ao declarar que a

consagração havia se convertido em arma contra um governo e instituições sociais

legitimamente estabelecidas.

Foi no dia 23 de maio, quando ocorreu a primeira manifestação, que José Carlos

Mariátegui teve anunciada sua primeira conferência a ser ministrada nas Universidades

Populares, a convite de Haya de la Torre. Esta inauguraria uma série de exposições

realizadas pelo socialista a respeito da “crise mundial”, oportunidade enxergada por

Mariátegui para iniciar sua propaganda socialista entre os trabalhadores e desenvolver um

mais persistente debate com o anarcossindicalismo dominante entre os trabalhadores mais

politizados. Iniciava-se sua relação com as Universidades Populares.

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Mariátegui, porém, recusou-se a participar das manifestações contra a cerimônia de

consagração. Haya teria convidado pessoalmente a José Carlos para que participasse dos

protestos. Este, porém, recusaria o convite, classificando os futuros atos políticos como

uma “luta liberalizante y sin sentido 'revolucionario'”152. Entre os comentadores não há um

claro consenso sobre as reais razões da negativa de Mariátegui. Chang-Rodríguez (2012, p.

177), por exemplo, chega a afirmar que a recusa do socialista seria motivada por

“escrúpulos religiosos”; Messeguer Illán (1974, p. 73), denota o enredo anticlerical dos

protestos como reflexo da “luta liberalizante” criticada por Mariátegui; e Pericás, por sua

vez, afirma que talvez o respeito de Mariátegui pelos assuntos religiosos tenha pesado sobre

sua decisão – não obstante reconheça que o argumento de Mariátegui se restrinja ao âmbito

político (PERICÁS, 2006, p. 187). Outros autores como Quijano (2007, p. XLV) e

Sobrevilla (2012, p. 118-119) não chegam a mencionar o possível “problema religioso” da

reflexão de Mariátegui, concentrando-se na ideia de que Mariátegui considerava

politicamente insuficiente os eventos de 23 de maio. O fato é que há poucas referências

sobre o episódio nos textos do Amauta. A mais clara delas é escrita em julho daquele ano, e

concentra-se no papel cumprido pela juventude estudantil nas lutas da época – e sua relação

com a crise mais ampla da própria universidade153. A outra menção, anos mais tarde,

enfatiza a atuação das Universidades Populares e o início das conferências ministradas por

Mariátegui sobre a “crise mundial”154.

152 A frase é atribuída a Mariátegui pelo próprio Haya de la Torre (1985, p. 252-253).153 Afirma Mariátegui: “En el cortejo estudiantil-obrero del 25 de mayo, el rector y los catedráticos de San

Marcos, que marchaban con la juventud y el pueblo, no eran sus conductores, sino sus prisioneros. No eran sus leaders, eran sus rehenes. (…) Esta es la crisis de la Universidad. Crisis de maestros y crisis de ideas. Una reforma limitada a acabar con las listas o a extirpar un profesor inepto o estúpido, sería una reforma superficial. Las raíces del mal quedarían vivas. Y pronto renacería este descontento, esta agitación, este afán de corrección, que toca epidérmicamente el problema sin desflorarlo y sin penetrarlo”. “La crisis universitaria: crisis de maestros y crisis de ideas”. Lima, Claridad, ano 1, n. 2, julho de 1923, p. 3-4 (MARIÁTEGUI, 2003, p. 108-109).

154 “Antecedentes y desarrollo de la accion clasista”, documento apresentado ao Congresso Constituinte da Confederação Sindical Latino-americana em Montevidéu, maio de 1929 (MARIÁTEGUI, 1988a, p. 100-101).

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As conferências sobre a “história da crise mundial” e a repressão governamental

Em 15 de junho de 1923, após a turbulência dos protestos, Mariátegui ministra a

primeira de suas dezessete conferências nas Universidades Populares, que durariam até

janeiro de 1924. Consciente das tendências anarcossindicalistas dominantes entre os

operários que frequentavam aquele espaço, Mariátegui realizará suas conferências

buscando esclarecer a importância de uma orientação doutrinária mais consistente para a

massa de trabalhadores. Não deixou, porém, de apontar a importância de desenvolvê-las de

modo dialógico, como um estudo conjunto dos dilemas contemporâneos do capitalismo

mundial e do papel que cabia especialmente ao Peru em tal conjuntura. Defendia, portanto,

a necessidade da vanguarda do proletariado peruano de compreender esta crise mundial –

uma crise da civilização capitalista, de suas instituições – e seus impactos sobre um país

inserido em tal contexto a partir de uma posição economicamente “colonial”:

La crisis tiene como teatro principal Europa; pero la crisis de las instituciones europeas es la crisis de las instituciones de la civilización occidental. Y el Perú, como los demás pueblos de América, gira dentro de la órbita de esta civilización, no sólo porque se trata de países políticamente independientes pero económicamente coloniales, ligados al carro del capitalismo británico, del capitalismo americano o del capitalismo francés, sino porque europea es nuestra cultura, europeo es el tipo de nuestras instituciones. (…) Sobre todo, la civilización capitalista ha internacionalizado la vida de la humanidad, ha creado entre todos los pueblos lazos materiales qué establecen entre ellos una solidaridad inevitable. El internacionalismo no es sólo un ideal; es una realidad histórica. El progreso hace que los intereses, las ideas, las costumbres, los regímenes de los pueblos se unifiquen y se confundan. El Perú, como los demás pueblos americanos, no está, por tanto, fuera de la crisis: está dentro de ella.

A compreensão desta crise seria fundamental para os trabalhadores, no sentido de

enxergá-la como uma oportunidade e, a partir dela, avançar os passos para a constituição de

uma nova civilização:

En esta gran crisis contemporánea el proletariado no es un espectador; es un actor. Se va a resolver en ella la suerte del proletariado mundial. De ella va a surgir, según todas las probabilidades y según todas las previsiones, la civilización proletaria, la civilización socialista, destinada a suceder a la

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declinante, a la decadente a la moribunda civilización capitalista, individualista y burguesa (MARIÁTEGUI, 1973, p. 15-16)

Com esta proposta, Mariátegui introduziu temas novos no debate político peruano e,

através de suas apresentações, contribuiu para mudanças profundas no ambiente intelectual

e político local, despertando crescente interesse pelos processos sociais e políticos

contemporâneos entre trabalhadores e estudantes. O programa de conferências elaborado

por Mariátegui se dedicava à apresentação de um panorama geral da situação política e

social europeia, com especial referência aos impactos da revolução russa – classificada por

Marátegui como o estopim da revolução social (MARIÁTEGUI, 1973, p. 20). As

conferências constituíam-se como reflexões, a partir da experiencia europeia vivida pelo

Amauta, para propor ao proletariado peruano uma ideologia e um método de ação

revolucionária. Para tanto, teria de examinar as causas da primeira guerra mundial, a

postura dos governos capitalistas diante dos problemas do pós-guerra e a posição dos

socialistas revolucionários em países como Itália, Alemanha e, principalmente, Rússia.

Assim o fez, também trazendo estas reflexões para os problemas da realidade latino-

americana, especialmente no que diz respeito à Revolução Mexicana e a conjuntura política

de países como Argentina, Chile e o próprio Peru (MESSEGUER ILLÁN, 1974, p. 74;

BRUCKMANN, 2009, p. 60-61).

Em decorrência dos protestos de maio e do papel preponderante das Universidades

Populares no episódio, a repressão governamental contra a oposição política se acentuou

gravemente. Haya de la Torre foi detido pelo regime de Leguía no início de outubro e,

posteriormente, exilado. Uma forte ofensiva foi desencadeada contra as Universidades

Populares em Lima, consideradas pelo governo como focos de agitação e subversão, o que

resultou na clausura do espaço onde suas atividades eram realizadas, consequentemente

obrigando seus organizadores e seccionarem seus trabalhos em diferentes espaços sindicais

(BRUCKMANN, 2009, p. 64; SOBREVILLA, 2012, p. 119). Trabalhadores e estudantes,

especialmente em resposta à prisão de Haya, se insurgem em protestos violentamente

reprimidos pelo governo e seguidos de novas prisões de oposicionistas. Em uma destas

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situações, uma reunião organizativa para a realização de uma paralisação geral, que contava

com a participação de Mariátegui, foi interrompida pela polícia e resultou na prisão de

todos os homens ali reunidos – e postos em liberdades alguns dias depois (MESSEGUER

ILLÁN, 1974, p. 74).

Diante da ausência de Haya de la Torre, coube a Mariátegui a responsabilidade de

dirigir tanto a Universidade Popular quanto a revista Claridad, o que ilustra o crescimento

de sua liderança no interior do grupo de estudantes e trabalhadores ali organizados, apesar

de seu pouco tempo de participação em ambos os projetos. Se, com Haya, Claridad

apresentava postura embasada em orientações anarquistas e pelo mote da “justiça social”,

com Mariátegui a revista assumiria uma postura abertamente socialista, de apoio à

revolução bolchevique e de análise do processo revolucionário europeu155. A mudança na

orientação da revista não ocorreria desacompanhada de críticas dos setores anarquistas no

interior das Universidades Populares e da equipe de trabalho da publicação, estimulando

um debate interno entre setores anarcossindicalistas e o crescente grupo de trabalhadores

que se aproximava das ideias defendidas por José Carlos Mariátegui. Na sequência,

chegou-se a formar o comitê organizador da Sociedad Obrera Claridad, que seria

responsável pela publicação de um diário que servisse como órgão oficial do proletariado

peruano e a criação de uma livraria e um projeto editorial de livros, folhetos e revistas

destinados à formação política e cultural dos trabalhadores. No entanto, a disputa em torno

das diretrizes ideológicas do movimento estava longe de representar, nas palavras de

Mariátegui, uma via de exclusão dos setores discordantes da perspectiva socialista.

Mariátegui defendeu, em suas conferências, a importância da constituição de uma frente

única proletária (cf. MARIÁTEGUI, 1973, p. 33), e corroborou esta perspectiva em um

texto publicado em maio de 1924156:

El movimiento clasista, entre nosotros, es aún muy incipiente, muy limitado, para que pensemos en fraccionarle y escindirle. Antes de que llegue la hora, inevitable

155 Nota-se a mudança no subtítulo da revista, que passa de “Órgano de la juventud libre del Peru” para “Órgano de la federacion obrera local de Lima y de la juventud libre del Peru”, justamente quando Mariátegui assume interinamente a direção de Claridad.

156 “El 1º de mayo y el frente unico”. Lima, El Obrero textil, ano 5, n. 59, 1º de maio de 1924.

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caso, de una división, nos corresponde realizar mucha obra común, mucha labor solidaria. Tenemos que emprender juntos muchas largas jornadas. Nos toca, por ejemplo, suscitar en la mayoria del proletariado peruano, consciência de clase y sentimiento de clase. Esta faena pertenece por igual a socialistas y sindicalistas, a comunistas y libertarios. (…) Preconizar el frente único no es (…) preconizar el confusionismo ideologico. Dentro del frente único cada cual debe conservar su própria filiación y su próprio ideario. Cada cual debe trabajar por su próprio credo. Pero todos deben sentirse unidos por la solidaridad de clase, vinculados por la lucha contra el adversario común, ligados por la misma voluntad revolucionaria, y la misma pasión renovadora (MARIÁTEGUI, 1988a, p. 108-109)

Ao mesmo tempo em que assume a direção de Claridad, Mariátegui também passa

a colaborar com o semanário Variedades através da seção “Figuras y aspectos de la escena

mundial”. Nela, Mariátegui comenta sobre figuras relevantes da política europeia – como

Mussolini, Lenin, Nitti, Gorki, Trotsky, entre outros – analisando a evolução do fascismo e

da política soviética. Outro conjunto de artigos também publicado em Variedades se

dedicava às questões estéticas e literárias, com estudos sobre Papini, Marinetti, o teatro

moderno europeu e a literatura revolucionária russa. Em 1924, Mariátegui também passa a

contribuir com textos para a revista Mundial. Deve-se notar que tanto Variedades quanto

Mundial eram publicações com excelentes relações com o regime de Leguía. Para explicar

o porque de Mariátegui contribuir com estas publicações, Armando Bazán argumenta sobre

o desenvolvimento cauteloso do trabalho de formação política e cultural que Mariátegui

desejava promover:

Al darse cuenta de que en el Perú hacía falta una labor paciente, de lenta preparación, y que esta labor podía dessarrollarse perfectamente con un poco de astucia y habilidad, dentro del régimen leguiísta, trazó su plan de acción. Había que seguir una delicada línea de equilibrio, que sin alarmar al Gobierno pudiera rendir una amplia eficacia al fin propuesto. Mariátegui supo guardar esse equilibrio, y sus articulos y sus conferencias, cargadas de pensamiento politico, de preocupación proselitista, tuvieron siempre la apariencia de amenas crónicas y de atrayentes ejercicios literarios (BAZÁN, 1939, p. 99-100)

Mariátegui, de sua parte, assumia a necessidade de agir de forma prudente diante do

governo central. A isto se somava sua frágil situação econômica e a inexistência de uma

publicação alinhada com suas ideias – desta demanda é que surgiria Amauta, em 1926.

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Além disso, era necessário caminhar lentamente para clarear e preparar o espírito dos

futuros agentes da revolução social. Tais cuidados, porém, não impediram que Mariátegui

fosse mais uma vez detido pelo regime. Por assumir a direção de Claridad e possibilitar a

publicação do quarto número da revista (em janeiro de 1924), Mariátegui foi novamente

preso – desta vez por algumas horas, como clara forma de intimidação do governo

(BRUCKMANN, 2009, p. 65). A ameaça de uma nova manifestação operária em favor de

Mariátegui – declinada com a notícia de sua rápida liberação – nos indica a importância que

o socialista assumia entre os trabalhadores (MESSEGUER ILLÁN, 1974, p. 75).

Ao final de maio de 1924 os trabalhos de Mariátegui são interrompidos por uma

grave enfermidade, que o leva à amputação de uma de suas pernas. A situação dramática

faz com que Mariátegui se afaste das atividades políticas por várias semanas e comova

diversos intelectuais, periodistas, dirigentes sindicais, estudantes e trabalhadores da cidade

de Lima para auxiliá-lo, especialmente diante da difícil condição econômica vivida pelo

socialista e sua família. Diversos textos publicados na época davam conta da situação

enfrentada por Mariátegui, e diversas homenagens lhe eram feitas157. Auxílios financeiros

também foram destinados ao Amauta, cuidadosamente recebidos por sua esposa, Anna

Chiappe.

Enquanto Mariátegui seguia com sua recuperação em uma casa nos arredores de

Lima, a capital testemunhava novos protestos protagonizados por trabalhadores e

estudantes. A truculência governamental prosseguia e se aprofundava, culminando em

fechamento de outras unidades das Universidades Populares González Prada. Em setembro,

colaboradores de Claridad sugerem a Mariátegui não assinar o sexto número da revista na

condição de diretor interino, como um mecanismo de proteção diante da crescente

repressão. Mariátegui recusa a proposta, reforçando publicamente sua condição de diretor e

responsável pela publicação:

157 Trecho de Luis Alberto Sanchez: “la tragedia de José Carlos Mariátegui es espantosa. Para el público que menos lo conocía, injusta y cruel. Para los obreros, irreparable. No es frecuente entre nosotros el caso de una tan acendrada voluntad. Ni es frecuente que los escritores, al regresar de Europa, se dediquen con toda el alma a divulgar ideas novísimas, a agitar consciencias adormecidas, a hacer carne, verbo, la efervescencia renovadora del mundo”. “La tragedia de José Carlos Mariátegui”. Lima, Mundial, 30 de maio de 1924 (BRUCKMANN, 2009, p. 66).

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Si nuestra revista reapareciese sin firma, yo sentiría mucho más mi quebrantado físico. Mi mayor anhelo actual es que esta enfermedad que ha interrunmpido mi vida, no sea bastante fuerte para desviarla ni debilitarla158 (MARIÁTEGUI, 1994, p. 1726).

Mariátegui confirmaria a força de seu empenho político, regressando a Lima já naquele mês

para a retomada de seus trabalhos, instalado em Miraflores. Em sua casa circulava um

crescente números de jovens intelectuais, trabalhadores e estudantes, estimulando ali um

intenso espaço de formação política. A repressão política, por sua vez, seguia com a prisão

e exílio de diversas lideranças estudantis e operárias e com o definitivo encerramento das

atividades de Claridad, imposto pelo governo. Mariátegui passa a se dedicar à organização

da Editora Minerva, retomando o projeto da Sociedad Obrera Claridad de publicações

orientadas para a formação política e humanística da classe operária.

As atividades de Minerva se iniciam em outubro de 1925 e, no mesmo ano, a editora

publica o primeiro livro de José Carlos, La escena contemporánea, que reúne uma série de

artigos sobre os processos políticos, sociais e culturais especialmente ocorridos na Europa,

e que haviam sido publicados majoritariamente nas revistas Variedades e Mundial. La

escena contemporánea teve grande repercussão no ambiente intelectual peruano e motivou

diversos comentários e críticas entre escritores e periodistas do país (BRUCKMANN,

2009, p. 68).

Mito, fé e revolução

Antes de seu falecimento, em abril de 1930, Mariátegui hávia concluído a

ordenação de uma série de artigos redigidos entre 1924 e 1929. La escena contemporanea e

os 7 ensayos já eram bastante conhecidos do público, e os artigos agora mencionados

viriam a constituir o terceiro livro do Amauta, cujo título já estava decidido: El alma

158 Carta pública divulgada em Claridad, ano 2, n. 6, setembro de 1924, p. 1-2.

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matinal y otras estaciones del hombre de hoy. Publicado postumamente159, os artigos de El

alma matinal, em sua maior parte, consagram-se à cultura europeia.

A análise que se dará a seguir se concentra, especialmente, em artigos publicados no

ano de 1925 e que, neste livro, encontram-se na seção que Mariátegui denominou “La

emocion de nuestro tiempo”. Não nos parece uma mera coincidência o fato de Mariátegui,

justamente neste ano, publicar os artigos mais lembrados por seus comentadores sobre o

tema do mito. É dito isto porque, em alguma medida, o mito como elemento mobilizador da

luta e da transformação social percorre a pena de Mariátegui por praticamente toda sua

obra, inclusive nos escritos dos 7 ensayos e de Defensa del marxismo. Trata-se, portanto, de

uma ferramenta pela qual Mariátegui integra uma diversidade de discussões e propostas ao

longo do tempo (cf. NUGENT, 1989, p. 157). No entanto, a força destes textos publicados

em El alma matinal se relaciona não apenas com o amadurecimento de suas concepções

socialistas, mas também com as circunstâncias históricas que viveu naquele momento.

Como se não bastassem as inclinações místicas presentes em sua formação intelectual, e a

marcante admiração pelos escritos sorelianos (ambas relatadas nos capítulos anteriores), a

gravidade dos problemas de saúde vividos por Mariátegui em meados de 1924 pareceu

impor ao jovem socialista a necessidade de afirmar-se não apenas politicamente, mas

também como um homem marcado por uma impetuosa “vontade de crer” e de “viver”, fato

que teria sido amplamente testemunhado por pessoas da época (cf. NUGENT, 1989, p.

160). Na carta pública aos redatores de Claridad, há pouco citada, Mariátegui afirmava esta

“vontade”: “Es indispensable para mí que mi palabra conserve el mismo acento optimista

de antes. Quiero defenderme de toda influencia triste, de toda sugestión melancólica. Y

siento más que nunca necesidad de nuestra fe común” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 1726).

Assim, se Mariátegui buscava, através de La escena contemporanea, desvendar uma

nova época por meio dos acontecimentos políticos que estremeciam a Europa naqueles anos

iniciais da década de 1920, El alma matinal se apoiava em outro referencial: o de

apresentar os dilemas mais precisamente subjetivos daqueles conflituosos tempos, seus

impactos espirituais e na mentalidade da época. Tomemos as próprias palavras de 159 A primeira edição de El alma matinal é de 1950, terceiro volume das Obras completas.

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Mariátegui: “La guerra mundial no ha modificado ni fracturado únicamente la economia y

la política de Occidente. Ha modificado o fracturado, también, su mentalidade y su

espíritu” (MARIÁTEGUI, 1987, p. 17).

Homens pré-bélicos e pós-bélicos

Mariátegui apontava que as consequências econômicas dos anos da primeira guerra

mundial não eram mais evidentes e sensíveis do que suas sequelas espirituais e

psicológicas. Porém, isto parecia ser ignorado pelos políticos e governantes, cuja

preocupação se materializava, segundo nosso autor, na busca de fórmulas, métodos,

experimentos que permitissem solucionar fundamentalmente as questões econômicas, e não

em uma teoria e prática adequadas para a resolução das questões espirituais e psicológicas.

Com esta constatação, Mariátegui acreditava ser mais provável que os políticos e estadistas

devessem acomodar seus programas à pressão da atmosfera espiritual, da qual seus

trabalhos não estariam isentos.

Neste sentido, a nova época que Mariátegui enxerga em sua análise é marcada por

homens que não se diferenciam somente pelas doutrinas que defendem mas, sobretudo, por

seus sentimentos. A inteligência dos homens, que aparentemente servem ao mesmo

interesse histórico, é impedida pela existência de duas concepções da vida sobre as quais

residiria, segundo Mariátegui, o conflito central da crise de sua época: as concepções pré-

bélica e pós-bélica (MARIÁTEGUI, 1987, p. 17)160.

Mas o que diferencia estas concepções? Segundo o socialista, os tempos pré-bélicos

carregaram como marca a unidade de classes antagônicas em torno da filosofia

evolucionista, historicista, racionalista, que sobrepôs-se às fronteiras políticas e sociais. Um

respeito supersticioso pela ideia de “progresso” teria se difundido com a consolidação de

um relativo bem-estar material para a sociedade europeia, aproximando politicamente tanto

grupos conservadores como revolucionários em torno de uma “via única”:

160 “Dos concepciones de la vida”. Lima, Mundial, 9 de janeiro de 1925.

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Conservadores y revolucionarios aceptaban prácticamente las consecuencias de la tesis evolucionista. Unos y otros coincidían en la misma adhesión la idea del progreso y en la misma aversión a la violencia” (MARIÁTEGUI, 1987, p. 18).

O fato se repercutia na adesão das massas socialistas e sindicais à democracia, contentes

com suas conquistas graduais e repousadas no esfriamento do fervor revolucionário de seus

líderes. Por sua vez, a burguesia era conduzida por homens inteligentes e progressistas que,

segundo Mariátegui, se preocuparam mais em domesticar os homens do proletariado ao

invés de perseguir a eles e suas ideias.

Ao descrever esta “pacífica” e “estável” sociedade europeia, Mariátegui buscava

ressaltar a existência de uma “ilusão do progresso”161 em que as massas europeias

anestesiavam-se pelos ventos do racionalismo e do positivismo, pela perspectiva do

movimento gradual e evolutivo da sociedade, e onde mesmo grupos políticos opostos

convergiam no rechaço à violência: “progresso” e “violência” se contradiziam abertamente

na perspectiva pré-bélica. O marasmo desta concepção se manifestava não apenas na falta

de vigor revolucionário dos socialistas, mas também nas próprias elites que padeciam,

segundo Mariátegui, de um humor decadente e estetista difundido sutilmente entre elas.

Para o socialista, o sentimento desta geração adocicada e aborrecida diante do advento da

primeira guerra mundial era semelhante a apreciação de um espetáculo: não era o caráter

trágico e cataclísmico que definia o olhar da burguesia europeia, do homem pré-bélico,

sobre a guerra. Esta era vista como um passatempo, um alcaloide.

Porém a guerra “no quiso ser tan mediocre”:

Todas las energías románticas del hombre occidental, anestesiadas por largos lustros de paz confortable y pingüe, renacieron tempestuosas y prepotentes. Resucitó el culto de la violencia. La Revolución rusa insufló en la doctrina socialista un ánima guerrera y mística. Y al fenómeno bolchevique siguió el fenómeno fascista. Bolcheviques y fascistas no se parecían a los revolucionarios y conservadores pre-bélicos. Carecían de la antigua superstición del progreso. Eran testigos, conscientes o inconscientes, de que la guerra había demostrado a la humanidad que aún podían sobrevenir hechos superiores a la previsión de la

161 Mariátegui localiza esta expressão na pena de Sorel. No mesmo parágrafo, cita também Unamuno e sua predicação pelo quixotismo (cf. MARIÁTEGUI, 1987, p. 18).

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Ciencia y también hechos contrarios al interés de la Civilización (MARIÁTEGUI, 1987, p. 19).

As notas de Mariátegui remetem a uma nova concepção de homem e de mundo

própria dos tempos posteriores à primeira guerra mundial. Se Mariátegui demonstrava que

a economia e a velha política eram a verificação prática da validade das propostas

positivistas nos anos anteriores à guerra, por outro lado ilustrava que tais propostas não

apenas constituíam doutrinas, teorias, mas uma maneira de ver as coisas, uma visão de

mundo. É neste âmbito que Mariátegui identificava a mudança mais radical: o homem

regular, frívolo e introspectivo dos tempos pré-bélicos cedia lugar a uma geração romântica

e que cultuava a violência – neste caso, violência que não era sinônimo de agressão

gratuita, mas de combate, de fé apaixonada e coletiva162: o culto à violência é o culto à

aventura, a estar sempre disposto a sair a procura do desconhecido; é a exacerbação dos

mitos em “tempos de exceção”; é, enfim, “la sustitución de la escolástica por la mística”

(NUGENT, 1989, p. 150). Esta violência seria um traço marcante do que Mariátegui

definiu como o homem pós-bélico.

A geração pós-bélica demonstraria grande rechaço ao cientificismo, um dos pilares

da noção de progresso – e sua consequente contribuição para a passividade social. A

Revolução Russa era o ponto de partida da interpretação de Mariátegui. Ele considerava

que a atuação dos bolcheviques carregou a própria doutrina socialista com um ânimo

guerreiro e místico que os distinguia marcadamente dos revolucionário pré-bélicos. O

fenômeno – seguido da insurgência do fascismo – caracterizaria esta ruptura geracional no

âmbito das mentalidades: sai o discurso passivo, racionalista e normalizador, a

reivindicação nostálgica e conformista da ordem pré-bélica, e entra a linguagem beligerante

e violenta, o desejo de “viver perigosamente” proclamado por bolcheviques e fascistas, o

impulso romântico, o humor quixotesco. A nova humanidade acusa uma nova intuição da

162 Sobre as fontes de Mariátegui, já mencionamos a importância dos escritos de Sorel. Nugent comenta que as afirmações do socialista peruano a respeito da violência se embasam nas leituras do escritor francês: “Mariátegui, que había estudiado con detenimiento más a Sorel, sabía que éste no sólo era enemigo del atentado individual sino además uno de los más ásperos e inflexibles críticos del Terror deencadenador por Robespierre” (NUGENT, 1989, p. 150).

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vida, uma ação, uma nova fé, um mito:

La vida, más que pensamiento, quiere ser hoy acción, esto es combate. El hombre contemporáneo tiene la necesidad de fe. Y la única fe, que puede ocupar su yo profundo, es una fe combativa. (…) La dulce vida prebélica no generó sino escepticismo y nihilismo. Y de la crisis de este escepticismo y de este nihilismo, nace la ruda, la fuerte, la perentoria necesidad de una fe y de un mito que mueva a los hombres a vivir peligrosamente (MARIÁTEGUI, 1987, p. 21-22).

Dessa forma, percebemos que em sua reflexão Mariátegui denuncia as ilusões do

discurso racionalista em prol de uma nova visão, uma nova mentalidade, uma disposição

heroica para a luta. Tal disposição é introduzida pelo socialista em termos temporais, sendo

a primeira guerra mundial o marco de uma mudança que, mais do que constatada, assume

ares de necessidade na escrita mariateguiana. Esta instigante reflexão fornecerá os

elementos para Mariátegui elaborar, com mais precisão, a importância da figura do mito na

constituição do desejo revolucionário.

O homem e o mito

Mariátegui enxergava uma humanidade desconsolada diante da incapacidade de

encontrar na Razão um meio de suprir suas expectativas. É verdadeiro, contudo, que

Mariátegui não está rechaçando a razão e a ciência como tais. A questão para nosso autor é

outra: a do papel da Razão e da Ciência como elementos pelos quais se procurou satisfazer

a subjetividade humana no interior da civilização burguesa. Neste caso, a Razão deve ser

interpretada como expressão da legitimidade burguesa. Uma expressão que, efetivamente,

não se consolida: o racionalismo, segundo Mariátegui, não teria contribuído senão para

desacreditar a própria razão. As promessas do progresso e do bem-estar ilimitado levadas a

cabo pelo discurso racionalista e cientificista esbarrariam nas dores e no rastro de

destruição e desilusão deixados pela primeira guerra. A Razão, assim como a Ciência, não

podem satisfazer o que Mariátegui define como “la necesidad de infinito que hay en el

hombre”. Apenas o Mito pode cumprir esta tarefa:

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La propia Razón se ha encargado de demostrar a los hombres que ella no les basta. Que únicamente el Mito posee la preciosa virtud de llenar su yo profundo163 (MARIÁTEGUI, 1987, p. 23; cf. NUGENT, 1989, p. 160).

Os apontamentos de Mariátegui o levam, portanto, a uma distinção de ordens entre

certezas objetivas e subjetivas. Não serão a razão e a ciência, mas o mito que se moverá no

terreno das ações humanas. A consciência revolucionária se fundará na indispensável

necessidade do homem de ter uma concepção metafísica da vida, uma “crença superior”,

“uma esperança super-humana”:

el hombre, como la filosofía lo define, es un animal metafísico. No se vive fecundamente sin una concepción metafísica de la vida. El mito mueve al hombre en la historia. Sin un mito la existencia del hombre no tiene ningún sentido histórico. La historia la hacen los hombres poseídos e iluminados por una creencia superior, por una esperanza super-humana; los demás hombres son el coro anónimo del drama. La crisis de la civilización burguesa apareció evidente desde el instante en que esta civilización constató su carencia de un mito (MARIÁTEGUI, 1987, p. 24).

Ao comentar a afirmação de Mariátegui em defesa da concepção metafísica da vida,

José Guillermo Nugent nos diz que as palavras do socialista não apenas vão de encontro

aos ideais positivistas postos em crise com a primeira grande guerra, como também

demarcam as distâncias de Mariátegui em relação as expectativas que a “geração dos 900”

(Riva-Aguero, Garcia Calderón, Victor Andre Belaúnde, entre outros) havia depositado em

tal doutrina. Deste modo, uma chave fundamental para a compreensão dos textos

“metafísicos” do Amauta é a confrontação com as condições sociais e culturais vividas no

Peru, onde sequer os grupos dirigentes lograram adotar entre eles mesmos uma

homogeneidade ideológica – quanto mais integrar toda uma nação em torno dos ideais do

liberalismo e da democracia (NUGENT, 1989, p. 161-162). O ceticismo ao qual a

civilização burguesa foi conduzida era ilustrada não apenas na Europa agitada e destruída

pela guerra, mas também na sociedade peruana. Se em La escena contemporanea as

observações de Mariátegui sobre as insuficiências do liberalismo concentraram-se na 163 “El hombre y el mito”. Lima, Mundial, 16 de janeiro de 1925.

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análise mais detida das circunstâncias políticas e sociais europeias, agora a referência de

Mariátegui será o “homem contemporâneo”, reunindo a realidade europeia e a peruana em

um mesmo caldeirão de transformações históricas, tal como havia exposto em suas

conferências nas Universidades Populares. Um “homem contemporâneo” marcado por uma

intensa “vontade de crer”:

El hombre contemporáneo siente la perentoria necesidad de un mito. El escepticismo es infecundo y el hombre no se conforma con la infecundidad. Una exasperada y a veces impotente "voluntad de creer", tan aguda en el hombre post-bélico era ya intensa y categórica en el hombre pre-bélico (MARIÁTEGUI, 1987, p. 25)

A defesa mariateguiana da necessidade humana do mito não deve ser vista como

uma tentativa de estabelecer uma essência histórica, haja vista sua preocupação em

reconhecer a importância temporal das “verdades” defendidas ao longo da história. Uma

verdade é válida apenas para uma época: “contentémonos con una verdad relativa”

(MARIÁTEGUI, 1987, p. 26). Mariátegui valoriza o reconhecimento do momento histórico

em que se produz uma verdade tida como absoluta e suprema164. Cada época deseja ter sua

própria intuição do mundo. Reanimar mitos pretéritos só pode resultar em fracassos.

Se cada época tem sua própria verdade, e se a burguesia encontra-se cética,

desiludida e sem mito algum, a resposta a esta crise é a ascensão de um novo mito – a

revolução social:

Lo que más neta y claramente diferencia en esta época a la burguesía y al proletariado es el mito. La burguesía no tiene ya mito alguno. Se ha vuelto incrédula, escéptica, nihilista. El mito liberal renacentista, ha envejecido demasiado. El proletariado tiene un mito: la revolución social. Hacia ese mito se mueve con una fe vehemente y activa. La burguesía niega; el proletariado afirma.

Imersa nas desilusões do racionalismo, a intelectualidade burguesa,

infrutiferamente, se entretêm em uma crítica do método, da teoria e da técnica dos 164 Dirá Mariátegui, em outro artigo: “El hombre llega para partir de nuevo. No puede, sin embargo,

prescindir de la creencia de que la nueva jornada es la jornada definitiva. (…) El proletariado revolucionario, por ende, vive la realidad de una lucha final. La humanidad, en tanto, desde un punto de vista abstracto, vive la ilusión de una lucha final”. “La lucha final”. Mundial, Lima, 20 de março de 1925.

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revolucionários. Para Mariátegui, um olhar incapaz de compreender nos revolucionários a

verdadeira fonte de sua força: “¡Qué incomprensión! La fuerza de los revolucionarios no

está en su ciencia; está en su fe, en su pasión, en su voluntad. Es una fuerza religiosa,

mística, espiritual. Es la fuerza del Mito” (MARIÁTEGUI, 1987, p. 27)

Fé, paixão, vontade. Força religiosa, mística, espiritual. Os termos usados para

classificar o ímpeto dos socialistas revolucionários diante da incredulidade burguesa

denotam como Mariátegui inscreve a reflexão sobre a luta socialista em uma “dimensão

religiosa”: “la emoción revolucionaria (…) es una emoción religiosa” (MARIÁTEGUI,

1987, p. 27). Como resposta ao conjunto das promessas não cumpridas pela modernidade, o

socialismo para Mariátegui se mostra inseparável da tentativa de se reencantar o mundo

através da ação revolucionária (GONZÁLEZ MARTÍNEZ, 1994, p. 146; LÖWY, 2006, p.

284).

Neste momento, é importante a clareza a respeito do que significa esta “dimensão

religiosa” do embate socialista na pena de Mariátegui. Tal qual observado no primeiro

capítulo deste trabalho, entendemos que é fundamental a compreensão da experiência

mística e religiosa vivida pelo jovem José Carlos para compreender os caminhos de sua

adesão ao marxismo e de sua compreensão da luta política revolucionária. Os escritos e a

biografia de Mariátegui ilustram uma sensibilidade bastante singular em relação ao tema da

religiosidade, e o diálogo e admiração que Mariátegui demonstra para com os trabalhos de

Henri Bergson e, especialmente, Georges Sorel reforçam a peculiaridade de seu olhar

político e crítico em relação ao cientificismo e ao positivismo que marcavam o pensamento

social e político na Europa e, em alguma medida, no Peru. É com base em Sorel que

Mariátegui afirmará que há tempos já havia sido constatado o caráter “religioso, místico,

metafísico” do socialismo (cf. MARIÁTEGUI, 1987, p. 28). Vejamos o trecho de Sorel a

que Mariátegui se refere:

descobriu-se uma nova analogia entre a religião e o socialismo revolucionário, que toma por objetivo a aprendizagem, a preparação e, mesmo, a reconstrução do indivíduo em vista de uma obra gigantesca. Mas o ensinamento de Bergson nos mostrou que a religião não é a única a ocupar a região da consciência profunda;

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os mitos revolucionários têm aí seu lugar ao mesmo título que ela (SOREL, 1992, p. 52, grifos nossos)165.

Sorel afirma que os mitos revolucionários podem ocupar o mesmo lugar da religião

na “consciência profunda”. Por sua vez, Mariátegui registrará que as “razões religiosas” a

que se refere em sua reflexão sobre as lutas revolucionárias concentra suas origens na

realidade concreta vivida pelos homens. Não se trata, deste modo, de uma reflexão

“teológica”. O homem é um “animal metafísico”, mas o ímpeto religioso de sua luta

política é fundado na própria humanidade: “los motivos religiosos se han desplazado del

cielo a la tierra. No son divinos; son humanos, son sociales” (MARIÁTEGUI, 1987, p. 27).

Esta afirmação deriva de outra, ainda mais detalhada, na qual Mariátegui desenvolve a

analogia entre “religião” e luta revolucionária:

¿Acaso la emoción revolucionaria no es una emoción religiosa? Acontece en el occidente que la religiosidad se ha desplazado del cielo a la tierra. Sus motivos son humanos, son sociales; no son divinos. Pertenecen a la vida terrena y no a la vida celeste166 (MARIÁTEGUI, 1959, p. 198).

Mariategui acreditava que a criação e elevação política destes mitos era capaz de

explicar os processos de transformação social e política que testemunhava nas décadas de

1910 e 1920167. Alfonso Ibañez chega a afirmar que os mitos eram tomados como motores

da história (IBAÑEZ, 1978, p. 71). Se o mito é motor da história, entretanto é fruto desta

mesma história:

165 Löwy (2005a, p. 107) observa que a afirmação de Mariátegui, apesar de se basear em Sorel, não tem correspondência clara no texto do socialista francês – e nem mesmo no texto de Ernest Renan, também citado. O argumento soreliano seria de caráter mais “psicológico” do que propriamente um paralelismo histórico ou filosófico. Löwy conclui que “a ideia do 'caráter religioso, místico, metafísico' do socialismo não é formulada diretamente nem por Sorel, nem por Renan e sim pelo próprio Mariátegui”.

166 O trecho é encontrado no capítulo intitulado “Ghandi”, em La escena contemporánea. Porém, foi publicado inicialmente como artigo em Variedades, em 11 de outubro de 1924.

167 Além dos trechos já citados sobre o caráter mítico das lutas protagonizadas tanto pelos revolucionários russos quanto pelos contra-revolucionários fascistas, temos a análise dos conflitos da primeira guerra mundial, quando Mariátegui afirma: “La fuerza de los aliados consistió, precisamente, en estos mitos. Para los austro-alemanes, guerra militar. Para los aliados, guerra santa, cruzada por grandes y sacros ideales humanos” (MARIÁTEGUI, 1973, p. 36)

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Un gran ideal humano, una gran aspiración humana no brota del cerebro ni emerge de la imaginación de un hombre más o menos genial. Brota de la vida. Emerge de la realidad histórica. Es la realidad histórica presente (MARIÁTEGUI, 1973, p. 156).

Os mitos surgem, portanto, no seio da realidade histórica, no conjunto das lutas

sociais. Sem desprezar o papel dos intelectuais de sua geração, Mariátegui afirmará que a fé

e o mito dos novos tempos são uma descoberta das multidões em movimento. Assim

escreve no parágrafo conclusivo de “El hombre y el mito”:

Los profesionales de la Inteligencia no encontrarán el camino de la fe; lo encontrarán las multitudes. A los filósofos les tocará, mas tarde, codificar el pensamiento que emerja de la gran gesta multitudinaria (MARIÁTEGUI, 1987, p. 28).

Pessimismo da realidade e otimismo do ideal

Sem um mito, os homens não podem viver de modo fecundo. Para Mariátegui, este

mito permite aos homens assumir uma disposição de luta destinada à transformação social e

política, tomando-a como a batalha final da história. É o que Mariátegui define de “ilusão

da luta final”, que atravessa a história humana, reaparecendo com distintas facetas,

inquietando os homens ao longo do tempo para se levantarem contra a ordem vigente. As

multidões, afirma Mariátegui, não podem prescindir de um mito, de uma fé, visto que não

podem distinguir sua verdade da verdade pretérita ou futura: só existe a verdade, “absoluta,

única, eterna. Y conforme a esta verdad, su lucha es, realmente, una lucha final”

(MARIÁTEGUI, 1987, p. 32). Referindo-se ao desejo de luta do homem “iletrado” – o

comum, que se distingue dos literatos e filósofos – Mariátegui ressalta a segurança deste

em percorrer seu caminho próprio, sem preocupar-se com a relatividade de seu mito:

Puesto que debe actuar, actúa. Puesto que deve creer, cree. Puesto que debe combatir, combate. Nada sabe de la relativa insignificancia de su esfuerzo en el tiempo y en el espacio. Su instinto lo desvía de la duda estéril. No ambiciona más que lo que puede y debe ambicionar todo hombre: cumplir bien su jornada

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(MARIÁTEGUI, 1987, p. 33)

Esta reivindicação do aspecto afirmativo da “luta final”, do desejo de mudança

fundada no combate, será reforçada por Mariátegui ao lançar mão das palavras do escritor

mexicano José Vasconcelos, em quem localiza a fórmula que traduz o caráter daqueles que

lutam por um novo mundo com “ardimiento místico” y “pasión religiosa”: pessimismo da

realidade, otimismo do ideal168 (MARIÁTEGUI, 1987, p. 34). Mariátegui esclarece a

fórmula: ao contrário do que muitos diriam, não se tratam de pessimistas aqueles que

reconhecem a injustiça e a denunciam. Há um pessimismo, mas que se localiza no protesto

e na condenação da realidade presente. Maior do que o pessimismo é o otimismo destes

homens, posto que em relação com sua esperança no futuro. Tal qual o exemplo das

religiões na história, os grandes ideais humanos partem da negação da realidade, ao mesmo

tempo em que afirmam o novo tempo: “No creemos que el mundo deba ser fatal y

eternamente como es. Creemos que puede y debe ser mejor”169 (MARIÁTEGUI, 1987, p.

35).

Surge uma nova geração, na América – diz Mariátegui – como em todo o mundo:

uma geração que “grita su fe, que canta su esperanza”. As condições para o ascenso de uma

nova mística aparecem em um mundo que não depositará suas esperanças no mesmo lugar

em que a colocaram as religiões do passado: “'los fuertes se empeñan y luchan, – dice

Vasconcelos – con el fin de anticipar un tanto la obra del cielo'. La nueva generación quiere

ser fuerte” (MARIÁTEGUI, 1987, p. 37). O otimismo é orientado por uma nova esperança

e um desejo de combate, de ação170.168 “Pesimismo de la realidad y optimismo del ideal”. Lima, Mundial, 21 de agosto de 1925.169 O otimismo de Mariátegui é afirmativo, e com esta postura é que o Amauta rechaça qualquer risco de

aceitação conformista da realidade: “el optimismo que rechazamos es el fácil y perezoso optimismo panglosiano de los que piensan que vivimos en el mejor de los mundos posibles” (MARIÁTEGUI, 1987, p. 35).

170 Em um texto de 1922, Mariátegui comenta a fórmula de Vasconcelos, porém afirmando que o escritor mexicano fazia uma condenação plena do presente sem, contudo, instrumentalizar esta crítica para a criação de algo novo. Baseado nisto, Mariátegui dirá: “conocemos y admiramos su fórmula: 'Pesimismo de la realidad; optimismo del ideal'. Pero observando la posición a que lleva al que profesa demasiado absolutamente, preferimos sustituirla por esta outra: 'Pesimismo de la realidad; optimismo de la acción'. No nos basta condenar la realidad, queremos transformala” (MARIÁTEGUI, 1988b, p. 81-82, grifos nossos). Ao final do parágrafo, Mariátegui reforça sua adesão ao marxismo como orientador de sua ação política. cf. “'Indologia' por Jose Vasconcelos”. Lima, Variedades, 22 de outubro de 1922.

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Crítica da laicidade

Naquele mesmo ano de 1925, Mariátegui publicou um artigo171, a convite da revista

Repertório Americano, sobre o tema da educação pública na América hispânica. Apesar de,

posteriormente, este texto não ser publicado em El Alma Matinal (na verdade, foi incluído

na coletânea Temas de educación, primeira edição de 1970), as conclusões de Mariátegui se

fundam no mesmo discurso “místico” em que enquadra o socialismo para desenvolver o

questionamento da laicidade.

A crítica da laicidade nos textos de Mariátegui vincula-se especialmente ao tema da

educação. O socialista criticava a completa ausência de teor revolucionário da fórmula

“educação gratuita, laica e obrigatória”, defendida por diversos hispano-americanos, e

profundamente relacionada ao decadente ciclo capitalista. Nada mais do que um fórmula

demo-liberal, fundada no mesmo ceticismo que tanto repudiava. Se Mariátegui era

categórico a respeito da necessidade de um levante revolucionário guiado por um valor

absoluto, por um sentimento heroico, a escola laica caminharia na contramão de suas

expectativas por ser incapaz de produzir valores eternos e sublimes entre os homens:

[a escola laica] no da una respuesta a ninguna de las grandes interrogaciones del espíritu. Tiene por objeto la formación de una humanidad laboriosa, mediocre y ovejuna. La educa en el culto de mitos endebles que naufragan en la gran marea contemporánea: la Democracia, el Progreso, la Evolución, etc (MARIÁTEGUI, 2003, p. 24)

Qualquer discussão sobre o tema da “educação laica” na América deveria considerar

os antecedentes históricos das relações dos novos países independentes surgidos no

continente no século XIX com a Igreja católica, uma vez que a religiosidade especialmente

Apesar de bastante impactante, a retificação da fórmula de Vasconcelos feita por Mariátegui (otimismo da ação) aparentemente não é citada em outros textos redigidos pelo Amauta – nem mesmo no artigo agora comentado.

171 “Introduccion a un estudio sobre el problema de la educacion publica”. Lima, Mundial, 15 de maio de 1925.

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católica marcava as populações latino-americanas. Esta consideração permitira identificar o

quão gasta seria a fórmula liberal da “escola laica” – e burguesa, distante de qualquer

esperança transformadora. A virtude renovadora e criadora da escola, segundo Mariátegui,

não residiria em seu caráter laico, mas em seu espírito revolucionário: “la revolución da ahí

a la escuela su mito, su emoción, su misticismo, su religiosidad” (MARIÁTEGUI, 2003, p.

27)172. Na prática, o que Mariátegui afirma é a importância de uma nova escola, de uma

educação socialista, que realmente sirva à emancipação humana, a seus anseios materiais e

espirituais, e que corresponda a esta nova etapa da história onde o mito revolucionário

assume importância crucial.

O desejo revolucionário e de transformação social por obra dos trabalhadores se

afirma, em Mariátegui, por meio de uma “vontade criadora” e uma “paixão religiosa” pela

luta socialista. Fé, mito, mística, palavras de clara origem religiosa, assumem importância

real no léxico revolucionário do Amauta. Sinalizam uma dimensão ética e espiritual do

socialismo, a disposição para o combate e o compromisso com a emancipação humana.

Luta “mística” e “religiosa”, mas também profana e secular, na medida em que as razões

religiosas do ímpeto revolucionário não se encontram no “céu”, mas na terra, entre os

homens. Comporta em seu escopo a crítica e denuncia do declínio da civilização burguesa e

suas ideias e instituições: a democracia173, o liberalismo, o racionalismo, o cientificismo e,

entre outros elementos, a própria laicidade.

O marxismo como agonia

Especialmente por meio de uma interpretação das Réflexions de Georges Sorel,

Mariátegui desenvolveu seu interesse pelas questões do socialismo e da luta revolucionária

permeando-os de um teor místico e aproximando o anseio revolucionário de uma

172 A respeito da discussão mariateguiana sobre a educação e o questionamento da laicidade da educação, cf. comentário de MENEZES NETO, 2011.

173 Termo empregado em equivalência ao termo “Estado demo-liberal-burgués”. “La crisis de la democracia”. Lima, Mundial, 14 de novembro de 1925 (MARIÁTEGUI, 1987, p. 38).

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caracterização “religiosa”. Mas, para além de Sorel, o Amauta também explora outra

referência teórica em sua reflexão sobre as afinidades entre o político e o religioso: é o caso

do escritor espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936).

Como mostramos no primeiro capítulo, o contato de Mariátegui com os trabalhos de

Unamuno se daria ainda antes de seu exílio, junto ao círculo de jovens intelectuais

liderados por Victor Maúrtua em 1918. Porém, o citaria pela primeira vez apenas em 1923,

em artigo já mencionado acima sobre a crise universitária no Peru (cf. MARIÁTEGUI,

2003, p. 103-109). À partir de então, Unamuno seria frequentemente mobilizado por

Mariátegui em artigos e diversas cartas trocadas com diferentes pessoas até o fim de sua

vida. Além disso, Mariátegui e Unamuno dialogaram através de correspondências174, e a

revista Amauta publicou, além de cartas, também alguns ensaios do literato espanhol (cf.

MARIÁTEGUI, 1994, p. 1564)175.

La agonia del cristianismo, publicado por Unamuno em 1925, será resenhado por

Mariátegui em um artigo de janeiro de 1926176. O texto de Unamuno, em termos gerais,

preocupa-se em apresentar um novo olhar sobre o cristianismo e, mais concretamente,

sobre a vida cristã, a concebendo como agonia. Não se trata, porém, de enxergar a agonia

como sofrimento, prelúdio da morte. Unamuno adverte recuperar o que seria o sentido

original do termo: “agonia (…) quiere decir lucha. Agoniza el que vive luchando, luchando

contra la vida misma. Y contra la muerte. (…) La vida es lucha, y la solidaridad para la vida

es lucha y se hace en la lucha” (UNAMUNO, 1950, p. 15-17). O cristianismo para

174 A primeira delas foi enviada por Mariátegui a Unamuno, ilustrando grande apreço do socialista pelo escritor espanhol. Ao mencionar, entre anexos, um “original de la protesta de los intelectuales peruanos contra su deportación”, Mariátegui provavelmente se referia ao episódio em que Unamuno foi enviado ao exílio pela ditadura de Primo de Rivera em fevereiro de 1924. Inicialmente exilado nas Ilhas Canárias, Unamuno posteriormente se mudou para Paris, regressando a Salamanca em 1930. A carta não tem data, mas provavelmente foi enviada a Paris e escrita no segundo semestre de 2014 (cf. MARIÁTEGUI, 1994, p. 1733). Por ocasião deste episódio, Mariátegui publicou o artigo “Don Miguel de Unamuno y el Directorio”, Lima, Variedades, 1º de março de 1924 (cf. MARIÁTEGUI, 1985, p. 120-126).

175 A admiração que Mariátegui demonstrava por Unamuno, afirma Antonio Melis, não é um fato isolado no conjunto da cultura revolucionária hispano-americana: “En su quijotismo militante, todo un sector de la vanguardia política y cultural ve un antídoto idealista a la penetración nortemericana. El ejemplo de su lucha contra la dictadura de Primo de Rivera contribuye a alejar toda sospecha acerca de la posible utilización en clave regresiva de su pensamiento” (MELIS, 1994, p. 1589).

176 “'La agonia del cristianismo' de Don Miguel de Unamuno”. Lima, Variedades, 2 de janeiro de 1926. Publicado posteriormente em Amauta, ano 1, n. 1, setembro de 1926, p. 3-4.

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Unamuno, deste modo, é a religião do Cristo, sobretudo do Cristo que luta com a morte e

agoniza na cruz, e cuja tarefa cumprida na história foi a de trazer aos homens a agonia, a

luta. O cristianismo define-se, portanto, agonicamente, polemicamente, em função da luta

(UNAMUNO, 1950, p. 21; 29).

Em certo momento de seu texto Mariátegui diz que Unamuno tece considerações

equivocadas a respeito do marxismo: que Marx defenderia que “las cosas hacen a los

hombres” (cf. UNAMUNO, 1950, p. 42-43). Mariátegui rebaterá: não é certo que Karl

Marx acreditasse que as coisas fazem os homens. A verdadeira imagem de Marx não é a do

monótono materialista apresentado por seus discípulos (referindo-se aos socialistas

vinculados àquele socialismo “racionalista” e “positivista” dos marcos da Segunda

Internacional, criticados pelo Amauta nos ensaios publicados em El Alma Matinal).

Coerente com suas posições e seu olhar singular sobre o marxismo, Mariátegui diz que o

“materialismo histórico” é muito menos materialista do que comumente se pensa. E

mobiliza Benedetto Croce para justificar sua afirmação: “Es evidente — escribe Croce —

que la idealidad o el absolutismo de la moral, en el sentido filosófico de tales palabras, es

premisa necesaria del socialismo” (MARIÁTEGUI, 1985, p. 119).

A menção ao comentário de Unamuno sobre o marxismo, no entanto, servirá de

pretexto para Mariátegui se apropriar da leitura do escritor espanhol e propôr uma

interpretação do marxismo como uma espiritualidade agônica:

“Yo siento — escribe Unamuno — a la vez la política elevada a la altura de la religión y a la religión elevada a la altura de la política”. Con la misma pasión hablan y sienten los marxistas, los revolucionarios. Aquellos en quienes el marxismo es espíritu, es verbo. Aquéllos en quienes el marxismo es lucha, es agonía (MARIÁTEGUI, 1985, p. 120).

O raciocínio de Mariátegui aproxima o cristianismo e o marxismo no que lhes

concerne à prática concreta de seus adeptos. Se Unamuno reivindica São Paulo para ilustrar

que o cristianismo, mais do que por palavras, é construído por aqueles que lutam por ele,

Mariátegui dirá que, de semelhante modo, a continuidade do marxismo não se dá sob a

tutela do pedantismo acadêmico mas, antes, pelos revolucionários historicamente tachados

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de hereges, ousados em enriquecer e desenvolver as consequências do marxismo.

Mariátegui afirma, inclusive, que esta concepção agônica da vida defendida por Unamuno

“contiene más espíritu revolucionario que muchas toneladas de literatura socialista”

(MARIÁTEGUI, 1985, p. 120). É claro que Mariátegui, com este argumento, não está

rechaçando o valor das ideias e da reflexão socialista sobre a realidade. Seu argumento, na

verdade, procura reforçar a unidade necessária entre teoria e prática, expressa no que seria o

elemento fundamental do arcabouço teórico marxista – o seu aspecto dialético: “El

marxismo nos satisface por eso: porque no es un programa rígido sino un método

dialéctico” (cf. MARIÁTEGUI, 1988b, p. 82).

Mas Mariátegui vai além: comparando Marx a Fiódor Dostoiévski, o socialista

peruano afirma que, tal qual o escritor russo, o revolucionário alemão seria “un cristiano,

un alma agónica, un espíritu polémico”; e citando José Vasconcelos, Mariátegui conclui que

“el atormentado Marx está más cerca de Cristo que el doctor de Aquino” (MARIÁTEGUI,

1985, p. 120). Neste sentido, Löwy nos recorda que, apesar de pouco convencional no

conjunto das reflexões marxistas da época, o argumento de Mariátegui se insere, de certa

maneira, na tradição marxista que passava por Engels, Kautsky, até Rosa Luxemburgo,

autores que interpretaram Cristo e o cristianismo – especialmente o cristianismo primitivo –

como precursores do socialismo moderno. Mas, no caso de Mariátegui, para além das

filiações históricas, parece afirmada uma afinidade espiritual entre Cristo e Marx, no

sentido de serem enxergados como almas agônicas177 (LÖWY, 2005a, p. 108). Mesma

classificação que Mariátegui atribui a si próprio:

En mi camino, he encontrado una fe. He ahí todo. Pero le he encontrado porque mi alma había partido desde muy temprano en busca de Dios. Soy una alma agónica, como diría Unamuno. (Agonia, como Unamuno, con tanta razón lo remarca, no es muerte sino lucha. Agoniza el que combate) (MARIÁTEGUI, 1987a, p. 154)

O apreço pelo “quixotismo”, a apropriação do léxico religioso e o paralelismo

177 Na carta que Unamuno escreveu a Mariátegui, em 1926, o escritor espanhol parece ceder ao argumento do peruano em relação a sua análise de Marx: “no es cosa de que nos pongamos a discutir (…). Sí, en Marx había un profeta, no era un profesor” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 1815).

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estabelecido nas reflexões sobre o anseio revolucionário e o sentimento religioso: tais

elementos reforçam a identidade que nosso autor estabelece entre as esferas do político e

do religioso e, como notamos, são parte constitutiva e fundamental da afirmação de seu

compromisso revolucionário.

De Amauta aos 7 ensayos

Amauta e os homens novos do Peru

É no ano de 1926 que passam a se concretizar algumas ideias de Mariátegui com o

objetivo de preparar quadros políticos da juventude e dos trabalhadores peruanos em termos

de formação política, reforçando sua preocupação sobre a necessária unidade entre teoria e

prática política. Por meio da editora Minerva é lançado o primeiro boletim “Libros y

Revistas”, em fevereiro, apresentando resenhas bibliográficas de publicações peruanas e

estrangeiras, críticas literárias, notícias científicas e artísticas. Logo, o boletim “Libros y

Revistas” seria incorporado ao projeto editorial mais marcante da vida de José Carlos

Mariátegui: a revista Amauta (1926-1930). Para compreender o papel que Amauta se

destinava a cumprir é importante ter em mente o norte dos escritos e análises que

Mariátegui passa a elaborar neste momento.

Sabemos que desde seu retorno, em 1923, José Carlos Mariátegui viu sua

capacidade de agregação política crescer poderosamente. Foi ao longo de diversas

conversas e calorosos debates promovidos nas dependências do domicílio em que vivia

com sua família na rua Washington que Mariátegui viu se formar uma nova geração de

intelectuais, artistas, dirigentes sindicais e estudantis dispostos a pensar e lutar por novos

rumos para a política e a sociedade peruana. Temos, neste sentido, que considerar dois

caminhos.

O primeiro é o que assume Mariátegui com o objetivo de aprofundar as reflexões a

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respeito da própria sociedade peruana e pelo qual procuraria alimentar o movimento

político capaz de estabelecer rumos revolucionários adequados à transformação do Peru.

Em setembro de 1925 nosso autor inicia uma série de artigos publicados em seção

intitulada “Peruanicemos al Perú” na revista Mundial, até maio de 1929. Grande parte dos

materiais escritos por Mariátegui para esta seção seriam posteriormente reunidos e

retrabalhados para a confecção dos 7 ensayos de interpretación de la realidad peruana.

Desde 1923 Mariátegui alertava, em seus artigos e conferências, a importância de

compreender a realidade peruana em relação com a conjuntura política vivida no resto do

mundo. Mas é a partir deste momento que o marxista peruano apontará para um debate

mais aprofundado sobre os problemas próprios de seu país, trazendo temas novos para o

seio do debate socialista como, por exemplo, a questão indígena e os elementos

constitutivos da nacionalidade peruana. Ainda em 1925 escreveria que o drama peruano

nascera da conquista espanhola e do pecado original transmitido à republica de querer

constituir uma sociedade e uma economia peruana sem o índio e contra o índio178

(MARIÁTEGUI, 1978, p. 65). Sem ignorar a contribuição do pensamento ocidental e o fato

concreto de que as instituições peruanas eram consequências do legado político europeu,

Mariátegui defenderá um olhar sobre seu país que dialogue as contribuições do ocidente

com os elementos particulares da realidade peruana.

O segundo caminho é a articulação deste conjunto novo de intelectuais e militantes

políticos em torno de um projeto de formação teórica e prática que se preocupe com a

realidade de seu país e com os anseios por sua transformação. Com este propósito, Amauta

é publicada pela primeira vez em setembro de 1926: “crear un Perú nuevo dentro del

mundo nuevo” é a vontade que congregava, segundo o marxista peruano, a nova corrente

de renovação intelectual e espiritual que aos poucos adquiria organicidade. Tratava-se de

vincular os homens novos do Peru ao povos da América e, por seguinte, aos demais povos

do mundo:

El objecto de esta revista es el de plantear, esclarecer y conocer los problemas

178 “El rostro y el alma del Tawantinsuyu”. Lima, Mundial, 11 de setembro de 1925.

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peruanos desde puntos de vista doctrinários y científicos. Pero consideraremos siempre al Perú dentro del panorama del mundo. Estudiaremos todos los grandes movimientos de renovación políticos. Todo lo humano es nuestro (MARIÁTEGUI, 1926).

Contando com periodicidade mensal e um amplo grupo de colaboradores peruanos e

estrangeiros desde sua criação, Amauta logo passaria a ter circulação nacional e pontos de

distribuição espalhados por todo o território peruano, com uma tiragem crescente e

sistemática e alcançando grande popularidade entre intelectuais, trabalhadores e estudantes

do país (BRUCKMANN, 2009, p. 72).

Haya, a APRA e os comunistas

Entre os que contribuem para Amauta está Haya de la Torre. O dirigente estudantil

que, como vimos, foi despachado para fora do país pela ditadura de Leguía, prosseguiu em

exílio até o ano de 1931. Inicialmente enviado ao Panamá, também passou por Cuba e

México, onde residiu e trabalhou como secretário de José Vasconcelos. Em 1924, se dirige

à União Soviética para participar do V Congresso da Internacional Socialista e do

Congresso Mundial da Juventude Comunista. De lá, parte para Suíça, Itália, França e, no

final de 1925, se instala na Inglaterra. É em dezembro do ano seguinte que Haya de la Torre

publicará o artigo “What is the A.P.R.A.?”179, em que delinearia o programa da frente que

buscava forjar como mecanismo de enfrentamento ao imperialismo e de unificação política

da “indoamérica”180 (CHANG-RODRÍGUEZ, 2012, p. 283-285). Em fevereiro de 1927

Haya participa do Congresso Anti-imperialista de Bruxelas e regressa ao México em

agosto, passando ainda pelos Estados Unidos. Neste tempo, entre o início do exílio e o ano

de 1927, Haya de la Torre estabelecerá contatos com diversos intelectuais e grupos 179 Londres, The Labour monthly, dezembro de 1926, p. 756-759.180 A Alianza Popular Revolucionaria Americana – APRA – é fundada, segundo os intelectuais mais próximos

à perspectiva aprista (como Luis Alberto Sánchez), em maio de 1924, no México, por ocasião de um cerimonial envolvendo Haya e o presidente da Federación de Estudiantes del México. Jorge Nieto, porém, afirma que não é possível afirmar a fundação da APRA neste período devido a inconsistências encontradas tanto no trabalho de Sánchez quanto às afirmações do próprio Haya no período. Sobre tais criticas, cf. NIETO, 1987, p. 182-187.

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políticos, trabalhando especialmente no sentido de angariar apoio e fortalecer a APRA.

Núcleos apristas serão fundados em diferentes lugares como Paris, Buenos Aires, Nova

York e Cidade do México (além de um núcleo na Guatemala, em 1928).

Em todo este processo, Haya desenvolve uma visão política que, mantendo seu

núcleo anti-imperialista, se afastará gradualmente das orientações comunistas. Se, ainda no

Peru, Haya de la Torre demonstrava algum apreço pela Revolução Russa de 1917, e uma

capacidade de organização e liderança política mais consistente do que um programa

político propriamente dito, é verdadeiro que nos anos seguintes Haya caminhará para o

estabelecimento de fronteiras entre o seu pensamento político – que se constituirá como

principal núcleo de articulação da APRA – e as ideias defendidas pelos comunistas no

interior da III Internacional, marcadas especialmente pela ausência de participação ativa

dos comunistas latino-americanos nas decisões do Comintern e também pela frágil

abordagem da realidade dos países da América do sul e central por parte dos comunistas

europeus (cf. NIETO, 1987, p. 178). Porém, como nos explica José Aricó, a perspectiva

defendida por Haya de la Torre – de constituir um amplo movimento anti-imperialista

integrado por trabalhadores e intelectuais dotados de um programa de ação política –

dialogava com a leitura do Comintern de promover na América latina uma estratégia de

unidade entre o proletariado e os estratos médios radicais. A referência para o apoio do

Comintern à APRA era a Revolução Chinesa, marcada pelas interações políticas

interclassistas. Assim, a aproximação dos comunistas a Haya e seu “nacionalismo radical”

se deu, antes de tudo, por seu projeto político semelhante a orientação dada pela

Internacional aos comunistas dos chamados “países dependentes e coloniais”. Onde os

partidos comunistas não estavam organizados, os marxistas contribuíram para o

desenvolvimento da APRA, como no caso peruano, de Mariátegui e do grupo consolidado

em torno da revista Amauta (ARICÓ, 1987, p. 442-443).

A organização política dos trabalhadores peruanos vai aos poucos avançando. No

final de 1926 se inicia o segundo congresso da Federación Obrera Local, cujas assembleias

se prolongam ao longo de alguns meses em 1927. Mariátegui intervêm nesta conjuntura

criticando a ausência de um trabalho sólido de preparação do congresso e a falta de

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oportunidades para se debater diferentes tendências doutrinárias, apontando para a

necessidade de organizar os trabalhadores em torno de um programa de unidade proletária e

para a imediata formação de uma central nacional dos trabalhadores baseada no princípio

da luta de classes (cf. MARIÁTEGUI, 1988a, p. 102-103). Na conjuntura internacional,

ações militares norte-americanas no Caribe e na América Central desatam manifestações na

América Latina e na Europa. No velho continente, intelectuais e militantes políticos se

mobilizavam em torno da construção da Liga contra a Opressão Colonial, em Berlim, e do

Congresso Anti-imperialista, em Bruxelas. No Peru, Mariátegui intervêm em protestos e,

por meio de seus escritos, busca interpretar o processo de difusão do imperialismo norte-

americano não apenas como fenômeno regional, mas como parte do processo de

desenvolvimento global do capitalismo. Afirmará em fevereiro de 1927 que a ofensiva

imperialista, tanto dos Estados Unidos quanto de outras potências, é perfeita e claramente

explicável como necessidade de defesa da ordem burguesa:

solo a expensas de las colonias, pueden las burguesías de Inglaterra, Alemania, Francia, Italia, ofrecer a las clases trabajadoras el mínimo de bienestar necesario para impedir un vigoroso renacimiento del sentimiento revolucionario181.

A luta anti-imperialista, para Mariátegui, se encontra absolutamente vinculada à luta

revolucionária (MARIÁTEGUI, 1994, p. 246; BRUCKMANN, 2009, p. 70-73)182.

A repressão governamental em 1927

O movimento social peruano, no entanto, segue enfrentando dura repressão

governamental. Em junho de 1927 a denuncia de um “complô comunista” daria margem a 181 “El Congreso Anti-imperialista de Bruselas”. Lima, Variedades, 19 de fevereiro de 1927.182 Cabe registrar que, neste momento, Mariátegui reconhece a importância da aliança estratégica entre

socialistas e nacionalistas na luta anti-imperialista no continente latino-americano: “el socialismo europeo se encuentra en la necesidad de sostener y apoyar las reivindicaciones anti-imperialistas aunque no sean rigorosamente proletarias. El nacionalismo que en las naciones de Europa, tiene forzosamente objetivos imperialistas y por ende reaccionarios, en las naciones coloniales o semicoloniales adquiere una función revolucionaria, cuando existe real y activamente y no constituye una mera etiqueta conservadora y tradicionalista” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 246).

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uma ofensiva das forças de Leguía que resultaria na prisão de diversas lideranças operárias

e estudantis e também de intelectuais – entre os quais, Mariátegui, anunciado pelo governo

como “o principal gestor de todo o movimento comunista no Peru”183. Além das prisões, a

repressão também vistoriou domicílios, apreendeu arquivos particulares – como os de

Mariátegui e outros colaboradores de Amauta – e fechou sedes de representação estudantil,

além de proibir o funcionamento da Editora Minerva e a circulação da revista Amauta.

Mesmo recluso, Mariátegui se defende das acusações de que é alvo em uma carta de

10 de junho de 1927. Nela, afirma aceitar completamente as responsabilidades de suas

ideias, mas rechaçando toda acusação de participação em qualquer plano de complô ou

outras confabulações absurdas. Observa, ainda, o fato de Amauta receber mensagens

solidárias de diversos intelectuais não vinculados ao comunismo. Por fim, defende seu

direito de expressão:

No rehuyo ni atenúo mi responsabilidad. La de mis opiniones las acepto con orgullo. Pero creo que las opiniones no están, conforme a la ley, sujetas al contralor y menos a la función da la policía ni de los tribunales184

(MARIÁTEGUI, 1994, p. 1860).

A repercussão pública de sua carta gerou uma onda de indignação entre intelectuais

peruanos e estrangeiros à favor da liberdade de Mariátegui e da reabertura da revista

Amauta. Tal pressão acabou por fazer o governo ceder e permitir o regresso de Mariátegui a

suas dependências, não obstante permanecesse sob vigilância policial. E apenas em

dezembro de 1927 a revista Amauta volta a circular – sem censura, e intransigente a

qualquer “recomendação” policial (BRUCKMANN, 2009, p. 75).

Escrevendo à revista costa-riquenha Repertório Americano, Mariátegui analisa o

conteúdo imperialista da repressão sofrida no Peru e também em outros países latino-

americanos:

183 Por razões de saúde, Mariátegui não foi levado à prisão, mas permaneceu recluso no Hospital Militar de San Bartolomé (BRUCKMANN, 2009, p. 73).

184 Carta Publicada em La Prensa e El Comercio em 11 de junho de 1927.

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la coincidencia de la represión en el Perú, con análogas persecuciones en Cuba y en Bolivia está denunciando claramente el verdadero origen de esta ofensiva reaccionaria que disfraza sus objetivos con la grotesca farsa de los “complots comunistas”. No puede obedecer a un simple azar el hecho de que en los tres países más endeudados al capitalismo norteamericano – después de América Central – se movilicen a un tiempo, y casi a una sola voz, policías y gendarmes para apresar a los escritores, estudiantes y obreros de vanguardia que más se han sindicado por su protesta antiimperialista185.

Uma nova etapa para o socialismo no Peru

1928 será um ano fundamental no debate sobre as orientações ideológicas da luta

social no Peru, e que irá testemunhar o distanciamento definitivo entre o socialismo de

Mariátegui e o nacionalismo radical de Haya de la Torre.

A polêmica é deflagrada no início daquele ano, com a elaboração de um plano de

ação política capitaneado por Haya – que ainda estava no México – com três pontos

fundamentais: converter a APRA – que até então se constituía como uma frente de luta –

em um novo partido, o Partido Nacionalista Libertador del Perú; em seguida, lançar a

candidatura de Haya de la Torre à presidência do Peru para o mandato de 1929-1934; por

fim, preparar uma rebelião armada no norte do Peru contra o regime de Leguía, com o

objetivo final de executar um golpe de Estado. A iniciativa, frustrada por agentes do

governo, resultou na prisão dos amotinados que encontravam-se em território peruano,

enquanto Haya era detido no México e, em seguida, deportado para a Alemanha.

Em carta à célula aprista do México, Mariátegui criticaria a iniciativa do grupo de

Haya de criar um partido nacionalista. Apontava que a própria indagação a respeito da

definição da APRA como aliança ou partido era equivocada. Denunciava,

consequentemente, o rebaixamento da “frente única” diante da criação do partido

nacionalista, e a ausência de qualquer diálogo sobre o tema com os componentes da frente

residentes em Lima. Sua posição contrária à iniciativa de Haya é categórica:

Por mi parte, siento el deber urgente de declarar que no adheriré de ningún modo

185 Carta de José Carlos Mariátegui a Joaquín García Monge, direto da revista Repertorio Americano, publicada em San José em 5 de novembro de 1927 (cf. BRUCKMANN, 2009, p. 75).

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a este partido nacionalista peruano que, a mi juicio nace tan descalificado para asumir la obra histórica en cuya preparación hasta ayer hemos coincidido. (…) No creo com Uds. Que para triunfar hay que valerse de “todos los medios criollos” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 1898-1899)

Tempos depois, Mariátegui registraria, mais precisamente a respeito do intento

golpista liderado por Haya em 1928, que tal atitude era fruto de um personalismo

caudilhista, que apelava desesperadamente à pequena burguesia e que estava mais próxima

do que aparentava à política Leguísta: “En apariencia es lo que más belicosamente lo ataca,

sólo porque siente que lo suplanta. Es la rebelión del joven contra el patriarcado que dura

demasiado”186 (MARIÁTEGUI apud ROUILLÓN, s/d).

As críticas de Mariátegui, e o distanciamento do diretor de Amauta em relação à

APRA devem ser compreendidas não apenas no âmbito das estratégias, mas

fundamentalmente no que diz respeito ao caráter das lutas anti-imperialistas e

revolucionárias e na indicação da classe hegemônica que deve coordenar estas lutas: a

pequena burguesia nacionalista (defendida pela APRA) ou a classe operária (como

afirmavam os comunistas). Se tanto Haya quanto Mariátegui compartilhavam uma

percepção aprofundada do problema nacional e uma preocupação com os aspectos originais

do processo revolucionário – especialmente no caso latino-americano –, por sua vez o

marxista recusaria o provincianismo de Haya ao reconhecer a subordinação das

circunstâncias nacionais ao ritmo da história mundial. Tal consciência, inicialmente, levaria

Mariátegui a defender uma presença autônoma do proletariado no interior da APRA, a

constituição de uma central única dos trabalhadores e de um partido político voltado à

expressão dos interesses históricos do proletariado. A iniciativa de Haya abriu caminho para

a saída de Mariátegui das fileiras da APRA e o consequente processo de constituição do

Partido Socialista Peruano, fundado em outubro de 1928187 (cf. ARICÓ, 1987, p. 444-445;

186 Segundo Guillermo Rouillon, tal escrito estaria em uma carta de Mariátegui tornada pública em 16 de junho de 1977.

187 Mariátegui foi escolhido secretário geral e responsável pela redação do programa do partido. Para que o mesmo saísse do papel, empreendeu grande esforço, a despeito de suas limitações físicas, por meio de diálogos permanentes com dirigentes operários, estudantes, camponeses e quadros políticos intelectuais e progressistas. A correspondência também foi um mecanismo fundamental (BRUCKMANN, 2009, p. 77-79).

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BRUCKMANN, 2009, p. 76-77).

Tal mudança se repercute também na orientação política em que se funda Amauta.

Se inicia uma segunda jornada da revista, agora classificada como socialista:

[Amauta] profesa una idea histórica, confiesa un fé activa y multitudinaria, obedece a un movimiento social contemporáneo (…). En nuestra bandera, inscribimos esta sola, sencilla y grande palabra: socialismo (…).El trabajo de definición ideológica nos parece cumplido (…). La primera jornada de “Amauta” ha concluido. En la segunda jornada, no necesita ya llamarse revista de la “nueva generación”, de la “vanguardia”, de las “izquierdas”. Para ser fiel a la Revolución, le basta ser una revista socialista (…).La misma palabra Revolución, en esta América de las pequeñas revoluciones, se presta bastante al equívoco. Tenemos que reivindicarla rigurosa e intransigentemente. Tenemos que restituirle su sentido extricto y cabal. La revolución latino-americana será nada más y nada menos que una etapa, una fase de la revolución mundial. Será, simple y puramente, una revolución socialista (MARIATEGUI, 1928, p. 1-2)

As iniciativas de fortalecimento dos instrumentos políticos vinculados aos

socialistas prosseguem com a publicação, em novembro de 1928, do primeiro número de

Labor – que, segundo o próprio Mariátegui, tratava-se de um periódico de informação, mas

também de uma extensão do trabalho desenvolvido em Amauta188. Como observa Alberto

Tauro, se Amauta buscava oferecer os recursos ideológicos indispensáveis ao alcance do

projeto político almejado por Mariátegui, Labor pretendia investigar e esclarecer os

problemas do presente, contribuindo para a formação de uma disciplina crítica (TAURO,

1974).

Finalmente, em maio de 1929, é criada a Confederación General de Trabajadores

del Perú (CGTP). Seu manifesto de constituição, publicado em Labor e com importante

participação de Mariátegui, convoca trabalhadores urbanos e do campo para sua

construção, e reúne em sua análise diversos problemas de relevância política que afetavam

188 “Entre nosotros, 'Amauta' se orienta cada vez hacia el tipo de revista de doctrina. 'LABOR' que, de una parte es una extensión de la labor de 'Amauta', de outra parte tiende al tipo de periódico de información. Su función no es la misma. Como la información, especialmente en nuestro caso, no puede ser entendida en el estrecho sentido de crónica de sucesos, sino sobretodo como crónica de ideas, “LABOR” tiene respecto a su publico, que desea lo más amplio posible (…) obligaciones de ilustración integral de las cuestiones y movimientos contemporáneos, que una revista doctrinal desconoce” (MARIÁTEGUI, 1928a, p. 2).

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setores diversos da população peruana – o proletariado industrial, a juventude, as mulheres,

o proletariado agrícola, os indígenas – além de um balanço sobre o tema da imigração e do

desrespeito a leis sociais já estabelecidas, porém descumpridas pelo governo (cf.

MARIÁTEGUI, 1988a, p. 137-155). Com a organização da CGTP e também do Partido

Socialista, um importante avanço se estabelece na organização da esquerda peruana, com

marca profunda no desenvolvimento das lutas políticas e sociais ao longo do século XX

(BRUCKMANN, 2009, p. 81).

A publicação dos 7 ensayos

Em novembro de 1928 é publicada a primeira edição dos 7 ensayos de

interpretación de la realidad peruana, que se tornaria o mais conhecido estudo redigido por

José Carlos Marátegui, e também uma das mais relevantes obras de não-ficção da história

editorial do Peru189.

A proposta inicial de elaboração dos 7 ensayos pode ser localizada ainda no final de

1924, quando Mariátegui manifesta, em correspondência dirigida a Ricardo Vegas Garcia,

seu interesse em escrever “un libro de critica social y política sobre el Perú”

(MARIÁTEGUI, 1994, p. 1732). Na mesma carta, o Amauta também esclarece a

necessidade de se apropriar de materiais históricos, de ler e reler escritos, de modo a não

incorrer em injustiças ou esquecimentos ao realizar “crítica de crítica”. Mariátegui parece

ter em mente, neste caso, publicações de outros autores peruanos dedicados à compreensão

de seu país, como González Prada (Pájinas libres, de 1894, e Horas de lucha, de 1908),

Francisco García Calderón (Le Pérou contemporain, de 1907) e Víctor Andrés Belaunde

(em artigos e livros publicados entre 1912 e 1917) (cf. SOBREVILLA, 2012, p. 248-249).

Como já adiantamos, os 7 ensayos reúnem as reflexões que Mariátegui aos poucos

189 Pericás (2010a, p. 336) nos informa que, apesar de uma tiragem inicial pequena em sua primeira edição (cinco mil exemplares) e novas edições espaçadas no tempo (a segundo em 1944, a terceira em 1952), o resultado até hoje é a produção de 70 edições peruanas e estrangeiras dos 7 ensayos (alcançando publicação em dezessete países). É o livro peruano de não-ficção mais vendido da história do Peru (aproximadamente dois milhões de exemplares) e com o maior número de edições em todo o mundo.

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desenvolveu nos artigos que publicou nas revistas Mundial e Variedades, e também em

Amauta. Notas sobre o problema político e social no Peru despontam ainda no final de

1924, especialmente no que tange à definição do nacional no âmbito peruano.

Posteriormente acusado pelos apristas de “europeísta”, Mariátegui se posiciona

criticamente às perspectivas que defendiam soluções nacionais aos problemas da

peruanidade – diga-se, ignorando ou rechaçando a influência de qualquer conjunto de

ideias provenientes da Europa. Sabemos o quanto o aprendizado marxista que Mariátegui

adquiriu na Europa era visto pelo próprio socialista como fundamental. Neste sentido, o

Amauta atacaria as posições “nacionalistas” à medida que esclarecia que o Peru, como um

país jovem e de marcada influência hispânica, não podia ser definido e analisado sem o

aporte das ideias políticas e sociais desenvolvidas no mundo ocidental, e muito menos

descolado da conjuntura internacional em que estava inserido. Se o Peru é, segundo

Mariátegui, uma nacionalidade em formação (MARIÁTEGUI, 1978, p. 26), no entanto

deve ser compreendido como um país que se move na órbita da civilização ocidental e

cujas transformações políticas tiveram grande influência de episódios históricos ocorridos

na Europa – como a Revolução Francesa e seu impacto no processo de independência –

além, é claro, do seu conjunto de instituições políticas de evidente origem ocidental190.

A isto se soma a importância de compreender o “problema indígena” como questão

básica do país. Se o pensamento ocidental não pode ser desprezado, tampouco o tema

indígena deve ser ignorado: “el problema de los indios es el problema de cuatro millones de

peruanos. Es el problema de las tres cuartas partes de la población del Perú. Es el problema

de la mayoria. Es el problema de la nacionalidad”. Rechaçando fórmulas abstratamente

humanitárias, o socialista defenderá que a reflexão sobre a nação peruana, a definição da

peruanidade, não podia ser compreendida sem o índio, cimento desta nacionalidade em

formação, constantemente embrutecida, explorada, desprezada e marginalizada pelo

colonialismo e pela república criolla. A solução do “problema indígena”, defende o

Amauta, é obrigatoriamente uma solução social – e que deve ser realizada pelas mãos dos

190 “Lo nacional y lo exótico”. Lima, Mundial, 9 de dezembro de 1924.

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próprios índios (MARIÁTEGUI, 1978, p. 33)191.

Mariátegui aos poucos esboça os eixos fundamentais de sua futura obra. Um dos

primeiros passos foi a revisão crítica dos estudos dos problemas peruanos –

fundamentalmente, as críticas de González Prada, García Calderon e Belaunde192. Em um

seguinte texto, apresenta um programa de estudos sociais, econômicos e educacionais, cuja

realização não apenas dependeria de uma colaboração intelectual coletiva193 e disciplinada –

consequência de uma ideia comum – como também da aplicação de um método científico

para o estudo dos problemas peruanos. Nas palavras do Amauta,

La nueva generación quiere ser idealista. Pero, sobre todo, quiere ser realista. (…) Siente y piensa que no basta hablar de peruanidad. Que hay que empezar por estudiar y definir la realidad peruana y que hay que buscar la realidad profunda: no la realidad superficial194 (MARIÁTEGUI, 1978, p. 56).

Destaca, no artigo em questão, o problema agrário como ponto fundamental da análise

econômica do Peru – envolvendo o problema indígena no interior do problema da terra. Um

mês depois, o elemento econômico será novamente lembrado por Mariátegui como

fundamental para a compreensão do processo de formação da nação peruana195 – e aqui, o

Amauta traz de forma cristalina a importância do materialismo histórico como direção

ideológica fundamental das interpretações a serem desenvolvidas sobre a análise social e

histórica peruana (cf. MARIÁTEGUI, 1978, p. 59). Estas preocupações descritas por 191 “El problema primario del Perú”. Lima, Mundial, 9 de dezembro de 1924. 192 cf. “Hacia el estudio de los problemas peruanos”. Lima, Mundial, 10 de julho e 1925. Vale observar, neste

artigo, que Mariátegui vê com bons olhos o crescimento, na geração intelectual de sua época, do interesse pelos problemas peruanos – não obstante seja necessário observar que este crescente interesse seja reflexo da compreensão de que o Peru de sua época tenha maior contato com as ideias e as emoções mundiais: “La voluntad de renovación que posee a la humanidad se ha apoderado, poco a poco, de sus hombres nuevos. Y de esta voluntad de renovación nace una urgente y difusa aspiración a entender la realidad peruana. (…) El internacionalista siente, mejor que muchos nacionalistas, lo indígena, lo peruano” (MARIÁTEGUI, 1978, p. 50-53).

193 Apesar desta observação, este trabalho coletivo, concretamente representado na proposta de um Ateneu de estudos sociais, econômicos e educacionais, não chegou a se realizar, levando Mariátegui a assumir individualmente a proposta de pesquisa (cf. SOBREVILLA, 2012, p. 262).

194 “Un programa de estudios sociales y económicos”. Lima, Mundial, 17 de julho de 1925.195 “La economia no explica, probablemente, la totalidad de un fenómeno y de sus consecuencias. Pero

explica sus raíces. Esto es claro, por lo menos, en la época que vivimos. Época que si por alguna lógica aparece regida es, sin duda, por la lógica de la Economía”. Cf. “El hecho económico en la historia peruana”. Lima, Mundial, 14 de agosto de 1925 (MARIÁTEGUI, 1978, p. 59)

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Mariátegui basicamente deram respaldo ao desenvolvimento do primeiro dos 7 ensayos,

“Esquema de la evolución económica”.

Em 11 de setembro de 1925, a publicação do artigo “El rostro y el alma del

Tawantinsuyu” inaugura a coluna “Peruanicemos al Perú” na revista Mundial. Os artigos ali

publicados por Mariátegui, em grande medida, seriam aprofundados e ampliados para a

composição dos outros ensayos publicados em 1928.

A ordem da obra se dá com a apresentação dos ensaios relativos à esfera da

economia (“Esquema de la evolución económica”, o primeiro; “El problema del índio”, o

segundo; e “El problema de la tierra”, o terceiro); os ensaios dedicados ao âmbito da cultura

(“El proceso de la instrucción pública”, o quarto; “El factor religioso”, o quinto; e “El

proceso de la literatura”, o sétimo); e, finalmente, um ensaio referente ao tema da política

(“Regionalismo y centralismo”, o sexto) (cf. SOBREVILLA, 2012, p. 276). Considerando a

importância que Mariátegui já atribuía aos fundamentos econômicos para a explicação dos

problemas políticos e sociais peruanos, não haveria, portanto, nenhuma casualidade na

ordem de sucessão dos ensaios. Todavia, cabe observar que tal preocupação na pena de

Mariátegui não deve ser vista como um sinal de identidade com qualquer tipo de leitura

determinista – especialmente se consideradas as influências positivistas no interior do

marxismo da Segunda Internacional, tão criticadas por Mariátegui, e que em parte

sobreviviam em muitas das deliberações da Internacional sob influência soviética. Se

Mariátegui, por exemplo, reconhecia o nexo indissolúvel entre o problema indígena e o da

terra (considerando, assim, seu fundamento econômico), a análise do tema, por sua vez,

demandava o aprofundamento do olhar sobre as peculiaridades que tais questões

apresentavam no contexto andino – por exemplo, o fenômeno do gamonalismo, a relação

entre a dimensão de classe e a dimensão étnica da composição da população peruana, as

especificidades culturais deste povo, etc. A curiosidade de ser justamente o ensaio dedicado

à literatura peruana o mais extenso de todo o livro (pouco mais de um terço das 265 páginas

de sua edição original), ou o fato de a epígrafe dos 7 ensayos ser uma afirmação de

Nietzsche, também nos direciona à negativa de qualquer tentativa de filiar Mariátegui a

uma “ortodoxia marxista”. Concordando com a constatação do mariateguista italiano

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Antonio Melis, se o marxismo oferece a Mariátegui um método fundamental de leitura da

realidade nacional peruana, contudo este não se transforma em uma ideologia totalizante –

sua chave interpretativa se alimenta dos aportes procedentes dos distintos campos de

investigação com os quais o socialista peruano tem contato (cf. MELIS, 2011, p. XI).

Mariátegui nos diz que os 7 ensayos são nada mais do que uma contribuição para a

crítica socialista dos problemas e da história do Peru. Defende, categoricamente, a

importância das ideias europeias e ocidentais como partes do intuito de salvação da Indo-

América. E declarando-se afastado de qualquer tonalidade academicista, afirma: “Tengo

una declarada y energica ambición: la de concurrir a la creación del socialismo peruano”

(MARIÁTEGUI, 2007, p. 6). Conscientes deste propósito elevado pelo Amauta é que

podemos nos dedicar às peculiaridades de sua análise sobre as questões religiosas da

história do Peru e do povo peruano.

O fator religioso

Para além do obscurantismo

No capítulo quinto dos 7 ensayos, “El factor religioso”, a intenção de Mariátegui é

proceder ao resgate das tradições religiosas indígenas do Peru pré-hispânico, das

características da empresa colonial e da chegada do catolicismo na região, e dos aspectos

que marcam as relações entre a república independente e a Igreja católica. O que

encontraremos, fundamentalmente, é uma proposta de análise do papel cumprido pela

religião na formação social e histórica peruana, mais do que uma retórica “mística”

semelhante aos ensaios posteriormente reunidos em El alma matinal.

Mas antes de efetivamente se debruçar sobre a história religiosa do Peru, Mariátegui

sustenta colocação contrária ao que define como o posicionamento de representantes de um

certo “livre-pensamento” dedicado à formulação de críticas inúteis à religião. O socialista

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se refere a uma crítica que buscava a estéril e sumária destruição dos dogmas e igrejas em

favor “del dogma y la iglesia de un 'libre pensamiento' ortodoxamente ateo, laico e

racionalista”. Para Mariátegui, o apriorismo anticlerical fazia parte do passado, e o conceito

de religião assumia novas dimensões:

el concepto de religión ha crecido en extensión y profundidad. No reduce ya la religión a una iglesia y un rito. Y reconoce a las instituciones y sentimientos religiosos una significación muy diversa de la que ingenuamente le atribuían, con radicalismo incandescente, gentes que identificaban religiosidad y “oscurantismo” (MARIÁTEGUI, 2007, p. 134)

Primeiro, Mariátegui afirma a amplitude do conceito: a religião não se refere

somente às instituições ou às práticas religiosas propriamente ditas. Ela se caracteriza por

maior extensão e profundidade, algo incompatível com as denuncias anticlericais típicas

daquele pensamento liberal e racionalista contra o qual Mariátegui dirigiu críticas em textos

anteriormente publicados. Podemos dizer, a princípio, que o conjunto das análises

propostas pelo Amauta em “El factor religioso” mantém conexão com as reflexões

anteriores a respeito da fé, da mística, da religiosidade e das relações destas com o

sentimento de luta social descrito por Mariátegui. Já procuramos mostrar que as convicções

defendidas pelo socialista não restringiam o uso destes termos à condição de meras

analogias para a construção do discurso revolucionário: Mariátegui via o homem como um

“animal metafísico”, que buscava uma crença superior e que era movido na história por um

mito; e a revolução social era identificada por Mariátegui como o mito dos novos tempos

para o qual o homem dirigiria seus esforços. Estes pontos são relevantes para se

compreender o fato de Mariátegui, logo no princípio de “El factor religioso”, delimitar as

distâncias de seu pensamento em relação à crítica racionalista, liberal e burguesa da

religião, e pontuar a ressignificação do conceito de religião – ampliando seu escopo e

descolando este conceito de qualquer adjetivação obscurantista.

Mas se nosso autor considera um erro identificar a religiosidade ao

“obscurantismo”, Mariátegui vai além de uma simples denuncia do liberalismo anticlerical

ao afirmar que “la crítica revolucionaria no regatea ni contesta ya a las religiones, y ni

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siquiera a las iglesias, sus servicios a la humanidad ni su lugar en la historia”

(MARIÁTEGUI, 2007, p. 134, grifos nossos). Mariátegui não está apenas justificando uma

posição pessoal sobre como enxergar a religião, mas também atribuindo às leituras e

críticas socialistas da realidade uma atitude de reconhecimento do papel cumprido pelas

religiões e instituições religiosas na história da humanidade. Ao fazer este registro,

Mariátegui mobiliza as reflexões do escritor norte-americano Waldo Frank (1889-1967)

acerca das origens e fatores relacionados à religião que contribuíram para a construção dos

Estados Unidos: o papel do pionner, do puritano e do judeu; a vontade de potência

localizada na raiz do puritanismo; sua austeridade e disposição de domínio sobre as novas

terras. Nesta situação, o fato dos anglo-saxões não se depararem com uma “cultura

avançada” e uma “população potente” nas terras do norte contribuíram para que ali o

cristianismo não desenvolvesse uma missão evangelizadora.

O contrário se dá na América central e do sul: se não bastasse serem diferentes os

próprios colonizadores, a missão catequizadora nas regiões que viriam a constituir países

como México, Perú, Colômbia e outras nações centro-americanas se depararia com

populações numerosas vinculadas a instituições e práticas religiosas próprias e bastante

enraizadas. Com esta base histórica, Mariátegui alude à maior complexidade do fator

religioso para a compreensão da história centro e sul-americana e conclui sobre a

importância da compreensão dos cultos e práticas religiosas dos povos pré-colombianos,

aqueles encontrados pelos conquistadores, para um entendimento adequado do sentimento

religioso da América espanhola (MARIÁTEGUI, 2007, p. 135).

A religiosidade indígena nos Andes

Diferenciando-se de historiadores que tentavam estabelecer paralelos entre as

formas de manifestação religiosa incaicas e as chamadas religiões indostânicas, Mariátegui

afirma que os traços fundamentais da religiosidade incaica eram seu “coletivismo

teocrático” e seu “materialismo”. Sem negar a existência de uma perspectiva além-mundo

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entre os homens do Tawantinsuyo196, Mariátegui contudo creditará à metafísica destes uma

condição de marginalidade:

La religión del quechua era un código moral antes que una concepción metafísica (…). El Estado y la Iglesia se identificaban absolutamente; la religión y la política reconocían los mismos principios y la misma autoridad. Lo religioso se resolvía en lo social” (MARIÁTEGUI, 2007, p. 136).

Tendo como referência o antropologo britânico James Frazer (1854-1941), Mariátegui

busca assemelhar a religião incaica mais às religiões da Grécia e Roma antigas – na medida

em que seus cidadãos identificavam sua religiosidade com o serviço à comunidade e ao

Estado – do que às religiões orientais responsáveis pela individualização da fé e pelo

apartamento do fiel frente o Estado, sua sociedade e a vida presente. Tal identidade –

religião e sociedade, religião e política, religião e Estado – era tamanha a ponto da própria

religião incaica se tornar insustentável diante do declínio do próprio Estado inca. Desde

então, não subsistiria entre os indígenas uma concepção metafísica própria, mas os ritos

agrários, as práticas mágicas e o sentimento panteísta que lhes caracterizavam.

A religião incaica, portanto, era muito mais do que a religião oficial de Estado: era

uma instituição social e política. Era, na prática, o próprio Estado, e seu culto subordinado

aos interesses sociais e políticos do império (MARIÁTEGUI, 2007, p. 137). A religião

incaica também não tinha preocupações propriamente catequistas ou inquisidoras: seu

esforço, direcionado à unificação do reino inca, não visava eliminar os deuses e as

entidades dos demais povos dominados pelo império. Se havia, por exemplo, a exigência da

extinção de ritos e práticas cruéis entre os grupos sociais submissos, não ocorria por sua vez

a propagação de uma verdade metafísica única por parte do reino do Tawantinsuyo. A

religiosidade quechua, afirma Mariátegui, não se constituía a partir de abstrações

complexas, mas por meio de alegorias sensíveis, no sentido de que suas raízes

196 O termo Tawantinsuyu pode ser traduzido como “o império das quatro partes”, ou seja, refere-se a uma união de províncias ou regiões sob uma liderança única. Assim era chamado o Império Inca segundo a linguagem dos próprios indígenas – no caso, o quechua. O domínio inca se sustentava sobre um caleidoscópio de grupos étnicos, línguas e culturas, alcançando grande desenvolvimento em áreas como artes, tecnologia, organização social e estatal (cf. ANDRIEN, 2001, p. 3).

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correspondiam aos costumes e instintos de uma nação formada por tribos agrárias,

ruralmente panteístas e mais propensas à cooperação do que à guerra. Por meio deste

raciocínio é que Mariátegui esclarece que o estudo dos elementos religiosos destes povos

não se concentra na análise de sua mitologia e seus mistérios metafísicos, mas em seus

elementos naturais: animismo, magia, totens e tabus (MARIÁTEGUI, 2007, p. 137-138).

As declarações de Mariátegui sobre a religiosidade quechua em grande parte foram

desenvolvidas com o apoio dos pensamentos de James Frazer, especialmente expostos em

The golden bough (1890). Nosso autor corroborava, neste sentido, o argumento de que os

incas em grande parte enquadravam-se na chamada “idade da magia”, o que era ilustrado

pela permanência de um legado inca mais embasado na criação artística e na arte popular

do que propriamente na esfera intelectual. Por outro lado, Mariátegui ressaltava o vínculo

fundamental da religião indígena às esferas social e política da organização do povo inca:

El pueblo inkaico ignoró toda separación entre la religión y la política, toda diferencia entre Estado y Iglesia. Todas sus instituciones, como todas sus creencias, coincidían estrictamente con su economía de pueblo agrícola y con su espíritu de pueblo sedentario. La teocracia descansaba en lo ordinario y lo empírico; no en la virtud taumatúrgica de un profeta, ni de su verbo. La religión era el Estado (MARIÁTEGUI, 2007, p. 140)

Portanto, a compreensão do fator religioso entre os índios do Tawantinsuyo passa

pelo estudo dos “fatores primários”, dos elementos naturais que, ao longo da história,

tiveram maior capacidade de resistência às iniciativas evangelísticas vinculadas à conquista

colonial espanhola, como a magia, os conceitos místicos e o animismo. Estes elementos

permaneceriam, enquanto que o culto oficial inca se veria derrocado junto ao próprio

Estado inca (cf. KLAIBER, 1988, p. 129).

Conquista e evangelização

A Conquista é concebida por Mariátegui como a última “cruzada” espanhola, o que

a define como empresa essencialmente militar e religiosa, realizada por soldados e por

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missionários. Neste contexto, o poder espiritual inspirava e manejava o poder temporal,

dando contorno a uma nova teocracia na qual o latifúndio, o elemento econômico, era

forjado a partir da “encomienda”, mandato administrativo, espiritual e religioso. Somando-

se a isto a ocupação e domínio das terras e dos templos incaicos pelo missionários

católicos, Mariátegui aponta para o fato de a Igreja assumir parte ativa, direta e militante no

episódio da conquista espanhola (MARIÁTEGUI, 2007, p. 141).

Em sua análise, Mariátegui recupera novamente as observações de Waldo Frank,

publicadas em Our America (1919) para contrastar o processo de colonização da América

do Norte com aquele encontrado na América do Sul. No primeiro caso, o “conquistador”

anglo-saxão, o pionner, era representante de um movimento em ascensão, a Reforma. Da

Inglaterra continuavam a ser enviados diversos puritanos para as colônias norte-americanas,

sem preocupações evangelísticas e com o objetivo final de conquista da nova terra. Por

meio dela criou-se uma nova nação, com uma mentalidade particular, pragmática,

utilitarista, burguesa e capitalista, distante da necessidade de marcos eclesiásticos para a

obra da ocupação.

O “cruzado” espanhol representava, por sua vez, uma outra época: se a Conquista

havia se configurado como empresa militar e religiosa, cujo ator era o “cruzado”, por sua

vez a colonização espanhola se realizaria como empresa política e eclesiástica, substituindo

o “cruzado” militar e religioso pelos letrados e doutores escolásticos, os representantes de

uma outra Espanha, o da Inquisição católica e da decadência (MARIÁTEGUI, 2007, p.

142). Neste ponto, José Luis González Martínez comenta a identificação, na reflexão de

Mariátegui, de uma “dialética” entre o missionário e o eclesiástico, o “cruzado” e o

“burocrata” católico, algo que serviria como modo de contrastar Mariátegui em relação as

análises históricas de sua época, inclinadas a reduzir o episódio da Conquista a um

enfrentamento simples e maniqueísta entre os europeus e as populações nativas da região

colonizada. Para tanto, podemos identificar nas palavras de Mariátegui o reconhecimento

de uma tarefa civilizatória que, em grande medida, teria permanecido nas mãos dos

religiosos por meio da educação e da cultura, do ensino das artes e ofícios. O próprio

Mariátegui observa a importância que assumiram jesuítas e dominicanos na tarefa de

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proteção dos indígenas – cuja mão de obra era explorada nos minérios e nas “encomiendas”

– dando margem a tensões entre os próprios administradores da colônia peruana e os

religiosos enviados pela Companhia de Jesus ao Peru (GONZÁLEZ MARTÍNEZ, 1994, p.

153-154).

Sobre o impacto do catolicismo nos Andes, Mariátegui tende a corroborar as teses

elaboradas pelos teóricos peruanos Emilio Romero e Javier Prado. Mariátegui compreendia

que, apesar do aspecto sedutor que os ornamentos católicos apresentavam para os

indígenas, a evangelização católica não se consumou de forma profunda entre eles. Não por

resistência dos nativos, mas pela falta dela: o catolicismo se caracterizaria pelo mimetismo,

pela capacidade de adaptação aos meios em que buscava desenvolver sua empreitada

evangelística. Deste modo, se os missionários foram capazes de impor algo sobre os índios,

o que impuseram foi o culto exterior, a liturgia, adequada aos costumes indígenas. O antigo

paganismo, todavia, permanecia vivo sob as formas cultuais católicas (MARIÁTEGUI,

2007, p.144). Esta é uma das razões para a explicação do marcante sincretismo religioso

que passa a caracterizar a cultura da sierra andina: o catolicismo que Mariátegui descreve,

em explícito contraste com aquele cristianismo agonizante que defendia Miguel de

Unamuno, é passivamente aceito e, consequentemente, debilitado no período colonial,

perdendo seu vigor moral. As energias dos religiosos, mais do que serem aplicadas no

exercício da evangelização e da transformação moral, são gastas em grande parte com

disputas internas e perseguição de hereges (MARIÁTEGUI, 2007, p. 146-147; cf.

KLAIBER, 1988, p. 130-131).

Outro aspecto da análise de Mariátegui acerca do catolicismo do período colonial

peruano é a consideração de sua debilidade como promotor de elementos de trabalho e

riqueza. Neste sentido, Mariátegui ressalta a morosa caminhada da colonização espanhola

rumo a um capitalismo mais desenvolvido – sem, no entanto, reservar ao catolicismo culpas

exclusivas neste processo: o Amauta considera tal alusão arbitrária e extrema197,

identificando inclusive a contribuição expressiva de determinadas congregações católicas, 197 No ensaio sobre a instrução pública Mariátegui afirma que, a seu juízo, o espírito religioso em si não

representou no Peru um obstáculo para a organização econômica das colônias: a colonização espanhola não havia pecado em excesso de religiosidade (MARIÁTEGUI, 2007, p. 92).

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como as dos jesuítas, em operações econômicas na colônia. Contudo, não deixa de notar

que, na experiência ocidental, a solidariedade mais visível envolvendo as esferas da religião

e da economia se dá entre o protestantismo e o capitalismo:

El protestantismo aparece en la historia, como la levadura espiritual del proceso capitalista. La reforma protestante contenía la esencia, el germen del Estado liberal. El protestantismo y el liberalismo correspondieron, como corriente religiosa y tendencia política respectivamente, al desarrollo de los factores de la economía capitalista. Los hechos abonan esta tesis.

Assim, se o catolicismo preservava uma vontade de potência em relação às

empresas militares e políticas da colonização espanhola na América, contudo não era capaz,

como o protestantismo, de desenvolver uma grande aventura econômica e um ambiente

propício ao ascetismo (MARIÁTEGUI, 2007, p. 147-151)

Cabe notar que a compreensão da correlação entre protestantismo e capitalismo por

Mariátegui é corroborada pela menção a autores como Engels (Socialismo utópico e

socialismo científico), Marx (O Capital) e, fora do campo do materialismo histórico,

Ramiro de Maeztu198. Por sinal, Marx e Engels são textualmente citados em “El factor

religioso” uma única vez, justamente neste apontamento da contribuição protestante para o

desenvolvimento do capitalismo. O tratamento, portanto, que Mariátegui oferece ao tema

religioso nos 7 ensayos se vale do texto marxiano no momento em que sua discussão é

centrada na conexão entre a religião e a economia, sem a apropriação das ideias de Marx e

Engels localizadas especificamente no âmbito da filosofia e da crítica da religião.

Finalmente, a argumentação de Mariátegui sobre o significado do catolicismo na

América espanhola, especialmente no Peru, remete à transformação de sua empresa

religiosa e espiritual em empresa eclesiástica – ou seja, mediante a constituição de um

aparato burocrático e repleto de vícios. Por mais que Mariátegui reconheça que a 198 Vários comentaristas ressaltam a aproximação dos argumentos de Mariátegui às teses defendidas por Max

Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904). Fato é que Mariátegui em nenhum momento menciona Weber e, possivelmente, não teve contato com seus trabalhos. O entendimento mariateguiano sobre as contribuições do protestantismo ao desenvolvimento ideológico do capitalismo, neste sentido, parece estar calcado nos textos de Marx, Engels, além de Maeztu, Frank e também Piero Gobetti. Lembramos que “Nuestro protestantismo”, texto do jovem liberal italiano, é publicado na revista Amauta em junho de 1929.

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organização eclesiástica do cristianismo era um caminho fundamental para forjar um amplo

trabalho de evangelização de diferentes culturas e povos, sua conclusão é que, passada a

“etapa heroica” e cruzadista dos católicos e da Conquista, a estabilização da exploração da

mão de obra negra e indígena e o acesso à riqueza “relaxaram” o colonizador, e o elemento

religioso terminou absorvido e dominado pelo elemento eclesiástico. O clero, ao contrário

de ser uma milícia heroica e ardente, forjava-se como uma “burocracia regalona, bien

pagada y bien vista”. Seus organismos, como a Inquisição, longe de qualquer preocupação

enérgica com questões como a conversão e a transformação moral e religiosa dos nativos,

comportavam preocupações mais políticas do que propriamente religiosas – se não

perseguia heresias na colônia, por outro lado perseguia civis que representassem, com suas

posturas públicas, alguma ameaça ao poder clerical. Por sua vez, a “ciência eclesiástica”, o

grupo de grandes pensadores da hierarquia católica local, agia de um modo que afastava a

população das correntes intelectuais da época, não mais correspondendo às mesmas ações

de um período anterior marcado, de acordo com Mariátegui, pela vivacidade e criatividade

do pensamento escolástico na Espanha (cf. MARIÁTEGUI, 2007, p. 152-154). A forma

como o catolicismo se enraíza no país, se concretizando como força política e eclesiástica

mais do que como força moral e espiritual, pode ser tomado como importante elemento

para a compreensão das particularidades do processo político que conduz à criação do

Estado peruano em 1824.

A independência peruana e a Igreja

Quando analisa a história econômica peruana, Mariátegui procura esclarecer que,

apesar de o país passar por uma revolução de independência, muitos dos aspectos

econômicos instaurados pelo regime colonial – incluindo-se diretrizes econômicas de

orientação “feudal” e “semifeudal” – permaneceram intocados199. Assim, ao mesmo tempo

199 “En el Perú, contra el sentido de la emancipación republicana, se há encargado al espíritu del feudo – antítesis y negación del espíritu del burgo – la creación de una economía capitalista (MARIÁTEGUI, 2007, p. 25)

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em que a independência nacional peruana não representou um avanço acelerado nas

transformações econômicas do país que fosse capaz de representar o declínio imediato dos

“privilégios feudais” ali instalados, tampouco a independência significou a redução ou o

fim dos “privilégios eclesiásticos” (MARIÁTEGUI, 2007, p. 154). Trata-se de um aspecto

curioso que permeia a análise das relações entre religião e Estado no Peru: por mais que os

processos revolucionários, tanto no Peru quanto em outros países do continente americano,

tivessem bebido de fontes como a Revolução Francesa – episódio político que, como nota

Mariátegui, foi marcado por um caráter burguês e liberal carregado de intenso espírito

jacobino e anticlerical – isto não significou uma ruptura com a manutenção de privilégios

religiosos em relação à política e o Estado peruano e demais governos latino-americanos.

Na verdade, observa Mariátegui, foram isolados os casos, no interior do liberalismo civil,

de representações profundamente antirreligiosas – sendo Manuel González Prada o mais

emblemático destes exemplos. E mesmo no interior do clero peruano era possível localizar

um pensamento liberal e patriota, favorável à independência e a despeito da posição oficial

da Igreja de Roma contra as revoluções na América.

Consequentemente, os possíveis conflitos ocorridos entre o poder civil e o poder

eclesiástico se fundavam mais em querelas domésticas, em elementos econômicos e de

direito, do que propriamente em questões de doutrina política. Neste sentido se compreende

porque, por exemplo, o Estado peruano, independente e republicano, mantinha em sua

constituição o catolicismo como religião oficial do país, conservando a tradição hispânica e

colonial no que tange as relações entre religião e política no Peru:

No existían las razones de otras latitudes históricas para el Estado laico. Amamantado por la catolicidad española, el Estado peruano tenía que constituirse como Estado semifeudal y católico (MARIÁTEGUI, 2007, p.157).

Tal fato traduzia não simplesmente a preservação de um poder da religião católica no Peru,

mas especialmente uma fragilidade do liberalismo peruano tanto no plano econômico – na

medida em que era incapaz de promover mudanças reais na estrutura econômica local –

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quanto no plano religioso200. Inclusive, Mariátegui observa que, se em determinado

momento o Partido Civil apresentou quadros dispostos a aplicar uma orientação capitalista

mais sólida e contundente, afastando-se politicamente dos interesses vinculados ao

catolicismo, contudo esta tendência não foi capaz de romper com o predomínio de uma

“casta feudal” no interior do civilismo, que caracterizou definitivamente sua política por

meio de um pragmatismo passivo e de um positivismo conservador frente o poder do clero

e da Igreja.

Mariátegui identifica, portanto, um liberalismo discreto e frágil no que diz respeito à

formação de uma nova consciência política, econômica e social no Peru. Assim como nas

outras etapas deste ensaio, o socialista recorda a ausência de elementos de uma reforma

protestante que poderiam contribuir para o fomento de um pensamento laico e liberal. E

registra também que nos países do continente onde o liberalismo havia conseguido cumprir

uma trajetória livre, vinculada a uma normal evolução do capitalismo e da democracia, o

destino esperado para eles era a preconização do protestantismo e de uma Igreja nacional

como necessidade lógica do Estado liberal moderno (MARIÁTEGUI, 2007, p. 159). Se

Mariátegui reconhecia esses elementos, todavia constatava também que, passado o ímpeto

revolucionário do capitalismo na história, tais teses encontravam-se superadas pela

realidade. Esta deixa permite ao Amauta indicar quais devem ser as verdadeiras

preocupações do socialismo no que tange ao tema religioso – notoriamente ao afirmar sua

visão sobre aqueles intelectuais que reduzem suas análises à mera crítica anticlerical:

El socialismo, conforme a las conclusiones del materialismo histórico – que conviene no confundir con el materialismo filosófico –, considera a las formas eclesiásticas y doctrinas religiosas, peculiares e inherentes al régimen económico-social que las sostiene y produce. Y se preocupa por tanto, de cambiar éste y no aquéllas. La mera agitación anticlerical es estimada por el socialismo como un diversivo liberal burgués (MARIÁTEGUI, 2007, p. 159).

200 Mariátegui questiona a incoerência formal do discurso liberal peruano contrastando-o com o pensamento conservador: “El Estado Católico no puede hacer, si su catolicismo es viviente y activo, una política laica. Su concepción aplicada hasta sus últimas consecuencias, lleva a la teocracia. Desde este punto de vista el pensamiento de los conservadores ultramontanos como García Moreno aparece más coherente que el de los liberales moderados, empeñados en armonizar la confesión católica del Estado con una política laica, liberal y nacional” (MARIÁTEGUI, 2007, p. 157).

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***

O objetivo do terceiro capítulo foi apresentar as análises de Mariátegui realizadas

após seu regresso ao Peru, em 1923. Tratam-se dos anos em que Mariátegui produziu suas

principais contribuições teóricas à análise socialista da realidade peruana e internacional,

bem como nos quais exerceu papel de destaque na conjuntura política local por meio de seu

apoio ao movimento operário e popular de Lima, a fundação da revista Amauta e do

periódico Labor, a criação do Partido Socialista Peruano e da CGTP e a publicação de La

Escena Contemporánea e os 7 ensayos de interpretación de la realidad peruana.

A partir dos escritos mariateguianos procuramos mostrar que importância assumem

os conceitos de mito e religião na formação de um léxico revolucionário por meio do qual o

socialista peruano delineia suas análises e propostas de organização da luta popular.

Especialmente referenciado nos escritos de 1925, o mito é destacado pelo Amauta como o

elemento capaz de satisfazer o anseio da humanidade por uma concepção metafísica da

vida, sendo a revolução social tomada por Mariátegui como o mito dos novos tempos, com

força para sinalizar um movimento de transformação social que rivaliza com a decadência

da civilização burguesa e racionalista do pós-primeira guerra. O combate socialista assume,

nos escritos de Mariátegui, uma “dimensão religiosa”, no sentido de identificar a vontade

de luta, a fé combativa do proletariado, a “emoção revolucionária”, com uma “emoção

religiosa” – não obstante Mariátegui enfatizasse que esta “religiosidade” revolucionária

fosse fundada em motivações humanas, forjadas no seio da realidade histórica, no conjunto

das lutas sociais e do movimento das multidões.

Também buscamos apontar a importância que Mariátegui atribui à religião no

sentido de compreender suas contribuições ao Peru e demais sociedades. Neste ponto, seu

posicionamento é que a crítica revolucionária não deve negar às religiões seu papel na

história humana. Além disso, Mariátegui também considera equivocados e atrasados

aqueles que tendiam a identificar religiosidade com obscurantismo, ressaltando o

aprofundamento e a amplitude de significados assumidos pelas instituições e pelos

sentimentos religiosos de seu tempo. A partir desta chave – o reconhecimento do papel

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histórico cumprido pela religião – podemos compreender a dedicação de Mariátegui ao

estudo das raízes do sentimento religioso no Peru, desde a antiguidade indígena, passando

pela conquista católica, chegando finalmente aos tempos de independência peruana.

Também cabe ressaltar o dialogo entre a abertura ao tema religioso e a valorização do mito

revolucionário. A conclusão de “El factor religioso” evidencia esta conexão ao recordar o

argumento soreliano sobre a capacidade dos mitos revolucionários e sociais de ocupar a

consciência dos homens com a mesma plenitude dos mitos religiosos (cf. MARIÁTEGUI,

2007, p. 160).

Cabem algumas observações complementares. Primeiro, que a reivindicação do

mito e da fé como componentes do discurso revolucionário não se encerra nas páginas dos

7 ensayos. Defensa del Marxismo, baseado em artigos originalmente publicados entre julho

de 1928 e junho de 1929201, retoma Sorel e a “teoria dos mitos revolucionários” como

contribuição necessária à revigoração do marxismo e à constituição das bases de uma

“filosofia da revolução”; e pontua, em sua crítica às concepções deterministas do

marxismo, a fé acentuada e o caráter voluntarista e criador da luta socialista levada a cabo

pelo movimento operário, desde Marx e Engels até a fundação da União Soviética:

En ese proceso, cada palabra, cada acto del marxismo tiene un acento de fe, de voluntad, de convicción heroica y creadora, cuyo impulso sería absurdo buscar en un mediocre y pasivo sentimiento determinista” (MARIÁTEGUI, 1988c, p. 69).

Já em “El problema de las razas en la America Latina”, tese apresentada na Primeira

Conferência Comunista Latino-americana (Buenos Aires, junho de 1929), antecipado por

uma análise do papel da hierarquia e doutrina católica no controle e domesticação dos

índios para a exploração de sua mão de obra pela burguesia nacional, Mariátegui afirmará a

importância de se desenvolver uma consciência de classe entre os indígenas como meio de

promover sua liberdade:

Sólo una conciencia de clase, sólo el "mito" revolucionario con su profunda 201 A publicação original destes artigos se deu nas revistas Mundial e Variedades e, posteriormente, os artigos

foram reunidos nos números 17 a 24 da revista Amauta (cf. MARIÁTEGUI, 1988, p. 7).

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raigambre económica, y no una infecunda propaganda anti-clerical, lograran substituir los mitos artificiales impuestos por la "civilización" de los invasores y mantenidos por las clases burguesas, herederas de su poder (MARIÁTEGUI, 1988a, p. 58).

Isto nos leva à segunda observação: Mariátegui preocupava-se com as críticas

infrutíferas e meramente anticlericais, nas quais enxergava um liberalismo frágil e sem

consequências revolucionárias; não significa, porém, que o Amauta se esquivasse de fazer

as críticas que julgasse pertinentes ao papel histórico exercido pela religião. Identificar as

contribuições históricas da religião para a humanidade era um exercício necessário tal qual

reconhecer o papel negativo que a mesma cumpriu ou continuava a cumprir na história.

Enxergamos isto na análise que Mariátegui desenvolve em “el factor religioso”. Mas, antes

ainda, Mariátegui já havia redigido posições críticas à Igreja católica – especialmente após

seu retorno ao Peru. Uma das críticas mais contundentes pode ser vista no comentário que o

socialista escreve sobre a reação conservadora no México pós-revolucionário202. A oposição

da Igreja mexicana às mudanças constitucionais relativas ao ensino e ao culto, por meio da

reivindicação de um postulado liberal – a liberdade religiosa – seria traduzido por

Mariátegui como representação de contradição e oportunismo por parte dos clero católico:

La Iglesia invoca esta vez en México un postulado liberal: la libertad religiosa. En los países donde el catolicismo conserva sus fueros de confesión del Estado, rechaza y execra este mismo postulado. La contradicción no es nueva. Desde hace varios siglos la Iglesia ha aprendido a ser oportunista. No se ha apoyado tanto en sus dogmas, como en sus transacciones. Y, por otra parte, el ilustre polemista católico, Louis Veinllot, definió hace tiempo la posición de la Iglesia frente al liberalismo en su célebre respuesta a un liberal que se sorprendía de oírle clamar por la libertad: “En nombre de tus Principios, te la exijo; en nombre de los míos, te la niego” (MARIÁTEGUI, 1988b, p. 45)

Por sua vez, nas teses que ajudou a escrever para a Conferência Comunista de 1929,

Mariátegui não apenas teceu críticas ao catolicismo como também identificou a tentativa de

avanço do imperialismo norte-americano sobre a América Latina por meio das missões

protestantes – não obstante classificasse como “absolutamente depreciável” as

possibilidades de êxito desta ação (cf. MARIÁTEGUI, 1988a, p. 58). Entendemos, assim, 202 “La reaccion en Mexico”. Lima, Variedades, 7 de agosto de 1926.

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que Mariátegui buscava sustentar uma posição de reconhecimento e abertura ao fenômeno

religioso no interior de seu pensamento revolucionário, porém trabalhando com o rigor

necessário para avaliar as contribuições negativas oferecidas pelas instituições religiosas no

decorrer da história.

Ressaltamos a compreensão voluntarista e “religiosa” que Mariátegui atribui ao

socialismo: se o Amauta conclui “El factor religioso” reiterando a importância dos mitos

revolucionários, no sétimo ensaio (“El proceso de la literatura”) encontramos afirmações

categóricas sobre o caráter “religioso” da luta revolucionária. A deixa é a crítica ao espírito

antirreligioso de González Prada:

González Prada se engañaba, por ejemplo, cuando nos predicaba antirreligiosidad. Hoy sabemos mucho más que en su tiempo sobre la religión como sobre otras cosas. Sabemos que una revolución es siempre religiosa. La palabra religión tiene un nuevo valor, un nuevo sentido. Sirve para algo más que para designar un rito o una iglesia. Poco importa que los soviets escriban en sus affiches de propaganda que “la religión es el opio de los pueblos”. El comunismo es esencialmente religioso (MARIÁTEGUI, 2007, p. 220, grifos nossos)

Finalmente, não podemos ignorar a correspondência das análises e ideias defendidas

por Mariátegui com a conjuntura intelectual de sua época. Outros escritores, preocupados

com a temática religiosa nos campos da política e da história, também se manifestaram. O

contexto da Revolução Mexicana e da reação eclesiástica ao novo governo, em especial,

marca o conjunto das análises publicadas na revista Amauta por autores como Ramiro Perez

Reinoso203, Dora Mayer de Zulen204 e Ricardo Martinez de la Torre205 – que, em maior ou

menos grau, tecem críticas à postura da Igreja e da hierarquia católica e buscam distinguir a

203 “La iglesia contra el Estado en Mejico”. Lima, Amauta, ano 1, n. 1, setembro de 1926, p. 29.204 “El problema religioso en Hispano America”. Lima, Amauta, ano 2, n. 10, dezembro de 1927, p. 59-62.205 “La Revolucion Mexicana y el clero”. Lima, Amauta, ano 3, n. 12, fevereiro de 1928, p. 26-28. Em outro

artigo, Martinez de la Torre ressalta a importância de atrair ao conjunto das lutas aqueles que ocupam posições inferiores no interior da Igreja, por sua mais forte identidade popular: “los que carecen de toda prerrogativa eclesiástica, el leigo, el sacristán, el sacerdote hambriento, [formam] el elemento del proletariado. Hay que atraer a este último. Infundir en su espíritu la necesidad de las mismas reivindicaciones económicas de los obreros, los soldados, y los campesinos. Enseñarle que al lado de los capitalistas, son también sus enemigos los prelados y las órdenes monásticas poderosas”. “Mi anticlericalismo”. Lima, Labor, ano 1, n. 2, 24 de novembro de 1928, p. 6.

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“mensagem do evangelho” das doutrinas pregadas pelas autoridades da Igreja, promovendo

uma releitura da história de Cristo e do cristianismo primitivo que se compatibilize com o

desejo de mobilizações sociais e de luta popular. Ao mesmo tempo, outros trabalhos são

publicados em Amauta com preocupações diversas como a compreensão do impacto

católico na cultura e vida indígena peruana206, as contribuições da história hebraica e do

cristianismo para o entendimento de lutas e transformações sociais no ocidente207, e até

mesmo elogios a simbologias religiosas208 e escritos de reflexão teológica209. É raro

encontrar em Amauta um texto de forte hostilidade à religião em geral210. Recordando o

papel preponderante de Mariátegui na organização de Amauta, reconhecemos como o

desejo de desenvolver em seu público uma formação intelectual e política revolucionária se

distanciava de posturas radicalmente antirreligiosas, e como este propósito se materializou

na organização desta publicação.

***

206 Emilio Romero, “El Cuzco Católico”. Lima, Amauta, ano 2, n. 10, dezembro de 1927, p. 54.207 Romulo Meneses, “El Hebraismo y las bases psíquicas de la historia”. Lima, Amauta, ano 2, n. 11, janeiro

de 1928, p. 25-27.208 Maria Wiesse, “San Francisco de Asis y nuestro siglo”. Lima, Amauta, ano 1, n. 2, outubro de 1926, p. 3.209 Julio Navarro Monzo, “La nueva reforma”. Lima, Amauta, ano 3, n. 16, julho de 1928, p. 17-20.210 Ernest Hierl, “Escuela y religion”. Lima, Amauta, n. 29, fevereiro-março de 1930, p. 36-49.

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Conclusão

Apesar de sua intensa produtividade política e intelectual, José Carlos Mariátegui

teve sua vida logo interrompida. A morte do Amauta, ocorrida em 16 de abril de 1930 e

decorrente de complicações em sua frágil saúde, foi muito lamentada e razão de diversas

homenagens tanto da parte de trabalhadores organizados como também de intelectuais

peruanos e de outros países americanos. Tal episódio se dá no contexto em que Mariátegui

passa a aprofundar suas relações com a Terceira Internacional211 e realizar esforços de

incursão no debate comunista latino-americano, ilustrados pela apresentação das teses

Punto de vista antimperialista e El problema de las razas en América Latina na

Conferência Comunista Latino-americana de Buenos Aires, em junho de 1929212.

Notadamente, esta aproximação ao Comintern não se deu sem tensões fundamentais a

respeito dos caminhos do processo revolucionário no continente. No que tange as questões

peculiares da construção do socialismo na América Latina que Mariátegui, com tanta

cautela, desejava considerar e analisar (especialmente no tratamento do problema indígena,

da concepção de partido, e do caráter e da estratégia revolucionária para o Peru), dá-se uma

forte polêmica entre os representantes do PSP e a direção oficial da III Internacional, cujas

posições tendiam à homogeneização das conjunturas políticas e econômicas dos países

latino-americanos sob a alcunha de “semicoloniais” e à defesa da revolução “democrático-

burguesa” como etapa prévia da revolução socialista na região – definitivamente, teses

muito diferentes daquelas desenvolvidas pelo Amauta, preocupado com a compreensão da

especificidade social e histórica peruana e afirmando a necessidade de uma revolução

claramente socialista como passo seguinte e fundamental. Desta forma, se Mariátegui

211 Em 1929, Mariátegui é designado membro do Conselho Geral da Liga contra o Imperialismo, vinculado à III Internacional, por decisão do segundo congresso de Berlim. A medida formaliza sua vinculação orgânica ao Comintern (QUIJANO, 2007, p. XLVII).

212 Justamente por razões de saúde, Mariátegui não pôde participar da reunião de Buenos Aires (assim como do Congresso Constituinte da Conferência Sindical Latino-americano de Montevidéu, ocorrido no mês anterior), sendo o PSP representado por Julio Portocarrero e Hugo Pesce. Ambos, além de Ricardo Martinez de la Torre, colaboraram com Mariátegui na escrita dos documentos apresentados em Montevidéu e Buenos Aires (cf. FLORES GALINDO, 1982, p. 24).

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reconhecia a importância da III Internacional e do legado socialista soviético para o

desenvolvimento do processo revolucionário a nível internacional (como expressou nas

conferências que ofereceu às Universidades Populares ou nos textos recompilados em La

escena contemporánea), no entanto o Amauta e o PSP construiriam sua aproximação ao

Comintern sem, contudo, deixar de lançar uma polêmica fundamental com a direção oficial

da organização sobre os caminhos da revolução no continente (cf. QUIJANO, 2007, p.

XLVII-XLVIII; FLORES GALINDO, 1982, p. 28-33).

Além das tensões com a III Internacional, Mariátegui também seguiu enfrentando

perseguições políticas por parte do governo de Leguía. Como se não bastasse a denúncia de

um “complô comunista” que motivou as forças policiais a aprisionarem Mariátegui em

1927, uma nova ofensiva policial em novembro de 1929 praticamente sequestrou o Amauta

em sua própria residência, registrando minuciosamente os cômodos do local e confiscando

documentos e livros. O autoritarismo das ações governistas e as novas denúncias de

“complôs” que surgiam naquele momento atingiam também a outros peruanos, mas

encontravam em Mariátegui um alvo potencial por seu reconhecimento político e social.

Também nesta época o periódico Labor é definitivamente fechado pelo regime. Diante do

avanço da repressão governamental e com a piora de suas condições de saúde, a relutância

inicial de Mariátegui quanto a possibilidade de sair do Peru se esvai. O Amauta passa a

articular sua ida definitiva para Buenos Aires com o auxílio de amigos como Samuel

Glusberg e Waldo Frank, alimentando especialmente a expectativa de manter-se presente no

debate político continental com a manutenção das publicações de Amauta, mesmo que fora

de seu país.

A partida de Mariátegui para a Argentina também correspondia a um ato de

preservação uma vez que, na conjuntura política da época, o socialista se deparava com

duas forças políticas fundamentais e com as quais alimentava duras divergências: a

Internacional e o aprismo. Em certa medida, os entusiastas latino-americanos do Comintern

construíram articulações políticas que, ao poucos, minaram a liderança intelectual e política

de José Carlos Mariátegui no campo socialista peruano. Eudócio Ravines se tornou o

principal representante da III Internacional no Peru e assumiu a secretaria geral do PSP. Em

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maio de 1930, um mês após a morte de Mariátegui, o partido mudou sua nomenclatura para

Partido Comunista del Perú, consolidando sua relação com as orientações da III

Internacional (cf. FLORES GALINDO, 1982, p. 106-108).

O prematuro falecimento de Mariátegui interrompeu uma etapa importantíssima em

sua trajetória intelectual: justamente o momento em que a conjuntura política socialista, por

meio do avanço da III Internacional e as consequentes pressões políticas que nasceriam

deste fato, colocariam para Mariátegui a tarefa de se posicionar politicamente diante das

críticas duramente protagonizadas pela direção sul-americana do Comintern ao pensamento

socialista peruano. Como notamos ao longo deste trabalho, Mariátegui era afeito à análise

rigorosa e à polêmica. Acreditava que “el valor de la idea está casi íntegramente en el

debate que suscita”213 (MARIÁTEGUI, 1988b, p. 26). O debate era um elemento cotidiano

de sua biografia e um instrumento fundamental para o desenvolvimento de seu pensamento.

Partindo desta perspectiva, seria equivocado apontar Mariátegui como um homem disposto

a acatar sem questionamentos as diretrizes do Comintern. Seria, pelo contrário, um

interlocutor em vários aspectos, e um dissidente tenaz: “Nuestro destino es la lucha más

que la contemplación” (MARIÁTEGUI, 1988b, p. 81; FLORES GALINDO, 1982, p. 114).

Buscamos, neste trabalho, conhecer a história do Amauta e compreender seus

pensamentos acerca dos conceitos de mito e religião e das relações que estes conceitos

estabeleceram com seu pensamento revolucionário. Com esta preocupação, julgamos

inviável realizar este exercício sem nos apegarmos ao estudo do jovem Mariátegui e dos

dilemas pessoais que o mesmo viveu antes do exílio. Um católico, sim – é o próprio que se

declara como tal. Mas, definitivamente, de um catolicismo nada piegas. Uma das marcas

mais claras do caminho intelectual percorrido pelo jovem periodista era o respeito pela

religiosidade (especialmente aquela exalada no ardor e no sacrifício das manifestações

populares que em diversos momentos tomaram as ruas e praças de Lima), mas somado a

um tensionamento do próprio autor com os valores e comportamentos aristocráticos que

caracterizavam a vida intelectual e política peruana naqueles anos pré-oncenio, e que em

grande parte encontrava nos ensinos da Igreja justificativas para sua tediosa dinâmica 213 “¿Existe un pensamiento hispano-americano?”. Lima, Mundial, 19 de março de 1925.

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social. Relembrando a colocação de Anibal Quijano, mencionada ainda no primeiro

capítulo, é fundamental considerar o impacto das reflexões místicas protagonizadas pelo

jovem Mariátegui para compreendermos o desenvolvimento de suas ideias políticas tão

acentuadas pelo voluntarismo e pela identificação da luta socialista com as esferas do

misticismo e da religiosidade.

Com o avanço dos anos, Mariátegui se aproxima do pensamento marxista e,

posteriormente, assume parte ativa na construção do socialismo, inclusive reivindicando o

materialismo histórico como instrumento de análise da realidade e enxergando nas ideias de

Marx, Engels e Lenin contribuições fundamentais para seu projeto político. O pensamento

de Georges Sorel, em especial, ganha posição de destaque nas ideias do Amauta,

contribuindo de maneira decisiva para as reflexões que o peruano desenvolve sobre o papel

dos mitos revolucionários no seio das lutas socialistas.

Além disso, as ideias sorelianas também permitem a Mariátegui abrir portas para

um debate no interior do pensamento revolucionário que busca preservar a religião de

adjetivações preconceituosas – comuns entre os intelectuais anticlericais do liberalismo,

mas também em um conjunto expressivo de militantes socialistas. Mariátegui não era um

defensor acrítico da religião, mas seus trabalhos sobre o tema foram diferenciados no

conjunto do pensamento marxista – sem renegar à religião sua importância histórica, nem

desejando fomentar um debate filosófico que opusesse o materialismo histórico à religião

em geral. Isto parece bastante claro na medida em que comparamos as palavras de

Mariátegui às de figuras capitais da história do marxismo. Engels nos afirmava que, por ser

a religião um “reflexo fantástico” das potências externas à existência dos homens, das

relações econômicas e sociais de produção e exploração de classe, estaria ela sujeita à

extinção na medida em que os homens se livrassem da servidão e se apropriassem da

produção: a religião não existiria mais porque esta nova sociedade, transformada, não teria

mais o que “refletir” (ENGELS, 1975, p. 180); Lenin, provavelmente o mais ácido crítico

marxista da religião, observava nela uma espécie de “aguardente espiritual de má

qualidade, em que os escravos do capital afogam sua figura humana”. Dizia também que a

religião é “uma das coisas mais repugnantes que existem abaixo do céu” (LENIN, 1979, p.

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5-6; 12-13). É justo lembrar que tanto Engels quanto Lenin não recusam a liberdade de

crença como um dos princípios que norteiam o projeto político revolucionário que

defendem. Todavia, não abrem mão do fomento de um debate teórico que afirme a

superioridade do materialismo histórico diante das ideias religiosas, e o destino

inexoravelmente decadente das religiões. Para Mariátegui, aparentemente, esta questão não

está colocada. De sua parte, o Amauta vai além da identificação da religião com o

“obscurantismo”, afirmando a amplitude deste conceito e opondo-se às críticas racionalistas

e anticlericais. Enquanto se valeu do mito, da fé e da religiosidade para alimentar seu

propósito revolucionário, também foi cuidadoso para promover análises e críticas das

manifestações históricas e políticas dos atores e instituições religiosas. Não há, segundo

Mariátegui, uma contraposição entre socialismo e religião,

pues el socialismo es, también, una religión, una mística. Y esta gran palabra, religión, que seguirá gravitando en la historia humana con la misma fuerza de siempre, no debe ser confundida con la palabra Iglesia (MARIÁTEGUI, 1988b, p. 46; cf. FLORES GALINDO, 1984, p. 26).

Chegamos ao final desta investigação com a convicção de que, mais do que um teórico

original, um marxista “heterodoxo”, Mariátegui deve ser olhado como um revolucionário,

uma alma agônica e profundamente inspiradora, que “encontrou a Deus” e também

“descobriu a Humanidade” na medida em que escolheu dedicar-se ao porvir e fazer parte,

como combatente que se considerava, de uma batalha histórica (cf. MARIÁTEGUI, 2007,

p. 292).

A relação entre religião e política constitui elemento fundamental da história social

peruana. Deste modo, não podemos isolar as considerações de Mariátegui sobre o tema

religioso do contexto peruano: o Amauta era um homem de seu tempo, e seus anseios

políticos, com toda carga “mística” que comportava, correspondiam também a este tempo.

Após 1930, o país continuaria a testemunhar relações entre as esferas da política e da

religião: Haya de la Torre e os apristas, conhecidos por suas críticas à hierarquia católica

em paralelo ao uso de um discurso que apelava à simbologia bíblica para comover os

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militantes populares de Lima no início dos anos de 1920, passaria na seguinte década a

aprofundar a retórica político-religiosa, massificando suas bases de apoio: “¡Cristo salve a

mi espiritu, y el Apra salvará al Perú!” (cf. KLAIBER, 1988, p. 169)214. Governos

constitucionais e golpistas que se sucederam nas décadas seguintes continuariam a se valer

de discursos associados a referências religiosas comuns às classes populares peruanas,

buscando inclusive o apoio da hierarquia católica para constituir bases de legitimidade

política e social. E o pensamento conservador, hegemônico no interior da Igreja peruana,

seria aos poucos tensionado pelo crescimento de um discurso mais progressista entre padres

e bispos que culminariam, especialmente na década de 1970, na formação dos pilares da

teologia da libertação, representada especialmente nas contribuições de Gustavo Gutiérrez.

Por sinal, o sacerdote diocesano se inseriu no contexto político intelectual peruano não

apenas por suas reflexões teológicas mas também pelos estudos que dedicou a figuras como

o próprio José Carlos Mariátegui215.

Certamente há questões que, pelos limites deste trabalho, estão impossibilitados de

maior aprofundamento, não obstante julguemos que também devem ser objetos de atenção

da pesquisa acadêmica. Uma discussão interessante pode ser feita sobre a relação de José

Carlos Mariátegui com o teólogo presbiteriano John A. Mackay, fundador do Colégio

Anglo-Peruano e nome respeitado no conjunto da intelectualidade peruana da década de

1920216. Outra investigação pertinente certamente diz respeito ao impacto das ideias de 214 A APRA, apesar de seu forte crescimento, enfrentou grande perseguição política da ditadura de Sánchez

Cerro, após o fim do oncenio. Se na década de 1930 o aprismo carregou-se de fervor político-religioso, no entanto só viria a se desfazer de seus elementos mais precisamente anticlericais na década de 1940, ilustrada especialmente na eliminação do artigo que exigia a separação entre Igreja e Estado de seu programa político. Isto não representou, porém, um aprofundamento da retórica político-religiosa nos anos seguintes. Na prática, o aprismo acabou por declinar seu ímpeto contestatório e seu poder de integração política das massas neste período (cf. KLAIBER, 1988, p. 183-185).

215 Em uma entrevista, Gutiérrez foi indagado a respeito da presença de elementos religiosos (cristãos ou não) em pensadores identificados com o marxismo no Peru, como Mariátegui, César Vallejo (1892-1938) e José Maria Arguedas (1911-1969). Sobre eles, o padre da teologia da libertação afirma: “Lo que pasa es que llamarlos marxistas no agota todo lo que ellos fueron. Además, depende de cómo vieron essa ideologia política. Como diría Arguedas, en ellos el socialismo no mató lo mágico, ni tampoco su sensibilidad a ciertas dimensiones relevantes y hondas del pueblo peruano, cuyo latir fue tan importante para los tres” (cf. ADRIANZÉN, 1994, p. 116).

216 John A. Mackay (1889-1983), de origem escocesa, aportou em Lima em 1916 para fins missionários, dedicando-se aos trabalhos educacionais. Logo passou a escrever para periódicos locais, e doutorou-se em letras na Universidad Mayor de San Marcos com uma tese sobre Miguel de Unamuno. Mariátegui e

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Mariátegui sobre o tema religioso nas gerações políticas futuras, especialmente entre os

atores religiosos que se vincularam ao pensamento de esquerda. Julgamos que as ideias do

Amauta podem nos oferecer hipóteses consistentes para a compreensão de fenômenos

políticos como a participação de cristãos nos movimentos revolucionários latino-

americanos, o desenvolvimento da teologia da libertação, e a “mística revolucionária” de

movimentos sociais como o MST ou o EZLN (cf. LÖWY, 2005, p. 114).

Mackay dialogaram por meio de algumas cartas, e o Amauta encaminhou a educação de seus dois primeiros filhos ao Colégio Anglo-Peruano. Haya de la Torre também estabeleceu uma relação de grande amizade com Mackay, que inclusive o abrigou em seu estabelecimento escolar quando o governo Leguía, por razão dos protestos de 1923, determinou a prisão do jovem líder das Universidades Populares.Mackay deixou o Peru em 1926, rumo a Montevideu. De lá, escreveu sua última correspondência para o Amauta, a qual é lembrada décadas depois por Javier Mariátegui: “Cuando pienso en Ud. Y en la lucha que libra contra dificultades que hundirían a cualquier outro, sólo por estar consagrado a una causa en que cree con la cabeza y las entrañas, yo me siento más fuerte para mi propia obra” (MARIÁTEGUI, 1995, p. 11; cf. CHANAMÉ, 1995).

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