misericórdia de barcelos - brochura da igreja

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IGREJA DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE BARCELOS Edição: Santa Casa da Misericórdia de Barcelos Texto: Joaquim Vinhas Fotografia: José Eduardo Reis e Joaquim Vinhas Barcelos 2012

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Page 1: Misericórdia de Barcelos - Brochura da igreja

IGREJA DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE BARCELOS

Edição: Santa Casa da Misericórdia de Barcelos

Texto: Joaquim Vinhas

Fotografia: José Eduardo Reis e Joaquim Vinhas

Barcelos – 2012

Page 2: Misericórdia de Barcelos - Brochura da igreja

A Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de

Barcelos foi fundada nos inícios do século XVI, por

iniciativa do poder régio, que encontrou nas

organizações cívico-religiosas uma resposta moderna

para os velhos problemas do aro assistencial.

Por conseguinte, a Santa Casa de Barcelos foi o rosto

local da política manuelina dos inícios de Quinhentos,

traduzida na aplicação das 14 obras de misericórdia: 7

corporais e 7 espirituais.

É sabido que a primeira confraria surgiu em Lisboa nos

finais do século XV, quando, em 15 de Agosto de 1498,

a rainha D. Leonor (com a anuência de D. Manuel I)

mandou constituir na Sé Catedral uma irmandade com

a invocação de Nossa Senhora. No ano seguinte, D.

Manuel fez saber o seu intento de fazer chegar às

principais cidades e vilas do reino o exemplo da

novíssima organização da capital.

Como também deve saber-se, a vila de Barcelos fora e

havia de continuar a ser um sítio principal do reino. É

pois nossa convicção que as orientações régias,

contidas na carta que chegou ao Porto em 1499,

rapidamente chegaram a Barcelos e aqui nasceu, a

exemplo da cidade invicta, a Confraria de Nossa

Senhora da Misericórdia.

Embora não tenha sido encontrado o documento da

sua fundação, pensamos que os homens bons de

Barcelos não perderam tempo na organização da sua

confraria. Sabe-se que, no famoso milagre do

aparecimento da Cruz em Barcelos, no ano de 1504

(fenómeno registado em notário segundo fonte do

século XVII), os irmãos da Confraria de Nossa Senhora

da Misericórdia, da então vila de Barcelos, terão

desfilado na solene procissão que consagrou o divino e

histórico acontecimento.

Pode pois inferir-se que, nos inícios de Quinhentos, a

Misericórdia de Barcelos exercia já uma ação de relevo

na vila que foi sede do primeiro condado português.

Datável do século XIX, a bandeira da Irmandade de Nossa

Senhora da Misericórdia, que se guarda na sacristia, é

composta de duas telas a óleo – com moldura, haste e cruz

de prata – que apresentam a seguinte iconografia: de um

lado, a Mãe de Deus com o seu manto protetor das elites

sociopolíticas e religiosas do Antigo Regime; do outro lado,

a muito humana Senhora, aparenta um sofrimento contido

pela perda irreparável do Filho, que sustenta no regaço,

talvez algo inconformada com o drama da Paixão de Cristo,

que ao mundo veio para remir os pecados da humanidade.

Page 3: Misericórdia de Barcelos - Brochura da igreja

Datada da primeira metade do século XVIII, a fachada da igreja da Misericórdia é definida por um retângulo granítico, delimitado por duas poderosas pilastras toscanas e uma competente cornija a partir da qual se organiza o frontão, acentuando a verticalidade do edifício e conferindo-lhe robustez e monumentalidade. Três arcos de volta-inteira, de inspiração clássico-renascentista, dão acesso à galeria ou nártex que antecede o interior da igreja. A monumentalidade arquitetónica convida o visitante a estender o seu olhar em direção à estatuária setecentista, de apreciável labor escultórico, de feição barroca, no quadro de uma retórica da perfeição, associada a uma narrativa discursiva de elevado simbolismo: no registo superior, majestosa e divina, encontra-se Nossa Senhora da Conceição, no centro de um frontão ondulante; no centro da composição, surge-nos o tema da Visitação – Virgem Maria visita Santa Isabel –, ladeado pelas imagens de S. Francisco e de S. Boaventura. 1834.

Enquadrada na extensa fachada arquitetónica que corre de norte a sul, no lado nascente do Campo da República (vulgarmente conhecido como Campo da Feira), a igreja da Misericórdia de Barcelos constitui um excelente cartão de visitas para quantos querem conhecer e melhor compreender a história da cidade. Sem os edifícios da Misericórdia, e em especial a sua igreja do século XVIII, uma parte significativa do urbanismo e da arquitetura de Barcelos permaneceria incompreendida. Edificada pela extinta Ordem Terceira de S. Francisco, esta igreja e o seu convento foram entregues por D. Maria II, em 1836, à Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia de Barcelos que, desde então, passou a escrever a sua história neste moderno espaço conventual, deixando as antigas instalações adstritas à Câmara Municipal.

Decerto o visitante já reparou no escudo pétreo que se encontra sobre o arco central, com o emblema de bronze que nos recorda a antiga proprietária desta igreja – a Ordem Terceira de S. Francisco –, extinta como as demais em 1834, no desfecho da guerra civil (1832-1834) de que resultou a vitória do liberalismo em Portugal.

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No lado esquerdo do nártex existiu, no

século XIX, uma capela dedicada a Santo

António dos Esquecidos, com a sua

imagem colocada no nicho atualmente

ocupado por Nossa Senhora da

Misericórdia.

Do lado direito, a imagem de Santo

António da Portaria tinha o seu lugar no

respetivo nicho sobre o portal de entrada

no antigo convento franciscano, e que a

partir de 1837 passou a dar acesso ao

Hospital da Misericórdia de Barcelos.

O Dia de Santa Isabel – que segundo o texto bíblico de S. Lucas diz respeito à Visitação que

a Virgem Maria, após a Anunciação, realizou à prima Isabel, grávida de S. João Batista –, é

um tema comum à generalidade das irmandades de Misericórdia, quanto mais não fosse,

pela relação estabelecida com o cumprimento de uma das 7 obras corporais.

Não é por acaso que, ao longo da sua história, a irmandade barcelense festejou o Dia de

Santa Isabel, a 2 de julho, justificando-se assim a colocação do grupo escultórico na janela

do coro da igreja, posteriormente à sua tomada de posse em 1836.

(De notar que a Festa da Visitação havia sido decretada pelo papa Urbano VI, em 1389,

visando a intercessão de Maria pela paz e unidade da cristandade católica, na época

dividida pelo Grande Cisma do Ocidente… Atualmente o calendário litúrgico celebra o Dia

da Visitação a 31 de maio).

A entrada no interior do templo faz-se pela portada que se abre para o vestíbulo ou nártex interior.

A planta da igreja é de cruz latina, com uma só nave e um transepto pouco pronunciado: do lado do Evangelho

deparamo-nos com a capela de Santo António, enquanto uma porta do lado da Epístola permite o acesso à sacristia

onde se guardam a bandeira da Irmandade, os paramentos, as alfaias litúrgicas e outras obras de valor

museológico.

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A igreja foi construída na década de 1730, pelo mestre Francisco Manuel, da freguesia de Mondim. Porém, a capela-mor deveria mostrar-se insuficiente para o exercício dos atos litúrgicos, já que o mesmo mestre pedreiro foi de novo contratado, em 1750, para ampliar este espaço, devendo a empreitada estar concluída pelo S. João de 1751. Fez-se então um novo retábulo-mor, concebido ao gosto neoclássico, devendo ter-se aproveitado o frontal do altar e as sanefas das janelas, que mantiveram os elementos decorativos do estilo rococó.

A pintura de Nossa Senhora da Conceição, que atualmente se encontra no lado esquerdo de quem entra (lado do Evangelho), deve ter sido executada para a tribuna do retábulo-mor, construído provavelmente na sequência das obras de ampliação da capela-mor, em meados do século XVIII. Nesta tela a óleo (repintada nos finais do século XX) Nossa Senhora repousa serenamente sobre as forças do mal representadas por um dragão, uma iconografia que o artista organizou em três registos: no plano superior emerge do céu o Espírito Santo da sua geometria triangular – o dogma da Santíssima Trindade –, numa paleta quase monocromática e escaldante, qual fogo do mistério divino, sem subtrair importância ao centro da composição que é dominado pela presença da Senhora (envolvida por um movimentado manto azul), enquanto no plano inferior a força do dragão mais não pode que tentar atrair com o fogo maligno o grupo dos potenciais anjos destinados a uma descida aos Infernos, não fosse a força protetora da Senhora que mantém o dragão imobilizado no seu mundo inferior.

Os anjos tocheiros ou lampadários, colocados na base do arco-cruzeiro, constituem dois belos exemplares da arte da talha barroca, policromada. De acordo com a inscrição na base, foram esculpidos em 1781, na oficina Victor Mendes, de Braga… a estas imagens está associado o nome de Frei C. Brandão. De elevada qualidade estética, estas esculturas revelam um caráter festivo e sensual, em consonância com o espírito e a mentalidade de Setecentos. Foram originalmente encomendados para a capela-mor da antiga igreja da Misericórdia, tendo transitado para a atual igreja em 1837.

Pode ver-se, acima, a capela-mor com o seu retábulo de meados do século XVIII. Atente-se na cadeira e nos bancos (séc. XVIII) e no pormenor do frontal do altar-mor, ao lado, onde é

visível a poética do rococó.

Junto ao arco-cruzeiro, dois anjos lampadários, de 1781, exibem ainda uma certa teatralidade associada ao estilo barroco.

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O retábulo-mor é de um fino recorte neoclássico!...

Delimitando o espaço do camarim e da tribuna, em cujo topo

se expõe o Senhor, um arco de inspiração clássica foi por sua

vez enquadrado por dois pares de colunas marmoreadas, que

lembram a antiga ordem compósita; para embelezar o

conjunto optou-se por enrolamentos de volutas, anjos,

grinaldas, festões e outros elementos vegetalistas. O sacrário

sobre o altar e a banqueta com os seus castiçais, no sopé do

trono eucarístico, completam a estrutura retabular,

enriquecida pictoricamente com o branco e o dourado.

A igreja, concebida com uma nave única,

recebeu dois altares colaterais, também em

talha branca e dourada, combinando

elementos dos estilos rococó e neoclássico: o

do lado do Evangelho, tem como invocação o

Senhor da Cana Verde – oriundo da igreja da

antiga Praça da Vila, onde tinha a designação

de Senhor Ecce Homo –; no altar do lado da

Epístola venera-se Nossa Senhora da

Conceição, uma imagem feita no Porto por F.

A. Costa, conforme pode ler-se numa

inscrição.

A tela que se encontra na boca do camarim e nos esconde a tribuna foi executada em 1993 por Fernando Rosário, de

Esposende e inaugurada a 17 de dezembro de 1995. Trata-se de uma pintura a óleo, onde se reproduziu a temática

tradicional presente em bandeiras e estandartes de irmandades da Misericórdia: no registo superior, Nossa Senhora

com o seu manto azul que a todos protege, sobretudo os representantes dos poderes espiritual e temporal; no registo

inferior são retratadas figuras como o papa João Paulo II, o arcebispo de Braga D. Eurico Dias Nogueira, o padre

Virgílio Lopes, o mítico impulsionador Frei Contreiras, que enquanto confessor de D. Leonor tê-la-á convencido a

instituir a confraria em lisboa… D. Leonor e D. Manuel I tiveram igualmente o seu lugar na pintura.

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Os púlpitos, com a sua base granítica curvilínea e umas breves notas vegetalistas que a decoram, sobressaem pela talha branca-dourada que se estende às sanefas, de onde pendem os cortinados. (Até meados do século XX, o púlpito funcionou como palco privilegiado da pregação, meio fundamental de comunicação arrebatada com os fiéis). No seu prolongamento abre-se uma janela até à cornija, podendo observar-se uma outra sanefa, formando um conjunto harmonioso que contribui para a decoração interior do templo. Estilisticamente observa-se um compromisso entre o rococó e o neoclássico, solução que se repete em quase toda a talha da igreja.

Na pronunciada sanefa da porta de acesso à sacristia, pode ver-se uma iconografia de elevado simbolismo: à Cruz da Paixão encostaram-se dois braços que se cruzam na zona axial, um braço de Cristo e outro franciscano, dando origem à organização de oito triângulos. No plano superior, a tarja que se fixou na moldura da janela recebeu a seguinte inscrição: O REVERENDÍSSIMO PADRE PROVINCIAL FREI FRANCISCO DO PORTO SARMENTO MANDOU FAZER. No lado oposto, destaca-se o cordeiro místico, na sanefa de talha fixada no arco da capela de Santo António. Enquanto na base da janela semi-entaipada, que se vê no plano superior, uma epigrafia em latim faz referência ao labor da obra franciscana.

Localizada no transepto, lado do Evangelho, a capela de Santo António (que

servia também para o Santíssimo Sacramento), revela o carinho e a devoção

que a Santa Casa de Barcelos dedicou e dedica a este santo português,

considerado um importante Doutor da Igreja.

O arco-cruzeiro, em granito, que, para além da função estrutural estabelece a separação entre a nave-salão (onde os leigos têm acesso) e a capela-mor – espaço por excelência das celebrações litúrgicas –, foi enriquecido com um arco de talha branca-dourada, uma obra datável de meados do século XVIII, subsequente à ampliação da capela-mor. Mais uma vez, é notória uma solução de compromisso entre o estilo barroco/rococó, que entrara em desuso, e o retorno ao classicismo, então na moda. No remate pode observar-se um majestoso escudo com a coroa real, numa clara afirmação do poder absoluto e/ou despótico do monarca, presença por outro lado justificada pela unidade histórica entre os poderes régio e eclesiástico.

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As notas musicais que do órgão ecoam sintonizam com o luzimento das demais obras de arte que embelezam a igreja: a talha branca e dourada, as imagens esculpidas e pintadas, os tocheiros de talha policromada, a paramentaria, os instrumentos da Paixão de Cristo, as bandeiras e estandartes… que nos revelam uma parte do vasto acervo museológico que bem merece conservação e ser dado a conhecer aos visitantes. Nesse sentido, a Irmandade da SCMB, através da sua atual mesa administrativa liderada pelo Provedor Dr. António Pedras, está a desenvolver esforços no sentido de preservar, recuperar e divulgar o seu vasto património histórico-cultural, artístico e religioso, abrindo cada vez mais as suas portas aos cidadãos.

O velho órgão ibérico – mandado construir em 1818 pelos padres franciscanos –, que se arruinou e desmembrou em várias peças, foi objeto de estudo e restauro, pelo empenho do falecido Provedor Eng.º Mário de Azevedo e pela mão do organeiro barcelense Manuel Fonseca, contribuindo para abrilhantar as solenidades e eventos culturais que demandam música e arte sacra.

Na parede da capela-mor, lado do Evangelho, pode contemplar-se a Conversão de S. Paulo, uma pintura a óleo realizada para a igreja maneirista da Misericórdia e que foi transferida para esta igreja em 1837. (Note-se que aquela igreja, cuja construção foi iniciada em janeiro de 1593, serve hoje de salão nobre da Câmara Municipal, a mesma entidade que em meados do século XIX a arruinou mas que recentemente ordenou o seu restauro). Quanto ao quadro alusivo à Ceia com os discípulos, que se encontra no lado oposto, surge-nos documentado no inventário de 1847, estando então localizado no corpo da igreja, lado da Epístola. (Nesta data, o painel da Conversão de S. Paulo estava pendurado no lado do Evangelho do referido corpo da igreja).

Cristo Crucificado, esculpido e pintado em 2003-2005 por Domingos da Silva Miranda e Fernando Rosário, tem marcado a sua presença na Procissão das Endoenças que se realiza na Quinta-Feira Santa, uma tradição secular que se havia perdido e que foi reativada a 28 de março de 2002.