miscigenando o cÍrculo do poder: aÇÕes afirmativas

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DOI 10.5380/rfdufpr.v61i2.43559 117 Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, vol. 61, n. 2, maio/ago. 2016, p. 117 – 148 MISCIGENANDO O CÍRCULO DO PODER: AÇÕES AFIRMATIVAS, DIVERSIDADE RACIAL E SOCIEDADE DEMOCRÁTICA MISCEGENATING THE CIRCLE OF POWER: AFFIRMATIVE ACTION, RACIAL DIVERSITY, AND DEMOCRATIC SOCIETY Adilson José Moreira * RESUMO Este artigo defende a constitucionalidade de cotas raciais em concursos públicos a partir da reconstrução de um argumento comumente utilizado por uma parcela significativa de seus opositores. Muitos deles alegam que ações afirmativas são inerentemente problemáticas por causa da miscigenação do povo brasileiro, um claro empecilho à identificação de seus beneficiários. Segundo esses atores sociais, nosso amalgamento racial e cultural permitiu a construção de uma moralidade pública responsável pela formação de relações harmônicas entre negros e brancos. Embora este trabalho reconheça a relevância do pluralismo racial na formação da identidade nacional brasileira, ele afirma que cotas raciais em concursos públicos são cabíveis porque o grupo que controla quase todas as instituições públicas e privadas brasileiras é racialmente homogêneo. Tal fato é produto de processos sistemáticos de exclusão social que afetam negativamente brasileiros cujos fenótipos denotam origem africana ou ameríndia, a mesma razão pela qual oportunidades profissionais estão concentradas nas mãos dos membros do grupo racial dominante. Com o intuito de contribuir para a transformação dessa situação, este ensaio faz uso do conceito substantivo de diversidade e de certos princípios da Administração Pública para advogar a miscigenação dos círculos do poder por meio de ações afirmativas. Pensamos que isso deve ser visto como um requisito essencial para o avanço da democratização da sociedade brasileira. PALAVRAS-CHAVE Ações afirmativas. Miscigenação. Diversidade. Igualdade. ABSTRACT This article defends the constitutionality of racial quotas in selection processes for public employment by reverting the premises of an argument commonly deployed against this policy. Many of its opponents claim that affirmative action is an inherently problematic measure because of the difficulty in identifying its beneficiaries in a racially mixed society such as ours. They also argue that racial and cultural amalgamation allowed the construction of a public morality that favors harmonious race relations among blacks and whites. This paper recognizes the relevance of racial mixing in the formation of the Brazilian national identity, but it supports racially conscious initiatives because those who control the majority of private and public institutions belong to the same racial group. This racial stratification is the product of various processes of social exclusion that affect negatively those of African and Amerindian descent, the same mechanisms that * Doutor em Direito pela Universidade de Harvard (2013), Doutor em Direito Constitucional, Mestre em Direito e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo, SP, Brasil). E-mail: [email protected] Agradeço os comentários e sugestões de Damião Alves Azevedo, autor cujo excelente trabalho sobre o tema inspirou este artigo [N. do A.].

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DOI 10.5380/rfdufpr.v61i2.43559

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Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, vol. 61, n. 2, maio/ago. 2016, p. 117 – 148

MISCIGENANDO O CÍRCULO DO PODER: AÇÕES AFIRMATIVAS, DIVERSIDADE

RACIAL E SOCIEDADE DEMOCRÁTICA

MISCEGENATING THE CIRCLE OF POWER: AFFIRMATIVE ACTION, RACIAL

DIVERSITY, AND DEMOCRATIC SOCIETY

Adilson José Moreira*1

RESUMO

Este artigo defende a constitucionalidade de cotas raciais em concursos públicos a partir da

reconstrução de um argumento comumente utilizado por uma parcela significativa de seus

opositores. Muitos deles alegam que ações afirmativas são inerentemente problemáticas por causa

da miscigenação do povo brasileiro, um claro empecilho à identificação de seus beneficiários.

Segundo esses atores sociais, nosso amalgamento racial e cultural permitiu a construção de uma

moralidade pública responsável pela formação de relações harmônicas entre negros e brancos.

Embora este trabalho reconheça a relevância do pluralismo racial na formação da identidade

nacional brasileira, ele afirma que cotas raciais em concursos públicos são cabíveis porque o grupo

que controla quase todas as instituições públicas e privadas brasileiras é racialmente homogêneo.

Tal fato é produto de processos sistemáticos de exclusão social que afetam negativamente

brasileiros cujos fenótipos denotam origem africana ou ameríndia, a mesma razão pela qual

oportunidades profissionais estão concentradas nas mãos dos membros do grupo racial dominante.

Com o intuito de contribuir para a transformação dessa situação, este ensaio faz uso do conceito

substantivo de diversidade e de certos princípios da Administração Pública para advogar a

miscigenação dos círculos do poder por meio de ações afirmativas. Pensamos que isso deve ser

visto como um requisito essencial para o avanço da democratização da sociedade brasileira.

PALAVRAS-CHAVE

Ações afirmativas. Miscigenação. Diversidade. Igualdade.

ABSTRACT

This article defends the constitutionality of racial quotas in selection processes for public

employment by reverting the premises of an argument commonly deployed against this policy.

Many of its opponents claim that affirmative action is an inherently problematic measure because of

the difficulty in identifying its beneficiaries in a racially mixed society such as ours. They also

argue that racial and cultural amalgamation allowed the construction of a public morality that favors

harmonious race relations among blacks and whites. This paper recognizes the relevance of racial

mixing in the formation of the Brazilian national identity, but it supports racially conscious

initiatives because those who control the majority of private and public institutions belong to the

same racial group. This racial stratification is the product of various processes of social exclusion

that affect negatively those of African and Amerindian descent, the same mechanisms that

* Doutor em Direito pela Universidade de Harvard (2013), Doutor em Direito Constitucional, Mestre em Direito e

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor na Faculdade de Direito da Universidade

Presbiteriana Mackenzie (São Paulo, SP, Brasil). E-mail: [email protected]

Agradeço os comentários e sugestões de Damião Alves Azevedo, autor cujo excelente trabalho sobre o tema inspirou

este artigo [N. do A.].

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concentrate social opportunities among the members of the dominant racial group. This paper

utilizes a substantive notion of diversity and certain principles of public administration in order to

advocate racial miscegenation of the circles of power, a necessary step toward the democratization

of the Brazilian society.

KEYWORDS

Affirmative action. Miscegenation. Diversity. Equality.

INTRODUÇÃO

A adoção de cotas raciais para o acesso a instituições de ensino superior e a cargos

públicos tem sido intensamente debatida no nosso País (PENTEADO, 2012; MINHOTO, 2013;

MOREIRA, 2013, p. 61-94). Essa discussão demonstra a necessidade de uma reflexão sobre o papel

do direito na construção de uma sociedade democrática e racialmente inclusiva no Brasil. De um

lado temos uma narrativa desenvolvida por acadêmicos e juristas baseada na ideia de que essa

medida representa uma grave ameaça à ordem social porque promove a racialização do povo

brasileiro. Parte-se do pressuposto de que existe entre nós uma moralidade pública fundamentada no

tratamento igualitário entre grupos raciais; o reconhecimento da multiplicidade das nossas origens

possibilita a formação de relações raciais cordiais entre nós. Nossa realidade, afirmam eles, seria

muito distinta da história social de outras nações nas quais a discriminação contra negros era

sancionada pelo direito (MAGGIE; FRY, 2004; GOSS, 2008). Segundo os defensores dessa

perspectiva, programas de ações afirmativas, além de violarem o princípio da igualdade, geram a

fragmentação social porque disseminam a percepção de que as pessoas podem ser classificadas

segundo critérios raciais. Eles acreditam que a racialização dos indivíduos produz uma série de

problemas em uma nação na qual a raça não faz parte do repertório de construção da identidade

pessoal. A miscigenação característica da população brasileira estabeleceria referências culturais

universais a partir das quais identidades individuais e coletivas são criadas. Isso significaria que o

povo brasileiro entende a si mesmo como essencialmente miscigenado; políticas racialistas

serviriam apenas para alterar nossa identidade coletiva e nossos padrões de interação social. Os que

defendem essa posição acreditam que o sistema jurídico possui um papel bastante específico em

uma democracia: ele deve manter os arranjos sociais que representam o consenso cultural sobre os

princípios a partir dos quais relações raciais devem ser pautadas (KAUFMANN, 2006; DUARTE,

2007).

Podemos identificar outra formulação do papel do direito no debate sobre políticas

públicas que procuram promover a integração de minorias raciais. Ela está centrada na premissa de

que a igualdade constitucional tem uma função transformadora, perspectiva que reconhece a relação

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entre o respeito pelo pluralismo e a defesa da justiça social. Essa visão da igualdade tem como

ponto de partida a afirmação de que o sistema jurídico pode ser um mecanismo de emancipação

social, entendimento que oferece parâmetros para a justificação de ações afirmativas nas

instituições de ensino superior e no serviço público. Os que advogam esses argumentos afirmam

que a raça é uma construção social que tem consequências concretas na vida das pessoas: ela

legitima diversas formas de exclusão que atuam conjuntamente para promover a estratificação

racial, pois serve como parâmetro para a ação arbitrária de agentes públicos e privados1. As

consequências do racismo presentes nas relações sociais se estendem por várias gerações – são fruto

de práticas institucionais que afetam a vida de minorias raciais ao longo do tempo2. Argumenta-se

que a miscigenação não elimina práticas discriminatórias, nem a concentração do acesso a

oportunidades nas mãos daqueles classificados como brancos. Ao contrário dos defensores das teses

descritas no parágrafo anterior, os que defendem a constitucionalidade de ações afirmativas

sustentam que o racismo não é um problema comportamental decorrente de uma percepção

incorreta da realidade, mas um sistema de dominação. Por ser um fator que oprime uma geração

após outra, esses autores interpretam o princípio da igualdade dentro de uma linha temporal: ele

procura reparar as consequências de processos históricos de exclusão e também pretende

estabelecer parâmetros para a construção de uma sociedade igualitária (BARBOSA, 2005; IKAWA,

2006; ROCHA, 1996).

Nossos tribunais afirmaram em diversas decisões que cotas raciais para o ingresso nas

instituições de ensino superior são constitucionais, ocasiões nas quais eles formularam argumentos

que também legitimam a implementação dessas medidas em concursos públicos. Entretanto, ainda

se questiona a compatibilidade dessa última modalidade de ações afirmativas com o mandamento

constitucional da igualdade. Algumas decisões judiciais recentes declararam a ilegalidade de

políticas afirmativas em concursos públicos porque a elegibilidade para esses certames pressupõe 1 Essa posição tem sido defendida pelos tribunais que reconheceram a constitucionalidade dos programas de ações

afirmativas. Ver, por exemplo, BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito

Fundamental nº 186. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Relator: Ricardo Lewandovsky. 26 abr. 2012 (afirmando que a

raça deve ser compreendida a partir das consequências concretas da mesma na vida das pessoas). BRASIL. Tribunal de

Justiça do Rio de Janeiro. Ação Cível Nº 2005.001.27.062. Órgão Julgador: 11ª Câmara Cível. Relator: Cláudio de

Mello Tavares. 2005 (classificando a raça como um mecanismo legítimo para a implementação de políticas distributivas

porque ela é utilizada para manter minorias raciais em desvantagem material). BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio

Grande do Sul. Ação Cível Nº 70013034152. Órgão Julgador: 3ª Câmara Cível. Relator: Paulo de Tarso Vieira

Sanseverino. 25 maio 2006 (argumentando que o princípio da isonomia deve ser analisado em sua perspectiva material,

pois a aplicação pura e simples da igualdade formal permitiria a perpetuação de heranças discriminatórias históricas,

que vêm desde a abolição da escravatura). 2 A compreensão da dimensão temporal da discriminação racial teve um papel importante na argumentação do Supremo

Tribunal Federal na decisão que reconheceu a constitucionalidade dos programas de ações afirmativas. O relator

reconheceu que as desigualdades entre negros e brancos se reproduzem ao longo do tempo, o que mantém esse grupo

em uma situação de permanente desvantagem social. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. op. cit. Órgão Julgador:

Tribunal Pleno. Relator: Ricardo Lewandovsky. 26 abril 2012, p. 53-65.

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que todos os candidatos possuem a mesma formação acadêmica; quaisquer iniciativas de caráter

reparatório devem ser feitas no acesso a oportunidades educacionais e não no processo de seleção

de candidatos para o funcionalismo3. Essa posição fornece argumentos para o questionamento da

constitucionalidade e também para a mobilização política contra a legislação que estabelece cotas

para negros em concursos públicos nas instituições federais, o que muitos interpretam como um

passo decisivo no processo de integração de minorias raciais no mercado de trabalho4.

Este artigo desenvolve um dos argumentos presentes na decisão do Supremo Tribunal

Federal que reconheceu a constitucionalidade de medidas de inclusão racial: a construção de uma

sociedade igualitária requer a adoção de iniciativas que garantam a representação adequada de

diferentes grupos raciais nas diversas instituições públicas. Defenderemos essa posição a partir do

conceito de diversidade, uma diretriz de natureza jurídica e política que teve origem na

jurisprudência norte-americana sobre ações afirmativas. A ideia de que instituições públicas e

privadas devem espelhar o pluralismo que existe no corpo social pode ser vista como uma de suas

premissas principais; esse preceito afirma então a importância da participação dos diferentes grupos

nos processos decisórios, fator legitimador das práticas democráticas. Seguindo esse pressuposto,

afirmamos que a adoção de cotas raciais em concursos públicos contribui de forma significativa

para a formação de uma Administração Pública democrática, um dos propósitos centrais do atual

Estado constitucional.

Embora defenda cotas raciais nos concursos públicos, este artigo não pretende descartar a

representação do Brasil como uma nação miscigenada, ideia que muitos acreditam ser mera

manipulação ideológica. No lugar de uma visão que articula a noção de igualdade formal e

homogeneidade racial para atacar ações afirmativas, adotamos o conceito substantivo de

diversidade para a defesa da miscigenação dos círculos do poder. O povo brasileiro pode ser

miscigenado, mas o grupo social que controla praticamente todas as nossas instituições públicas e

privadas é racialmente homogêneo, uma realidade incompatível com uma sociedade genuinamente

democrática. Assim, o conceito de miscigenação não descreve uma realidade histórica e social, mas

3 Ver, por exemplo, BRASIL. Tribunal do Trabalho da 13ª Região. Oitava Vara do Trabalho. Processo nº 0131622-

23.2015.5.13.0025. Juiz Substituto: Adriano Mesquita Dantas. 18 jan. 2016 (afirmando que cotas em concursos

públicos violam o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, além de tocar em pontos não tratados pela ADPF

186). Alguns tribunais estaduais expressaram opiniões semelhantes em decisões anteriores à aprovação de legislação

federal que previu cotas raciais no serviço público. Ver, por exemplo, BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

Mandado de Segurança nº 1.0079.05.183566-2/001. Relator: Albergaria Costa, 9 nov. 2006 (alegando que ações

afirmativas violam o princípio da igualdade, mandamento constitucional que exige o tratamento igualitário entre todos

perante a lei). BRASIL. Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Agravo de Instrumento nº 047089000146. Órgão

Julgador: Quarta Câmara Cível. Relator: Carlos Roberto Mignone. 17 fev. 2009 (Argumentando que todos os

candidatos a concurso público para procurador municipal estão na mesma condição, o que mostra a desnecessidade de

ações afirmativas em concursos públicos). 4 BRASIL. Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014.

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um objetivo a ser buscado para a promoção da justiça social. Cotas para homens e mulheres de

ascendência africana e ameríndia não apenas garantem o acesso desses indivíduos a milhares de

postos de trabalho, mas também permitem que as decisões da Administração Pública possam ser

tomadas a partir da perspectiva de todos os que serão afetados por elas, uma condição para a sua

democratização. Sustentaremos o argumento de que essas iniciativas são compatíveis com os

princípios da moralidade pública, da supremacia do interesse público e da eficiência administrativa.

Portanto, ações afirmativas encontram fundamento não apenas nos ideais da igualdade material e

justiça social, mas também nos parâmetros que regulam a atuação da Administração Pública.

Em resumo, este artigo procura demonstrar a validade de uma tese apresentada na decisão

do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a constitucionalidade dos programas de ações

afirmativas para minorias raciais: a de que o princípio da diversidade apresenta parâmetros

importantes para a construção de uma sociedade racialmente integrada porque permite a realização

de propósitos centrais da nossa ordem jurídica5. Acreditamos que o argumento utilizado pelo

ministro Ricardo Lewandowski é muito persuasivo porque afirma desenvolvimentos teóricos

recentes no campo do direito, mas também pensamos que ele precisa ser mais bem delineado e

fundamentado. Com esse intuito em vista, demonstraremos ao longo deste texto a plena

consonância entre a noção de diversidade e certos preceitos centrais da nossa ordem constitucional,

notoriamente com o interesse na construção de uma democracia material e pluralista no Brasil6. A

demonstração da validade do argumento defendido pelo acórdão acima referido será desenvolvida

em três partes. A primeira examina os seguintes pontos: os motivos que levaram instituições

públicas e privadas a adotar ações afirmativas nos Estados Unidos, o nascimento do conceito de

diversidade dentro da jurisprudência norte-americana e as críticas feitas por progressistas e

conservadores a esse preceito. A segunda analisa os argumentos utilizados por certos autores para

justificar a diversidade como um elemento importante para o funcionamento de instituições

privadas. Em seguida, exploraremos a convergência entre a dimensão substantiva de diversidade e

certos princípios da Administração Pública.

5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 186. Órgão Julgador:

Tribunal Pleno. Relator: Ricardo Lewandowski. 26 abr. 2012 (“Verifica-se, assim, que a Suprema Corte dos Estados

Unidos, ao assegurar certa discricionariedade às universidades no tocante à seleção de seu corpo discente, o fez tendo

em conta a necessidade de que a busca da heterogeneidade esteja pautada pela correção de distorções histórico-sociais

que atuam como obstáculo à concretização dos valores constitucionais da igualdade substancial.”) 6 O artigo 3º da Constituição Federal diz: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I-

construir uma sociedade livre, justa e solidária; II- garantir o desenvolvimento nacional; III- erradicar a pobreza e a

marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de

origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

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1 EMERGÊNCIA E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE DIVERSIDADE

1.1 RETÓRICA RACIAL E AÇÕES AFIRMATIVAS NOS ESTADOS UNIDOS

Inúmeras instituições públicas e privadas norte-americanas adotaram programas de ações

afirmativas nos últimos quarenta anos, providência empregada para que minorias raciais pudessem

ter acesso a oportunidades profissionais e acadêmicas, posições até então monopolizadas por

pessoas brancas. Isso se tornou necessário em função da política oficial de segregação racial

presente no país, regime que começou a ser gradualmente eliminado a partir da segunda metade do

século passado, embora ainda exista como uma prática social informal (MASSEY; DANTON,

1998). Esse conjunto de procedimentos discriminatórios permitia a exclusão sistemática de minorias

raciais, o que era justificado pela compreensão de que o princípio da igualdade não impunha a

necessidade de convivência entre negros e brancos. Segundo o entendimento firmado pela Suprema

Corte, aquele mandamento constitucional garantia a igualdade de direitos civis, mas não implicava

a igualdade social dos negros, o que era entendido como a possibilidade de circular nos mesmos

ambientes frequentados por pessoas brancas. Essa interpretação do princípio da isonomia serviu

para justificar a separação espacial e a completa marginalização de afrodescendentes naquela nação;

a sociedade norte-americana instituiu um dos mais brutais sistemas de segregação racial da história

da humanidade (BLACKMON, 2009).

Essa situação começou a mudar em função de uma série de conjunturas sociais e históricas.

Vários cidadãos comuns passaram a questionar a legitimidade da segregação nos tribunais,

instituições que reconheceram gradualmente a validade dessas demandas. O movimento dos direitos

civis possibilitou o desmantelamento das bases jurídicas do sistema de discriminação racial, o que

foi alcançado por meio de uma advocacia estratégica (ARTHUR, 2007, p. 89-157; BELL, 2008, p.

19-73; MACK, 2014). Como observa Derrick Bell, essa mudança pode ser explicada em função da

convergência entre a luta dos negros e os interesses das elites políticas daquele país. Ela pode ser

parcialmente atribuída às repercussões negativas do regime de segregação racial no plano

internacional em um momento no qual os Estados Unidos procuravam se afirmar na posição de

líder das sociedades democráticas (BELL, 1979). A manutenção de uma ditadura racial era um

obstáculo ao alcance desse objetivo, principalmente em um momento no qual muitos países

africanos estavam engajados na luta pela emancipação política. Tendo em vista esses diferentes

fatores, o sistema de apartheid que vigorava naquela nação começou a ser paulatinamente

desconstruído. A criação de ações afirmativas em certos setores profissionais foi uma das primeiras

estratégias adotadas por instituições públicas para eliminar as consequências da estratificação racial

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(ANDERSON, 2005). Essas medidas foram expandidas após o fim do sistema de segregação racial

legalmente sancionado que ali vigorava; havia um consenso de que elas eram necessárias para

combater tanto as consequências de séculos de exclusão como também as diferentes formas de

racismo institucional ainda presentes. Mas esses programas também começaram a ser adotados

voluntariamente, ações que objetivavam aumentar o número de minorias em certos quadros

profissionais, medida decorrente da consciência da responsabilidade social das instituições na luta

contra a opressão racial (ROOSEVELT JR, 2006, p. 47-116).

Mas o consenso político sobre a necessidade dessas medidas políticas começou a se

esvaziar quando certos setores conservadores formularam uma nova ideologia racial em reação às

vitórias do movimento pelos direitos civis dos negros norte-americanos. Alguns acadêmicos

elaboraram uma leitura diferente das relações raciais naquela sociedade, o que fundamentaria a

formulação de uma versão conservadora do ideal de neutralidade racial. Esses autores propuseram

uma interpretação da sociedade norte-americana baseada na sua representação como uma nação

formada por uma série de grupos étnicos que possuem uma história bastante semelhante. Eles foram

discriminados em um primeiro momento, mas começaram a ser assimilados na medida em que

internalizaram os valores que estruturam a moralidade pública daquele país (STEINBERG, 1989).

Esse modelo de compreensão das relações raciais substituiu o conceito de raça pela noção de etnia,

um desenvolvimento teórico que permitiu a desconstrução da existência da representação da

população branca como um grupo racial majoritário e detentor de benefícios sociais fechados a

minorias. A história norte-americana deixa então de ser pensada como um processo incessante de

oposição entre negros e brancos. O que observamos é a presença de conflitos entre grupos étnicos

em certos momentos históricos, conflitos que são superados em função da força do caráter

assimilacionista daquela sociedade. Esse retrato dos Estados Unidos começou a ser constantemente

utilizado por atores sociais contrários a políticas racialmente conscientes. Muitos deles passaram a

rejeitar a caracterização da história dos negros como algo significativamente diferente da

experiência de grupos étnicos europeus porque todos eles supostamente enfrentaram uma história de

exclusão. Dentro dessa lógica, não se pode falar de uma maioria branca que controla quase todas as

instituições de poder; os negros também não são um grupo com uma história distinta de todas as

etnias existentes naquele país (LOPEZ, 2006, p. 1.001-1.028).

De forma semelhante ao discurso brasileiro da democracia racial, essa narrativa forneceu o

substrato ideológico necessário para a mobilização contra ações afirmativas nos Estados Unidos.

Essas iniciativas passaram a ser caracterizadas como uma forma de discriminação reversa porque

davam tratamento preferencial a negros, o que seria, segundo seus opositores, uma violação do

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princípio da igualdade. O ideal de neutralidade racial defendido durante a luta pelos direitos civis

tornou-se um meio de condenação de todas as formas de classificação racial, inclusive aquelas que

beneficiam negros (BROWN et al., 2005; CHO, 2009; POWELL, 1997). Segundo os defensores

dessa posição, a eliminação das leis discriminatórias criou uma realidade social na qual as pessoas

de diferentes grupos raciais têm as mesmas oportunidades. O reconhecimento da necessidade de

tratamento igualitário entre negros e brancos teria causado uma mudança considerável nas atitudes

individuais na esfera pública e na esfera privada. Para esses acadêmicos e políticos, a conjunção

desses fatores possibilitou a superação da consciência de identidade racial; isso significa que a

discriminação acontecida no passado não afeta mais as oportunidades de minorias no momento

presente. Seguindo o mesmo tipo de raciocínio de acadêmicos e políticos brasileiros, eles

sistematicamente negam quaisquer correlações entre status racial e desvantagem material

(KAUFMANN, 2005; POWELL, 2009).

Essa narrativa racial forneceu as bases para uma campanha de contestação da necessidade

de ações afirmativas nos tribunais. Sendo instituições compostas por agentes que reproduzem

discursos dominantes no meio cultural, eles também incorporaram o discurso da neutralidade racial

que, além de ser defendido como princípio de política pública, também adquiriu o status de

parâmetro de interpretação da igualdade. Geralmente chamada de colorblindness, essa narrativa

propõe que a justiça racial demanda o tratamento simétrico entre negros e brancos em todas as

situações. Ao rejeitar decisões anteriores que entendiam a igualdade a partir de um ponto de vista

emancipatório, muitos tribunais norte-americanos passaram a argumentar que todas as formas de

classificações raciais são potencialmente perigosas, inclusive aquelas que beneficiam minorias

raciais. Para os que defendem essa perspectiva, a igualdade tem um caráter fundamentalmente

procedimental; ela é um princípio que analisa a racionalidade das distinções entre indivíduos.

Baseados nesse raciocínio, certos juristas influentes equipararam programas de ações afirmativas a

políticas racialmente discriminatórias, o mesmo argumento utilizado por muitos críticos dessas

iniciativas governamentais no Brasil (SCALIA, 1979; ABRAHAM, 1985; DUARTE, 2005;

AZEVEDO, 2004).

1.2 O CONCEITO DE DIVERSIDADE NA JURISPRUDÊNCIA NORTE-AMERICANA

A discussão sobre a constitucionalidade dos programas de ações afirmativas nos Estados

Unidos sempre esteve centrada na questão da correlação entre o uso de classificações raciais e o

alcance de algum interesse estatal legítimo. Aqueles que defendem essas políticas públicas

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apresentam uma série de argumentos para justificá-las, tais como a contribuição dessas medidas ao

combate à discriminação racial, a defesa de um ideal de justiça identificado com a noção de

igualdade de resultados, a formação de profissionais motivados a atender grupos minoritários e a

criação de modelos que possam inspirar positivamente membros de minorias raciais (DWORKIN,

1976, p. 223-230). Essas teses foram rejeitadas pelos tribunais na medida em que a opinião pública

abraçou o ideal de colorblindness formulado no meio acadêmico e político. Essa doutrina alcançou

status constitucional em uma decisão que considerou a constitucionalidade de cotas raciais em uma

instituição de ensino superior. A Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia decidiu

reservar um determinado número de vagas para minorias raciais para tornar seu corpo discente mais

diversificado. Um candidato branco questionou a validade desse programa porque ele supostamente

teria sido classificado entre as cem vagas disponíveis caso a instituição não tivesse implementado

cotas raciais.

Nenhuma das justificativas para a implementação de ações afirmativas acima referidas

conseguiu sobreviver ao teste de escrutínio utilizado para a avaliação da constitucionalidade desses

programas. O ministro Powell, autor do voto que representou a opinião majoritária, argumentou que

todas as classificações raciais, independentemente dos seus objetivos, devem ser submetidas à mais

rígida forma de escrutínio judicial. Segundo ele, classificações raciais são sempre perigosas porque

desestabilizam a credibilidade das instituições democráticas. Tendo em vista esse raciocínio, ele

rejeitou o argumento segundo o qual ações afirmativas seriam legítimas porque procuram remediar

as consequências da discriminação racial. Essa tese não teria legitimidade porque não há como

estabelecer uma relação direta entre a situação presente dos membros de uma minoria racial e os

possíveis eventos históricos que teriam sido responsáveis por ela. O objetivo de remediar a

discriminação racial só seria compatível com o texto constitucional quando tanto os agentes estatais

responsáveis por um ato dessa natureza quanto suas vítimas pudessem ser identificadas, asseverou

Powell. Além disso, afirmou o ministro, essa tese poderia ser utilizada por todos os grupos étnicos

presentes na sociedade norte-americana, porque todos eles tiveram a mesma história social.

Seguindo uma das premissas da ideologia da colorblindness, Powell afirmou não existir uma

oposição histórica entre uma maioria branca e uma minoria negra, mas sim conflitos entre grupos

étnicos que lutam pelas mesmas oportunidades sociais7.

Esse retrato da sociedade norte-americana como um mosaico de grupos étnicos que têm a

mesma história social serviu para justificar uma interpretação procedimental da igualdade. Mais

7 Ver ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte dos Estados Unidos. Bakke v. Regents of the University of California, 438

U.S. 265 (1978).

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especificamente, ele corroborou um recurso retórico baseado no argumento segundo o qual negros e

brancos encontram-se na mesma situação, motivo da exigência de tratamento simétrico entre os

membros desses grupos em todas as situações. Seguindo essa direção, Powell rejeitou o argumento

segundo o qual ações afirmativas são necessárias para aumentar a representatividade de minorias

em certas posições sociais, o que permitiria a criação de role models para minorias. Isso seria ilegal

porque parte-se do pressuposto de que as pessoas só se identificam com membros do seu próprio

grupo étnico. Ele asseverou que essa tese viola o princípio da igualdade porque classificações

raciais não podem ser um fim em si mesmas: estabelecer diferenciações entre indivíduos que estão

igualmente situados não é nada mais do que pura discriminação racial, o que contraria os princípios

republicanos que sustentam a sociedade norte-americana. Ele alegou também que cotas raciais

impedem a competição entre indivíduos que estão em igualdade de condições. Isso não apenas

caracteriza uma forma de discriminação contra pessoas brancas, mas também contra negros, porque

eles são obrigados a suportar estigmas sociais em nome de todo o grupo racial. Assim, esse

argumento legitimou o argumento da inocência branca, tese até hoje utilizada por opositores dessas

medidas (HUNT II, 2005; DWORKIN, 1976).

Mas nem todos os argumentos favoráveis à implementação de ações afirmativas foram

descartados. Powell proclamou que a criação de um ambiente acadêmico diversificado justifica a

utilização de classificações raciais. Ele reconheceu a noção de diversidade como um princípio

suficientemente forte para o alcance de um interesse estatal importante. Para ele, o conceito de

diversidade tem relevância central para a formação de um ambiente acadêmico capaz de

proporcionar o enriquecimento da experiência educacional. Aqueles que estão nessa situação

poderão interagir e discutir diversos temas com pessoas que possuem experiências sociais distintas,

o que preparará melhor esses futuros profissionais para atuar em uma sociedade pluralista. Isso

significa que estudantes serão expostos a perspectivas que muito possivelmente estariam ausentes

em uma sala de aula racialmente homogênea. Entretanto, a criação de um corpo discente

diversificado não pode ser feita pela utilização de cotas raciais, porque elas violam a igualdade ao

impedir que todas as pessoas possam disputar as mesmas vagas. As universidades estão autorizadas

a considerar a raça no processo de seleção dos candidatos, mas desde que outros fatores tenham o

mesmo peso – perspectiva que gerou grande crítica por parte de acadêmicos (FARELL, 2009;

GUINIER, 2000).

A Suprema Corte dos Estados Unidos voltou a caracterizar a diversidade como um

interesse estatal que justifica o uso de classificações raciais no julgamento sobre a

constitucionalidade de ações afirmativas na Faculdade de Direito da Universidade de Michigan.

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Aquele tribunal novamente reconheceu a relevância da diversidade em uma sociedade composta por

uma infinidade de grupos raciais. Mais do que uma prática que procura expor alunos universitários

a uma multiplicidade de experiências culturais, essa segunda formulação de diversidade tem um

caráter mais substantivo. O voto principal a considerou como um interesse estatal que facilita a

democratização do acesso ao poder: ações afirmativas são compatíveis com o princípio da

igualdade porque podem contribuir para a efetivação do direito de participação e representação no

processo decisório. O conceito de diversidade serve então para garantir um funcionamento mais

democrático das instituições sociais, ao permitir que os interesses de diversos grupos que compõem

uma nação sejam considerados nos vários processos de deliberação8.

De acordo com a decisão judicial sob análise, a diversidade presente no ambiente

acadêmico serve como ponto de partida para a existência de instituições mais democráticas. Ela se

torna ainda mais legítima quando permite que a composição das instituições públicas e privadas

reflita a pluralidade existente na realidade social. Para a ministra que escreveu o voto majoritário, a

criação de uma liderança que expressa a diversidade presente na sociedade aumenta a credibilidade

dos órgãos públicos e privados, pois afasta a percepção de que o jogo democrático representa

apenas os interesses de grupos específicos. Isso significa que as instituições devem procurar

selecionar candidatos de diversos estratos sociais, e não apenas aqueles que estão entre os grupos

mais economicamente ou socialmente privilegiados9. A formulação do conceito de diversidade

exposto nessa decisão apresenta parâmetros mais robustos para a defesa de programas de ações

afirmativas baseados na raça dos indivíduos. Ao defender a criação de uma liderança representativa,

ela reconhece a esfera pública como um campo de luta pela dominação social. Segundo a Suprema

Corte dos Estados Unidos, a participação de membros de todos os grupos étnicos e raciais na vida

pública deve ser vista como um interesse estatal legítimo. A diversidade expressa então um valor

constitucional porque permite a cooperação social entre grupos raciais na criação de uma sociedade

atenta às particularidades da experiência desses segmentos. Desse modo, a consideração da raça se

justifica não apenas em função da diferença de opiniões, mas principalmente porque pode promover

a integração de classes de pessoas que têm sido historicamente excluídas de aspectos essenciais da

vida pública (ESTLUND, 2005, p. 15-20).

8 ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte dos Estados Unidos. Grutter v. Bollinger, 539 U.S. 306 (2003). 9 ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte dos Estados Unidos. Grutter v. Bollinger, 539 U.S. 306 (2003) (“Torna-se então

necessário abrir o caminho para a liderança de indivíduos talentosos e qualificados de todos os grupos raciais e étnicos

para que se possa criar um grupo de líderes que tenha legitimidade aos olhos dos cidadãos. Todos os membros de nossa

sociedade precisam ter confiança na abertura e na integridade das instituições educacionais que proporcionam

treinamento profissional.”)

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1.3 CRÍTICA ACADÊMICA DO CONCEITO DE DIVERSIDADE

A noção de diversidade tem sido igualmente atacada por detratores e por defensores de

ações afirmativas nos Estados Unidos. Conservadores alegam que ela reproduz a noção equivocada

de que grupos raciais possuem opiniões diferentes por causa da cor da pele. Segundo eles, essa

premissa não apenas reforça concepções essencialistas de identidade racial, mas também

contribuem para a formação de estereótipos baseados na percepção de que opiniões de membros de

grupos minoritários são sempre racializadas. Além disso, eles classificam ações afirmativas como

medidas que fomentam a estigmatização racial por não serem meritocráticas; muitos alegam ainda

que o interesse na diversidade serve apenas para mascarar políticas reparatórias. Esses programas

seriam discriminatórios contra pessoas brancas, indivíduos que não têm culpa por atos arbitrários

cometidos por seus antepassados. Para os críticos de ações afirmativas, o conceito de diversidade

não pode ser adequadamente sustentado porque não se compara a outros interesses estatais tidos

como suficientemente persuasivos como, por exemplo, a segurança nacional. Muitos não apenas

criticam o conceito de diversidade como fundamento de ações afirmativas, mas também condenam

quaisquer tipos de tratamento preferencial para negros. Eles defendem o ideal de colorblindness

como um preceito central de justiça racial; argumenta-se que a superação da discriminação racial

requer a eliminação imediata de toda e qualquer classificação racial, pois elas impedem a

construção de um senso de solidariedade (KENNEDY, 2013, p. 147-165).

Progressistas atacam o conceito de diversidade porque não o consideram como uma

justificação adequada para ações afirmativas. Segundo o entendimento desses acadêmicos, elas

devem ser vistas como iniciativas que procuram atacar o racismo estrutural que existe na sociedade

norte-americana. Mais do que isso, eles defendem uma compreensão substantiva de igualdade,

princípio que justifica medidas reparatórias e distributivas. Os defensores dessa visão de igualdade

acreditam que a diversidade seria apenas um artifício ideológico que ignora contextos sociais e

históricos; a sua lógica apenas considera os benefícios futuros que pode causar. Ignora-se assim a

necessidade de correção das consequências atuais de práticas discriminatórias ainda presentes na

sociedade que precisam ser analisadas de forma ampla (BELL, 2003). Essa visão impede o

reconhecimento das várias formas por meio das quais raça e classe colocam minorias em uma

situação de desvantagem estrutural, eliminando a necessidade de profundas mudanças no

funcionamento das instituições sociais. A diversidade serve então apenas para desvirtuar o sentido

substantivo da noção de igualdade, princípio que justifica medidas baseadas na necessidade de

correção dos efeitos da estratificação racial (KENNEDY, 2013, p. 94-103).

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2 DIVERSIDADE COMO PRINCÍPIO DE POLÍTICA PÚBLICA E COMO TÉCNICA

GERENCIAL

Embora seja atacada por diferentes setores, podemos afirmar que a diversidade é hoje uma

política institucional amplamente adotada por instituições do setor público e do setor privado nos

Estados Unidos. Muitos a concebem como uma forma positiva de integração social de grupos

minoritários, segmentos cuja mobilização transformou a vida política daquele país. O conceito de

minoria adquiriu relevância sociológica e política em função dos movimentos de libertação

ocorridos principalmente a partir da segunda metade do século passado em vários lugares do

mundo. Muitos grupos oprimidos começaram a questionar a legitimidade de práticas

discriminatórias, início de uma luta contra sistemas de opressão que tinham dimensões jurídicas e

políticas. Alguns deles conseguiram alcançar a igualdade formal em relação aos membros dos

grupos dominantes, embora mecanismos de exclusão ainda os mantenham em uma condição

subalterna. Podemos dizer que a luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos é o exemplo

paradigmático desse processo que resultaria mais tarde na afirmação da diversidade racial como um

valor seguido por diferentes instituições preocupadas com a responsabilidade social (SKRENTNY,

2002).

Essa luta política também trouxe à tona a discussão sobre o pluralismo como um valor

social que tem repercussões também no setor privado. O conceito de diversidade tem como base a

premissa de que o pluralismo é uma referência relevante para o desenho de políticas institucionais.

Traços identitários construídos ou atribuídos a certos segmentos sociais determinam a experiência

social de seus membros, sendo que essas características são frequentemente utilizadas para designar

o lugar que eles podem ocupar – mecanismo responsável pela reprodução de relações assimétricas

de poder. Assim, a noção de diversidade como um valor institucional se refere a coletividades cujos

membros possuem uma experiência social específica em função dos processos de estratificação. Ela

não pretende sugerir ou afirmar identidades essenciais, mas reconhece que experiências culturais

distintas produzem percepções sociais diferentes (BELL, 2007, p.4).

Mais do que uma iniciativa que objetiva remediar práticas discriminatórias, a diversidade

também designa uma estratégia que pode trazer ganhos consideráveis para as instituições que a

empregam. Essas vantagens estão relacionadas com o aumento da competitividade das empresas no

mercado, com a maior qualidade das respostas às demandas feitas a essas instituições e com o dever

moral de promoção da inclusão social. Um dos elementos mais importantes para a mudança da

lógica das ações afirmativas teve início com a percepção de que a melhoria do desempenho das

empresas privadas depende da capacidade dessas organizações em responder demandas decorrentes

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do pluralismo no plano nacional e internacional. Parte-se do pressuposto de que a diversidade pode

facilitar a implementação de estratégias e aumentar a lucratividade dos negócios. Isso porque a

globalização das economias exige a contratação de pessoas que possam compreender as

particularidades culturais e políticas de diferentes nichos de mercados em vários lugares do mundo.

Uma força de trabalho racialmente e culturalmente homogênea seria menos capaz de tratar questões

que podem surgir das demandas geradas pelo pluralismo cultural. Os diferentes grupos sociais têm

interesses e exigências distintos e os que não possuem competência cultural para com eles negociar

enfrentam grandes dificuldades. A diversidade adiciona um valor considerável às empresas que a

empregam por causa do aumento de sua competitividade no mercado (COX; BLAKE, 1991, p. 45-

55).

Aqueles autores que escrevem sobre o tema afirmam que a diversidade aumenta a

competitividade porque melhora a eficiência gerencial das empresas. Ela representa uma vantagem

importante, pois permite que as instituições respondam aos interesses de diversos grupos da forma

mais adequada possível. Acredita-se que um corpo de funcionários diversificado melhora o

desempenho da instituição ao incrementar a capacidade de análise e solução de problemas. Esses

estudos demonstram que as perspectivas trazidas por pessoas de diferentes origens sociais e com

experiências diversas fazem com que a capacidade institucional de solução de problemas seja

superior à daquelas empresas cujos corpos de funcionários são uniformes. Empresas que criam um

corpo de funcionários diversificado criam meios para que a troca de novas ideias aumente, o que é

algo particularmente desejável em um mercado no qual grupos minoritários possuem poder de

compra cada vez maior (HAWKINGS, 2012, p. 88-90).

Além das vantagens decorrentes da eficiência gerencial dos negócios, a diversidade

também tem sido adotada por instituições privadas com base na noção de responsabilidade social. A

sua promoção começou com a percepção de que se tratava de um dever moral, principalmente em

uma sociedade marcada por um passado de opressão racial. Segundo esse raciocínio, a prática da

diversidade cria oportunidades que permitem a contribuição das empresas para a formação de uma

sociedade mais justa. Essas empresas devem considerar o impacto de suas atividades no bem-estar

da comunidade, e a contribuição que elas podem fazer para a melhoria das condições de vida de

grupos minoritários é um excelente indício. A incorporação de membros de vários segmentos

sociais possibilita o acesso a oportunidades profissionais, além de fazer com que eles participem da

tomada de decisões que têm o potencial de afetar toda a sociedade. A governança corporativa se

aproxima da ideia de que as decisões devem ser tomadas por pessoas que representam a variedade

de grupos e de interesses que existem na realidade. Portanto, a justificação da prática da diversidade

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não se restringe ao caráter reparatório das ações afirmativas, mas também se justifica pelo seu papel

inclusivo (HAWKINGS, 2012, p. 88-90).

3 AÇÕES AFIRMATIVAS, INCLUSÃO RACIAL E SOCIEDADE DEMOCRÁTICA

3.1 DISCRIMINAÇÃO RACIAL E AÇÕES AFIRMATIVAS

Uma vez analisada a noção de diversidade como um princípio jurídico e como uma política

institucional, devemos agora verificar se ela pode ser aplicada à nossa realidade social. A resposta a

essa pergunta deve começar com um exame da situação de minorias raciais no nosso País. A

população de origem africana e ameríndia sempre esteve submetida a um processo histórico de

exclusão sistemática: esses dois grupos sociais passaram por períodos de escravização em diferentes

momentos da história, foram impedidos de exercer direitos mesmo após a instauração de uma

constituição de caráter liberal, eram classificados como raças inferiores por políticos que queriam

criar uma população branca, além de terem sido preteridos em benefício de imigrantes brancos e

asiáticos em função de políticas imigratórias. As instituições estatais sempre estiveram diretamente

implicadas nesse processo: a raça sempre tem sido um parâmetro de regulação do acesso ao

mercado de trabalho durante toda a história do Brasil. A situação atual não é diferente: inúmeros

estudos sociológicos e históricos demonstram que afrodescendentes sofrem as consequências de

processos discriminatórios que os mantêm em uma situação de perene marginalização.

Negros e negras são vítimas preferenciais da violência policial, permanecem menos tempo

na escola, ganham menos da metade do salário de homens brancos, são vítimas constantes de injúria

racial, permanecem invisíveis nos meios de comunicação de massa e estão estruturalmente

excluídos de cargos de poder nas instituições públicas e nas instituições privadas. Essa realidade

decorre em grande parte da permanência de estereótipos culturais que legitimam práticas

excludentes em muitas esferas da vida social, processo mascarado pela influência da noção de

neutralidade racial no âmbito cultural e político. Mas, nas três últimas décadas, a rearticulação dos

movimentos sociais após a restauração da democracia, o afastamento parcial do discurso oficial da

democracia racial e a emergência de uma nova cultura constitucional possibilitaram a formulação

de uma agenda política voltada para a questão da justiça racial. Várias instituições estatais adotaram

programas de ações afirmativas que procuram facilitar o acesso de brasileiros de origem africana e

ameríndia às instituições de ensino superior e a cargos públicos (TELLES, 2005; HANCHARD,

1994, p. 31-76; HASENBALG, 2005, p. 252-275).

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A importância do debate sobre ações afirmativas requer uma definição precisa dessa

política pública, bem como de seus objetivos e de sua justificação constitucional. Esse termo

designa um conjunto de medidas utilizadas por instituições públicas e privadas que visam

incrementar o acesso de grupos minoritários a oportunidades acadêmicas e profissionais. Elas

pretendem suplantar os problemas gerados pela existência de diferentes formas de discriminação

que impedem a inclusão social desses grupos, processos cuja operação nem sempre pode ser

eliminada por políticas públicas universais. Na verdade, eles restringem ou impedem o gozo de

direitos destinados a todos, o que subverte o ideal democrático segundo o qual todos os indivíduos

devem ser tratados com a mesma consideração e respeito. As ações afirmativas são políticas sociais

destinadas à criação de uma representação significativa de membros de grupos minoritários nas

posições de poder existentes dentro da sociedade. Como uma prática institucional, elas adotam

procedimentos que utilizam os mesmos critérios responsáveis pela exclusão social para garantir a

inclusão de minorias. Agentes públicos e privados conferem um tratamento preferencial a membros

de grupos que estão em uma situação de desvantagem durante um determinado período de tempo.

Em relação aos seus objetivos, as ações afirmativas procuram construir um futuro

igualitário, ao concorrer para a realização da justiça social, o que pode acontecer pela garantia da

igualdade de resultados. No lugar de uma concepção de igualdade baseada na noção de tratamento

simétrico, essas iniciativas incorporam uma noção de igualdade que reconheça a diferença estrutural

entre grupos. Os agentes públicos e privados que implementam esses programas não discriminam

certos indivíduos para garantir privilégios a outros; eles atuam para que grupos minoritários tenham

acesso a oportunidades que geralmente não estão acessíveis a eles. Ao contrário das várias formas

de discriminação negativa, as ações afirmativas devem ser classificadas como uma discriminação

positiva, pois não há a intenção de subjugar e sim de promover a inclusão. Mais uma vez, ações

afirmativas partem então da noção de igualdade de resultados, um princípio que justifica iniciativas

que têm por objetivo garantir que membros de diversos grupos tenham o mesmo nível de sucesso

social (BOLYAN, 2002, p. 117-123; CROSBY, 1991, p. 13-18).

Como demonstrado anteriormente, essa forma de política pública tem sido justificada de

duas formas. Ações afirmativas são defendidas a partir do princípio de justiça corretiva, pois

procuram remediar as consequências de injustiças históricas cujas consequências se perpetuam ao

longo do tempo. Elas então procuram anular os efeitos atuais dos mecanismos discriminatórios que

criaram formas de estratificação racial que ainda repercutem no presente. Ações afirmativas

também encontram fundamentação na justiça redistributiva, pois esse preceito procura alocar

oportunidades sociais tendo em vista a situação real dos indivíduos no meio social. De certa forma,

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essas duas dimensões da justiça estão relacionadas, porque levam em consideração as diferenças

estruturais existentes entre grupos sociais (ROSENFELD, 1985, p. 860-865).

Mas essas medidas de inclusão racial também têm sido caracterizadas como uma política

de caráter integracionista. O objetivo de se construir uma sociedade na qual pessoas de diferentes

grupos sociais possam estar adequadamente representadas nas posições de poder aparece aqui como

um ideal político e moral a ser alcançado. Mais do que reparar os erros do passado histórico,

pretende-se criar mecanismos para que as instituições públicas espelhem o pluralismo social, o que

contribui para a legitimidade do processo democrático (ESTLUND, 2005, p. 2-40). Entende-se por

integração a possibilidade de membros dos diversos segmentos poderem participar de forma

equitativa nas principais atividades sociais e políticas. O alcance desse ideal exige a utilização de

medidas racialmente conscientes, para que a realidade multirracial da população possa ser refletida

nas diversas instituições que existem em uma dada sociedade. Não se procura apenas garantir uma

mera representação, mas sim fazer com que os diferentes grupos possam efetivamente participar do

processo decisório, condição para a realização de uma democracia participativa. Assim, os que

justificam ações afirmativas a partir dessa perspectiva acreditam que a equidade em uma sociedade

multirracial só pode ser alcançada por meio da presença de todos os grupos que formam a sociedade

nas diversas organizações públicas e privadas (KENNEDY, 2013, p. 106-108).

3.2 AÇÕES AFIRMATIVAS E IGUALDADE CONSTITUCIONAL

Programas de ações afirmativas foram introduzidos no Brasil nos últimos quinze anos; eles

procuram facilitar o acesso de minorias raciais a universidades e cargos públicos. Segundo seus

defensores, o nosso texto constitucional fornece amplo fundamento para esses programas, pois

trata-se de documento que estabelece a erradicação das desigualdades como um objetivo central da

nossa ordem constitucional. O sistema jurídico brasileiro consagra dois sentidos do princípio da

igualdade: a formal e a material.

O primeiro determina o tratamento igualitário a todos os membros da comunidade política,

mandamento que reconhece não apenas o mesmo status jurídico, mas também comanda o igual

respeito e consideração a todos. Ele está baseado no universalismo das normas jurídicas, o que

afirma a necessidade de que elas sejam dirigidas a todas as pessoas.

O segundo, por outro lado, refere-se à isonomia proporcional, pois devem ser reconhecidas

as diferenças estruturais que existem entre os indivíduos, de forma que uma paridade mínima entre

eles possa ser alcançada. Em função disso, as instituições estatais devem adotar políticas públicas

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inclusivas, o que deve ser visto como uma obrigação estatal. Dessa forma, o conceito de igualdade

material está diretamente relacionado com o propósito de criação de uma democracia substantiva no

Brasil, condição para a existência de uma sociedade igualitária. Mais uma vez, não se pode esquecer

que o texto constitucional estabelece a erradicação da marginalização como um propósito central da

nossa ordem jurídica; isso significa que a eliminação das disparidades sociais é um interesse público

primordial. As políticas de ação afirmativa têm um papel importante nesse processo, uma vez que

elas garantem acesso a oportunidades acadêmicas e também fomentam a integração social de

minorias raciais no mercado de trabalho (SILVA, 2011, p. 211-221).

Essas formulações do princípio da igualdade adquirem maior sentido quando as analisamos

sob a luz da filosofia política subjacente à nossa Constituição Federal. Observamos que a

construção de uma sociedade igualitária é um dos objetivos centrais da ordem jurídica. Esse

compromisso com uma concepção substantiva da cidadania justifica a adoção de políticas públicas

que têm a função de alcançar a inclusão social. Esse propósito político e jurídico faz parte do

programa constitucional de transformação que requer a articulação entre diferentes categorias de

direitos, além da responsabilidade estatal com a promoção da justiça. O caráter emancipatório da

igualdade tem a finalidade de eliminar os processos de estratificação decorrentes das correlações

entre status cultural e status material. Acredita-se que o caminho para uma sociedade justa requer o

combate dos mecanismos culturais que levam à marginalização econômica, pois esses dois

elementos reforçam a estratificação social. O caráter transformador do nosso texto constitucional

implica uma opção política pela construção de uma sociedade racialmente justa, o que significa um

distanciamento de uma compreensão do Estado como um ator politicamente neutro.

Consequentemente, as instituições estatais devem sempre procurar integrar grupos sociais, uma

exigência do nosso sistema jurídico (KLARE, 1998; BARROSO, 2009, p. 51-91).

Os argumentos expostos acima não são meras figuras de retórica jurídica. Recentemente,

os tribunais brasileiros começaram a enfatizar esse caráter transformador da isonomia

constitucional. Mais do que fundamentar o tratamento simétrico e também políticas redistributivas,

esse mandamento constitucional adquire um novo caráter na nossa jurisprudência. Para que ele

possa atuar dessa maneira, as instituições estatais devem tratar a isonomia como um princípio que

articula demandas de redistribuição e demandas de reconhecimento da igual dignidade das pessoas.

Partindo da premissa de que existe uma relação direta entre status cultural e desvantagem

material, esses tribunais afirmam a necessidade de mudar práticas sociais que reproduzem ao

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mesmo tempo estereótipos negativos e exclusão material. O compromisso constitucional com a

justiça social e com o pluralismo justifica iniciativas destinadas a promover a emancipação10.

3.3 DIVERSIDADE RACIAL COMO INSTRUMENTO DE CONSTRUÇÃO DA IGUALDADE

Como observa Marçal Justen Filho, a atividade da Administração Pública está diretamente

relacionada com a realização dos direitos fundamentais, o que acontece quando as instituições

estatais asseguram as condições para a realização de necessidades da coletividade. A garantia dos

direitos fundamentais depende então das direções que as instituições públicas e privadas seguem na

perseguição dos objetivos que estão firmados no texto constitucional, como, por exemplo, o alcance

da justiça social.

Os princípios da Administração Pública surgem então como uma série de diretrizes que

devem ser obedecidas para a promoção da dignidade humana por meio dos direitos fundamentais

(JUSTEN FILHO, 2014, p. 91-94). Essa perspectiva reflete a influência do neoconstitucionalismo

na reflexão sobre as funções da Administração Pública. Sendo uma doutrina que atribui ao Estado o

papel de agente de transformação social, ela estabelece novas diretrizes para a ação estatal; entre

elas está o alcance da justiça social por meio da integração de grupos minoritários, uma vez que a

erradicação da marginalização é um objetivo central da nossa ordem jurídica. Nesse sentido,

podemos classificar a moralidade como um princípio informador da Administração Pública,

preceito que incorpora necessariamente a noção de que a satisfação dos direitos fundamentais

constitui uma dimensão objetiva desse conceito. Mais do que um pressuposto de validade dos atos

da administração, a moralidade pública está ligada aos preceitos constitucionais que estabelecem os

objetivos da nossa ordem jurídica. Ela sofre então a influência da redefinição do Estado como uma

instância que deve fomentar a emancipação. A moralidade pública serve como um critério de

racionalidade dos atos dos agentes administrativos e também como um conjunto de valores

jurídicos e políticos constitucionalmente estabelecidos (MEIRELLES, 2014, p. 91-95; FUNGHI,

2011; ARRUDA NETO, 2010).

10 Ver, por exemplo, BRASIL. Tribunal Regional da Quarta Região. Ação Cível nº 2000.71.00.009347-0/RS. Relator:

João Batista Pinto Silveira. DJU, 10 ago. 2005 (estendendo direitos previdenciários a casais homossexuais porque a

Constituição Federal tem um compromisso com a cidadania do povo brasileiro, o que é atestado pela consagração do

princípio da dignidade humana como princípio constitucional fundamental). BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio

Grande do Sul. Ação Cível nº 70016239949. Órgão Julgador: 7ª Câmara Cível. Relator: Luiz Felipe Brasil Santos. 20

dez. 2006 (negando provimento à apelação que procurava anular decisão que reconheceu uma união homossexual como

união estável sob o argumento de que a Constituição Federal deve reconhecer novas perspectivas culturais e relações

sociais, salvaguardando assim os direitos de todos os cidadãos em busca de tutela jurisdicional).

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A Administração Pública também é regida pela primazia do interesse público, o que pode

ser genericamente pensado como a defesa da prioridade do bem-estar da comunidade em relação

aos interesses privados. Embora o sistema jurídico deva proteger as liberdades individuais, elas não

podem ter prevalência em todas as situações. Pelo contrário, a vida em sociedade requer a análise da

possibilidade do estabelecimento de parâmetros para a consideração da preponderância da proteção

de interesses dos diferentes setores da sociedade nas diversas situações. A democracia é um regime

político que implica o exercício coletivo do poder por meio de normas jurídicas, sendo que elas

determinam as formas como as instituições estatais devem atuar para atender os objetivos da

comunidade. O Estado representa uma instância que, além de ter a atuação pautada por normas

jurídicas, também precisa trabalhar para alcançar os propósitos estabelecidos pelos cidadãos por

meio de seus representantes. Tais intenções são vistas como o conjunto de ações que procuram

atender as necessidades humanas nas suas variadas expressões. Elas adquirem conteúdo específico

por meio dos princípios e dos direitos fundamentais. Assim, a atuação da Administração Pública só

pode ser legítima quando há plena consonância com os interesses dos cidadãos, expressos nas

normas jurídicas. Os conceitos de justiça e solidariedade social determinam que a ação estatal deve

alcançar a garantia das melhores condições de vida para os membros da comunidade política como

um todo (CARVALHO, 2008, p. 61-63).

O conceito de interesse público implica a defesa do bem comum e também a existência de

um referencial ético a partir do qual agentes estatais devem guiar suas ações. Tendo em vista os

elementos normativos que estruturam nosso sistema constitucional, tais como a promoção da

inclusão social, podemos adotar o entendimento de que políticas públicas destinadas a afirmar a

cidadania de minorias estão em consonância com esse preceito. Não podemos perder de vista a

diferenciação entre a dimensão subjetiva e a objetiva dos direitos fundamentais: enquanto a

primeira afirma a universalidade dos direitos, a segunda descreve os valores adotados pela

comunidade política que funcionam como princípios axiológicos do nosso sistema jurídico. A

promoção dessa categoria de direitos expressa um comprometimento constitucional ao impor ao

Estado os objetivos que são elementos centrais da ordem jurídica. A prática da diversidade

possibilita a afirmação do aspecto objetivo dos direitos fundamentais, ao promover, como interesse

público de primordial importância, a integração de minorias raciais. Garantir acesso a postos de

trabalho a grupos sociais marginalizados possibilita então a melhoria de condições de vida de um

grupo que compõe metade da população brasileira (SARMENTO, 2003, p. 252-270).

Porém, a defesa da inclusão racial como um interesse público deve ser analisada tendo em

vista os possíveis benefícios que esse processo poderá trazer para a sociedade brasileira como um

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todo. Podemos identificar uma correlação clara entre o conceito de diversidade e o princípio da

eficácia, uma exigência de que os órgãos públicos ofereçam seus serviços com a maior diligência

possível. Mais do que um parâmetro que observa a legalidade dos atos públicos, a eficácia

determina que as instituições estatais devem sempre ter como meta o atendimento, da forma mais

proveitosa, das necessidades da comunidade. O dever de otimização dos recursos públicos é parte

importante desse princípio, um requisito pautado na noção de que as instituições estatais devem

objetivar a eficiência econômica. Mas os doutrinadores observam que o princípio da eficácia não

implica apenas uma exigência de racionalidade financeira. Ele também envolve a eleição dos meios

mais adequados para a efetivação dos interesses da comunidade. Assim, a eficácia administrativa

deve ser interpretada também à luz dos direitos fundamentais e dos objetivos do nosso sistema

jurídico, notoriamente a afirmação da justiça social (JUSTEN FILHO, 2012, p. 182). Se por um

lado ele guarda relações próximas com o princípio da economicidade, exigindo então o uso racional

dos recursos públicos, ele também se aproxima do princípio da moralidade, ao ter como propósito a

realização dos interesses da coletividade da forma mais adequada. A otimização dos resultados e a

maximização das finalidades funcionam então como critérios que podem racionalizar a atividade

estatal, dando-lhe direções para a concretização da vontade pública. Em resumo, o princípio da

eficácia congrega interesses de racionalização da atividade estatal e também o interesse em prestar o

máximo de garantias aos administrados (CARVALHO, 2012, p. 185-188).

Creio que podemos identificar a partir dessas considerações situações nas quais a adoção

de cotas raciais em concursos públicos poderia melhorar as condições de vida de vários grupos, por

meio da realização conjunta dos princípios da moralidade pública, do interesse público e da

eficácia.

Aqueles que classificam cotas raciais no serviço público como inconstitucionais

argumentam que a meritocracia deve ser o parâmetro a ser seguido para a seleção de funcionários.

Embora essa afirmação seja plausível, ela não condiz com a complexidade das funções estatais em

uma realidade caracterizada pelo pluralismo racial. A meritocracia não pode ser pensada como

condição única para a realização de interesses públicos, porque seu alcance depende de outros

fatores que estão além da consideração desse preceito. Aquelas pessoas que vão servir aos

interesses da comunidade precisam ter qualidades que, muitas vezes, estão além do conhecimento

acadêmico. O nosso País é composto por uma diversidade imensa de comunidades que formulam

demandas distintas, e as pessoas que são selecionadas para cargos públicos devem estar preparadas

para servi-las. Assim, a possibilidade de oferecimento de serviço público mais eficaz não se resume

ao conhecimento técnico: ela também pode decorrer da experiência pessoal dos candidatos para um

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determinado cargo, experiência que tem origem na vivência desses indivíduos como membros de

grupos minoritários. Essa afirmação baseia-se nos estudos já mencionados, que demonstram os

benefícios trazidos por um corpo diversificado de funcionários: quanto maior o pluralismo de

pessoas, maior a capacidade de solução de problemas surgidos em sociedades complexas.

Pensemos então em alguns exemplos concretos. Muitas pessoas classificariam um

concurso para a seleção de profissionais de saúde como um processo que deveria recrutar apenas

aquelas pessoas que têm o maior conhecimento das ciências médicas. Isso demonstraria que elas

são as mais qualificadas para exercer os serviços em questão. Não há dúvidas de que as instituições

estatais devem procurar profissionais competentes, mas os que defendem essa posição ignoram as

diferentes demandas que surgem em função do multirracialismo presente no Brasil. A meritocracia

não possibilita a seleção das pessoas mais competentes para realizar funções estatais em todas as

situações. Um aluno ou aluna de ascendência ameríndia estará mais capacitado para desempenhar

essa função nas comunidades indígenas porque ele ou ela possivelmente fala a mesma língua dos

seus futuros pacientes, porque ele ou ela também tem conhecimento do significado cultural da

doença dentro da cultura de sua nação, além de poder se relacionar de forma mais empática com os

membros daquela comunidade. O mesmo raciocínio é válido para aqueles profissionais que

atuariam dentro de uma comunidade quilombola. Um médico branco criado dentro de um centro

urbano também poderia exercer suas funções adequadamente, mas provavelmente não de forma tão

satisfatória como um membro daquela comunidade que se beneficia de cotas em um concurso

público. Assim, a existência de cotas nas universidades e nos concursos públicos permite a

formação de um quadro de funcionários mais apto a compreender e responder à pluralidade de

demandas feitas aos profissionais do sistema público de saúde. Cotas raciais para minorias raciais

nas universidades e em concursos públicos de saúde também podem ser uma das soluções para os

problemas de discriminação institucional sofridos por negros e pardos no sistema público de saúde,

motivo de condenação do Brasil por órgãos internacionais de direitos humanos. Embora a qualidade

desses serviços seja um problema que afeta todas as pessoas, a raça dos indivíduos surge como um

obstáculo adicional ao acesso a tratamento médico, mesmo quando todas as outras variáveis são

eliminadas. Em função disso, a maior presença de profissionais negros nesse setor deve ser vista

como uma finalidade importante da Administração Pública, porque tem o potencial de melhorar a

qualidade do serviço médico fornecido a esse segmento populacional (KALCKMAN et al., 2007).

Podemos indicar ainda outra situação na qual a diversificação racial do corpo de

funcionários públicos pode melhorar a qualidade dos serviços prestados à população. Sabemos que

afrodescendentes são vítimas constantes de discriminação racial na nossa sociedade, mas poucas

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pessoas foram condenadas por crimes de racismo até o presente momento da nossa história. A

ideologia da democracia racial ainda influencia promotores e juízes, cargos ocupados

majoritariamente por pessoas brancas de classe média alta – fundamentalmente, por homens

brancos de classe média alta11. O racismo permanece um crime sem consequências sociais no nosso

País porque muitos promotores e promotoras, juízes e juízas desconsideram o caráter

discriminatório dessa prática, algo decorrente da ideia de que ele não expressa ódio ou desprezo

racial. Como pessoas brancas de classe média alta não têm a experiência social do racismo, elas não

sabem como esse problema afeta a vida de afrodescendentes. Além disso, a desconsideração do

racismo cumpre um papel ideológico, porque permite a manutenção de uma imagem positiva do

próprio grupo perante a sociedade (RACUSEN, 2004; VAN DIJK, 1994). Temos fortes razões para

acreditar que a presença de um número maior de homens negros e de mulheres negras no Ministério

Público e nos tribunais poderia contribuir para a diminuição do racismo no País, por meio de uma

ação mais eficaz do Judiciário. A diversidade racial pode contribuir para a solução desse problema

ao incorporar pessoas que têm a vivência social do racismo e que não estão comprometidas com

interesses de grupo. Embora todos os indivíduos comprometidos com a democracia saibam que o

racismo afronta a dignidade humana, eles não têm conhecimento de como ele opera no cotidiano da

população negra e ameríndia. Dessa forma, a diversificação racial do sistema judiciário permite que

essa instituição pública possa apresentar soluções mais adequadas à demanda social de tratamento

igualitário entre grupos sociais, o que obviamente pode ser considerado como um interesse público

de primeira ordem.

Afirmamos que a diversidade justifica a adoção de cotas raciais para o acesso a cargos

públicos, mas também devemos defendê-la como um critério para a promoção às posições mais

elevadas das instituições estatais. Isso se deve ao fato de que as instâncias mais altas de deliberação

dentro desses órgãos também precisam espelhar o pluralismo racial existente na nossa sociedade.

Quanto maior a participação de pessoas de diversos grupos raciais nos processos decisórios, maior

será a legitimidade da ação estatal. Por exemplo, as estatísticas de prisões e mortes de negros por

policiais brancos apontam de forma bastante clara a extrema importância da diversificação dos mais

altos cargos de comando nas polícias militares no Brasil. A vasta maioria desses assassinatos

decorre de ação policial arbitrária, sendo que os agentes raramente são investigados

(SINHORETTO; SILVESTRE; SCHILTTER, 2014). Isso só pode ser explicado por uma cultura

institucional baseada em estereótipos raciais negativos, cultura formada nas mais altas esferas de

11 Ver Censo do Poder Judiciário, disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/dpj/CensoJudiciario.final.pdf>.

Acesso em: 8 dez. 2015.

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poder das corporações militares – grupo predominantemente branco. A maior presença de homens e

mulheres negros nos órgãos responsáveis pela condução da ação policial pode ser um ponto de

partida para a transformação de uma realidade que se torna mais brutal a cada dia.

A defesa de cotas raciais como uma política pública que pode fomentar a realização do

princípio do interesse público e o da eficácia oferece subsídios para refutarmos alguns argumentos

defendidos por aqueles que condenam essas iniciativas. Muitos alegam que elas são

discriminatórias porque impedem a concorrência igualitária entre negros e brancos; o privilégio

dado a pessoas negras excluem brancos de forma injusta. Devemos ter em mente o fato de que o

conceito de discriminação implica a intenção de impor um tratamento desvantajoso a alguém;

pretende-se assim excluir certos grupos de indivíduos com o objetivo de mantê-los em uma situação

de subordinação. A própria definição desse conceito já demonstra a impossibilidade de afirmarmos

que cotas raciais são práticas discriminatórias contra brancos: as instituições governamentais não

pretendem estigmatizar ou subordinar esse segmento populacional. Pelo contrário, cotas raciais

podem claramente realizar os interesses de diversos setores da sociedade, ao favorecer a prestação

de serviços mais eficazes a vários grupos sociais. A inclusão desses grupos beneficia toda a

sociedade porque concretiza um dos objetivos da sociedade brasileira: a eliminação da

marginalização social, um dos componentes da moralidade que guia a ação dos órgãos públicos.

Embora elas reduzam as possibilidades de candidatos brancos terem acesso a cargos públicos, ações

afirmativas não podem ser consideradas como armas de subordinação racial. A vida em uma

sociedade implica a adoção de critérios para o acesso a oportunidades que são escassas por

natureza; ações afirmativas são apenas um desses critérios, sendo que eles podem ser legalmente e

moralmente justificados (KENNEDY, 2013, p. 109-111; FRIEDMAN, 2011, p. 153-155).

Certos autores argumentam que cotas raciais contrariam o princípio da meritocracia, um

preceito que deve orientar a distribuição de oportunidades nas sociedades liberais. Lani Guinier

apresenta uma resposta particularmente engenhosa para essa objeção a ações afirmativas. Ela

propõe a substituição da base individualista do conceito de meritocracia por uma orientação social.

Sob essa perspectiva, a meritocracia transforma-se em um princípio democrático porque é preciso

atribuir oportunidades àqueles que podem alcançar os objetivos sociais de forma mais eficaz. Essa

concepção democrática da meritocracia, assevera a autora, deve guiar a atuação das instituições

responsáveis pela preparação de profissionais; notoriamente, instituições de ensino superior. Da

mesma forma, outras instituições públicas e privadas também devem atuar na mesma direção,

porque a diversidade potencializa a inclusão de grupos minoritários direta e indiretamente, além de

permitir melhor qualidade dos serviços públicos (GUINIER, 2015, p. 26-45). Essa linha de

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raciocínio vai ao encontro do que já afirmamos: a democratização do acesso a oportunidades

profissionais permite que as instituições estatais estejam mais capacitadas para prover serviços de

forma mais adequada para a sociedade. A observação de uma meritocracia estrita contribui para a

manutenção daqueles que se encontram em uma situação de vantagem estrutural em função dos

processos de exclusão social que têm como objetivo manter oportunidades nas mãos de grupos

majoritários.

A alegação de que ações afirmativas promovem conflito racial é um das teses preferidas

dos seus opositores. Eles também alegam que elas contribuirão para a disseminação de estereótipos

negativos que afetarão os próprios beneficiários, além de diminuir a qualidade das universidades.

Bem, a adoção de cotas raciais nas instituições brasileiras de ensino superior tem surtido efeitos

extremamente positivos; podemos dizer que essa é uma política pública muito bem sucedida. Ao

contrário do que seus opositores alegam, as cotas raciais trouxeram melhorias reais para os seus

beneficiários e também para as instituições que as adotaram. Os relatórios divulgados por muitas

universidades demonstram que o rendimento médio dos alunos cotistas está, em muitos casos,

acima da média do aproveitamento escolar dos alunos que entram nas universidades pelo processo

tradicional. Esses dados podem ser interpretados como forte evidência de que cotistas não se sentem

inferiorizados por supostos estereótipos; eles provavelmente teriam um desempenho inferior aos

dos outros alunos se esse fosse o caso. Além disso, os que se beneficiam de cotas raciais as

classificam como uma forma de justiça social, e não como um privilégio racial. Afinal, eles vivem

em uma sociedade na qual oportunidades profissionais e acadêmicas estão maciçamente

concentradas nas mãos de pessoas brancas, o que os leva a ver o ideal de meritocracia com imenso

ceticismo12.

O argumento de que cotas raciais prejudicam negros porque lançam dúvidas sobre a

competência profissional e acadêmica dos membros desse grupo está baseado no pressuposto de

que esses estereótipos nunca existiram. Esta afirmação não poderia estar mais longe da verdade.

Estereótipos negativos sobre a capacidade intelectual de pessoas de ascendência ameríndia e

africana sempre foram utilizados para impedir o acesso igualitário desses indivíduos a

oportunidades profissionais durante toda a história brasileira. Os que utilizam esse argumento

desconhecem o fato de que desigualdades materiais e desigualdades de status são duas dimensões

de todos os processos de estratificação social; negros e indígenas não estão em uma situação de

12 O desempenho acadêmico de alunos cotistas tem sido objeto de vários estudos nos últimos anos. Ver, por exemplo,

VELLOSO, Jacques, Cotistas e não-cotistas: rendimento dos alunos da Universidade de Brasília. Cadernos de

Pesquisa, v. 39, n. 137, p. 621-644, 2009; MATTOS, W. R. Cotas para afrodescendentes na Universidade do Estado da

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pobreza apenas em função de disparidades de classe social. A situação de desvantagem material

desses grupos decorre da constante circulação de representações negativas sobre eles no plano

cultural, mecanismo que garante tratamento privilegiado a pessoas brancas, as quais compõem um

grupo representado sempre positivamente. Esse é o mesmo processo que garante tratamento

privilegiado de homens em relação a mulheres e também de heterossexuais em relação a

homossexuais. Quaisquer iniciativas destinadas a promover justiça corretiva encontrará resistência

por parte dos grupos que obtêm vantagens injustas em função da circulação de falsas generalizações

que legitimam práticas discriminatórias.

4 CONCLUSÃO

O nosso percurso demonstrou uma clara compatibilidade entre a dimensão substantiva da

diversidade e princípios que regem a nossa ordem jurídica. A sua prática tem importância

instrumental para a construção de uma sociedade igualitária, por promover a participação de

minorias raciais aos processos decisórios, um fator importante para a efetivação da democracia no

Brasil. Esse ideal dificilmente poderá ser alcançado em uma nação na qual o mesmo grupo racial

controla praticamente todas as instituições públicas e privadas. A diversidade fomenta a igualdade

de participação dentro da esfera pública ao possibilitar que minorias raciais atuem de forma mais

efetiva nas instituições que criam normas destinadas a regular toda a sociedade. Esse preceito enseja

a criação de políticas sociais que atendam as demandas dos diversos setores da nação brasileira,

pois medidas universais isoladas não são capazes de alcançar a inclusão. A luta pela justiça racial é

muitas vezes frustrada porque muitos agentes estatais são socializados a partir de uma cultura

pública que torna as desigualdades sociais invisíveis.

A análise da diversidade indica a grande relevância que a adoção de cotas raciais pode ter

para a realização tanto do princípio do interesse público quanto da eficiência. Ações afirmativas

possibilitam a consecução do primeiro porque a Administração Pública, ao incluir um número

maior de afrodescendentes e ameríndios, impulsiona a inclusão de membros de grupos severamente

discriminados no mercado de trabalho ao longo de toda a história do nosso País. Ações afirmativas

podem ser justificadas a partir da ideia de justiça reparativa, principalmente quando consideramos o

fato de que os órgãos governamentais estão legalmente obrigados a eliminar formas de

marginalização. O Estado brasileiro contribuiu de várias formas para a opressão racial do povo

negro e do povo indígena, motivo pelo qual ele está moral e juridicamente obrigado a criar

iniciativas que possam reverter os problemas por ele causados. Mas essa política pública também

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possibilita a criação de uma sociedade mais racialmente integrada, ao funcionar como um

mecanismo que permite maior participação de minorias raciais em cargos de prestígio e poder.

A influência do discurso da democracia racial no debate político sobre ações afirmativas

frequentemente obscurece os objetivos que essa política pública procura alcançar. Os seus

detratores argumentam que ela promove uma racialização da sociedade brasileira, o que

compromete uma suposta ética pública de tratamento igualitário entre grupos raciais. Esse

argumento esbarra no fato de que a miscigenação racial e cultural não é um processo antagônico ao

racismo, pois ele tem servido historicamente para escamotear tanto a discriminação racial quanto o

privilégio branco. Mas a miscigenação pode ser defendida como um objetivo a ser alcançado pela

sociedade brasileira e as cotas raciais são instrumentos importantes para o alcance dessa finalidade.

Sejam elas mecanismos reparatórios ou meios de promoção da integração racial, essas medidas

permitem a realização de ideais democráticos. Ações afirmativas criam as condições para que

grupos minoritários tenham acesso ao processo decisório, facilitando assim a participação deles nas

decisões que afetam todos os segmentos sociais. A miscigenação do círculo do poder é, portanto,

um passo necessário para o alcance da inclusão social de segmentos da população que ocupam uma

posição subalterna desde a fundação do nosso País.

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MISCIGENANDO O CÍRCULO DO PODER: AÇÕES AFIRMATIVAS, DIVERSIDADE RACIAL E SOCIEDADE DEMOCRÁTICA

148

Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, vol. 61, n. 2, maio/ago. 2016, p. 117 – 148

MISCEGENATING THE CIRCLE OF POWER: AFFIRMATIVE ACTION, RACIAL

DIVERSITY, AND DEMOCRATIC SOCIETY

ABSTRACT

This article defends the constitutionality of racial quotas in selection processes for public

employment by reverting the premises of an argument commonly deployed against this policy.

Many of its opponents claim that affirmative action is an inherently problematic measure because of

the difficulty in identifying its beneficiaries in a racially mixed society such as ours. They also

argue that racial and cultural amalgamation allowed the construction of a public morality that favors

harmonious race relations among blacks and whites. This paper recognizes the relevance of racial

mixing in the formation of the Brazilian national identity, but it supports racially conscious

initiatives because those who control the majority of private and public institutions belong to the

same racial group. This racial stratification is the product of various processes of social exclusion

that affect negatively those of African and Amerindian descent, the same mechanisms that

concentrate social opportunities among the members of the dominant racial group. This paper

utilizes a substantive notion of diversity and certain principles of public administration in order to

advocate racial miscegenation of the circles of power, a necessary step toward the democratization

of the Brazilian society.

KEYWORDS

Affirmative action. Miscegenation. Diversity. Equality.

Recebido: 17 de outubro de 2015

Aprovado: 26 de fevereiro de 2016