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Proposta para o miolo do livro "Meia-Noite ou o Princípio do Mundo", de Richard Zimler. Booklet project for "Hunting Midnight", by Richard Zimler. Introdução ao Design, FBAUP, Maio 2011 | May 2011

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Richard Zimler

Meia-noite ou o princípio do mundo

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Título Original: Hunting MidnightCopyright © Simon Mawer 2003 Copyright da edição portuguesa

© 2010 Nome na editora Todos os direitos reservados

RevisãoDepartamento Editorial (nome da editora)

DesignJoana Jardim

Pré-impressão, impressão e acabamentoJoana Jardim

ISBN: 978-972-20-4078-5

Morada da Editora

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Capítulo 1

EMBORA FOSSE UMA CRIANÇA de roupas esfarrapadas e sem maneiras, Daniel teve sempre um lugar especial no meu coração. Se a nossa vida em conjunto tivesse sido um romance de aventuras, ele teria continuado a praticar durante muitas horas, à luz da candeia, para se tornar, na última página, um grande e célebre escultor. Mas a vida, como o meu pai costumava dizer, é, na melhor das hipóteses, um jogo da Papisa Joana jogado numa mesa viciada, com o jogador que dá as cartas a esconder as melhores nos folhos da manga. E, por isso, o meu amigo foi impedido de conseguir realizar essas maravilhas.

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Se a sorte lhe tivesse sorrido, ou, mais importante ainda, se eu, John Zarco Stewart, tivesse tido mais força nos braços, a minha própria vida também poderia ter lu-crado com a proximidade. Afinal de contas, muitas vezes só compreendemos os efeitos que tivemos sobre as pesso-as que amam muitos anos depois. Conheci Daniel em junho de 1800, quando tinha nove anos. Já tinham passado mais de dois anos desde a minha descoberta de As Fábulas da Raposa nas Ilhas Britânicas. Safra cedo, alimentado então apenas com uma chávena de chá e uma côdea de pão de trigo que tinha barrado de mel e devorado - para grande desagrado da minha mãe - num instante. O meu destino era um laguinho - ou tarn1, como o pai lhe chamava muito para lá das muralhas da nossa cidade, na zona interior coberta de árvores ao longo da estrada para Vila do Conde. Era um sítio magnífico para observar todos os tipos de aves, especialmente logo a seguir ao amanhecer. Naquele tempo, tal como ainda hoje, eu era um grande amante daquelas lindas criaturas de penas, ar e luz - assim como um grande apreciador e imitador do canto das aves. Nessa altura, se eu tivesse ter

1Tarn - termo escocês para pequeno lago. (N. da T.)

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podido suplicar a Deus um bico e asas, de certeza que teria pensado em tornar-me numa delas. Já me estava a aproximar dos degraus de granito ao fundo da nossa rua que levam à zona ribeirinha, quan-do me chegaram uns gritos roucos vindos de um beco ali perto. Correndo para lá a toda a velocidade, descobri a Tia Beatriz, uma lavadeira viúva a quem entregávamos os nossos lençóis sujos todas as quartas-feiras, estendida nas pedras da calçada em frente da porta de casa. Ganindo como um cão espancado, tinha os joelhos ossudos puxa-dos para a barriga para se proteger. Um bruto de peruca e libré de cocheiro erguia-se ameaçadoramente sobre ela, a cara contorcida de raiva. - Sua cadela desleixada! - gritava ele, praticamente a cuspir as palavras. - Sua Marrana mentirosa e ladra! Marrana era uma palavra nova para mim. Mais tarde, o meu professor informou-me que significava duas coisas, porca e judia convertida, um epíteto que me tinha confundido, uma vez que eu nunca tinha ouvido descre-ver a Tia Beatriz como outra coisa que não uma boa alma cristã. De facto, eu tinha apenas uma ideia muitíssimo vaga do que poderia ser um judeu, pois, embora a minha avó me tivesse falado deles em duas ou três ocasiões, eu

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não tinha aprendido nada mais do que algumas lendas em que feiticeiros judeus pareciam estar sempre a frustrar as acções de reis execráveis com as suas rezas mágicas. Agora, o malvado cocheiro terminava a sua diatri-be rosnando: - Vou-te vender para fazer cola, sua meretriz pre-guiçosa! A seguir, depois de ter dado vários pontapés na Tia Beatriz, agarrou-lhe os cabelos ralos, preparando-se para lhe bater com a cabeça contra as pedras da calçada. O coração pulsava-me violentamente de encontro às costelas e disso estava a sentir-me tonto. Perguntei para comigo se deveria soltar um grito e se este conseguiria voar pot cima dos telhados que me separavam do meu pai e acordá-lo. Naqueles tempos, eu estava completamente convencido de que, com os seus oito palmos e meio de altura, ele possuía o poder invencível de restabelecer a ordem no mundo inteiro. Teria certamente dado voz a este grito de gelar o sangue se, vinda de nenhures, uma pedra não tivesse atingido o bruto na cara. Tinha sido atirada com tanta pontaria e com uma força tão certeira que o malfeitor cambaleou para trás com o choque. Caído sobre um

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joelho, pareceu desorientado com o que acontecera até dar com a pedra culpada caída inocentemente junto dos seus pés. Olhando em volta à procura do voluntarioso David que se atrevera a desafiá-lo, depressa fixou em mim um olhar ultrajado. Com a minha camisa branca de folhos, calções pretos com riscas vermelhas e as botas de fivelas, eu era um inimigo muito improvável. Naquele tempo, eu tinha mesmo canudos angelicais e aquilo a que o meu pai chamava «olhos de corça» cinzento-azulados. Mesmo assim, recuei vários passos e comecei aos soluços, uma reacção provocada pelos nervos que já tivera muitas vezes. Tencionava fugir se ele me ameaçasse, mas, em vez disso, desviou o Jhar para urn rapazito no outro lado da rua. Este parecia ser mais velho do que uns bons três anos e vestia uma camisa rota e calções muito sujos. Os pés des-calços estavam tão porcos que pareciam raízes arrancadas do solo. Tinha a cabeça rapada. Estávamos no princípio do Verão de 1800 e, apesar da alvorada de um rwo século, ainda era uma época em que as crianças nunca falavam aos adultos sem primeiro terem sido convidadas a fazê-lo. Uma pedra atirada por um enjeitado miseravelmente vestido a um cocheiro de libré ao serviço um homem rico equivalia a uma heresia.

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O ferido levantou-se com dificuldade, apalpan-do a cara com as pontas dos dedos. Olhando sem querer acreditar para o sangue que ficara na mão, atirou-se para a frente. - Seu filho-da-mãe! - balbuciou. Reunindo a sua força enfraquecida, atirou a pedra com um grunhido. O projéctil voou por cima e para lá do seu alvo, fazendo ricochete na fachada da casa que per-tencia ao Tio Aurélio, o sapateiro. Aquele foi o último acto que o nosso malfeitor ia tentar nesse dia. Os olhos revira-ram-se-lhe nas orbitas e ele caiu desamparado, a cabeça batendo no chão com um ruído surdo que não augurava nada de bom. Eu tremia de medo e excitação. Nunca me tinha sentido tão vivo. Imaginem - uma pedra atirada por um gaiato sujo derrubar um brutamontes horrendo a menos de duzentos passos da minha casa! A Tia Beatriz estava a tentar levantar-se, os braços apertados à volta da barriga como se estivessem a proteger uma criança por nascer. Sacudia a cabeça, muito confusa, claramente a tentar perceber o que lhe tinha acontecido. O sangue escorria-lhe do lábio superior até ao queixo; um dos olhos estava inchado e fechado e, mais tarde, iria

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infectar. Tornou-se um berlinde leitoso com um centro cinzento enevoado até ao resto dos seus dias. Daniel correu para ela, mas ela abanou uma mão trémula para o fazer parar. - Vai para casa - disse ela, limpando a boca. - Fala-mos mais tarde. Vai-te embora daqui antes que haja mais sarilhos. Por favor. Ele abanou a cabeça. - Não vou. Pelo menos, enquanto aquele pedaço de merda não for varrido para um monte de estrume- disse ele apontando o vilão.