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O Problema da Crise Capitalista em O Capital de Marx

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O Problema da Crise Capitalistaem O Capital de Marx

Conselho Editorial

Av. Carlos Salles Block, 658Ed. Altos do Anhangabaú, 2º Andar, Sala 21

Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-10011 4521-6315 | 2449-0740

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©2016 Hector Benoit; Jadir AntunesDireitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra

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permissão da editora e/ou autor.

B4403 Benoit, Hector; Antunes, JadirO Problema da Crise Capitalista em O Capital de Marx/Hector Benoit; Jadir Antunes. Jundiaí, Paco Editorial: 2016.

212 p. Inclui bibliografia.

ISBN: 978-85-462-0278-2

1. Economia 2. Capitalismo 3. Crise 4. Karl Marx I. Benoit, HectorII. Antunes, Jadir.

CDD: 330

IMPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAZIL

Foi feito Depósito Legal

Índices para catálogo sistemático:Capitalismo 330.122

Profa. Dra. Andrea DominguesProf. Dr. Antônio Carlos GiulianiProf. Dr. Antonio Cesar GalhardiProfa. Dra. Benedita Cássia Sant’annaProf. Dr. Carlos BauerProfa. Dra. Cristianne Famer RochaProf. Dr. Eraldo Leme BatistaProf. Dr. Fábio Régio BentoProf. Dr. José Ricardo Caetano Costa

Prof. Dr. Luiz Fernando GomesProfa. Dra. Magali Rosa de Sant’Anna Prof. Dr. Marco MorelProfa. Dra. Milena Fernandes OliveiraProf. Dr. Ricardo André Ferreira MartinsProf. Dr. Romualdo DiasProf. Dr. Sérgio Nunes de JesusProfa. Dra. Thelma LessaProf. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt

Sumário

Prefácio..............................................................................7Apresentação.............................................................11Introdução......................................................................19

CAPÍTULO 1

Livro Primeiro: Exposição das contradições potenciais eabstratas do capital na esfera da produção demais-valia.............................................................41

1. Significado geral da exposição de O Capital –Livro Primeiro.............................................................412. Significado geral da Seção I do Livro Primeiro.......503. As possibilidades de crise na Seção I: análise damercadoria e do dinheiro............................................564. As possibilidades de crise nas Seções II a VI: análiseda produção da mais-valia.........................................715. As possibilidades de crise na Seção VII: análise dareprodução do capital.................................................83

CAPÍTULO 2

Livro Segundo: Exposição das contradições potenciais eabstratas do capital na esfera da circulação e realizaçãoda mais-valia....................................................................97

1. As possibilidades de crise na Seção I: análise dosciclos do capital..........................................................972. As possibilidades de crise na Seção II: análise darotação do capital.......................................................1073. As possibilidades de crise na Seção III: análise dareprodução e circulação do capital social total.........116

CAPÍTULO 3

Livro Terceiro: Conversão das possibilidades formais eabstratas da crise em realidade......................................127

1. Apresentação: O Livro Terceiro como totalidade.................................................................1272. Análise da Seção I: a metamorfose da mais-valiaem lucro e da taxa de mais-valia em taxa de lucro...1313. Análise da Seção II: a metamorfose do lucro emlucro médio..............................................................1404. Análise da Seção III: a lei da queda tendencial dataxa de lucro e a conversão da crise em realidade....1655. A depressão e a destruição de capital pelacrise........................................................................1856. A concentração e a centralização do capital e aformação das sociedades acionistas: ponto detransição para o socialismo......................................189

Conclusão......................................................................197

Referências....................................................................207

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PrEFáCio

O presente livro é uma edição revisada e bem mais de-senvolvida do texto publicado, em primeira versão, de for-ma restrita e esboçada, em 2009, quando não chegávamos nem sequer ao final do livro III de O Capital, deixando o texto sem conclusão. O texto esboçado, então, intitulava--se Crise: o movimento dialético do conceito de crise em O Capital de Marx – publicado pela Editora Týkhe. Além dos desenvolvimentos de conteúdo, mudamos o nome do texto para O problema da crise capitalista em O Capital de Marx. A mudança deve-se ao motivo de procurarmos tornar mais evidente e sintético o objeto do livro que agora assumiu uma forma definitiva.

O livro tem origem no artigo Sobre a crítica (dialética) de O Capital publicado por mim em 1996 na revista Crítica Marxista,1 e que serviu de guia para uma Dissertação de Mes-trado de Jadir Antunes, sob a minha orientação.2 O trabalho prosseguiu com uma Tese de Doutoramento do mesmo autor, também sob minha orientação.3 Paralelamente, realizamos seminários sobre O Capital, de 2005 a 2010, sob a minha coordenação, promovidos e apoiados pelo Cemarx. Este livro é assim uma síntese de todo esse longo trabalho de colabo-

1. São Paulo: Editora Brasiliense, n. 3, v. 1, p. 14-44.2. As determinações da crise do capital na concepção de Karl Marx, defendida por Jadir Antunes em abril de 2002 (Unicamp – SP).3. Da possibilidade à realidade: o desenvolvimento dialético das crises em O Capital de Karl Marx, defendida em agosto de 2005 (Unicamp – SP).

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ração teórica entre Jadir Antunes e eu próprio, por isso, o consideramos um livro de coautoria.

Desde 2009, aprofundou-se a crise mundial capitalista, iniciada em 2008, e nosso texto, por isso, mantém-se cada vez mais importante e atual. Junto com a crise, e a miséria criada dentro da classe trabalhadora, eclodiram fortes mo-vimentos espontâneos de massa em quase todos os países do mundo, inclusive no Brasil, como as jornadas de junho de 2013 que se estenderam sem cessar, buscando uma solu-ção revolucionária para elas.

No Oriente Médio e no Norte da África, grandes mo-vimentos de massa abalaram os governos. Na Europa e Estados Unidos, ruas e praças foram ocupadas por operá-rios desempregados e jovens sem qualquer perspectiva de emprego. Até mesmo no Brasil, inevitavelmente, protestos contra a crise e a destruição de suas condições habituais de vida, originados na própria classe operária, deverão se intensificar em 2016.

A crise mundial tem mostrado aos povos de todo o pla-neta, à juventude e à classe trabalhadora que o capitalis-mo pouco tem a lhes oferecer. Em lugar da vida, ele tem oferecido apenas a morte, e em lugar do futuro, apenas a miséria e o sofrimento do presente. O capitalismo, porém, não representa o fim da história, por isso, segundo a con-cepção crítica e revolucionária de Marx, nenhum motivo existe para a juventude e a classe trabalhadora defenderem ou se conformarem com esse regime em agonia. A ambas só interessa a sua superação.

Ainda que o capitalismo e suas crises destruam grande parte da vida humana e das forças produtivas do trabalho já desenvolvidas, para Marx, o capitalismo e suas crises forne-cem a possibilidade de uma nova história e de uma nova so-

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ciedade: a possibilidade do socialismo e de uma economia racionalmente organizada. O fim do capitalismo significa, para Marx, apenas o fim da pré-história da humanidade e o começo de sua verdadeira história: a história da economia planificada e do trabalho livre e universalmente associado.

Esperamos que nosso livro ajude a juventude e os traba-lhadores na compreensão e construção dessa nova história!

Hector BenoitSão Paulo – Setembro de 2015

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APrESENTAÇÃo

O problema da crise capitalista em O Capital de Marx é uma original e instigante introdução à concepção de crise que permeia a crítica da economia política. Escrito pelos professores Hector Benoit e Jadir Antunes, dois filósofos que conhecem profundamente o método e a teoria de Marx, o livro resgata a relação entre crise e revolução. Fruto de uma rica experiência de leitura coletiva de O Capital, que mobilizou centenas de militantes, em sua maioria estudan-tes e professores universitários durante 2005 e 2010, a den-sa reflexão dos autores é um convite ao estudo e ao debate da teoria do valor como princípio organizador de uma te-oria da revolução. Ao acompanhar passo a passo o desdo-bramento do conceito de capital nos três volumes da obra magna de Marx, colocando em evidência a relação dialética entre método e teoria, o estudo explicita as consequências práticas das intrincadas questões abertas pela teoria do va-lor para a classe trabalhadora.

Publicado originalmente em 2009, no calor dos aconteci-mentos que desencadearam a crise econômica mundial, sua reedição não poderia ser mais oportuna. Passados sete anos, as previsões da sabedoria convencional de uma pronta recu-peração do crescimento não se verificaram. Nesse período, a renda per capita das economias desenvolvidas permaneceu praticamente estagnada. O comércio internacional não re-cuperou o dinamismo do período anterior à crise. O número de desempregados no mundo aumentou em mais de 39 mi-lhões. Na União Europeia, mais de cinco milhões de pessoas

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engrossaram o contingente em situação de risco de pobreza. E, nos Estados Unidos, a parcela de pessoas vivendo abai-xo da linha da pobreza aumentou em outros cinco milhões. Não é de estranhar que os indicadores de desigualdade so-cial tenham se deteriorado consideravelmente.

Mesmo considerando o horizonte da ordem burguesa, os sacrifícios impostos à população mundial foram em vão. As contradições que bloqueiam a retomada do desenvolvi-mento capitalista não foram superadas e em muitos aspec-tos se deterioraram.

A situação de superprodução generalizada continua de-primindo os investimentos. De um lado, a defesa da riqueza velha perpetua o excesso de capacidade ociosa não planeja-da. As baixas taxas de utilização nas indústrias de aço, auto-mobilística, química, naval, aérea, eletrônica e construção indicam que ainda há um longo caminho a percorrer antes que a liquidação de forças produtivas abra espaço para a retomada dos investimentos. De outro lado, o rebaixamento do nível tradicional de vida dos trabalhadores comprome-te a recuperação da capacidade de consumo da sociedade. A ofensiva contra o trabalho coloca em perspectiva uma crescente discrepância entre aumento na produtividade do trabalho e aumento salarial. Sem resolver a crise de super-produção, a economia mundial permanece sujeita as ten-dências recessivas responsáveis pela estagnação.

Na ausência de um horizonte para a expansão do capita-lismo, a monetização pelo Estado dos ativos tóxicos que es-tavam nas carteiras das grandes instituições financeiras re-compôs a “exuberância irracional”, alimentando a formação de bolhas especulativas. A persistência de um forte descom-passo entre acumulação produtiva e acumulação financei-ra não dissipou o espectro de crises financeiras de grandes

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proporções. A gravidade do problema fica patente quando se leva em consideração que já em 2013 o valor dos derivativos no mercado financeiro superava o nível de 2007, atingindo um montante equivalente a nove vezes o PIB mundial.

O trauma gerado pela crise que abalou o sistema finan-ceiro global não foi aproveitado para restringir a ação pre-datória dos grandes conglomerados financeiros. As medidas tomadas pelo G-20 e pelo governo Obama para frear a es-peculação desenfreada foram meros paliativos que institu-cionalizaram o cassino financeiro. Orientadas para conter os problemas gerados pela falência dos mercados e não para preveni-los, as restrições às aplicações especulativas dos bancos, o aumento do poder de fiscalização das autoridades monetárias e a maior proteção aos consumidores mitigam os efeitos mais perversos da liberalização financeira, mas não são suficientes para evitar a reconstrução de pirâmides especulativas. Nada foi feito para enfrentar as forças respon-sáveis pela ciranda financeira: o tamanho dos bancos não foi limitado; as operações do sistema financeiro não foram segmentadas; o espaço para a criação de derivativos não foi restringido; a livre mobilidade dos capitais não foi coibida.

A estratégia dos Estados Unidos de transferir o ônus do ajuste imposto pela tendência à desvalorização de capitais para as demais economias provocou a metástase da crise. A capacidade do império norte-americano de manipular arbi-trariamente o dólar, fazendo juros e câmbio oscilarem con-forme suas conveniências bem como seu poder para impor pactos espúrios que aprofundam o processo de liberaliza-ção acirram as rivalidades nacionais. Submetidas à violência da guerra cambial, às vicissitudes dos fluxos de capitais e à fúria do padrão de concorrência comercial imposto por Washington, praticamente todos os países ficam sujeitos a

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processos de desestruturação que colocam em questão a in-tegridade do sistema produtivo, o equilíbrio estrutural das contas externas e a própria sobrevivência da base empresa-rial, permanentemente acossada pela ameaça de desnacio-nalização selvagem. Ao comprometer o crescimento da eco-nomia chinesa, o deslocamento do epicentro da crise para os chamados “mercados emergentes” aguça ainda mais as contradições e antagonismos latentes na economia mundial.

O apoio incondicional da política econômica ao grande capital solapou a eficácia dos dois principais instrumentos de intervenção do Estado na economia. A nacionalização da bancarrota levou à escalada da dívida pública e, como consequência, ao comprometimento da política fiscal com o “regime de austeridade” que imobiliza a capacidade do Estado de fazer políticas públicas. A decisão de utilizar a política monetária para financiar indiscriminadamente a re-estruturação da carteira das instituições financeiras reacen-deu a bolha especulativa. Presa à “armadilha da liquidez”, caracterizada pela absoluta insensibilidade dos investimen-tos à redução na taxa de juro, as autoridades monetárias norte-americanas meteram-se numa sinuca de bico. Se mantiverem a política monetária expansionista, alimentam a ciranda financeira, se a abandonarem, correm o risco de detonar uma nova crise financeira e aprofundar o mergulho recessivo da economia mundial. Subordinada aos impera-tivos de uma aristocracia capitalista completamente des-colada dos interesses do cidadão, o Estado transformou-se literalmente em comitê executivo do grande capital.

Na impossibilidade de socializar os benefícios gerados pelo desenvolvimento das forças produtivas pelo conjunto da população, na forma de uma redução da jornada de trabalho e da subordinação da produção ao atendimento das neces-

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sidades dos trabalhadores, a destruição de riqueza impõe-se como único meio de restaurar as condições para a retomada do processo de acumulação. No entanto, na etapa superior do capitalismo monopolista, a desvalorização em massa de capitais é problemática. A força da riqueza velha na estrutu-ra patrimonial dos grandes blocos de capitais bloqueia a di-gestão do excedente absoluto de capitais. A subordinação do ritmo e intensidade do processo de administração da crise à lei do mais forte implica processos de concentração e centra-lização de capitais, baseados na concorrência por estrangu-lamento financeiro e tecnológico, que se arrastam por tem-po indeterminado. A defesa patrimonialista da riqueza velha impede a emergência da riqueza nova. Na impossibilidade de revolucionar a produtividade do trabalho, os excedentes são canalizados para a ciranda financeira, especulação mer-cantil e investimentos portadores de inovação de segunda ordem que dão uma sobrevida aos capitais imobilizados na esfera produtiva ameaçados de desvalorização.

O impacto devastador da crise econômica sobre a popu-lação inaugura uma época de convulsão social e turbulência política em escala global. A ofensiva do capital desperta a reação do trabalho. Desperta também a ira de setores da pequena burguesia ameaçados pela tendência à liquidação de forças produtivas obsoletas. No desespero para encon-trar uma resposta ao avanço da barbárie, o conflito político generaliza-se em todos os rincões do mundo, acirrando an-tagonismos sociais e rivalidades nacionais.

A resposta à crise será determinada em última instância pela luta de classes. Occupy Wall Street, a Rebelião dos In-dignados na Espanha e a brava luta do povo grego contra o ajuste neocolonial imposto pela União Europeia são exem-plos diretamente relacionados com a busca desesperada de

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uma saída para a crise que preserve os interesses populares. Mesmo mobilizando grandes contingentes de trabalhadores e promovendo manifestações expressivas, os movimentos contra a política de socialização dos prejuízos fracassaram. A tragédia grega é o caso emblemático. A impotência do Syrisa para dar consequência prática ao plebiscito que rejeitou a tu-tela da Troika revela que a viabilização de soluções alternati-vas ao neoliberalismo passa pela construção de um acúmulo de forças capaz de subverter os alicerces econômicos, sociais, políticos e ideológicos da ordem global. A lição dos primeiros oito anos da crise contemporânea é clara. Sem a resistência dos trabalhadores, não haverá limite aos ataques contra os di-reitos dos trabalhadores e as políticas públicas. Mas não basta se contrapor às exigências do ajuste neoliberal. Sem a cons-trução de uma vontade política capaz de enfrentar o gran-de capital, a resistência dos trabalhadores conseguirá apenas atenuar o ritmo e a intensidade da barbárie capitalista.

Iludem-se os que alimentam a esperança de uma contra--ofensiva keynesiana, sustentada por uma suposta burgue-sia progressista vinculada à produção. A alternativa base-ada em políticas compensatórias, que atenuam o impacto recessivo e regressivo do processo de reorganização do ca-pitalismo, não tem base objetiva e subjetiva para se tornar realidade. De um lado, a intervenção keynesiana supõe a restauração do regime central de acumulação, ancorado no espaço econômico nacional, hipótese que contraria fron-talmente as tendências que impulsionam a globalização dos negócios. De outro, o resgate do New Deal presume a existência de burguesias nacionais dispostas a enfrentar as burguesias internacionalizadas, suposição que contraria as tendências efetivas da luta de classes. A utopia de um capitalismo civilizado sem sujeito histórico capaz de torná-

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-la realidade não vai além de uma retórica vazia, funcional para desviar a atenção de soluções anticapitalistas, mas to-talmente impotente para alterar o curso dos acontecimen-tos. A história não dá marcha à ré.

No vácuo gerado pela falta de alternativa concreta, cris-taliza-se o senso comum de que, por pior que seja, não há como fugir do receituário neoliberal. Daí a importância do estudo de Benoit e Antunes. Sem o resgate da crítica da eco-nomia política elaborada por Marx, os trabalhadores ficam sem projeto político para enfrentar a ofensiva avassaladora do capital. Sem afirmar a necessidade e a possibilidade his-tórica da revolução comunista, ficam presos no antro estrei-to que submete a sociedade à tirania do pensamento único.

A leitura de Benoit e Antunes sobre as contradições que levam à eclosão de crises que interrompem o processo de valorização do capital é uma rigorosa e didática sistema-tização do caráter dialético da crítica da economia políti-ca. A insistência dos autores em afirmar a importância de uma visão de conjunto de O Capital, evitando explicações fragmentadas que reduzem a crise a aspectos específicos, tem como principal intuito evitar que o programa revolucio-nário desenvolvido por Marx dê lugar a leituras arbitrárias que comprometem a essência de sua conclusão, isto é, a negação da negação como única solução civilizada para o avanço da barbárie capitalista.

Ao mostrar a relação entre a luta de classes e o desenvol-vimento dialético das categorias que explicam a reprodução ampliada do capital, os autores explicitam que a disputa pelo poder político da sociedade é uma consequência inexo-rável do desenvolvimento das contradições acumuladas no processo de valorização do capital. Ao demonstrar como a crise abre brechas históricas que permitem a autonomia da

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política, colocando na ordem do dia a luta pela reorganiza-ção do modo de produção capitalista ou pela sua superação, o livro deixa patente o limite da teoria e a primazia absoluta da prática no pensamento de Marx.

Em relação ao texto publicado em 2009, a nova edição desenvolve substancialmente a interpretação do capítulo inacabado sobre as classes sociais, o último do Livro III de O Capital, que trata das implicações práticas da lei do valor. Definindo as classes sociais a partir de suas respectivas posi-ções nas relações de produção, e não a partir das diferenças nas fontes de rendimentos associados aos “fatores” de pro-dução, como faz a economia política burguesa, Benoit e An-tunes evidenciam por que o antagonismo entre a burguesia e a classe trabalhadora é irredutível. A absoluta impossibi-lidade de conciliar os explorados – produtores da riqueza – com os exploradores – expropriadores da riqueza – polariza a luta de classes entre revolução e contra-revolução, opon-do numa guerra de vida ou morte os que lutam pela supe-ração do capitalismo aos que se aferram a sua conservação.

Dirigido aos intelectuais orgânicos comprometidos com a luta pela revolução comunista, O problema da crise capita-lista em O Capital de Marx é uma contribuição substantiva ao debate sobre as implicações revolucionarias da teoria do valor elaborada na crítica da economia política. É um livro para ser estudado e discutido por todos que compreendem a importância da crítica como arma estratégica na luta da classe trabalhadora contra a barbárie capitalista.

São Paulo – Março de 2016.

Plínio de Arruda Sampaio Júnior: Professor do Insti-tuto de Economia da Universidade Estadual de Campinas – IE/

UNICAMP.

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iNTroDuÇÃo

A EXPoSiÇÃo DiALÉTiCA Do CoNCEiTo DE CriSE Em o CAPiTAL

Nosso trabalho rediscute o conceito de crise em O Capital de Marx. A ampla bibliografia sobre o tema já provocou mui-tas polêmicas e nunca se chegou a um acordo pleno quan-to a tal conceito. De modo geral, os diversos comentadores preocuparam-se em encontrar nos textos de O Capital uma passagem determinada que mostrasse qual seria a “causa principal”, na concepção de Marx, que impulsionaria a pro-dução capitalista a entrar regularmente em crise. Utilizando justamente essa noção de “causa”, autores clássicos como Tugán-Baranovski, Karl Kautsky, Rosa Luxemburg, Rudolf Hilferding, Henrik Grossman, Paul Sweezy, Ernest Mandel, entre outros, discutiram longamente durante boa parte do século XX a obra O Capital, procurando encontrar em qual texto ou passagem canônica poderia residir a verdadeira concepção de Marx sobre as crises do capitalismo.4 De modo

4. Coletânea clássica de textos que discute o problema das crises no começo do sé-culo XX entre intelectuais marxistas pode ser encontrada em Lucio Colleti (org.). El Marxismo y el “Derrumbe” del Capitalismo. Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 1978. Veja-se ainda: Rosa Luxemburg. A Acumulação de Capital: contribuição ao es-tudo econômico do imperialismo. S.P.: Nova Cultural, 1985. (Coleção Os Economis-tas). Rudolf Hilferding. O Capital Financeiro. S.P.: Nova Cultural, 1985. (Coleção Os Economistas). Henrik Grossmann. La Ley de la Acumulación y del Derrumbe del Sistema Capitalista. México: Siglo XXI, 1979. Paul Sweezy. Teoria do Desenvolvi-mento Capitalista: princípios de economia política marxista. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1985. Ernest Mandel. A Crise do Capital: os fatos e sua interpreta-

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geral, todos estes autores deram ênfase a três fragmentos de textos distribuídos nos diferentes livros de O Capital.

O primeiro desses fragmentos encontra-se na Seção Ter-ceira do Livro Segundo, na qual Marx estuda o problema da reprodução global do capital social, isto é, o problema de como se distribui o trabalho global dentro da sociedade ca-pitalista e de como se realiza a mais-valia global.5 Da leitura desta seção, autores como Tugán-Baranovski e Hilferding concluíram que a causa principal das crises na concepção de Marx era a desproporção incorrigível que existia entre o departamento produtor de meios de produção e o departa-mento produtor de meios de subsistência. Da leitura desta mesma seção, Rosa Luxemburg concluiu que a causa fun-damental das crises não era a desproporção intersetorial, mas, sim, o subconsumo, a ausência de terceiras pessoas no esquema de Marx que realizassem a mais-valia destinada à acumulação.6

ção marxista. São Paulo: Editora Ensaio, 1990. Manuel Castells. A Teoria Marxista das Crises Econômicas e as Transformações do Capitalismo. R.J.: Paz e Terra, 1979.5. A Reprodução e a Circulação do Capital Social Total. Karl Marx: Seção III do Livro Segundo de O capital. Capítulos XVIII a XXI. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Volume III, p. 245-362.6. Apesar de Rosa Luxemburg não operar explicitamente com a categoria de cau-sa, os limites de sua interpretação de O capital ficam claros na medida em que não compreendeu o caráter abstrato da Seção III do Livro Segundo, em que Marx analisa os esquemas de reprodução social. Crítica a esta incapacidade de Rosa em compreender o complexo problema da relação abstrato-concreto em Marx, pode ser encontrada em Roman Rosdolsky. Génesis y estructura de El capital de Marx: estudios sobre los Grundrisse. Siglo Veintiuno Editores: México, 1986. Veja-se es-pecialmente o Apéndice II da Introdução: Observación metodológica a la crítica de Rosa Luxemburg de los esquemas de reproducción de Marx – pp. 92 a 100. Segundo Rosdolky, os erros de Rosa resultam, dentre outras coisas, “do desconhecimento do papel que ocupa a abstração de uma ‘sociedade puramente capitalista’ na me-todologia marxiana” (p. 96).

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O segundo fragmento de texto bastante ressaltado é a Seção Terceira do Livro Terceiro, em que Marx estuda o pro-blema da lei da queda tendencial da taxa de lucro.7 Como o capital possui uma lógica irrefreável que o leva a substituir o capital variável pelo capital constante – e este, como sabe-mos, não produz mais-valia e, por isso, não valoriza o capital –, e como a acumulação de capital só se realiza mediante certa estabilidade da taxa de lucro média, surge, então, des-ta necessidade, segundo alguns, como Grossman, a causa verdadeira das crises econômicas da sociedade capitalista.

O terceiro fragmento de Marx utilizado para explicar as crises do capital a partir da noção de causa é o Capítulo XVII do Livro Segundo de Teorias sobre a mais-valia, em que Marx analisa e critica as concepções de Ricardo sobre a re-produção social do capital em seu conjunto.8 Como Ricardo não admite a possibilidade de uma crise econômica pro-vocada pela superprodução de mercadorias e como Marx critica esta concepção limitada de Ricardo, muitos autores marxistas concluíram, como Kautsky, por exemplo, que para Marx a causa principal das crises do capitalismo era a superprodução de mercadorias.

Ernest Mandel, procurando fugir daquilo que chamava de “teorias mono-causais da crise”, procurou formular uma explicação “multicausal”, teoria esta que englobaria todas as supostas causas isoladas numa única formulação. Porém, como os outros, Mandel também não conseguiu encontrar

7. Lei da Queda Tendencial da Taxa de Lucro. Karl Marx: Seção III do Livro Terceiro de O capital. Capítulos XIII a XV. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Volume IV, p. 154-191.8. Teoria ricardiana da acumulação. Sua crítica. Desenvolvimento das crises em de-corrência da forma fundamental do capital. Capítulo XVII do Volume II de Teorias da Mais Valia. Tradução de Reginaldo Santana. São Paulo: Difel, 1980, p. 907-980.

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uma explicação propriamente sintética e dialética sobre o fenômeno das crises da sociedade capitalista a partir de O Capital de Marx. Mandel e os autores anteriores cometeram uma falha metodológica comum: procuraram explicar a cri-se a partir da noção empírica de “causa”.

A título de exemplo, citamos alguns autores que usa-ram, indevidamente, a noção de causa como base para ex-plicação do conceito de crise. “A repetição periódica desse processo [de prosperidade e depressão] levanta a questão de suas causas, que devem resultar de uma análise do me-canismo da produção capitalista”, dizia Hilferding em O Ca-pital Financeiro.9

Além disso, dizia ele, uma coisa é evidente: como as crises, na sua sequência periódica, são produto da sociedade capitalista, sua causa reside necessariamente no caráter do capital.10

Ambas as citações pertencem ao Capítulo XVI: Condições gerais em que se dá uma crise. Hilferding dedicou, ainda, um capítulo inteiro, o XVII, a estudar As Causas da Crise.

Ernest Mandel também procurou responder à questão de “Quais são as causas das crises econômicas?” em sua obra A crise do capital: os fatos e sua interpretação marxista. Segundo ele, a teoria acadêmica havia formulado uma “ex-plicação monocausal das crises periódicas”.11

Segundo Mandel:

Para compreender o encadeamento real [empírico, na ver-dade, e que Marx nunca pretendeu explicar] entre a queda da taxa de lucro, a crise de superprodução e o desenca-

9. Hilferding, op. cit., p. 231.10. Hilferding, op. cit., p. 233.11. Mandel, op. cit., p. 209.

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deamento da crise, devemos distinguir os fenômenos de aparecimento da crise, seus detonadores, sua causa mais profunda e sua função no quadro da lógica imanente do modo de produção capitalista.12

Depois de responder sobre a questão das causas da cri-se, listando rapidamente cinco delas, Mandel considerava que “ainda será necessário estabelecer um encadeamento causal mais preciso, incorporando toda uma série de media-ções indispensáveis”.13 E sua obra prossegue a partir daí ex-pondo o suposto encadeamento causal, e empírico, da crise.

O defeito do pensamento de Mandel é evidente: ele está mais preocupado em conhecer os encadeamentos empírico--factuais da crise do que desvendar seu conceito. Esta mes-ma preocupação de descrever empiricamente a crise do ca-pital reaparece em O Capitalismo Tardio. Nesta obra, Mandel chega até mesmo a desenvolver a chamada teoria das ondas longas de contração e expansão da sociedade capitalista apoiado na suposta teoria causal dos ciclos de Marx.

Paul Sweezy também caiu no erro de querer entender Marx a partir da noção empirista de causa. Segundo ele, haveria dois “tipos de crise”, uma causada pela queda da taxa de lucro e outra pelo problema da realização da mais--valia. Para o primeiro tipo, “o exame das causas das crises deve ser feito em termos das forças que operam sobre a taxa de lucro”, dizia ele em Teoria do desenvolvimento capitalista: princípios de economia política marxista.14 Para o segundo tipo, a desproporção intersetorial “é sempre uma possível causa de crise, e quase certamente um fator agravante em

12. Mandel, op. cit., p. 211.13. Mandel, op. cit., p. 212.14. Sweezy, op. cit., p. 121.

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todas as crises, qualquer que seja a sua causa básica”.15 Também o subconsumo das massas estaria incluído neste segundo tipo de crise, pois, para Sweezy, “é incorreto opor a ‘desproporção’ ao ‘subconsumo’ como causa da crise... pois o subconsumo é um caso especial de desproporção”.16

Pensamos que o fracasso de todas estas tentativas de encontrar uma explicação coerente e sistemática sobre as crises em O Capital de Marx explica-se pelo fato de que ne-nhum autor, até agora, se propôs a expor o conceito de crise a partir da própria dialética expositiva de O Capital, ou seja, a partir do seu “modo de exposição” (die Darstellungsweise).

Conduzidos pelo uso da noção não dialética de “causa”, os diversos autores que procuraram explicar a crise do ca-pital a partir de Marx se desviaram do âmago do problema, tentando descobrir, afinal, qual seria a “verdadeira causa das crises” e em qual passagem de O Capital Marx teria ex-posto “melhor” ou de “forma mais completa” a sua concep-ção principal de crise. Mesmo aqueles que, a exemplo de Mandel, buscaram alguma síntese, teriam fracassado, pois, a síntese foi tentada embasando-se em concepções não dia-léticas e, sobretudo, sem compreender o modo de exposição dialético de O Capital.

Outros autores, ainda que possuindo uma certa inspi-ração dialética, não foram muito melhores sucedidos ou se encaminharam em sentido diferente do nosso.17 Assim,

15. Sweezy, op. cit., p. 130.16. Sweezy, op. cit., p. 147.17. Cabe lembrar o interessante livro de inspiração dialética de Jorge Grespan, O Negativo do Capital, Hucitec/Fapesp, 1998. Porém, como afirma Marcos Muller no prefácio da obra, Grespan desvincula conscientemente a Crítica da Economia Política da Filosofia da História de Marx (p. 18). Caminhamos em sentido meto-dológico justamente contrário e por isso os nossos resultados são bastante diver-sos deste autor. Da mesma forma, de inspiração dialética é o livro Certa herança

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cabe lembrar nessa direção a obra de Roman Rosdolsky, um dos primeiros estudiosos dos Grundrisse e da relação deste com O Capital.18 Para este autor, paradoxalmente, Marx não possuiria uma teoria da crise do capital. Segundo ele, Marx havia inicialmente pensado em realizar uma elaboração sis-temática sobre a crise nos planos projetados para a redação de O Capital no ano de 1857.

De acordo com Rosdolsky, Marx teria elaborado dois planos distintos para a redação de O Capital, o primeiro em 1857 e o segundo, já modificado, em 1866. O primeiro teria sido elaborado dez anos antes da publicação do Livro Primeiro e o segundo apenas um ano antes. Entre 1857 e 1866 ocorre um período de nove anos de experimentação e busca constante de uma forma expositiva adequada aos complexos temas de O Capital. Ao longo destes nove anos, teria se desenvolvido, ao mesmo tempo, uma progressiva restrição dos temas inicialmente projetados. Um dos temas que teria sofrido restrição neste intervalo de tempo, segun-do Rosdolsky, seria exatamente o tema da crise.

Em seu plano original de 1857, Marx teria programado editar suas descobertas teóricas dividindo-as em seis partes distintas. Este plano, de acordo com Rosdolsky, previa a se-guinte divisão da obra.19

marxista de Giannotti, porém, também com outra perspectiva diferente da nossa: cf. comentário de Hector Benoit. Marx à luz de Wittgenstein: comentário a “Certa herança marxista de J. A. Giannotti”, p. 147-155. Crítica Marxista, Boitempo Edi-torial, n. 12, maio 2001.18. Rosdolsky, op. cit.19. Rosdolsky, op. cit., p. 38/39. Sobre os planos de elaboração de O capital de acordo com Rosdolsky, a elaboração original e as posteriores modificações, veja-se o Capítulo 2 da Primeira Parte Introdutória de Génesis y estructura..., chamada La estructura de la obra de Marx, p. 37-100 principalmente.

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I. Livro do Capital. A. O capital em geral. 1. Processo de produção do capital. 2. Processo de circulação do capital. 3. Lucro e juros. B. Seção da concorrência. C. Seção sobre o sistema de crédito. D. Seção sobre o sistema acionário.II. Livro da propriedade da terra.III. Livro do trabalho assalariado.IV. Livro do Estado.V. Livro do comércio exterior.VI. Livro do mercado mundial e as crises.

Podemos perceber que o tema da crise aparece neste es-quema como o último de todos os temas a ser desenvolvido e, além disso, merecedor de um tratamento especial: o livro VI que trataria do mercado mundial e, exatamente, da crise. No intervalo de nove anos de reflexões, contudo, Marx mo-difica este plano original e o substitui pelo seguinte:

Livro I. Processo de produção do capital.Livro II. Processo de circulação do capital.Livro III. Síntese do processo global.Livro IV. História da teoria (Teorias sobre a Mais-valia).

Esta é a forma definitiva da exposição de O Capital con-cebida por Marx. Podemos observar que nesta forma defini-tiva foi suprimido não apenas o Livro VI acerca do mercado mundial e das crises, mas, ainda, os livros sobre o Estado, o comércio exterior, o trabalho assalariado e a propriedade da terra projetados em 1857. Todos os temas do Livro I de 1857 foram, de uma forma ou de outra, absorvidos dentro da estrutura definitiva encontrada por Marx em 1866, assim como os temas dos livros II e III de 1857. Os temas da pro-

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priedade da terra (Livro II) e do trabalho assalariado (Livro III) foram tratados no conjunto do novo plano, mesmo que tenham deixado de possuir livros específicos. A propriedade da terra foi tratada no Livro Terceiro (Capítulos XXXVII a XLVII) e o trabalho assalariado no Livro Primeiro (Capítulo VII). Foram suprimidos, porém, também os livros IV, V e VI, sem que os seus temas tivessem sido desenvolvidos em alguma passagem especial do novo plano.

Rosdolsky argumenta que a redação desses três últimos livros de 1857 (IV – Estado; V – Comércio exterior; e VI – Mercado mundial e crises) nunca foi totalmente abandona-da por Marx. Segundo Rosdolsky, ocorreu apenas que Marx jamais se dispôs efetivamente a realizar a redação desses livros e o projeto foi se dissolvendo entre os anos de 1857 e 1866, sendo reservado para um eventual prosseguimento futuro da obra, prosseguimento que não ocorreu.

Cremos estar autorizados a extrair, diz Rosdolsky, do exa-me dos manuscritos de O capital, a conclusão de que dos seis livros originariamente planejados, Marx nunca “aban-donou” definitivamente os últimos três, senão que estes es-tavam destinados a “eventual prosseguimento da obra”.20

Como Marx não deu prosseguimento à elaboração do plano de 1857, no qual o tema da crise receberia um tra-tamento especial, e como ele modificou este plano definiti-vamente em 1866, eliminando o livro sobre a crise, então, segundo Rosdolsky, devemos concluir que Marx não chegou a desenvolver uma teoria sistemática e completa sobre a crise. Diante disso, para este comentador, o tema da crise só poderia ser encontrado ocasionalmente e de forma dispersa

20. Rosdolsky, op. cit., p. 82. As palavras entre aspas no interior da citação são de Marx citadas por Rosdolsky.

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no interior dos quatro livros de O Capital, não chegando a constituir propriamente uma teoria sobre a crise. Assim, para Rosdolsky, a dificuldade de encontrarmos uma expo-sição sistemática sobre a crise em Marx decorreria exata-mente e simplesmente da ausência, ausência real e de fato, desta teoria no próprio O Capital.

Pensamos, porém, que Rosdolky se equivoca ao comen-tar uma passagem importante de Marx sobre a crise e a estrutura de sua obra. Rosdolsky cita e comenta uma pas-sagem do Livro Terceiro de O Capital em que Marx deixa claro que ali estariam excluídos do âmbito da investigação “as conexões com o mercado mundial”.21 Porém, Rosdolsky tira desta passagem uma falsa conclusão: a de que estaria também excluída da investigação a questão da crise.

Citamos Rosdolsky:

Isto vale também para o problema... dos ciclos industriais, “a alternância de prosperidade e crise”, “cuja análise ul-terior” – como destaca repetidamente Marx – “cai fora do âmbito de nossa análise”, e seguramente destinada so-mente a “eventual prosseguimento da obra”.22

Ora, Rosdolsky confunde claramente aqui, alternância dos ciclos industriais com o conceito de crise. É verdade que Marx não elaborou uma meticulosa teoria sobre os ciclos de prosperidade e crise. O que Rosdolsky não compreende é que o que está em jogo nos planos de exposição não é a crise em suas manifestações empíricas e ordinárias, mas sim o conceito de crise. Confundindo a questão do conceito de crise com suas manifestações empíricas, Rosdolsky então, reconhece, erroneamente, que há em O Capital uma lacuna sobre o problema. Como diz ele:

21. Rosdolsky, op. cit., p. 49. Palavras de Marx citadas por Rosdolsky.22. Rosdolsky, op. cit., p. 49. As palavras entre aspas no interior da citação são palavras de Marx citadas por Rosdolsky.

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Entretanto, isto demonstra que a teoria das crises de Marx exibe, de fato, ‘lacunas’, no sentido de que já não lhe estava mais posto tratar o problema em seu plano mais concreto.23

É esta falsa teoria da “lacuna” que está na base dos erros de todas as tentativas do século XX de reconstruir arbitra-riamente, desconhecendo-se o caráter imanente e dialético do conceito de crise em O Capital, uma teoria causal e em-pírica sobre o problema da crise.

Mandel é um dos muitos que concordava com esta falsa teoria da lacuna de Rosdolsky na questão da crise. Na obra El capital: cien años de controversias en torno a la obra de Karl Marx (México: Siglo Veintiuno Editores, 1985), Man-del deixava claro seu desconhecimento acerca do problema da exposição dialética e da complexa questão dos planos de elaboração de O Capital.

Segundo ele:

Marx não nos deixou uma teoria das crises completa, ple-namente elaborada. Suas observações sobre o ciclo indus-trial e as crises de superprodução capitalistas estão disper-sas em vários de seus principais livros e em toda uma série de artigos e cartas.24

Segundo esse errôneo entendimento de Mandel:

As principais contribuições de Marx à teoria das crises de-vem encontrar-se em Teorias sobre a Mais-valia... e em seus artigos sobre crises econômicas do momento... Tam-bém a correspondência de Marx com Engels contém nu-merosos comentários sobre as crises do momento.25

23. Rosdolsky, op. cit., p. 49.24. Mandel, op. cit., p. 191.25. Mandel, op. cit., nota 8, p. 191.

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Em O Capital, a questão da crise, dos ciclos industriais na verdade, estaria, segundo Mandel, exposta apenas nos Livros Segundo e Terceiro. Mandel deixa claro aqui que em sua concepção a questão da crise resume-se à questão do ciclo industrial. Ou seja: na falsa concepção de Mandel, a questão do conceito de crise se identifica com a questão do momento empírico dela.

Paul Sweezy também partilhava desta falsa concepção sobre a lacuna de O Capital. Segundo suas palavras:

Não se encontra na obra de Marx nada que se assemelhe a um tratamento completo ou sistemático do assunto... Tal-vez possamos dizer que se Marx tivesse vivido o bastante para concluir a análise da concorrência e do crédito teria feito um tratamento completo e sistemático do problema. Como está, porém, a crise necessariamente permanece na lista de seus assuntos incompletos.26

Na base da concepção de Sweezy encontram-se os mes-mos erros de Mandel: o de identificar a teoria da crise com a teoria dos ciclos econômicos e o de não compreender o problema da exposição dialética.

Apesar de Rosdolsky avançar, em alguns pontos, na compreensão do problema da forma de exposição de O Ca-pital, reflexão ausente na ampla maioria dos estudiosos da obra e do tema da crise, pensamos, ao contrário dele e de toda a bibliografia sobre o tema, que a aparente ausência de uma teoria sistemática sobre a crise do capital deve ser pensada a partir do desenvolvimento dialético dos próprios planos de exposição projetados por Marx entre os anos de 1857 e 1866.

26. Sweezy, op. cit., p. 113-114.

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Sustentamos em nossa obra que Marx possui e realizou, sim, uma exposição da sua teoria da crise do capital. Con-tudo, esta teoria não está depositada empiricamente, aqui ou ali, em nenhum texto específico ou passagem canônica de O Capital, nem numa soma aritmética de passagens. Esta teoria está, sim, desenvolvida em todo o percurso dialético--expositivo de O Capital, aparecendo e começando a se de-senvolver logo nas primeiras páginas do Livro Primeiro e se encerrando nas últimas páginas do Livro Terceiro.27

Portanto, deslocando a discussão da teoria da crise de qualquer teoria “causal” sobre ela, avançamos da noção empirista de “causalidade” para a noção de “modo de ex-posição” (die Darstellungsweise). Somente tomando essa noção dialética como pressuposto, consideramos que se possa atingir uma correta compreensão do método de ex-posição desenvolvido nos anos que vão de 1857 a 1866 e que envolve todas as categorias de O Capital, desde a “cir-culação simples”, passando pela “acumulação originária” e atingindo finalmente a noção plena de “crise” como e enquanto resultado.28

27. O Livro Quarto, enquanto história da teoria, seria muito mais um apêndice, em certo sentido externo à própria estrutura dialética da obra.28. Em grego clássico, a palavra krisis significa a “ação de distinguir”, a “ação de separar”, mas também, justamente, “a decisão”, o “resultado final”, o “resul-tado (de uma guerra)”. Nesse sentido, sobre o modo de exposição dialético de O Capital veja-se Hector Benoit. Sobre a crítica (dialética) de O capital. Revista Crítica Marxista, São Paulo: Editora Brasiliense, n. 3, 1996. No mesmo sentido, cf. Hector Benoit. Da lógica com um grande ‘L’ à lógica de O capital. In: Diversos autores. Marxismo e Ciências Humanas. São Paulo: Editora Xamã, 2003. Mostra-se nesses textos que as diversas supostas “ausências” descobertas, posteriormente, na obra de Marx, seriam apenas resultado da incompreensão do seu método dialético de exposição. Nesse sentido, segundo Benoit, a própria noção de “Estado”, como aquela de crise, teria sido absorvida no modo dialético de exposição das contra-dições do capital. Daí o desaparecimento do Livro IV, projetado em 1857, sobre o

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Como o próprio Rosdolsky, em parte, indica, nos anos que vão de 1857 a 1866, Marx percebe que suas análises não poderiam ser expostas sem uma determinada forma rigorosa. Marx foi percebendo, cada vez mais, que o con-teúdo era inseparável de uma certa forma ou lexis específi-ca que deveria ser encontrada. Assim, naqueles anos, Marx passa a lutar para encontrar a forma correta que permitisse a exposição precisa do seu conteúdo: tratava-se de encon-trar o método dialético rigoroso que abarcasse num único processo expositivo todas as complexas interações catego-riais e históricas do capital. Tratava-se de superar o domínio meramente analítico e encontrar um modo de exposição que, de forma imanente, se mostrasse analítico e sintético ao mesmo tempo. Assim, nesse período, Marx foi recons-truindo e reordenando o seu conteúdo analítico em uma forma superior. Nesse intervalo de nove anos, através do método expositivo da dialética, o único capaz de dar conta da complexa estrutura categorial do capital, Marx superou o conteúdo analítico de suas descobertas, chegando a uma forma analítica e sintética, ao mesmo tempo, ou seja, à for-ma da dialética superior.29

Marx estabeleceu, então, de forma mais clara todo o seu conteúdo analítico, superou as formas empíricas de suas

Estado, como o desaparecimento do Livro VI, sobre o mercado mundial e as crises. Cf. também Hector Benoit. Pensando com (ou contra) Marx? Sobre o método dia-lético de O capital. Crítica Marxista, São Paulo: Editora Xamã, n. 8, 1999.29. Tal dialética superior, Hegel a chamava de “propriamente especulativa” ou “o momento do método absoluto” (Cf. Ciência da Lógica, “A lógica subjetiva ou a doutrina do conceito”, terceira seção, terceiro capítulo “Die absolute Idee” (p. 327-353, edição de Hermann Glockner). Platão chamava tal momento de nóesis (cf. livro VI de A república), seria o momento no qual se supera o momento ana-lítico da dianoia, o momento no qual se superam todas as hipóteses anteriores e se avança para o princípio não hipotético, pressuposto da totalidade, fim que, na verdade, é princípio (originário), ou arkhé, fundamento, Grund.

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investigações e elevou-as ao caminho da exposição dialéti-ca: caminho que deve partir da totalidade como concreto indeterminado (enquanto pressuposto); deste momento deve se caminhar pelo abstrato, expondo detalhadamente as diversas formas particulares da totalidade; no terceiro momento, pouco a pouco, ocorre a superação destas for-mas abstratas que devem retornar ao concreto recons-truído, então, como determinado (totalidade concreta ou universal concreto). Este seria o método que daria “vida à matéria” (Leben des Stoffs), como afirma Marx no Posfácio da Segunda Edição de O Capital, ou seja, seria o método que reconstruiria o concreto histórico na teoria a partir de suas determinações mais simples e abstratas, conduzindo-o ao movimento contraditório que transformaria a teoria em vida e em práxis revolucionária.

Como escreve Marx nesse Posfácio:

É sem dúvida necessário distinguir o modo de exposição formal [die Darstellungsweise formell] do modo de inves-tigação. A investigação tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e ras-trear sua conexão íntima. Só depois de concluído esse tra-balho é que se pode expor adequadamente o movimento real. Caso se consiga isso, e espelhada idealmente agora a vida da matéria, talvez possa parecer que se esteja tratan-do de uma construção a priori.30

No célebre trecho dos Grundrisse conhecido como “O mé-todo da Economia Política” escrito em 1857 (Mega, p. 35-43), esse processo não é exposto com tanta clareza. Conferir, particularmente, a página de número 43, em que Marx des-creve 5 seções, sendo a última seção “o mercado mundial e as crises”, como no plano dos livros de O Capital desse período.

30. MEW, v. 23, p. 27.

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Porém, nesse texto, já corretamente afirma na página de número 36 que:

O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas de-terminações, isto é, a unidade do diverso. Por isso o con-creto aparece no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo [wirkliche Ausgangspunkt] e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação.

Nesse sentido, pensamos que, para Marx, o conceito de crise é inseparável do próprio conceito de capital e o estudo de um implica necessariamente no estudo do outro. Uma análise dialética do conceito de crise deve se desenvolver, portanto, si-multaneamente com a análise e desenvolvimento do conceito de capital. A obra O Capital, como sabemos, tem como meta expor o conceito de capital, o fundamento da sociedade bur-guesa. Exposição que se eleva do concreto (pressuposto) ao abstrato que retorna ao concreto (posto), ao concreto enquan-to concreto desenvolvido e exposto pela lexis e pelo pensamen-to. Assim, no trajeto expositivo dos três livros de O Capital, ressaltamos, desde já, quatro questões fundamentais.

Primeira questão: os Livros Primeiro e Segundo pos-suem como objeto o conceito mais genérico e mais abstra-to de certos momentos do movimento do capital. Nestes livros, vemos o movimento do conceito de capital em suas formas mais puras, o conceito de capital enquanto tal, sem consideração por suas formas derivadas como o capital produtivo, comercial e a juros (todas elas formas derivadas do capital-industrial, a forma mais pura e abstrata, mas, ao mesmo tempo, mais fundamental do capital). Estes Li-vros não possuem como objeto, portanto, as leis e contra-

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dições do capital em sua atualidade (enérgeia), mas as leis e contradições do capital em suas formas potenciais (como dynamis).31 O capital e a sociedade capitalista em sua con-figuração mais real e concreta são analisados somente no Livro Terceiro.32

Somente no Livro Terceiro a sociedade capitalista será concebida, portanto, com todas as suas determinações, so-bretudo, com aquelas provocadas pela pluralidade de capi-tais e pela concorrência. Os Livros Primeiro e Segundo são livros mais abstratos exatamente porque neles colocam-se entre parênteses, em grande parte, a pluralidade de capitais e a concorrência. A luta entre os diversos capitais individuais que reciprocamente se odeiam não aparece de forma mais desenvolvida antes do Livro III, apesar de que já é menciona-da mesmo no Livro I. Porém, postas a pluralidade de capitais e a concorrência de forma desenvolvida no Livro Terceiro, a exposição sobre o conceito de capital passa, então, aqui, a possuir todas as determinações em sua forma plena.

31. Essa diferenciação entre o que está em dynamis (potência) e o que está en-érgon (em ato) é um lugar comum no pensamento filosófico grego dos séculos V e IV a.C.; essa diferenciação não remete, assim, necessariamente, à forma pela qual esses con-ceitos foram consagrados em Aristóteles, que sempre permaneceu no pensamento analítico e em uma lógica da não contradição.32. Ainda que, desde o primeiro capítulo do Livro Primeiro, seguindo um mo-vimento em espiral, as formas abstratas vão sendo superadas, gradualmente, e retomadas em formas cada vez mais determinadas. O Livro Primeiro, por exem-plo, como totalidade própria, contém abstratamente todo o movimento dos três livros: a forma mercadoria, a circulação, a produção de mais-valia, a acumulação de capital, e a superação do capital com a expropriação dos expropriadores (cap. XXIV). Já o Livro Segundo recomeça o movimento novamente da circulação, mas agora, a mercadoria inicial, com as determinações conquistadas no Livro Primeiro, desde o início é M’, ou seja, contém a extração de mais-valia e, assim, todas as contradições expostas no Livro Primeiro. O Livro Terceiro continuará a ampliação em espiral dos dois livros anteriores tentando realizar a síntese final.

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Segunda questão: nos Livros Primeiro e Segundo ana-lisa-se, particularmente, o conceito de crise também de modo mais puro e abstrato. As muitas contradições que re-metem ao conceito de crise, que já aparecem nesses livros, mostram-se como contradições ainda bastante formais, po-tenciais e abstratas. A crise se converte em realidade plena somente no Livro Terceiro, porque somente ali serão postas de forma desenvolvida a pluralidade de capitais e a concor-rência. Seriam postas ainda, de forma plenamente desen-volvida, também as classes sociais, objeto do Capítulo LII, do qual, infelizmente, só temos algumas linhas.

Terceira questão: nos dois primeiros livros a concorrência foi abstraída da exposição exatamente porque ela não funda as leis e tendências gerais da sociedade capitalista, a concor-rência apenas converte essas leis em realidade. A concorrên-cia, para Marx, é sempre fonte de perturbação e engano para o pensamento e, por isso, para apreendermos o conceito de capital em sua imanência é necessária sua abstração.

Como diz ele:

Na concorrência aparece, pois, tudo invertido [es ers-cheint also in der Konkurrenz alles verkehrt]. A figura aca-bada [fertige Gestalt] das relações econômicas, tal como se mostra na superfície, em sua existência real e, portanto, também nas concepções mediante as quais os portadores e os agentes dessas relações procuram se esclarecer sobre as mesmas, difere consideravelmente, sendo de fato o in-verso [verkehrt], o oposto [gegensätzlich], de sua figura medular [Kerngestalt] interna, essencial mas oculta [we-sentlichen aber verhüllten], e do conceito [Begriff] que lhe corresponde.33

33. O Capital. Livro Primeiro – Volume II. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 153. MEW 23 – 1962, p. 219.

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Quarta questão: no Livro Primeiro analisa-se de modo formal e abstrato as leis da produção da mais-valia enquanto tal, da mais-valia em seu nível mais puro e idealizado. No Li-vro Segundo analisa-se, do mesmo modo formal e abstrato, as condições puras e idealizadas para a realização da mais--valia global, ainda que esta já esteja posta mais abstrata-mente desde o início pelo Livro Primeiro. No Livro Terceiro, analisa-se a distribuição desta mais-valia global já produzida e realizada entre a pluralidade dos capitais individuais.

Assim, uma exposição dialética do conceito de capital e de crise deve ser dividida em três grandes momentos. No primeiro momento se abrange a exposição das contradições mais genéricas e potenciais contidas no Livro Primeiro, em que se realiza uma primeira totalização abstrata da produ-ção capitalista, desde a sua forma elementar, a mercadoria, até a sua destruição, a negação da negação. No segundo momento, no Livro Segundo, se realiza a exposição das con-tradições potenciais contidas na circulação, porém, já com as determinações obtidas no Livro Primeiro. Por isso, parte--se não mais da forma simples da mercadoria, mas sim, de sua forma capitalista supondo, portanto, a mais-valia (M’). Todo o processo contraditório é exposto, contudo, ainda com a abstração da concorrência.

No terceiro grande momento, formado pelo Livro Ter-ceiro, produção (Livro Primeiro) e circulação (Livro Segun-do) finalmente são unificadas e se analisa a conversão em realidade de todas as contradições descritas anteriormente, porém, submetidas agora à existência da pluralidade de ca-pitais e da concorrência. O Livro Terceiro, como sabemos, tem exatamente como subtítulo O processo total da produ-ção capitalista (Der Gesamtprozess der kapitalistischen Pro-duktion), isto é, trata-se ali da síntese dos resultados ob-

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tidos nos dois primeiros livros agora transformados pelas determinações da concorrência entre os capitais.

Desse modo, a renovação periódica do capital fixo, a su-perprodução de mercadorias, o subconsumo das massas e a desproporção intersetorial – analisadas nos Livros Primeiro e Segundo – não podem, de modo algum, ser chamadas de “causas das crises”. Estes fenômenos constituem unicamen-te, do ponto de vista da exposição dialética, meras formas de manifestação de contradições ainda abstratas, formais, indeterminadas e potenciais da crise. Do mesmo modo, a lei da queda tendencial da taxa de lucro não pode também ser chamada de “causa das crises”, mas deve, sim, do ponto de vista de uma exposição dialética, ser concebida como a for-ma mais complexa e desenvolvida das múltiplas e parciais determinações contraditórias anteriores que estão contidas na própria contradição entre valor de uso e valor. Ao invés de causa superior das crises, a lei da queda tendencial da taxa de lucro seria o resultado do próprio desenvolvimento das contradições imanentes do capital expostas anteriormente. Assim, longe de ser uma causa superior, a queda tendencial da taxa de lucro seria a síntese das contradições potenciais, formais e abstratas expostas nos Livros Primeiro e Segundo que se convertem em efetividade ou em ato (en-ergon).

Consideramos, portanto, que a lei da queda tendencial da taxa de lucro tanto reúne numa única e mesma forma aparente todas as diferentes formas parciais e abstratas da crise, quanto reúne, também numa única e mesma lei, todas as diferentes leis e contradições parciais e abstratas expostas nos Livros Primeiro e Segundo. Por este aspecto dialético, a lei da queda tendencial da taxa de lucro é tanto a forma mais sintética de todo o processo analítico anterior, quanto a forma mais concreta de manifestação da crise que

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condena o modo de produção capitalista à sua superação e destruição (Aufhebung).34

Dessa maneira, é a partir desta concepção metodológi-ca que procuramos desenvolver esta leitura e mostrar que Marx possui, sim, uma teoria sobre as crises do capital. Con-tudo, pensamos que esta é uma teoria dialética que só pode ser compreendida a partir da análise do desenvolvimento das possibilidades mais abstratas e formais da crise até sua efetividade mais concreta. Este movimento vai da totalida-de abstrata (pressuposta) e das formas potenciais da crise até a sua realidade mais concreta. O movimento se inicia com a totalidade abstrata pressuposta (como representação intuitiva) que antecede a própria circulação simples e a análise aparentemente inicial da mercadoria. Parte-se, apa-rentemente, no Livro Primeiro, da contradição entre valor de uso e valor de troca. Dessas formas ilusórias, esconden-do o pressuposto último (a história como luta de classes), se caminha em direção da análise cada vez mais determina-da e concreta das categorias da sociedade capitalista – tais como valor de uso e valor, substância e forma do valor, tra-balho abstrato e trabalho concreto, dinheiro, produção de mais-valia, acumulação de capital, acumulação originária (quando a luta de classes já aparece abertamente) e assim

34. Cabe observar que, cada vez mais, encontram-se traduções de Aufhebung como “suspensão” e o verbo “aufheben” como “suspender”. Com o pretexto de uma interpretação filológica correta do alemão, retira-se o caráter negativo do termo dialético. Na verdade, esse termo possui antecedentes na história da dialética que remete a uma época muito anterior à filosofia alemã do século XIX. Já os gregos, criadores da dialética, utilizavam palavra similar: anairein que significa “levan-tar”, “suspender” e “jogar para baixo”, “destruir” (cf. livro VII de A República, de Platão). Como o termo alemão, o termo grego significa “suspender”, mas, sus-pender algo, significa “levantar”, e levantar significa “desequilibrar”, “derrubar”, “colocar abaixo”, “destruir”, “negar”.

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por diante – e se avança nas determinações, até que se che-ga à forma lucro, taxa de lucro e queda tendencial da taxa de lucro expostas no Livro Terceiro e à consumação total do processo com a luta de classes no Capítulo LII.

Procuramos, desse modo, sustentar que o processo de desenvolvimento da crise, o de conversão de sua possibili-dade formal e abstrata em realidade, é o mesmo processo que concretiza todas as contradições mais simples e abstra-tas do capital, mostrando-as, finalmente, como luta de clas-ses, expropriação dos expropriadores, negação da negação, superação do modo de produção capitalista e, assim, último e derradeiro desenvolvimento da teoria marxista da crise. Somente partindo desta concepção dialética de exposição, podemos desvelar, então, como se desenvolve, de forma mais detalhada, o conceito de crise ao longo dos três livros de O Capital. Conceito que desemboca na crise geral inevi-tável, mais cedo ou mais tarde, do sistema capitalista como um todo, por suas contradições fundamentais, aquelas das classes em luta.

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CAPÍTuLo 1

LiVro PrimEiro: EXPoSiÇÃo DAS CoNTrADiÇÕES PoTENCiAiS E

ABSTrATAS Do CAPiTAL NA ESFErA DA ProDuÇÃo DE mAiS-VALiA

O Livro Primeiro está dedicado à análise das contradições do processo de produção da mais-valia e possui 25 capítulos distribuídos em 7 seções. A primeira seção compreende os Capítulos I a III e estuda as determinações contraditórias do dinheiro e da mercadoria na esfera da circulação simples. As seções II a VI compreendem os Capítulos IV a XX e estudam as contradições contidas no processo de produção da mais--valia. A seção VII estuda a repetição do processo de produ-ção e a conversão da mais-valia em capital, isto é, estuda as contradições contidas na esfera da reprodução do capital. Vejamos então as linhas gerais da exposição.35

1. Significado geral da exposição de O Capital – LivroPrimeiro

1) Seção I: análise e crítica da circulação simples de mercadorias = M - D - M (Mercadoria – Dinheiro – Merca-doria). Representa o começo puramente formal, abstrato e positivo da exposição. Os operários aparecem como indi-víduos livres e dispersos pelo mercado. M (uma mercado-ria qualquer) se converte em D (dinheiro) que será recon-

35. Sobre o modo de exposição dialético de O Capital vide novamente a obra já citada de Hector Benoit: Sobre a crítica (dialética) de O capital.

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vertido noutra mercadoria (M) qualquer. O dinheiro não aparece ainda como dinheiro, mas como moeda e meio de circulação. O dinheiro, por isso, não aparece ainda como o fim do processo de troca. O fim da troca aparece, iluso-riamente, como M, como a satisfação de uma necessidade humana qualquer. O processo capitalista de troca, antes de aparecer como dúplice e contraditório, aparece como uno e indivisível e a crise aparece em sua forma meramente for-mal e potencial.

2) Seção II: análise e crítica das contradições da fór-mula geral do capital = D - M - D’ (Dinheiro – Mercadoria – mais-Dinheiro). Primeiro momento negativo e crítico da exposição. Nesta seção surgem as primeiras contradições da fórmula geral do capital na esfera da circulação e a crítica à noção dos economistas de que a mais-valia surge desta esfera. O dinheiro nesta seção surge como dinheiro exata-mente e não mais como moeda e meio de circulação como aparecia na seção anterior. O dinheiro surge agora como valor que deve se valorizar na circulação e como o fim do processo de troca. O problema aqui é explicar como o di-nheiro, seguindo a lei do valor e da equivalência entre as mercadorias, segundo a lei de comprar e vender pelo valor, pode se valorizar no processo. O problema é explicar como o dinheiro (D), ao se converter em M (uma massa de valor igual a D), sai ao final do processo de troca quantitativa-mente maior do que entrou no começo sem violar as leis da troca de mercadorias.

Ainda no interior desta segunda seção surge a resposta ao problema da valorização do valor com o surgimento de uma mercadoria determinada, a força de trabalho, e um vendedor, também determinado, o trabalhador, que ainda não apareciam na seção anterior, que na verdade apare-

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ciam misturados sem se diferenciar com uma miríade de outros vendedores. A fórmula FT - D - M (Força de Trabalho – Dinheiro – Mercadoria) surge como a mediação dialéti-ca entre o começo abstrato e indeterminado e a esfera da produção que virá logo mais à frente. O mercado, por isso, está agora mais determinado do que no começo, pois agora estamos no mercado de força de trabalho. Aqui é o momen-to da venda da força de trabalho (FT) pelo operário ao capi-talista. É o momento da conversão da força de trabalho em D (dinheiro) e, mais tarde, em meios de subsistência (M) do trabalhador. D só pode se converter em D’ caso entrar em relação com um vendedor de uma mercadoria deter-minada, a força de trabalho (FT) do trabalhador, com uma mercadoria que possui a peculiaridade de gerar uma soma de valor acima de seu próprio valor.

3) Seções III a VI: análise e crítica das relações de pro-dução na fábrica capitalista = D - M [FT + MP] ... P ... M’ - D’ (Dinheiro – Mercadoria [Força de Trabalho e Meios de Produção] ... Processo de Produção ... mais-Mercadoria – mais-Dinheiro, em que ... significam as pausas do processo de troca). Segundo momento crítico e negativo da exposi-ção e a primeira negação determinada do começo. A valori-zação do valor é exposta na esfera da produção capitalista. Os operários surgem como uma categoria determinada da sociedade, reunidos pelo capital em torno de uma grande fábrica e lutando por reivindicações positivas e de caráter sindical. Dinheiro (D) se converte em certas mercadorias determinadas (força de trabalho e meios de produção). ... P ... indica a paralisia transitória do processo de valorização do valor na esfera da produção. O valor ressurge valorizado ao final do processo de produção com M’. O valor, porém, ressurge valorizado numa forma determinada e rígida da

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produção social, ressurge sob a forma de M’ com valor supe-rior ao valor adiantado inicialmente. D’ representa a trans-mutação do valor de sua forma determinada e particular para a forma indeterminada e universal da riqueza.

Com D’ o dinheiro retorna ao seu ponto de partida mais elevado quantitativamente. O fim do processo, valorizar o valor, foi atingido. D se converteu em capital e em D’, isto é, o dinheiro se converteu em mais-dinheiro mediante extração de mais-trabalho do operário. A crise nesta seção aparece claramente como uma crise que nasce das relações antagônicas entre capital e trabalho e capitalista e trabalha-dor. A sede insaciável do capitalista por mais-dinheiro surge conduzindo a relação entre patrões e trabalhadores a um divórcio cada vez mais inevitável e necessário. A aparente relação de troca de equivalentes entre capital e trabalho da primeira e da segunda seção é negada pelo surgimento da mais-valia. O trabalhador descobre que a troca entre ele e o patrão é uma troca desigual e sem equivalência alguma para ele. O trabalhador descobre que a mais-valia apropria-da pelo patrão não possui nenhuma relação de equivalência com o salário recebido. A relação de troca entre capital e trabalho se mostra, então, como uma relação assimétrica, desigual e não equivalente. Ou seja: a equivalência da troca é negada pelo surgimento da mais-valia.

4) Seção VII: análise e crítica do processo global do ca-pital = D - M [FT + MP] ... P ... M’ - D’ - D - M [FT + MP] ... P ... M’ - D’ - D - M [FT + MP] ... P ... M’ - D’. O dinhei-ro se reproduz incessantemente retornando sempre ao seu ponto de partida elevado quantitativamente. D se converte em D’ mediante extração de mais-valia do operário, D’, por sua vez, retorna à circulação e se converte novamente em D que se converte, por sua vez, numa massa acrescida de

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M [FT + MP] que ao ser posta em atividade no interior da fábrica (... P ...) se converte numa massa maior de mercado-rias (M’), que, posta para circular no mercado, se converte novamente em D’, que reinicia novamente todo o processo numa escala mais elevada do que no começo e assim sem-pre de novo como num círculo vicioso.

Repetição sem fim de todo o processo anterior e unida-de sintética de todos os momentos da circulação com o da produção e reprodução do capital. A exposição cai numa re-petição circular e sem fim, por isso, surge a necessidade de se marchar para além dela e de transpor a esfera insossa da reprodução social buscando a gênese histórica e o princípio original do capital e do capitalismo.

A crise aparece em suas formas mais concretas e explo-sivas do que nas seções anteriores, aparecendo claramente como uma crise nas relações de produção entre as classes e num divórcio impossível de ser evitado. Se as seções ante-riores haviam negado o princípio de equivalência na troca entre capital e trabalho, agora é negada a própria troca en-tre capital e trabalho. Ao comprar trabalho com mais-valia o capitalista compra na verdade trabalho com trabalho, ne-gando, portanto, que o trabalho seja comprado com capital e que haja reciprocidade e equivalência nas trocas entre ele e o trabalhador. As leis da troca de mercadorias baseadas na equivalência entre elas transformam-se, desta maneira, em leis da apropriação capitalista sem troca. A riqueza acumu-lada pelo capitalista aparece, portanto, como expropriação, saque, pilhagem e roubo sobre o trabalhador. A crise se mos-tra, desta maneira, como crise social, como crise que emana das relações sociais antagônicas entre capital e trabalho.

5) Seção VII – Capítulo XXIV: a acumulação originária [ursprüngliche Akkumulation].